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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
CONSTRUÇÃO DE MASCULINIDADES EM TERRITÓRIO FEMININO:
UM RECORTE DO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA
Rosilene Mazzarotto1
Fernando Seffner2
Resumo: Este artigo põe em discussão parte dos resultados de uma pesquisa de mestrado que
estuda a formação de masculinidades dentre os jovens beneficiários com idades entre 16 e 17 anos,
incluídos no Programa Bolsa Família desde a infância. Afilhando-se aos campos dos estudos de
gênero e das vertentes pós-estruturalistas. Problematiza o lugar de sujeito que a Política destina aos
meninos, bem como os enunciados que veicula sobre o que se espera de mulheres e homens.
Considera ainda, possíveis efeitos que o discurso de responsabilização das mulheres/mães em
contrapartida com a invisibilidade dos homens, pode ter sobre as masculinidades destes jovens.
Palavras-chave: Gênero. Masculinidades. Programa Bolsa Família. Política Pública. Norma.
A aproximação com o Programa Bolsa Família, que de agora em diante chamaremos de
PBF, iniciou muito antes da pesquisa3 que, aqui, apresentaremos em parte. A experiência
prolongada, desde 2008, no lugar de gestão do Programa na Cidade de Porto alegre, permitiu
aproximações com diferentes territórios e beneficiários. Este contato muito próximo, aguçou a
percepção de que estes jovens que delimitamos para a pesquisa são atravessados por inúmeros
marcadores: classe, raça, cultura, periferia, violência, geração, gênero, entre outros. Então por que
escolhemos gênero como lente para focar nosso olhar? Primeiro porque a política tem como corte e
critério de ingresso a renda familiar, mas toda sua estruturação e manutenção é generificada. Assim,
mulheres e homens são colocados em diferentes lugares de sujeito, as expectativas e a vigilância
também são diferentes, resultando em produções de masculinidades e feminilidades de acordo com
as expectativas. Mas também, porque nem tudo nas maquinarias das biopolíticas pode ser previsto.
Muitos efeitos são, por certo, indesejados, bem como escapes e fissuras podem surgir.
1 Professora na SMED Porto Alegre e acadêmica de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Educação UFRGS,
linha de pesquisa Educação, Sexualidade e Relações de Gênero, Porto Alegre, Brasil. 2 Doutor em Educação, Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação UFRGS, linha de pesquisa Educação,
Sexualidade e Relações de Gênero , Porto Alegre, Brasil. 3 Rosilene Mazzarotto é coordenadora da Condicionalidade da Frequência Escolar do Programa Bolsa Família, na
cidade de Porto Alegre. Já de longa data tem uma aproximação com o tema, que atualmente desenvolve como pesquisa
de mestrado em educação na UFRGS. Fernando Seffner, aproximou-se mais recentemente, como orientador do
mestrado.
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Gênero organiza essa política gigante que abarca 13,9 milhões de famílias brasileiras. Em
Porto Alegre são 51,039 mil famílias beneficiárias e 56.912 alunos, dos quais 46% são meninos4.
Não é nosso interesse avaliar a eficácia do Programa, nem o alcance e limites quanto ao seu
objetivo na distribuição de renda e diminuição das desigualdades sociais. Nos propomos a recortar a
generificação do PBF e investigar suas consequências sobre os jovens meninos beneficiários.
Iniciamos o texto contextualizando a generificação do Programa e seus efeitos imediatos.
Depois analisamos um conjunto de cenas enunciativas e possíveis enunciados sobre os homens no
PBF. Por fim tomamos um conjunto de falas de meninos beneficiários, com idades entre 16 e 17
anos. Material produzido em diferentes situações e momentos, alguns antes mesmo do início desta
pesquisa, mas principalmente, oriundo de entrevistas realizadas em duas escolas públicas de Porto
Alegre, uma de Ensino Médio e outra de Ensino Fundamental.
Uma Política generificada
Na concepção do Programa Bolsa Família as mulheres foram definidas como beneficiárias
preferenciais. Organização que foi referendada em pesquisas de opinião, que expressam
concordância da maioria dos entrevistados que, em lares mais pobres, as mulheres conhecem e se
comprometem com as necessidades da família, utilizando o dinheiro para a alimentação e o cuidado
com os filhos. Os homens, em geral, são vistos com muita desconfiança, em relação à destinação
financeira do benefício, sendo que só se tornam responsáveis familiares e titulares do benefício em
lares em que não há a presença de mulheres adultas capazes. Isto se reflete no número de cadastros
cuja responsável familiar é a mãe, 93%. Mesmo assim, chama a atenção que em Porto Alegre, 72%
das famílias beneficiárias têm como única responsável familiar, uma mulher, quer seja a mãe, avó,
irmã maior, tia, ou mesmo a madrasta que ficou com as crianças do ex-companheiro, por laços
afetivos e de responsabilidade quando a relação se desfez5.
Este processo de dupla responsabilização das mulheres tem sido apontado por diversas
autoras feministas “mulheres de diferentes estratos sociais estão sendo posicionadas como
importantes agentes de implementação de ajustes econômicos-sociais que redundam em cortes e/ou
diminuição de serviços sociais – a chamada “ressignificação das funções do Estado”, produzida
4 Dados consolidados ao final do ano de 2016 disponíveis mediante solicitação de relatório gerencial à SMED-
Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, MEC- Ministério da Educação e/ou MDS-Ministério do
Desenvolvimento Social. 5 Dados do Cadastro único de Porto Alegre.
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pelas políticas neoliberais. ” (MEYER et ali, 2012, p.887). O rosto da pobreza assume contornos
femininos.
Importa salientar o papel fundamental que o Banco Mundial exerce sobre as políticas
públicas destinadas aos mais pobres. Criado para a reconstrução da Europa devastada pela guerra,
aos poucos ocupou o lugar de ‘tutor’ dos países menos desenvolvidos, preconizando em seus
relatórios decenais, políticas necessárias à adequação ao novo modelo de liberalismo que se
instalou. No relatório de 1990 as questões de gênero, principalmente o olhar sobre as mulheres, cuja
situação é descrita como preocupante, ocupam boa parte do texto. “A situação da mulher pobre é
por si só aflitiva. E ainda mais aflitiva se considerarmos que a saúde e a educação das mães têm
grande influência no futuro dos filhos”. (BANCO MUNDIAL – 1990 p. 3)
A pobreza passou a ser tratada como um fenômeno universal de “incapacidade de atingir
um padrão de vida mínimo” (BANCO MUNDIAL, 1990, p 27). O padrão de vida mínimo foi
quantificado, medido pelo consumo de um dólar por dia, qualquer pessoa que recebesse menos do
que isto estaria abaixo da linha de pobreza.
A incapacidade, entretanto, é questão mais ampla, menos fácil de ser mensurada.
Posicionar as populações pobres como detentoras desta incapacidade justifica biopolíticas. Afinal
torna-se necessário habilitar estes indivíduos a acessar não só os serviços básicos, mas também os
bens de consumo. O Banco Mundial aponta como solução a “utilização produtiva do bem que os
pobres mais dispõem – o trabalho” (1990, p 3), aliada a prestação de serviços sociais. As agências
internacionais estabeleceram a ideia de que a falta de acesso à saúde e educação é o fator de
perpetuação da pobreza e passa a ser necessária a regulação desta população pelo Estado.
Programa Bolsa Família foi implementado em 2003, através da Medida Provisória 132.
Este cenário internacional e a crescente demanda interna por políticas de inclusão foram
imprescindíveis para sua ocorrência. Em 2004 foi previsto pela Lei Federal nº 10.836 e
regulamentado pelo decreto nº 5.209 de 17 de setembro de 2004. O Programa unificou o antigo
Bolsa Escola, o Programa Nacional de Acesso à Alimentação – PNAA, o Programa Nacional de
Renda Mínima Vinculada à Saúde – Bolsa Alimentação, o Programa Auxílio-Gás e o
Cadastramento Único do Governo Federal. Foi concebido como uma resposta imediata à fome e
combate à pobreza e estrutura-se em três eixos, que são: Transferência direta de renda, as
condicionalidades (compromissos assumidos pela família, que buscam reforçar o acesso à
educação, à saúde e à assistência Social) e articulação com outras ações que busquem a superação
da pobreza.
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Afirmamos que gênero organiza o programa por percebermos fortes marcadores, que
naturalizam relações sociais e reforçam a ideia de que as mulheres são responsáveis pela
concepção/contracepção e, até mesmo, pela condição de vulnerabilidade em que os/as filhos/as se
encontram. Assim, são chamadas a assumir junto ao poder público a promoção da saúde e da
educação das crianças. Segundo Dagmar E. Meyer e Carin Klein “este contexto/situação integra um
movimento de “generificação da inclusão social” (2013 p.2). Mais do que ocupar o lugar de um
marcador, gênero organiza a estrutura do Programa, responsabiliza as mulheres, liga-as, diretamente
à maternidade, posiciona as crianças e adolescentes quanto às condicionalidades e invisibiliza os
homens na composição familiar.
O Programa Bolsa Família construiu e consolidou suas condicionalidades usando gênero
como marcador da diferença. KLEIN, percebe como os programas sociais convertem em
equivalentes categorias como mulher e mãe, em uma manobra de interpelação destas mulheres de
forma a que mulher, mãe e família se igualem e família seja vista como uma identidade feminina
presumida (2007).
Todo acompanhamento do PBF é cobrado das mulheres /mães. São vistas como
responsáveis pela situação em que se encontram, gestantes ou não, e muitas vezes culpadas pela
precarização da sua vida e de seus filhos, principalmente quando têm muitos filhos de pais
diferentes.
Entendemos gênero como organizador do social e como construção social. Nos afastamos
das abordagens que tratam o biológico e mesmo o social como determinantes. Acreditamos que os
indivíduos e as sociedades são atravessadas por discursos de normatização do sexo e do gênero, mas
também produzem atos/discursos que recolocam ou ressignificam os discursos e as relações de
poder de cada época. Tomamos o conceito de Joan Scott:
“Minha definição de gênero tem duas partes e diversos subconjuntos, que estão inter-
relacionados, mas devem ser analiticamente diferenciados. O núcleo da definição repousa
numa conexão integral entre duas proposições: (1) o gênero é um elemento constitutivo de
relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma
forma primária de dar significado às relações de poder”. (1995, p.86)
A generificação das políticas públicas aponta claramente para esta relação de poder,
impacta tanto as mulheres/mães na responsabilização pela família, quanto os homens na
desresponsabilização ou ausência. Analisando as noções de família nas políticas públicas MEYER e
FERNANDES percebem,
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“Um aspecto importante que temos destacado é que um dos efeitos de poder (não
esperado) da incorporação (reivindicada e desejada) de noções mais abertas e flexíveis de
família, nesses programas, parece ser a “naturalização” da ausência de um homem-pai nos
núcleos familiares mais pobres e, sobretudo, sua “desresponsabilização” pela vida das
crianças que o integram. Isso tem se traduzido, por um lado, no posicionamento do Estado
no lugar de autoridade conferido ao pai na família mononuclear moderna e, por outro, na
sobreposição de uma parte significativa dos deveres até então definidos como “paternos”
(sobretudo aqueles vinculados ao provimento do lar) aos já consagrados “deveres
maternos”. “(2012 p.444)
Diante deste cenário, é necessário nos perguntarmos: de que tipo de homens falamos?
O que se diz dos homens
Percebemos claramente dois grupos de homens, com marcas geracionais e sobre os quais
se depositam expectativas diferentes. O primeiro, dos homens adultos, que compõem as famílias ou
transitam por elas. São pais ou padrastos, vistos com alguma desconfiança pela política e pela
sociedade, que os acredita irresponsáveis para administrar financeiramente a vida da família, de
modo a prover as necessidades básicas com alimentação para os filhos e o cuidado com a saúde e
escolarização (IPEA, 2010). O outro grupo é composto pelos jovens, meninos e adolescentes
beneficiários, acompanhados pelo Programa, na sua maioria, por longos anos, a quem, espera-se,
que a política supra a ausência do papel de provedor do pai. De toda forma, os dois são pouco
confiáveis, uns por que considerados irresponsáveis e os outros, por ainda serem crianças ou
adolescentes.
Interessa-nos os jovens, filhos homens, que estão inseridos na política e são acompanhados
pela condicionalidade da educação. Estes jovens, atravessados por muitos marcadores, têm no
gênero uma primeira identificação: está no nome, nas posturas, nos grupos, no que revelam, no que
escondem, no que temem ou afirmam.
Uma questão central nos orienta: que posições de sujeito o PBF desenha para os
adolescentes homens nele inseridos e como estes constroem suas masculinidades, considerando esta
interpelação?
A subjetivação é componente da produtividade da biopolítica. Mas se a aposta é nas
mulheres/mães, qual o lugar dos homens na política que nos ocupamos? A sua invisibilidade é
resultado somente deles ocuparem o centro da norma? Desconfiamos desta explicação, que não se
sustenta quando tratamos de homens jovens pobres, moradores da periferia e, em maior número,
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negros. Carin Klein, em sua dissertação de mestrado, analisou o antigo Bolsa Escola, programa que
foi incorporado ao Bolsa Família e em grande parte deu formato ao mesmo. A autora percebeu que
a política posiciona os homens/pais, naturalizando sua ausência nos núcleos familiares mais pobres
e desresponsabilizando-os pela vida de seus filhos. Este movimento posiciona o Estado no lugar de
autoridade sobre a família e realoca uma parcela considerável dos deveres tidos como “paternos”
àqueles já consagrados como “maternos”, numa sobreposição que responsabiliza ainda mais as
mulheres/mães (Klein, 2003).
Meyer percebe, sobre os homens adultos, que são posicionados,
[...] nesses discursos de promoção da saúde e de prevenção de doenças que reiteram e
atualizam a centralidade das mulheres para a implementação de ações de cuidado consigo
mesmas e com os seus familiares, como um “fator de risco” ou como alguém que não é, ou
não pode estar preocupado com sua saúde. O entendimento de que ele é, per se, um agente
perturbador desse cuidado justifica a estratégia do empowerment com a qual se investe na
promoção do autocuidado feminino. Ele não é informado e educado, como homem, para
cuidar de sua própria saúde, mas é responsabilizado pela falta de saúde de um tipo de
parceira sexual específica – a companheira e/ou a mãe de seus filhos. Um dos efeitos
perigosos desse discurso é que se pode passar a trabalhar com o pressuposto de que, nessa
posição de sujeito que ameaça ou perturba, o homem deve arcar individualmente, com a
responsabilidade por suas “atitudes de risco” (Meyer, 2005, p. 97 e 98).
Este lugar de desconfiança destinado aos homens adultos e o silêncio sobre os meninos,
dentro do PBF, parecem apontar para uma expectativa de que repitam o ciclo, ou seja,
‘naturalmente’ se posicionem como homens e sigam se desresponsabilizando por seus núcleos
familiares, ou então de que o cuidado com a saúde e com a educação, assumido pelas mães, possam
dar conta da superação destas construções.
Gary Barker também dá visibilidade aos efeitos nocivos que a política pode ter sobre as
masculinidades:
Resumindo, na maioria dos contextos, a renda provida às mulheres como parte destas
políticas provavelmente irá beneficiar mais as famílias do que quando dada aos homens.
Mas, ao mesmo tempo, esta prática pode afirmar implicitamente uma crença de que os
homens não irão mudar: os homens são na maioria “egoístas” e não são suficientemente
envolvidos no bem-estar de suas famílias para ser confiados a eles este auxílio (Barker,
2010, p. 128).
Os meninos que pesquisamos são atravessados por muitos marcadores da diferença e pela
vulnerabilidade. Esperar que somente a escolarização possa dar conta de tirá-los desta situação
seria, no mínimo, ingênuo. Considerar que estes meninos estão no grupo de maior vulnerabilidade
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social significa entender a exposição a que estão submetidos, como resultado de um conjunto de
aspectos que ultrapassam a esfera individual, são de ordem coletiva e contextual.
Trazer as masculinidades como efeito de discursos é sustentar que são inventadas,
mantidas, deslocadas e reproduzidas pela normalização e normatização que os discursos
transformam em práticas. Discursos que incidem sobre os jovens homens beneficiários do PBF,
moradores da cidade de Porto Alegre, esta metrópole e capital do estado mais meridional do Brasil.
Incluídos há, no mínimo, 5 anos na política, muitos deles são beneficiários desde a infância. Ao
tomarmos o PBF como uma tecnologia, partimos do pressuposto de que ele pode veicular discursos
com efeitos de verdade, que ensinam modos de ser e estar no mundo.
Muitas práticas e linguagens “constituíam e constituem sujeitos femininos e masculinos;
foram e são produtoras de ‘marcas’”. (LOURO, 2007, p. 25), para que esta constituição aconteça,
há um processo onde se envolvem família, escola, mídia, economia, amigos, enfim, uma imbricada
rede de relações. É importante salientar que os homens e mulheres não são meros receptores da
ação de outros, participam ativamente do processo, “[...] há um investimento continuado e
produtivo dos próprios sujeitos na determinação de ser ou “jeitos de viver” sua sexualidade e seu
gênero” (LOURO, 2007, p. 26). Mesmo que estes meninos/homens não saibam exatamente o que
estão produzindo, também se produzem ao viver.
Quero ser alguém na vida: O que os meninos dizem de si
Mas o que é um menino/homem? Quando perguntamos a meninos, com idade entre 16 e 17
anos, beneficiários do PBF, eles nos responderam que é “ser alguém na vida”, “ser responsável
pelo seu sustento e o da casa” e “ser heterossexual”, embora não chamem assim a
heterossexualidade, a chamam de “ser macho”, “não ser maricas”, “dar no couro”, “sabe né?
Não ser veado”. Até este momento estes três quesitos estiveram presentes em quase todas as
conversas, com meninos, com as famílias e até mesmo com técnicos que trabalham com a Política.
Os dois primeiros, “ser alguém da vida” e “ser responsável pelo seu sustento e o da casa”,
apontam para a relação classe-gênero. O ser alguém está diretamente relacionado com projeção,
imagem, poder de consumo, assim como o ser responsável pelo sustento de si e de outros. A
heteronormatividade é aceita como norma, como o esperado de todos os meninos, que sejam
machos e se mostrem assim.
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Uma certa masculinidade hegemônica emerge dos discursos. Uma masculinidade que não é
da maioria dos homens, mas que pauta, inclina, conduz e se estabelece como a norma. Michael S.
Kimmel associa a definição da masculinidade hegemônica ao poder:
A definição hegemônica da virilidade é um homem no poder, um homem com poder e um
homem de poder. Igualamos a masculinidade com ser forte, exitoso, capaz, confiante e
ostentando controle. As próprias definições de virilidade que temos desenvolvido na nossa
cultura perpetuam o poder de uns homens sobre os outros e que os homens têm sobre as
mulheres (Kimmel, 1997, p. 3, tradução da autora).
Não é estranho, pois, que apareçam nas entrevistas, estas definições tão estreitas a respeito
das masculinidades. Na verdade, os meninos trazem uma masculinidade no singular, mesmo que
seja uma masculinidade a atingir, pois em diversos momentos se posicionam como quem ainda não
“é alguém”, ainda não “tem condições de sustentar a casa”, ainda não pode “ser responsável por si e
pela família”. Fernando Seffner (2003, p. 140) aponta essa busca de aproximação com o modelo
hegemônico, mesmo que seja de alguns dos elementos, como um modelo, “é portanto nas trajetórias
de vida dos homens que aparecem como representantes mais credenciados da masculinidade
hegemônica que os demais buscam elementos para definir seu modo de viver”. Meninos cujos
corpos são educados, assujeitados a práticas e discursos, com efeito de materialidade que os tornam
inteligíveis e possíveis de serem nomeados.
Há também, uma valorização de um certo modelo de masculinidade ligada à família, como
se fosse um dever ser, uma forma imutável. “Meu pai não é modelo... sei lá... eu não quero ser
como meu pai, se um dia eu tiver um filho, vou criar... se tiver que passar dificuldade, azar, passo
junto” (Sandro, aluno beneficiário, 17 anos). Connell aponta para a constante construção e
reconstrução das masculinidades, que frequentemente mudam, mas ao mesmo tempo os discursos
são produzidos de forma a significar gênero como estável. “O padrão agora frequentemente
chamado de “masculinidade tradicional”, e veiculado à “família tradicional”, é, na verdade, uma
forma de gênero historicamente recente, um produto claro do mundo moderno” (CONNELL, p.
191). Sobre os homens que não ocupam este lugar, circulam falas de desqualificação, mas também,
parece-nos que há uma espécie de expectativa de que homens pobres se eximam de
responsabilidades com as famílias, há pouco estranhamento. Diferente do que ocorre com as
mulheres.
Retomamos os materiais produzidos em uma escola de Ensino Fundamental e outra de
Ensino Médio e percebemos convergências e divergências importantes. Os projetos dos alunos do
Ensino Fundamental são carregados das experiências de fracassos escolares, são mais difusos, mais
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mágicos ou desesperançados. É comum ouvir meninos que sonham em ser jogador de futebol,
astros do Funk, ou mesmo donos da boca. Também é comum ouvir que não têm futuro, que não
chegarão à idade adulta.
Dentre o grupo que está no Ensino Médio, os projetos de futuro são mais concretos e mais
próximos da possibilidade de realização, ou não, já que este é um grupo em vulnerabilidade, e assim
dependem de outras políticas públicas para uma possibilidade de futuro sonhado. A maioria quer
continuar os estudos. Grande parte conta com o Prouni e com uma boa nota no ENEM, pois
projetam profissões possíveis de vislumbrar. Estão na idade certa, ou com pequena distorção de
idade e seguem estudando.
Mas onde está a convergência? No que pensam sobre gênero e masculinidades, na forma
como sentem seus corpos de meninos e os reconhecem e colocam no mundo, nas dúvidas e
silêncios, nas faltas e nas construções que, por certo, não são todas iguais, mas são perpassadas pela
raça/etnia, periferia, vulnerabilidade, geração, pobreza, classe. Estes marcadores não os iguala, nem
impactam da mesma forma, mas se interseccionam e produzem em conjunto. Em todas as conversas
que tivemos com jovens beneficiários, a barba, o medo do que se espera de um menino, o trabalho
remunerado ou a falta dele e a falta de figuras masculinas de referência, apareceram como
dificuldades para lidar com o corpo em transformação.
Além destas dificuldades, lidam com um virulento discurso de desqualificação, que setores
importantes da sociedade brasileira veiculam sobre a população alvo das medidas de combate à
pobreza. Frequentemente são considerados sujeitos que deslizam entre a esperteza refinada, a
ingenuidade tola ou, a deliberada manobra para viver sem trabalhar. Tais atributos são sempre
colocados em contraposição aos sujeitos que “efetivamente trabalham” e que não dependem do
Estado para viver.
O tema do constrangimento não é novo entre os beneficiários do Programa, perpassa as
mães o os/as alunos/as, mas tem aparecido de forma mais recorrente. É importante salientar que na
segunda metade de 2016 o Programa foi posto sob suspeita e milhões de famílias foram chamadas
ao recadastramento, o que deu lastro a discursos de ódio.
“É chato quando algum professor chama a atenção porque faltei e vai dizendo, tua mãe
vai perder o Bolsa Família (...) sei lá, não é legal, eu não queria precisar desse dinheiro”... “Lá na
vila (referindo-se à escola de Ensino Fundamental em que estudava), todo mundo recebia (o
benefício) mas aqui, só alguns, aí é chato esse troço, não precisava chamar a atenção.” (Aluno
beneficiário, 16 anos, entrevistado na escola). Fica claro o constrangimento na nova escola, com
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colegas cujas condições sociais e financeiras são diferentes e a relação com os/as professores/as é
mais distante.
Além da escola outros espaços e grupos são citados como geradores de constrangimentos.
A vergonha de ser beneficiário aparece nitidamente no trabalho, nos grupos de novos amigos e
afetos. (Aluno beneficiário, 17 anos, entrevistado na escola) – “Lá no trabalho o pessoal, meus
colegas e supervisores, não sabem que eu recebo Bolsa Família.” – Por quê? – “Não sei, nunca
quis contar, lá todo mundo tem uma condição melhor que a minha, não sei o que iam pensar de
mim.” - Tu sentes vergonha de receber o Bolsa Família? – “Um pouco, preferia não precisar, não
gosto que as pessoas saibam.” – Quem são as pessoas que tu não gostas que saibam? – “O pessoal
do meu trabalho, algumas pessoas da escola, as meninas...” Por que estas pessoas? – “Sei lá,
podem achar que sou preguiçoso... as pessoas não gostam de pobre, eu já moro na vila, isso eu não
posso esconder...” - E como tu fazes para que não saibam que tu recebes o Bolsa Família? – “Eu
não minto, mas escondo, não digo.”
A virilidade frequentemente aparece associada ao consumo, “Ser homem é ser
responsável, se sustentar, sustentar a família, ajudar em casa, se virar”, (Aluno beneficiário - 16
anos, entrevistado na escola). Ser responsável e ter independência financeira foi apontado por todos
entrevistados como a principal característica masculina. O que faz com que nos perguntemos: Como
se constroem meninos/homens em meio à extrema pobreza se, em nossa sociedade, um dos
atributos de masculinidade é um padrão mínimo de consumo? Como a vergonha e o
constrangimento influenciam nesta construção? Percebemos duas estratégias construídas, pelos
meninos para minimizar o constrangimento, ocultar ser beneficiário e colocar-se como coadjuvante
em relação ao benefício - “As mulheres cuidam mais do dinheiro (referindo-se ao benefício)...
compram coisas... comida e material escolar pros filhos... são elas que recebem o dinheiro, e
gastam mais, sabe? Canetinhas coloridas, coisas pros cabelos, essas coisas de mulher” – E tem
coisas de homem e de mulher? -Claro, homem não usa essas coisas. – O que homens usam? –
“Uma camiseta e moletom já tá bom, sem frescura.” (Aluno Beneficiário - 16 anos, entrevistado na
escola).
Para finalizar trazemos uma cena e recorte de uma entrevista com um aluno beneficiário de
17 anos, negro, alto, morador de uma das vilas mais pobre de Porto Alegre, com aparência de
adulto. Não se identificou como menino porque se definiu como “grande demais” e ainda não é um
homem adulto porque não tem emprego. Transcrevemos parte da entrevista e preservamos a fala do
jovem, sem fazer correções ou adequações formais. Tu já sofreste algum tipo de preconceito? “Já
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foi de todo tipo... dizem, tipo, tu é um marmanjo, vai trabalhar... tem gente lá na vila que zoa...
vizinhos... até o pastor da igreja...” E como tu te sentes? Eu tô tentando emprego, mas só consigo
bico... é que eu sou muito grande, então o pessoal pensa que eu sou mais velho. Eles não achavam
errado quando eu era pequeno. ” Como era quando tu eras pequeno? “Sei lá, tipo, ninguém manda
minha mãe ou minha irmã trabalhar, quando eu era pequeno, ninguém me chamava de
vagabundo... agora se eu não tenho trabalho, eu nem fico em casa, venho pro centro, pra não ficar
ouvindo que eu sou preguiçoso”. [...] Quem precisa mais do Bolsa Família, os homens ou as
mulheres? “As mulheres, elas precisam mais, têm os filhos pra criar”. E os homens, não tem que
criar os filhos? Respondeu com um meio sorriso e uma negativa de cabeça. Por que tu respondes
que não? “Já viu homem criando filho, eles fazem filho e vão embora.” [...] Tu gostaria de vê-lo?
“Não. Antes eu queria... queria que me ensinasse a fazer coisas de guri, mas agora não quero
mais”. Coisas de guri? Que tipo de coisas? “Sei lá... fazer a barba, falar com as gurias, essas
coisas que não dá pra falar com a mãe.”
Fazer-se homem ou mulher requer uma série de rituais, adaptações, ensaios, cortes,
superações, abandonos, medos e coragens. Parece-nos que a maquinaria do Programa Bolsa Família
também produz masculinidades. Seguimos tentando entender como estes meninos se fazem homens
inseridos numa política que se legitima mais, quando voltada para crianças e mulheres, enquanto
que, dos adolescentes homens – pobres - espera-se que encontrem formas de subsistência e não
retornem, quando adultos, como beneficiários.
Referências:
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http://documents.worldbank.org/curated/pt/188701468322757498/pdf/PUB85070SPANIS1o0A199
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THE CONSTRUCTION OF MASCULINITIES IN A FEMININE TERRITORY: SOME
OBSERVATIONS ABAUT THE BOLSA FAMÍLIA PROGRAM
Astract: This article discusses part of the research of a mastership research that studies the
formation of the masculinities among young men (16 and 17 years old) that have been benefited by
the Bolsa Família Program since their childhood. Following the inspiration of the gender studies
and the post-structuralist studies, it problematizes the subject's place that the State Politics offers to
them, as well as the enuntiations that this Politics creates about what is expected from women and
men. It considers, besides this, the possible effects that the discourse about the responsability of
women/mothers, in counterpoint with the invisibility of the men, may have on the masculinities of
these young men.
Keywords: Gender. Masculinities. Bolsa Família Program. State Politics. Standart.