construção simbolica imaginári da mulher

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    A CONSTRUO IMAGINRIA E SIMBLICA DA MULHER

    MODERNA

    Apresentada a mulher da nova poca, uma mulher socivel, educada, culta

    e consumidora, vejamos como esses aspectos determinavam a representao da

    mulher moderna, configurada de formas variadas nas pginas das revistas, de

    modo a evidenciar por meio da linguagem grfica e plstica as nuances da

    identidade feminina. De modo similar complexidade que observamos noprocesso de construo da modernidade brasileira, a noo de mulher moderna

    pode ser compreendida como sendo provedora no de uma identidade absoluta e

    simplificada, mas, de uma identidade feminina multifacetada e complexa.Menos

    por possuir quantitativamente vrias nuances, e mais por abrigar contrastes e

    paradoxos.

    Antes de passarmos propriamente a algumas dessas nuances, cabe

    explicitar as limitaes e os significados de tal noo, que muito serviu paraidentificar particularmente as mulheres de alguns grupos sociais, aqueles

    pertencentes s classes abastadas. Com significaes especficas, a noo serviu

    como princpio de identificao, ou seja, como distino das mulheres

    modernas das outras mulheres brasileiras. Portanto, nesse contexto, o termo no

    distinguia, apenas o sexo feminino, mas, sobretudo, um estrato social. Contudo,

    veremos que em representaes visuais do feminino, a mesma noo no se

    restringia ao seleto grupo, mesmo ao representar este, no se restringia ao sentido

    que lhe era majoritariamente conferido. O que afirmamos que ao ganhar formas

    grficas ou plsticas, a noo de mulher moderna une no papel um pouco da

    realidade experimentada e um pouco das expectativas imaginadas, sendo assim, as

    aspiraes tomam tambm formas visveis. No discurso visual, portanto, essa

    noo envolve o gnero feminino no se limitando determinada classe social.

    Notaremos, por exemplo, que em algumas charges a noo de mulher moderna

    quando conjugada questo da emancipao, no se dirige a um estrato social,

    mas totalidade das mulheres.

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    2.1

    As identidades da mulher moderna

    O termo mulher moderna era uma denominao corrente nas dcadas de

    1920 e 1930, mas, a noo de mulher moderna recorre a dcadas anteriores a

    esse perodo.Consta, por exemplo, no romance Diva, uma Eva moderna criada

    por Jos de Alencar, como tambm na crnica Modern girls (1911), de Joo do

    Rio. Porm, defendemos a idia de que o termo ganhou corpus na segunda e

    terceira dcadas do sculo XX, devido a um conjunto de aspectos. Alguns deles,

    abordados no primeiro captulo, envolveram o universo feminino, de tal modo que

    justificavam a sensao de existir de fato a mulher moderna brasileira. Ainda, a

    partir de um atencioso exame s revistasPara Todos, Eu sei tudo, O CruzeiroeA

    Ma,vemosque ao lado de mulher moderna eram usados outros termos: nova

    mulher e Eva moderna - eram os mais recorrentes. Assim como o primeiro,

    eles designavam o conjunto de certas caractersticas da aparncia e do esprito da

    mulher, ou seja, neles estavam compreendidos certos aspectos estticos,

    psicolgicos e morais referentes ao feminino. Apesar de serem usados como se

    sinnimos fossem, esses termos no so verdadeiramente equivalentes, mas,

    deixaremos em reserva suas peculiaridades, para nos dirigir ao que tinham em

    comum. Todos expressavam no um conceito preciso e fechado, mas uma noo

    aberta sobre novos padres e novos valores sociais imputados s mulheres, em

    especial, s mulheres de sociedade. Assim sendo, eles designavam a identidade

    social da chamada mulher moderna, a princpio traduzindo-se como uma

    identidade vip, com a qual se apresentava uma seleta parte do universo feminino

    brasileiro. As mudanas no comportamento e na integrao social da mulher noincio do sculo XX, surgidas em meio ao regime republicano, ordem capitalista

    e industrial, geraram o que chamamos de novas possibilidades de experimentao

    e novas expectativas de emancipao, limitadas, no entanto, pela peculiaridade

    dos impactos que as estruturas poltica e econmica tiveram sobre os distintos

    espaos de experincias das mulheres em cada extrato social. Os novos espaos de

    experincias e os novos horizontes de expectativas37 eram formados a partir de

    37Estamos usando as categorias histricas da experincia e da expectativa, a partir do que defineKosseleck como espao de experincias e horizonte de expectativas.KOSELLECK, Reinhart.

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    valores vistos como no-civilizados e de valores civilizados, modernos.Era em

    meio a eles que a identidade moderna da elite brasileira era moldada, identidade

    esta que era parte do esforo de esculpir um retrato do Brasil condizente com o

    imaginrio civilizado38.

    Algumas das mudanas, por conseguinte, tenderam a ser naturalizadas no

    imaginrio social sobre a mulher. Ainda que o imaginrio resida no mbito da

    abstrao, ele s se faz visvel pela permanente interlocuo com o real e com o

    racional, pois tambm opera com o simblico39. Podendo ser charge, ilustrao,

    fotografia ou pintura, a imagem sempre nos mostra o concreto/visvel (criao de

    um conjunto de elementos grficos ou plsticos, dentro ou fora de certas

    convenes, realizados atravs de alguma tcnica e tecnologia), e nos oferece a

    possibilidade de perceber significaes implcitas - o invisvel. A observao e

    anlise apurada do concreto/visvel, para compreend-lo e revelar o invisvel, nos

    levam a apreciar algumas das nuances da identidade socialmente e

    imaginariamente construda da mulher moderna.

    No caso brasileiro, as caractersticas que identificavam uma mulher como

    moderna eram valores apropriados por uma elite econmica.Esta elite tinha seus

    maiores representantes nas capitais, como Rio de Janeiro e So Paulo, que apesar

    do desejo inflamado pelo progresso e por usufruir os benefcios da modernidade,

    promovia mais continuidades do que rupturas com o passado. Poderamos at

    pensar que o tema da identidade feminina moderna inadequado neste contexto,

    pela falta de condio para mudanas de grande impacto. Porm, como j

    destacamos, ocorreram mudanas referentes ao universo feminino, cuja

    incipincia foi determinada tanto pelos entraves da cultura patriarcal quanto pela

    histrica excluso social, que marginalizou negros e demais membros das

    camadas populares de uma digna e respeitvel participao e representao scio-cultural. A ateno a essas mudanas inevitvel, quando percebemos que elas

    so o cenrio, seno o tema principal em vrias das imagens analisadas nessa

    parte com o objetivo de perceber como o conjunto de caractersticas da aparncia

    Espacio de Experiencia Y Horizonte de Expectatia dos categorias histricas. In: FuturoPasado: para una semntica de los tiempos histricos. Buenos Aires: Ediciones Paidos, 1979.38ORTIZ, Renato.A moderna tradio brasileira. So Paulo: Ed. Brasiliense, 1988.39O sentido de simblico est sendo empregado a partir das idias de Castoriadis, para o qual osimbolismo constitudo pela sociedade est dentro de uma liberdade parcial, segundo Castoriadis

    ele se crava no natural e se crava no histrico, no que j existia, participa ento do racional. VerA

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    e do esprito da mulher, que serviam para definir a noo de mulher moderna,

    era configurado nessas imagens. A princpio, definimos trs grandes nuances: a

    efmera, a aparente e a imaginada, como trs grandes categorias da identidade

    feminina, que traadas nas ilustraes e charges, reveladas nas imagens

    fotogrficas, ajudam o nosso entendimento sobre o projeto que unia a

    representao do gnero feminino e a construo da identidade da mulher

    moderna. A partir da identificao dos desdobramentos dessas nuances no plano

    ilustrado das revistas e no plano da dinmica scio-cultural da poca, esta parte do

    estudo tem por objetivo final o de levar compreenso de como a linguagens

    grfica e fotogrfica modernas se articulavam com o imaginrio social sobre o

    gnero feminino, evidenciando, ao mesmo tempo, caractersticas da poca que se

    fazia nova.

    2.1.1

    Identidade efmera

    Os lbios confirmavam o chamado brejeirodos olhos e pareciam esboar um beijo ouum assobio, mas uma espiral de fumaa,elevando-se para o lado, dizia que fumava.

    Carolina Nabuco,A Sucessora

    O cigarro

    Um dos hbitos que se configurou numa caracterstica da mulher

    atualizada com o que a vida moderna lhe oferecia de novo, e que, principalmente,

    se constitui com uma atitude nova, no incio do sculo XX, foi o de fumar. O que

    era um ato amoral no passado parece ter se tornado um ato socialmente permitido,

    ainda que se constitusse mais como ato ocasional e privado. Mais uma vez, cabe

    lembrar que esse e outros hbitos novos, muitos apropriados da Europa e dos

    Instituio Imaginria da Sociedade, Traduo de Guy Reynaud, 3 ed., Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1991,p.154.

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    Estados Unidos serviam de distino para as mulheres das elites brasileiras. Mas,

    os novos hbitos, tambm eram em parte apropriados pelo estrato mediano, a

    baixa burguesia ou o que seria chamado de: classe mdia. Contudo, o hbito de

    fumar por si s no distinguia as senhoras de sociedade brasileiras, j que antes

    delas as mulheres das classes baixas, at mesmo as escravas j o faziam. Para as

    mulheres de sociedade, o ponto de distino estava nos valores modernos

    associados ao hbito, o que efetivamente lhes garantia diferenciao.

    No incio do sculo XX, a imagem da mulher era associada ao cigarro em

    ilustraes de embalagens ou propagandas de cigarros, nas quais o prazer e aseduo, que sugeriam o sexo feminino sobre o imaginrio masculino, eram

    associados ao prazer e seduo oferecidos pelo fumo, desfrutado pelo homem e

    no pela mulher. Afinal, o que estava sendo representado era o ato de fumar

    masculino. Porm, observamos, j a partir da dcada de 1900, que comearam a

    aparecer na mdia ilustrada, propagandas e ilustraes que, no entanto, afastavam-

    se das conhecidas associaes e significaes com o sexo masculino, para se

    configurarem sob os aspectos de sofisticao e de elegncia conjugados delicadeza atribuda propriamente ao sexo feminino. Em parte o design do

    Figura 24- desenho deJ. Carlos, ParaTodos..., 1920

    Figura 25 - desenhode Ivan,A Ma.

    Figura 26 capa da Revista ParaTodos..., desenho de J. Carlos.1929.P

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    produto cigarro contribua para tal configurao. Produto industrializado, o

    cigarro, de forma delgada e alongada, guardado em embalagens ilustradas e

    frgeis, se mostrava compatvel de associao s caractersticas estticas e

    espirituais da mulher, e s mudanas do seu cotidiano. Mas, o hbito de fumar

    tornou-se efetivamente constituinte da identidade da mulher moderna na medida

    em que o processo de urbanizao gerou condies de mudanas na organizao

    espacial e no lazer, criando-se e ampliando-se espaos para a mulher na vida

    pblica, e em que o mercado de trabalho, devido expanso e diversificao dos

    setores comercial e industrial, absorveu a fora de trabalho feminina. O produto

    cigarro, portanto, encontrava nas mulheres envolvidas em novas relaes de

    trabalho e de sociabilidade um novo pblico consumidor.

    Nas pginas da Para Todose dA Ma, encontramos algumas ilustraes

    que evidenciam o prazer feminino em fumar. Na figura26,uma graciosa jovem,

    desenhada por J. Carlos, de modo indireto nos remete a essa questo. Em traos

    grficos ondulantes, se configura a fluidez da forma da melindrosa, da paisagem e

    da fumaa que se mistura a esta, est representado nesta imagem, com plano de

    fundo escuro em contraste com reas de cores suaves, o carter efmero das

    existncias. Trata-se de uma capa da Para Todosde 1929, quando na sociedade

    brasileira o ato de fumar j deveria ser percebido e tomado como sinal de

    sofisticao, ede elegnciada mulher. Essa idia de associar a mulhersofisticada

    e eleganteao cigarro era no s reforada pelas imagens divulgadas nas revistas.

    Tambm estava presente em romances. Por exemplo, em A Sucessora,

    personagens femininas, senhoras de sociedade, fumam sem desprendimento.

    A mesma idia era interpretada com glamour pelas divas do cinema norte-

    americano da dcada de 1930. Mas, apesar da graciosidade, a jovem melindrosa

    de J. Carlos no expressa o tal desprendimento, que visvel, por exemplo, nafigura igualmente graciosa desenhada por Ivan (figura 25), ou ainda a confiana

    demonstrada pela outra melindrosa em luxuoso robe (figura 24) e pela figura

    feminina da propaganda dos cigarros York (figura 27). A melindrosa de olhar

    maroto parece encabulada com alguma coisa que o observador/leitor v.No caso,

    o cigarro que trs em uma das mos, parece ser a causa do embarao. No se

    esfora, no entanto, em escond-lo, talvez pelo inusitado flagrante. O porqu do

    embarao que nesta ilustrao, o ato socialmente permitido representado comouma travessura, uma transgresso. Afinal, o fumo era um prazer permitido s

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    mulheres adultas, preferencialmente, s senhoras, casadas, e no s mocinhas ou

    senhoritas, solteiras.

    No caso da propaganda dos cigarros York, um pouco anterior dcada de

    1920, podemos ainda identificar uma segunda associao: entre o cigarro e o

    poder econmico. Impressa em duas cores, esta propaganda apresenta uma figura

    feminina representante do universo feminino norte-americano, simbolicamente

    expressopelo emprego de duas cores: azul e vermelho, e pelas pequenas, mas,

    alusivas estrelas ao fundo do que seria parte de uma moblia. Esses elementos

    visuais da imagem nos remetem identidade visual dos Estados Unidos e

    conseqentemente trazem tona suas qualidades enquanto nao e enquanto

    pretendida potncia econmica, naquele momento. Essa construo pictrica

    possibilita, assim, operarmos imaginariamente ao mesmo tempo com significados

    referentes ao smbolo de reconhecimento e de coletividade (bandeira), fora

    produtiva (indstria do cigarro) e ao novo hbito da mulher (o fumo).

    Figura 27 propaganda de cigarrosYork, Revista Eu sei tudo, 1917.

    Figura 28- Nh Chica, pintura deAlmeida Jr.,1895. Pinacoteca de

    So Paulo.

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    De que modo, ento, a cena pintada por Almeida Jnior (figura 28), numa

    poca em que representaes de mulheres fumando eram raras, se relacionaria

    com estas outras imagens do incio do sculo XX ?

    Fora o fato de tambm trazer a imagem de uma mulher fumando, ela se

    destaca pelas diferenas em relao s demais. Nela, o visvel constitudo pela

    simplicidade material, pela no-elegncia, pela no-sofisticao, pois, se trata de

    uma sinh, da roa e no da cidade. Nessa imagem, o fumo, alm de no ser o

    tema ou motivo, representa significados diferentes. Ele participa do cenrio de

    integrao dessa personagem ao modo de vida agrrio, sobretudo, aos valores que

    o regiam, aparentes no ambiente rstico, nas roupas simples, no ato de fumar

    cachimbo e at na no-juventude da modelo. Esta imagem faz parte de um projeto

    que buscava um tipo de identidade nacional contrria buscada no perodo em

    que as demais foram produzidas, uma identidade genuinamente brasileira tendo

    por referncia a vida no campo, seu modo prprio de produo, suas personagens

    e seus hbitos. As outras fazem parte de um projeto regido pela vontade de

    modernizao, tendo por referncia a vida urbana e valores abstratos, como

    sofisticao e elegncia, cujos parmetros e modelos proviam de pases

    estrangeiros.

    Ao representar graficamente a mulher identificada por valores

    primordialmente abstratos, as quatro ilustraes, produzidas no incio do sculo

    XX, apresentam corpos jovens e esguios, traados de modo deliberado para

    produzirem efeitos, inclusive de erotismo, na delicadeza dos gestos envolvendo o

    ato de fumar. Os desenhos de Ivan e de J. Carlos constituem-se em solues

    grficas que sublinham o efmero na representao fluda dos corpos.

    O perfume

    Dentre todos os produtos de toalete, existe um que funcionou muito bem

    como elementosimblico do imaginrio moderno, o perfume. O fascnio por us-

    lo at mesmo como metfora para a modernidade, vem do seu carter efmero,

    passageiro, podendo ser agradavelmente ou prazerosamente transitrio. Ele, assimcomo o cigarro, serviu para representar o valor de elegnciae de bom gosto de

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    Figura 30- O Cruzeiro.

    uma mulher moderna, distinguindo-a das vulgares. O perfume elemento

    representativo da mulher moderna, porm de modo diferente que o cigarro.

    Enquanto este est relacionado a aspectos concretos e prticos (trabalho e

    atitudes) e a aspectos subjetivos (sofisticao e elegncia), o perfume est

    primordialmente ligado a aspectos subjetivos, dagraa, da belezae especialmente

    da ambigidade feminina. Por isso, as propagandas de perfume, em muitos dos

    casos, inserem o produto e a figura feminina numa atmosfera misteriosa, na qual

    mesmo a revelao vaga.

    Figura 29-O Cruzeiro.

    Figura 31 Para Todos...,1929.

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    Numa propaganda do perfume 1001(figura 29), a qual apresenta a imagem

    de uma mulher de cabelos curtos com vestido que deixa os seios mostra, a

    sofisticaoda mulher une-se a um apelo sensual, sedutor. Essa mulher sedutora

    segura a chave do seu segredo, guardado no frasco 1001. A chave do mesmo

    tamanho que ela, dando a possibilidade de pensarmos que todo o seu poder de

    seduo pode ser adquirido pelo simples fato de consumir o perfume 1001, que

    simboliza a chave do Paraso. como se Eva agora, uma mulher moderna, sem

    medo de ser sedutora retornasse ao Paraso. Mas esse paraso tambm no

    mais o mesmo.Nele permitido o deleite ou prazer carnal, no o den bblico,

    mas se aproxima do Jardim das delcias mundanas. Numa outra propaganda, da

    marca de perfumes Mimi (figura 30), que tinham insero tanto nas pginas da

    Para Todos, quanto nas de O Cruzeiro, existe a nfase em definir o pblico

    consumidor mulheres da elite. A imagem, em preto e branco, com um sutil

    tom de verde ao fundo e em detalhes da figura feminina, no entanto, retoma a

    esttica e o imaginrio romnticos. A mulher lembra uma personagem dos

    folhetins, a indumentria e a pose a inscrevem num clima romntico, o prprio

    nome do perfume j permite essa viso. A referncia ao meio agrrio se faz

    presente em outra propaganda da mesma perfumaria, em que um casal est vestido

    como aristocratas. Essas duas imagens nos levam a pensar que o pblico alvo do

    perfume Mimi, diferente, do perfume 1001, no eram as mulheres modernas

    burguesas, mas as senhoras representantes das oligarquias, dos valores

    apreciados por estes grupos sociais.Por isso, se configuram nas suas propagandas

    respectivamente o romantismo ingnuo e a austeridade, pois, elas se voltavam

    para uma elite que representava, primordialmente, o campo e no a cidade. O

    aspecto do romantismo como modelo esttico e de vida relevante para a anlise

    das imagens do gnero feminino.Como Cristina Costa (2002) defende, o modeloromntico foi adotado no s por artistas, inclusive os modernistas, mas pela

    prpria cultura brasileira, caracterizando-a de certa maneira. Parece ter sido

    estimulado pela vida domstica da colnia: cheia de misticismos e saudades, de

    ausncias e esperas (Cristina Costa, 2002, p.146). A associao entre o

    romantismo, enquanto ideologia e tica, e o consumismo moderno a tese

    defendida por Colin Campbell emA tica Romntica e o Esprito do Consumismo

    Moderno(1989).Neste livro, Campbell defende que a cultura romntica teve umpapel fundamental no desenvolvimento do consumismo moderno, a partir da

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    revoluo do consumismo na Inglaterra entre os sculos XVIII e XIX. No

    queremos aqui aplicar semelhante tese ao caso brasileiro, mesmo porque no

    tivemos uma tica protestante ou puritana que em algum momento fosse

    hegemnica, mas, so claramente perceptveis traos do esprito e da esttica

    romntica em propagandas da poca estudada.

    Acerca da forma grfica dos textos dessas propagandas, na figura 29 as

    letras tm aspecto requintado.Algumas tomam formas inusitadas.O P que se

    assemelha ao puxador de uma porta.O S que se enlaa ao F e termina em seta

    que recai sobre o nmero do perfume, cujos numerais formam os dentes da grande

    chave que a mulher segura.Portanto, nesta propaganda as letras e nmeros no

    so informaes separadas da imagem, so tambm formas grficas auxiliares na

    construo da imagem. Na propaganda dos perfumes Mimi, as letras no so

    decorativas.Todas em caixa baixa (minsculas), se destacam da figura central. A

    ausncia de rebuscamentos e de capitulares, que vemos nesta propaganda, eram j

    caractersticas de tipografias modernas. As propagandas Mimi so interessantes

    exemplos de contrastes, no que se refere convivncia entre novas e antigas

    formas. At mesmo onde figura o casal que traz a aparncia do sculo XIX, figura

    31, o presente do incio do sculo XX toma visibilidade de modo discreto, mas

    relevante, no selo que a marca visual da indstria, no canto superior esquerdo.

    Esses contrastes vm a corroborar mais uma vez para a noo de que, a

    modernidade brasileira desse perodo foi todo o tempo a convivncia harmnica

    ou desarmnica entre antigas e novas formas.

    O perfume F era outro anunciante que freqentemente estampava as

    pginas dePara Todos. A mulher que figurava nas suas propagandas representava

    claramente a mulher das classes abastadas, por excelncia a mulher moderna.

    Aquela, que mais amplamente podia usufruir novidades tcnicas e tecnolgicasque constituam a modernidade, saa para passear em seu carro luxuoso (figura 32),

    percorrendo por um cenrio tal qual uma rua de Paris ou de Nova York, ou

    mesmo do Rio cosmopolita, fazendo-se parecer com essas outras cidades. O

    design do frasco do perfume, com forma no estilo Art Dec, ressalta a esttica de

    origem francesa.

    Mas, novamente o passado est sublimado no gesto da senhora elegantee

    moderna em no buscar o produto, mas, receb-lo fora da loja. Apesar daestrutura e dos novos personagens envolvidos no ato da compra, sua posio de

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    Figura 32 Para Todos..., 1927.Figura 33 Para Todos..., 1927.

    consumidora passiva tem os resqucios do antigo hbito de no freqentar lojas ou

    de esperar que o seu acompanhante ou escravo levasse os produtos at a sua

    carruagem, onde os via e se decidia por comprar. Por outro lado, o nome do

    perfume retoma a questo da mentalidade romntica, que neste caso no est

    vinculada ao fervor religioso, mas envolvida pelo consumismo. Aqui, a f, que

    base do fervor religioso, no se d no mbito do simblico tradicional catlico,

    mas de um simblico que regido por uma subjetividade orientada por aes que

    buscam a satisfao e o fetichismo do ego. Complementando a mensagem est a

    frase: Uma senhora inteligente no segue viagem sem levar um frasco do novo

    perfume F.Nessa frase est presente uma estratgia publicitria bastante

    usada hoje na mdia, a juno da elegncia ou do bom gosto intelignciafeminina. A mulher moderna no era apenas sofisticada, elegante, graciosa, era

    tambm inteligente.No se trata de intelectualismo, mas da inteligncia usada

    para o consumo. Em especial, trs seguintes propagandas do perfumeFnos do

    valiosos exemplos de como eram graficamente articulados o desejo, o sonho, o

    devaneio e o extico.

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    A primeira delas (figura 33)traz uma mulher vestida com uma indumentria

    sofisticada, cujo design trazia influncias orientais e dos bals russos. Ela se

    encontra em meio a bananeiras, num ambiente extico que era propriamente

    familiar. O costume de tornar o familiar em extico remonta o sculo XIX,

    quando se vendiam comosouveniersfotografias dos vrios tipos de negros e de

    negras, assim como de vendedores ambulantes. No sculo XX, as favelas so o

    novo extico ou pitoresco, uma singular estratgia de significado deslocado.

    Transformar o prximo em distante era uma questo de preservar um status, e o

    que estava em jogo, eram os ttulos de civilizado e de moderno. Podemos perceber

    mais uma vez o uso do artifcio grfico do crculo ou bolha que aqui envolve a

    figura feminina neste cenrio tropical. Numa segunda propaganda (figura 34), a

    figura feminina encontra-se quase que num xtase ao contemplar o cu estrelado.

    O texto que acompanha a bela imagem apresenta um dilogo entre ela e um

    interlocutor invisvel:

    Flor da Noite, formosa e bella,Qual a tua mais fausta estrella. Que desejais, que o cu vos d?

    Ela lhe responde:

    A divina ambrosia do perfume F.

    A terceira, figura35, a imagem de uma mulher, sentada de lado em um

    sof, que parece estar posando para um fotgrafo ou para um pintor e se mostra

    muito sensual,mesmo para os padres mais flexveis da poca. O corpo feminino

    foi graficamente construdo por tores de modo a ter como pontos de atrao as

    costas e uma das pernas, o olhar foi concebido para ser ao mesmo tempoconvidativo e blas. A frase na borda inferior da imagem: Um perfume para

    horas pensativas, no nos confirma e nem descarta a situao imaginada.

    Novamente, a ao do pensar no est aqui relacionada ao intelecto feminino, mas

    ao devaneio, que se nutre do imaginrio. Nessas trs ltimas propagandas, o

    produto perfume, envolvido em tal mstica ou mesmo mgica, seja extica ou no,

    se confunde com a prpria mstica que envolvia o imaginrio sobre a mulher.

    Especialmente com o que era percebido como a nova mulher, um ser

    profundamente misterioso e imbudo de desejos. Mesmo que a vida prtica, por

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    ser regida por valores influenciados, mais pela base moral patriarcal do que pela

    tica catlica, no lhe permitisse que seus desejos fossem satisfeitos, estes eram

    indiretamente representados atravs da linguagem publicitria, o que tambm

    ocorre de forma prxima no mbito cmico-crtico nas charges da mesma poca.

    A partir dessas imagens, tiramos uma primeira concluso de que existia o

    uso de duas estratgias bsicas na linguagem dessas propagandas. Ainda que o

    perfume seja o odor ou aroma artificial da mulher, tanto existia a estratgia de

    naturaliz-lo ao corpo feminino, quanto a de transform-lo em algo transcendente.

    Mesmo que sua natureza seja efmera, passageira, e esse fato est implcito no

    fragmento para horas pensativas assim como nas imagens que conotam

    instantes. Ele capaz de conceder algo alm da experincia prtica: a ambrosia",

    isto , o manjar dos deuses, embriagando os sentidos da mulher e dos que

    estiverem a sua volta com um lquido que exala o efmero, que , contudo, sentido

    e desejado como duradouro.

    Everardo Rocha (2001) conclui, a partir de propagandas (da dcada de

    1980) voltadas para o pblico feminino, que o discurso publicitrio constri umaidentidade e um corpo feminino fragmentados. Conforme as necessidades do

    Figura 34 Para Todos...., 1929. Figura 35 Para Todos...,1927.

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    produto, cria-se um corpo silencioso, pois, o produto fala pela mulher, a

    individualidade feminina nas propagandas , portanto, formada pela representao

    do corpo e de valores espirituais. A partir dos exemplos analisados, notamos que

    tais circunstncias j existiam, porm, davam-se de modo pouco diferente. A

    maneira pela qual o produto fala pela mulher indireta, e, outras vezes, como na

    propaganda do perfume F(figura 34), dado voz mulher, que fala que deseja o

    perfume. Ainda, era recorrente o uso de dilogos, representavam-se casais, por

    exemplo, que conversando sobre algo do cotidiano propagandiavam determinado

    produto. O fato que as propagandas mostradas aqui, tambm evidenciam a

    valncia do discurso visual.A informao textual aparece em poucas linhas, ora

    tendendo para a objetividade, ora para a subjetividade. Essas propagandas,

    portanto, apontam para uma nfase cada vez maior na seduo pelo discurso

    visual.

    Como segunda concluso percebemos que nestas imagens o carter

    efmero do perfume funcionava como estimulador dos valores espirituais mais

    mundanos, dando vazo aos ideais romnticos, como o direito solido, ao

    devaneio ou espontaneidade. Operam, portanto, como na definio de Campbell,

    na estimulao dos desejos emulativos e luxos que constituem o meio para o

    prazer, no caso brasileiro, tolhido no por uma tica puritana, mas catlica e,

    principalmente, pela famlia patriarcal.

    Em suma, a dimenso efmera da identidade feminina congrega artifcios

    extracorpreos, que culturalmente passaram a construir a imagem modernizada da

    mulher. O cigarro e o perfume so pequenos elementos desse projeto

    desorganizado, orgnico e voluntarioso chamado mulher moderna, mas so

    partes importantes, pois, evidenciam e valorizam tanto a sua artificialidade quanto

    a sua subjetividade.

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    2.1.2

    Identidade aparente

    Por tudo que j foi exposto, principalmente no primeiro captulo,

    verdadeira a premissa de que a identidade da mulher de sociedade no incio do

    sculo XX tambm se construa junto a espaos de circulao (de visibilidade),

    espaos que no mais se resumiam s igrejas ou s casas de outras famlias do

    mesmo estrato social, onde se faziam as visitas que eram uma parte das

    obrigaes sociais daquela mulher. Tornava-se cada vez mais freqente a

    presena feminina s reunies festivas no relacionadas ao ambiente familiar ou

    igreja. Ela estava nos espaos filantrpicos, nos espaos de lazer e at nos de

    discusses intelectuais. Enfim, a mulher participava mais ativamente na vida

    pblica, socialmente, culturalmente e, em menor grau, politicamente. Esses

    lugares concretos manifestam um certo afastamento do lugar social tradicional

    destinado s mulheres em geral: o lar. Esse lugar social construdo pelas relaes

    e valores culturais, no perodo estudado, inclusive nos posteriores a ele, se

    configurou no lugar juridicamente institucionalizado como espao prprio de

    atuao da mulher brasileira, numa estratgia de manuteno e reforo ordem

    patriarcal e aos valores referentes a esta. Porm, a ligeira flexibilizao da

    estrutura de base patriarcal, agora regida pelos interesses capitalistas, possibilitou

    que as experincias vividas tanto pelas mulheres da sociedade quanto pelas

    demais ultrapassasse os limites do lugar social que lhe era conferido. No caso das

    mulheres das elites, comparecer a eventos como corridas de cavalos, chs

    beneficentes, bailes fantasia j eram experincias que se configuravam em meios

    de usufruir liberdade. A participao ativa na organizao dos eventosbeneficentes ou na administrao de instituies filantrpicas lhes daria a

    sensao de autonomia e de liderana, pois, lhes punham provisoriamente fora do

    domnio de maridos ou pais e das obrigaes para com o lar.

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    Um exemplo da exposio da nova dinmica feminina na esfera pblica

    a revistaPara Todos, que nos oferece um breve histrico iconogrfico da apariopblica feminina. Os instantneos de 1918 (dezembro) e 1919 mostravam a

    novidade da presena das mulheres na rua, eram flagrantes. Em revistas do

    mesmo gnero de meados da dcada de 1900, anteriores Para Todos, j se

    encontram fotos dos passeios femininos pelas ruas e de reunies culturais ou

    comemorativas onde se percebe a presena feminina. Em 1919 e durante a dcada

    de 1920, os instantneos de Para Todos parecem se ocupar de evidenciar a

    rotina das mulheres nas ruas.Da a profuso de instantneos das idas e vindasda missa, dos passeios pela orla, e em outros espaos, como nas reunies

    beneficentes ou nos bailes fantasia. No final da dcada de 1920, as imagens das

    idas e voltas das missas compartilham da mesma ateno que as imagens de banho

    de sol nas praias - eram evidncias de corpos e almas refrescadas. Esses

    espaos eram meios no s de apario pblica ou de exposio dos corpos, antes

    muito restrita, mas tambm eram momentos em que compartilhavam de

    interesses, gostos e, porque no, expectativas comuns.

    Figura 36 Para Todos..., 1929. Figura 37 Para Todos...,1927.

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    Halbwachs (1990) chamou de comunidades afetivas aos grupos que

    conservam memrias em comum, neles existem noes comuns compartilhadas.

    A preocupao de Halbwachs era de estudar o processo de construo da memria

    coletiva, considerando os espaos de reunio, sem desconsiderar outros tipos de

    espaos, como por exemplo, o espao pictrico de uma pintura. Neste estudo

    consideramos as revistas como espaos de divulgao e de construo de

    identidades e de memrias. A imagem fotogrfica de uma festa de aniversrio

    (figura 37),por exemplo, lana a possibilidade de conservao de memrias

    compartilhadas num pequeno mbito, que pela revista, so divulgadas num mbito

    maior. Imaginamos que o grupo de adolescentes compartilhava de noes comuns

    sua poca, ao seu grupo social e sua feminilidade ainda em formao. Essa

    imagem se junta ao grupo das imagens de menor recorrncia, pois a adolescncia

    era muito pouco representada nas revistas.A divulgao de imagens fotogrficas

    de crianas pequenas era mais comum.

    As imagens fotogrficas de acontecimentos tambm acabavam por ser

    ilustraes das pginas das revistas, mas sua funo mais imediata era a de

    comunicar um aniversrio, um casamento, ou outro tipo de evento.A partir disso,

    estas imagens exerciam a funo simblica de conferir a grupos de conhecidos,

    comunidades afetivas bastante limitadas e, por vezes, desconhecidas de grande

    parte do pblico leitor da revista, uma identidade pblica que os particularizava,

    como jovens ou crianas da elite carioca, e ao mesmo tempo os inseria numa

    coletividade mais abrangente:elite brasileira.

    Sobre a figura 37 interessante ainda perceber que a estrutura que constri

    o fundo e delimita esta imagem pode ser compreendida no apenas como um

    modo moderno de formatar fotografias em revistas, com molduras recortadas. A

    forma recortada da imagem acompanha o fundo da fotografia, no qual figura umaestrutura esquemtica anloga s modernas construes das coberturas e

    instalaes de ferro e vidro.Ela moldura o nicho onde se encontra uma pequena

    escultura. Essa estrutura (simtrica, geomtrica e rgida) no deixa de contrastar

    com um dos principais valores simblicos conferidos ao sexo feminino: a

    fragilidade. Nessa imagem fotogrfica, a combinao entre rigidez e fragilidade

    nos oferece a possibilidade de interpretar a sua finalidade, o que efetivamente a

    imagem foi produzida para ser a exposio de uma imagem moderna de jovensrepresentantes da elite brasileira; como tambm a de lhe dar outra interpretao

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    que nada tem a ver com sua finalidade - mesmo havendo desejo e movimentao

    (ainda que mais por parte das mulheres) para que o lugar social da mulher,

    principalmente a da elite, fosse emancipado, a estrutura rgida e segmentada da

    sociedade seria sempre o limite ltimo para suas aspiraes de emancipao.Por

    isso, a forma mais apaziguada de conquist-la estava no nvel da aparncia,

    buscando algumas das caractersticas eleitas para manifestar o moderno: agraa,

    a elegncia, a beleza e a juventude, cujos padres eram aprendidos desde a

    adolescncia.

    A aparncia era ento um dos princpios de identificao da mulher

    moderna ou da futura mulher moderna. A importncia conferida aparncia

    feminina, ilustrada na charge de Lup40 (figura 38), crucial para a noo de

    mulher moderna na concepo da elite, pois, era a forma mais imediata de

    tornar visvel a identidade moderna da mulher e do grupo social a qual pertencia.

    a superficialidade das relaes amorosas que indiretamente est sendo enfocada

    nesta charge, na qual a escolha que faz o homem por uma mulher associada

    escolha de livros pela capa, pelo aparente/visvel. A imagem aparente

    modernizada da mulher associada modernizao da cidade, que apreciamos na

    pequena propaganda da loja SCHAYE, na dcada de 1920 costumou ser divulgada

    em folhas duplas na Para Todos. A cidade de So Paulo, por exemplo,

    apresentada ao pblico leitor por beldades femininas, pela Praa da Repblica e

    pela fazenda de caf, do mesmo modo o Rio Grande do Sul tambm visto por

    suas beldades femininas e a Praa da Repblica (figura 39a e b). A partir dessas

    imagens pensamos na recorrncia da considerao de Luiz Edmundo em dizer que

    a reforma na cidade do Rio de Janeiro projetou-se para o resto do pas, e ainda

    nos remetemos ao sentido do termo capital irradiante usado por Nicolau

    Sevcenko. Mas, sobretudo, percebemos a representao do projeto demodernidade articulada visualmente pelo potencial simblico dessas imagens. O

    projeto grfico dessas pginas evidencia a estratgia associativa das aparncias

    femininas com as aparncias de cada cidade, enaltecendo tambm a origem da

    fora econmica e poltica (as fazendas de caf em So Paulo). Portanto, nesses

    ltimos casos, a imagem fotogrfica tem a funo de ilustrar beleza, graa,

    40Lup e K. listo eram pseudnimos do caricaturista Calixto Cordeiro.

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    Figura 38A Ma, 1922.

    elegncia e ordem, unindo dessa forma num mesmo projeto grfico mulheres

    modernas e cidades modernas.

    Figura 39 a Para Todos..., 1929.

    Figura 39 b Projeto grfico que une fotografia de mulheres simagens representativas do poder, da ordem e da riqueza da cidade deSo Paulo. Para Todos..., 1929.

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    2.1.3

    Identidade imaginada

    Nos dias de hoje,o trabalho visto como um meio de socializao e um

    caminho para a efetiva emancipao da mulher. Mas, nas pginas das revistas das

    dcadas de 1920 e 1930, o trabalho feminino tinha uma pequena

    representatividade. Desde o fim do sculo XIX, as mulheres das classes pobres e

    imigrantes integravam a fora de trabalho nas fbricas. Apesar disso, as imagens

    fotogrficas de mulheres operrias apareciam em raras vezes em comemoraes

    ou reivindicaes.As fotografias de mdicas e professoras, mesmo tendo maior

    recorrncia, tambm eram raras. As atrizes de companhias teatrais e as

    instrumentistas eram as profisses mais representativas do trabalho feminino nas

    pginas de revistas ilustradas. A revistaEu sei tudoera a que mais trazia artigos e

    imagens sobre trabalho feminino, principalmente por ocasio da Primeira Grande

    Guerra e do Ps-Primeira Guerra, mostrando, portanto, o trabalho e as questes

    relacionadas insero da mulher europia no mercado de trabalho. O principal

    determinante para a pouca representatividade do trabalho era que a expectativa de

    emancipao das mulheres, que se liga ao valor universal de liberdade, esbarrava

    na herana do passado colonial e da famlia patriarcal. Como tradicionalmente, o

    lugar da mulher continuava sendo o lar, os afazeres domsticos e a famlia

    estavam acima dos afazeres sociais e do trabalho fora do lar. Isso foi reforado

    pelo Cdigo Civil de 1916, que ainda serviu para reduzir a insero das mulheres

    nas fbricas41, e legalmente determinado pela necessria autorizao dos maridos

    s mulheres casadas que se dispunham a trabalhar fora. Enfim, perdurava a

    subordinao autoridade masculina. Em relao independncia financeira, as

    mulheres da elite estiveram mais subordinadas do que as dos setores populares,

    devido posio econmica que ocupavam. A mesma que lhes dava o privilgio

    de usufruir as novidades dos tempos modernos, que em contrapartida, eram

    economicamente tolhidas no espao de experincia das mulheres da camada social

    41

    HAHNER, June E. Emancipao do sexo feminino: a luta pelos direitos da mulher no Brasil.1850-1940.Traduo de Eliane Lisboa. Florianpolis: Ed. Mulheres, Santa Cruz do Sul:EDUNISC, 2003.

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    desfavorecia. Em suma, o trabalho ainda no era um elemento constituinte da

    identidade feminina, por no ser reconhecido como tal.

    Diferente do trabalho, o casamento at ento era a principal maneira da

    mulher brasileira fazer parte da sociedade. Era no s um rito de afirmao da

    ordem social, mas de emancipao. Porm, a possibilidade do divrcio, e das

    novas formas de socializao da mulher mexeram com o tradicional iderio sobre

    o casamento. Frente ao novo tempo, ele comeou a ser posto em dvida.Virou

    uma questo e mereceu representao tal qual, principalmente em charges. Nelas,

    ele era freqentemente negado justamente em prol do desejo de emancipao

    feminina. Na charge de J. Carlos (figura 40), a melindrosa encarna o papel dessa

    nova mulher que questiona a necessidade do casamento.

    Outra forma de representao da emancipao feminina, era a de enfatizar

    o seu carter imaginrio, como um desejo, ou seja, como uma expectativa. Desejo

    sempre tolhido pelos limites impostos pela realidade prtica, isso era dito nas

    entrelinhas ou de modo indireto nos curtos textos que acompanhavam e

    completavam os sentidos das charges. A charge Nem voando! de Lup (figura

    41), traz uma figura feminina em forma e postura sensuais, vestindo uma fantasia

    de borboleta, acompanhada por um admirador, ou, possvel, amante que lhe diz -

    tolice, filha; por mais que as mulheres tenham azas, estaro, sempre abaixo do

    homem!. Ironicamente, alm de estar portando asas, a mulher se encontra numa

    posio acima do homem. Sua indumentria sedutora e a posio de domnio

    contrastam com a calma e a altivez sugeridas pela figura masculina, que possui

    traos delicados, especialmente nas mos e nos ps. A mulher alada de Lup no

    representa a mulher moderna de sociedade, mas representa todas as mulheres ao

    se personificar como esprito livre, isto , como desejo de liberdade, como mulher

    simbolicamente emancipada.

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    Figura 40 Depois do Concerto:

    - No tua filha aquela moa?- Sim, effectivamente.

    - Ento toma cuidado. Ella est dizendo queprefere fuga a marcha nupcial.

    Charge de J. Carlos,Para Todos...1920.

    Assim como a divulgao de imagens da classe trabalhadora era rara,

    tambm o eram as imagens de negros. Algumas dcadas depois da abolio da

    escravatura, muito pouco havia mudado no espao de experincias das mulheres

    negras, porm, a viso sobre o aspecto humano havia mudado, mais uma vez porinfluncia do iderio estrangeiro, afinal, existia Josephine Baker. Abriam-se olhos

    e ouvidos para msicos negros brasileiros como Pixinguinha que integrava os

    Oito Batutas, reconhecidos pelo pblico nacional, principalmente depois de

    encantarem o estrangeiro. A partir desse novo olhar, o corpo da mulher negra

    passou a ser imaginado como sensual, se distanciando da idia que o tinha como

    portador e transmissor de doenas, difundida na poca da campanha higienista. As

    formas grficas representativas da mulher negra eram agora elegantes e alongadas

    (figura 42 a,b e c), no mais o tipo obeso de antes (figura 43a).A relao de servido,

    na realidade prtica no mudara tanto, mas pelo menos no universo das formas

    grficas, ela atingiu novos mbitos.

    No processo de criao das formas, o material e a finalidade influenciam

    em graus variados no resultado da forma. Uma ilustrao, como a figura 42c, em

    papel jornal, pode ganhar determinada forma para que dialogue melhor

    visualmente com o texto a que se refere. Essa figura tem algumas semelhanas

    grficas com a figura 42ae peculiaridades que a diferenciam da 42ae da 42b.Nela,

    Figura 41 Charge de Lup,A Ma.

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    a figura feminina no expressa elegncia , ao contrrio, pouco jeitosa. Isso

    porque se refere ao contexto de Assombrao, um conto sobre supersties que

    so relatadas em um terreiro, e diferente das duas outras, no representa a mulher

    negra moderna, mas uma mulher negra comum. A trao caricato desenvolvido

    de modo mais sinttico na figura 42b, que exclusivamente construda por linhas e

    configura-se em um corpo cujo desenho uma forma aberta que no tem volume,

    nem cor.

    A coluna de aconselhamentos fictcios: Consultrio de Mme. Benedicta

    (figura 43b),presente nas edies deA Ma, trazia uma figura feminina negra no

    papel de uma profissional liberal, que atendia s aflies e dvidas de casais

    brancos. Posteriormente essa coluna transformou-se em Consultrio dA Ma e

    a vinheta mudou substituindoMme. Benedictapela figura de uma jovem branca e

    nua. A relao de servido aludida pela forma comoMme. Benedictaassina suas

    receitas, em alguns momentos: sua creada. A personagem, neste inusitado

    cenrio, visivelmente uma forma grfica refinada do modelo obeso de antes.Ela

    se apropria do chamamento moderno das senhoras de sociedade: Mme

    (madame). Exibindo novas formas, desempenhando nova funo, apesar de que

    esta poderia ser vista como extenso das consultas espirituais das mes de santo,

    esta mulher negra ilustrada mantinha os laos com o passado por sua condio

    servil, mesmo chamando-se Mme.

    Figura 42a desenho de Gonzaga, Para Todos 192742b caricatura de Di Cavalcanti,Para Todos...1929; 42c desenho de Gonzaga, Para Todos..., 1928.

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    Figura 43b vinheta da coluna Consultorio de Mme.Benedicta, desenho de Ivan,AMa.

    As mulheres pblicas, como atrizes, cantoras e bailarinas, tinham com

    muita freqncia suas imagens veiculadas na mdia impressa, numa poca, em que

    no era to evasiva e os dolos no eram to efmeros quanto hoje. Apareciam

    tanto pela caricatura quanto pela imagem fotogrfica, na maioria das vezes,encarnando alguns de seus personagens. Assim Maria Olenewa aparece como

    Figura 43 a forma grfica que segue aspectos tradicionais derepresentao da mulher negra, desenho de Ivan,A Ma.

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    Salom na imagem fotogrfica e na caricatura (figura 44a e b). Na construo

    fotogrfica, vrios elementos entram como smbolos dessa personagem

    diabolicamente sedutora.Desde a mnima indumentria ao modelo representativo

    das danarinas rabes, passando pelo olhar fatal, pela falsa ona que simboliza

    uma feminilidade animal, pela intimidade da bailarina para com esta, e pelas mos

    que acariciam o fantasioso bicho como se fossem garras. Aspectos desse

    imaginrio tambm aparecem em sua caricatura, quando segura a cabea de um

    homem moderno. Na caricatura, Fritz parece ter escolhido dois pontos centrais

    do corpo do modelo real para lhes dar maior sobressalto.Um deles o rosto, que

    pelo trao grfico desenvolvido para causar o efeito engraado ou cmico -

    mantm o semblante atraente e, ao mesmo tempo, ameaador, semelhante ao que

    a bailarina mostra na imagem fotogrfica. A outra parte so as mos, que foram

    desenhadas com dedos longos e finas unhas- uma outra forma de mostr-las como

    se fossem garras. Na caricatura, a personagem, desenhada com corpo muito

    esguio, perde a volpia do modelo original, mas tem sua ferocidade representada

    unicamente pelo traado grfico do seu corpo.

    Figura 44a e 44b Retrato deMaria Olenewa, Para Todos...,1930. Ao lado direito,em caricatura de Fritz. Para Todos..., 1930.

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    Esse grupo de imagens possui em comum a construo visvel de uma

    identidade feminina imaginada.Em algumas delas, a construo se d a partir do

    mtodo de inverso, com a inverso no s dos sexos, mas, sobretudo, dos lugares

    sociais, que por sua vez so espaos nos quais as identidades so geradas e se

    manifestam. Nas duas ltimas imagens, a identidade feminina imaginada , no

    entanto, formada a partir do mtodo da associao pela semelhana das

    caractersticas espirituais (beleza, graa e elegncia) e subjetivas (feminilidade

    feroz). Como as identidades no so geradas apenas no mbito social, mas

    tambm na imaginao, as imagens grficas que partem da articulao entre os

    dois, articulam as significaes convencionais e os lugares concretos das

    experincias cotidianas das mulheres com as possibilidades de novas significaes

    e de novos lugares. Assim, essas imagens do forma emancipao feminina

    enfatizando seu carter ilusrio, imaginado, seja para lhe negar enquanto

    experincia concreta, seja para lhe dar possibilidade de existncia no plano

    concreto da representao visual, neste caso dando um outro lugar possvel

    identidade moderna da mulher.

    Destarte, a mltipla identidade da mulher moderna era construda nas

    trs revistas ilustradas, em especial naPara Todose nAMa, por formas e faces

    diversas, em nuances que articulavam o passado e o presente, o visvel

    experimentado e o invisvel imaginado, ou tendo projeo no futuro e o tornando

    presente ilustrado nas pginas destas revistas. Isso possvel, porque as

    imagens criadas tambm so, assim como a identidade moderna da mulher,

    significadas e organizadas por projetos, em um sentido amplo42.Alm da tcnica e

    do talento do profissional, as imagens se constroem a partir das interlocues

    entre a percepode gostos, hbitos e aparncia (aspectos visveis), impregnados

    de valores e significados (aspectos invisveis, mas passveis de seremcompreendidos), e a interpretao desses valores e significados, promovendo a

    recriao destes, seja na charge, na propaganda, na caricatura, na ilustrao, na

    fotografia.

    42Discutimos a questo da identidade, enquanto construo, ou seja, enquanto projeto, conceitoque tambm pautamos em uma das definies dadas por Gilberto Velho, que o determina como

    um meio de comunicao, pois expressa e articula interesses, objetivos, sentimentos e aspiraes.VerProjeto e Metamorfose: antropologia das sociedades complexas. 2 ed. Rio de Janeiro. JorgeZahar Ed., 1999.

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    2.2

    A mulher, a nova moda e a beleza moderna

    Retornemos, agora, questo da aparncia feminina. Entretanto, nesta

    parte ela ser apreciada a partir dos discursos escrito e visual, a partir da modae

    da beleza. As vozes sero masculinas e femininas, umas contrrias, e outras a

    favor da modernizao das formas. Mas, o objetivo principal que norteia esta

    parte do estudo perceber como na construo imaginria e simblica da mulher

    moderna eram articulados o naturale o artificial,o efmeroe o duradouro.

    A imagem da mulher vinha ganhando cada vez mais espao na mdia

    ilustrada, especialmente, nas revistas mundanas, mas, no eram apenas as

    imagens fotogrficas ou grficas estampadas nas pginas dessas revistas que

    indicavam a promoo da mulher vida pblica. Tambm o faziam, poemas,

    notas, entrevistas e artigos escritos por mulheres, embora ocupando espaos

    menores. Os assuntos que mais freqentemente eram confiados colaborao

    feminina eram a moda e a beleza. Falar sobre esses assuntos era um modo de

    reforar no apenas novos gostos, mas valores que cercavam a noo de mulher

    moderna.

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    2.2.1

    A moda

    A moda e outros artifcios so tentativas depermanente e sucessiva reforma danatureza

    Charles Baudelaire, O pintor da vida moderna

    A moda nos oferece mais um campo caracterizado pela natureza do

    efmero. Nele, o design das formas projetado para se moldar e, ao mesmotempo, modelar o corpo. Transformam-se e atualizam-se, assim, as aparncias,

    mesclando o presente, o futuro e o passado. Mas, na dcada de 1920, sob

    linguagens visuais modernas, eram inauguradas construes diferentes do

    passado.Construa-se o presente com vistas no futuro. Formas novas eram, ento,

    buscadas. O corpo feminino adaptava-se s formas ousadamente diferentes do

    passado, apesar de na dcada seguinte, voltar s formas mais conservadoras, mas,

    ainda assim bem diferentes das caractersticas do sculo XIX. A mulherexperimentava, a partir da nova moda, um corpo transformado, uma aparncia

    moderna. Os cronistas, como Joo do Rio, se interessaram pela modae por seu

    carter efmero, sobretudo por se interessarem em narrar o moderno e perceberem

    na moda um dos principais representantes da natureza efmera da vida urbana

    moderna.

    Entretanto, no confortvel considerarmos a modanas dcadas de 1920

    e 1930 como parte de um sistema scio-econmico plenamente consolidado, poishavia ainda muito a ser feito em termos de criao, organizao, logstica e

    investimento no setor industrial. Porm, neste perodo, j se desenvolvem, por

    exemplo: as indstrias de tecido, um dos setores no qual a mo de obra feminina

    foi bastante utilizada; a tmida publicao de sees de moda em jornais, como

    Folha da Noite(criada em 1921), de So Paulo, e revistas comoModa e Bordado

    da Revista Feminina;existiam ainda as modistas, mas estas e as pequenas lojas

    especializadas em peas de vesturio tinham agora a concorrncia de grandes lojas

    de departamentos, como a Mappin Stores. Porm, o mercado interno, ainda

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    bastante suprido por artigos importados (tecidos, roupas e sapatos), mesmo com a

    reduo das importaes por conseqncia da Primeira Guerra Mundial, e somado

    s poucas publicaes nacionais sobre moda no davam suporte para que fosse

    estabelecida uma discusso imparcial sobre a moda.

    Uma preocupao sempre constante das senhoras de sociedade, a moda

    era, no entanto, motivo de questionamentos e crticas, ainda que por meio de

    especulaes e associaes que tinham por fim, no desenvolver teorias ou

    suscitar estudos sobre a moda, mas focar questes outras tais como a poltica e a

    mulher da poca. Na divertida ilustrao da revista A Ma (figura 45), as roupas

    curtas favorecem a representao das maneiras ridculas de uma mulher mostrar

    em pblico as pernas. Mas, ainda existe um outro elemento, que abriga o

    imaginrio masculino - o fetichismo sobre esta parte do corpo feminino, que

    comeava, pela nova moda, a ser revelada.

    O comportamento da mulher foi uma das questes abordadas tendo a

    moda como pano de fundo. Por isso, no perodo das primeiras dcadas do sculo

    XX, a moda circulou com muita freqncia por um discurso marcadamente

    moralizante. Vale lembrar que a associao entre a moral e os cuidados com a

    Figura 45Modos de mostrar aspernas. Ilustraes emA Maa,

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    aparncia remontam ao passado colonial, no qual a Igreja Catlica condenava os

    excessos de vaidade. Nas dcadas de 1920 e 1930, continuavam a serem

    publicados textos em que os novos modelos da indumentria feminina eram

    sublinhados pela questo moral.Porm aproveitava-se para discorrer sobre casos

    verdicos que envolviam, por exemplo, o direito da mulher emmostrar as pernas,

    uma questo jurdica. A opinio feminina a respeito das mudanas nas formas de

    suas indumentrias, variava entre discursos mais conservadores e discursos que

    reivindicavam a liberdade de escolha das mulheres. Em suma, era tambm atravs

    da moda que a mulher reivindicava maior liberdade.Neste caso, uma ao mais

    silenciosamente verbal e provocativamente visual.

    A revista Para Todos, em edies do ano de 1930, dedicou algumas

    pginas discusso sobre os vestidos compridos. Na passagem dos anos 20 para

    os anos 30, o comprimento das saias e vestidos voltou a ser longo, e a diviso

    voltou cintura, uma resposta claramente conservadora s transformaes

    ocorridas na dcada anterior, que recebeu o ttulo de anos loucos. Algumas

    senhoras de sociedade, brasileiras ou estrangeiras, foram, ento, entrevistadas

    por Alba de Mello e teceram consideraes a respeito da nova mudana na moda

    feminina. O que destacamos de duas dessas entrevistas, uma com a senhora

    Mariano Procpio e outra com a ministra do Peru, a venezuelana Isabel de

    Maurtua, em misso diplomtica no Rio, a noo sobre a moda e a relao dessa

    com o novo tempo e a mulher, num discurso que perde o teor moralista e ganha

    justificativas prticas. A senhora Mariana Procpio expe uma viso

    significativamente construda pela leitura de revistas de moda estrangeiras, como

    a Femina, a Vogue e a Die Damen.Porm, sua definio sobre a moda tem

    paralelos com a noo contempornea de hoje, pois para ela a moda no era

    apenas uma construo gratuita sada de uma imaginao caprichosa doscostureiros (no usado o termo estilista), mas surge da observao das

    condies, dos anseios e das vivncias ambientes. Desfeita a silhueta em S,

    construda pelo uso do espartilho e das ancas que estruturavam as volumosas e

    compridas saias, tinha-se um corpo menos oprimido pelas roupas, transparncias,

    menos volume, meias finas, turbantes que tomaram lugar dos chapus presos em

    fitas, e pequenos e justos chapus que pediam cabelos com menos volume e

    preferencialmente de tamanhos curtos. Os cabelos bem curtos so um dos maisimportantes elementos da iconografia da nova forma feminina. Assim, como as

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    roupas curtas, os cabelos la garonne, bem curtos, marcaram a aparncia das

    mulheres modernas das dcadas de 1920 e 1930. Os cabelos curtos, no entanto,

    foram alvos de crticas, pelas quais eram vistos como uma deformao da

    feminilidade, pois, assemelhavam as mulheres aos homens. Mas, as primeiras

    (europias) a cortar os cabelos tinham a clara inteno de assumir um ato de

    autonomia, de expressar uma identidade que representava um novo tipo de

    mulher, a mulher que trabalhava fora, que tinha atitudes diferentes. Os cabelos

    curtos eram, pois, um elemento representativo do desejo de emancipao. Porm,

    eles caram no gosto comum e tornaram-se, assim como vrios outros, um

    modismo. Por outro lado, parte do sentido original no foi perdido.O cabelo curto

    aparece com parte de sua carga simblica na fala das duas mulheres entrevistadas

    por Alba de Mello, que se referem a ele como uma moda que estava de acordo

    com o novo cotidiano das mulheres, marcado pela necessria praticidade, fosse

    para poupar tempo s que trabalhavam, fosse para dar praticidade s que faziam

    esportes. Era adaptado ao ritmo cotidiano das visitas, compras e passeios de

    automvel. Junto aos esportes, estas trs ltimas atividades faziam parte da

    realidade cotidiana das mulheres abastadas ou das senhoras de sociedade.

    Ambas falam, ento, de novas formas adaptadas ao novo cotidiano da mulher.

    Identificam um novo tipo de mulher. A moda em voga fazia parte do que

    chamavam de moderno conceito de beleza plstica, sobre o qual eram

    construdos a aparncia e o comportamento daquela nova mulher, esguia, de

    magreza sadia e de vida dinmica. Por isso, para Isabel de Maurtua os vestidos

    compridos eram adequados para a noite, mas incompatveis com o dinamismo do

    cotidiano, ao que os cabelos curtos vinham perfeitamente a satisfazer.

    Mas, ainda temos um outro aspecto trazido pela moda, que , na verdade,

    um aspecto que caracteriza a prpria modernidade no s daquela poca, pois,perdura at hoje: a uniformidade. Joo do Rio, em suas crnicas sobre o novo

    tempo via a modernidade como algo uniformizante43que padronizava as relaes,

    as aparncias, at mesmo as sensaes. J na primeira dcada do sculo XX, Joo

    do Rio fazia crnicas em que usava a modacomo artifcio para criticar os novos

    modelos de relaes sociais. Na crnica O figurino, de 1906, usou a modapara

    falar da mania cultural brasileira de copiar ou imitar tudo o que vinha do exterior.

    No visualiza somente a modade vestir, mas a modados costumes, das idias, da

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    moral e do carter. A modanesta crnica ganha um sentido amplo, pois, Joo do

    Rio no trata particularmente da moda, mas de genricos modismos que

    sucessivamente, segundo ele, eram imitados num desejo sempre frustrado das

    pessoas se completarem enquanto indivduos.

    Apesar da caracterstica da uniformidade ser facilmente percebida em um

    rpido exame a imagens fotogrficas nas revistas mundanas, ela no era um

    aspecto que costumava aparecer de modo crtico, nem chega a ser citada nas

    entrevistas comentadas anteriormente. No entanto, a revistaEu sei tudotrazia com

    alguma freqncia artigos crticos sobre a nova moda feminina, suas crticas

    recaam sobre os originais divulgadores da nova moda (Europa, sobretudo, os

    Estados Unidos). s vezes expunha ao ridculo as novidades, como foi a

    experincia de cobrir uma rplica da Vnus de Millus com um vestido, cabelo e

    maquiagem nas novas formas da moda. Ou, quando criticou uma experincia

    norte-americana em que jovens se submetiam a um teste de medidas.Este teste

    tinha por objetivo comparar as propores naturais das moas s propores

    artificiais de uma escultura exemplar do modelo de beleza greco-romana. A

    mulher mais perfeita seria aquela cujas medidas mais se aproximassem ou fossem

    compatveis da escultura (figura 46). Nestes dois artigos e em outros publicados

    naEu sei tudo, a modada modernidade criticada, sobretudo, por deixar todas as

    mulheres com as mesmas aparncias, apagando inclusive as diferenas culturais e

    os traos tnicos de mulheres de diferentes nacionalidades. A imagem fotogrfica

    no entrava neste contexto apenas com a funo de ilustrao do fato narrado,

    pelo contrrio, ela tinha o mesmo nvel de importncia que o texto. Em alguns

    casos, a sensao a de que a fotografia era o foco principal, funcionando como

    um testemunho de uma certa experincia, enquanto o texto entrava com a funo

    complementar de explicar o que se via na imagem.Voltando-se discusso sobre a moda, analisada por esta ltima vertente

    de pensamento, procede pensarmos que ela modelava esteticamente a silhueta

    feminina dando-lhe ares modernos, mas que seu design obedecia aos padres

    internacionais, uniformizando silhuetas e identidades visuais. A questo da cpia,

    tambm tangencia essa anlise sobre a funo da moda, pois parte das roupas

    femininas brasileiras eram feitas aos moldes internacionais, quando no eram

    diretamente importadas. Mas, essa produo provinha dos profissionais

    43GOMES, R. C.Joo do Rio: vielas do vcio, ruas da graa.1996, p.13.

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    especialistas em roupas com padro internacional e dos magazines que vendiam

    roupas prontas. Porm, havia ainda a produo domstica de roupas, marcada pelo

    uso dos materiais tradicionais disposio e das capacidades individuais de

    criao, s vezes tambm balizadas por modelos estticos estrangeiros. Provinda

    da prpria cultura dos afazeres domsticos femininos ou do servio autnomo de

    costureiras, essa outra produo poderia tambm eventualmente exibir aspectos de

    uniformidade, porm neste caso, de modo diferente produo de design

    profissional de roupas, essa caracterstica no obedecia a uma estratgia

    mercadolgica, mas exclusivamente aos anseios e s necessidades do indivduo.

    Figura 46 Em busca da Vnus Moderna:comparao dasmedidas de jovens norte-americanas s de um bustoao modelo debeleza clssica greco-romana. Eu sei tudo, 1938.

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    2.2.2

    A beleza

    Assim como a moda, a beleza era um dos assuntos recorrentes

    relacionados mulher nas pginas das revistas ilustradas. A partir dele eram

    divulgados os padres estticos que uma mulher da nova poca deveria seguir.

    Selecionamos dois exemplos que tm por mote a beleza, um aconselhamento e

    uma propaganda (figura 47), ambos publicados naPara Todos. A propaganda, que

    ocupa uma pgina inteira da revista, introduz o anncio do creme Pollah pelo

    assunto da beleza. Como se trata de produto de uso para o rosto, a imagem queilustra a propaganda um desenho de um grande rosto feminino, cujos traos

    evidenciam os padres da maquilagem em voga: olhos em contornos escuros e

    batom de cor forte (geralmente, vermelho, ou melhor, carmim). O belo rosto

    emoldurado por uma grande toca e plumas. A presena de plumas ou peles era

    uma recorrncia nos retratos femininos dessa poca. Mas, esses elementos no

    eram somente evidncias de um determinado gosto na moda, ou artifcios que

    indicavam sofisticao. Eles tambm serviam construo simblica dafeminilidade. O poder simblico proveria do prprio material, ou seja, pela

    possibilidade de se associar a sensao de maciez e de delicadeza da pele animal e

    da pluma maciez e delicadeza da pele feminina.

    Ao olhar para este rosto desenhado, perfeitamente possvel trazer

    lembrana o trecho de Elogio da maquilagem escrito por Baudelaire, para o qual

    o vermelho dos lbios e o negro do sombreado dos olhos das mulheres

    representam a vida, uma vida sobrenatural e excessiva; esse dcor negro torna o

    olhar mais profundo (...)d ao olho uma aparncia mais decidida de janela para

    o infinito44. Em analogia ao que fala Baudelaire sobre a belezada modernidade,

    afirmamos que propagandas como esta tambm elogiam os artifcios usados em

    prol da beleza feminina.Mas num discurso que vislumbra o efeito prtico: o de

    esconder ou mascarar as imperfeies da pele, ou os defeitos temporrios

    (acne, alergias e at rugas, que no so temporrias), para que a mulher se

    mostrasse incondicionalmente bela, j que a beleza era a aspirao de toda

    44BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna In _: Obras Estticas, pp. 217 251.

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    Figura 47- Para Todos..., 1928.

    mulher. O texto enfatiza o efeito prtico enquanto a imagem enfatiza o efeito

    transcendente da beleza.

    O texto A Belleza, que rene conselhos de Conceio Elaquer, apresenta

    reflexes sobre esse valor, afirmando que impossvel dar uma definio exata

    sobre a belezae ressaltando que em cada poca ela especfica. No seria esse

    mais um ponto comum com o pensamento de Baudelaire sobe o belo? Segundo o

    qual: obelo feito de um elemento eterno, invarivel, cuja quantidade extremamente

    difcil de ser determinada, e de um elemento relativo, circunstancial, que ser, vamos

    dizer assim, sucessivamente ou tudo junto, a poca, a moda, a moral e a paixo.45

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    A beleza vista, por Baudelaire, do mesmo modo ambivalente com que v

    a modernidade. Esse belo difere do belo clssico (absoluto e eterno) no apenas

    por ser constitudo pela transitoriedade, pela efemeridade, sendo relativo ao tempo

    e cultura. Trata-se de outro belo, o belo moderno, porque este simultaneamente

    o transitrio e o eterno. Mas, neste caso, o eterno no completamente oposto

    contingncia, pois a partir da ambivalncia do belo que o passado atualizado.

    Portanto, torna-se presente o passado que originou o belo de agora, ou belo

    atual. O breve texto, publicado na Para Todos, no tece consideraes to

    elaboradas sobre a beleza.No entanto, tambm nos fala sobre uma belezarelativa

    e ainda de uma belezahiginica. O texto segue a linha de discursos sobre a moda,

    j que respalda a preocupao com a belezapela via da moral. Para a conservao

    da belezaera necessrio equilbrio entre a higiene do corpo e a higiene da alma. A

    dor moral e a dor fsica, como a provocada pelo o uso do espartilho e por calados

    apertados, eram deformadoras da expresso do rosto feminino. Mas, a bondade

    tambm fazia parte da higiene da beleza. A alegria emanada da bondade

    ressaltaria no rosto feminino uma expresso encantadora e feliz.

    A belezahiginica nos termos vistos no est presente nas consideraes

    desenvolvidas por Baudelaire.Contudo, a belezadivulgada nas consideraes de

    Isabel Elaquer, no anncio do creme Pollah e nas duas experincias ilustradas na

    Eu sei tudo, evidenciam-na como algo que no naturalmente perfeita, que

    precisa ser aperfeioada, reformada. Por isso, projetam-se sobre o natural

    artifcios que o transformam em algo efetivamente belo. Esse o ponto que cruza

    as observaes de Baudelaire, segundo o qual todo o belo resultado da razo e

    do clculo.Nessa perspectiva, mesmo a moral, que pertence outra ordem que a

    moda e a maquiagem, desenvolve como ambas, a funo de aperfeioar o natural.

    Em suma, a beleza artificial, assim como a moda so elementos que

    constroem, ao mesmo tempo, as identidades efmera e aparente e do subterfgios

    para a construo da identidade imaginada da mulher.

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