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Universidade Federal do Rio de Janeiro CONSTRUÇÕES MODAIS COM TER: GRAMATICALIZAÇÃO E VARIAÇÃO Elzimar de Castro Monteiro de Barros 2012

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

CONSTRUÇÕES MODAIS COM TER:

GRAMATICALIZAÇÃO E VARIAÇÃO

Elzimar de Castro Monteiro de Barros

2012

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CONSTRUÇÕES MODAIS COM TER:

GRAMATICALIZAÇÃO E VARIAÇÃO

ELZIMAR DE CASTRO MONTEIRO DE BARROS

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Linguística, Faculdade de

Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro,

como parte dos requisitos necessários à obtenção

do título de Doutor em Linguística.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria da Conceição

Auxiliadora de Paiva.

Rio de Janeiro

Agosto de 2012

Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras

Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

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BARROS, Elzimar de Castro Monteiro de.

Construções modais com ter: gramaticalização e variação/Elzimar de Castro

Monteiro de Barros. – Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras, 2012.

xiv, 246 f.; 31 cm.

Orientadora: Maria da Conceição Auxiliadora de Paiva

Tese (doutorado) – UFRJ/Faculdade de Letras/Programa de Pós-graduação em

Linguística, 2012.

Referências bibliográficas: f. 226 – 246.

1. Variação, mudança e gramaticalização. 2. Modalidade e gramaticalização das

construções modais com ter. 3. As construções modais com ter na modalidade falada.

4. Variação entre ter de que + infinitivo e ter que + infinitivo na modalidade escrita. I.

Paiva, Maria da Conceição Auxiliadora de. II. Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Linguística. III.

Construções modais com ter: gramaticalização e variação.

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DEDICAÇÃO

Ao meu marido, Julio Cesar,

pelo amor que nos une.

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AGRADECIMENTOS

Especialmente, à professora Drª. Maria da Conceição

Auxiliarora de Paiva, pelo envolvimento e incentivo constantes no

meu processo de aprendizagem e pela realização desta tese.

À professora Drª. Maria Luiza Braga, por suas aulas

cativantes, pela sugestão do fenômeno linguístico e por ter me

apresentado a minha orientadora.

Às professoras Drª. Maria Maura Cezario e Drª. Marcia dos

Santos Machado Vieira, pela participação no meu exame de

qualificação e por seus valiosos comentários e sugestões.

A todos os professores do programa de Pós-graduação em

Linguística da UFRJ, pela seriedade, competência, comprometimento

com suas aulas e pelo carisma com seus alunos.

A Marcia da Silva Mariano Lessa de Castro, pela versão do

resumo deste trabalho para o Inglês.

Aos componentes do motoclube Smurfs, pela convivência e

amizade.

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Lo que ofrezco... es una panorámica de esta parcela de investigación realizada por alguien que quizá ha pasado más tiempo entre los árboles, pero intentando no perder de vista el bosque. (Romaine, 1996).

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RESUMO

CONSTRUÇÕES MODAIS COM TER: GRAMATICALIZAÇÃO E VARIAÇÃO

Elzimar de Castro Monteiro de Barros

Orientadora: Doutora Maria da Conceição Auxiliadora de Paiva

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em

Linguística, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Linguística.

Nesta tese, investigamos o uso das construções modais ter de + infinitivo e ter que +

infinitivo, no PB contemporâneo, em duas perspectivas. Na primeira, focalizamos ter que +

infinitivo, soberana na modalidade falada, através de um estudo em tempo real de curta

duração do tipo tendência, procurando verificar a emergência de novos valores modais para

essa perífrase. Partimos da hipótese de que, inicialmente gramaticalizada no domínio

deôntico, essa perífrase prossegue uma trajetória unidirecional de mudança no sentido de [-

subjetivo] > [+subjetivo]. Para verificar essa hipótese, foram utilizados dados de entrevistas

sociolinguísticas que compõem as Amostras Censo 1980 e Censo 2000, representativas de

duas sincronias da variedade carioca. Com o objetivo de identificar as propriedades mais

relevantes dessas perífrases, foram analisados os valores modais dessas construções, as

propriedades modo-temporais e número-pessoais do verbo ter, as propriedades semânticas, o

tipo sintático e de processo de V2, as propriedades semântico-discursivas do contexto e as

variáveis faixa etária, gênero/sexo. Os resultados obtidos mostram que ter que + infinitivo

caracteriza-se por apresentar o verbo ter no presente do indicativo e na terceira pessoa do

singular; V2 associa-se a sujeitos com o traço semântico [+humano] e [+arbitrário]. Mais

frequentemente, as orações com a construção ter que + infinitivo situam-se em contextos

discursivos nos quais emergem relações no domínio da causalidade. O processo de mudança

verificado entre as duas sincronias foi identificado através do continuum entre

obrigação/necessidade [+forte] > [-forte]. A variável social faixa etária demonstrou o uso

mais expressivo da construção ter que + infinitivo nas faixas intermediárias, com queda

significativa nas faixas extremas. A variável gênero revelou que as mulheres tendem a usar

mais essa variante com seu valor deôntico e extrínseco e os homens, com o valor epistêmico.

Na segunda dimensão da pesquisa, focalizamos a variação entre as duas construções na

modalidade escrita, com o objetivo principal de identificar os contextos de resistência de ter

de + infinitivo. Para essa análise utilizamos uma amostra do discurso jornalístico constituída

de textos representativos de diversos gêneros, publicados durante o período de 2000 a 2004.

Os resultados obtidos mostram que essa construção tende a ocorrer no domínio epistêmico,

em contextos de primeira pessoa, de sujeito [+humano], de verbos de processo mental,

percorrendo um cline de significados [-subjetivo] > [+subjetivo]. Verificamos, também, a

correlação entre os valores modais das construções com ter e os diversos gêneros da mídia

jornalística. Os resultados demonstraram que a construção ter de + infinitivo tende a ser mais

utilizada em gêneros mais formais, como os editoriais.

Palavras-chave: Construções modais com ter. Gramaticalização. Variação.

Rio de Janeiro

Agosto de 2012

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ABSTRACT

MODAL CONSTRUCTIONS WITH TER: GRAMMATICALIZATION AND VARIATION

Elzimar de Castro Monteiro de Barros

Supervisor: Doutora Maria da Conceição Auxiliadora de Paiva

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em

Linguística, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Linguística.

In this thesis we investigate the use of modal constructions ter que + infinitivo and

ter de + infinitivo, in the contemporary Brazilian Portuguese, in two perspectives. Firstly, we

focus on ter que + infinitivo, which prevails on spoken language, through a study in a short-

term real time in which we want to verify the emergency of new modal values for that

periphrasis and the variety of properties related to it. Our hypothesis is that, for being initially

grammaticalized in the deontic domain, the periphrasis ter que + infinitivo goes on a

unidirectional change path from [-subjective] to [+subjective]. In order to verify this

hypothesis, we used data from sociolinguistics interviews that compose the samples

Amostras Censo 1980 and Censo 2000, which represent two synchronies of carioca variety.

To identify the most relevant properties of ter que + infinitivo and ter de + infinitivo, we

analyzed their modal values, the properties of desinences that indicate tense, singular/plural

and persons of speech of the verb ter, semantic properties, the syntactic types and the process

types of V2, the context of semantic-discoursive properties and the social varieties, age and

genre. Our results show that ter que + infinitivo presents the verb ter in the present and third

person of singular; V2 is associated to subjects with the semantic feature [+human] and

[+arbitrary]. Frequently, the sentences that have the construction ter que + infinitivo appear

in discoursive contexts in which relations in the causality domain emerge. The change

process between both synchronies was identified through the continuum between

obligation/necessity [+strong] > [-strong]. The social variety age showed a more expressive

use of ter que + infinitivo in the intermediate ages and a significative fall in the extreme ones.

The variety genre showed that women tend to use the variant ter que + infinitivo with its

deontic and extrinsic value while men use its epistemic value. On the second perspective, we

focus the variation between both constructions in written language in which we aim to

identify the resistance context of ter de + infinitivo. For this analysis we used a sample of

journalistic speech composed by different genres texts published from 2000 to 2004. The

results show that the construction ter de + infinitivo tends to occur in the epistemic domain,

in first person of speech context, with [+human] subject, with verbs that describe mental

process, and that goes from [-subjective] to [+subjective] meanings. We can also verify a

correlation among the modal values of constructions with ter and genres of journalistic

media. The results showed that ter de + infinitivo tends to be more used in formal genres, like

editorials.

Keywords: Modal constructions with ter. Grammaticalization. Variation.

Rio de Janeiro

Agosto de 2012

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 15

2 VARIAÇÃO, MUDANÇA E GRAMATICALIZAÇÃO..................................................... 20

2.1 A perspectiva funcional da linguagem.......................................................................... 20

2.2 A mudança linguística na perspectiva variacionista...................................................... 23

2.3 Mudança por gramaticalização...................................................................................... 29

2.3.1 Mudança semântica e subjetivização.................................................................. 37

2.3.2 Gramaticalização e reanálise............................................................................... 46

3 MODALIDADE E GRAMATICALIZAÇÃO DAS CONSTRUÇÕES COM TER............ 49

3.1 Algumas questões sobre modalidade............................................................................ 49

3.1.2 Domínios modais................................................................................................. 52

3.2 Verbo ter: de pleno a auxiliar........................................................................................ 64

3.2.1 O verbo ter nas perífrases verbais....................................................................... 64

3.2.2 O verbo ter nas perífrases modais....................................................................... 67

3.2.3 Gramaticalização das construções ter de + infinitivo e ter que +infinitivo........ 73

3.2.4 Grau de auxiliarização de ter nas perífrases modais........................................... 77

4 AMOSTRAS E METODOLOGIA....................................................................................... 88

4.1 Amostras da modalidade falada.................................................................................... 88

4.2 Amostra da modalidade escrita..................................................................................... 91

4.3 Procedimentos metodológicos....................................................................................... 93

5 PROPRIEDADES E TRAJETÓRIA DAS CONSTRUÇÕES MODAIS COM TER

NA MODALIDADE FALADA.......................................................................................... 98

5.1 Distribuição das construções modais com ter na modalidade falada............................ 98

5.2 Valores modais das construções com ter.................................................................... 101

5.3 Propriedades morfossintáticas do verbo ter................................................................ 113

5.3.1 Propriedades modo-temporais.......................................................................... 114

5.3.2 Propriedades número-pessoais......................................................................... 120

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5.4 Propriedades de V2..................................................................................................... 124

5.4.1 Traços semânticos do sujeito............................................................................. 125

5.4.2 Tipo sintático de V2.......................................................................................... 131

5.4.3 Tipo de processo de V2..................................................................................... 135

5.5 Propriedades semântico-discursivas do contexto........................................................ 142

5.6 Presença de elementos intervenientes......................................................................... 152

5.7 Variáveis extralinguísticas.......................................................................................... 163

5.7.1 Faixa etária........................................................................................................ 163

5.7.2 Gênero/sexo....................................................................................................... 169

6 VARIAÇÃO ENTRE TER DE + INFINITIVO E TER QUE + INFINITIVO

NA MODALIDADE ESCRITA....................................................................................... 178

6.1 Valores modais das construções com ter.................................................................... 180

6.2 Traços semânticos do sujeito....................................................................................... 186

6.3 Desinências número-pessoais do verbo ter................................................................. 189

6.4 Tipo sintático de V2.................................................................................................... 192

6.5 Tipo de processo de V2............................................................................................... 194

6.6 Propriedades semântico-discursivas das construções com ter.................................... 198

6.7 A variável gênero do discurso..................................................................................... 203

7 CONCLUSÕES.................................................................................................................. 220

8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................ 226

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Lista dos quadros, gráficos e tabelas

Quadro 1: Critérios de mensuração do grau de auxiliaridade de V1.

Quadro 2: Comportamento de ter nas construções ter de + infinitivo e ter que + infinitivo de

acordo com os parâmetros de auxiliaridade.

Quadro 3: Composição da amostra de fala.

Quadro 4: Amostra de textos escritos.

Quadro 5: Distribuição dos gêneros jornalísticos de acordo com as ocorrências das

construções modais com ter.

Quadro 6: Distribuição dos informantes em relação à alternância entre ter que + infinitivo e

ter de + infinitivo na amostra Censo 2000.

Quadro 7: Continuum de força modal.

Quadro 8: Uso das construções modais com ter de acordo com a interação gênero jornalístico

e domínio modal.

Quadro 9: Propriedades das construções modais com ter na modalidade falada e escrita.

Gráfico 1: Frequência de material interveniente em ter que + infinitivo.

Gráfico 2: Distribuição de elementos intervenientes por fronteira.

Gráfico 3: Distribuição de ter que + infinitivo por faixa etária.

Gráfico 4: Distribuição de ter que + infinitivo por gênero.

Gráfico 5: Distribuição das construções modais com ter na modalidade escrita.

Gráfico 6: Distribuição das construções modais com ter por gênero textual.

Tabela 1 – Distribuição de ter de/que + infinitivo nas amostras Censo 1980 e Censo 2000.

Tabela 2 – Distribuição de ter de/que + infinitivo na amostra NURC-RJ/70.

Tabela 3 – Distribuição de ter de/que + infinitivo quanto à polaridade.

Tabela 4 – Distribuição de ter que + infinitivo em função do domínio/alvo e uso interacional.

Tabela 5 – Distribuição de ter que + infinitivo de acordo com o alvo da avaliação.

Tabela 6 – Distribuição de ter que + infinitivo de acordo com o domínio da avaliação.

Tabela 7 – Distribuição de ter que + infinitivo de acordo com o tempo/modo do verbo ter.

Tabela 8 – Interação entre domínio modal e desinências modo-temporais do verbo ter –

Amostra Censo 1980.

Tabela 9 – Interação entre domínio modal e desinências modo-temporais do verbo ter –

Amostra Censo 2000.

Tabela 10 – Distribuição de ter que + infinitivo de acordo com a pessoa gramatical.

Tabela 11 – Interação entre domínio modal e pessoa gramatical do verbo ter – Amostra Censo

1980.

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Tabela 12 – Interação entre domínio modal e pessoa gramatical do verbo ter – Amostra Censo

2000.

Tabela 13 – Distribuição de ter que + infinitivo de acordo com os traços semânticos do

sujeito.

Tabela 14 – Interação entre domínio modal e traços semânticos do sujeito – Amostra Censo

1980.

Tabela 15 – Interação entre domínio modal e traços semânticos do sujeito – Amostra Censo

2000.

Tabela 16 – Distribuição de ter que + infinitivo em relação ao tipo sintático de V2.

Tabela 17 – Distribuição de ter que + infinitivo em relação ao tipo de complemento do verbo

predicador.

Tabela 18 – Distribuição de ter que + infinitivo de acordo com o tipo de processo de V2 e V2

como verbo-suporte/expressão cristalizada.

Tabela 19 – Interação entre domínio modal e tipo de processo de V2 – Amostra Censo 1980.

Tabela 20 – Interação entre domínio modal e tipo de processo de V2 – Amostra Censo 2000.

Tabela 21 – Distribuição de ter que + infinitivo de acordo com a relação semântica entre as

orações.

Tabela 22 – Interação entre domínio modal e relação semântica entre as orações – Amostra

Censo 1980.

Tabela 23 – Interação entre domínio modal e relação semântica entre as orações – Amostra

Censo 2000.

Tabela 24 – Natureza dos elementos intervenientes na construção ter que + infinitivo.

Tabela 25 – Distribuição de ter que + infinitivo de acordo com a faixa etária.

Tabela 26 – Interação entre domínio modal/uso interacional e faixa etária – Amostra Censo

1980.

Tabela 27 – Interação entre domínio modal/uso interacional e faixa etária – Amostra Censo

2000.

Tabela 28 – Interação entre domínio modal/uso interacional e gênero – Amostra Censo 1980.

Tabela 29 – Interação entre domínio modal/uso interacional e gênero – Amostra Censo 2000.

Tabela 30 – Interação entre domínio modal/uso interacional e as variáveis gênero/idade –

Amostra Censo 1980.

Tabela 31 – Interação entre domínio modal/uso interacional e as variáveis gênero/idade -

Amostra Censo 2000.

Tabela 32 – Uso de ter que + infinitivo de acordo com o domínio modal e alvo.

Tabela 33 – Uso de ter que + infinitivo de acordo com o domínio modal.

Tabela 34 – Uso de ter que + infinitivo de acordo com os traços semânticos do sujeito.

Tabela 35 – Interação entre domínio modal e traços semânticos do sujeito.

Tabela 36 – Uso de ter que + infinitivo de acordo com a pessoa gramatical do verbo ter.

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Tabela 37 – Interação entre domínio modal e pessoa gramatical do verbo ter.

Tabela 38 – Uso de ter que de acordo com o tipo sintático de V2.

Tabela 39 – Uso de ter que de acordo com o tipo de processo de V2.

Tabela 40 – Interação entre domínio modal e tipo de processo de V2.

Tabela 41 – Uso de ter que + infinitivo de acordo com a relação semântica entre as orações.

Tabela 42 – Interação entre domínio modal e relação semântica entre as orações.

Tabela 43 – Uso de ter que + infinitivo de acordo com a variável gênero textual.

Tabela 44 – Interação entre domínio modal e a variável gênero textual.

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1 INTRODUÇÃO

A multiplicidade de usos do verbo ter já é atestada em vários estudos. Este verbo

pode integrar construções possessivas, existenciais, expressões cristalizadas, funcionar como

verbo suporte, e, ainda, como auxiliar de tempo composto, em construções participiais, e

como auxiliar de modalidade. Nesta tese, focalizamos o uso do verbo ter nas construções

perifrásticas modais ter de + infinitivo e ter que + infinitivo, na modalidade falada e escrita do

português brasileiro contemporâneo.

A utilização do verbo ter na formação de perífrases modais, salientada por diversos

autores (como RIGONI COSTA, 1995; ILARI, 1997; NEVES, 2000, 2002, 2006; COELHO,

2006; ALMEIDA, 2006; PEIXOTO, 2006, dentre outros), insere-se em uma tendência mais

geral de se utilizar uma forma fonte com valor de posse para a expressão de significados mais

abstratos. Nessas construções, o verbo ter (V1), ligado pela preposição de ou pelo elemento

que a uma forma verbal no infinitivo (V2), atua apenas como um mero instrumento

gramatical, assumindo o papel de auxiliar modal. Em princípio, as duas construções modais

com ter podem alternar entre si e coexistem no Português brasileiro como possibilidades para

expressar, essencialmente, obrigatoriedade e/ou necessidade/dever, como nos exemplos (1) e

(2):

(1) O Rio de Janeiro, informa a reportagem, é, em tese, o mais avançado nessa

área. Comprou um sistema sofisticado, mas ainda não testado. E mesmo

que funcione, a polícia de São Paulo, por exemplo, se precisar consultar

dados do arquivo, terá de usar a ponte aérea em vez de um terminal de

computador. (Editorial – O Globo - 22-10-02)

(2) E o posto policial da cidade de Maricá tem que usar um orelhão para

seus telefonemas. (Carta do leitor – O Globo – 25-02-04)

Embora constituam, em princípio, alternantes com o mesmo valor modal, ao que

tudo indica, a construção ter que + infinitivo generaliza-se, pouco a pouco, em detrimento de

sua concorrente ter de + infinitivo, tornando-se soberana na modalidade falada do Português

brasileiro, pelo menos em seu registro menos formal. Na modalidade escrita, ao contrário,

ainda se registra a alternância entre ter que + infinitivo e ter de + infintitivo.

Considerando o espraiamento da construção ter que + infinitivo na modalidade

falada e a variabilidade entre as duas construções modais com ter na modalidade escrita,

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algumas questões iniciais motivaram este estudo: (a) em que estágio do processo de

gramaticalização se encontram essas construções? (b) as duas construções apresentam

sinonímia em relação ao significado? (c) as duas variantes competem nos mesmos contextos

linguísticos e extralinguísticos? (d) o uso da construção ter que + infinitivo restringe-se

apenas aos verbos transitivos, conforme prescrições de alguns gramáticos, como Almeida

(1979), Rocha Lima (2008)? (f) se, segundo a intuição de Luft (2003), o uso de ter de +

infinitivo restringe-se à modalidade escrita, principalmente nos seus registros mais formais,

enquanto ter que + infinitivo é mais próprio ao registro coloquial, como explicar a recorrência

desta última na modalidade escrita do Português contemporâneo?

As questões apresentadas acima nos conduziram à análise das construções modais

com ter em duas dimensões: na primeira, focalizamos o uso da construção ter que + infinitivo

na modalidade falada; na segunda, analisamos a variação entre ter de + infinitivo e ter que +

infinitivo na modalidade escrita.

Com a análise do uso de ter que + infinitivo na modalidade falada, buscamos (i)

identificar as propriedades morfossintáticas mais recorrentes dessa construção e (ii)

depreender os contextos semânticos e pragmáticos que propulsionam sua expansão com o

desenvolvimento de novas polissemias. Uma hipótese central norteia esta primeira dimensão

da análise: no Português brasileiro contemporâneo, as construções modais com ter

empreendem uma trajetória do domínio deôntico para o domínio epistêmico, isto é, elas

passam a ser utilizadas para a expressão de opinião, crença, conhecimento. Em outros termos,

as construções modais com ter prosseguem um processo de gramaticalização unidirecional,

percorrendo um cline de significados [-subjetivos] para [+subjetivos] (cf. TRAUGOTT &

DASHER, 2005).

A hipótese proposta acima baseia-se em um estudo de tempo real de curta duração,

do „tipo tendência‟, em que buscamos verificar a forma de introdução de novos valores para a

expressão da categoria modalidade. Para a realização desta análise, utilizamos os dados das

amostras Censo 1980 e Censo 2000, que integram o acervo do Projeto PEUL (Programa de

Estudos sobre o Uso da Língua), representativas de duas sincronias da variedade carioca.

Na segunda dimensão da análise, focalizamos a variação entre as construções modais

com ter na modalidade escrita, procurando, sobretudo, identificar os contextos de resistência

de ter de + infinitivo. Partimos da hipótese de que a construção ter que + infinitivo se expande

na escrita, de acordo com as mesmas variáveis que lhe são mais fortemente correlacionadas na

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modalidade falada. Acreditamos, ainda, que a construção ter de + infinitivo pode estar

submetida a um controle mais estrito e cumpre funções discursivo-funcionais específicas

nessa modalidade. Para a verificação dessas hipóteses, analisamos uma amostra do discurso

jornalístico, constituída de textos representativos de diversos gêneros – carta do leitor,

crônica, editorial, horóscopo, coluna social, notícia/reportagem e artigo de opinião,

publicados em quatro jornais de grande circulação na cidade do Rio de Janeiro, O Globo,

Jornal do Brasil, Extra e Povo, durante o período de 2000 a 2004. Esta amostra foi

organizada pelo Programa de Estudos do Uso da Língua (PEUL), sediado na UFRJ.

Um aspecto merece destaque em relação às construções modais com ter. O verbo ter,

nessas construções, ocorre num entorno específico que envolve a presença de uma forma no

infinitivo precedida por de ou que. Deste modo, o fenômeno em análise pode ser entendido

como a gramaticalização de uma construção, ou seja, uma estrutura acima do nível da palavra,

caracterizada pelas abordagens construcionais (cf. CROFT, 2001, por exemplo), como uma

correspondência entre forma (envolvendo propriedades sintáticas, morfológicas e fonológicas)

e sentido (envolvendo propriedades semânticas, pragmáticas e discursivo-funcionais).

Este estudo se insere, portanto, em uma perspectiva segundo a qual um processo de

gramaticalização não se restringe a um item específico, mas, ao contrário, abrange relações

sintagmáticas entre um item e outros elementos que o acompanham, como propõem Lehmann

(1992), Heine (1993), Bybee et al. (1994), Croft (op. cit.), Bybee (2003), Traugott (2009).

Desta forma, não é possível explicar o valor modal das construções modais com ter, assim

como a emergência de novos significados e funções, focalizando os elementos que as

integram de forma isolada, visto que é a partir do todo que desencadeia o processo de

gramaticalização. Ao longo deste trabalho, alternamos os termos perífrase e construção,

entendendo que, em ambos os casos, estão envolvidas unidades constituídas por mais de um

elemento.

O desenvolvimento de novas funções das perífrases com ter, a nosso ver,

compreende aspectos ligados à forma como se inter-relacionam gramática e discurso.

Entendemos, portanto, que a gramática de uma língua não constitui um objeto autônomo, mas

sim um resultado da integração entre os níveis morfossintático, semântico e discursivo e que

as estruturas linguísticas emergem da interação comunicativa. Como as formas em

gramaticalização são sensíveis ao co-texto e ao con-texto, ou seja, expandem-se por contextos

linguísticos, extralinguísticos, comunicativos e pragmáticos, a análise do fenômeno em estudo

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requer um controle das propriedades morfossintáticas e semânticas dos elementos

constitutivos das construções ter que + infinitivo e ter de + infinitivo, dos contextos

discursivo-pragmáticos associados ao uso dessas construções em situações reais de

comunicação, assim como a convergência entre forças internas e externas próprias de

qualquer sistema linguístico.

Deste modo, neste estudo, tanto os dados da língua falada como os da língua escrita

são analisados segundo os seguintes grupos de fatores: (i) valores modais das construções

com ter; (ii) propriedades morfossintáticas do verbo ter, de acordo com as categorias modo-

tempo e número-pessoa; (iii) propriedades morfossintáticas e semânticas do verbo no

infinitivo que envolvem os traços semânticos do sujeito, tipo sintático e de processo de V2;

(iv) propriedades semântico-discursivas do contexto em que depreendemos a forma como as

orações com a construções modais com ter se relacionam às orações adjacentes e (v) presença

de elementos intervenientes entre os componentes das perífrases, considerando que elas

podem estar se tornando, sintaticamente, mais integradas, mais cristalizadas, mais fixas.

Nos dados da modalidade falada, analisamos, ainda, nas duas sincronias, a

distribuição de usos da construção ter que + infinitivo de acordo com as variáveis gênero/sexo

e idade, com o objetivo de verificarmos que tipo de valor modal estaria mais associado a um

dos gêneros e de traçar o movimento dessa construção através de tendências de estabilidade

ou de mudança em tempo real da evolução sociolinguística da comunidade.

A diversificação de gêneros jornalísticos da amostra escrita nos permitiu cumprir

outro objetivo deste estudo: correlacionar esses gêneros ao uso das construções modais com

ter, partindo da hipótese de que a incorporação da construção ter que + infinitivo se inicia por

gêneros mais próximos de um polo de menor formalidade, como crônica e coluna social.

Considerando a própria natureza do fenômeno focalizado nesta pesquisa, pressupostos

funcionalistas, principalmente do funcionalismo linguístico de orientação norte-americana, tal

como proposto por Traugott & Heine (1991), Givón (1995), Bybee & Hopper (2001), Hopper

& Traugott (2003), Bybee (2003), Heine (2003), são conjugados a pressupostos teórico-

metodológicos da Sociolinguística Variacionista (cf. LABOV, 1972, 1994; WENREICH,

LABOV & HERZOG, 2006 [1968]). A importância dada, tanto pela teoria variacionista,

quanto pelos estudiosos da gramaticalização, ao tratamento empírico e à quantificação

estatística como evidência para atestar fenômenos de variação e mudança (cf. TAVARES,

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2003; GÖRSKI et al., 2003, FREITAG & GONÇALVES, 2011; GÖRSKI & TAVARES,

2012, dentre outros) respalda a interface adotada nesta pesquisa.

Os dados coletados foram submetidos a uma análise quantitativa, porém de forma

diferenciada para as modalidades falada e escrita. Para a modalidade falada, como não há

alternância entre as duas construções, restringimo-nos apenas à frequência de ocorrência da

construção ter que + infinitivo de acordo com as diferentes propriedades consideradas. Na

análise da escrita, utilizamos procedimentos estatísticos, propiciados pelos programas

GoldVarb 2.0 (RAND & SANKOFF, 1990), com o objetivo de identificar as variáveis mais

relevantes para a incorporação de ter que + infinitivo nesta modalidade e os contextos mais

específicos de cada uma das construções em estudo.

Este trabalho está organizado da seguinte forma: no segundo capítulo, apresentamos

os pressupostos teóricos funcionalistas e variacionistas que norteiam esta pesquisa, assim

como a convergência/divergência entre essas duas abordagens. Focalizamos, também, a

mudança sob a perspectiva da gramaticalização. No terceiro capítulo, discutimos algumas

questões sobre a categoria modalidade, em especial, às que se relacionam aos domínios

modais nos quais se inserem as construções modais com ter e, ainda, avançamos uma

interpretação acerca da evolução das perífrases modais com ter. No quarto capítulo,

especificamos as amostras e os procedimentos metodológicos utilizados. No quinto capítulo,

analisamos a construção ter que + infinitivo, na modalidade falada, em relação às suas

propriedades morfossintáticas, semânticas, discursivas e quanto aos fatores sociais (faixa

etária e gênero/sexo). No sexto capítulo, considerando os mesmos fatores internos

examinados na modalidade falada, apresentamos e discutimos os resultados obtidos para as

duas construções em uma análise multivariacional, procurando, assim, depreender a trajetória

de incorporação de ter que + infinitivo na modalidade escrita. Neste capítulo são

consideradas, ainda, as correlações entre os gêneros textuais que compõem a amostra escrita e

o uso das construções modais com ter. No capítulo sete, retomamos e discutimos os aspectos

que mais se destacaram ao longo da análise. Seguem as referências bibliográficas.

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2 VARIAÇÃO, MUDANÇA E GRAMATICALIZAÇÃO

Os pressupostos teóricos que norteiam este trabalho se inscrevem em uma concepção

da língua como um sistema emergente, variável, em contínua evolução, motivada por uma

complexa interação entre gramática e situação comunicativa. Em outros termos, adotamos

uma orientação funcionalista, mais especificamente, de mudança por gramaticalização à qual

associamos pressupostos e métodos da Sociolinguística Variacionista. Essa conjugação entre

diferentes correntes da linguística impõe-se por si mesma, devido aos diversos objetivos deste

estudo.

2.1 A perspectiva funcional da linguagem

De forma geral, podemos dizer que as abordagens funcionalistas da linguagem

observam o funcionamento da língua no ato de comunicação e procuram identificar as

correlações entre as formas gramaticais e os contextos discursivos em que elas ocorrem (cf.

HOPPER, 1987, 1991; HEINE, CLAUDI & HÜNNEMYER, 1991; TRAUGOTT & HEINE,

1991; BYBEE, PERKINS & PAGLIUCA, 1994; HALLIDAY, 1994; GIVÓN, 1995; BYBEE

& HOPPER, 2001; NEVES, 2001a; HEINE, 2003; HOPPER & TRAUGOTT, 2003, dentre

outros). Caracterizando-se por recusar fronteiras rígidas entre sintaxe, semântica e pragmática,

privilegiam a interdependência entre esses diferentes níveis. Aceitamos, em consonância com

Givón (1984), que a descrição linguística tem por objetivo fornecer um quadro explícito,

sistemático e abrangente da sintaxe, semântica e pragmática unificadas como um todo.

Sob a perspectiva delineada acima, essas abordagens negam a autonomia do sistema

linguístico (cf. CROFT, 1995, 2000; GIVÓN, 1995, 2001; BUTLER, 2003, dentre outros).

Como propõe Givón (1995), a língua não pode ser considerada um sistema autônomo, visto

que a gramática possui uma interface com aspectos ligados à cognição, à comunicação e à

interação social. Partimos, portanto, do princípio de que a estrutura é não-arbitrária, isto é,

icônica, no sentido de que serve a uma função cognitiva ou comunicativa. Como está sujeita a

pressões de uso, a estrutura linguística é maleável, não rígida, e a variação e a mudança estão

sempre surgindo. Os processos de gramaticalização constituem um exemplo prototípico da

ação de mecanismos comunicativos e cognitivos que geram mudanças.

Numa perspectiva funcionalista da linguagem, dilui-se, também, a fronteira entre

sincronia e diacronia, divergindo, assim, das correntes estruturalistas pós-saussureanas que

circunscreviam os estudos linguísticos às relações estruturais diacrônicas. Givón (1995)

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ressalta que, para apreender e explicar a mudança linguística, é necessário considerar a

relação entre os eixos sincrônico e diacrônico, assim como a inter-relação entre variação e

mudança. Nos termos de Noonan (2004, p 89):

Sabemos [...] que os sistemas linguísticos naturais nunca são estáticos, estão

constantemente mudando e tanto a tendência para a mudança quanto as direções

seguidas são construídas diretamente no sistema da língua.1

Heine (1993, p. 3) resume os pressupostos funcionalistas mais gerais da seguinte

forma:

1. Ao invés de ver a língua como um estado, ela é concebida como uma

entidade dinâmica, e o comportamento linguístico é descrito como um processo

mais do que um estado ou um produto ou uma tradição histórica.

2. Ao invés de analisá-la como um sistema fechado, contido em si mesma, a

língua é interpretada como uma entidade que é constantemente modelada por

fatores externos, como forças cognitivas, manipulação pragmática, história, etc.

3. Isto significa que a língua não pode ser explicada satisfatoriamente com

referência somente a variáveis linguísticas; o que se requer em adição são

parâmetros extralinguísticos relacionados à forma como percebemos o mundo ao

nosso redor, e como utilizamos os recursos linguísticos disponíveis, no sentido

de conceptualizarmos as nossas experiências e nos comunicarmos com sucesso.2

Os pressupostos, acima sumarizados, alinham diversas correntes funcionalistas,

apesar das especificidades de cada uma delas, no que se refere ao peso atribuído à

arbitrariedade e à autonomia da sintaxe (cf. CROFT, 1995). Nichols (1984, p. 102-103)

distingue três tipos de funcionalismo: conservador, moderado e extremado3.

1 “We know, however, that natural language systems are never static and are constantly changing and that both

the propensity for change as well as the directions in which it will proceed are built directly into the system of

language.” (NOONAN, 2004, p. 89).

2 “1. Rather than viewing language as a state, it is conceived of as a dynamic entity, and linguistic behavior is

described as a process rather than a state or a product, or a historical tradition. 2. Instead of analyzing it as a

closed, self-contained system, language is interpreted as an entity that is constantly shaped by external factors

such as cognitive forces, pragmatic manipulation, history, etc. 3. This means that language cannot be explained

satisfactorily with reference to linguistic variables only; rather what is required in addition are extra-linguistic

parameters relating to how we perceive the world around us, and how we utilize the linguistic resources

available to us to conceptualize our experiences, and to communicate successfully.” (HEINE, 1993, p. 3).

3 O funcionalismo conservador reconhece a inadequação do formalismo ou do estruturalismo, sem propor uma

nova análise da estrutura linguística. Um exemplo são os vários trabalhos de Kuno (1987) nos quais é

demonstrado que certas regras sintáticas apresentam restrições do tipo função/contexto e função/propósito, mas

nenhuma análise funcional é proposta. O extremado, não mais adotado ultimamente, nega a autonomia da

estrutura. Nesse sentido, as regras são inteiramente baseadas em funções e, portanto, não existem restrições

sintáticas puras e é a estrutura que codifica a função (cf. GIVÓN, 1979; THOMPSON, 1987; HOPPER, 1987).

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Os adeptos do funcionalismo moderado, ou funcionalismo integrativo, para Croft

(1995), não negam a existência da sistematicidade na língua, mas rejeitam distinções rígidas

entre língua e fala, diacronia e sincronia. Nos termos de Croft (op. cit, p. 516),

[ ] os fenômenos linguísticos podem ser sistematizados, e podem ser (em parte)

arbitrários, porém eles envolvem uma integração tão íntima entre fatores

cognitivos e fatores externos que não admite a sua descrição como um sistema

cognitivo fechado, contido em si [ ]. Eu o chamarei de FUNCIONALISMO

INTEGRATIVO. 4

É essa perspsectiva que norteia a análise do fenômeno em estudo, visto que

consideramos as características estruturais dos elementos envolvidos nas construções ter

de/que + infinitivo, assim como as funções que os enunciados por eles introduzidos

desempenham na comunicação e na interação verbal.

Numa perspectiva funcionalista, o interesse pela mudança decorre do próprio

pressuposto de que as línguas naturais são sistemas flexíveis, heterogêneos, constantemente

moldados pelas exigências comunicativas dos usuários e pela forma de organização do

discurso. Este novo olhar sobre a gramática propiciou uma série de desdobramentos, como o

da gramática emergente, assim definida por Hopper (1998, p. 156):

A noção de Gramática Emergente significa que a estrutura, ou regularidade, vem

do discurso e é moldada por ele em um processo contínuo. Nesse sentido,

gramática é simplesmente o nome de certas repetições de categorias observadas

no discurso. A gramática não é um pré-requisito para o discurso. Suas formas

não são fixas e emergem da interação face-a-face, no sentido de que refletem a

experiência individual passada que os falantes têm dessas formas, e sua

avaliação no contexto atual, incluindo especialmente seus interlocutores, cujas

experiências e avaliações podem ser bem diferentes.5

4 “[…] linguistic phenomena may be systematic, and may be (partly) arbitrary, but they would involve such a

close interaction of cognitive and external social factors that one could not reasonably describe the internal

cognitive system as self-contained [...]. I will call INTEGRATIVE FUNCTIONALISM.” (CROFT, 1995, p.

516).

5 “The notion of Emergent Grammar is meant to suggest that structure, or regularity, comes out of discourse and

is shaped by discourse in an ongoing process. Grammar is, in this view, simply the name for certain categories of

observed repetitions in discourse. It is hence not to be understood as a prerequisite for discourse, a prior

possession attributable in identical form to both speaker and hearer. Its forms are not fixed templates but emerge

out of face-to-face interaction in ways that reflect the individual speakers‟ past experience of these forms, and

their assessment of the present context, including especially their interlocutors, whose experiences and

assessments may be quite different.” (HOPPER, 1998, p. 156).

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A gramática emergente é entendida como um conjunto de parcelas cujo estatuto vai

sendo constantemente negociado na fala, não podendo, em princípio, ser separada das

estratégias de construção do discurso (cf. HOPPER, 1988). Ou seja, do ponto de vista da

evolução da língua, novas expressões e arranjos na ordenação vocabular são criados

incessantemente, portanto a gramática está num contínuo fazer-se, nunca está completa.

Como destaca Castilho (1997, p. 31), a língua é entendida como uma “atividade no tempo

real, cujas regularidades são provisórias e continuamente sujeitas à negociação, à renovação e

ao abandono.” Nessa perspectiva, as regularidades da língua são fixadas através do uso e da

repetição.

2.2 A mudança linguística na perspectiva variacionista

A Teoria da Variação e Mudança ou Sociolinguística Variacionista assume como

pressuposto básico a heterogeneidade ordenada do sistema linguístico. Admite-se, então, que

formas linguísticas em variação podem ser descritas e explicadas em todos os níveis

(fonológico, morfológico, sintático, semântico-pragmático) de forma regular e motivada pela

inter-relação de fatores linguísticos e extralinguísticos. Como postula Labov (1972, p. 2):

A contribuição de forças internas, estruturais, para a efetiva difusão das

mudanças linguísticas [ ] deve ser naturalmente o foco de atenção de qualquer

linguista que esteja investigando esses processos de propagação e regularização.

No entanto, uma abordagem que considera apenas as pressões estruturais

dificilmente pode contar a história toda. Nem todas as mudanças são altamente

estruturadas, e nenhuma mudança acontece num vácuo social. Até mesmo a

mudança em cadeia mais sistemática ocorre num tempo e num lugar específicos,

o que exige uma explicação.6

Outro pressuposto central do modelo variacionista é a inter-relação entre mudança e

variação: a mudança pressupõe a variabilidade, ou seja, a concorrência de duas ou mais

formas durante um período, até que uma forma predomine sobre a outra. Nos termos de

Weinreich, Labov & Herzog (1968, p. 188), “nem toda variabilidade e heterogeneidade na

6“The contribution of internal, structural forces to the effective spread of linguistic changes [...] must naturally

be of primary concern to any linguistic who is investigating these processes of propagation and regularization.

However, an account of structural pressures can hardly tell the whole story. Not all changes are highly

structured, and no change takes place in a social vacuum. Even the most systematic chain shift ocurrs with a

specificity of time and place that demands an explanation.” (LABOV, 1972, p. 2)

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estrutura linguística implica mudança; mas toda mudança implica variabilidade e

heterogeneidade.”7

Segundo a proposta de Weinreich, Labov & Herzog (1968, p. 183-187), cinco

problemas inter-relacionados devem ser resolvidos pelo pesquisador:

(i) Fatores condicionantes (constraints problem): corresponde à necessidade de se identificar

os fatores ou condições que favorecem ou restringem uma determinada mudança, com o

objetivo de predizer seu direcionamento e sua implementação.

(ii) Transição (transition problem): consiste em depreender, no uso de formas alternantes em

competição, o percurso da mudança na estrutura social, através de um continuum entre

variação e mudança. Nesse sentido, podemos destacar as seguintes constatações dos autores:

(i) todas as mudanças submetidas ao exame empírico mostraram distribuição contínua através

de sucessivas faixas etárias e (ii) entre dois estágios intermediários de uma mudança em

progresso, a variante inovadora vai se instalando de forma contínua e gradativa no sistema.

(iii) Encaixamento (embedding problem): corresponde à forma como uma mudança

linguística se encaixa no sistema linguístico e social. Neste caso, deve ser investigada a

correlação entre a mudança verificada e outras mudanças, ou seja, uma mudança operada num

determinado ponto do sistema pode repercutir em outras mudanças.

(iv) Avaliação (evaluation problem): corresponde à avaliação da variante inovadora por parte

dos membros da comunidade de fala. Diz respeito à reação subjetiva dos falantes, no sentido

de que eles podem prestigiar ou estigmatizar novas variantes linguísticas, o que pode alterar o

curso da mudança ou, até mesmo, influenciar na rejeição do processo (cf. também

LUCCHESI, 2004).

(v) Implementação (actuation problem): depende diretamente dos fatores estabelecidos como

condicionantes, visto que se refere à forma como a mudança vai se expandindo pelos

diferentes contextos linguísticos e extralinguísticos.

O problema dos fatores condicionantes será identificado no capítulo 6, quando

verificamos, na modalidade escrita, a substituição da construção ter de + infinitivo no seu

valor epistêmico por ter que + infinitivo com outros valores. Os outros problemas não se

colocam, neste estudo, para as construções modais com ter: o problema da transição depende

7 “Not all variability and heterogeneity in language structure involves change; but all change involves variability

and heterogeneity.” (WEINREICH, LABOV & HERZOG, 1968, p. 188).

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de formas alternantes em competição o que não ocorre na modalidade falada; o problema do

encaixamento depende da comparação com outras formas, como seria o caso do modal dever;

o problema da avaliação, ao que tudo indica, não requer considerar a alternância entre ter que

+ infinitivo e ter de + infinitivo, visto que não está no nível de consciência dos membros da

comunidade de fala analisada8 e o problema da implementação, por sua vez, pressupõe um

estudo em tempo real de longa duração, que extrapola os objetivos deste estudo.

O método básico proposto por Labov (1994) para o estudo da mudança linguística

compreende a combinação do tempo aparente9 com o tempo real. A mudança em tempo

aparente refere-se à análise da distribuição das variantes por diferentes faixas etárias em um

determinado estágio da língua, ou seja, numa sincronia. A estratificação por idade pode

indicar variação estável ou mudança em progresso. Se o uso de formas variantes ocorre em

cada geração de modo regular e previsível, caracteriza uma situação de variação estável. Se o

uso de uma forma inovadora for mais frequente entre os falantes mais jovens, decrescendo

nos grupos de falantes mais velhos, pode estar em progresso uma mudança na língua (cf.

LABOV, op. cit.).

O construto do tempo aparente baseia-se na hipótese “clássica” acerca da aquisição

da linguagem, ou seja, sobre da fixação do sistema linguístico adquirido pelo indivíduo. De

acordo com essa posição, os indivíduos estabilizam sua forma de falar na adolescência10

e, a

partir daí, não há mudanças linguísticas significativas no decorrer de sua vida. Evidências

contrárias a esta hipótese são demonstradas em vários estudos, como o de Hermann (1929,

apud NARO, 2003), em que foram encontrados casos em que não ocorre o congelamento do

sistema linguístico na puberdade, podendo haver, portanto, mudanças significativas no

decorrer de uma faixa etária para outra. Posição semelhante é compartilhada por Bybee

(2010), ao demonstrar que a mudança gradual de verbos plenos para auxiliares em Inglês

decorreu do uso de adultos.

De acordo com Naro (op. cit.), para se obter dados sobre a situação de uma

determinada língua, é preciso que se verifique não apenas o comportamento do indivíduo,

8 Conclusões mais seguras a respeito da avaliação em relação à variante inovadora (ter que + infinitivo)

dependeria de um controle da atitude dos falantes em relação às duas contruções modais.

9 O estudo do tempo aparente associa-se ao princípio do uniformitarismo que permite inferir, pela observação de

mudanças em curso, processos que operaram no passado (cf. LABOV, 1994).

10

Não há consenso quanto à idade em que termina a adolescência. Para Labov (2001), a adolescência vai dos 13

até os 19 anos; para Chambers (1995) vai dos 13 aos 21 anos.

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como também o da comunidade em que este se insere. Como os estudos em tempo aparente

não fornecem evidências conclusivas acerca da direção da variável numa comunidade de fala,

Labov (1994) propõe a conjugação da análise em tempo aparente com as do tempo real, seja

de longa ou de curta duração. No primeiro caso, analisam-se textos do passado em que se

registram formas alternantes, possibilitando a comparação do comportamento dessas formas

com as registradas em períodos mais recentes. No segundo caso, analisa-se o comportamento

da comunidade através do „estudo de tendência‟ (trend study) e do indivíduo através do

„estudo de painel‟ (panel study) em duas épocas distintas, separadas por um intervalo entre 12

a 50 anos (cf. LABOV, 1981). Com o objetivo de aferir o processo de gramaticalização por

que passam as construções ter de/que + infinitivo, na variedade carioca falada, realizamos um

estudo do „tipo tendência‟ que será detalhado no capítulo 4.

Convém ressaltar que os aspectos funcionais envolvidos no uso das construções

modalizadoras com ter não chegam a constituir um empecilho, para que sejam conjugados

com pressupostos sociolinguísticos. Vários trabalhos (como CASSEB-GALVÃO, 1999,

2001; NARO & BRAGA, 2001; TAVARES, 2003; PEREIRA, 2005; ALMEIDA, 2006;

OLIVEIRA, 2006; GOMES, 2006; FREITAG, 2007; FONSECA, 2010; GÖRSKI &

TAVARES, 2009, 2012, dentre outros) já demonstraram que pressupostos e procedimentos

metodológicos no tratamento empírico dos dados, de acordo com a Sociolinguística

Variacionista, podem fornecer uma explanação mais ampla e mais precisa sobre a instalação

gradual de processos de mudança linguística, principalmente, via gramaticalização.

Tanto nos estudos sobre gramaticalização (cf. HOPPER, 1987; HEINE, 1991;

HOPPER & TRAUGOTT, 1993; GIVÓN, 1995, 2001, dentre outros), quanto no modelo

variacionista (cf. LABOV, 1994; WEINREICH, LABOV & HERZOG, 2006 [1968];

LABOV, 2008 [1972]), o pressuposto da gradualidade da mudança ocupa um papel central.

Na perspectiva da gramaticalização, não é admitida uma situação de mudança em que A passe

a B diretamente, sem um estágio intermediário de coexistência entre duas formas. Na

perspectiva variacionista, de acordo com Labov (1972), a mudança linguística numa

comunidade de fala implica três estágios: inicia-se de forma lenta, visto que a forma

inovadora é usada somente por um grupo específico; nos estágios intermediários, a nova

forma passa a ser usada mais intensamente, espalhando-se por outros grupos sociais; no

estágio final, desaparece uma das variantes e a variante inovadora transforma-se em aplicação

categórica (cf. S-shaped curve, Labov, 1994). Tal convergência possibilita o duplo enfoque

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teórico em relação ao estudo das construções ter de + infinitivo e ter que + infinitivo. Outras

confluências entre os dois modelos serão discutidas na seção seguinte, em que focalizamos a

mudança por gramaticalização.

Entretanto, não podem ser ignorados alguns pontos que poderiam, em princípio,

comprometer esta interface. O primeiro deles diz respeito à concepção de gramática. Como

observam Gorski et alii (2003), as abordagens funcionalistas, pelo menos na sua versão

representada pelas correntes americanas, e a variacionista distinguem-se no que tange à

concepção de gramática. Para Weinreich, Labov & Herzog (2006 [1968]), embora não sejam

excluídos aspectos funcionais, a noção de sistema e estrutura é central, sendo a língua regida

por regras (in)variáveis vistas como elementos estruturais. Por outro lado, para os

funcionalistas, como Givón (1995), por exemplo, a função é prioritária e determinante da

estrutura e as gramáticas são maleáveis e emergentes por natureza. Assim, motivadas pela

situação comunicativa e pela função cognitiva (cf. Givón, op. cit.), novas funções para formas

já existentes estão sempre emergindo (cf. HOPPER, 1991).

O segundo ponto, decorrente do primeiro, envolve a relação entre forma, significado

e função. Em princípio, a alternância entre as construções modais com ter não se enquadra no

sentido estrito de variação linguística, ou seja, duas ou mais formas de se dizer a mesma coisa

no mesmo contexto, de acordo com a definição de variantes proposta por Labov (2008

[1972]), que se aplica sem problemas a variáveis fonológicas. Labov (1978) confirma essa

definição através do princípio de equivalência semântica, ou seja, se dois enunciados se

referem ao mesmo estado de coisas, têm o mesmo valor de verdade. Por outro lado, Naro &

Scherre (2006, p. 242) enfatizam que, no estudo de variáveis linguísticas não-fonológicas,

[ ] há distinção semântica parcialmente significativa entre formas alternativas.

Assim, do ponto de vista variacionista, não estamos lidando com casos de

variação clássica, nos quais se pressupõe equivalência semântica das formas

variantes em todos os contextos.

Portanto, o princípio da equivalência semântica pode ser discutido no que se refere a

fenômenos que envolvem variantes acima do nível fonológico, como as de natureza

morfossintática, semântica e discursiva. Por isso, Lavandera (1978) sugere a ampliação do

critério de „mesmo significado‟ para comparabilidade funcional, visto que variantes

semântico-discursivas, por exemplo, apresentam a mesma função comunicativa, mas não

necessariamente o mesmo significado. Nichols (1984), considerando o papel discursivo das

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formas linguísticas, vai um pouco além e expande a noção de mesmo significado para mesma

função. De acordo com esta formulação, os propósitos comunicativos dos falantes interferem

na escolha das variantes e a função/significado das formas é depreendida do contexto

discursivo. Se considerarmos que especificidades funcionais ou comunicativas de uma ou

outra forma podem ser controladas numa análise variacionista, é possível alargar o conceito

de variável linguística, como já mostraram diversos trabalhos (cf. WEINER & LABOV,

1983; LAVANDERA, 1984; NARO, 1998; BRAGA, 2003; PAREDES SILVA, 2003,

PAIVA & DUARTE, 2006; GÖRSKI & TAVARES, 2012, dentre outros).

A aplicabilidade de métodos variacionistas é ainda mais delicada no que se refere a

mudanças por gramaticalização, fenômeno que não envolve propriamente uma alternância

entre duas formas, mas sim alterações categoriais e semânticas da mesma forma. No entanto,

é preciso considerar que a forma inovadora que surge na língua, decorrente do processo de

gramaticalização, não descarta, necessariamente, a já existente e pode passar a coexistir com

aquela, de acordo com o princípio da estratificação proposto por Hopper (1991). Esse

princípio pode ser aplicado à forma ter que + infinitivo que passa a coexistir com a forma ter

de + infinitivo, pressupostamente mais antiga. Assim, as construções modais com ter, quando

inseridas no mesmo domínio funcional modal, constituem, portanto, formas alternantes de

uma mesma variável.

Numa versão funcionalista mais forte do princípio da iconicidade, formas diferentes

possuem funções diferentes, ou seja, servem a objetivos comunicativos distintos. De acordo

com esse princípio (cf. BOLINGER, 1977; GIVÓN, 1995), há uma relação natural entre uma

forma e uma função (um-para-um), o que anularia, portanto, qualquer possibilidade de

variação entre as construções com ter, visto que elas não poderiam desempenhar a mesma

função semântico-discursiva. No entanto, assumindo uma versão mais branda desse princípio,

admitimos que a relação entre forma-função pode se tornar opaca, em consequência do

processo de gramaticalização, possibilitando a ocorrência de variação entre as duas

construções no domínio deôntico, ou seja, a coexistência de duas formas que expressam a

mesma função. Nos termos de Freitag e Gonçalves (2011):

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29

Em uma situação real de uso linguístico é preciso admitir a arbitrariedade na

codificação linguística, uma vez que a iconicidade do código linguístico está

sujeita às pressões que atuam tanto na forma, afetando o código/estrutura, quanto

na função, afetando a mensagem: o código sofre constante erosão decorrente de

atrito fonológico, e a mensagem sofre alterações em virtude da elaboração

criativa do falante. Tais pressões geram ambiguidade de código (polissemia),

com uma forma e várias funções, e de mensagem, várias formas e uma função

(variação). (FREITAG & GONÇALVES, 2011, p. 92).

Os autores discutem duas possiblidades que podem direcionar mudanças por

gramaticalização: da forma para a função e da função para a forma. Mostram que essas duas

direções não se excluem, mas, ao contrário, podem ser conjugadas, de forma a obter análises

mais confiáveis, principalmente quando se analisam amostras sincrônicas. Na análise das

construções modais com ter, consideramos as duas dimensões, visto que são investigadas a

possibilidade de alternância entre ter que + infinitivo e ter de + infinitivo e as diferentes

funções que essas construções vão adquirindo na sua trajetória de gramaticalização.

2.3 Mudança por gramaticalização

A gramaticalização é reconhecida como o processo de mudança linguística em que

itens ou construções menos gramaticais passam, em determinados contextos, a desempenhar

funções mais gramaticais e, uma vez gramaticalizados, podem continuar a desenvolver novas

funções gramaticais (cf. HEINE, CLAUDI & HÜNNEMEYER, 1991; BYBEE, PERKINS &

PAGLIUCA, 1994; RAMAT & HOPPER, 1998; HOPPER & TRAUGOTT, 2003, dentre

outros).

O termo gramaticalização, usado para se referir à atribuição de um caráter

gramatical a um termo outrora autônomo, remonta a Meillet (1912). Na perspectiva de

Kurylowicz (1965, apud LEHMANN, 1982), esse processo de mudança pode ser entendido

como uma ampliação dos limites de um morfema, cujo estatuto gramatical avança do léxico

para a gramática. O desenvolvimento de auxiliares nas línguas humanas constitui um exemplo

prototípico desse processo (cf. BYBEE, PERKINS & PAGLIUCA, 1994; RIGONI COSTA,

1995; RIBEIRO, 1996; ALMEIDA, 2006; PEIXOTO, 2006, dentre outros). Auxiliares de

tempo, aspecto ou de modalidade derivam de verbos lexicais (verbos plenos) e, na medida em

que se gramaticalizam, migram de uma classe aberta para uma classe fechada.

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Segundo Hopper & Traugott (2003), a gramaticalização pode ser concebida sob duas

perspectivas: diacrônica e sincrônica. Na primeira, são investigadas as origens das formas

gramaticais e a trajetória das mudanças que as afetam. Nessa dimensão, a gramaticalização

corresponde a um processo de mudança linguística por meio do qual um item lexical, em

determinados contextos, torna-se gramatical, ou seja, passa a exercer uma função gramatical,

e, a partir daí, pode passar a adquirir novas funções gramaticais. Na segunda, a

gramaticalização é considerada um fenômeno sintático, discursivo-pragmático, visto que

envolve padrões fluidos de uso linguístico. As evidências acumuladas em diferentes estudos

(como em KUTEVA, 2001) mostram que uma visão pancrônica, combinando as duas

perspectivas, permite maior generalização acerca das mudanças por gramaticalização.

As mudanças por gramaticalização são motivadas por aspectos envolvidos na

comunicação, portanto funcionais. Seguindo Heine (2003), podemos dizer que uma das

estratégias de que o falante dispõe para a criação de novas formas gramaticais é a utilização

de formas linguísticas de sentido concreto, facilmente acessíveis, e/ou claramente

delimitáveis, para expressar significados menos concretos, menos acessíveis e menos

delineáveis. Assim, a gramaticalização é um processo pelo qual expressões de significado

concreto (formas-fontes) são usadas em contextos específicos para a expressão de significados

gramaticais (formas-alvos). Daí decorre uma das principais premissas associadas aos

processos de gramaticalização: a unidirecionalidade da trajetória: léxico > gramática, ou seja,

[+concreto > +abstrato] (cf. HOPPER & TRAUGOTT, 2003), entendida como um processo

irreversível, que só pode desenvolver-se da esquerda para a direita, ou seja, assume-se,

basicamente, que um estágio A pode propiciar um estágio B, e não o contrário.

O estudo da gramaticalização de diferentes auxiliares atesta a validade dessa

hipótese.11

Heine & Kuteva (2007), por exemplo, mostram que o uso do item used em Inglês,

na indicação de ação física, isto é, como verbo lexical (como em He used all the money), é

mais antigo do que o seu emprego como indicador de aspecto habitual (como em He used to

come on tuesday). Mais especificamente, no domínio da modalidade, Casseb-Galvão (1999)

detecta, no Português brasileiro atual, uma escala de mudança desenvolvida pelo verbo achar.

A partir de seu uso como verbo pleno (com o sentido de encontrar, procurar, descobrir), este

verbo passa a se comportar, em determinados contextos, e em graus variados, como uma

11

Embora o princípio de unidirecionalidade seja colocado em causa por autores como Campbell (2001),

Newmeyer (1998) e Janda (2001), não são atestados, por exemplo, casos de desenvolvimento de verbos plenos a

partir de auxiliares.

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espécie de advérbio modalizador epistêmico quase-asseverativo, posicionando-se fora da

estrutura sentencial (com o sentido de talvez, provavelmente), como em são ... tribos assim

que têm mais ou menos a mesma estrutura... todos no Alto Xingu eu acho (cf. CASSEB-

GALVÃO, 1999, p. 94). Neste caso, o uso de achar é mais abstrato, portanto, mais

gramaticalizado. Um percurso semelhante pôde ser observado por Gonçalves (2003) no uso

do verbo parecer no PB contemporâneo. O autor identifica cinco usos possíveis desse verbo:

como predicado verbal (verbo pleno), como suporte de predicação/operador modal, como

predicado de atitude proposicional, e, com valores semânticos epistêmico e evidencial, há,

ainda, o quase-satélite atitudinal e o satélite atitudinal de natureza adverbial que corresponde

ao estágio mais gramaticalizado. Nesse estágio, o verbo parecer é usado sem o

complementizador que e situa-se fora da estrutura da predicação, podendo ocorrer em

posições iniciais, mediais ou finais, como em a filha do Osvaldo ... nesse tempo meu genro

era... vereador.... parece (GONÇALVES, op. cit. p. 125).

Seguindo a trajetória [+concreto > +abstrato], é particularmente produtivo, nas

línguas humanas, o recrutamento de itens lexicais ligados ao domínio de posse para a

expressão de significados [-concretos], dentre eles o de modalidade, como mostram os

estudos de Heine (1993) e Krug (2000) para o Inglês, Izquierdo (2006) para o Espanhol e o

processo de gramaticalização de ter no PB (PEIXOTO, 2006, por exemplo). Como detecta

Heine (1993, p. 34), a forma have proporcionou um modelo conceptual tanto para a

gramaticalização da categoria de aspecto (como em They have left) como para a categoria

funcional de modalidade deôntica (como em They have to pay).

Numa perspectiva um pouco diferente, Givón (1971) propõe que a gramaticalização

é um processo cíclico, para dar conta do fato de que a erosão fonética de uma forma pode

levar ao surgimento de novas formas, que, por sua vez, podem seguir a trajetória: Discurso >

Sintaxe > Morfologia > Morfofonêmica > Zero. Heine (2003) discute a ciclicidade, afirmando

que, embora ela possa ser, frequentemente, observada, não é uma propriedade nem necessária

nem suficiente no processo de mudança por gramaticalização. O autor (op. cit.) ressalta que

há muitos exemplos que sugerem que as formas gramaticais que perdem suas funções e/ou

substância fonética não são necessariamente substituídas por novas formas.

Segundo posições mais recentes, processos de gramaticalização operam não

propriamente sobre itens lexicais, mas sobre construções. Como enfatiza Lehmann (2002, p.

7) “não se pode propriamente dizer que um dado elemento é gramaticalizado ou lexicalizado.

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Ao invés disso, é a construção na qual o elemento é um constituinte que pode iniciar o

processo.” 12

Tal posição é formulada claramente por Hopper & Traugott (2003), para quem

A trajetória não é diretamente de um item lexical para a morfologia. Ao invés

disso, itens lexicais ou sintagmas começam a ser usados em certos contextos

restritos e passam a ser reanalisados com funções sintáticas e morfológicas.

Esquematicamente, isto pode ser caracterizado como: item lexical usado em

contextos linguísticos específicos > sintaxe > morfologia. (HOPPER &

TRAUGOTT, 2003, p. 99-100).13

Assim, a gramaticalização opera sobre toda a construção constituída por um

determinado elemento, envolvendo, portanto, suas relações sintagmáticas (cf. também

BYBEE, PERKINS & PAGLIUCA, 1994). O fenômeno analisado neste estudo é exemplar,

visto que o que se gramaticaliza não é o verbo ter, mas o verbo ter numa determinada

configuração estrutural que requer a ocorrência de um elemento (de ou que) e de uma forma

verbal no infinitivo, o que pode ser formalizado como [V1terfin. + {de/que} + V2inf.].

A trajetória unidirecional de um item lexical ou de uma construção em direção à

gramática é acompanhada por diferentes mecanismos, que, embora não sejam específicos dos

processos de gramaticalização, juntos, são responsáveis por ela, ou seja, são diferentes

componentes de um mesmo processo geral de mudança. Heine (2003) e Heine & Kuteva

(2007) mostram que esses mecanismos atingem diferentes níveis da língua:

(i) No nível pragmático – pela extensão14

(ou generalização de contextos).

Motivada por fatores pragmáticos, gradualmente, a nova forma (ou construção) pode

ser usada em novos contextos onde não podia ser usada anteriormente e a implementação

desses novos usos é impulsionada por um aumento na sua frequência (cf. HAIMAN, 1991;

BYBEE, PERKINS & PAGLIUCA, 1994; KRUG, 2000; BYBEE, 2003). Um exemplo

12 “One cannot properly say that a given element as such is grammaticalized or lexicalized. Instead, it is the

construction of which the element is a constituent which may embark on either course.” (LEHMANN, 2002, p.

7). 13 “The path is not directly from lexical item to morphology. Rather, lexical items or phrases come through use in

certain highly constrained local contexts to be reanalyzed as having syntactic and morphological functions.

Schematically, this can be characterized as: lexical item used in specific linguistic contexts > syntax >

morphology.” (HOPPER & TRAUGOTT, 2003, p. 99-100).

14

Heine (2003, p. 579) explica que adaptou o termo “extensão” de Harris & Campbell (1995).

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bastante claro de extensão é discutido por Krug (2000) para o modal have to em Inglês. O

autor constata que a expressão idiomática have to say/tell exerceu um papel importante na

modalização de have to, decorrente do seu desbotamento semântico ou perda do seu

significado de posse. Com os verbos de dizer, os falantes podem ser compelidos a dizer algo,

seja por uma força externa (no caso de mensagens escritas, por exemplo, por uma força

imposta pelo remetente) ou por uma força interna (como a consciência do falante).

Gradualmente, o sentido de obrigatoriedade se expande para outros contextos.

(ii) No nível semântico – através da dessemantização (ou bleaching, redução

semântica, desbotamento semântico).

A dessemantização resulta da reinterpretação de significados concretos como

significados abstratos em contextos específicos. Caracteriza-se pela perda (ou generalização)

de conteúdo semântico. Inicia-se se em contextos específicos, depois se generaliza para outros

contextos, caso da extensão.15

A extensão relaciona-se diretamente com a dessemantização, visto que, em geral, a

ampliação de contextos de uso de uma determinada forma na direção de usos mais

gramaticais envolve o desenvolvimento de novos sentidos e um obscurecimento do sentido

original.

(iii) No nível morfossintático, devido à decategorização (ou mudança categorial).

A decategorização corresponde à perda de propriedades morfossintáticas das formas

de origem (lexicais). Formas em processo de gramaticalização tendem a perder ou a

neutralizar as marcas morfológicas e as propriedades sintáticas das categorias plenas de Nome

e Verbo e a assumir atributos característicos das categorias secundárias, tais como adjetivo,

particípio, preposição etc. Perdem, portanto, o status de palavra independente, através da

redução da liberdade sintática, como ocorre com a cliticização e a afixação. (cf. HOPPER,

1991; HOPPER & TRAUGOTT, 2003).

15

Por exemplo: mente (nome:boa mente) > -mente (sufixo de advérbio de modo).

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A decategorização pode se atualizar em processos de gramaticalização de modais,

frequentemente, pela redução paradigmática e com o uso mais gramaticalizado restrito a

contextos morfossintáticos específicos. Um exemplo ilustrativo é fornecido pela

gramaticalização da construção diz que, focalizada por Casseb-Galvão (2001, 2004, 2007). A

trajetória de diz que de predicado matriz para operador evidencial, como em diz que em

Jundiaí também enterravam... (CASSEB-GALVÃO, 2001, p. 7), é impulsionada pela terceira

pessoa do singular do presente do indicativo, indicando a perda da variabilidade morfológica.

No nível fonético, pode ocorrer a erosão (ou redução fonética), como em going to →

gonna em Inglês e você → ocê/cê em Português. Esse processo caracteriza-se pela perda de

substância fonética devido à frequência de uso. Constitui um processo comum de mudança

linguística em geral e não uma propriedade necessária da gramaticalização.

Heine (2003) propõe que a ordem desses mecanismos reflete a sequência diacrônica:

a gramaticalização tende a começar com a extensão, que desencadeia a dessemantização e,

subsequentemente, a decategorização e erosão. Ainda, segundo o autor, cada um dos quatro

mecanismos apresentados acima possibilita uma evolução que pode ser descrita em termos de

um modelo em três estágios, chamado modelo overlap: A > A, B > B que pode ser entendido

da seguinte forma: (i) uma expressão linguística A é recrutada a ser gramaticalizada; (ii) A

adquire um outro padrão de uso B, apresentando ambiguidade entre A e B; (iii) A desaparece

e B torna-se a forma usada. Uma questão discutível é uma relação de causa-efeito entre essas

etapas. De acordo com Traugott (2003), o processo de subjetivização, que implica em

dessemantização, pode estar relacionado com a gramaticalização de uma construção, mas não

necessariamente. Como são dois processos independentes, pode ser que não ocorra, portanto,

a relação de causa-efeito.

Castilho (1997) apresenta um exemplo da atuação desse modelo, na história do

Português, através da morfologização do auxiliar de tempo futuro habeo:

O processo parece ser desencadeado por uma sorte de competição entre essas

formas. Assim, o Futuro Latino amabo, ele mesmo fruto da afixação de um

antigo verbo IDE, *bho “vou”, passou a sofrer concorrência de amare habeo,

uma perífrase que de início codificava Modo, com a idéia de obrigatoriedade. É

de supor-se que durante algum tempo a forma simples, que poderíamos

representar por A, sofreu a competição da perífrase, que poderíamos representar

por B, até que esta última acabou por suplantar a primeira, num ritmo que

poderia ser assim notado: A > A/B > B. (CASTILHO, 1997, p. 35).

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Como observa Heine (2003), nem todos os exemplos de gramaticalização alcançam o

estágio B, visto que o processo pode parar no estágio A/B. No entanto, uma vez que o estágio

B é alcançado, B torna-se uma nova categoria gramatical.

A gramaticalização de um item lexical em elemento gramatical não significa,

necessariamente, que a forma lexical desapareça, instaurando-se o que Hopper (1991) e

Hopper & Traugott (2003) denominam divergência, visto que um mesmo item lexical

autônomo pode se gramaticalizar em um contexto, mas não em outros. Deste modo, quando

uma forma lexical se gramaticaliza, a forma lexical original pode permanecer como um

elemento lexical autônomo e sofrer outras mudanças, como um novo processo de

gramaticalização. Assim, por exemplo, a gramaticalização de used como auxiliar aspectual

não tem nenhuma consequência na estrutura lexical do Inglês, visto que essa forma mantém

sua produtividade como verbo pleno (cf. HEINE & KUTEVA, 2007). De forma semelhante, a

gramaticalização das construções modais com ter, no Português, em que o verbo ter passa a

funcionar como auxiliar modal, não afetou a sua disponibilidade como verbo pleno, ou seja, a

sua atuação na codificação original de posse.

Um outro princípio proposto por Hopper (1991) e Hopper & Traugott (2003)

denomina-se estratificação (layering) que corresponde à coexistência de formas com função

similar, em um mesmo domínio funcional amplo. Nesse processo, as camadas mais antigas

não são necessariamente descartadas, mas podem continuar a coexistir e a interagir com as

camadas mais novas. É nesse sentido que pode se instalar a variação, como destacam diversos

autores (como CASTILHO, 1997, TAVARES, 2003; GÖRSKI & TAVARES, 2012), ou seja,

a gramaticalização pode propiciar variação linguística, convergindo, portanto, os pressupostos

teóricos da teoria da variação e da gramaticalização. Assim, a coexistência de formas com a

mesma função pode ser entendida como “coexistência de variantes linguísticas” (CASSEB-

GALVÃO & LIMA-HERNANDES, 2007, p. 165) ou “variantes estilísticas” (GONÇALVES,

2003, p. 217).

Podemos exemplificar o princípio da estratificação com as construções modais com

ter. No domínio funcional da modalidade ou variável dependente em termos variacionistas,

temos a convivência de ter de + infinitivo com ter que + infinitivo. A forma considerada mais

antiga (ter de + infinitivo) não foi descartada pela emergência de ter que + infinitivo, visto

que a estratificação prevê um período de transição em que convivem as duas

camadas/variantes. Como admitem Hopper & Traugott (2003), as formas mais antigas e as

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mais novas coexistem tanto na fala dos indivíduos como na comunidade e essa convivência

pode resultar em mudança a curto prazo ou perdurar durante séculos.

Essa possibilidade de re-interpretação de camadas em termos de variantes

linguísticas acrescenta outros argumentos para uma análise que conjuga pressupostos teóricos

da Sociolinguística Variacionista e da Teoria da Gramaticalização, como já discutido na seção

2.2. Convém destacar, no entanto, que, embora mudança e variação sejam contempladas tanto

no funcionalismo quanto no variacionismo, há um viés que distingue as duas visões teóricas:

os estudos de gramaticalização têm por objeto o percurso de mudança de uma forma – a

variação aparece como pano de fundo. Os estudos variacionistas têm por objeto a coexistência

de formas com um mesmo significado, cuja variação pode ser resolvida pela mudança. O que

as diferencia é o ponto focal: história de uma forma ou coexistência e concorrência de formas

em dado momento de sua evolução. Se considerarmos, porém, que os dois aspectos

constituem faces distintas do mesmo problema, a aparente contradição se desfaz. Para tanto,

basta assumirmos três princípios centrais da teoria da variação propostos em Weinreich,

Labov & Herzog (2006 [1968]) e retomados em Labov (2008 [1972], 1994): (i) não existe

mudança sem variação; (ii) toda mudança se instala na língua de forma gradual e (iii) a

progressão de qualquer mudança é controlada estrutural e socialmente. Os estudos sobre

variação e sobre gramaticalização convergem quanto a esses três postulados.

Como já proposto por vários autores (cf. BYBEE, 1994, 1999, 2001, 2003; KRUG,

1999; BYBEE & HOPPER, 2001; HOPPER & TRAUGOTT, 2003, dentre outros), um ponto

central nos estudos sobre gramaticalização diz respeito à importância da frequência de uso das

formas que se submetem a esse processo. De acordo com Bybee & Hopper (2001) e Bybee

(2003), os processos de gramaticalização implicam o aumento da frequência de uso de uma

forma ou construção, devido à sua expansão nos contextos em que ela é empregada, ou seja,

quando uma determinada forma se repete em um contexto, ela vai ampliando a sua frequência

em outros contextos. Bybee (2003) propõe a análise da frequência de uma determinada forma

em dois níveis: frequência de uso (token frequency) e frequência de tipo (type frequency). A

primeira corresponde à frequência de um item, geralmente uma palavra ou morfema, em um

determinado corpus (oral ou escrito); a segunda refere-se à frequência de um padrão particular

no léxico (ou dicionário). Como itens/construções gramaticalizados tendem a ser usados em

contextos cada vez mais amplos, tendem a aumentar sua frequência de token e de type.

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Bybee & Hopper (2001), por exemplo, enfatizam que o uso recorrente de uma forma

ou de uma construção acarreta sua automatização e quanto mais automatizada, mais

cristalizada, ou seja, há maior possibilidade de um elemento se juntar ao outro, formando uma

única estrutura.

Bybee & Pagliuca (1985) esclarecem que os usos de formas tendem a ser mais

frequentes, quando se submetem à gramaticalização, portanto, a recorrência de um item é uma

consequência do processo de gramaticalização e não um motivador de sua instauração. Nesse

sentido, Bybee (2003) enfatiza que, embora a frequência deva ser um critério essencial no

desenvolvimento de novas formas gramaticais, esse critério não é suficiente para determinar a

gramaticalização de uma forma ou construção.

Outro aspecto que se relaciona ao aumento da frequência de uso de uma forma

refere-se ao princípio de especialização proposto por Hopper (1991). De acordo com esse

princípio, uma das formas pertencentes ao mesmo domínio funcional pode tornar-se mais

frequente, portanto mais gramaticalizada e mais especializada para codificar determinada

função. Por exemplo, a forma como as construções ter de + infinitivo e ter que + infinitivo

codificam diferentes funções pode ocasionar a ocorrência de uma delas em contextos

específicos. Assim, devido à alta frequência de uso da construção ter que + infinitivo na

modalidade falada, pode estar sugerindo a sua especialização em um determinado domínio

modal.

2.3.1 Mudança semântica e subjetivização

O esquema de gramaticalização proposto por Heine (2003) e Heine & Kuteva (2007),

discutido em 2.3., prevê perda de propriedades de um item lexical na sua trajetória em direção

a uma forma gramatical, o que remete para um problema central nos estudos sobre

gramaticalização, qual seja o da pressuposição de dessemantização da forma fonte.

Heine (2003) argumenta, no entanto, que, proporcionalmente à perda de algumas

propriedades, os itens ou construções gramaticalizados ganham outras propriedades

características de seus novos usos em outros contextos. Ainda, segundo Heine (op. cit., p.

591), a controvérsia em torno desta questão resulta em três modelos distintos e, em muitos

aspectos, complementares:

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a) modelo de enfraquecimento semântico (bleaching model): as formas gramaticalizadas

sofrem uma perda do conteúdo semântico. Por exemplo, nomes e verbos perdem a maior parte

ou seu significado lexical, quando convocados para o exercício de funções gramaticais. Os

defensores do modelo de bleaching demonstraram que todos ou, pelo menos, muitos dos

exemplos de gramaticalização podem ser descritos em termos de mudança semântica por

meio da qual um componente de significado A é perdido, enquanto o segundo componente B

é retido. Este modelo pode assim ser esquematizado: AB > B.

b) modelo de perdas e ganhos (loss-and-gain model): a perda de alguns aspectos semânticos é

compensada por ganhos. Por exemplo, quando um verbo de movimento, como ir, se

desenvolve num marcador de tempo futuro, perde-se o movimento semântico físico. Ao

mesmo tempo, entretanto, o domínio semântico mais abstrato de tempo é acrescentado, por

meio do qual o verbo de movimento adquire um novo sentido de predição ou futuridade. Os

adeptos desse modelo (como TRAUGOTT, 1980, 1988; SWEETSER, 1990) sustentam que,

enquanto um componente de significado A se perde, outro componente C é acrescido, o que

resulta em uma estrutura como AB > BC.

c) modelo de implicatura (implicature model): baseia-se no pressuposto de que a

gramaticalização pode não somente envolver a adição de um novo componente, mas também

a perda do componente original. Um exemplo prototípico conhecido é a partícula de negação

pas em francês. Originada do nome pas (passo), desenvolveu-se no marcador descontínuo

ne...pas do Francês moderno. Em alguns usos modernos, ne cai e pas passa a constituir o

único marcador de negação, como em Je ne sais pas > Je sais pas. Aparentemente, não há

qualquer relação de significado entre a forma original pas (passo) e a partícula de negação.

Tal modelo pode ser assim esquematizado: AB > BC > CD.

Enquanto o modelo de implicatura oferece uma boa base teórica para a compreensão

do desenvolvimento de formas gramaticais, existem muitos exemplos de gramaticalização que

sugerem que o modelo de bleaching é o mais básico e constitui a condição sine qua non para

a ocorrência da gramaticalização (cf. HEINE, 2003). O que é indiscutível é que a emergência

de novos significados requer contextos específicos e pode ser descrita em termos de

inferência pragmática, enriquecimento pragmático, reforço, ou implicaturas conversacionais

(cf. HOPPER & TRAUGOTT, 2003; HEINE, 2003), ou reinterpretação contextualmente

induzida (context-induced reinterpretation) nos termos de Heine (2003). Essa reinterpretação

é explicada por Heine (op. cit.) através de dois modelos: o modelo de transferência (transfer

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model), que enfatiza a ação dos processos metafóricos e o modelo contextual (context model),

que enfatiza a operação de processos metonímicos.

Segundo o modelo de transferência, conceitos são metaforicamente transferidos de

domínios mais concretos para domínios menos concretos da experiência humana. De acordo

com Hopper (1991) e nos termos de Hopper & Traugott (2003, p. 84). “processos metafóricos

são processos de inferência entre fronteiras conceituais e são tipicamente referidos como

“mapeamentos” ou “saltos associativos” de um domínio para outros. Esse mapeamento não é

aleatório, mas motivado por analogia e relações icônicas.”16

Associada a processos de

dessemantização, a metáfora envolve a abstratização de significados os quais, de domínios

lexicais ou menos gramaticais, são estendidos metaforicamente, para mapear conceitos de

domínios gramaticais ou mais gramaticais. Na atuação desse mecanismo é que se identifica o

chamado bleaching semântico da forma-fonte que se torna mais gramatical. De acordo com

Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991), os verbos auxiliares que funcionam como marcadores

das categorias gramaticais de tempo, aspecto e modalidade são exemplos prototípicos de

gramaticalização impulsionada por transferência metafórica.

Segundo a perspectiva de Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991) e Heine (2003), o

processo de transferência metafórica obedece a uma escala igualmente unidirecional, em

direção a uma abstração crescente, que pode ser assim descrita:

PESSOA > OBJETO > ATIVIDADE > ESPAÇO > TEMPO > QUALIDADE17

[+concreto] ⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨ ⇨[-concreto]

Essa mesma concepção pode ser aplicada no desenvolvimento de elementos

organizadores do universo discursivo18

, pressupondo-se, de acordo com Heine, Claudi &

Hünnemeyer (1991), que esses elementos se originam, geralmente, de itens que indicam

espaço [+concreto] e passam por um estágio intermediário no qual podem indicar tempo,

para, finalmente, se investirem de funções textuais, como mostra a escala:

16

“Metaphorical processes are process of inference across conceptual boundaries and are tipically referred to in

terms of “ mappings” or “associative leaps” from one domain to another. The mapping is not random, but

motivated by analogy and iconic relationships. ”(HOPPER & TRAUGOTT, 2003, p. 84)

17

“PERSON > OBJECT > ACTIVITY > SPACE > TIME > QUALITY” (HEINE et al., 1991, p. 48).

18

Caso dos operadores argumentativos (como assim, então), que, nos termos de Martelotta, “além de

desempenhar funções de caráter basicamente gramatical, dão uma orientação argumentativa ao discurso”

(MARTELOTTA, 1996, p. 194).

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40

espaço > (tempo) > texto19

Essa trajetória implica que qualquer elemento da escala pode conceptualizar um

elemento a sua direita.

O modelo contextual está relacionado a diversas noções básicas, como

reinterpretação contextualmente induzida, inferência pragmática, implicatura

conversacional, metonímia e outros. De acordo com esse modelo, os processos de

gramaticalização envolvem extensões e a convencionalização de inferências autorizadas pelo

contexto. Em outros termos, a associação de significados é baseada na contiguidade

(metonímia) e consiste na transição gradual e contínua de um significado a outro por meio da

reinterpretação contextual, ou seja, é construída no mundo discursivo. Por operar no eixo

sintagmático, o processo metonímico pode desencadear uma reanálise estrutural (cf. HEINE,

CLAUDI & HÜNNEMEYER, 1991), uma questão que focalizaremos com mais detalhes na

seção seguinte.

No modelo contextual é enfatizado o componente pragmático da gramaticalização,

entendido que esse processo ocorre em determinados contextos apropriados e,

subsequentemente, acarreta um aumento nos contextos de uso do item/construção em

processo de gramaticalização, levando, assim, a um aumento de sua frequência (cf. BYBEE,

2003).

Os dois modelos de explicação da mudança semântica não se excluem

necessariamente e podem estar presentes em fases diferentes de um processo de

gramaticalização. No caso da gramaticalização de diz que como evidencial, por exemplo,

Casseb-Galvão (2001) mostra que a transferência metafórica acionou o processo polissêmico

inicial e causou alterações no eixo paradigmático; a partir disso, a metonímia provocou

alterações no eixo sintagmático e fez gerar um novo significado gramatical no domínio

evidencial. Em outros termos, no desenvolvimento de diz que como operador evidencial de

mito (cf. CASSEB-GALVÃO, op. cit.), ocorreu a dessemantização da forma fonte, a partir da

transferência conceptual do mundo real [+concreto] para o mundo do discurso [+abstrato]. É

esta possibilidade de atuação combinada desses dois procedimentos que levam Heine, Claudi

& Hünnemeyer (1991) a propor o modelo metonímico-metafórico de gramaticalização,

conjugando as duas explicações como partes integrais do mesmo mecanismo.

19 “space > (time) > text” (HEINE et al., 1991, p. 182).

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41

Traugott (1982) sugere a seguinte trajetória unidirecional de mudança: proposição >

(texto) > expressão. A autora (1989, 1990) propõe, ainda, que a mudança de significado, além

de basear-se em ocorrências textuais, baseia-se, também, em significados oriundos da atitude

ou crença do falante sobre o que é dito, demonstrando que esse tipo de mudança faz parte de

um mecanismo mais amplo de mudança semântica em geral. Deste modo, Traugott (1989)

reconhece que a transferência metafórica não pode ser generalizada para todos os casos de

mudança por gramaticalização. Embora alguns processos, como o desenvolvimento de

marcadores de tempo, aspecto etc envolvam, principalmente, inferência metafórica (cf.

BYBEE & PAGLIUCA, 1985; SWEETSER, 1988; TRAUGOTT & KÖNIG, 1991, dentre

outros), certos tipos de mudança semântico-pragmática envolvem reforço da informação e/ou

convencionalização de inferências conversacionais, ou seja, só podem ocorrer por inferências

contextuais (cf. TRAUGOTT & KÖNIG 1991).

Krug (2000) discute a aplicação do modelo metafórico na gramaticalização dos

modais, principalmente no domínio epistêmico, considerando que,

[ ] embora a metáfora seja um conceito cognitivamente atrativo que se tornou

corretamente um princípio explanatório importante nas correntes linguísticas

dominantes e nas ciências cognitivas em geral, não parece ser o principal fator

no desenvolvimento dos significados epistêmicos dos verbos e construções

modais. (Krug 2000, p. 102)20

A posição do autor (op. cit.) vai ao encontro a de Traugott (1989, p. 34-35) para quem

a gramaticalização de modais pode ser explicada a partir de três tendências semântico-

pragmáticas inter-relacionadas e mais gerais de mudança semântica:

Tendência I: significados baseados em uma descrição de situação externa >

significados baseados em situação interna (avaliação/percepção/cognição).21

Essa tendência pode apresentar dois desdobramentos: OBJETO > ESPAÇO e

ESPAÇO > TEMPO em que ocorre a transferência metafórica de [+concreto] para

20 “[ ] while metaphor is a cognitively appealing concept that has rightly become an important explanatory

principle in mainstream linguistics and the cognitive sciences in general, it does not seem to be the prime factor

in the development of epistemic meanings of modal verbs and modal constructions.” (KRUG, 2000, p. 102).

21

“Tendency I: meanings based in the external described situation > meanings based in the internal

(evaluative/perceptual/cognitive) described situation.” (TRAUGOTT, 1989, p. 34).

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[+abstrato]. O desenvolvimento do verbo ter, de pleno a auxiliar de modalidade, pode ser

considerado um exemplo dessa trajetória. Como discutido por Traugott & König (1991), para

must e have to, em Inglês, o deslocamento desses verbos de modalidade deôntica para a

orientada para o falante só pode ser explicado na forma de transferência para a codificação de

avaliações/atitudes do falante.

Tendência II: significados baseados em uma descrição de situação externa ou interna

> significados baseados em situações textual e metalinguística.22

A tendência II envolve duas situações: a construção do texto e a realização do ato

linguístico. A primeira pode ser exemplificada pelo desenvolvimento do valor temporal de

logo para o valor argumentativo (maior grau de abstração). A segunda corresponde à

mudança de um verbo de estado-mental para um verbo de ato de fala. O verbo ter, por

integrar construções perifrásticas modais, passa a adquirir a função de auxiliar modal e essas

construções adquirem o valor deôntico, atuando no nível metalinguístico e nos atos de fala.

Nessa perspectiva, as mudanças ainda ocorrem por transferência metafórica (cf. TRAUGOTT

& KÖNIG, 1991).

De acordo com Traugott & König (op. cit.), como os verbos modais expressam,

essencialmente, a atitude do falante em relação ao EsC (Estado de Coisas) ou em relação à

proposição, a mudança semântico-pragmática de não-epistêmico para epistêmico reflete a

tendência III:

Tendência III: os significados tendem a se direcionar, gradativamente, para a

crença/atitude subjetiva do falante em relação à proposição.23

Através dessa tendência, os verbos e construções modais adquirem significados

epistêmicos, tornando-se, portanto, mais subjetivos. Nessa perspectiva, passam a expressar o

mundo interno de crenças e conhecimento do falante, assim como suas atitudes em relação à

22 “Tendency II: meanings based in the external or internal described situation > meanings based in the textual

and metalinguistic situation.” (TRAUGOTT, 1989, p. 35).

23 “Tendency III: meanings tend to become increasingly based in the speaker‟s subjective belief state/attitude

toward the proposition.” (TRAUGOTT, 1989, p. 35).

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proposição enunciada. Traugott & König (1991) exemplificam esse direcionamento com o

modal must, da seguinte forma:

[ ] o sentido epistêmico de must como „I conclude that‟ derivou-se do sentido de

obrigação de „ought to‟ através do reforço de inferências conversacionais e da

subjetivização. Se eu digo She must be married no sentido de obrigação, sugiro a

inferência de que ela de fato deve ser casada. Claro que essa inferência é

epistêmica, envolvendo, antecipadamente, um estado de coisas que pode ser

verdadeiro em um tempo posterior. Quando esse tipo de inferência epistêmica é

convencionalizada em sua origem, a crença subjetiva do falante é reforçada.

(TRAUGOTT & KÖNIG, 1991, p. 209-210).24

Traugott & König (op. cit.) estendem a noção tradicional de metonímia, que envolve

contextos concretos e explícitos, para contextos cognitivos e implícitos, principalmente os que

envolvem contextos pragmáticos conversacionais e inferências convencionais, sugerindo que

o reforço da informação compreende um tipo de mudança semântica por metonímia. Deste

modo, a tendência III difere das anteriores por compreender mudanças por contiguidade

(metonímica), baseando-se no mundo do discurso.

Traugott (2000, p. 395-396) aponta algumas motivações para o desenvolvimento de

significados sob o ponto de vista metonímico: (a) uma determinada coisa é evidente e, por

implicação, altamente provável ou verdadeira > (b) uma proposição declarativa considerada

altamente provável ou verdadeira implica na credibilidade do falante > (c) um enunciado

considerado verdadeiro sugere a inferência de que o falante acredite na veracidade de sua

proposição. Ainda, segundo a autora, este processo de subjetivização

[ ] é um fenômeno que abrange domínios mais amplos do léxico. Se o

significado de um item lexical ou construção baseia-se no mundo referencial, é

provável que, através do tempo, os falantes irão desenvolver polissemias

baseadas em seu próprio mundo, como raciocínios, crenças ou atitudes em

relação ao discurso. Em outras palavras, a subjetivização corresponde a um

desenvolvimento de significados semasiológicos associados com o par

significado-forma de modo que, com o tempo, passam a marcar a subjetividade

explicitamente. Enquanto o mecanismo metonímico envolve implicaturas, a

subjetivização envolve a relação desses mecanismos com a atitude, intenção, etc.

(TRAUGOTT, 2000, p. 394).25

24

“[ ] must in the epistemic sense of „I conclude that‟ derived from the obligative sense of „ought to‟ by

strenghthening of conversational inferences and subjectification. If I say She must be married in the obligation

sense, I invite the inference that she will indeed get married. This inference is of course epistemic, pertaining to a

state of affairs that is anticipated to be true at some later time. When the epistemic inference is conventionalized

its origin in the speaker‟s subjective belief-state is strengthened as well.” (TRAUGOTT & KÖNIG, 1991, p.

209-210).

25 “[ ] is a phenomenon affecting large domains of the lexicon. If the meaning of a lexical item or construction is

grounded in the world of reference, it is likely that over time speakers will develop polysemies grounded in their

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A proposta acima delineada encontra exemplificação bastante convincente na análise

da evolução de have to em Inglês. Krug (2000), por exemplo, propõe que a gênese da

trajetória posse > modal deôntico > modal epistêmico tem que ser buscada na instauração de

inferências possibilitadas em grande parte no plano sintagmático. Nesse desenvolvimento,

uma etapa crucial é representada pelo uso de have to com verbos de elocução (say, tell), que

admitem uma interpretação epistêmica, ou seja, orientada para o falante. Essa interpretação

emerge da inadequação do significado de posse do verbo have nesse contexto, o que motiva o

ouvinte a buscar uma interpretação alternativa, mais informativa e mais adequada para a

construção have to say/tell, ou seja, inferências pragmáticas autorizam o ouvinte a supor que

alguma força interna ou externa obriga o falante a dizer alguma coisa. Essa reinterpretação

induzida contextualmente por parte do ouvinte instaura a coexistência de duas interpretações:

possessiva e deôntica.

As construções deônticas ambíguas, em que se superpõem uma interpretação de

posse e uma interpretação deôntica, ocorrem esporadicamente nos estágios mais antigos do

Inglês e são recorrentes no contexto de verbos de elocução. Num segundo estágio, ela se

generaliza para outras classes verbais em que a interpretação de posse é impossível e a

deôntica se impõe. Nesse estágio, o aumento da frequência textual ganha relevo e a

convencionalização da inferência resulta na gramaticalização do modal.

Em uma etapa do processo, a construção have to + verbo de dizer, provavelmente,

devido à repetição, adquire frequência que lhe garante um status idiomático.26

O aumento da

frequência constitui uma força adicional que permite o desenvolvimento da construção na sua

função de sinalizar a orientação para o agente (agent-oriented) e tem implicações nos

mecanismos envolvidos na gramaticalização. Na perspectiva de Krug (2000), essa etapa de

idiomatização constitui fator fundamental na gênese de construções gramaticais, constituindo

um estágio necessário no processo de gramaticalização.27

world, whether reasoning, belief, or metatextual attitude to the discourse. In other words, subjectification is a

semasiological development of meanings associated with a meaning-form pair such the latter comes to mark

subjectivity explicitly. While the mechanism of implicational metonymy indexes implicatures, subjectification

indexes the relation of these metonymies to speaker attitude, intention, etc.” (TRAUGOTT, 2000, p. 394).

26 Segundo Krug (2000), até 1850, podem ser constatadas ocorrências de have to say em que o verbo have

admite uma interpretação de posse.

27

Na interpretação de Krug (2000), o mecanismo da metáfora parece exercer um papel apenas complementar.

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45

No processo de gramaticalização por subjetivização ocorrem mudanças semântico-

pragmáticas através das quais os significados passam a se basear nas crenças e atitudes

subjetivas dos falantes, compreendida, nos termos de Traugott (1995, p. 36), como um

„processo de reanálise pragmática‟. Traugott (2003, 2010) e Traugott & Dasher (2005)

reformulam um pouco essa visão, propondo que, no processo de mudança semântica, além da

subjetivização, deve ser considerada a intersubjetivização de significados. Segundo os

autores, a intersubjetivização corresponde a um processo de interação negociada entre

locutor/interlocutor no evento discursivo, no qual há a preocupação de se preservar o self, a

própria imagem, tanto em relação ao que é dito quanto em relação à identidade e posições

sociais.

Traugott (2003b, p. 124) reconhece uma hipótese, empiricamente atestada por vários

autores, como Brinton (1998), sobre a unidirecionalidade da mudança semântica: de

significados não-subjetivos > subjetivos, como ocorre no desenvolvimento de significados

modais epistêmicos (como must deôntico > must epistêmico), e explica que a trajetória

subjetivização > intersubjetivização, baseia-se na hipótese de que

[ ] a intersubjetivização, no sentido do desenvolvimento de significados que

codificam a atenção do falante/escritor em relação à cognição e identidades sociais do interlocutor, origina-se e depende crucialmente da subjetivização.

(TRAUGOTT, 2003b, p. 124)28

Ainda de acordo com Traugott (2003b), na medida em que a subjetivização envolve

o recrutamento de significados não somente para codificar, mas também para regular atitudes

e crenças, é inevitável que a intersubjetividade envolva algum grau de subjetivização, porque

é o falante/escritor quem propõe o enunciado e quem recruta o significado com objetivos

sociais. Como a subjetivização faz parte do mecanismo de recrutar significados para expressar

e regular atitudes, crenças, etc e a intersubjetivização corresponde a uma extensão da

subjetivização, Traugott (2010, p. 35) propõe o cline [-subjetivo] > [+subjetivo] >

[intersubjetivo], decorrente de mecanismos de mudança semântica pelos quais os significados

são recrutados pelo falante para codificar atitudes de crenças e, uma vez subjetivizados,

podem ser recrutados para codificar significados centrados no interlocutor

(intersubjetivização).

28

“[ ] intersubjectification, in the sense of the development of meanings that encode speaker/writers‟ attention

to the cognitive stances and social identities of addressees, arises out of and depends crucially on

subjectification” (TRAUGOTT, 2003b, p. 124).

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2.3.2 Gramaticalização e reanálise

Dois mecanismos relacionados à gramaticalização, embora não a definam nem sejam

coexistentes com ela, são a reanálise e a analogia. Hopper e Traugott (2003, p. 32)

consideram que esses dois mecanismos são particularmente significativos para a mudança

sintática. Nesta seção vamos nos deter, principalmente, na reanálise, dada a natureza do

fenômeno em análise.

A reanálise, no seu sentido mais estrito (cf. LANGACKER, 1977), consiste numa

ressegmentação da cadeia linguística linear, através da modificação ou apagamento de

fronteiras entre constituintes. Nesse sentido, como destacam Hopper & Traugott (2003, p. 32),

a “reanálise altera as representações subjacentes, sejam semânticas, sintáticas ou morfológicas

e provoca mudança de regra”.29

Dessa forma, permite o desenvolvimento/criação de novas

estruturas gramaticais a partir de antigas estruturas e não é diretamente observável.30

Nos

termos de Langacker (1977, p. 58), a reanálise corresponde a uma mudança na estrutura

profunda sem envolver modificação na estrutura superficial.31

Um dos tipos mais simples de reanálise, e muito frequentemente encontrado na

gramaticalização, envolve a fusão de duas ou mais formas entre palavras ou fronteiras

morfológicas. Em Inglês, exemplos típicos de fusão de palavras são childhood, freedom,

manly (cf. HOPPER & TRAUGOTT, 2003, p. 41). Essa fusão envolve mudanças nas

indicações de fronteiras, ou seja, re-parentetização, embora nem sempre esse tipo de mudança

conduza necessariamente à fusão.

Segundo Hopper & Traugott (2003, p. 41-42), a reanálise é o resultado de um

processo de abdução através do qual o falante atribui a uma cadeia linear uma estrutura

distinta da original, possível pela similaridade superficial. Como mostram Martelotta, Votre &

Cezario (1996, p. 57), a passagem do verbo ir (movimento em direção oposta ao falante) > ir

29

“Reanalysis modifies underlying representations, whether semantic, syntactic, or morphological, and brings

about rule change.” (HOPPER & TRAUGOTT, 2003, p. 32).

30

Hopper & Traugott (2003) destacam que a analogia, por outro lado, atua, essencialmente, no eixo

paradigmático, na mudança de superfície, nos padrões de uso e faz com que as mudanças de reanálise não

observáveis sejam observáveis.

31

“[ ] as change in the structure of an expression or class of expressions that does not involve any immediate or

intrinsic modification of its surface manifestation. Reanalysis may lead to changes at the surface level, as we will

see, but these surface changes can be viewed as the natural and expected result of functionally prior

modifications in rules and underlying representations.” (LANGACKER, 1977, p. 58).

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(marca de futuro) exemplifica de forma clara esse raciocínio, por exemplo, em [João] [vai] [à

escola], o verbo ir expressa um movimento em direção a um objetivo espacial: a escola; em

[João] [vai] [falar] [com o professor], o verbo ir expressa movimento e o objetivo falar com o

professor; em [João] [vai começar] [o trabalho] [amanhã], o verbo ir liga-se a começar e

deixa de expressar movimento para atribuir ao verbo começar a noção de futuro. Desfaz-se,

assim, uma fronteira sintagmática. Uma interpretação semelhante é atribuída por Hopper &

Traugott (2003, p. 44) ao futuro sintético das línguas românicas nos contextos em que a

estrutura [[cantare] habeo] contém um verbo principal hab- e um complemento infinitivo. Em

tais contextos, o processo de abdução pôde levar o usuário da língua Portuguesa, por exemplo,

a interpretar a cadeia de input como uma única estrutura do tipo [cantare habeo]. Uma vez que

esta reanálise ocorreu, torna-se possível a fusão entre fronteiras de morfemas e o desgaste

fonológico da seguinte forma: [[cantare] habeo] > [cantare habeo] > [cantarei].

Vimos que Hopper & Traugott (2003) consideram que a reanálise desempenha um

papel central na mudança sintática, ponto de vista compartilhado por vários autores, como

Langacker (1977), Martelotta, Votre & Cezario (1996), Heine (2003). Entretanto, a relação da

reanálise com os processos de gramaticalização não é consensual, podendo-se identificar duas

posições: uma que defende que todos os exemplos de gramaticalização envolvem reanálise,

mas nem todos os exemplos de reanálise envolvem gramaticalização (cf. NEWMEYER,

1988; CAMPBELL, 2001; HOPPER & TRAUGOTT, 2003); outra que postula uma

independência entre os dois processos, embora admita que alguns exemplos de

gramaticalização sejam também exemplos de reanálise e vice-versa (cf. HEINE & REH,

1984; HASPELMATH, 1998; DETGES & WALTEREIT, 2002).

Um argumento alegado pelos defensores da segunda posição é a possibilidade de

que, em alguns casos, a reanálise resulte na mudança de uma estrutura gramatical para uma

estrutura lexical e não propriamente de um item lexical para o âmbito da gramática.

Haspelmath (1988, p. 315), por exemplo, estabelece diferença entre gramaticalização e

reanálise, dizendo que, enquanto a gramaticalização é um processo unidirecional, irreversível

e gradual, a reanálise é tipicamente bi-direcional e, em princípio, reversível e abrupta. Para

Detges & Waltereit (2002), embora tanto a gramaticalização como reanálise sejam uma

consequência das necessidades básicas da comunicação, elas estão relacionadas a

participantes distintos: a reanálise pode ser identificada como uma estratégia do ouvinte e a

gramaticalização como uma estratégia do falante.

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Ultrapassando uma concepção estritamente sintático-estrutural, Detges & Waltereit

(2002) argumentam que, assim como a gramaticalização, a reanálise é desencadeada por

motivações de caráter pragmático, resultante, portanto, do uso da língua. Na perspectiva dos

autores, o processo de reanálise envolve duas estratégias pragmáticas: o princípio de

referência (relacionado à estratégia de compreensão do ato de fala) e o princípio de

transparência (relacionado à cadeia sonora que o falante ouve com outras cadeias sonoras da

língua que o falante sabe). O apagamento de fronteiras sintagmáticas é uma instanciação do

princípio de referência que adapta a estrutura morfológica ao significado exigido na situação

comunicativa. A criação e a mudança de fronteiras, por sua vez, decorrem do princípio de

transparência.

A natureza pragmática tanto da gramaticalização como da reanálise não autoriza, no

entanto, uma identificação entre os dois processos. A gramaticalização é desencadeada pela

rotinização de técnicas expressivas utilizadas pelo falante, o que explica, inclusive, sua

irreversibilidade. A reanálise, ao contrário, decorre da necessidade de compreensão por parte

do ouvinte. Compartilhando a posição de Hopper & Traugott (2003), Detges & Waltereit (op.

cit.) admitem que a reanálise seja o processo mais geral de mudança linguística; a

gramaticalização é um tipo de mudança decorrente da expressividade e é sempre

acompanhada da reanálise.

Neste estudo, partimos do pressuposto de que a recategorização do verbo de posse

ter, na construção ter que + infinitivo, como auxiliar modal é possibilitada (ou acompanhada)

por um processo de reanálise: a alteração da fronteira entre ter e a forma verbal infinitiva cria

condições para que o elemento ter seja interpretado como um operador de modalidade, num

primeiro momento, deôntico e, gradualmente, epistêmico. Nessa perífrase, para que o verbo

ter se torne auxiliar, é necessário apagar a fronteira entre ter e o verbo no infinitivo. O mesmo

raciocínio não poderia ser aplicado a ter de + infinitivo, visto que, neste caso, considerando

que só há uma oração, não haveria, portanto, fronteira a ser eliminada. Supondo que,

originalmente, essa construção envolveria a presença de um SN complemento para ter

(necessidade/obrigação de + V2), teria havido apenas a supressão desse complemento. Essa

questão será discutida, mais detalhadamente, na seção 3.2.3.

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3 MODALIDADE E GRAMATICALIZAÇÃO DAS CONSTRUÇÕES COM TER

Neste capítulo, ainda com o objetivo de situar alguns pressupostos teóricos

assumidos na análise das construções modais com ter, retomando a posição de alguns

autores, focalizamos, em primeiro lugar, algumas questões relacionadas à definição de

modalidade e a caracterização de domínios modais. A seguir, discutimos o processo de

gramaticalização de modais, em particular das construções derivadas do verbo de posse ter.

Neste ponto, evidenciamos a multifuncionalidade das construções ter de + infinitivo e ter que

+ infinitivo e propomos uma interpretação do processo de gramaticalização dessas

construções. Finalmente, abordamos a questão do grau de auxiliaridade do verbo ter nas

perífrases em análise.

3.1 Algumas questões sobre modalidade

Não é tarefa simples definir ou caracterizar o domínio da modalidade, devido, por

um lado, à sua abrangência e, por outro, à imprecisão com que é tratado em muitas

abordagens, um problema já destacado por diversos autores (LYONS, 1977; PALMER, 1986,

2001; CAMPOS, 1997; FERRARI, 2000; NEVES, 2002, GONÇALVES, 2003, dentre

outros). Neves (2002), por exemplo, adverte que, no estudo da modalidade, diferentes teóricos

privilegiam ora a sintaxe, ora a semântica ora a pragmática, ou a intersecção entre vários

critérios (filosóficos, linguísticos, pragmáticos, enunciativos e psicológicos). Por essa razão,

como destaca Ferrari (2000, p. 460), o conceito de modalidade “mostra-se particularmente

resistente a uma definição homogênea.”

Sob o enfoque funcionalista, adotado nesta tese, a modalidade é considerada uma

categoria semântico-pragmática discursiva relacionada à forma de envolvimento do

enunciador com o que é dito, ou seja, com o EsC (Estado de Coisas) descrito (cf. LYONS,

1977; FLEISCHMAN, 1982; OLBERTZ, 1988; BYBEE et al. 1994; PALMER, 1986, 2001;

HENGEVELD, 2004; Von FINTEL, 2006, dentre outros). Essa posição se insere na

perspectiva de Lyons (1977) para quem o ato de comunicar um conteúdo proposicional a uma

pessoa envolve uma intenção: o falante/escritor busca, de alguma forma, influenciar as

crenças, atitudes ou o comportamento do seu interlocutor. Nessa perspectiva, partindo de um

critério léxico-semântico, a modalidade é definida como “um meio usado pelo falante para

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expressar sua opinião ou atitude acerca de uma proposição que a sentença expressa ou a

situação que a proposição descreve”32

(LYONS, op. cit. p. 436).

Essa concepção de modalidade remonta aos gramáticos da Idade Média que já

propunham a decomposição da proposição em dictum e modus. Essa diferença, segundo

Castilho & Castilho (2002), foi reconhecida pela gramática tradicional ao propor dois grandes

componentes na sentença: o proposicional e o modal. O primeiro, o dictum, é constituído de

sujeito+predicado e o segundo, o modus, é o que determina a atitude/julgamento ou o modo

como aquilo que se diz é dito. Nos termos de Benveniste (1995), o dictum constitui a

proposição enunciada e o modus, a perspectiva subjetiva que a ela pode ser associada.

Para Castilho & Castilho (2002), a atitude do falante em relação à proposição pode

ser expressa por dois modos:

(1) o falante apresenta o conteúdo proposicional numa forma assertiva

(afirmativa ou negativa), interrogativa (polar ou não-polar) e jussiva (imperativa

ou optativa); (2) o falante expressa seu relacionamento com o conteúdo

proposicional, avaliando seu teor de verdade ou expressando seu julgamento

sobre a forma escolhida para a verbalização desse conteúdo. Designa-se

habitualmente a estratégia (1) por modalidade e a estratégia (2) por modalização.

(CASTILHO & CASTILHO, 2002, p. 201).

Acompanhando a posição desses autores, acreditamos, no entanto, que o contéudo de

qualquer proposição é precedido por uma avaliação prévia do falante, não se justificando,

assim, uma distinção entre modalidade e modalização. Além disso, podemos considerar, de

acordo com a posição de Hengeveld (2004), que as duas estratégias constituem subcategorias

de uma categoria mais ampla, denominada MODO: ilocução e modalidade. Considerando

critérios semânticos, a primeira diz respeito à identificação de sentenças em tipos de atos de

fala específicos, enquanto a segunda refere-se à modificação do conteúdo dos atos de fala.

A atitude do falante/escritor quanto ao conteúdo proposicional pode ser expressa

através de diversos recursos linguísticos: verbos plenos indicadores de crença ou saber,

adjetivos em posição predicativa, verbos auxiliares ou semi-auxiliares, advérbios,

substantivos e, ainda, através das categorias gramaticais de tempo/aspecto/modo (cf., por

exemplo, RIGONI COSTA, 1995; NEVES, 2002). É a existência dessa diversidade de

estratégias linguísticas utilizadas pelo enunciador para expressar sua atitude/avaliação em

32 “A means used by a speaker to express his opinion or attitude towards the proposition that the sentence

expresses or the situation that the proposition describes” (LYONS, 1977, p. 436).

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relação ao que diz, ou seja, em relação ao conteúdo proposicional do seu enunciado, que

conduz Palmer (1986, p. 16) a considerar modalidade “como a gramaticalização das atitudes e

opiniões (subjetivas) do falante.”33

Uma questão importante diz respeito ao estatuto da categoria modalidade em relação

à categoria de modo. Para Lyons (1977), modo é uma categoria gramatical que não pode ser

identificada nem com modalidade nem com força ilocucionária. Modo aplica-se às formas

flexionais dos verbos, servindo para distinguir „indicativo‟, „imperativo‟, „subjuntivo‟. Para

outros autores, a categoria modo, ainda que restrita ao verbo, insere-se no domínio da

modalidade, se considerarmos que o verbo, mais especificamente, as desinências de modo,

têm a capacidade de “designar a nossa atitude psíquica em face do fato que exprimimos [...]”,

como destaca Câmara Jr. (1981, p. 169). Essa posição é compartilhada por diversos autores,

como Mira Mateus et alii (1983), Bybee (1985), Vilela & Koch (2001). Para Mira Mateus et

alii (op. cit., p. 148), as diferenças de modo verbal exprimem “a relação modal entre locutor e

estado de coisas”. Para Bybee (op. cit.), modo corresponde a uma marca do verbo que assinala

como o falante se posiciona em relação à proposição enunciada no contexto discursivo,

referindo-se, portanto, à força ilocucionária; modalidade refere-se ao grau de

comprometimento do falante quanto à veracidade da proposição. Para Vilela & Koch (op.

cit.), a modalidade é expressa através do modo. Considerando as modalidades básicas da

frase, realidade e irrealidade, para esses autores, a modalidade corresponde às atitudes

subjetivas do falante em relação à veracidade do enunciado que pode ser coincidente ou não

com a realidade.

Essa superposição entre modo e modalidade é natural, na medida em que, como

lembra Givón (1995), juntamente com tempo e aspecto, essas categorias interagem formando

um domínio funcional complexo, caracterizado pela ausência de limites claros entre uma

categoria e outra. De acordo com Bybee (op.cit.), há uma função comum entre a categoria

modalidade e a categoria modo, pois, em ambos os casos, assinala-se o que o falante está

“fazendo” com a proposição. A relação entre elas, e, até certo ponto, a de aspecto,

transparece, principalmente, no estudo de mudanças que atingem os morfemas gramaticais ou

o denominado sistema TAM (Tempo/Aspecto/Modalidade), como mostram Bybee, Perkins &

Pagliuca (1994).

33

“[ ] the grammaticalization of speakers (subjective) attitudes and opinions.” (PALMER, 1986, p. 16).

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Outros autores situam as duas categorias em níveis diferentes (cf. PALMER 1986,

2001; SILVA 2002; HENGEVELD 2004). Palmer (1986), por exemplo, argumenta que a

distinção entre modo e modalidade pode ser tratada em termos de traços formais (modo)

versus categorias semânticas (modalidade). Portanto, a categoria modo restringe-se às

categorias morfossintáticas do verbo, como tempo e aspecto, embora sua função semântica se

relacione a toda a sentença. Além disso, o autor ressalta que as marcas formais da modalidade

são encontradas em vários pontos da gramática das línguas e não apenas nos verbos modais.

Entendemos que, na análise da categoria modalidade, torna-se necessário verificar a

sua incidência no co-texto e no con-texto, ou seja, a presença do elemento modalizador no

ambiente linguístico do enunciado e nos contextos discursivos.

3.1.2 Domínios modais

Tradicionalmente, há um certo acordo quanto a considerar que a modalidade

relaciona-se a noções como capacidade, necessidade e possibilidade, embora Lyons (1977)

considere dois domínios modais básicos: o deôntico e o epistêmico.

Para Lyons (op. cit.), as noções de possibilidade e necessidade, herdadas da Lógica

Formal, estão envolvidas tanto no domínio epistêmico quanto no deôntico. No domínio

epistêmico, possibilidade ou necessidade relaciona-se com a verdade da proposição, portanto

envolve o conhecimento ou a crença do falante e pode ser subjetiva ou objetiva. É subjetiva,

quando relacionada à opinião do falante, às inferências e aos boatos (hearsay), tendo por

componente “eu-digo-assim”. É considerada objetiva, quando o falante compromete-se com a

factualidade da proposição, contendo o componente “isto-é-assim”. Nesse caso, a proposição

expressa um conhecimento geralmente aceito ou cientificamente comprovado, aproximando-

se, portanto, da modalidade alética34. O autor assume que a diferença entre subjetivo e

objetivo depende não apenas do modalizador, mas principalmente do papel que o falante

assume no momento da interlocução (op. cit. p. 799)35

.

34

Na concepção aristotélica, os enunciados de uma ciência podem ser necessariamente ou possivelmente

verdadeiros. Assim, a modalidade alética ou aristotélica refere-se ao eixo da existência e diz respeito à

determinação do valor de verdade dos enunciados.

35

Um exemplo dessa oposição corresponde à diferença entre It may be raining in London que permite uma

interpretação subjetiva (alguém expressa a opinião quanto à possibilidade de estar chovendo em Londres,

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No domínio deôntico, encontram-se as funções de obrigação, permissão e proibição

relacionadas a um EsC. Nesse domínio, necessidade ou possibilidade envolvem imposições

sobre agentes moralmente responsáveis e procedem ou derivam de uma fonte ou causa

externa, como normas sociais ou morais, ou de compulsão interna. Para alguns autores, como

Traugott (1989), necessidade/obrigatoriedade é sempre externa e envolve pouca

subjetividade, já que se trata da convocação de razões universais, lei divina, regras ou

princípios institucionais (morais, religiosos, culturais) independentes da vontade do falante.

Na concepção brevemente esquematizada acima, a modalidade deôntica não consiste

propriamente na descrição de um ato, mas de um EsC que será obtido se um ato em questão

for realizado, portanto, refere-se a eventos potenciais. Decorre daí a ligação intrínseca desse

domínio com a noção de futuridade36

, pois, ao se impor algo a alguém, a execução do ato será

futura, seja um futuro próximo ou não. Portanto, nesse sentido, a modalidade deôntica está

diretamente relacionada a atos de fala, como ordens, sugestões, exortações, convites.

Na formulação acima, o termo deôntico, de certa forma, abrange qualquer

modalidade que não seja epistêmica. Como discutem Bybee & Fleischman (1995), o conceito

deôntico, na perspectiva de Lyons (1977), é excessivamente amplo, associando-se ao valor de

permissão (como em you may go now) e de obrigações impostas (como em eat your

vegetables!), assim como ao sentido de condição (como em graduate students can check out

books for the whole semester).

Coates (1983), consciente da abrangência do termo deôntico, prefere falar em

modalidade de raiz (root modality), para fazer distinção entre modalidade epistêmica e não-

epistêmica. A modalidade de raiz abrange noções como permissão, obrigação, bem como as

noções de necessidade e obrigatoriedade, enquanto a modalidade epistêmica refere-se às

suposições ou avaliações de possibilidades, indicando o grau de confiança (ou falta de

confiança) do falante em relação à verdade expressa pela proposição.

Bybee (1985), Bybee & Pagliuca (1985), Bybee et al. (1991, 1994), Bybee e

Fleischman (1995), por sua vez, estabelecem distinções entre modalidade orientada para o

agente, modalidade orientada para o falante e modalidade epistêmica. A primeira

enunciada por um leigo) ou objetiva em He told me that he thought it might be raining in London, enunciada, por

exemplo, por um meteorologista. (cf. LYONS, 1977, p. 799).

36

Referindo-se às construções modais com ter, Câmara Jr. (1976, p. 170) remete à associação da modalidade

deôntica com a noção de futuridade classificada pelos gramáticos “como um futuro obrigatório” e restringindo a

ocorrência do auxiliar ter ao presente do indicativo.

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compreende os significados modais que são usados para predicar condições internas e

externas sobre um agente em relação à execução de uma ação ou evento referida no predicado

principal, envolvendo valores de obrigação, necessidade, habilidade, permissão, intenção e

volição. A obrigação refere-se a condições externas que forçam um agente a executar uma

ação e pode ser [+forte] ou [+fraca], como nos exemplos abaixo extraídos de Coates (1983):

All students must obtain the consent of the Dean of the facullty concerned

before entering for examination (p. 35).

I just insisted very firmly on calling her Miss Tillman, but one should really

call her Presiden (p. 59).

Como ressaltam Bybee, Perkins & Pagliuca (1994, p, 184), diferente dos modais

acima exemplificados, have to tende a expressar obrigações mais gerais e o comprometimento

do agente com a obrigação é frequentemente aparente (como em I have to go now).

O valor de necessidade refere-se a condições físicas que forçam um agente a realizar

uma ação, como no exemplo abaixo, extraído de Bybee, Perkins & Pagliuca (1994):

I need to hear a good loud alarm in the mornings to wake up (p.177).

A modalidade orientada para o falante envolve tipos de atos de fala, como ordens,

pedidos, proibições, exortações, permissões. A diferença entre modalidade orientada para o

agente e a orientada para o falante, segundo Bybee, Perkins & Pagliuca (op. cit.), reside nas

condições impostas ao agente que não fazem parte da segunda. A modalidade epistêmica, sob

a perspectiva desses autores e de acordo com a definição tradicional, compreende os valores

de possibilidade, probabilidade e certeza inferida, indicando o grau de comprometimento do

falante com a verdade da proposição.

Palmer (2001) também discute a redução deôntico/epistêmico, destacando a

necessidade de considerar, separadamente, a modalidade dinâmica, que se relaciona à

capacidade, disposição, volição e à habilidade do sujeito, internas ao próprio indivíduo e,

portanto, mais básica.37

O autor admite, ainda, a necessidade de distinguir diferentes formas

37

Palmer (2001, p. 10) demonstra a distinção entre modalidade deôntica e dinâmica através dos seguintes

exemplos: John may/can come in now (permissão), no sentido de que é deonticamente possível que John venha

agora. John must come in now (obrigação), no sentido de que é deonticamente necessário que John venha agora.

Em John can speak French (habilidade) e John will do it for you (volição), a modalidade é dinâmica.

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de uso deôntico de acordo com o ato de fala que realizam. Deste modo, estabelece dois tipos

básicos de modalidade deôntica: a diretiva e a comissiva. Observa que, embora a modalidade

deôntica se origine de um tipo de autoridade externa, como regras e leis, típica e

frequentemente, a autoridade é um falante real que autoriza algo ou estabelece uma obrigação

ao receptor, ou seja, é diretiva.38

Aparentemente, a modalidade epistêmica coloca menos problemas na sua amplitude

e extensão; modais epistêmicos indicam o grau de comprometimento do falante em relação à

proposição enunciada, com base nas possíveis relações entre os fatos. Portanto, a fonte da

modalidade epistêmica, geralmente, é um falante, que conclui se a proposição é verdadeira ou

não (cf. TRAUGOTT & DASHER, 2005). Uma questão a considerar, no entanto, é o tipo de

julgamento envolvido no processo inferencial que caracteriza a modalidade epistêmica. Bybee

& Fleischman (1995), por exemplo, argumentam que não há razão para restringir o domínio

epistêmico apenas às noções de possibilidade e necessidade de acordo com a tradição da

lógica modal. Entendendo os autores que a modalidade epistêmica expressa o grau de

comprometimento do falante em relação à proposicão contida em um enunciado, propõem que

esse domínio, além de indicar possibilidade (como em we may/might lose the election) ou

necessidade (como em they have won the election), pode abranger a categoria evidencial (cf.

também BYBEE et al., 1994; Von FINTEL, 2006), entendida como a possibilidade (não

necessidade) de um EsC ser verdadeiro. Palmer (2001) detalha essa proposta, ao estabelecer

três tipos de julgamento no uso de modais epistêmicos: especulativo (dubitativo para BYBEE,

1985), dedutivo, quando se faz uma inferência advinda de uma evidência observável, e o

julgamento que pressupõe uma suposição, quando há uma inferência advinda do que é

conhecido. O autor (op. cit. p. 6) apresenta os seguintes exemplos com os verbos modais may,

must e will:

(a) Kate may be at home now (uma possível conclusão → especulação)

(b) Kate must be at home now (a única conclusão possível → dedutiva)39

(c) Kate will be at home now (uma conclusão racional → suposição)

38Palmer (op. cit., p. 10) ainda estabelece outras subdivisões em relação à modalidade deôntica: a permissiva e a

comissiva. A primeira refere-se à permissão concedida pelo falante, como em He can go now; a segunda, ao

comprometimento do enunciador, como em You shall have it tomorrow. 39

Coates (1983) observa que o must epistêmico, no seu uso mais prototípico, indica a confiança do falante em

relação à verdade do que ele diz baseado em uma dedução advinda de fatos conhecidos (que podem ou não ser

especificados). Assim, em Kate must be at home (cf. p. 41) pode decorrer de um julgamento baseado na

observação de que ela não está em seu escritório.

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Em (a), o falante não tem certeza se Kate está em casa, correspondendo, portanto, ao

domínio da possibilidade epistêmica. De forma diferente, em (b), o falante faz um julgamento,

baseando-se em uma evidência, como a luz está acesa. Neste caso, há um raciocínio

inferencial que advém da observação: se a luz está acesa, portanto ela deve estar em casa, ou

seja, é epistemicamente necessário que Kate esteja em casa. Em (c), o julgamento baseia-se

numa inferência do que se sabe sobre Kate: se ela sempre fica em casa à tarde, portanto ela

agora está lá. Podemos perceber que nesses contextos o modal must indica uma conclusão

mais incisiva que will.

Dois pontos, na verdade interrelacionados, merecem maior destaque: (i) a

indeterminação ou ambiguidade dos elementos modais e (ii) a distribuição tanto dos valores

deônticos como dos valores epistêmicos na forma de um continuum. No estudo de diversas

línguas, já ficou evidenciado que a divisão tradicional entre modalidade deôntica e epistêmica

nem sempre pode ser mantida, visto que uma mesma forma pode ser usada para os dois tipos

de modalidade, investindo-se de uma certa polissemia (cf. COATES, 1983; BYBEE, 1985;

PALMER, 1986, 2001; BYBEE, PERKINS & PAGLIUCA, 1994; BYBEE &

FLEISCHMAN, 1995; OLIVEIRA, 2003; NEVES, 2000, 2003, 2006, dentre outros) que, em

alguns casos, nem sempre pode ser resolvida no contexto mais amplo em que as formas

ocorrem, instaurando o que Neves (2006, p. 180) denomina de uma “leitura preferida”.

Entretanto, como mostra Coates (1983), em muitos casos, não é possível especificar, entre

dois valores modais, qual é o pretendido pelo enunciador, como no seguinte exemplo

retomado da autora:

He must understand that we mean business. (COATES, op. cit, p. 16)

No seu valor epistêmico, must indica que „certamente ele entende o que queremos

dizer com business‟. No seu valor modal de raiz (root-modal), indica que „é essencial que ele

entenda o que queremos dizer com business‟. Deste modo, não é possível descobrir, através

do contexto, qual é o significado atribuído ao modal must. E, como os dois são bem distintos,

um deve ser escolhido.

No que se refere à gradiência de valores modais, assumimos a posição defendida por

Neves (2002), para quem essa questão tem que ser tratada de forma diferente para a

modalidade deôntica e a epistêmica. No domínio deôntico, podem-se distinguir formas de

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julgamento que vão do obrigatório ao permitido, e, mesmo no julgamento obrigatório, é

possível falar em um cline que vai de obrigação mais forte, mais imperiosa a obrigação mais

fraca (cf., por exemplo, COATES, 1983; SWEETSER, 1990). No domínio epistêmico podem

ser identificados diferentes e imprecisos graus entre o certo e o possível. Na verdade, uma

gradação, como certeza → probabilidade → possibilidade, é uma simplificação, na medida

em que desconsidera as diferentes formas de envolvimento do enunciador no ato de

comunicação. Como destaca Palmer (2001), mesmo no domínio deôntico, podem-se

distinguir graus diferenciados de envolvimento do falante. Assim, em uma frase, como Você

deve chegar em casa até meia noite, pode haver maior envolvimento (se o falante obriga

alguém a fazer alguma coisa é porque ele quer que a ação seja executada) do que em Você

deve correr se quiser pegar o ônibus, em que a realização ou não da ação não é de interesse

do falante.

Os diferentes pontos de um continum deôntico podem, inclusive, estar associados a

propriedades gramaticais diferenciadas. Prototipicamente, os modais deônticos se associam a

propriedades como sujeito humano e verbo principal [+ dinâmico] (cf., por exemplo, BIBER,

1999). Coates (1983) defende, no entanto, que modais deônticos, como have to, se associam a

traços gramaticais distintos, expressando obrigação [+forte] ou obrigação [-forte], da seguinte

forma40:

Obrigação [+forte] – valor mais imperativo

verbo principal de atividade/ sujeito de segunda pessoa.

O falante tem mais autoridade sobre o sujeito.

Obrigação [+fraca] – menor valor imperativo

verbo principal estativo/sujeito de terceira pessoa.

O falante tem menos autoridade sobre o sujeito.

Von Fintel (2006) considera, porém, que o uso de have to + infinitivo com

predicados estativos podem ser ambíguos, ou seja, compatíveis tanto com a interpretação

deôntica quanto com a epistêmica, como mostra o seguinte exemplo reproduzido do autor:

He has to be in his office (p. 11).

40

Para Coates (1990, p. 56) have to corresponde a um recurso muito útil, quando os falantes querem expressar

obrigação, mas ao mesmo tempo pretendem deixar claro que eles não são a fonte autoritária da imposição.

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Não se pode excluir, porém, a possibilidade de que a fonte da imposição (externa ou

interna) contribua igualmente para determinar a força de um modal deôntico (cf.

SWEETSER, 1990). Em um exemplo como, Ele tem que correr se não perde o ônibus, o

modal ter que + infinitivo tem maior força imperativa, na medida em que a fonte da obrigação

é uma circunstância externa independente da vontade do enunciador. Coates (1990) considera

que usos como esses constituem um recurso muito útil quando os falantes querem deixar claro

que eles não são a fonte autoritária da obrigação.

Os aspectos discutidos até aqui deixam claro que, no estudo da modalidade, é

necessário considerar toda a situação comunicativa – os participantes, o grau de envolvimento

desses com o EsC, o evento, assim como o contexto discursivo. Procurando dar conta desses

diferentes aspectos, Olbertz (1998) e Hengeveld (2004) propõem que, para uma compreensão

mais aprofundada dos diferentes usos dos elementos modais, deve-se distinguir dois

parâmetros: alvo e domínio semântico. O alvo refere-se à parte do enunciado que é

modalizado, e domínio, à perspectiva sob a qual a avaliação é realizada. Nesse sentido, os

autores revisam a distinção objetiva/subjetiva proposta por Lyons (1977), entendida no nível

do domínio, e a situam no nível do alvo da avaliação.

Quanto ao alvo da avaliação modal, os autores distinguem três possibilidades:

orientada para o participante, para o evento e para a proposição. A orientação para o

participante41

refere-se à possibilidade ou à necessidade de um participante [+animado]

comprometer-se com o EsC, como em

John wants to be young again (HENGEVELD, 2004, p. 1194)

Como o participante pode ser [+agentivo] ou [–agentivo], distingue-se da

modalidade orientada para o agente (BYBEE, PERKINS & PAGLIUCA, 1994). O termo

agente, na opinião de Hengeveld (2004, p. 1194), “não é muito feliz, na medida em que

sugere que somente participantes controladores de eventos dinâmicos se submetem a este tipo

de modalização."42

A modalidade orientada para o evento corresponde à (im)possibilidade, (in)certeza

ou obrigatoriedade/necessidade de ocorrência de um evento, sem que haja intervenção do

41

O termo participante refere-se ao primeiro argumento do verbo (cf. OLBERTZ, 1998).

42 “[ ] is not too felicitous in that it suggest that only controlling participants in dynamic events may be subject

to this type of modalization”.

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falante no julgamento. Hengeveld (2004) ressalta que este tipo de alvo é melhor ilustrado

através de sentenças em que ocorrem duas expressões modais, uma orientada para o evento e

outra para a proposição, como em

Certainly he may forgotten (p. 1194)

Neste exemplo, são conjugados dois julgamentos epistêmicos em diferentes níveis: o

falante compromete-se com a verdade da proposição (he may forgotten) através do advérbio

de enunciação certainly e do verbo modal may que indicam a possibilidade de ocorrer o

evento (he has forgotten). Portanto, o falante expressa certeza sobre uma possibilidade, no

caso objetiva, nos termos de Lyons (1977) (cf. também HALLIDAY, 1970; COATES, 1983).

A modalidade epistêmica orientada para a proposição refere-se ao conteúdo

proposicional de um enunciado, ou seja, corresponde à parte do enunciado que representa

pontos de vista e crenças do falante, indicando o seu grau de comprometimento, portanto sua

atitude subjetiva, em relação à proposição que ele apresenta (cf. HENGEVELD, 2004). O

exemplo seguinte, extraído de Olbertz (1998), ilustra a incidência do alvo sobre a proposição:

CONTEXT: (in a conversation about his deceased wife, a man tells his friend

that he believes in God, to which the friend reacts:)

- Entonces, tiene que ser muy fácil para ti (p. 404)

No exemplo acima, o uso de tener que + infinitivo expressa que o interlocutor está

convencido sobre a verdade da proposição que enuncia (atitude subjetiva).

Quanto ao domínio, Hengeveld (op. cit., p. 1193) distingue cinco tipos de

modalidade: facultativa, deôntica, volitiva, epistêmica e a evidencial. A modalidade

facultativa relaciona-se com as capacidades intrínsecas (físicas) ou adquiridas (como em John

is able to swim). A deôntica diz respeito às imposições legais, sociais, morais (como em John

has to swim). A volitiva expressa desejo (como em John would rather not swim). A

epistêmica envolve a avaliação da possibilidade de ocorrência de um EsC pelo falante,

baseando-se em seu conhecimento (como em John may be swimming). A modalidade

evidencial refere-se à fonte da informação de um enunciado, que pode ser inferencial (como

em John will be swimming).

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A proposta de Hengeveld (2004) assemelha-se, em alguns pontos, à apresentada por

Olbertz (1998) que estabelece os seguintes domínios de avaliação modal: inerente, volitivo,

deôntico, epistêmico e inferencial. Olbertz (1998) distingue modalidade inerente intrínseca

(ou facultativa) de extrínseca do seguinte modo: enquanto a primeira corresponde à avaliação

das habilidades de um participante animado e refere-se às capacidades físicas inatas ou

adquiridas, a modalidade extrínseca corresponde à avaliação do que é circunstancialmente

possível ou necessário. A modalidade deôntica, acompanhando a posição de outros autores já

mencionados, corresponde à avaliação do que é obrigatório (legal, social ou moralmente) ou

permissível. A autora (op. cit.) propõe, ainda, tratar a modalidade inferencial (evidencial para

HENGEVELD, 2004; Von FINTEL, 2006) separadamente da epistêmica, que corresponde à

avaliação do que é conhecido pelo falante sobre o mundo real.43

Segundo a proposta de Olbertz (1998) e Hengeveld (2004), as associações possíveis

entre as dimensões domínio e alvo resultam em diferentes combinações que podem explicar,

mais detalhadamente, os diferentes usos de um mesmo elemento modal. Vamos nos restringir

apenas aos domínios que se aplicam mais diretamente ao estudo das construções modais com

ter, retomando os exemplos analisados por Olbertz (op. cit.) para tener que + infinitivo em

Espanhol.

A modalidade inerente extrínseca com alvo no participante ocorre quando a

construção tener que + infinitivo expressa necessidade e indica que o participante [+animado]

compromete-se com o EsC devido a circunstâncias externas, como em:

La tuve que vender porque me hacía falta el dinero (p. 380)

Como destaca a autora, embora não seja obrigatório, na grande maioria dos casos,

nesta função, a construção tener que + infinitivo é acompanhada por uma motivação explícita

que justifica a necessidade de o falante se engajar na realização do estado de coisas (cf.

também HAVERKATE, 1979, p. 122).

A modalidade inerente extrínseca com alvo no evento corresponde à necessidade de

ocorrência de um EsC devido a circunstâncias externas ao EsC, mas inerente ao EsC, no

sentido de que elas condicionam a sua realização, como em

43

Olbertz (1998, p. 410) estabelece distinção entre modalidade epistêmica e inferencial, em relação à fonte do

comprometimento do falante: na primeira, a fonte corresponde às crenças e convicções pessoais do falante; na

segunda, a evidência é inferida da verdade da proposição.

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Esas ruedas tendrían que ser de hierro para soportar el natural desgaste (p.

387)

No exemplo acima, pode ser reconstituído um raciocínio em que A implica B, ou

seja, se há um desgaste natural das rodas, então elas têm que ser de ferro. O uso frequente

dessa relação determina a necessidade do EsC „as rodas serem de ferro‟.

A modalidade deôntica com alvo no participante envolve um participante

[+animado] que é obrigado a se comprometer com o EsC. A fonte da obrigação é uma pessoa

e a obrigação imposta pode estar (ou não) de acordo com normas morais, sociais ou legais.

Constituem, na maioria das vezes, atos de fala diretivos ou necessidade deôntica imposta a si

mesmo pelo próprio falante (alvo e fonte), como, respectivamente, em:

Ahora lo que tienes que hacer es volver a la cama (p. 384)

tenía que volver a verla cuanto antes y declararle mi pasíon (p. 384)

Olbertz (1998) observa que, menos frequentemente, tener que + infinitivo é usado

para expressar necessidade/obrigação que derivam de convenções, como em:

CONTEXT: (about the access to the books in a library)

Teníamos que pedir permiso (p. 384)

Como discute a autora, neste domínio e alvo, parece haver uma superposiçao

funcional entre o semi-auxiliar deber e tener que + infinitivo. Ressalta, no entanto, uma

diferença semântica44

entre as duas formas de modalização: tener que + infinitivo apresenta

obrigação de uma forma categórica, inexorável, ou seja, “o participante não tem outra escolha

que não seja a de se engajar no estado de coisas em questão45

”. (cf. DUMITRESCU, 1988, p.

141). Esse mesmo significado de inexorabilidade do EsC modalizado por tener que pode ser

constatado no domínio inerente, modificando-se, no caso, apenas a fonte da obrigação.

A modalidade deôntica com alvo no evento caracteriza a necessidade/obrigação de

ocorrência de um EsC em termos do que é obrigatório ou permitido em um sistema de

44

Esta diferença semântica também ocorre entre have to e must em Inglês (cf. Brinton, 1991).

45 “[ ] the participant has no choice but to engage in the SoA in question.”

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normas/convenções morais, sociais ou legais. Nesse sentido, as obrigações não se impõem

sobre um participante particular, mas sobre a própria predicação.46

A obrigatoriedade de um

EsC pode ser expressa por dever + infinitivo ou por tener que + infinitivo, embora seja

primordialmente associada à primeira (cf. COSTE & REDONDO, 1965; DUMITRESCU,

1988; OLBERTZ, 1998), como em

Esa actitud muy noble de luchador infatigable nos deve servir de guía (p. 391)

CONTEXT: (about the interest a hairfresser takes in her work)

es verte entrar y ya te está animado a lo que sea, como tiene que ser (p. 392)

No primeiro exemplo, a fonte da avaliação deôntica é uma norma moral e no

segundo, uma norma social em relação à ética profissional em que as obrigações não se

impõem sobre um participante particular, mas sobre a própria predicação. Esse tipo de

domínio e alvo pode representar também regras gerais de conduta, identificando-se com

expressões pessoais ou impessoais (cf. COATES, 1983; HENGEVELD, 2004).47

A modalidade epistêmica com alvo no evento caracteriza eventos em termos da

certeza/inevitabilidade de sua ocorrência. A fonte é o conhecimento geral de mundo e/ou uma

situação que pode ou não ser explícita. A necessidade de ocorrência do EsC é apresentado

pelo participante como certa/inevitável, através de um raciocínio inferencial („se p, então q‟).

No exemplo, a seguir, a ocorrência do EsC é mais do que certa, é inevitável:

CONTEXT: (about the Cold War)

Era un falso combate y (esto) algún día tenía que quedar al descubierto (p.

396)

A modalidade epistêmica com alvo na proposição48

corresponde à avaliação

subjetiva do participante em relação à proposição que ele apresenta. Há, portanto, um

46

A predicação designa um EsC, uma situação possível de ocorrer em um mundo real ou imaginário, podendo,

portanto, ser localizada no tempo e avaliada em termos de sua realidade (cf. LYONS, 1989; CONRIE, 1990;

OLBERTZ, 1998).

47 Como observam Coates (1983, p. 73) e Hengeveld (2004, p. 1195), o sentido geral de obrigação pode ser

expresso por construções impessoais, como em One has to take off his shoes here e por construções pessoais,

como em We ought to have a right to intervene.

48

Proposições correspondem às coisas em que as pessoas acreditam (ou não), fatos possíveis de ocorrer a partir

de uma avaliação do falante. (cf. LYONS, 1989; CONRIE, 1990; OLBERTZ, 1998).

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comprometimento49

do enunciador com a verdade da proposição, sob o ponto de vista de suas

crenças, conhecimento (fonte), como no exemplo seguinte em que tener que + infinitivo

expressa que o falante está convencido sobre a verdade da proposição:

CONTEXT: (about how certain secret political papers have come to leak)

Alguna explicación tiene que tener (p. 404)

No exemplo acima, não há, na verdade, nenhuma fonte externa que sustente a

validade da conclusão apresentada como obrigatória e é o que Olbertz (1998) denomina

epistêmico. Para a autora, essa forma de comprometimento com a verdade da proposição se

distingue daquela em que o falante se baseia em uma evidência externa que lhe autoriza uma

conclusão, apresentada como certa, como em Todas as luzes estão acesas. João tem que estar

em casa. Esse último caso é tratado como modalidade inferencial (evidencial nos termos de

HENGEVELD, 2004).

Como vai ser discutido na seção seguinte, do processo de gramaticalização do verbo

pleno ter emergiram, no Português, duas construções modais, ter de + infinitivo e ter que +

infinitivo, ambas, em princípio, associadas aos domínios inerente e deôntico. Partimos do

pressuposto de que essas construções modais estão investidas de uma certa ambiguidade,

podendo ser usadas para explicitar a obrigatoriedade/necessidade de ocorrências de EsC

impostos por circunstâncias externas (modalidade extrínseca), convocar normas e princípios

mais gerais de conduta (modalidade deôntica) e avaliações subjetivas (modalidade

epistêmica), sustentadas ou não por evidências (raciocínio inferencial). Acreditamos, ainda,

que elas podem incidir sobre alvos distintos, embora, prototipicamente, indiquem uma

estratégia modal voltada para o participante. A classificação acima apresentada parece ser a

mais adequada para a verificação dessas hipóteses. Dessa forma, constitui o eixo central da

análise das construções modais com ter tanto na modalidade falada (cf. cap. 5), como na

modalidade escrita do português (cf. cap. 6). Acreditamos, ainda, que essa classificação

poderá contribuir para deixar mais evidente a trajetória [-subjetivo] > [+subjetivo], por

permitir identificar as diversas etapas do processo de subjetivização.

49

Hengeveld (2004, p. 1196) enfatiza que o falante pode expressar graus de comprometimento em relação à

verdade da proposição apresentada.

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3.2 Verbo ter: de pleno a auxiliar

Nesta seção, tecemos considerações acerca da multifuncionalidade do verbo ter e sua

produtividade na formação de perífrases verbais. Como já mostraram diversos autores (cf.,

por exemplo, PEIXOTO, 2006), no Português moderno, convivem usos de ter como verbo

pleno e como auxiliar na expressão de diversas categorias gramaticais, como tempo, aspecto e

modalidade. Essa multifuncionalidade não é inteiramente nova e lança raízes em estágios

anteriores do português.

3.2.1 O verbo ter nas perífrases verbais

A produtividade do verbo ter em português remonta à sua generalização para a

expressão de posse, uma mudança que se instaurou em estágios muitos anteriores do

português, em razão de contextos compartilhados pelos verbos tenere e habere. De acordo

com Mattos e Silva (2001), já no período arcaico do português, ter e haver intersectavam-se,

semanticamente, na referência a um objeto possuído concreto („ter na mão‟), o que explica a

utilização de ambos, nesse período, com o sentido de posse, ou seja, como núcleos de

predicados atributivos possessivos (cf. MATTOS E SILVA, op. cit. p. 74-79), embora não

estivessem em variação livre. Gradativamente, a distinção entre os dois predicados

possessivos se obscurece, com a invasão de teer em contextos antes reservados a (h)aver.

Com o tempo, ter se espalha para outros contextos de estruturas possessivas e haver

passa a ter somente o sentido de existência. No entanto, no decorrer da história, o verbo ter

continua concorrendo com o verbo haver, quer como verbo auxiliar em perífrases verbais

quer no seu sentido existencial (cf. RIBEIRO, 1996; FRANCHI, NEGRÃO & VIOTI, 1998;

AVELAR & CALLOU, 2007).

A ocorrência do verbo ter, juntamente com haver, em perífrases de tempo (verbo ter

seguido de particípio passado), corresponde à fase do português arcaico em que a forma do

particípio aparecia concordando em número com o complemento direto (como em Tenho

esses assuntos estudados) guardando, portanto, resquícios do seu significado de posse

(tenho/possuo/disponho destes assuntos estudados) (cf. ÓSCAR LOPES, 1971, p. 232 apud

COSTA, 2002, p. 45). A presença da concordância evidencia a manutenção de um sentido de

posse tanto por haver quanto por ter. Como mostra Mattos e Silva (2001), a criação dos

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tempos compostos, com os auxiliares ter e haver, só se generaliza no português a partir do

momento em que o particípio passado deixa de ser flexionado.50

Almeida (2006), assumindo pressupostos da gramaticalização, postula que a

recategorização dos verbos ter e haver como auxiliares é gradual: verbos principais > verbos

(semi) auxiliares > verbos auxiliares e atesta que, já no português arcaico, conviviam usos

correspondentes a esses três estágios, e, gradativamente, o semi-auxiliar evoluiu para um

verdadeiro auxiliar.

Como não é objetivo deste trabalho estudar o verbo haver, centramos nossa atençao

na evolução de ter como auxiliar. No português brasileiro contemporâneo, o verbo ter

mantém sua produtividade, participando de uma grande diversidade de construções. Em

termos categoriais pode funcionar como verbo-predicador (verbo pleno, nas construções de

posse), verbo existencial, verbo-suporte, verbo auxiliar de tempo, de aspecto e de modalidade

e, ainda, pode participar na formação de expressões cristalizadas (cf. PEIXOTO, 2006)51

Nas construções possessivas, o verbo ter possui conteúdo lexical pleno,

comportando-se como verbo autônomo. Nesse contexto, constitui o núcleo do predicado,

selecionando dois argumentos: interno (complemento) e externo (sujeito), correspondendo a

um esquema em que X (o possuidor) possui Y (a coisa possuída).

Nas construções existenciais (ou impessoais), o verbo ter sofre um desbotamento da

noção de posse e, embora ainda núcleo do predicado, perde algumas de suas propriedades

sintáticas: seleciona apenas um constituinte interpretado como objeto direto, sendo possível

ocorrer um sintagma preposicional.

O mesmo esvaziamento semântico verifica-se no uso do verbo ter como verbo-

suporte (verbo leve ou verbo funcional, cf. CASTILHO, 1997), quando é seguido de um SN,

com núcleo abstrato, cuja função é a de suportar a significação da construção. Nessa estrutura,

o verbo ter junto com seu complemento compõe, nos termos de Neves (2000, p. 53), “um

significado global, geralmente correspondente ao que tem um outro verbo na língua.” Nesse

50

Mattos e Silva (2001, p. 64) apresenta exemplos que evidenciam a difusão da estrutura própria ao tempo

composto situados na primeira metade do século XV.

51 Peixoto (2006, p. 82) apresenta os seguintes exemplos de expressões cristalizadas extraídos da Amostra

Recontato do PEUL (1997-1999):

Érica, você quando era criança você disse que gostava muito de dançar e cantar. Você queria ser cantora. Até

que ponto isso tem a ver com a profissão que você escolheu hoje, que você escolheu para você? (Inq. 16).

Também, eu trabalho num departamento, então não tem como você ficar em silêncio, né?(Inq. 15).

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caso, esse SN carrega os papeis temáticos da predicação e o verbo ter torna-se apenas

portador das categorias gramaticais de pessoa, número, tempo e modo (cf. VIEIRA, 2004).

Nas construções participiais (ter + particípio), o verbo ter, inteiramente esvaziado do

valor de posse, assume a função gramatical de auxiliar, carregando as categorias modo-

temporais e número-pessoais. O verbo ter, neste caso, perde inteiramente sua autonomia,

deixando de atuar como núcleo da predicação. Assim, na perífrase ter + particípio (V1+V2),

os argumentos interno e externo dependem da estrutura argumental de V2.

Nas construções indicativas de modalidade, formalizada em [V1finito + {de/que} +

V2infinitivo], objeto de atenção neste estudo, o verbo ter, ligado pela preposição de ou pelo

elemento que a uma forma verbal no infinitivo, assume papel de auxiliar modal, carregando

as desinências número-pessoais e modo-temporais. A seleção do argumento externo depende

de V2, a forma de infinitivo.

Como vimos até aqui, o verbo ter funciona como fonte para a derivação de auxiliares

com valores distintos, ou seja, sofre um processo de esvaziamento semântico e de

abstratização, perdendo sua substância de verbo pleno, a partir do seu uso em outros

contextos. Sob a perspectiva dos postulados discutidos no capítulo 2, o verbo ter migra do

léxico para a gramática, de [+concreto] para [+abstrato], numa trajetória unidirecional, verbo

ter pleno > verbo ter auxiliar. Um problema é a direcionalidade dos diferentes valores

gramaticais que ele desenvolve. No que se refere ao Português, essa trajetória é defendida, por

exemplo, por Peixoto (2006, p. 90), que propõe o seguinte cline: verbo ter pleno > verbo ter

auxiliar temporal > verbo ter auxiliar aspectual > verbo ter auxiliar modal. Para Bybee

(1985), no entanto, a categoria de tempo origina-se da categoria de aspecto ([-abstrata]) e a

categoria de modo/modalidade ([+abstrata]) origina-se da categoria de tempo (cf. também

GONÇALVES, 2012), trajetória que encontra evidência, inclusive, na aquisição da

linguagem. Assumindo essa posição, teríamos a seguinte trajetória de ter: verbo pleno >

auxiliar aspectual > auxiliar de tempo > auxiliar de modalidade. Na seção seguinte,

retomamos essa questão, discutindo-a mais profundamente.

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3.2.2 O verbo ter nas perífrases modais

No Português contemporâneo, o verbo ter participa de duas perífrases indicativas de

modalidade: da construção ter de + infinitivo e da construção ter que + infinitivo. Na opinião

de Said Ali (1966a, p. 162), a construção ter de + infinitivo é um neologismo que se expande

e se consagra na literatura a partir do século XVIII, com sentido especializado, indicando que

a ação a praticar não depende da vontade do sujeito, ou seja, é externa. Essa construção

concorria, num primeiro momento, com a perífrase haver de + infinitivo (como em haver de

partir), uma forma mais antiga de expressão de injuntivo, isto é, de expressar

necessidade/obrigatoriedade. Porém, o autor (op. cit.) destaca que há diferença entre as

perífrases com haver e com ter, na medida em que a segunda exprime com mais precisão uma

necessidade imperiosa, independente da vontade do locutor.52

Há indícios, no entanto, de que

as construções modalizadoras ter de/que + infinitivo conviviam com haver de + infinitivo já

no Português arcaico (cf. ALMEIDA, 2006, p. 19; VITRAL, 2006, p. 126).53

O caráter de „novidade‟ da construção ter de + infinitivo, na expressão de

obrigatoriedade, é bem ilustrado no seguinte trecho de Said Ali (1966b, p.118):

Frei LUÍS DE MONTE CARMELO, cujo testemunho de boa mente aceitamos

quanto ao falar de seu tempo – século XVIII – não se deu de certo ao trabalho de

atentar nos escritos de eras anteriores, notáveis todos pela ausência do novo tipo

de necessitativo. Cansaria a mão e a vista em inventariar os exemplos de haver

de legados pelos arcaicos, pelos quinhentistas [na 2. ed.: “pelos quinhentistas e

seiscentistas”], sem ver pelo meio deles passagens como o moderno tenho de

orar, em que o verbo subsidiário perdeu o sentido concreto para designar

“intenção, propósito, obrigação”.

Como já observaram diversos autores, principalmente em relação ao PB, o uso de ter

de + infinitivo generaliza-se em detrimento de haver de + infinitivo, ocorrendo, mais uma

vez, a invasão do espaço de haver pelo verbo ter, como já atestado para a expressão de posse.

Essa generalização de ter no lugar de haver pode ser observada igualmente no Espanhol.

Izquierdo (2006) registra a ocorrência de haber de + infinitivo com valor de ordem na Idade

Média, com um pico de frequência no século XIV. Depois, essa perífrase (mais apropriada à

língua literária) entrou em constante declínio, sendo substituída por tener que.

52

Câmara Jr. (1976, p. 170) atribui às construções ter de/que + infinitivo o valor de obrigação ou compulsão e à

haver de + infinitivo a indicação de uma imposição do falante, como em hei de sair.

53

Vitral (2006, p. 126) atesta a ocorrência de ter que “modal”, no séc. XV, no texto Conselhos de Duarte Dias:

“non tomando a hus por dar a outros nem dando tanto hu dia que per todo o ano non tenha que dar”.

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É necessário, no entanto, situar o aparecimento de ter que + infinitivo com valor e

função similares aos da construção ter de + infinitivo. De acordo com Said Ali (1966b, p.

118), a explicação mais simples para o surgimento da construção ter de + infinitivo é o

“costume” de omitir um nome “que a inteligência sem custo completaria”, como em tenho

(obrigação) de ir, embora admita a ausência de fatos que possam confirmá-la. Esta

interpretação é assumida também por Amaral (1950), ao dizer que em ter de ocorre a elipse

do SN de obrigação, necessidade, precisão, desejo, como em “Tenho de partir agora mesmo”.

Para Said Ali (op. cit.), no entanto, a explicação pode não ser tão simples e a origem da

construção ter de tenha sido influenciada por dois aspectos: de um lado, a relação com a

expressão de necessidade em hei de dizer, transferida para ter de e, por outro, o apagamento

do argumento interno na construção tenho que dizer correspondente, na sua origem, a algo

como tenho coisa que deva dizer. Em ter que há a elipse de “algo, coisa, coisas”, como em

“Tenho hoje muito que fazer” (= Tenho muitas coisas para fazer), “Tenho que ver” (= Tenho

algo para ver). Nesse caso, ter de e ter que teriam passado por um processo de cruzamento

sintático através de uma contaminação da primeira pela segunda (cf. também ROCHA LIMA,

2008, p. 370).

Admitir um processo de contaminação entre as duas construções requer definir as

diferenças estruturais entre elas, o que está na origem, inclusive, de algumas prescrições

gramaticais. Rocha Lima (op. cit., p. 370), por exemplo, estabelece a diferença entre as duas

construções de acordo com a transitividade do verbo no infinitivo: (i) ter que só deve ser

usado com infinitivo transitivo e o elemento que funciona como pronome relativo, como em

Tenho umas cartas que escrever (que = objeto direto de escrever) ou Tenho que escrever

umas cartas (umas cartas = objeto direto de tenho que escrever); (ii) ter de pode ser usado

com infinitivo transitivo ou intransitivo, como em Tenho de sair à noite /Tenho de escrever

umas cartas.

Essa análise é partilhada por Almeida (1979) para quem, na construção ter que, o que

tem a função de pronome relativo. Nesse caso, o que só é cabível em estruturas como “Ele

tem um caso que estudar” em que o elemento que é um pronome relativo na função de objeto

direto (um caso) do verbo estudar. Numa postura mais normativa, Almeida (op. cit. ibidem)

adverte que são erradas construções como “Ele vai ter que estudar o caso” porque o que não

exerce nenhuma função. Retomando os termos do autor:

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Quando não corresponde a nenhum antecedente, o que é errado, erro que não

existia até Bernardes. Assim devemos dizer: Tenho de fazer, tenho de correr,

temos todos de morrer – expressões em que existe a idéia de necessidade, de

obrigatoriedade. O de é preposição; rege o substantivo verbal que se lhe segue.

Quando este verbo for intransitivo, ou transitivo empregado em sentido geral,

sem objeto, ou, ainda, quando não houver nenhum antecedente, nem expresso

nem oculto, o de é que deve aparecer, porquanto a idéia de necessidade, de

obrigatoriedade. (ALMEIDA, 1979, p. 243)

A interpretação do elemento que como pronome relativo na construção ter que +

infinitivo está longe de ser consensual. Hauy (1983), por exemplo, considera que nessa

construção o que se encontra no predicado e não possui função sintática. Nos termos da autora

(op. cit. p. 67), “analisá-lo como preposição acidental em perífrase verbal resultante de um

cruzamento sintático parece mais acorde com o sentido da construção.” Concordando com

Hauy, Bechara (2009, p. 232) explica que, em tenho que estudar, o que, como índice de

complemento de natureza nominal, funciona como verdadeira preposição e adverte que não se

pode confundir este que preposição com o que pronome relativo em construções do tipo tenho

muito que fazer.

Se admitirmos essa segunda interpretação, qualquer delimitação de emprego das duas

construções com base no tipo sintático do verbo no infinitivo é artificial e nenhuma prescrição

gramatical se sustenta, como já defendia Câmara Jr. (1976), o que não impede, no entanto, a

constatação de diferenças de registro entre elas: ter que + infinitivo fica associada ao registro

coloquial e ter de + infinitivo a registros mais formais ou mesmo restrito à modalidade escrita,

como propõe Luft (2003, p. 503). Nesse sentido, a comparação entre fala e escrita nesta tese

fornece evidências adicionais, na medida em que, como veremos no capítulo 5, a construção

ter que + infinitivo é praticamente categórica na modalidade falada. Embora “pouco

recomendável”, nos termos de Ferreira (1999), a construção ter que + infinitivo torna-se um

“fato da língua”, como admite Rocha Lima (2008, p. 370)54

ou um uso “amplamente

consagrado” (LUFT, 2003). Na mesma direção, Bechara (2009, p. 232), ao comparar ter de

com ter que, admite que se usa “mais modernamente” ter que + infinitivo.55

54 Rocha Lima destaca que essa construção já era empregada por grandes escritores, como Rui Barbosa.

55

Uma situação semelhante é constatada por Izquierdo (2006) para o Espanhol da Espanha, em que a perífrase

mais antiga tener de + infinitivo, praticamente, não é mais usada hoje. Quanto à tener que + infinitivo, segundo a

autora, os primeiros exemplos aparecem no séc. XV, mas essa perífrase só passa a ser usada um século mais

tarde.

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Além das possíveis diferenças estruturais, a sinonímia de valor modal expresso por

essas construções é igualmente controversa. Said Ali (1966b) relaciona a perífrase ter de +

infinitivo à menor participação do sujeito, denotando necessidade externa, enquanto ter que

visa à maior participação do sujeito, indicando necessidade interna. Para Rocha Lima (2008,

p. 370), diferentemente de ter que + infinitivo, ter de + infinitivo forma uma locução que

indica ser infalível ou necessário o fato expresso pelo infinitivo, como nos exemplos: Tenho

de sair à noite/Tenho de escrever umas cartas, uma interpretação compartilhada por Almeida

(1979), para quem uma frase como “Tenho de conquistar o poder” corresponde a “Custe o que

custar, conquistarei o poder” (cf. também CUNHA & CINTRA, 2008).

Para alguns autores, no entanto, o mesmo valor modal de necessidade pode ser

atribuído a ter que + infinitivo. Câmara Jr. (1981, p. 169) trata as duas construções

conjuntamente, especificando que a conjugação perifrástica com o auxiliar ter, em qualquer

de seus tempos verbais, relacionado a um infinitivo pela partícula de ou que, expressa a

obrigação que pesa sobre o sujeito, como em tenho de ir, tinha de falar, tive que explicar,

terei que ir (cf. também MIRA MATEUS ET ALII, 1983; NEVES 2000).56

Para Rigoni Costa (1995) e Faria (2003, apud NEVES, 2006, p. 220), a evolução das

perífrases ter de/que + infinitivo como modalizadores deônticos está relacionada ao

esvaziamento semântico do modal dever. Comparando os usos e contextos em que dever e ter

de/que são usados, Rigoni Costa (op. cit.) propõe que, para dever, o falante reserva a função

de expressar probabilidade e/ou suposição, enquanto as perífrases ter de/que + infinitivo

estariam associadas à expressão de obrigação. Essa opinião é partilhada por Neves (2006, p.

220, nota 30), quando ressalta que se tem verificado que o verbo dever é muito mais frequente

na expressão de possibilidade do que de obrigatoriedade. Para a baixa frequência do uso

deôntico desse modal, segundo a autora, deve-se levar em consideração a concorrência de

verbos menos polissêmicos e mais enfáticos, especialmente ter de/que.

Mesmo no seu valor de necessidade/obrigação, parece se aplicar a ter de/que +

infinitivo e a dever algumas considerações para deber e tener que em Espanhol. Para

Fernández de Castro (1999), a diferença entre deber e tener que compreende uma diferença de

gradação em relação à natureza da fonte deôntica: tener que + infinitivo expressa uma

obrigação sistematicamente externa, imposta ao interlocutor pelo locutor, em conflito com a

56

Mira Mateus et alii (1983, p. 152) acrescentam que ter de/que constituem por si só modalidade lexicalizada,

isto é, verbos modais que expressam modalidade necessária.

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vontade do primeiro. Na posição de Izquierdo (2006), no domínio deôntico, não há uma

diferença de gradação entre esses dois verbos, mas uma diferença semântica modal. A autora

apresenta exemplos com tener que em que o locutor recrimina o comportamento do

interlocutor (como em Siempre tienes que meter la pata), impossibilitando a ocorrência de

deber com esse sentido. Por outro lado, segundo Izquierdo (2006), a necessidade imposta por

deber deriva de um sistema de normas pré-existentes, exteriores ao enunciado e ao locutor.

Menos impositiva, esta forma evita um confronto entre o locutor e o alocutário, permitindo ao

primeiro contra-argumentar, reagir à imposição. Tener que, ao contrário, expressa obrigação

deôntica mais forte e possui uma fonte variável: o locutor, o próprio agente, uma fonte

externa ao enunciado, que pode coincidir ou não com normas legais, sociais, morais.

Nos empregos epistêmicos de deber e tener que, retomando a posição de Izquierdo

(op. cit.), é possível diferenciá-los em termos de gradação (como em Deben (de) ser las ocho,

es más, tienen que serlo), visto que tener que expressa uma necessidade/probabilidade mais

forte que deber. Nos termos da autora (op. cit, p. 11), “a semântica de deber permitiu o

desenvolvimento de um valor epistêmico “enfraquecido” (a proposição afirmada não é

necessariamente verdadeira), enquanto que a perífrase tener que se encarrega de expressar a

necessidade epistêmica mais forte.”57

Não sendo marcada quanto à fonte, Izquierdo (op. cit.)

ressalta que a construção tener que + infinitivo admite um grande número de empregos, o que

explica sua expansão na língua falada.

Como acima evidenciado por Izquierdo (op. cit.) para o Espanhol, há indicações de

que, assim como dever, ter que + infinitivo e ter de + infinitivo, em Português, se estendem

além do domínio deôntico. Mira Mateus et alii (1983, p. 153), por exemplo, admitem a

possibilidade de que, quando utilizadas com referência total ou parcial ao locutor, as

perífrases com ter podem se direcionar para o domínio epistêmico, passando a indicar

necessidade, como no exemplo (3) extraído dos dados da amostra Censo 1980:

(3) E: Ah? mas você disse que um bom relacionamento não podia haver

ciúmes, é isso aí!

F: Não, um bom, um bom! Um bom não deveria, não é? Um bom não

deveria, mas, já que a pessoa não deve, não deve, não é? Mas já que

pessoa gosta, aí fica toda pessoa que gosta não tem muito, mas sempre

um pouquinho tem que ter. (CEN-80/02)

57

"La sémantique de deber a permis le développement d‟une valeur épistémique „faible‟ (la proposition assertée

n‟est par nécessairement vraie), tandis que la périphrase tener que s‟est chargée d‟exprimer la nécessité

épistémique la plus forte." (IZQUIERDO, 2006, p. 11).

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Como ocorre em Espanhol, no emprego epistêmico, parece haver uma diferença de

gradação entre as perífrases com ter e o verbo modal dever. Como mostra Gómez Torrego

(1999), a construção tener que + infinitivo está mais próxima de um polo de certeza

(necessidade epistêmica para SILVA-CORVÁLAN, 1995) do que dever.

É importante destacar que a oscilação entre os domínios deôntico e epistêmico

constitui uma característica das formas e construções modalizadoras. Na perspectiva de Bybee

& Pagliuca (1985), um deslizamento de valor deôntico para o valor epistêmico é resultado de

uma extensão metafórica em que o sentido de obrigação passa ser aplicado à verdade de uma

proposição, ou seja, “uma proposição X é obrigada a ser verdadeira”.58

Como destacam Mira

Mateus et alii (1983), o reconhecimento do valor modal depende, em grande parte, da

identificação que o ouvinte faz acerca das intenções do seu interlocutor. Nesse sentido, Vilela

& Koch (2001, p. 176) ressaltam que, no ato de comunicação,

O falante toma posição sobre o conteúdo fixado linguisticamente no enunciado,

jogando entre as duas categorias básicas: realidade e não-realidade. A partir

daqui, constroem-se as escalas possíveis: certeza e incerteza, suposição,

condição, necessidade, exigência, possibilidade ou impossibilidade de um dado

acontecer, etc.

Nessas escalas, as duas construções modais com ter constituiriam formas de

gramaticalização de atitudes subjetivas do enunciador.

Uma outra interpretação da construção ter que + infinitivo, no domínio deôntico,

próxima do sentido de permissão, pode ser encontrada nos dados em análise, como em (4):

(4) F: Ah, essa daí num é na Igreja Evangélica, essa aí é Católica. Católica é

que tem santo, que as pessoas ficam lá.

E: Imagem, né?

F: Imagens, a pessoa vai lá pra adorá, lá na Igreja ninguém pode adorá, só

tem que adorá um: a Deus. (CEN-00/17)

Conforme ficou evidenciado, dependendo da intenção comunicativa do falante, pode-

se depreender diversos efeitos de sentido de um enunciado com as construções modalizadoras

ter de/que + infinitivo, viabilizando um continuum pragmático-semântico. A partir do valor de

obrigação/necessidade, essas construções expandem seus usos, instanciando valores mais

subjetivos de necessidade epistêmica ou mesmo, de acordo com o contexto, implicar outros

valores.

58

“[...] a proposition: X (a proposition) is obliged to be true.” (BYBEE & PAGLIUCA, 1985, p. 73).

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3.2.3 Gramaticalização das construções ter de + infinitivo e ter que+ infinitivo

Ao admitir um cruzamento sintático entre as construções ter de + infinitivo e ter que

+ infinitivo, muitos autores remetem, implicitamente, para o processo de gramaticalização

pelo qual teria passado a segunda construção. Retomando sucintamente alguns pontos, Said

Ali (1966a) já admitia que o verbo ter deixa de funcionar como nocional para funcionar como

relacional (auxiliar), designando “intenção, propósito, obrigação”. Para Vilela & Koch (2001),

o verbo ter é auxiliar de modalidade, porque se deslexicalizou e reforçou o seu peso

gramatical, portanto, necessita de um verbo pleno para funcionar como predicado.

Os pressupostos sobre gramaticalização, desenvolvidos no capítulo 2, permitem

formalizar muitas dessas intuições no interior de um quadro mais coerente. De acordo com

esses pressupostos, podemos dizer que, nas construções ter de/que + infinitivo, ou seja, [V1fin.

+ {de/que} + V2inf.], o verbo ter sofreu alteração categorial, inserindo-se no paradigma dos

auxiliares. Essa decategorização decorre da transferência de um conceito do domínio de posse

para o domínio da modalidade (cf. PEIXOTO, 2006, p. 11), isto é, houve a dessemantização

da forma-fonte, a partir da transferência conceptual do mundo real [+concreto] para o mundo

do discurso [+abstrato], entendendo a modalidade como um fenômeno semântico-pragmático

e discursivo. Em princípio, essa trajetória do verbo ter satisfaz algumas das propriedades do

processo de transferência metafórica proposto por Heine, Claudi & Hünnemyer (1991, p. 46),

visto que (a) envolve um significado reconhecido como “literal” e outro que é “transferido”

ou “metafórico” e (b) envolve a transferência de um domínio conceitual (posse) em termos de

outro (obrigatoriedade/necessidade).

Pode-se pressupor que essa mudança semântica tenha sido acompanhada de um

processo de reanálise no sentido de alteração de fronteiras entre constituintes de uma

expressão (cf. LANGACKER, 1997, p. 58). Admitindo que a reanálise é um processo por

meio do qual os falantes mudam sua percepção de como os constituintes de sua língua estão

ordenados no eixo sintagmático (cf. CASTILHO, 1997, p. 53), podemos postular que:

1º) em [ter [que + infinitivo]] ocorrem duas orações, uma principal com o verbo ter

pleno e outra subordinada;

2º) em [ter que + infinitivo ], através da eliminação da fronteira entre a oração

principal e a subordinada, origina-se uma unidade indissolúvel em que o verbo ter perde suas

propriedades de selecionar argumentos, tornando-se no elemento que carrega as informações

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modo-temporais e número-pessoais. No caso de ter de + infinitivo, não há fronteira a ser

eliminada, porque só há uma oração.

Essa interpretação requer, no entanto, pressupor etapas intermediárias que possam

explicar, dentre outros aspectos, a mudança categorial de que, o qual passa de pronome

relativo a elemento de ligação entre dois verbos. Vale lembrar que, segundo o que já vimos na

seção 3.2.1, a maioria dos autores restringe, pelo menos inicialmente, a construção ter que +

infinitivo a verbos de dois ou três argumentos, admitindo um complemento implícito para ter.

Uma explicação mais satisfatória desses possíveis estágios intermediários do

processo de reanálise é fornecida por Heine (1993, p. 42). Na análise da gramaticalização de

have to em Inglês, o autor propõe que o cancelamento do argumento interno do verbo ter (o

objeto possuído) procede por etapas. Aplicando tal modelo à gramaticalização da construção

ter que + infinitivo, teríamos:

Estágio I - Eu tenho uma carta [Esquema de posse]

Estágio II - Eu tenho uma carta para escrever [Esquema de posse + finalidade]

Estágio III - Eu tenho (uma carta) que escrever [o significado de posse de ter foi

esvaziado]

Estágio IV - Eu tenho que escrever uma carta [ter que funciona como unidade

lexical, expressando a noção modal

de obrigação]

Estágio V - Eu tenho que escrever [o objeto pode ser apagado]

Um problema na proposta de Heine (1993, p. 42) é que não fica explícito o ponto

onde ocorreria a reanálise. Krug (2000, p. 55)59

, endossando os estágios pressupostos por

Heine (1993), propõe que dois processos atuam conjuntamente: o movimento do argumento

interno de ter, da primeira para a segunda oração, e a reanálise sintática (também

denominada mudança de fronteira ou reestruturação), na seguinte ordem cronológica:

59

A interpretação de Krug (2000, p. 54-55) para have to já tinha sido proposta por outros autores, como, por

exemplo, Visser (1969, p. 1478).

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Estágio I – Eu tenho uma carta [Esquema de posse]

Estágio II- [Eu tenho uma carta] [para escrever] [Esquema de posse + finalidade]

Estágio III – [Eu tenho uma carta] [para (eu) escrever [Esquema de posse + finalidade]

(uma carta)]

Estágio IV – [Eu tenho Φ] [que escrever uma carta] > [Supressão de fronteira]

[Eu tenho que escrever uma carta]

Estágio V – [Eu tenho que escrever] [Apagamento do objeto]

A explicação dada por Krug (op. cit.) para os estágios acima apresentados é a

seguinte: no primeiro estágio, temos uma relação entre um possuidor a algo possuído; no

segundo, o período composto é formado por duas orações: uma principal, indicando uma

relação de posse e outra subordinada, indicando finalidade. No terceiro estágio, o autor (op.

cit., p. 56) aponta um problema em relação à classificação da oração subordinada: se a carta

ainda não foi escrita, não pode constituir objeto de posse. Ainda, nos estágios II e III, os

sujeitos e os objetos das duas orações são co-referenciais e, consequentemente, podem não ser

realizados superficialmente. No estágio IV, ocorre a supressão da fronteira entre as orações e

o apagamento do objeto direto de ter. O autor considera que, nesse estágio, o objeto é movido

da sua posição inicial (depois do auxiliar) para depois de V2, completando o sentido de

verbos transitivos, tal como ocorre em (5), em que o objeto alguma coisa foi movido para

depois do infinitivo:

(5) E: E você acha que isso tá prejudicando, assim o orçamento aí da sua

família?

F: É...isso. Minha mãe tá mais de quatro anos querendo comprar um vídeo-

game mas [todo-] todo o ano que sai o dinheiro pra comprar sempre tem

que pagá alguma coisa. O juros às vezes pega quase o dinheiro da minha

mãe todo, do meu pai e... num dá. (CEN/00-03)

Na transição do estágio IV para o V, ocorre, segundo Krug (op. cit., p. 58), o

apagamento do objeto direto de V2 (cf. também FLEISCHMAN, 1982, HEINE, 1993), o que

permite generalizar o uso da construção com verbos intransitivos, como em [Eu tenho que

sair]. O estágio V demonstra que ocorre uma reanálise completa da estrutura complexa

original, não sendo mais possível a análise típica do estágio IV. Como, no estágio V, não há

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objeto nem em [Eu tenho que escrever] e nem em [Eu tenho que sair], a posição do verbo ter

se fixa antes do verbo principal, formando a estrutura [V1fin. + que + V2inf.], que abrange tanto

V2 transitivo quanto intransitivo. Embora haja necessidade de evidências históricas, esta

hipótese parece plausível, se considerarmos a existência de casos ambíguos em que ainda se

há possibilidade de interpretar o elemento que como pronome relativo, como em (6):

(6) E: E o pessoal que mora ali, se dá bem, assim, uns com os outros?

F: Tem uns que vão lá na- a minha casa, eu não tenho que dizer de

nenhum deles ali, sabe? porque a gente se dá com todo mundo, conversa

com todo mundo, porque a gente precisa muito de vizinho. (CEN-80/04)

Se a análise acima parece convincente para ter que + infinitivo, ela coloca alguns

problemas de generalização para ter de + infinitivo, pois exige uma revisão nas etapas

intermediárias. Vimos, na seção 3.2.2, que Said Ali (1966b) explica o possível surgimento da

perífrase ter de + infinitivo como resultado da omissão de um objeto direto implícito, como

em tenho (obrigação) de ir (cf. também AMARAL, 1950). Se presente, um objeto direto,

como obrigação ou necessidade, esvazia a noção de posse do verbo ter, visto que se trata de

uma nominalização, necessariamente um SN [-animado]. Assim, o apagamento do SN objeto

direto da construção ter de + infinitivo é uma operação direta, que não exige seu movimento.

Além disso, não temos nessa estrutura um pronome relativo (*Tenho uma carta de escrever),

mas sim um complementizador (Tenho de escrever uma carta). Portanto, a aplicabilidade da

trajetória acima postulada para ter que + infinitivo pode ser relacionada apenas parcialmente à

construção ter de + infinitivo, o que permite colocar em dúvida a generalidade do processo

acima.

É bem possível que as duas construções tenham derivado de trajetórias

independentes que se cruzam em alguma etapa, instaurando uma variação entre as duas

construções com valor modal de obrigação. O contexto em que elas se cruzariam poderia ser o

da expansão de ter que para verbos intransitivos.

Vimos que diversos autores, já citados nesse capítulo, embora admitam diferenças de

frequência distribucionais entre as construções ter de + infinitivo e ter que + infinitivo,

assumem semelhanças funcionais entre elas: ambas atuam como modalizadores de um EsC

descrito, indicando uma obrigação imperativa, inevitável. Utilizando a classificação de

Olbertz (1998) e Hengeveld (2004), as duas construções podem, em princípio, funcionar

como modais no domínio inerente extrínseco e deôntico.

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Diversos autores têm mostrado, no entanto, que as construções modais formadas com

o verbo de posse ter podem derivar usos epistêmicos ou usos modais orientados tanto para o

agente quanto para o falante, nos termos de Bybee, Perkins & Pagliuca (1994)60

, como é o

caso, por exemplo, de have to em inglês, como mostra Traugott (1988) ou tener que em

Espanhol, segundo análise de Izquierdo (2006). Em outros termos, as construções modais

constituídas com verbo de posse podem sofrer uma crescente subjetivização. A esse respeito,

assim se posiciona Traugott (1988):

No caso do desenvolvimento de epistêmicos derivados de verbos de volição ou

deônticos, há um fortalecimento da subjetividade e do foco na crença e no

conhecimento: se digo You had to go no sentido de obrigação, infiro que eu

acredito que você foi. Entretanto, em You had to have gone, derivado de You had

to go, a inferência da crença do falante em relação à verdade do complemento é

fortalecida. (TRAUGOTT, 1988, p. 411)61

Com base nas considerações acima, partimos da hipótese de que a gramaticalização

das construções ter de/ que + infinitivo prossegue, no estágio atual do PB, com o

desenvolvimento de usos epistêmicos, numa trajetória que vai de [-subjetivo] para

[+subjetivo].

3.2.4 Grau de auxiliarização de ter nas perífrases modais

Na seção anterior, procuramos mostrar as etapas de um possível processo de

gramaticalização de ter nas construções ter de/que + infinitivo, no sentido de verbo pleno >

verbo auxiliar modal. No entanto, a própria classificação do verbo ter nessas construções não

é consensual. Se, para alguns autores, ele é verdadeiro auxiliar (cf. SAID ALI, 1966a;

PONTES, 1973; BENVENISTE, 2006 [1974]; CÂMARA JR., 1981; NEVES, 2002; VILELA

& KOCH, 2001; PEIXOTO, 2006), para outros, é semi-auxiliar (cf. ALMEIDA, 2006;

VIEIRA, 2004) ou até mesmo não-auxiliar (cf. LOBATO, 1975). Subjacente a essa falta de

60 Na perspectiva de Bybee et al. (1994), do ponto de vista diacrônico, é mais correto dizer que a modalidade

orientada para o agente desenvolve-se na modalidade orientada para o falante e para a modalidade epistêmica,

do que dizer que a modalidade epistêmica origina-se da modalidade deôntica, considerando que a modalidade

deôntica corresponde apenas a um dos valores que abrange a modalidade orientada para o agente.

61

“In the case of the development of the epistemics from volitionals or deontics, there is strengthening of the

subjective element, and of focus on belief and knowledge: if I say You had to go in the obligation sense, I invite

the inference that I believe you did go. Therefore, in You had to have gone, derived from You had to go, the

inference of the speaker‟s belief in the truth of the complement is strengthened.” (TRAUGOTT, 1988, p. 411).

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consenso, está o problema mais amplo que envolve graus de auxiliaridade, numa escala que,

simplificadamente, poderíamos formular como: verbo pleno > verbo semi-auxiliar > verbo

auxiliar.

Antes de mais nada, assumimos, de acordo com Vieira (2004), a necessidade de

distinguir entre auxiliarização e auxiliaridade. Auxiliarização corresponde ao processo de

gramaticalização que atua sobre formas verbais, implicando extensões de sentido/uso dessas

formas da categoria lexical (verbo-predicador) para uma categoria gramatical, sob certas

condições semânticas e morfossintáticas. A auxiliaridade, por sua vez, refere-se ao

comportamento instrumental que uma unidade verbal pode desempenhar num continuum de

usos/sentidos na língua. No caso do verbo ter, a auxiliaridade incide sobre um verbo

gramatical que se junta a outro verbo de caráter lexical, formando a sequência V1 + V2, em

que V1 é o verbo auxiliante e V2 o verbo auxiliado. Nos termos de Benveniste (2006 [1974],

p.193), nas perífrases modais, temos uma estrutura binômica: “O primeiro termo é a forma

flexionada do auxiliante; o segundo, o infinitivo do verbo auxiliado.” Em síntese, [V1fin. + V2

infin.].

Uma análise mais aprofundada do processo de auxiliarização de ter nas construções

ter de/que + infinitivo requer a consideração de algumas propriedades mais gerais dos verbos

auxiliares e aspectos ligados à formação de perífrases.

Câmara Jr. (1981) utiliza o termo conjugação perifrástica ao se referir às perífrases

formadas por um verbo em uma de suas formas nominais e por outro que, através do processo

de gramaticalização, passa a auxiliar. A forma perifrástica de modo, na indicação de

obrigatoriedade, segundo o autor (op. cit.), é formada pelo verbo auxiliar ter que se relaciona

a um infinitivo pela „partícula‟ de ou que. Câmara Jr. (1976) especifica que, nas conjugações

perifrásticas, o verbo auxiliar apresenta duplo significado gramatical:

a) de um lado, as categorias número-pessoal e modo-temporal, que se expressam

na flexão do verbo auxiliar; b) de outro lado, a nuança categórica, privativa da

construção, e que resulta da associação da significação lexical do auxiliar com o

tipo de forma nominal que o acompanha (em português: particípio perfeito,

gerúndio, infinitivo). Há assim uma unidade semântica na composição

(CÂMARA Jr., 1976, p. 163-164).

Portanto, para Câmara Jr., assim como para outros autores, como Gómez Torrego

(1999) e Longo & Campos (2002), perífrase verbal forma um compósito sintático-semântico

constituída pela união de dois verbos (V1+V2), em que V1 contém as informações

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morfológicas de número e pessoa, tempo e modo e V2, na forma de infinitivo, gerúndio ou

particípio, constitui o núcleo da predicação. Desse ponto de vista, uma oração com as

construções ter de/que + infinitivo forma uma unidade nuclear, com um único predicado

verbal.

Na definição de perífrase como unidade, portanto, já está implícito o critério de

indissociabilidade entre os elementos da construção, o que se traduz, inclusive, numa

pressuposta impossibilidade de interpolação de outros constituintes entre V1 e V2, como na

maioria dos tempos compostos. Alguns autores distinguem entre locução verbal e perífrase

verbal. Para Vieira (2004), por exemplo, o termo locução verbal corresponde às estruturas

perifrásticas prototípicas cujos componentes apresentam maior grau de integração e

significação (praticamente) indissolúvel e reserva a expressão estrutura perifrástica para

construções que apresentam menor grau de coesão e possibilidade de significação disjunta.

No entanto, em muitos casos, é possível intercalar, por exemplo, advérbios ou locuções

adverbiais, o que por si mesmo já sinaliza que o grau de conexão entre o „auxiliante‟ e o

„auxiliado‟ não é tão forte. Considerando que a intervenção de elementos entre V1 e V2 é uma

questão de grau, pode-se considerar que, na medida em que essa possibilidade se restringe, V1

aproxima-se do polo de maior auxiliaridade. No que se refere às construções ter de +infinitivo

e ter que + infintivo, essa questão será retomada de forma mais controlada na análise

desenvolvida no capítulo 5.

O problema da auxiliariadade envolve, na verdade, a determinação das propriedades

inerentes a um auxiliar e ausentes dos verbos plenos, o que só pode ser colocado em termos

de gradação, ou seja, em graus de auxiliaridade (cf., por exemplo, OLBERTZ, 1998;

VIEIRA, 2004; ALMEIDA, 2006; PEIXOTO, 2006; VITRAL, 2006). Considerando o

significado lexical do auxiliar, Câmara Jr. (1976) propõe uma escala de gramaticalização para

as conjugações perifrásticas, em termos de (+) ou (-), ou seja, na gramaticalização [+ forte], o

significado do auxiliar, tornando-se um mero instrumento gramatical, esvazia-se.

Comparando as diversas perífrases formadas com infinitivo (como quero + infinitivo,

começar a + infinitivo) com ter de/que + infinitivo, o autor (op. cit.) ressalta que essas são as

mais gramaticalizadas.

Definir o grau de auxiliaridade de uma forma verbal, entretanto, implica considerar

seu comportamento em relação a um conjunto de critérios, que varia de autor para autor,

como aponta Heine (1993). Neste ponto, retomamos alguns dos critérios propostos por

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diferentes autores, considerando: (i) os parâmetros comuns às diversas abordagens e (ii) os

parâmetros mais específicos a uma ou outra proposta, como esquematizado no quadro 1:

Quadro 1 – Critérios de mensuração do grau de auxiliaridade de V1.

Parâmetros comuns Parâmetros mais específicos

Sujeito idêntico para V1 e V2

Pontes, 1973; Lobato, 1975; Longo, 1990;

Olbertz, 1998; Krug, 2000; Castilho, 2002;

Vieira, 2004; Benveniste, 2006 [1974].

Substituição de V2 por clítico ou por

pronome demonstrativo

Lobato, 1975; Longo, 1990; Olbertz, 1998;

Mira Mateus et alii, 2003; Vieira, 2004.

Escopo da negação

Pontes, 1973, Lobato, 1975, Longo, 1990;

Heine, 1993; Castilho, 2002; Mira Mateus et

alii, 2003; Vieira, 2004.

Comportamento em bloco de V1 e V2

diante da interrogação e clivagem

Olbertz, 1998; Vieira, 2004.

Escopo e posição de advérbios

Pontes 1973; Lobato, 1975; Longo, 1990;

Krug, 2000; Mira Mateus et alii, 2003; Vieira,

2004.

Posição do pronome clítico

Lobato, 1975; Mira Mateus et alii, 2003;

Vieira, 2004.

Seleção do sujeito por V2

Pontes 1973, Longo & Campos, 2002; Mira

Mateus et alii, 2003; Vieira, 2004.

Apassivação de V2

Pontes, 1973; Lobato, 1975; Longo, 1990.

Transformação da sequência introduzida

por V2 em oração finita

Pontes, 1973; Lobato, 1975; Longo, 1990;

Olbertz 1998; Mira Mateus et alii, 2003; Krug

2000; Vieira, 2004.

Supressão de V2

Olbertz, 1998

Recursividade

Heine, 1993; Longo & Campos, 2002;

Fonseca, 2010.

O alcance destes critérios pode variar e, aparentemente, alguns são mais decisivos do

que outros. Para Serrone (1992), por exemplo, apenas os critérios sujeitos idênticos,

possibilidade de construção completiva e escopo da negação são mais definitivos. Olbertz

(1998), por outro lado, considera que a possibilidade de substituição ou apagamento da

sequência constituída por V2 é mais importante. Aceitando que os critérios acima

apresentados contribuem para aferir o grau de auxiliaridade, portanto de gramaticalização das

construções com o verbo ter, assim como de indicação de maior coesão entre os itens

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constitutivos das perífrases ter que + infinitivo e ter de + infinitivo, testamos, a seguir,

esses critérios, de acordo com o uso dessas construções em dados da modalidade falada

e/ou escrita.

(i) Sujeito idêntico para V1 e V2: o sujeito (explícito) do auxiliar deve ser idêntico ao sujeito

(implícito) de V2. Se o sujeito de V2 for diferente de V1, o infinitivo é substituído por uma

oração subordinada e o verbo deixa de ser auxiliar. No caso das perífrases em estudo, o

sujeito de V2 é correferente ao do verbo ter, como no exemplo (7):

(7) F: eu tenho que subir em cima de uma cadeira para minha voz sair alta,

porque se eu ficar baixinha, minha voz não sai alta. Parece que até

psicológico. (CEN-80/52)

Em (7), V1 e V2 apresentam o mesmo sujeito (eu), ou seja, o verbo no infinitivo

expressa uma ação que deve ser praticada pelo sujeito do verbo ter e por seu próprio sujeito.

(ii) Escopo da negação: se V1 é, de fato, um auxiliar prototípico, um elemento negativo não

pode se posicionar entre V1 e V2, devendo ficar à esquerda do auxiliar, como ocorre em (8):

(8) É preciso que todos cheguem a um mesmo patamar para o Fluminense

alcançar objetivos a médio prazo. Isso não quer dizer que não se tenha de

trabalhar visando à Taça Rio. (Notícia/Reportagem – JB - 05-03-04)

Em (8), o escopo do advérbio não que precede a forma verbal (se) tenha opera sobre

o conjunto constituído por (se) tenha de trabalhar, modificando o EsC que é codificado pelo

verbo-predicador. Nesse caso, não seria possível uma estrutura como *se tenha de não

trabalhar. No entanto, são possíveis ocorrências de ter de/que + infinitivo em que a negação

incide apenas em V2, como em (9):

(9) F: Minha irmã que é a mãe da minha sobrinha não faz nada, ela nem ... nem

liga pra filha dela. A minha ... avó tem que tomá o cuidado, tem que não

dá tanta liberdade assim. (CEN-00/11)

(iii) Escopo e posição de advérbios: a estrutura V1+V2 não admite dois circunstanciadores

de tempo que representem referências temporais totalmente distintas, visto que só existe uma

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oração, nos termos de Mira Mateus et alii (2003, p. 405), com “um domínio temporalizado”.

O exemplo (10) evidencia que as construções modais com ter se submetem a essa restrição:

(10) Ontem, eles tiveram de voltar (*hoje) à cidade, para acompanhar o

enterro dela, no Cemitério de Irajá. (Notícia/Reportagem – Extra – 04/06/03)

Em (10), o advérbio ontem alcança toda a construção (eles) tiveram de voltar,

situando, temporalmente, o estado de coisas codificado pelo núcleo do predicado. Isso explica

a impossibilidade de acrescentar outra referência temporal distinta da que é sinalizada por

ontem. O exemplo proposto permite discutir, também, a questão das restrições quanto à ordem

do advérbio. Não está descartada a possibilidade de o advérbio ontem se situar na adjacência

do verbo auxiliado (eles tiveram de voltar ontem à cidade). Mesmo nessa possibilidade,

mantém-se o alcance do advérbio sobre a perífrase como um todo.

(iv) Seleção do sujeito por V2: na estrutura V1+V2, é V2 que seleciona e impõe restrições

semânticas ao sujeito e não o auxiliar. Por exemplo:

(11) F: E um dia, eu provoquei o carneiro e corri, abri o portão. E o carneiro

rolou a escada toda, quebrou o pescoço, tiveram que sacrificar o

carneiro, está entendendo? (CEN-80/31)

(12) F: Meu banheiro tem que sê muito bem lavado, agora vai outra pessoa

"tapeia", aí eu num gosto. Num é melhor fazê? (CEN-00/08)

Em (11), O verbo sacrificar seleciona um argumento externo do tipo humano e

agentivo (eles) e um argumento interno. No entanto, na oração modalizada por ter que +

infinitivo, a obrigatoriedade do sujeito de executar a ação de sacrificar o carneiro é reduzida,

na medida em que é imposta uma exigência externa, ou seja, o agente não é a fonte da

obrigação. Em (12), o sujeito meu banheiro, um locativo-paciente, é selecionado pelo verbo

lavar. Esses exemplos evidenciam que o sujeito das construções ter de/que + infinitivo

depende das restrições seletivas de V2.

(v) Transformação da sequência introduzida por V2 em oração finita: como o

Vauxiliante e o Vauxiliado ocorrem num único domínio predicativo, a oração com V2 não

pode alternar com orações subordinadas completivas finitas precedidas por que. Essa restrição

opera de forma clara sobre as duas construções, como em (13) e (14):

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(13) A classe média tem de pagar plano de saúde, educação, e, alguns até

pela segurança particular. (Carta do leitor – O Globo – 15-03-04)

* A classe média tem [de que pague/paga plano de saúde].

(14) – Agora é pensar apenas que a gente está falando de seleção brasileira, que

ela é forte, tem jogadores de alto nível e que temos que superar tudo isso

– disse Parreira. (Notícia/Reportagem – O Globo – 04-03-04)

* temos [que supere/supera tudo isso].

(vi) Substituição de V2 por clítico ou por pronome demonstrativo: de acordo com esse

critério, o(s) argumento(s) interno(s) de V2 não pode(m) ser substituído(s) por pronome

demonstrativo ou por um clítico, como em (15):

(15) E: E você acha que pode ser uma coisa interessante, trabalhar num motel?

F: Interessante não não é, não é? Mas pessoa- o cara tem que arrumar

um servicinho, não é? Ficar à toa não dá, aí, trabalhar num motel já é

alguma alguma coisa. (CEN-80/02)

*o cara tem de/que arrumar um servicinho, mas não o tem/não tem isso.

Como no PB há uma tendência de apagamento de clíticos de terceira pessoa, uma

frase como (15) seria mais aceitável com o objeto realizado na forma de categoria vazia:

(15a) o cara tem de/que arrumar um servicinho, mas não tem ∅.

(vii) Comportamento em bloco de V1 + V2 diante da interrogação e da clivagem: essas

operações não podem afetar cada um dos verbos individualmente, mas os dois

simultaneamente. Exemplificando:

(16) Ontem, houve neblina o dia todo e o Aeroporto Tom Jobim teve que

operar de manhã e à tarde com o auxílio de aparelhos. (Notícia/Reportagem - O Globo - 25-09-02)

A partir do exemplo (16), poderíamos fazer os seguintes testes:

a) Interrogação:

(16a) Por que o aeroporto Tom Jobim teve de/que operar pela manhã?

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Mas não:

(16b) *Por que o aeroporto teve de/que?

b) Clivagem:

(16c) O que o aeroporto Tom Jobim teve de/que fazer foi operar com o auxílio

de aparelhos.

Mas não:

(16d) *O que o aeroporto Tom Jobim teve de/que.

Portanto, as transformações interrogativas e por clivagem indicam maior coesão

entre V1 e V2 das construções modais com ter.

(viii) Posição do pronome clítico: de acordo com esse parâmetro, os pronomes clíticos

devem se posicionar à direita ou esquerda do auxiliar, como em (17):

(17) Algumas pessoas podem não estar jogando limpa e honestamente com

você. Sempre que se tem que lidar com pessoas que se escondem por

trás de uma máscara de simpatia que esconde inveja, o melhor é agir com

calma, sem desafiar o oponente. Finja que não está percebendo. (Horóscopo -

O Globo 19-03-04)

É importante ressaltar que a posição do clítico em (17) deve-se à influência de

Sempre que. Vejamos outras possibilidades de deslocamento do clítico:

(a) o clítico ocorre depois de V2:

(18) Imagino que esses spots publicitários podem ser muito aborrecidos para

um brasileiro que tem de vê-los duas vezes por dia durante seis

semanas (Artigo de opinião – O Globo – 04-10-02)

(b) o clítico ocorre antes de V2:

(19) A questão suscitada é, mais uma vez, a de como conciliar o avanço da

ciência, sobretudo da engenharia genética - uma das fronteiras mais

importantes da grande revolução científico-tecnológica que agita o

mundo - com princípios morais. Enfim, com princípios que certamente

terão de se refletir em regras do direito positivo. (Artigo de Opinião - O

Globo 27-10-02)

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(20) É preciso conversar bastante dentro e fora do campo. No jogo, além de

melhorar o posicionamento, temos que nos falar mais, um com o outro. (Notícia/Reportagem – JB – 05-03-04).

A partir dos exemplos (18) a (20), pode-se dizer que , nas construções modais com

ter, os clíticos podem se posicionar nas adjacências de V2, indicando, portanto, que essas

construções não se submetem a esse parâmetro.

(ix) Apassivação de V2: da mesma forma que o critério de interrogação e clivagem, a

apassivação deve afetar tanto V1 como V2, como em (21):

(21) A vitória de Lula tem de ser recebida pela militância petista com a

devida dose de realismo. Que a esquerda se comporte à altura do momento

histórico e não atrapalhe os passos do futuro governo. A expectativa da

população é enorme. (Editorial - JB - 27-10-02).

(x) Supressão de V2: uma evidência de menor coesão entre o verbo auxiliar e os constituintes

das perífrases modais com ter é a possibilidade de ocorrer elipse de V2, como em (22) e (23):

(22) E: ... a Globo está tomando conta, não é? Do bairro todo, não é?

F: Está! Inclusive é- o muro assim, embaixo, mas está rachando mesmo,

sabe? Eu tenho que- vou telefonar- eu telefonei quarta-feira passada, a

moça disse! Que era para mim telefonar quinta-feira. (CEN-80/04)

(23) F: Até hoje em dia depois que eu tive que... larguei minha mulhé de

casado, arrumei outra aqui em Copacabana, fui morá em Bonsucesso com

ela, ampliei a casa todinha, o apartamento, o apartamento era dela memo,

num deu certo. (CEN-00/16)

Embora a supressão de V2 só tenha sido registrada com a construção ter que +

infinitivo na modalidade falada, podemos pressupor que a essa possibilidade se submetem as

construçõe modais com ter, indicando, portanto, menor coesão entre ter de/que e o infinitivo.

(xi) Recursividade: de acordo com esse parâmetro, deve ser possível a coocorrência da

mesma raiz verbal no verbo auxiliar e em V2. As construções modais com ter se submetem a

esse parâmetro, como em (24) e (25):

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(24) F: Casamento,a pessoa tem que pensar também, não é? Mas primeiro, a

pessoa tem que ter um serviço fixo que a pessoa possa confiar nele. Em

viagem, também eu não penso muito em viagem não. (CEN-80/02)

(25) Mas o técnico Levir Culpi deu uma boa pista, do que pode ter acontecido

no Caio Martins:

- O momento agora é mais de conversa. Amanhã, hoje, vejo a parte

técnica. Acho que o principal ponto é o de que temos que ter união e

jogar bem diante do América - disse o treinador. (Notícia/reportagem - O Globo

- 06-03-04)

Embora os exemplos acima contemplem a construção ter que + infinitivo, é possível

a ocorrência com a construção ter de + infinitivo, como em (24a) e (25a):

(24a) a pessoa tem de ter um serviço fixo

(25a) temos de ter união

O quadro 2 resume as constatações acima e, ao mesmo tempo, compara o

comportamento das duas construções modais com ter. Marcamos com sim, quando a perífrase

se submete ao parâmetro; com não, quando ocorre o contrário e com ponto de interrogação os

casos duvidosos:

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Quadro 2 – Comportamento de ter nas construções ter de + infinitivo e ter que + infinitivo de

acordo com os parâmetros de auxiliaridade.

Parâmetros de Auxiliaridade Ter de +

infinitivo

Ter que +

infinitivo

(i) Critério do sujeito idêntico para V1 e V2 Sim Sim

(ii) Critério do escopo da negação Não Não

(iii) Critério do escopo e posição de advérbios Sim Sim

(iv) Critério da seleção do sujeito por V2 Sim Sim

(v) Critério da transformação da sequência introduzida por

V2 em oração finita Sim Sim

(vi) Critério da substituição de V2 por clítico ou pronome

demonstrativo ? ?

(vii) Critério do comportamento em bloco de V1 e V2

diante da interrogação e da clivagem Sim Sim

(viii) Critério da posição do pronome clítico Não Não

(ix) Critério da apassivação de V2 Sim Sim

(x) Critério da não supressão de V2 Não Não

(xi) Critério da recursividade Sim Sim

De acordo com a esquematização exposta no quadro 2, podemos dizer que o verbo

ter satisfaz um número considerável de parâmetros de auxiliaridade, visto que encontramos

mais traços positivos do que negativos ou duvidosos. É necessário considerar, porém, que as

construções ter de + infinitivo e ter que + infinitivo resistem em três testes considerados

centrais: o que envolve o escopo da negação, o da posição do pronome clítico e do

apagamento de V2. Com base nesse comportamento, confirma-se o status do verbo ter dessas

construções como semi-auxiliar, ainda que num ponto bastante alto de uma escala de

auxiliaridade.

Ao longo da análise de dados em amostras de fala e escrita do Português

contemporâneo, apresentada nos capítulos 5 e 6, retomaremos alguns pontos já discutidos

nessa seção. Apresentamos, a seguir, as amostras e a metodologia utilizadas nesse trabalho.

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4 AMOSTRAS E METODOLOGIA

Como já foi explicitado na introdução, focalizamos, neste estudo, dois aspectos

relacionados ao uso das construções modais com ter: as suas propriedades morfossintáticas,

semânticas e discursivas mais gerais e a possibilidade de alternância entre ter de + infinitivo e

ter que + infinitivo na modalidade falada e escrita. Neste estudo, integram-se, portanto, duas

fases complementares:

(i) a análise de dados da modalidade falada e escrita com o objetivo de identificar as

propriedades associadas às construções ter de + infinitivo e ter que + infinitivo e a

gramaticalização destas construções. Na modalidade falada, o fenômeno será investigado sob

a perspectiva da mudança linguística em tempo real de curta duração, através de um estudo do

„tipo tendência‟ (cf. LABOV, 1994; PAIVA & DUARTE, 2003);

(ii) a variação entre as construções ter de + infinitivo e ter que + infinitivo na modalidade

escrita, visando a identificar as variáveis que controlam a incorporação da variante ter que +

infinitivo, que, ao que tudo indica, está completamente implementada na modalidade falada.

Buscamos, sobretudo, identificar os contextos em que a construção ter de + infinitivo persiste.

Nas seções seguintes, caracterizamos as amostras utilizadas na modalidade falada e

escrita, as hipóteses que norteiam os grupos de fatores considerados, assim como os

procedimentos metodológicos utilizados na análise dos dados.

4.1 Amostras da modalidade falada

O estudo do „tipo tendência‟ (cf. LABOV, 1994, PAIVA & DUARTE, 2003), como

já apresentado na seção 2.2, fornece evidências mais seguras acerca de processos de mudança

em uma língua, através da comparação de amostras aleatórias da mesma comunidade de fala,

estratificadas com base nos mesmos parâmetros sociais e separadas por um intervalo de, no

mínimo, uma geração. Essa técnica nos permite depreender a direcionalidade da construção

ter que + infinitivo na comunidade de fala carioca e em que medida ela tende a substituir,

definitivamente, a construção ter de + infinitivo. Para a análise do uso das construções ter de

+ infinitivo e ter que + infinitivo, utilizamos duas amostras de fala representativas da

variedade carioca não-culta do português, constituídas com o objetivo de estudar processos de

variação e mudança: a amostra Censo 1980 e Censo 2000, ambas organizadas pelos

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pesquisadores do grupo Programa de Estudos do Uso da Língua – PEUL/UFRJ (cf. PAIVA &

DUARTE, 2003).62

A amostra Censo 1980 ou corpus Censo 1980, organizada no período de 1980 a

1984, é composta de entrevistas sociolinguísticas realizadas com 64 falantes de diversos

bairros da área metropolitana do Rio de Janeiro, distribuídos segundo as variáveis

gênero/sexo, faixa etária e nível de escolaridade. Nessa amostra, encontra-se a distribuição

dos falantes por quatro faixas etárias (7-14 anos, 15-25 anos, 26-49 anos e + de 50 anos) e por

três níveis de escolaridade (Primeiro e segundo segmentos do Ensino Fundamental e Ensino

Médio) (cf. OLIVEIRA E SILVA & SCHERRE, 1996; PAIVA & DUARTE, 2003).

Com base na amostra Censo 1980, os pesquisadores do grupo PEUL-UFRJ

constituíram a amostra Censo 2000, no período de 1999 a 2000, buscando a obtenção de

material controlado para a identificação de mudanças em tempo real de curta duração, através

de estudos do „tipo tendência‟. Essa nova amostra da comunidade de fala carioca compreende

32 falantes distribuídos, aleatoriamente, por diferentes bairros do Rio de Janeiro e segue os

mesmos parâmetros estratificadores da amostra Censo 1980 (gênero/sexo, faixa etária e

escolaridade) e as gravações, de forma geral, obedeceram aos mesmos protocolos utilizados

na amostra anterior, de forma a garantir a comparabilidade dos dois corpora.

Para a realização desta pesquisa, foram utilizadas 32 entrevistas da amostra Censo

1980 e as entrevistas da amostra Censo 2000 conciliadas no que se refere às variáveis

gênero/sexo, idade e escolaridade. Esses corpora permitem uma observação mais ampliada do

fenômeno sob investigação e podem nos fornecer indícios acerca de possíveis mudanças pelas

quais as perífrases modais com ter possam ter passado nos últimos 20 anos. Mantendo a

equivalência de células63

, no quadro 3, apresentamos a relação dos informantes, com a

especificação das suas características sociais:

62

As duas amostras estão disponíveis no site www.letras.ufrj.br/~peul.

63 Não foi possível manter a equivalência de células relacionada ao falante 21 da amostra Censo 2000 com outro

correspondente à amostra Censo 1980, porque houve um equívoco na gravação da entrevista. Para que fosse

possível a equivalência, a informante 21 da amostra Censo 2000 deveria ter o nível Fundamental 2 de

escolaridade e não o Fundamental 1.

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Quadro 3 – Composição da amostra de fala.

Amostra Censo – 1980 Amostra Censo – 2000

Falante Sexo Idade Escolaridade Falante Sexo Idade Escolaridade

52-Ros Fem 10 anos Fundamental 1 01-Mca Fem 9 anos Fundamental 1

51-Mar Masc 9 anos Fundamental 1 02-Raf Masc 14 anos Fundamental 1

53-Fra Masc 11 anos Fundamental 2 03-Rom Masc 14 anos Fundamental 2

61-Adri Fem 14 anos Fundamental 2 04-Rob Fem 14 anos Fundamental 2

15-Rob Masc 22 anos Fundamental 1 05-And Masc 21 anos Fundamental 1

02-Carb Masc 16 anos Fundamental 1 06-Ale Masc 19 anos Fundamental 1

05-Sue Fem 24 anos Fundamental 1 07-AdrR Fem 21 anos Fundamental 1

06-Jup Fem 18 anos Fundamental 1 08-Cris Fem 25 anos Fundamental 1

20-Pau Masc 25 anos Fundamental 2 09-Fil Masc 15 anos Fundamental 2

19-Car Masc 22 anos Fundamental 2 10-Isa Masc 19 anos Fundamental 2

24-Val Fem 15 anos Fundamental 2 11-Mir Fem 15 anos Fundamental 2

22-Mar Fem 17 anos Fundamental 2 12-And Fem 15 anos Fundamental 2

37-Pit Masc 25 anos Ensino Médio 13-Gla Masc 21 anos Ensino Médio

40-Ana Fem 19 anos Ensino Médio 14-Gil Fem 20 anos Ensino Médio

10-Joa Fem 27 anos Fundamental 1 15-Pat Fem 26 anos Fundamental 1

09-Seb Masc 39 anos Fundamental 1 16-Car Masc 48 anos Fundamental 1

04-Lei Fem 25 anos Fundamental 1 17-Sim Fem 17 anos Fundamental 1

12-Nil Fem 46 anos Fundamental 1 18-Luc Fem 49 anos Fundamental 1

26-Vas Masc 32 anos Fundamental 2 19-Jor Masc 37 anos Fundamental 2

25-Jae Masc 30 anos Fundamental 2 20-Rei Masc 47 anos Fundamental 2

x x x x 21-Gla Fem 33 anos Fundamental 1

11-Glo Fem 48 anos Fundamental 2 22-Ana Fem 34 anos Fundamental 2

41-PauR Masc 26 anos Ensino Médio 23-Fla Masc 26 anos Ensino Médio

43-Eve Fem 42 anos Ensino Médio 24-Adr Fem 36 anos Ensino Médio

31-Geo Masc 58 anos Fundamental 2 25-Aug Masc 54 anos Fundamental 2

08-Lui Masc 57 anos Fundamental 1 26-Man Masc 51 anos Fundamental 1

35-Jos Fem 59 anos Fundamental 1 27-Zil Fem 69 anos Fundamental 1

28-Mal Fem 56 anos Fundamental 1 28-Ter Fem 69 anos Fundamental 1

46-CarS Masc 62 anos Fundamental 2 29-Ra Masc 67 anos Fundamental 2

36-Nad Fem 57 anos Fundamental 2 30-Mar Fem 61 anos Fundamental 2

45-Wil Masc 51 anos Ensino Médio 31-Tad Masc 50 anos Ensino Médio

48-Mgl Fem 52 anos Ensino Médio 32-Euc Fem 55 anos Ensino Médio

As entrevistas sociolinguísticas que compõem as amostras Censo 1980 e Censo 2000

apresentam determinadas propriedades que as afastam do gênero entrevista em geral, tal como

definidas, por exemplo, por Marcuschi (2003) e Costa (2008). Podemos elencar as seguintes

características das entrevistas sociolinguísticas (cf. PAIVA, 2001):

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(i) o entrevistado é selecionado de acordo com exigências de sexo, idade, nível de

escolaridade e bairro que satisfazem os requisitos de uma amostra estratificada;

(ii) o entrevistador estabelece um primeiro contato com o entrevistado, a fim de conhecê-lo e

de preparar um roteiro de perguntas de acordo com o interesse, experiências vivenciadas,

atividades do cotidiano, envolvimento familiar, grupo de amizades etc do entrevistado;

(iii) durante a entrevista, em tempo real, o entrevistador interage com o entrevistado no

sentido de estimulá-lo, ou seja, de fazer com que o seu interlocutor se envolva nos fatos

relatados, desenvolva um determinado tema com a emissão de opiniões e/ou esclarecimentos,

evitando que o entrevistado se preocupe com determinadas formas linguísticas.

Assim, devido à própria técnica de obtenção de dados, as entrevistas

sociolinguísticas, que constituem as amostras Censo, representam um estilo semi-informal de

linguagem. A própria situação de gravação, assim como a relação assimétrica entre o

entrevistado e o entrevistador, faz com que não se possa atribuir a essas entrevistas uma

situação de interação inteiramente natural e espontânea. No entanto, como destaca Paiva

(1991, p. 50-1), “não podem ser consideradas um registro elaborado de linguagem, uma vez

que não implica planejamento prévio do falante.”

4.2 Amostra da modalidade escrita

Para o estudo da variação entre ter de + infinitivo e ter que + infinitivo na

modalidade escrita, utilizamos uma amostra do discurso jornalístico, organizada também

pelos membros do Programa de Estudos sobre o Uso da Língua (PEUL-UFRJ). Esta amostra,

constituída com o objetivo de verificar os padrões de variação da língua escrita, em confronto

com a língua falada, é composta por textos extraídos de quatro jornais da cidade do Rio de

Janeiro: O Globo, Jornal do Brasil, Extra e Povo, publicados no período de 2002 a 2004.

Esses textos compreendem os seguintes gêneros: carta do leitor, crônica, editorial,

horóscopo, coluna social, notícia/reportagem e artigo de opinião num total de 650 textos,

distribuídos conforme quadro 4:

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Quadro 4 – Amostra de textos escritos.

Gêneros jornalísticos Extra JB O Globo Povo TOTAL

Carta do leitor 25 25 25 - 75

Crônica - 25 25 25 75

Editorial 25 25 25 25 100

Horóscopo 25 25 25 25 100

Coluna Social 25 25 25 25 100

Notícia/Reportagem 25 25 25 25 100

Artigo de opinião 25 25 25 25 100

Total 150 175 175 150 650

Embora se visasse à uniformidade no número de textos representativos de cada

gênero, isso não foi possível, pelo fato de o jornal Povo não possuir a seção carta do leitor, e

o jornal Extra não apresentar a seção crônica. Nesses 650 textos foram encontradas 159

ocorrências de orações com ter de + infinitivo e ter que + infinitivo, distribuídas, no quadro 5,

de acordo com o jornal e gênero textual:

Quadro 5 – Distribuição dos gêneros jornalísticos de acordo com as ocorrências das

construções modais com ter.

Gêneros Jornalísticos Extra JB O Globo Povo TOTAL

Carta do leitor 08 11 27 - 46

Crônica - 05 04 02 11

Editorial - 11 10 01 22

Horóscopo - - 03 05 08

Coluna Social 01 01 - 01 03

Notícia/Reportagem 08 11 09 09 37

Artigo de opinião 07 07 15 03 32

Total 24 46 68 21 159

A diversidade de gêneros textuais, que constitui a amostra de escrita, permite a

realização de um dos objetivos deste estudo: verificar a possível correlação entre o uso das

construções ter de + infinitivo e ter que + infinitivo com grau de formalidade, partindo-se do

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princípio de que esses diferentes gêneros podem se dispor em um continuum de [-

formalidade] para [+formalidade].

A opção por textos do domínio jornalístico justifica-se por sua maior conformidade,

em princípio, a prescrições e normas linguísticas. No caso específico de ter de + infinitivo e

ter que + infinitivo, essa questão ganha maior importância, pois se pode esperar que esses

textos sigam as restrições de utilização propostas pela literatura e já discutidas no capítulo 2.

4.3 Procedimentos metodológicos

A primeira etapa da análise consistiu no levantamento de orações com as construções

modais com ter nas amostras de fala e de escrita, resultando um total de 601 dados relativos à

amostra Censo 1980, 721 à amostra Censo 2000 e 159 à amostra de escrita. Nesse total, a

grande maioria se refere à construção ter que + infinitivo, com apenas seis ocorrências de ter

de + infinitivo na amostra Censo 2000. Por esta razão, os dados de ter de + infinitivo foram

excluídos da análise quantitativa.

Os dados de ter que + infinitivo incluíam orações com polaridade afirmativa e

negativa. Dado o número escasso de orações com polaridade negativa nos corpora sob

análise64

, restringimo-nos às orações de polaridade afirmativa, o que totaliza 592 dados na

amostra Censo 1980, 706 na amostra Censo 2000 e 157 na amostra de escrita.

Tanto os dados de fala como os de escrita foram submetidos a uma análise

quantitativa, embora com procedimentos um pouco distintos, tendo em vista que a

predominância absoluta da construção ter que + infinitivo na modalidade falada não permitia

uma análise multivariacional. Desta forma, nos dados da amostra de fala, procedemos a uma

análise em que procuramos identificar o feixe de propriedades associadas à construção ter que

+ infinitivo, assim como a comparação dessas propriedades nos dois momentos de tempo

considerados (década de 80 e anos 2000). Dada a variação mais significativa entre ter de +

infinitivo e ter que + infinitivo nos dados de escrita, realizamos, nessa amostra, uma análise

multivariacional com os mesmos grupos de fatores linguísticos utilizados na modalidade

falada, buscando identificar as variáveis mais relevantes para o uso da construção ter que +

64

Com a seguinte distribuição: nove dados na amostra Censo 1980, dez na amostra Censo 2000 e apenas dois na

amostra escrita, ambas no JB, uma no gênero crônica e outra no gênero notícia/reportagem.

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94

infinitivo. Essa análise foi realizada através da operacionalização do programa computacional

GoldVarb 2.0 (RAND & SANKOFF, 1990), visto que os recursos deste programa fornecem a

frequência de cada variante, sua distribuição pelos diferentes contextos, os pesos relativos

associados a cada fator e, ainda, a relevância estatística dos grupos de fatores para

compreensão do uso de cada variante.

As duas amostras da modalidade falada foram analisadas sob o prisma de um

conjunto de categorias linguísticas que procuram identificar a contribuição dos diversos

elementos constitutivos das construções modais com ter nos diferentes significados com que

elas podem ser empregadas. Alinhando-nos à posição de autores como Krug (2000) e

Traugott (2003), acreditamos que o desenvolvimento dos valores modais das construções com

ter não podem ser imputados diretamente à forma verbal ter, pois envolvem a participação

dos diversos elementos do discurso mais amplo em que se situam.

Assim, na análise das orações com ter que + infinitivo, consideramos as propriedades

modais dessa construção, as propriedades morfossintáticas do verbo ter, as propriedades do

verbo-predicador, as propriedades semântico-discursivas do contexto, a presença de

elementos intervenientes e as variáveis extralinguísticas faixa etária e gênero.

Como já foi explicitado, uma das diretrizes deste estudo corresponde à

gramaticalização das construções modais com ter nas modalidades falada e escrita da

variedade carioca. Como já discutido na seção 3.1.2, as construções modais com ter não se

restringem à obrigatoriedade, mas também podem ser usadas para a expressão de outros

valores, como necessidade e/ou dever. Na condução da análise do uso de ter que + infinitivo

na modalidade falada, tomamos o valor modal da construção para o tratamento estatístico dos

dados, ou seja, procuramos verificar que propriedades estão associadas a cada um dos

possíveis empregos desta construção.

No nível morfossintático, são consideradas as propriedades modo-temporais e

número-pessoais do verbo ter. Dada a inter-relação entre modo e modalidade, com o modo

indicativo associado a um maior grau de certeza e o modo subjuntivo à

possibilidade/probabilidade (cf. MIRA MATEUS et al, 1983, p. 148), podemos esperar uma

correlação entre o uso das perífrases modais com ter e o modo do verbo. Por um lado, o valor

epistêmico dessas perífrases seria mais provável com o modo subjuntivo e, por outro, o seu

valor deôntico/extrínseco estaria associado com o modo indicativo. No que se refere ao tempo

verbal, de acordo com tendências já identificadas por outros autores (como CASSEB-

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95

GALVÃO, 1999, 2001; GONÇALVES, 2004), podemos pressupor uma forte concentração do

verbo ter no presente do indicativo, mais propício à expressão de verdades/condições

incontestáveis. A hipótese relativa à influência dos traços gramaticais do sujeito se justifica

pela própria natureza do fenômeno que envolve, frequentemente, redução paradigmática.

Como já discutimos no capítulo anterior, podemos pressupor que, na sua trajetória de [-

subjetivo > +subjetivo], o sujeito da construção ter que + infinitivo se concentre na primeira

pessoa, marcando a subjetividade do falante (cf. TRAUGOTT, 1989, 1995; GONÇALVES,

2002, 2005).

No que se refere às propriedades de V2, controlamos os seguintes aspectos: traços

semânticos do sujeito, tipo sintático e de processo. Partimos da hipótese de que o sujeito

prototípico das perífrases modais em análise compreenda o traço semântico [+humano] que,

em princípio, pode impor uma obrigação, sujeitar-se à execução de um EsC advinda de uma

obrigação/necessidade externa, fazer inferências e/ou comprometer-se com a proposição. A

análise das propriedades sintáticas do infinitivo baseia-se na observação de alguns autores de

que o V2 da construção [V1fin. + que + V2 inf.] deve ser um verbo transitivo. Podemos esperar

que, embora possa ter predominado, em estágios iniciais, com verbos transitivos, no seu

contínuo processo de gramaticalização, a construção ter que + infinitivo tenha, gradualmente,

se expandido para outros tipos sintáticos de verbo, como os intransitivos e os de ligação. Dada

a suposta importância do tipo sintático de V2 no processo de gramaticalização das

construções modais com ter, controlamos, para os verbos transitivos, o tipo de complemento,

distinguindo os casos em que o complemento é necessariamente oracional daqueles em que o

objeto é um SN.

Quanto às propriedades semânticas de V2, utilizamos a classificação proposta por

Halliday (1994), para verificarmos que tipo de processo iria predominar com a perífrase ter +

que + infinitivo. Partindo do pressuposto de que a imposição de uma obrigação/necessidade

esteja mais fortemente associada às atividades/eventos, podemos esperar que a construção ter

que + infinitivo seja motivada, principalmente, por verbos de comportamento material.

Considerando que a oposição entre epistêmico e não-epistêmico é um resulado da

contextualização discursiva das construções modais com ter (cf. KLINGE, 1996 apud NEVES,

2006; Von FINTEL, 2006, dentre outros), focalizamos as diferentes relações semânticas que

se estabelecem entre as orações com essas construções modais e as orações adjacentes,

precedentes ou subsequentes, dependendo de sua relevância no contexto discursivo.

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A análise em relação à presença de elementos intervenientes baseia-se na hipótese de

que, num estágio mais avançado de gramaticalização, as perífrases modais com ter, em [V1fin.

+ {que/de}+ V2 inf.], formam uma unidade de maior coesão sintagmática (cf. LEHMANN,

1985, 2002). Portanto, podemos pressupor que o grau de gramaticalização dessas construções

depende da (im)possibilidade de inserção de outros elementos entre seus constituintes.

Dadas as características de estratificação das amostras de fala, como já destacamos

na seção 4.1., para essa modalidade foram consideradas, ainda, as variáveis extralinguísticas

faixa etária e gênero/sexo. Partimos do pressuposto de que a maior recorrência da variante ter

que + infinitivo no seu valor epistêmico entre os falantes mais jovens constituiria uma

mudança em progresso.

Como já evidenciado por vários autores, não é simples explicar a atuação da variável

gênero para fenômenos em variação que não se submetem a uma avaliação social e, mais

ainda, no que se refere à mudança por gramaticalização, tendo em vista que um novo uso para

a mesma forma nem sempre é percebido e avaliado pelos membros da comunidade de fala,

como é caso das construções modais em análise. No entanto, podemos pressupor que o uso

prototípico de ter que + infinitivo, no seu valor extrínseco e deôntico, predomine entre as

mulheres, que, como já mostraram alguns trabalhos, tendem a ser mais conservadoras (cf., por

ex., PAIVA, 2003).

A análise do uso da construção ter que + infinitivo na modalidade falada sob o

prisma dos grupos de fatores linguísticos acima relacionados busca circunscrever o processo

de gramaticalização da construção ter que + infinitivo na trajetória [-subjetivo > +subjetivo].

Dessa forma, restringimo-nos, necessariamente, à análise da distribuição, ou seja, ao cálculo

das frequências de ocorrência de ter que + infinitivo, de acordo com os fatores postulados em

cada grupo.

No tratamento estatístico dos dados de escrita, optamos por colocar como foco de

análise a variante ter que + infinitivo, dado o nosso interesse teórico em verificar o

espraiamento dessa construção em detrimento de ter de + infinitivo na modalidade escrita.

Como hipótese geral, podemos pressupor que a construção ter que + infinitivo é incorporada

na modalidade escrita de acordo com uma contextualização que reflete suas propriedades

predominantes na fala. Buscamos verificar a validade dessa hipótese, identificando o efeito de

cada um dos grupos de fatores em relação aos demais.

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Especificamente para a modalidade escrita, consideramos a variável não-estrutural

gênero textual, partindo do princípio de que os gêneros mais próximos à língua oral, isto é,

menos formais, como crônica, coluna social, horóscopo, favorecem a presença da variante ter

que + infinitivo, já amplamente implementada na fala. Esta hipótese baseia-se na distribuição

de diferentes níveis de formalidade dos gêneros jornalísticos que se conjugam no continuum

entre fala e escrita, como proposto por Marcuschi (2001, 2008).

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98

5 PROPRIEDADES E TRAJETÓRIA DAS CONSTRUÇÕES MODAIS COM TER NA

MODALIDADE FALADA

O objetivo desse capítulo é depreender as propriedades e a trajetória das construções

modais com ter (ter que + infinitivo e ter de + infinitivo) na modalidade falada, através de um

estudo do „tipo tendência‟, em que comparamos os dados da amostra Censo 1980 com os da

amostra Censo 2000. Nas seções a seguir, focalizamos as características linguísticas e

extralinguísticas dessas construções. Inicialmente, apresentamos a distribuição das duas

construções nas amostras examinadas e, em seguida, discutimos sua correlação com as

propriedades morfossintáticas, semânticas e pragmático-discursivas relacionadas aos seus

elementos, numa perspectiva atomística, assim como às construções como um todo, numa

perspectiva não-atomística.

A análise está em sua maior parte baseada nas amostras Censo 1980 e Censo 2000, já

caracterizadas no capítulo 4. Entretanto, com o objetivo de controlar a possível influência da

variável registro de fala, são considerados, também, dados da amostra NURC-RJ/70,

inquéritos do tipo DID (diálogo entre informante e documentador) e as EF (elocuções

formais).

5.1 Distribuição das construções modais com ter na modalidade falada

Na modalidade falada, foi registrado um total de 601 dados na amostra Censo 1980 e

de 721 na amostra Censo 2000, como mostram os resultados expostos na tabela 1:

Tabela 1 – Distribuição de ter de/que + infinitivo nas amostras

Censo 1980 e Censo 2000.

Construções Censo 1980 Censo 2000

ter que + infinitivo 600 = 99,8% 715 = 99,1%

ter de + infinitivo 01 = 0,2% 06 = 0,8%

Total 601 721

Como podemos observar, na tabela 1, a construção ter que + infinitivo é soberana

nos dois momentos considerados, indicando que seu uso é quase categórico nas duas

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99

sincronias e ter de + infinitivo se reduz a algumas ocorrências esparsas.65

É necessário

destacar, ainda, que a alternância entre essas duas construções se restringe a seis ocorrências

do total de 32 falantes da amostra Censo 2000, como mostra o quadro 6:

Quadro 6 – Distribuição dos informantes em relação à alternância entre ter que + infinitivo e

ter de + infinitivo na amostra Censo 2000.66

Inf. Sexo Idade Escolaridade

03 Masculino 7-14 anos Fundamental 2

15 Feminino 26-49 anos Fundamental 1

21 Feminino 26-49 anos Fundamental 1

19 Masculino 26-49 anos Fundamental 2

27 Feminino + 50 anos Fundamental 1

31 Masculino + 50 anos Ensino Médio

Evidentemente, pode-se suspeitar de que a amplitude da construção ter que +

infinitivo nas amostras Censo 1980 e Censo 2000 seja um reflexo, na modalidade falada, do

nível de escolaridade dos informantes, ou do registro de fala, visto que tanto a amostra Censo

1980 como a Amostra Censo 2000 representam um estilo semi-informal. Como já destacamos

no capítulo 3, para alguns autores, a construção ter de + infinitivo estaria mais restrita a

registros de fala mais formais (cf. FERREIRA, 1999; LUFT, 2003).

Um levantamento de dados em 12 inquéritos do tipo DID e 6 aulas do tipo EF da

amostra NURC-RJ/7067

permite verificar, no entanto, a acentuada expansão de ter que +

infinitivo, independentemente de grau de escolaridade do falante e de formalidade da situação

comunicativa. Como mostram os resultados da tabela 2, os índices de ter que são,

percentualmente, muito superiores aos de ter de, confirmando a tendência já atestada por

Rigoni Costa (1995):

65

A única ocorrência de ter de + infinitivo registrada na amostra Censo 1980 corresponde à polaridade negativa:

E - E que que o senhor acha , assim, da igreja católica atual?

F - Não! Tudo bem! Tudo bem! Tenho nada que falar, não tem nada de reclamar. (CEN-80/25)

66

A ocorrência de ter de + infinitivo em relação ao informante 19 corresponde à polaridade negativa.

67

A amostra NURC-RJ compreende apenas falantes universitários da cidade do Rio de Janeiro, gravados na

década de 70 e foi estratificada segundo as variáveis gênero (homens e mulheres) e três faixas etárias distintas

(25-35 anos, 36-55 anos e + de 56 anos). Essa amostra compreende três tipos de entrevistas: DID (diálogo entre

informante e documentador, D2 (diálogo entre dois informantes) e EF (elocuções formais – aulas, conferências,

palestras). A amostra está disponível no site www.letras.ufrj.br/nurc-rj.

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Tabela 2 – Distribuição de ter de/que + infinitivo na amostra

NURC-RJ/70.

Construções DID EF

ter que + infinitivo 62 = 90% 43 = 91,5%

ter de + infinitivo 07 = 10% 04 = 8,5%

Total 69 47

A tabela 2 indica que, na amostra NURC-RJ/70, nas entrevistas do tipo DID, a

construção modal ter que + infinitivo possui elevada recorrência (90%). Mesmo em registros

orais mais formais, como aulas, essa construção é de alta incidência, alcançando um

percentual de 91,5%, revelando, portanto, que o nível de escolaridade (cf. confronto entre as

amostras NURC e Censo 1980/2000) e mesmo a diferença de registro não interferem no

espraiamento da construção ter que + infinitivo. Embora os valores absolutos ainda sejam

muito baixos, nota-se, porém, um ligeiro aumento da construção ter de + infinitivo nas

entrevistas do tipo DID (10%) em relação às EF (8,5%).

É necessário considerar, também, que, comparando a frequência de ocorrência de ter

de + infinitivo entre a amostra NURC (DID e EF) e as amostras Censo (1980 e 2000), a

diferença é muito significativa. Portanto, a variável registro ou a variável escolaridade pode

desempenhar o papel de recuperar uma forma já quase completamente desaparecida dos

registros orais mais informais.

A escassez de dados de ter de + infinitivo nas amostras Censo (cf. tabela 1) dificulta

uma análise estatística dessa construção. Por essa razão, a nossa análise concentra-se na

construção ter que + infinitivo e, a partir dessa, são examinadas as possíveis particularidades

de ter de + infinitivo.

Outro aspecto a ressaltar diz respeito à polaridade das orações com as construções

modais com ter. Os dados apresentados na tabela 1 correspondem, indistintamente, às orações

com ter de/que + infinitivo na polaridade afirmativa e negativa.68

No entanto, como mostra a

tabela 3, registramos, nas amostras examinadas, o predomínio da construção ter que +

infinitivo em orações de polaridade afirmativa:

68

No corpus do NURC-RJ, na amostra de EF, encontramos apenas uma ocorrência de ter que na polaridade

negativa: Como ele conseguiu né?... sair disso e ser o Japão de hoje? Bem... resposta... milagre... é um milagre...

foi uma economia... impelida a seguir o seu caminho... não tendo que tomá-lo... tá claro?... quer dizer... seria

exatamente seria em uma figura um pouquinho talvez trágica... impedir uma terceira grande guerra vinte anos

depois... tá claro? (Inq.: 379).

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Tabela 3 – Distribuição de ter de/que + infinitivo quanto à polaridade.

Polaridade Censo 1980 Censo 2000

ter que ter de ter que ter de

Afirmativa 592 = 98,7% 00 = 0% 706=98,7% 05 = 83,3%

Negativa 08 = 1,3% 01 = 100% 09= 1,3% 01 = 16,7%

Total 600 01 715 06

Como o número de ocorrências das construções modais com ter que + infinitivo em

orações de polaridade negativa nas duas amostras é fortemente restrito, essas ocorrências

foram também excluídas da análise quantitativa.

Ao longo das seções seguintes, focalizamos a construção ter que + infinitivo em

orações de polaridade afirmativa, procurando identificar evidências no seu processo de

gramaticalização. Para tanto, analisamos os valores modais dessa construção, as propriedades

morfossintáticas ligadas ao verbo auxiliar ter, as propriedades de V2 e, ainda, as propriedades

semântico-discursivas do contexto em que elas ocorrem. Consideramos, também, aspectos

ligados à integração entre os constituintes dessa construção, verificando a possibilidade de

interposição de outros elementos entre eles. Partimos do pressuposto de que a expansão no

uso dessa construção só pode ser entendida através da análise conjunta dos níveis

morfossintático, semântico-discursivo e pragmático, conforme proposta teórica funcionalista.

Em razão do objetivo central deste estudo, qual seja a de verificar uma possível trajetória de

subjetivização no uso das construções modais com ter, tomamos, na seção seguinte, como

ponto de partida, os diferentes valores modais que elas podem expressar.

5.2 Valores modais das construções com ter

Como já foi discutido no capítulo 3, a construção ter que + infinitivo insere-se,

prototipicamente, no domínio da modalidade deôntica, ou seja, como forma de expressão de

necessidade, obrigação e/ou dever (cf. RIGONI COSTA, 1995; ROCHA LIMA, 2008;

CUNHA & CINTRA, 2008; BECHARA, 2009). Rigoni Costa (op. cit.p. 113-114) propõe

que, assim como o modal dever, ter de/que também assume a tarefa de expressar dois valores

ligeiramente distintos: necessidade e obrigação.69

O valor necessidade ocorre quando o

69

A autora (op. cit. p. 113-114) exemplifica essa diferença através dos seguintes enunciados:

1. necessidade

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sujeito [+animado ou -animado] “atribui a fatores externos, de caráter não-facultativo, a

imposição para a realização ou não do verbo predicador”; o valor obrigação decorre de um

sujeito [+animado ou –animado] “„ser‟ ou „fazer algo‟ por norma derivada de lei moral, moda

ou convenção social” (op. cit, p. 111-112). Deste modo, ter de/que + infinitivo associa-se aos

domínios extrínseco e deôntico respectivamente.

Ainda, segundo a autora, o uso de ter de/que com esses valores modais pode ser

relacionado “a um movimento do modal dever”, sendo possível explicar

[ ] a ampliação do uso de ter que, para expressar o necessário e o obrigatório,

como um mecanismo compensatório provocado pelo esvaziamento semântico de

dever no processo de gramaticalização – para dever o falante reserva a função de

expressar a probabilidade, a suposição, próprias do uso epistêmico [...] (RIGONI

COSTA, 1995, p. 114, 1995).

O fato é que, como se constata para a grande a maioria dos verbos modais, as

construções com ter estão investidas de certa ambiguidade, o que lhes permite transitar por

domínios modais diferentes e, mesmo, admitir interpretações no domínio epistêmico, como no

exemplo (26):

(26) E: Mas você tem esperança no homem, não tem?

F: Tenho. Tenho esperança no homem, tenho esperança, tenho esperança

no que... vem pela frente, porque do jeito que tá, que tá não dá pra ficar,

tem que melhorar... pra frente, sempre pra frente, sempre melhor. (CEN-

00/09)

Em (26), o valor modal epistêmico da oração tem que melhorar emerge de um

raciocínio inferencial por parte do falante: „se p, então q‟, ou seja, „SE‟ do jeito que tá, que tá

não dá pra ficar, „LOGO‟ tem que melhorar, correspondendo a uma conclusão, ou seja, ao

domínio das crenças e atitudes subjetivas do enunciador.

Como vimos em 3.2, vários autores propõem que a ambiguidade dos verbos modais

nos enunciados pode ser resolvida pelo contexto, de acordo com sua interação com outros

elementos linguísticos e extralinguísticos do discurso (cf. SILVA-CORVALÁN; 1995;

Os brasileiros tinham um exagero de tomar banho e os belgas não entendiam muito porque que os seminaristas

brasileiros tinham que tomar banho todos os dias, quando os outros não tomavam, né, e os outros...[inq. 360-M2-

Corpo humano – linhas 345-347]

2. obrigação

Loc. – A culpa é nossa mesmo, entendeu? Quer dizer, isso é que é finança, mal dirigida, mas é. De maneiras que

o problema se a gente tiver que falar mesmo, eh, tem que dizer isso, porque eu nunca tive medo de dizer que o

governo está tomando medidas que eu não sei aonde é que nós vamos parar. [inq. 181 – H2 – Dinheiro, banco –

linhas 139-144].

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BYBEE & FLEISCHMAN, 1995). No que se refere à ambiguidade entre significados

epistêmicos e não-epistêmicos, especificamente os deônticos, Neves (2000) igualmente

propõe que a interpretação depende de um contexto maior (além do âmbito da proposição),

como também das relações intersubjetivas (função ilocutória do ato de linguagem na interação

verbal), assim como dos diferentes tipos textuais, ou seja, os enunciados modalizados por

verbos envolvem um “complexo que engloba a sintaticização da sentença, a ambiência do

contexto extra-sentencial e o impacto do contexto da elocução” (NEVES, op. cit. p. 116).

Como já discutimos na seção 3.1.2, uma abordagem mais completa dos elementos

modais requer considerar não apenas o domínio em que opera o elemento modal, como

também o alvo sobre o qual incide a operação de modalização. É nessa perspectiva que

Olbertz (1998) e Hengeveld (2004) propõem uma classificação do fenômeno de modalização

que ultrapassa a distinção entre os domínios deôntico e epistêmico. Assim, os diferentes

significados modais são classificados, como vimos na seção 3.1.2, com base em dois

parâmetros: domínio e alvo da avaliação. Considerando, na nossa análise, a conjugação entre

as dimensões domínio e alvo, identificamos as seguintes nuanças modais70

para as

construções com ter:

Modalidade inerente extrínseca – alvo: participante

(27) E: É óbvio, né! Então Patrícia, é: você já tem que i embora, né?

P: É.

E: Senão sua mãe vai ficá desesperada.

P: Não. Não é minha mãe não.

E: Mas você vai precisá saí.

F: Eu tenho que saí mermo, que eu tenho um compromisso. (CEN-00/15)

Em (27), um compromisso pessoal (circunstância externa explícita) determina o

comprometimento do participante [+humano] com o EsC, ou seja, a necessidade de executar a

ação de sair.

Modalidade inerente extrínseca – alvo: evento

(28) E: Como é que são essas festas de aniversário?

F: Ah, são tranqüilas. Não são, [não tem] não tem problema, brigas. Não

existe brigas <com...> dentro da escola. Também é porque é só o pessoal

da escola. Às vezes, quando tem festas que deixam entrá outras pessoas, aí

que dá problema, né? Pessoas que moram no morro, né? Aí tem que

chamá a polícia. (CEN-00/11)

70 Nos casos em que identificamos, em algum grau, sobreposição de domínio e/ou de valor modal para as

construções com ter, optamos pela função mais relevante que podia emergir no entorno discursivo.

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No exemplo (28), uma circunstância externa, a entrada de outras pessoas nas festas,

condiciona a necessidade de realização do EsC: ter que chamar a polícia. Neste caso, a

ocorrência do EsC é circunstancialmente necessária.

Modalidade deôntica – alvo: participante

(29) E: É fácil! Pára-quedista é fácil. É só en- entrar para a escola aí.

F: É, é só para entrar. Daqui uns dia, tenho que servir o exército mesmo! (CEN-80/02)

De acordo com a legislação brasileira, o alistamento é obrigatório para todo jovem

do sexo masculino, no período de 1º de janeiro a 30 de abril do ano em que o cidadão

completar 18 anos. Portanto, em (29), a oração tenho que servir o exército mesmo!

corresponde à submissão do locutor a esse imperativo. Mais duas características podem ser

atribuídas ao valor deôntico expresso pela construção ter que desse enunciado: (i) o evento

ainda não ocorreu no tempo da referência, isto é, sua ocorrência, se de fato houver, será

posterior a esse tempo; (ii) o evento é não-factual, embora haja certo grau de probabilidade de

que ocorra (cf. HEINE, 1995; PALMER, 1986, 2001).

Modalidade deôntica – alvo: evento

(30) F: Tem-tem dia... eu entro na escola sete horas, eu vou-vou ali pro ponto

mais ou menos seis e meia, chega, tem que o ...tem que chegar lá uns dez

minutos antes de sete horas e acabo chegando sete e dez. Os ônibus aqui

são muito ruim, muito ruim mesmo. O esses- esses...essas pessoa podia

colocar mais ônibus aí na linha. (CEN-00/03)

Em (30), ocorre uma construção impessoal71

, tem que chegar, e a necessidade de

ocorrência do EsC, chegar antes de sete horas, advém de normas que devem ser cumpridas

não por um aluno em particular, mas representam uma obrigação geral imposta pelo

estabelecimento escolar.

Modalidade epistêmica – alvo: evento

(31) E: E de comê, de comê tem preferência?

F: Ah tenho, adoro feijão, arroz, batata frita.

E: Feijão tem que ter?

F: Ah, feijão tem que ter, todo mundo gosta de feijão, eu gosto de, deixa

eu vê, de estrogonofe eu não gosto não. (CEN-00/18)

71

Hengeveld (2004, p. 1195) e Olbertz (1982, p. 73) observam que, embora o sentido geral de obrigação seja

mais comum em construções impessoais, pode também estar presente em construções pessoais, como em: One

has to take off his shoes here (construção impessoal) e We ought to have a right to intervene (construção

pessoal).

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Em (31), na oração em destaque, a necessidade de ter feijão é admitida como certa,

inevitável pelo informante, por ser óbvia, sob o ponto de vista do conhecimento de mundo, ou

seja, de convenções genéricas culturalmente compartilhadas, correspondendo, portanto, a uma

avaliação inferencial objetiva.

Modalidade epistêmica – alvo: proposição

(32) F: O cara se formou professor de química orgânica, então, ele vai ser

professor de química orgânica. Mas, pô! Você vê cada professor hoje em

dia, que é uma comédia. Um garotão mais novo que eu, com uma barba

desse tamanho, uns cabelo tudo arrepiado- é lógico que tem que estourar

greve! Vai estourar greve toda hora! Toda hora! Toda hora estoura

mesmo. (CEN-80/26)

Em (32), o locutor expõe o seu ponto de vista a partir de uma conclusão, iniciada por

é lógico que, que advém do que é dito anteriormente, ou seja, sobre as consequências

possíveis do tipo de professor que trabalha hoje nas escolas: „portanto‟ tem que estourar

greve! Há, neste caso, um comprometimento do participante com a verdade da proposição,

através de uma avaliação inferencial subjetiva.

Como, em relação à modalidade epistêmica, há sempre a presença de um raciocínio

inferencial por parte do locutor, nem sempre há uma fronteira muito nítida entre os alvos

modais epistêmicos. Entretanto, é possível observar, nos dados das amostras sob análise, que

as orações com a construção ter que + infinitivo, no domínio epistêmico, diferem quanto à

fonte e mesmo quanto ao alvo (cf. OLBERTZ, 1998; HENGEVELD, 2004). Na orientação

para o evento, o alvo relaciona-se ao EsC, isto é, aos eventos e situações e a fonte de

julgamento corresponde a concepções mais gerais e de situações publicamente observáveis

(modalidade objetiva); na orientação para a proposição, o alvo relaciona-se às proposições,

isto é, às descrições mentais ou linguísticas e/ou avaliações do EsC do ponto de vista de uma

determinada pessoa e a fonte consiste na avaliação/atitude subjetiva do falante em relação às

suas crenças pessoais ou em seu conhecimento. Nesse domínio, quando ter que + infinitivo é

epistêmico, com alvo no evento, o valor modal é situado no ponto mais alto da escala de

certeza.

Como exemplificado acima, a construção ter que + infinitivo em orações com

polaridade afirmativa pode ocorrer em diferentes domínios e alvos da avaliação. Essa

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multifuncionalidade aproxima ter que de tener que, em Espanhol, se consideramos as

observações de Olbertz (op. cit.), retomadas a seguir:

Nas perífrases modais, o auxiliar tener não herdou nenhuma propriedade lexical

de sua base lexical possessiva. A evidência disso é a ampla aplicabilidade de

tener que + infinitivo como expressão modal em todos os tipos de alvo

(participante, evento e proposição) [ ]. (OLBERTZ, 1998, p. 501)72

Seguindo os pressupostos teóricos assumidos neste trabalho (cf. seção 2), partimos

da hipótese de que a construção ter que + infinitivo segue uma trajetória de crescente

subjetivização (cf. TRAUGOTT, 1996, 2003, 2010; KRUG, 2000), deslocando-se do domínio

inerente extrínseco, no sentido de obrigação/necessidade [+forte], para o domínio deôntico,

obrigação [-forte], e do domínio deôntico para o domínio epistêmico [+subjetivo].

Considerando também o alvo sobre o qual incide a avaliação modal, um deslocamento da

modalidade epistêmica orientada para o evento para a modalidade orientada para a proposição

também pode ser entendido em termos de uma trajetória de subjetivização, já que corresponde

ao alargamento do escopo da construção modal. Inicialmente mais restrita à predicação, a

construção ter que + infinitivo passa a alcançar unidades maiores, atingindo as condições de

verdade da proposição.

Uma questão adicional é que, apesar do seu detalhamento, a classificação acima não

recobre todas as possibilidades de uso da construção ter que + infinitivo. Nas amostras sob

análise, são também constatadas ocorrências de orações com a construção modal ter que +

infinitivo como uma forma de realização de um ato de fala diretivo (cf. SEARLE, 1983),

interpretado por PALMER (2001) como „modalidade deôntica diretiva‟ que se enquadra na

função interpessoal da linguagem proposta por Halliday (1985). De acordo com essa função,

usamos a linguagem para interagir com outras pessoas73

, para estabelecer e manter relações

sociais, influenciar comportamentos, expressar nossas opiniões e solicitar ou modificar

opiniões dos outros. Essa função é expressa pelo „Sistema de Modo‟, que constrói a oração

72

“In the modal periphrasis the auxiliary tener has not inherited any lexical properties from its possessive lexical

base. Evidence of this is the broad applicability of tener que + infinitive as a modal expression for all kinds of

targets (participant, event and proposition)” (OLBERTZ, 1998, p. 501)

73

De acordo com Bybee & Fleischman (1992, p. 3), como muitas funções de modalidade encaixam-se em

contextos de interação social, não podem ser adequadamente descritas, sem levar em consideração sua

ancoragem contextual no discurso interativo.

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como troca, intercâmbio74

, remetendo para a modalidade orientada para o falante (cf.

BYBEE, PERKINS & PAGLIUCA, 1994). Algumas ocorrências de ter que + infinitivo

desempenham função bastante similiar. São casos que se apresentam quer em forma

exclamativa, quer em forma interrogativa ou mesmo no contínuo discursivo em que o locutor

se dirige ao interlocutor, envolvendo-o no discurso em curso, convidando-o a

participar/compartilhar do que está sendo dito, como em (33):

(33) E: Entendi. E assim, e a sua mãe, quê que ela fala, reclama muito?

F: Reclama do horário que eu chego. Fala pra caramba. “Olha você tá

chegando tarde...” que num sei quê, e qué acordá tarde... Fica falando no

meu ouvido até... Tem que vê! Ela fala pra caramba. (CEN-00/12)

Em (33), a oração Tem que vê! possui um valor nitidamente interacional: o locutor

interage como seu interlocutor numa forma de exortação, convite. Podemos considerar esse

uso como uma forma imperativa, de acordo com a perspectiva de Halliday (1985) e Olbertz

(op. cit.), para quem

Exortativo é uma subcategoria da Ilocução Imperativa. Um ato de fala exortativo

consiste de um pedido dirigido ao(s) interlocutor(es) para que este participe com

o falante na realização de uma ação. (OLBERTZ, 1998, p. 431)75

Nessa perspectiva, a perífrase ter que + infinitivo pode ser interpretada como uma

ilocução imperativa exortativa, ou seja, possui força ilocucionária hortativa

(convite/encorajamento), analisada neste trabalho como uso interacional. Visto sob a ótica de

uma escala de (inter)subjetivização, esse uso constituiria o último estágio de uma trajetória [-

subjetivo > +subjetivo > intersubjetivo]. De acordo com a proposta de Traugott (2003, 2010)

e Traugott & Dasher (2005), se um significado adquire funções no nível interpessoal, esses

novos significados derivam da aquisição de significados subjetivos em um estágio anterior.

Nesse sentido, esses usos de ter que + infinitivo podem ser interpretados como uma etapa

final de um processo que envolveria a intersubjetivização dessa construção.

74 São formas de manifestação dessa função os modos do verbo, indicativo (negação e interrogação) e

imperativo; além do próprio tempo verbal, a modalidade e as “questions tags”.

75

“Exhortative is a subcategory of Imperative Illocution. Na Exhortative speech act consists of a request directed

to some addressess(s) to join the speaker in realizing some action. In its Present-Tense first-person-plural form,

ir a + infinitive is used in exhortative imperative sentences.” (OLBERTZ, 1998, p. 431)

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Na tabela 4, mostramos os resultados da distribuição da construção ter que +

infinitivo quanto ao domínio e alvo da avaliação e quanto ao uso interacional nas amostras

Censo 1980 e Censo 2000:

Tabela 4 – Distribuição de ter que + infinitivo em função do domínio/alvo

e uso interacional.

Domínio/alvo Censo 1980 Censo 2000

Inerente Extrínseca → Participante 169 = 29% 150 = 21%

Inerente Extrínseca → Evento 64 = 11% 52 = 8%

Deôntica → Participante 154 = 26% 113 = 16%

Deôntica → Evento 111 = 19% 270 = 38%

Epistêmica → Evento 48 = 8% 68 = 10%

Epistêmica → Proposição 36 = 6% 43 = 6%

Uso Interacional 10 = 1% 10 = 1%

Total 592 706

Os resultados da tabela 4 evidenciam algumas diferenças na distribuição da

construção ter que + infinitivo nas duas sincronias. Na amostra Censo 1980, não há diferença

significativa entre os valores associados à modalidade inerente extrínseca orientada para o

participante (29%) e a modalidade deôntica orientada para o participante (26%). Nessa

amostra, destaca-se, ainda, o uso de ter que + infinitivo com o valor deôntico orientado para o

evento (19%).

Na amostra Censo 2000, há uma redução de ter que + infinitivo para a expressão de

modalidade inerente extrínseca orientada para o participante (21%) e ela passa a predominar,

nitidamente, no domínio deôntico orientado para o evento (38%). Decresce igualmente o uso

de ter que + infinitivo como deôntico orientado para o participante (16%).

Nas duas amostras, o uso da construção ter que + infinitivo no domínio epistêmico é

mais escasso, com um total de 14% em 1980 e 16% em 2000, não havendo, portanto,

diferença significativa entre os dois períodos. Portanto, esses resultados desfavorecem a

hipótese de aumento nos usos mais subjetivos da construção ter que + infinitivo, visto que,

mesmo ignorando o alvo, os percentuais nesse domínio são muito próximos. Pode ser que, no

desenvolvimento dos modais, a passagem entre [-subjetivo] para [+subjetivo] esteja

acontecendo de forma gradual, envolvendo etapas intermediárias.

Podemos observar, ainda, que, as duas amostras se identificam nos baixos índices de

ter que +infinitivo como recurso interacional/exortativo (1%). Convém ressaltar que, além de

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o número de ocorrências ser idêntico, 10 em cada uma das amostras, há predominância

absoluta da construção ter que com o infinitivo ver: 07 ocorrências na amostra Censo 1980 e

09 na amostra Censo 2000, sugerindo uma cristalização de formas, como tem que vê/tinha que

vê, que se aproxima do que Bybee (2010) denomina expressões formulaicas.

Os resultados da tabela 4 sugerem que a mudança mais relevante entre 1980 e 2000

envolve o alvo da avaliação modal, o que se confirma nas tendências indicadas na tabela 5,

em que desconsideramos a dimensão domínio:

Tabela 5 – Distribuição de ter que + infinitivo de acordo com o alvo

da avaliação.

Alvo da avaliação Censo 1980 Censo 2000

Participante 323 = 56% 263 = 38%

Evento 223 = 38% 390 = 56%

Proposição 36 = 6% 43 = 6%

Total 582 696

Os resultados da tabela 5 tornam mais evidente a maior concentração da construção

ter que + infinitivo orientada para o participante (56%), na década de 80, embora seja

considerável seu uso para a avaliação do próprio evento (38%). Na amostra Censo 2000, a

predominância do valor modal que incide no evento é inquestionável (56%), acompanhada da

queda de ter que + infinitivo com alvo no participante (38%).

As tendências observadas na tabela 5 podem ser indicativas de um alargamento no

escopo da modalização que passa a operar sobre toda a predicação, o que, pelo menos

teoricamente, abre portas para a expansão no domínio epistêmico. Nesse sentido, pode-se

compreender um certo afastamento da construção ter que + infinitivo do seu domínio

prototípico (inerente extrínseco) com alvo no participante para um uso significativamente

mais importante no domínio deôntico com alvo no evento. Embora, na amostra Censo 1980, o

uso de ter que + infinitivo ainda reflita o que se diz sobre essa perífrase, ou seja, que ela

impõe uma necessidade externa e imperiosa sobre a ação de um participante, na amostra

Censo 2000, essa situação muda, observando-se um aumento do escopo da perífrase que passa

a incidir sobre a predicação como um todo.

Algumas observações a respeito da construção tener que + infinitivo, no Espanhol,

permite levantar algumas hipóteses acerca de possíveis mudanças no uso de ter que +

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infinitivo no PB. Segundo Olbertz (1988, p. 384), no Espanhol, a expressão de necessidade

imposta a partir de convenções está mais associada a deber do que a tener que. É plausível

supor que, no Português, essa relação entre forma e significado tenha se alterado com maior

“invasão” do campo de dever por ter que + infinitivo. Embora essa hipótese careça de

evidências empíricas neste estudo, o já atestado deslizamento de dever para o domínio

epistêmico (cf. RIGONI COSTA, 1995; NEVES, 2000, 2006, dentre outros) pode ter

repercutido no movimento constatado para ter que.

Esse movimento pode ser interpretado em termos de mudança na força modal da

construção ter que + infinitivo. É possível entender que o valor de obrigação/necessidade

colocado sobre o participante tenha mais força, na medida em que não lhe deixa escolha, é

imperiosa. Por outro lado, a obrigação/necessidade imposta sobre o evento não envolve

diretamente o participante, sua responsabilidade e ainda opera do exterior, impondo-se por si

mesma. Essa tendência encontra paralelo no estudo de Dall‟Aglio-Hattnher (2009), que

analisa o comportamento dos modalizadores deônticos e volitivos presentes nos discursos de

posse proferidos pelos presidentes do Brasil eleitos no período de 1990 a 2006. A autora

atesta uma alta incidência de modalidade deôntica orientada para o evento, o que se explica,

segundo ela, pela necessidade de um presidente não se responsabilizar e não responsabilizar

outras pessoas pela execução de obrigações e deveres.76

No entanto, não se pode ignorar que, interrelacionada com a mudança apontada

acima, está, também, a dimensão domínio, como mostra a tabela 6:

Tabela 6 – Distribuição de ter que + infinitivo de acordo com

o domínio da avaliação.

Domínio da avaliação Censo 1980 Censo 2000

Extrínseco 233 = 40% 202 = 29%

Deôntico 265 = 46% 383 = 55%

Epistêmico 84 = 14% 111 = 16%

Total 582 696

Os resultados da tabela 6 mostram que, na amostra Censo 1980, o uso de ter que +

infinitivo no domínio extrínseco (40%) e deôntico (46%) é equivalente. Na amostra Censo

76 Confirmando essa tendência, o estudo de Dall‟ Aglio-Hattnher (2009) também evidenciou, nos casos de

modalidade deôntica orientada para o participante, o uso de nomes genéricos e nomes de instituição, interpretado

pela autora como uma forma de descomprometimento do sujeito-enunciador e evitando, deste modo, efeitos

negativos quanto à instauração de deveres e obrigações.

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2000, destaca-se o aumento dessa construção no domínio deôntico (55%) e seu decréscimo

considerável no domínio extrínseco (29%). Tanto na amostra Censo 1980 como na amostra

Censo 2000, como já evidenciado (cf. tabela 4), há uma escassez de uso de ter que no

domínio epistêmico, 14% e 16% respectivamente.

Como vimos na seção 3.1, para Coates (1983, p. 32), a modalidade de raiz da qual

compreende a modalidade deôntica, apresenta um cline de força, compreendendo um

continuum entre obrigação [+forte] > [+fraca], sendo a obrigação [+forte] interpretada como

„é imperativo que‟ e a [+fraca] interpretada como „é importante que‟. Deste modo, podemos

considerar que, no domínio extrínseco, as contingências externas possuem maior poder de

imposição sobre a conduta do participante do que normas, regras e convenções que, pelo

menos em princípio, podem ser discutidas e contestadas. Nesse caso, as duas mudanças

sugeridas nesta análise estatística (quanto ao domínio e alvo) envolveriam um

enfraquecimento da força modal de ter que + infinitivo.

Uma pergunta central deste estudo envolve as possíveis especificidades de cada uma

das construções com ter que possam, inclusive, fornecer pistas acerca do quase

desaparecimento da construção ter de + infinitivo na modalidade falada. Ainda que as

ocorrências dessa construção sejam muito escassas, apenas uma com polaridade negativa na

amostra Censo 1980 e seis, na amostra Censo 2000, sendo uma com polaridade negativa, elas

podem operar em diferentes domínios e alvos, como demonstram os exemplos de (34) a 40):

Modalidade Inerente Extrínseca – alvo: participante

(34) F: Não. Eu tô durinha! A menina que vai me emprestá o dinheiro de

passagem que eu tenho de i nesse lugar mermo. (CEN-00/15)

Modalidade Deôntica – alvo: participante

(35) F: Olha... eu não participei, eu não acompanhei, eu não vi nada, não vi

debate, eu já sabia quem era...quem eram os candidatos, tinha a minha

opinião formada: por mim eu não votaria em nenhum dos dois. Votei...em

um porque eu tinha de cumpri minha obrigação e num queria estragá

meu voto. (CEN-00/31)

(36) F: [Aí], [ai...], aí.. porque falaram prá ele assim tem que falá cum pai dela

cum pai dela e a mãe dela, se pode ou não, né? é meu pai,tem que falá e

minha mãe, né?[se pode ou não]

E: [Hum, hum...] E ELE num se decide?

F: Num decide. Já falei: olha, cê tem de decidi! Que tem jeito de decidi é

você, né eu não. (CEN-00/21)

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(37) F: Quando tivé que falá você fala, quando num tivé de falá você num

fala. Quando você chega a falá muito é porque você tá preparado pra falá

até certo ponto. (CEN-00/19)

Modalidade Epistêmica – alvo: proposição

(38) F: Então, mês de setembro todo a gente tem caminhada, tem baile, tem

salgadinho, por isso que que eu digo a você que a pessoa tem de i de

encontro com as coisa, senão você não consegue. A gente tem salgadinho,

tem refrigerante, tudo assim, sabe? de graça. (CEN-00/27)

(39) E: E que que o senhor acha , assim, da igreja católica atual?

F- Não! Tudo bem! Tudo bem! Tenho nada que falar, não tem nada de

reclamar. (CEN-80/25)

(40) F: Ele tinha que arrumar mais mais trabalho,tinha que aumentar o salário

das pessoas, tinha que parar com esses negócios de juros também, que os

juros agora tão altíssimos. E é é as empresas agora estão falindo por causa

desses juros. Eu acho que tem muita coisa que tem de sê mudada. (CEN-

00/03)

Considerando as ocorrências acima exemplificadas, do ponto de vista dos valores

modais que as construções com ter podem expressar, há indicações de que não há maior

diferença entre as construções ter que + infinitivo e ter de + infinitivo. Resta, portanto,

explicar, a generalização da primeira.

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5.3 Propriedades morfossintáticas do verbo ter

De acordo com as evidências já destacadas em diversos estudos (cf., por exemplo,

THOMPSON & MULAC, 1991; RIGONI COSTA, 1995; CASSEB-GALVÃO, 1999, 2001;

GONÇALVES, 2002, 2005), as desinências modo-temporais, assim como os traços de pessoa

e número gramaticais são frequentemente associados a processos de gramaticalização de

verbos modais.77 Na maioria dos casos de gramaticalização de modais, observa-se uma

redução na variabilidade morfossintática da forma verbal, como mostra Rigoni Costa (1995,

p. 113) em relação ao verbo dever, que se reduz à terceira pessoa do singular do presente do

indicativo, passando, portanto, “por uma redução drástica da flexão modo-temporal e número-

pessoal, transformando-se, praticamente, em uma forma invariável: deve (68%), devem

(11%), devia (11%), devo (8%) e deverá (2%).”

Outro exemplo prototípico dessa correlação entre sentidos mais gramaticalizados,

através de desinências número-pessoais e modo-temporais específicas, pode ser observado no

uso de achar como modalizador (com significado de palpite) ou como advérbio modal que

não aceita variabilidade de modo e tempo. Segundo Casseb-Galvão (1991, p. 94-95), essas

funções ficam mais restritas a formas verbais no presente do indicativo, isto é, “têm a forma

fonológica cristalizada na primeira pessoa do singular” (Idem, p. 96). A mesma tendência é

constatada por Gonçalves (2003, p. 223) para o verbo parecer, que, no seu estágio mais

gramaticalizado, como elemento funcional indicativo de modalidade evidencial, restringe-se à

terceira pessoa do presente do indicativo.

Essa redução paradigmática pode ser entendida em termos de maior subjetivização

ou abstratização. Como propõe Traugott (1989), os modais, originalmente verbos plenos, com

sentidos concretos, seguindo tendências universais de mudança semântica, tornam-se,

progressivamente, mais abstratos e orientados para a atitude subjetiva do falante em relação à

proposição. A mesma autora (cf. 2003, 2010) considera que o controle dos traços de pessoa e

número do verbo constitui uma forma de operacionalizar hipóteses relativas ao processo de

subjetivização, pois podem indicar maior ou menor orientação para o falante. A correlação

entre significaos mais subjetivos, no caso, atitude proposicional e cristalização da forma

verbal na primeira pessoa do singular é discutida, por exemplo, por Gonçalves (cf. 2003,

77

Em Inglês, a gramaticalização dos verbos think e guess é fortemente controlada do ponto de vista gramatical,

ficando restrita à primeira pessoa do singular (cf. THOMPSON & MULAC, 1991).

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2005). Evidências são encontradas em outras línguas, como a da gramaticalização de salirse

como operador de contra-expectativa, em Espanhol (cf. AARON & TORRES

CACOULLOUS, 2005). Segundo os autores, esse valor é predominante com sujeitos de

primeira pessoa do singular e com referentes de terceira pessoa78, o que pode ser explicado

pelo fato de que essas são as formas de expressar maior saliência emocional.

Examinamos, a seguir, algumas propriedades morfossintáticas do verbo ter nas

construções ter de e ter que + infinitivo.

5.3.1 Propriedades modo-temporais

Nesta seção, focalizamos a possibilidade de redução na variabilidade de desinências

modo-temporais do verbo ter nas construções ter que + infinitivo e ter de + infinitivo. Nas

amostras analisadas, foram encontradas as seguintes possibilidades de tempo e modo do

auxiliar ter:

Presente do Indicativo

(41) E: Você- Você como um católico, você acha bom esse fanatismo de ir a

Nossa Senhora de Aparecida?

F: Acho.

E: Acha?

F: Que a pessoa tem que ter fé em alguma coisa. (CEN-80/08)

Pretérito Perfeito do Indicativo

(42) E: E foi assim uma grande paixão?

F: Foi grande não, mas que não durou muito, sabe? Ela teve que ir

embora e daí ela... não não deu mais endereço, assim, "não" deu endereço

da casa dela. (CEN-80/02)

Pretérito Imperfeito do Indicativo

(43) E: Mas aí, tem que trazer a água para cá para lavar a roupa?

F: Dá se a gente quisesse lavar roupa em casa, tinha que apanhar água

lá embaixo para lavar roupa em casa. (CEN-80/06)

78 Neste caso, os referentes de terceira pessoa correspondem àqueles mais próximos aos falantes, ou seja, pessoas

com as quais os falantes têm mais ligações emocionais, por exemplo, quando o assunto gira em torno de entes

familiares.

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Futuro do Pretérito do Indicativo

(44) F: Eu daria um uma outra função, um outro modo de ele podê ganhá o

dinheiro porque se você dé o dinheiro, o dinheiro acaba e o modo de ele

ganhá o dinheiro, não, entendeu? Ele teria que cavá, fazê buraco no chão

prá podê ganhá dinheiro, entendeu? (CEN-00/29)

Futuro do indicativo

(45) E: E você usa alguma proteção?

F: É uma é tipo agora mais que eu vou fazê ponta no outro ano eu vou tê

que botá esparadrapo, mas também, agora eu uso uma ponteira, que tem

um troço pra botá assim aí bota a sapatilha. (CEN-00/01)

Pretérito Imperfeito do Subjuntivo

(46) E: Daqui a pouquinho tem as bodas de ouro, né?

F: Tem, com com o noivado e namoro seria bodas de ouro, né? e tem mais

hein, se tivesse que repetir a dose teria repetido também. (CEN-00/29)

Futuro do Subjuntivo

(47) E: Mas, então você lê bem e fala bem, não é?

F: Leio. Falo.

E: Você tem hábito?

F: Não sou, assim, expert em francês, mas eu falo, assim, quando eu tiver

que conversar, assim, dá para eu conversar. (CEN-80/22)

Presente do Subjuntivo

(48) I: É porque tem que dá... tem que tê maturidade... .

F: Claro, pô... claro, entendeu. Pô dá aula, cara, em qualquer... .qualquer...

qualquer coisa aí, qualquer matéria, qualquer trabalho que você tenha que

dá aula pra alguém, cara, não é... chegá: “porra vou dá aula, não sei o

que” fazê qualquer gracinha, não. (CEN-00/23)

Infinitivo

(49) E: Escuta, e a sua escola aqui, como é que é? Você gosta dela?

F: Gosto. Eu estou sei lá, não- não estou gostando de eu ter que sair,

sabe? Porque eu fiz a sétima e a oitava aí, que é o ano que eu estou

cursando. Eu não estou gostando, porque eu vou sair, mas não tem o que

eu quero, não é? (CEN-80/24)

Gerúndio

(50) F: É a mesma batida o tempo inteiro, pô dez horas da noite de domingo

pra segunda, as pessoas tendo que trabalhá, ficá até seis horas da manhã,

cinco e meia da manhã, seis horas da manhã, aquilo tocando altíssimo,

porque eles não diminuem mesmo [...] (CEN-00/22)

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116

Partimos da hipótese de que o verbo ter, nas duas construções79

, se submete a uma

forte redução paradigmática, associando-se, preferencialmente, a algumas desinências

número-pessoais. Essa hipótese se confirma nos resultados da tabela 7, relativa ao uso de ter

que + infinitivo:

Tabela 7 – Distribuição de ter que + infinitivo de acordo com o tempo/modo do verbo ter.

Tempo/modo verbal Censo 1980 Censo 2000

Presente do Indicativo 418 = 71% 492 = 70%

Pretérito Perfeito do Indicativo 37 = 6% 57 = 8%

Pretérito Imperfeito do Indicativo 83 = 14% 105 = 15%

Futuro do Pretérito do Indicativo 2 = 0% 7 = 1%

Perífrase de Futuro 27 = 5% 23 = 4%

Pretérito Imperfeito do Subjuntivo 2 = 0% 2 = 0%

Futuro do Subjuntivo 9 = 1% 8 = 1%

Presente do Subjuntivo 0 = 0% 1 = 0%

Infinitivo 14 = 3% 8 = 1%

Gerúndio 0 = 0% 3 = 0%

Total 592 706

Embora o verbo ter, na construção modal ter que + infinitivo, aceite uma grande

variedade de desinências modo-temporais80

, constata-se, de forma regular para os dois

momentos considerados, sua significativa predominância no presente do indicativo, com 71%,

na amostra Censo 1980 e 70% na amostra Censo 2000. Há, neste ponto, indicações de uma

restrição morfossintática, tal como ocorre, por exemplo, com a gramaticalização de dever (cf.

RIGONI COSTA, 1995), achar (cf. CASSEB-GALVÃO, 1999), diz que (cf. CASSEB-

GALVÃO, 2001), e parece que (cf. GONÇALVES, 2003, 2005). Além da alta incidência no

presente do indicativo, destaca-se com valores mais expressivos a possibilidade de ocorrência

do auxiliar ter no pretérito imperfeito do indicativo: 14% na amostra Censo 1980 e 15% na

amostra Censo 2000. Além dessas duas formas, apenas a forma de pretérito perfeito alcança

79

Das 05 ocorrências de ter de + infinitivo, registradas na amostra Censo 2000, quatro ocorrem no presente do

indicativo, como no seguinte exemplo: F: Eu acho que tem muita coisa que tem de sê mudada. (CEN-00/03). Na

outra ocorrência, o verbo ter se realiza no pretérito imperfeito do indicativo: Votei...em um porque tinha de

cumpri minha obrigação e num queria estragá meu voto. (CEN-00/31).

80

Câmara Jr. (1976, p. 170) observa que o auxiliar das perífrases modais com ter ocorre em todos os tempos

verbais e não apenas no presente do indicativo, na acepção de „um futuro obrigatório‟, como „insistem‟ as

gramáticas.

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índices um pouco mais consideráveis, 6% na amostra Censo 1980 e 8% na amostra Censo

2000. Todas as demais desinências modo-temporais ou as formas nominais possuem índices

de ocorrências excessivamente baixos.

A nítida correlação entre ter que + infinitivo e o presente do indicativo pode ser

explicada, pelo menos em parte, pelas próprias características inerentes a essa forma verbal.

Como mostram diversos autores (cf. CONRIE, 1990; VILELA & KOCH, 2001; CORÔA,

2005; NEVES, 2006), o uso do presente do indicativo ultrapassa sua função de situar o EsC

no aqui e agora, podendo fazer referência igualmente a fatos habituais, atemporais ou

genéricos, todos eles marcados pelo traço [-perfectivo]. A importância desse traço na

generalização da construção ter que + infinitivo é reforçada pela sua maior possibilidade de

ocorrência no pretérito imperfeito do indicativo.

Como já evidenciado por diversos autores, as desinências modo-temporais são muito

importantes na interpretação de enunciados modalizados, visto que, nos termos de Neves

(2006, p. 213), “ao fazer a ancoragem de tempo, o falante estabelece uma correspondência

entre a proposição contida no enunciado modalizado e a situação referencial, localizada no

passado, no presente ou no futuro.”

De modo geral, a referência ao tempo presente ou passado associa-se a uma leitura

epistêmica, enquanto a referência ao tempo futuro associa-se a uma leitura deôntica, já que

categorias deônticas, como de obrigação, proibição, permissão, não admitem atualizações no

passado (cf. COATES, 1983; SWEETSER, 1990; BYBEE, PERKINS & PAGLIUCA, 1994;

HEINE, 1995; KLINGE, 1996; NEVES, 2000, 2001b81

). É consensual que a modalidade

deôntica ocorra em contextos que indicam noções de futuridade, incluindo a noção atemporal

do presente do indicativo (cf. BYBEE, PERKINS & PAGLIUCA, 1994; NEVES, 2000, 2006;

PALMER, 2001, dentre outros).

Deste modo, pode-se supor uma superposição entre as propriedades modo-temporais

do verbo ter e o valor modal expresso pela construção ter que + infinitivo. A modalidade

inerente extrínseca se fundamenta em condições externas que podem estar situadas em

momentos temporais diferentes. Por outro lado, a modalidade epistêmica, por envolver uma

81

Neves (2001b) observa que, em alguns casos, um mesmo enunciado, descontextualizado, pode ser considerado

de tempo presente se a interpretação for epistêmica, e de tempo futuro se a interpretação for deôntica, como em:

A mesma hora deve marcar o relógio da Glória admite interpretação epistêmica (probabilidade) se

considerarmos o contexto „já que chegamos juntas‟ ou interpretação deôntica (necessidade), se considerarmos o

contexto „para que cheguemos juntas ao teatro‟.

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avaliação que tem de, necessariamente, coincidir com o momento da fala, favoreceria o

presente do indicativo, como constatado por Gonçalves (2002, p. 72): “A evidência mais clara

da natureza subjetiva da ME82

é o fato de os modais mais relevantes ocorrerem sempre no

tempo presente, uma vez que o julgamento feito pelo falante ocorre simultaneamente ao ato

de fala.” A forma de presente do indicativo apresenta, igualmente, compatibilidade com o

valor modal de obrigação expresso pela construção ter que + infinitivo, relacionado, na maior

parte das vezes, a normas, regras, convenções que se aplicam de forma geral e não estão

temporalmente condicionadas. Neves (2006, p. 214), por exemplo, encontrou no corpus de

Araraquara83

83% dos verbos modais deônticos no tempo presente, ressaltando que se trata de

um presente com extensão para o futuro (como em A sala deve estar limpa sempre. Não

quero que alguém reclame.).

Uma análise dessa corrrelação requer um cruzamento entre as variáveis modalidade e

tempo/modo mais recorrentes com a perífrase ter que + infinitivo, ou seja, o presente do

indicativo, o pretérito imperfeito e o pretérito perfeito do indicativo. Na tabela 8, são

apresentados os resultados para a amostra Censo 1980:

Tabela 8 – Interação entre domínio modal e desinências modo-temporais do verbo ter -

Amostra Censo 1980.

Domínio modal

Tempo/modo Extrínseco Deôntico Epistêmico

Presente Indicativo 144 = 66% 203 = 80% 62 = 76%

Pret. Perf. Indicativo 29 = 13% 7 = 3% 1 = 1%

Pret. Imp. Indicativo. 33 = 15% 34 = 13% 15 = 18%

Futuro do Indicativo 12 = 6% 11 = 4% 4 = 5%

Total 218 255 82

Na tabela 8, destaca-se, como se podia esperar, a predominância do presente do

indicativo em todos os domínios modais. No entanto, essa forma verbal é particularmente

recorrente em orações com a construção ter que + infinitivo nos domínios deôntico (80%) e

epistêmico (76%), caracterizando-se pelo traço [-perfectivo]. Nesses dois domínios, observa-

82

Por ME o autor refere-se à modalidade epistêmica.

83

O corpus de Araraquara, com cerca de 100 milhões de ocorrências do português escrito contemporâneo,

abrange textos do tipo romanesco, oratório, técnico-científico, jornalístico e dramático.

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se um índice um pouco mais relevante apenas para o pretérito imperfeito do indicativo, 13% e

18% respectivamente. Ressalta-se, ainda, para a modalidade extrínseca maior variabilidade de

tempo-modo verbal, principalmente com formas do passado: pretérito perfeito do indicativo

(13%) e pretérito imperfeito do indicativo (15%).

Embora as correlações mostradas na tabela 8 não possam ser tomadas como

decisivas, elas apontam alguns aspectos interessantes na superposição entre o tipo de

modalidade expresso pela construção ter que + infinitivo e as propriedades modo-temporais

do verbo ter. De forma geral, o presente do indicativo predomina, independentemente do

domínio e alvo considerados, com índices superiores a 60%. É de se notar, no entanto, que ele

se torna quase categórico no uso interacional de ter que + infinitivo, com 90% (09/10). A

comparação com os resultados da amostra Censo 2000 permite verificar a generalidade dessas

tendências:

Tabela 9 – Interação entre domínio modal e desinências modo-temporais do verbo ter -

Amostra Censo 2000.

Domínio modal/

Tempo/modo Extrínseco Deôntico Epistêmico

Presente Indicativo 104 = 53% 310 = 85% 73 = 69%

Pret. Perf. Indicativo 47 = 24% 10 = 3% 0 = 0%

Pret. Imp. Indicativo 35 = 18% 39 = 10% 26 = 25%

Futuro do Indicativo 10 = 5% 7 = 2% 6 = 6%

Total 196 366 105

De acordo com os resultados da tabela 9, o presente do indicativo se mantém como

uma característica da construção ter que + infinitivo, predominando em todos os domínios

modais, sendo mais recorrente no domínio deôntico, com 85%. No domínio epistêmico,

observa-se, ainda, um índice mais relevante para o pretérito imperfeito do indicativo, com

25% e no domínio extrínseco ressalta o pretérito perfeito do indicativo, com 24%.

Comparando as duas amostras, observa-se que o presente do indicativo predomina no

uso da construção ter que + infinitivo em todos os domínios, porém sendo mais recorrente nos

domínios deôntico e epistêmico. O segundo índice mais expressivo encontra-se no pretérito

imperfeito, embora seja mais preponderante no domínio epistêmico (25%) na amostra Censo

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2000. Destaca-se, ainda, a atuação do pretérito perfeito no domínio extrínseco tanto na década

de 80 quanto nos anos 2000.

As indicações são, portanto, de que o presente do indicativo constitui uma marca

característica da construção ter que + infinitivo, principalmente no domínio deôntico. Essa

correlação se confirma nas propriedades ligadas ao uso interacional: na amostra Censo 2000,

atestam-se 05 ocorrências de uso interacional no presente do indicativo e 05 no pretérito

imperfeito do indicativo. Os resultados da tabela 9 confirmam, ainda, a tendência já verificada

na tabela 8, ou seja, a forte associação entre ter que + infinitivo e o aspecto [-perfectivo],

marcado pela predominância do presente do indicativo no domínio deôntico e do pretérito

imperfeito do indicativo no domínio epistêmico.

Há indicações de que a tendência discutida acima é mais geral, ou seja, a associação

das construções modais com ter ao aspecto [-perfectivo], visto que das 05 ocorrências de ter

de + infinitivo, registradas na amostra Censo 2000, quatro ocorrem no presente do indicativo

e uma no pretérito imperfeito do indicativo.

5.3.2 Propriedades número-pessoais

Como já destacado acima, a migração de verbos plenos para a classe dos auxiliares

envolve não apenas uma redução na diversidade de desinências modo-temporais, como

também das desinências número-pessoais. Assim, além da associação com as categorias de

modo-tempo, há que se considerar a associação desses verbos com a pessoa gramatical do

sujeito. Como constata Traugott (2003a,b, 2010), as formas que passam a atuar em domínios

como aspecto e modalidade tendem a se concentrar em algumas pessoas verbais,

principalmente na primeira e na terceira pessoa do singular.

Como mostram os exemplos a seguir, o verbo ter na construção ter que + infinitivo

pode ocorrer com diversas flexões número-pessoais:

1ª pessoa do singular

(51) E: Você tem carteira de identidade, não é?

F: Carteira de identidade eu não tenho. Porque eu tirei, aí eu perdi, eu

tenho que até- para mim ti-- como é? Tira- pegar outra, não é? Ainda não

fui, porque eu ainda não tive tempo de ver, ir lá, mas eu tenho que ir

tirar! (CEN-80/04)

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3ª. pessoa do singular

(52) E: E você acha que uma mulher casada, com filhos, deve continuar

trabalhando fora?

F: Não, aí não. Eu acho que uma mulher casada, ela tem que dar maior

atenção ao filho, não é? Ainda mais "a que tem mais filho", não é? Tem-

eu vejo, às vezes- como um comercial que tem na televisão, mulher deixa

os filhos em casa, não é? (CEN-80/24)

1ª pessoa do plural

(53) F: Eu ia vê o quê? Eu ia sai daqui pra vê folgos na pra:ia? Eu ia daqui pra

vê não sei o quê? Que isso? Onde é que está minha casa? Que Jesus vinha

batê na porta. A onde? Chegava aqui e não me encontrava, eu tava a onde?

Na praia! Não, eu tenho que chegá nessa hora. Nós temos que está na

nossa casa. Nós abraçar, eu tô na praia! A casa fechada sozinha! Não

aceito! Viu! (CEN-00/28)

3ª pessoa do plural

(54) F: Mas antigamente não tinha fralda descartável!

E: Pois é. Quer dizer, hoje deveria ser mais fácil, não é? Porque a gente

tem tantos recursos hoje em dia, não é?

F: É, mas é a vida que- eu acho que é a vida que- dificuldade de vocês

terem que trabalhar, os dois trabalhando, então, existe essa dificuldade.

E é isso que eu acho que antigamente tinha-se mais filho do que hoje. (CEN-80/11)

Considerando que a construção ter que + infinitivo, nas amostras sob estudo,

apresenta maior recorrência no domínio deôntico e/ou extrínseco (cf. tabela 6, seção 5.2),

partimos da hipótese de que o verbo ter dessa construção teria maior correlação com as

primeiras e terceiras pessoas (característica de verbos modais, cf., por exemplo, TRAUGOTT,

2003a, b; 2010), visto que imposições que se ancoram em uma circunstância ou em normas

(sociais, legais, morais) podem ter como alvo o participante ou o evento (cf. tabela 5, seção

5.2). Na tabela 10, apresentamos os resultados da distribuição da construção ter que +

infinitivo nas amostras Censo 1980 e Censo 2000, de acordo com a pessoa gramatical do

verbo ter:

Tabela 10 – Distribuição de ter que + infinitivo de acordo com a pessoa gramatical.

Pessoa gramatical Censo 1980 Censo 2000

1ª. Pessoa do Singular 124 = 21% 143 = 20%

3ª. Pessoa do Singular 432 = 73% 511 = 72%

1ª. Pessoa do Plural 12 = 2% 14 = 2%

3ª. Pessoa do Plural 24 = 4% 38 = 6%

Total 592 706

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Comparando as duas sincronias, de forma similar, o verbo ter, na construção ter que

+ infinitivo, encontra-se mais frequentemente na terceira pessoa do singular, correspondendo

a mais de 2/3 das ocorrências: frequência de 73% na amostra Censo 1980 e 72% na amostra

Censo 2000. O segundo índice, porém menos expressivo, diz respeito à primeira pessoa do

singular, com 21% na amostra Censo 1980 e 20% na amostra Censo 2000. As demais

possibilidades número-pessoais apresentam valores muito baixos. Como a distribuição das

frequências é muito semelhante nos dois momentos, não há indícios significativos de

mudança no que se refere a essa propriedade morfossintática do verbo ter.

De forma semelhante ao que vimos para as desinências número-pessoais para a

construção ter que + infinitivo, as desinências número-pessoais de primeira e de terceira

pessoa do singular são compartilhadas por ter de + infinitivo, visto que das 05 ocorrências, na

amostra Censo 2000, 03 são de terceira pessoa e 02 de primeira pessoa. Há indicações,

portanto, de que essa tendência independe do elemento relator da construção (que ou de),

constituindo uma característica mais geral das construções modais com ter.

Uma questão relevante envolve a possibilidade de correlação entre o valor modal de

ter que + infinitivo e as propriedades número-pessoais do verbo ter. Esperamos que a

modalidade extrínseca e a deôntica, conforme tendências de gramaticalização de modais,

estejam mais fortemente correlacionadas com a terceira pessoa do singular e a modalidade

epistêmica, dada a sua natureza mais subjetiva, predomine com a primeira pessoa do singular.

Os resultados para a amostra Censo 1980, mostrados na tabela 11, reiteram, antes de

outra expectativa, a predominância de ter que + infinitivo na terceira pessoa do singular:

Tabela 11 – Interação entre domínio modal e pessoa gramatical do verbo ter

– Amostra Censo 1980.

Domínio modal/

Pessoa Gramatical Extrínseco Deôntico Epistêmico

1ª Pessoa do Singular 75 = 32% 43 = 16% 6 = 7%

3ª Pessoa do Singular 144 = 62% 210 = 79% 68 = 81%

1ª Pessoa do Plural 5 = 2% 3 = 1% 4 = 5%

3ª Pessoa do Plural 9 = 4% 9 = 4% 6 = 7%

Total 233 265 84

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É necessário destacar, na tabela 11, dois aspectos: a- a terceira pessoa do singular é

um pouco menos recorrente no domínio extrínseco (62%) para a qual se observa maior

variação com a primeira pessoa do singular (32%); b- tanto no domínio deôntico como no

epistêmico, o índice de terceira pessoa do singular alcança valores próximos de 80%.

A recorrência de associação entre o domínio epistêmico e terceira pessoa contraria a

hipótese colocada. Entretanto, como mostra Traugott (2010), nem sempre a modalidade

epistêmica está associada à primeira pessoa do singular. Embora admitindo que as mudanças

de sujeitos para primeira pessoa, geralmente, sejam relevantes no desenvolvimento de

significados subjetivos, a autora reconhece que não são necessariamente correlacionadas ou

indicativas de subjetivizacão, visto que este processo pode até ser mais evidente, quando não

ocorre sujeito explícito, principalmente no caso de „construções de alçamento‟ (raising

constructions). Nessas construções, o sujeito lógico de uma oração mais baixa, ou seja, do

infinitivo, é alçado para a posição de sujeito gramatical de uma oração mais alta, ou seja, para

a posição de sujeito do auxiliar. No entanto, esta explicação não se aplica à ter que +

infinitivo, visto que, como já considerado na seção 3.2.3, há apenas uma oração. Nesse caso, o

que pode estar em causa é a natureza arbitrária do sujeito, como no exemplo (55):

(55) E: E seus pais, eles te apoiam na sua atividade profissional?

F: É aquele negócio, né? É... eu corro muito perigo aí na rua. Meus pais

são contra isso. Mas como é uma coisa também alternativa pra mim e pra

eles também, acho que tem que corrê atrás mesmo, foi a única coisa que

apareceu aí. E pra minha idade também não tem como correr [pra]...pra

fazê outras coisas também. (CEN-00/10)

Os resultados para a amostra Censo 2000, mostrados na tabela 12, corroboram a

recorrência da terceira pessoa do singular nas construções que expressam modalidade

deôntica e epistêmica. Com relação à modalidade extrínseca, neutraliza-se a diferença entre

terceira e primeira pessoa do singular:

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Tabela 12 – Interação entre domínio modal e pessoa gramatical do verbo ter

-Amostra Censo 2000.

Domínio modal/

Pessoa gramatical Extrínseco Deôntico Epistêmico

1ª Pessoa do Singular 88 = 44% 43 = 11% 12 = 11%

3ª Pessoa do Singular 97 = 48% 315 = 82% 89 = 80%

1ª Pessoa do Plural 3 = 1% 9 = 3% 2 = 2%

3ª Pessoa do Plural 14 = 7% 16 = 4% 8 = 7%

Total 202 383 111

As tendências depreendidas para a categoria número-pessoal do verbo ter, na tabela

12, contrariam, em parte, as expectativas colocadas para esta propriedade, indicando que a

construção ter que + infinitivo tem maior recorrência na terceira pessoa do singular,

independentemente da modalidade. Comportamento semelhante verifica-se para a construção

ter de + infinitivo, que se generaliza na terceira e na primeira pessoa do singular,

independentemente do valor modal que lhe pode ser atribuído. Ressalta ainda, na tabela 12, a

variabilidade entre a terceira pessoa do singular e a primeira pessoa do singular na

modalidade extrínseca.

Uma primeira interpretação dessas correlações envolve considerações acerca do grau

de comprometimento do falante com a obrigação/necessidade imposta. Considerando que as

formas de terceira pessoa podem expressar impessoalidade, descompromissando o falante

com o EsC descrito, essa tendência parece ser compatível com o que foi observado no grupo

modalidade, ou seja, a predominância de uso da construção ter que + infinitivo na modalidade

deôntica nas duas sincronias. Pode-se suspeitar, no entanto, que esses resultados reflitam a

importância de outras propriedades, principalmente das que envolvem os traços semânticos do

sujeito da oração, como veremos na seção seguinte.

5.4 Propriedades de V2

Partimos do princípio de que os diversos componentes que entram na construção ter

que + infinitivo contribuem para o seu significado final. Assim, nessa seção, vamos nos deter

no infinitivo, procurando verificar a forma como as propriedades semânticas e sintáticas de

V2 podem ser relevantes para a gramaticalização dessa construção.

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5.4.1 Traços semânticos do sujeito

Diversos trabalhos demonstram que os traços semânticos do sujeito desempenham

um papel fundamental na gramaticalização de formas perifrásticas, como as de futuro (LIMA,

2001; SILVA, 2002; MALVAR, 2003; OLIVEIRA, 2006) e de perífrases modais (CASSEB-

GALVÃO, 2001; NEVES, 2002; TAGLIAMONTE, 2004; PEIXOTO, 2006, dentre outros).

Prototipicamente, o sujeito dos verbos modais é humano e agentivo (cf. TRAUGOTT

& DASHER, 2005), o que não significa, no entanto, que ele seja, obrigatoriamente,

responsável por um determinado EsC. Com o valor de obrigação/necessidade, em princípio, a

imposição é externa aos participantes, embora pressuponha um agente responsável que possa

realizar o fato imposto. Como a responsabilidade pressupõe agentividade, pode-se esperar a

predominância de sujeitos humanos nas orações com ter de/que + infinitivo. Porém, é

necessário considerar, de acordo com Lyons (1977) e Traugott & Dasher (2005), que a

modalidade deôntica, ao referir-se ao eixo da conduta e do dever, pode ser externa ou interna

ao sujeito obrigado, autorizado, aconselhado a fazer algo. Para Lyons (1977, p 824),

[ ] a necessidade deôntica tipicamente origina-se, ou deriva, de uma fonte ou

causa. Se X reconhece que é obrigado a realizar uma ação, então há geralmente

alguém ou alguma coisa que ele reconhecerá como responsável por ele se

submeter a essa obrigação ou ação. Pode ser uma pessoa ou instituição a cuja

autoridade ele se submete; pode ser algo mais ou menos explicitamente

formulado por princípios morais ou legais; pode ser não mais que uma imposição

interna, que seria difícil identificar ou torná-la precisa.84

Traugott & Dasher (2005) distinguem a obrigação externa da interna considerando,

respectivamente, exemplos mais prototípicos:

“You must play this ten times over” Miss Jarrova would say, pointing with

relentless fingers to a jumble of crotchets and quavers. (p. 109)

Boris needs to sleep ten hours every night for him to function properly. (p. 110)

84

“[ ] deontic necessity typically proceeds, or derives, from some source or cause. If X recognizes that he is

obliged to perform some act, then there is usually someone or something that he will acknowledge as responsible

for his being under the obligation to act in this way. It may be some person or institution to whose authority he

submits; it may be some more or less explicitly formulated body of moral or legal principles; it may be no more

than some inner compulsion, that he would be hard put to identify and make precise.” (LYONS, 1977, p. 824).

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No primeiro exemplo, Miss Jarrova é a fonte da obrigação; ela está tentando impor

sua vontade diretamente, quando diz “You must play this ten times over”, como também

expressa seu interesse em aperfeiçoar as habilidades de seu aluno. No segundo, a fonte da

necessidade encontra-se no próprio sujeito.

Voltando à questão da agentividade, embora de forma diferente, ela se coloca

também no domínio epistêmico. Referindo-se ao eixo do conhecimento, a modalidade

epistêmica é interna, orientada para o agente, nos termos de Bybee, Perkins & Pagliuca

(1994), na medida em que expressa o grau de comprometimento do falante com a proposição,

expressa pela “certeza (comprometimento forte), probabilidade (crença) e possibilidade

(comprometimento fraco)”, conforme Hengeveld (1988, p. 240). Como apenas sujeitos

humanos podem constituir a fonte de raciocínios inferenciais que situam os EsC em uma

escala de possibilidade (certo > provável > possível > improvável > impossível), proposta por

Neves (2002), pode-se esperar que esses sejam os mais frequentes nas orações com ter de/que

+ infinitivo.

Retomando algumas considerações do capítulo 3, as construções ter que e ter de +

infinitivo são consideradas como estratégias de expressão de uma obrigação imposta de fora,

independente da vontade do sujeito ou, nos termos de Câmara Jr. (1981, p. 169) “que pesa

sobre o sujeito”. Na mesma direção, Said Ali (1966a) especifica que a perífrase ter de +

infinitivo passa a ser usada “para expressar com mais precisão a necessidade imperiosa e

indicar que a ação a praticar não depende da vontade do sujeito”, ou seja, a obrigação é

externa ao sujeito.

No entanto, como vimos acima, a obrigação relacionada à modalidade deôntica pode

ser externa ou interna. Além disso, em princípio, apenas sujeitos com o traço [+humano]

podem impor uma obrigação. Portanto, a questão do traço semântico do sujeito é um aspecto,

dentre outros, que pode medir o (des)comprometimento do falante com o EsC descrito e

permite verificar as nuanças de significado associadas às construções ter de/que + infinitivo.

Na análise dos traços semânticos do sujeito, consideramos as seguintes

possibilidades:

Sujeito humano

(56) F: Mulher, eu não acho importante que a mulher precise de trabalhar,

sabe? Que a mulher tem que cuidar mais é da casa. (CEN-80/02)

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127

Sujeito animado não-humano

(57) F: Então nós botamo pra dá banho, cortá unha, limpá as orelhas, vacinas,

entendeu? Assim como um animal saudável tem que fazê parte do

nosso dia-a-dia, a gente qué a amizade do cachorro, então o que a gente

faz? trata bem, num dá comida de panela, só ração, entendeu? (CEN-00/31)

Coletivo animado

(58) F: Palmeiras era o, era é, a verdade é, a palavra é essa: "era", não é? O

verbo é esse. Palmeiras era uma puta organização, não é? Uma tremenda

sociedade, um lance assim que, pô! cara, para derrubar o Palmeiras era um

negócio forte. "Eu tive" em São Paulo, pô! Sabe? O Santos fazia uma,

sabe? Treinava a semana toda aí, sabe? O Corinthians, nossa senhora! A

torcida toda tinha que estar lá para derrubar o Palmeiras. E hoje,

qualquer time ganha do Palmeiras. (CEN-80-37)

Sujeito inanimado

(59) E: Como é que faz? bolo de chocolate, bolo de coco?

F: Facinho! Só você botá três ovos, manteiga, e.três três ovos, manteiga, e

açúcar, um copo de açúcar, três copos de trigo, o trigo já tem que vim

cum fermento, né? porque se o meu num vim, sola o meu bolo, né? (CEN-

00-08)

Sujeito abstrato

(60) E: Então você concorda com a união da polícia civil com a polícia militar?

F: Exato, tem que ser feita a unificação para o bem do povo. (CEN-00/26)

Sujeito arbitrário

(61) E: Como é que é esse programa?

F: Ah é uma porção de brincadeira lá. Tem que adivinhá a música, falá o

nome da música, esse negócio assim. (CEN-00/04)

Referência estendida

(62) E: Ah, É obrigado?

F: É obrigado. Desde o momento que estuda num colégio católico é

obrigado a participar, que inclusive dá nota, sabe? Então, quem estuda

aqui é obrigado a participar, mesmo sendo crente, sabe? Não tem nada a

ver! Tem que participar da- das reuniões, tem que assistir a aula de

religião. Tudo isso! (CEN-80/05)

Oração sem sujeito

(63) Acho que aqui no Brasil tinha que ter muito mais escola profissional,

que não tem. (CEN-80/08)

Os resultados obtidos para a análise dos traços semânticos do sujeito encontram-se

na tabela 13:

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128

Tabela 13 – Distribuição de ter que + infinitivo de acordo com os traços

semânticos do sujeito.

Traços semânticos do sujeito Censo 1980 Censo 2000

Humano 294 = 50% 366 = 52%

Inanimado 10 = 2% 11 = 2%

Animado não-humano 1 = 0% 1 = 0%

Coletivo humano 25 = 4% 22 = 3%

Abstrato 7 = 1% 11 = 2%

Arbitrário 197 = 34% 247 = 35%

Referência estendida 48 = 8% 30 = 4%

Oração sem sujeito 10 = 1% 18 = 2%

Total 592 706

Os resultados da tabela 13 confirmam a expectativa em relação à importância do

traço [+humano] para a construção ter que + infinitivo, predominante nas duas amostras: 50%

na amostra Censo 1980 e 52% na amostra Censo 2000. O índice para sujeito [+humano]

torna-se ainda mais relevante, se considerarmos que os sujeitos do tipo coletivo também se

caracterizam pela presença desse traço. Observa-se, ainda, na tabela 13, que a segunda maior

frequência se associa a sujeito arbitrário, 34% na amostra Censo 1980 e 35% na amostra

Censo 2000, evidenciando o descomprometimento do falante com o EsC descrito ou com a

veracidade de uma proposição.

Do ponto de vista do tempo real, não se verificam mudanças significativas nos

períodos considerados. Para a maioria dos tipos de sujeitos, observam-se resultados paralelos

entre a amostra Censo 1980 e a amostra Censo 2000.

A consideração das propriedades do sujeito das orações com ter de + infinitivo

auxiliam a compreender a expansão de ter que + infinitivo. Nas 05 ocorrências de ter de +

infinitivo com polaridade afirmativa, na amostra Censo 2000, predominam igualmente sujeito

com o traço [+humano]85

(04 ocorrências), e em apenas uma ocorrência, há sujeito de

referência estendida.

Como não há nenhuma ocorrência de sujeito arbitrário com ter de + infinitivo, esse

fato poderia ser tomado como uma forma de expansão de ter que + infinitivo. Essa

85 Embora não estejam sendo consideradas na análise, essa tendência é compartilhada pelas orações com ter que

+ infinitivo na polaridade negativa: 06/08 (75%) na amostra Censo 1980 e 07/09 (78%) na amostra Censo 2000.

Na ocorrência de ter de, tanto na amostra Censo 1980 como na amostra Censo 2000, o sujeito é arbitrário.

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129

construção, inicialmente, alternando com ter de + infinitivo, em orações com sujeito

[+humano], poderia estar se estendendo para contextos de sujeito [+arbitrário]. No entanto, a

escassez de dados com ter de, impede-nos de fazer tal generalização.

Considerando os dados do NURC, verificamos que essa tendência se mantém na

amostra DID, visto que encontramos a predominância de sujeito [+humano] (25/62 = 40%),

seguida de sujeito arbitrário (13/62 = 20%). Nas ocorrências de ter de + infinitivo nessa

amostra, 05 são de sujeito [+humano] e 02 de arbitrário. A distribuição é um pouco distinta na

amostra de EF (elocuções formais). Embora predominem nas orações com ter que sujeito com

o traço [+humano] (18/43 = 41%), seguem-se as ocorrências de sujeito coletivo animado

(09/43 = 20%).

Pode-se suspeitar, porém, que essa tendência se relativize, considerando a interação

entre o tipo de modalidade e os traços semânticos do sujeito. Os resultados para a amostra

Censo 1980 estão expostos na tabela 14:

Tabela 1486

– Interação entre domínio modal e traços semânticos do sujeito –

Amostra Censo 1980.

Domínio modal/

Traços sem. do suj. Extrínseco Deôntico Epistêmico

Humano 145 = 62% 126 = 48% 41 = 49%

Inanimado 5 = 2% 4 = 1% 1 = 1%

Abstrato 3 = 1% 3 = 1% 1 = 1%

Arbitrário 67 = 29% 100 = 38% 28 = 33%

Referência estendida 10 = 5% 27 = 11% 10 = 12%

Oração sem sujeito 3 = 1% 4 = 1% 3 = 4%

Total 233 264 84

A tabela 14 confirma a importância do traço [+humano] para todos os domínios

modais, indicando que esse traço é, realmente, independente. Observa-se, no entanto, que ele

é particularmente marcante na construção ter que + infinitivo no domínio extrínseco em que

alcança 62%. Para as modalidades deôntica e epistêmica, observa-se maior variação

principalmente entre sujeitos humanos e arbitrários. Todas as demais opções apresentam

índices muito baixos.

86

Na tabela 14, os dados de sujeito coletivo humano foram amalgamados aos de sujeito humano. Também, nessa

tabela, foi excluída a única ocorrência de sujeito animado não-humano.

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130

Embora a amostra Censo 2000 apresente tendências semelhantes, podem ser

observadas, como mostra a tabela 15, algumas diferenças quantitativas interessantes:

Tabela 1587

– Interação entre domínio modal e traços semânticos do sujeito -

Amostra Censo 2000.

Domínio modal/

Traços sem.do suj. Extrínseco Deôntico Epistêmico

Humano 146 = 72% 186 = 48% 46 = 41%

Inanimado 1 = 0,5% 7 = 2% 3 = 3%

Abstrato 3 = 1% 5 = 2% 3 = 3%

Arbitrário 39 = 19% 163 = 42% 45 = 41%

Referência estendida 9 = 4% 10 = 3% 11 = 10%

Oração sem sujeito 4 = 2% 12 = 3% 2 = 2%

Total 202 383 110

Na tabela 15, destaca-se o traço do sujeito [+humano] no domínio extrínseco (72%).

Nos domínios deôntico e epistêmico, aproximam-se os índices para sujeitos com o traço

[+humano], com 48% e 41% respectivamente, assim como para os sujeitos arbitrários, 42% e

41%, respectivamente.

A alta incidência de sujeito [+humano] no domínio extrínseco pode ser explicada

pela função da construção ter que + infinitivo. Nesse domínio, com alvo no participante,

vimos que essa construção relaciona-se com a necessidade de o participante animado se

comprometer com um EsC determinado pelas circunstâncias. Como ressalta Olbertz (1998, p.

380), embora não obrigatório, é típica da função de tener que + infinitivo, em Espanhol, uma

motivação que explicite a necessidade de comprometimento do sujeito com um EsC. Tal

constatação pode ser evidenciada também para a construção ter que + infinitivo em

Português, visto que as ocorrências no domínio extrínseco (146/202 = 72%) concentram-se no

participante, num total de 121 ocorrências.

A predominância da construção ter que + infinitivo com sujeitos arbitrários em todos

os domínios pode ser entendida como uma sinalização de descomprometimento do falante,

visto que não é possível identificar a fonte do envolvimento com o EsC, seja em termos de

responsabilidade pela imposição colocada, seja em termos da origem de um raciocínio

inferencial.

87

Na tabela 15, como ocorreu na tabela 14, os dados de coletivo humano foram amalgamados aos de animado

humano. Não está sendo considerada a única ocorrência de sujeito animado não-humano.

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131

5.4.2 Tipo sintático de V2

Como já discutimos anteriormente (cf. capítulo 3), o verbo ter, na medida em que

empreende a trajetória de verbo pleno > auxiliar modal perde suas propriedades verbais,

dentre elas a de projetar um argumento na função de objeto direto. Uma hipótese já discutida

é a de que o verbo ter altera sua grade argumental, em consequência do movimento do SN

complemento que se desloca para depois do verbo no infinitivo. Essa interpretação está

subjacente ao fato de muitos autores (por exemplo, ROCHA LIMA, 2008) restringirem o uso

de ter que + infinitivo a formas verbais transitivas, visto que este é o contexto susceptível de

um processo de reanálise.

A fim de verificar a validade da hipótese de que a construção ter que + infinitivo está

associada a verbos transitivos, ou seja, a verbos de pelo menos dois argumentos, a forma de

infinitivo (V2) foi controlada da seguinte forma:

Verbo monoargumental

(64) E- Você é contra o trabalho da mulher?

F- Sou contra.

E- Por quê? Mas por que, Carlos?

F- Porque eu acho que, se se tem um marido e uma mulher, existe um

marido e uma mulher, o cara tem que trabalhar, não uma mulher

trabalhar, eu acho que não, eu não acho que seja certo a mulher trabalhar

não. (CEN-80/02)

Verbo de dois argumentos

(65) E: Como é que é feito isso?

F: Ah, é, muqueca, é claro que tem uma porção de rituais, né? cê tem que

comprá um peixe fresco, limpá-lo muito bem, deixá-lo de molho de um

dia pro outro, à base de limão, salsa, cebolinha, alho, cebola e no dia

seguinte você começa um ritual grande no fogo. (CEN-00/29)

Verbo de ligação

(66) E- Você não gosta de ser grande não?

F- Não, sei lá. Eu não gosto não. Apesar que eu estou em mente, não é? De

fazer um curso de modelo, não é? Diz que tem que ser alta, não é? Tem

um monte de etiqueta, não é? (CEN-80/24)

De acordo com as prescrições relacionadas à construção ter que + infinitivo, pode-se

esperar que ela ocorra, mais frequentemente, com verbos de dois argumentos (estrutura

transitiva). Os resultados da tabela 16 confirmam essa expectativa:

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Tabela 16 – Distribuição de ter que + infinitivo em relação ao tipo sintático de V2.

Tipo sintático de V2 Censo 1980 Censo 2000

Verbo monoargumental 108 = 18% 112 = 16%

Verbo de dois ou mais argumentos 410 = 69% 524 = 74%

Verbo de ligação 74 = 13% 70 = 10%

Total 592 706

Podemos observar, na tabela 16, o paralelismo entre as duas sincronias no uso de ter

que + infinitivo de acordo com o tipo sintático de V2. A predominância de ter que com verbos

de dois ou mais argumentos, 69% na amostra Censo 1980 e 74% na amostra Censo 2000, em

princípio, iria ao encontro da afirmação de alguns autores (como ROCHA LIMA, 2008) de

que essa construção se circunscreve a verbos do tipo transitivo. Os resultados observados para

a amostra NURC são compatíveis com a mesma tendência: na modalidade DID, encontramos

o percentual de 68% (42/62) e, nas EF, 60% (26/43) de ter que com verbos transitivos.

Há, no entanto, evidências contrárias a esse direcionamento, na medida em que,

embora menos frequente, ter que ocorre com verbos monoargumentais, 18% na amostra

Censo 1980 e 16% na amostra Censo 2000 e com verbos de ligação, 13% na amostra 1980 e

10% na amostra Censo 2000. Tais tendências podem ser indicativas de que, a princípio mais

restrita a verbos de dois argumentos, ter que se estende para outros tipos de verbo, como os

intransitivos e os de ligação.88

A menor frequência da construção ter que com verbos de ligação poderia ser

explicada pela dificuldade de se relacionar, no âmbito da obrigação/necessidade, propriedades

ou qualidades que caracterizam esses verbos. Essa questão será retomada na seção 5.4.3,

quando focalizaremos os tipos de processos verbais que envolvem ter de/que.

A maior recorrência de verbos transitivos com a construção ter que se conforma à

hipótese de que este é o contexto desencadeador do processo de gramaticalização dessa

construção, na medida em que se trata do contexto que admite maior ambiguidade e ao qual

melhor se aplica a trajetória de mudança discutida no capítulo 2. Essa predominância pode

ainda ser entendida como uma persistência de traços da forma fonte (cf. HOPPER &

TRAUGOTT, 1993, 2003).

88

A associação do verbo ter com verbos de ligação é considerada por Olbertz (1998) como um índice de perda

das propriedades lexicais desse verbo.

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133

Apesar de os resultados acima indicarem forte correlação entre ter que e verbos de

dois argumentos, uma comparação com a construção ter de + infinitivo oferece pouca

evidência de complementaridade entre as duas construções no que se refere à grade

argumental do verbo-predicador. Nas raras ocorrências de ter de + infinitivo encontradas na

amostra Censo 2000, predominam igualmente verbos de dois argumentos 80%89

(04/05).

Considerando a amostra NURC, essa estrutura argumental prevalece nas ocorrências de ter de

+ infinitivo, na modalidade DID, 86% (06/07), porém se reduz de forma significativa nos

registros de EF, em que se observa maior variação (02/04 = 50%). Dado o escasso número de

ocorrências de ter de nas EF não é possível uma conclusão definitiva, mas podemos presumir

que estejam envolvidos nesse comportamento diferenciado aspectos ligados ao estilo de fala:

em estilos mais formais, a construção ter de se conforma melhor às previsões gramaticais.

Outras evidências serão discutidas no capítulo 6, quando focalizaremos os dados de escrita,

modalidade em que a construção ter de + infinitivo é mais produtiva.

A maior concentração de ter que com verbos de dois argumentos conduzem

naturalmente a questões acerca da relevância do tipo de complemento ligado ao verbo-

predicador. Para tanto, separamos os verbos transitivos que requerem um complemento SN,

como no exemplo (67), daqueles que exigem um complemento oracional, como em (68):

Complemento SN

(67) E: E agora, ele é casado?

F: Meu irmão é casado. Aí meu irmão casô, aí meu pai morô sozinho

durante um tempo naquele apartamento... Só que a minha irmã foi morá

cum meu pai, aí botô meu pai pro fundo do poço, depois dele tá lá em

cima, ele teve que vendê o apartamento que meu irmão deixô pra ele. (CEN-00/12)

Objeto oracional

(68) F: A história está indo aos poucos. Meu tio começou brigar com minha

mãe, minha avó também: "Ah! Para ficar só, botar você sozinha num

quarto, não adianta! O negócio é dar o nome! Ele tem que saber que você

está esperando uma- um filho dele-". Ele com aquilo enjoou, para não

ter aquele [atrito] não é? Atrito na família, ele foi embora! Foi embora lá

para- eu esqueci o nome do lugar. (CEN-80/12)

89

Outra evidência da predominância de verbos transitivos nas construções modais com ter pode ser encontrada

nas orações de polaridade negativa, excluídas deste estudo: no total de 17 orações negativas com ter que +

infinitivo nas amostras Censo 1980 e Censo 2000, 16 são com verbos transitivos.

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134

A tabela 17 mostra distribuição similar nas duas sincronias em relação a esse grupo

de fatores:

Tabela 17 – Distribuição de ter que + infinitivo em relação ao tipo

de complemento do verbo predicador.

Tipo de complemento Censo 1980 Censo 2000

Objeto SN 386 = 94% 490 = 93%

Objeto Oracional 24 = 6% 34 = 7%

Total 410 524

De acordo com a tabela 17, ter que predomina com verbos transitivos cujo

complemento é um SN, com valores idênticos nos dois períodos, com 94%, na amostra Censo

1980 e 93%, na amostra Censo 2000.90

Essa distribuição vai ao encontro da hipótese de que o

processo de gramaticalização da construção ter que + infinitivo envolve o movimento de um

SN ligado ao verbo ter (como em Tenho cartas que escrever > tenho que escrever cartas). O

movimento do SN estaria na origem do cancelamento de fronteiras que, por sua vez, resulta

na indissolubilidade dos elementos constitutivos de ter que + infinitivo. Um SN codifica um

referente que pode ou não ser possuído; pelo contrário, uma oração codifica um EsC que,

teoricamente, não pode ser possuída.

É de se notar, mais uma vez, que essa propriedade não permite distinguir ter que de ter

de. Como já apontado acima, das 05 ocorrências com ter de registradas na amostra Censo

2000, 03 ocorrem com verbos de dois argumentos (verbos transitivos) acompanhados de

complemento SN e em 01 o complemento é oracional. Se não fosse a escassez de dados com

ter de, esses resultados permitiriam levantar a hipótese de que as construções com ter ficam

mais restritas aos verbos transitivos com complemento SN.

90

A mesma tendência é observável nas orações com a construção ter que de polaridade negativa. Do total de 17

ocorrências encontradas nas duas amostras, 16 são de verbos transitivos com complemento SN.

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5.4.3 Tipo de processo de V2

Na seção anterior, focalizamos as propriedades de V2 isoladamente. Esta análise

obscurece, no entanto, o fato de que os verbos constituem núcleos de processos e pertencem à

esfera das relações semânticas (cf. HALLIDAY, 1994; NEVES, 2006). Ao núcleo verbal cabe

a função de amarrar os participantes desses processos, o que implica que “nenhuma forma

verbal pode definir-se isolada ou descontextualizadamente.” (NEVES, 2006, p. 68).

Nessa perspectiva, faz-se necessária uma tipologia que conjugue aspectos sintáticos e

semânticos e a consideração do tipo de verbo nuclear em termos do processo que ele codifica.

Neste estudo, optamos por utilizar a classificação proposta por Halliday (1994, 2004),

centrada no pressuposto de que a linguagem capacita os seres humanos a construírem uma

imagem mental da realidade, que lhes torna possível expressar o que sentem e o que ocorre

em torno deles. Nesse caso, a oração é regida por um princípio geral que viabiliza, nos termos

de Halliday, o modelo da experiência – princípio de que a realidade é construída/percebida

em termos de processos. Nessa visão, a experiência organiza-se e desenvolve-se através de

ocorrências – do acontecer, do fazer, do sentir, do significar, do ser e do tornar-se que fazem

parte da gramática de uma oração. Esses processos se concretizam no sistema gramatical da

transitividade.

Os predicados das orações são constituídos, na terminologia de Halliday (op. cit.),

por processos materiais, relacionados ao mundo físico, à experiência exterior e por processos

mentais, relacionados ao mundo da consciência, à experiência interior. Para Halliday, a

construção de uma teoria coerente da experiência requer, ainda, a consideração de um terceiro

tipo de processo, os relacionais. Esses processos dão conta do fato de que aprendemos a

generalizar, a relacionar um elemento da experiência a outro, a classificar e a identificar.

Segundo o autor, nas fronteiras entre esses três processos, encontram-se categorias

intermediárias. Entre o material e o mental, encontram-se os processos comportamentais, que

representam manifestações externas de ações interiores, ações fora do processo de consciência

e estados psicológicos. Entre o mental e o relacional, situam-se os processos verbais, relações

simbólicas construídas na consciência humana e representadas na forma de linguagem, como

dizer e significar. E entre o relacional e o material, estão os processos existenciais, em que

fenômenos de todos os tipos são simplesmente reconhecidos a „ser‟, a „existir‟, ou „a

acontecer‟. Halliday (1994, p. 107) enfatiza que não há prioridade de um processo sobre o

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136

outro, visto que o nosso modelo da experiência, interpretado pelo sistema de transitividade

gramatical, é circular e não linear.

A seguir, relacionamos os tipos de processos propostos por Halliday (1994) ao uso

das perífrases ter que + infinitivo e ter de + infinitivo, com o objetivo de verificar sua

distribuição em termos das propriedades semântico-sintáticas de V2.

O processo material ou processo „do fazer‟ expressa que alguma entidade „faz‟

alguma coisa, portanto V2 pode ser transitivo ou intransitivo, conforme tenha um ou dois

participantes. Nesse sentido, requer sempre um agente obrigatório e um alvo opcional. Para

Halliday, o termo agente (actor) refere-se àquele que executa a ação; já o termo alvo (goal)

refere-se a alguém/algo para o qual o processo é estendido. No fragmento abaixo, de acordo

com a proposta de Halliday, temos um agente (a mãe), o processo material (dar) e um alvo (a

ela):

(69) F: Tenho que dar mamá a ela pra ela dormir. Aí, aí ela dorme. Aí fica

calminha. "menino, quando" ela irrita, me dá vontade de bater nela. Mas

ela é uma loucura. Eu nem sei! (CEN-80/06)

O processo mental ou processo „do sentir‟ integra orações que expressam

sentimentos, crenças, valores, desejos, pensamentos, percepção, como ver, perceber (com o

sentido de „percepção‟) gostar, amar, odiar, agradar, querer (com o sentido de „afeição‟),

pensar, saber, compreender, perceber, imaginar (com o sentido de „cognição‟). Os

participantes envolvidos nesse processo são um experienciador (senser) e um fenômeno

(phenomenon). O primeiro é definido como um ser consciente que sente, pensa, vê, percebe; o

segundo corresponde ao que é sentido, pensado, percebido, visto. Deste modo, um dos

participantes é dotado de consciência; o outro pode ser uma „coisa‟ ou um fato.

Exemplificando:

(70) F: Porque de certa forma eu não me identifiquei com o curso e eu acredito

muito quando dizem que a pessoa deve fazê o que gosta, o que ela gosta,

porque hoje em dia num adianta você sê um bom profissional, você tem

que gostá pra sê senão o melhor, um dos melhores. (CEN-00/13)

O processo relacional ou processo „do ser‟ estabelece uma relação entre duas

entidades, identificando, classificando, definindo, caracterizando, atribuindo qualidade, posse,

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circunstância de tempo, lugar, intensidade, como parecer, tornar, permanecer, continuar,

ficar, estar, ser, ter. Assim, uma entidade „a‟ pode atribuir algo a uma entidade „x‟ ou pode

identificar uma entidade „x‟. Deste modo, os processos relacionais podem ser esquematizados

do seguinte modo: "x é a", "x está em a" ou "x tem a" (cf. HALLIDAY, 1994, p. 119). No

exemplo (71) a relação é de atribuição, de acordo com o esquema "x é a":

(71) F: Por isso boa professora que eu tive foi dona Shirley, na quinta série. Ela

explicava direitinho, ela levava a gente sempre o quadro para fazer as

coisas. Tem professora que não, não é? Só escrever lá e pronto. Não leva a

gente ao quadro para aprender melhor. É isso que eu acho que tem que

ser uma boa professora. (CEN-80/02)

O processo comportamental ou processo „do agir e do sentir‟ diz respeito aos

comportamentos humanos (psicológico/fisiológico), como ouvir, assistir, conversar, respirar,

tossir, sorrir, sonhar, sendo que um dos participantes deve ser, tipicamente, um ser

consciente, denominado behaver e, outro, opcional, o fenômeno. Exemplificando:

(72) E- Você acha isso certo, Sueli? Obrigar?

F- Não. Obrigar, obrigar não! Sabe? Tem muita gente que falta, não é?

"tem" muita gente que não gosta, não é? Tem que assistir missa, sabe?

Como muitas pessoas que não fez a primeira comunhão, aqui dão o direito

de fazer, sabe? (CEN-80/05)

O processo verbal, ou processo do „dizer‟, expressa qualquer tipo de troca simbólica

de significado, usado em discurso direto ou indireto, com verbos do tipo: dizer, comunicar,

apontar, contar, falar, perguntar, afirmar, indicar, mostrar. O participante, nesses processos,

não precisa ser consciente. Esse é denominado „sayer‟ (aquele que diz). Pode haver outro

participante (opcional), o „receiver‟ (aquele para quem a fala é direcionada) e a „verbiage‟ (o

que é dito ou comunicado). No exemplo (73), a seguir, na oração com a construção ter que +

infinitivo, temos você como participante, alguém como receptor e Coalhada como „verbiage‟:

(73) F: Vê... televisão, acha que eu pareço com o Salsicha, outro fala cum o

Coalhada, outro cum o Piu-piu. Piu-piu é quando tá chovendo - que eu sô

meio calvo, né? - aí fica igual a um pintinho, né? mas eu aceito numa boa,

num esquento a minha cabeça, porque o pessoal nunca me chama pelo

nome. Tanto é que se você ligá pra cá e falá: "quero falá cum Reinaldo",

ninguém sabe quem é, aí tem que falá 'Coalhada'. (CEN-00/20)

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138

O processo existencial ou processo „do existir‟ indica que alguma coisa existe ou

acontece. O elemento cuja existência é asseverada é chamado de „existente‟. Em Português,

esses processos são realizados pelos verbos haver, existir e ter. Exemplificando:

(74) F: Agora, eu gosto muito de acreditar no... nos outros, eu num gosto de...

Num tem motivo pra mim num acreditar, pra mim num acreditar numa

pessoa tem que ter motivo, se num tiver eu acredito. É ruim de que às

vezes a gente pode até se decepcionar com isso. (CEN-00/25)

Embora não se encontre na teoria proposta por Halliday (1994) a possibilidade de

classificação de verbo-suporte e expressão cristalizada, consideramos também esses casos,

como em:

Verbo-suporte

(75) F - embora o transporte seja muito importante, que cada vez a massa

trabalhadora fica carente de transporte, mas o estudo é fundamental, nossas

crianças têm que estudá, não adianta você... é...abri [um] um lugar pra dá

comida, cê tem que dá instrução também. (CEN-00/31)

Em (75), o verbo dar, „semanticamente esvaziado‟, nos termos de Neves (2011),

forma uma unidade com seu complemento instrução.O verbo denominado suporte encontra-

se, segundo Castilho (2010, p. 392), “fortemente preso a um substantivo, constituindo-se um

sintagma verbal complexo.”

Em (76), temos um outro tipo de construção em que V2 também apresenta um certo

esvaziamento semântico, reconhecida por Neves (op. cit. p. 53-54) como expressão fixa ou

cristalizada em que o elemento depois do verbo não se comporta como um constituinte, ou

seja, como um SN do verbo:

Expressão cristalizada

(76) E: E foi assim uma grande paixão?

F: Foi grande não, mas que não durou muito, sabe? Ela teve que ir

embora e daí ela não não deu mais endereço, assim, "não" deu endereço

da casa dela. (CEN-80/02)

Os resultados para esse grupo de fatores estão expostos na tabela 18:

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139

Tabela 18 – Distribuição de ter que + infinitivo de acordo com o tipo de processo de V2

e V2 como verbo-suporte/expressão cristalizada.

Tipo de Processo de V2 Censo 1980 Censo 2000

Material 271 = 46% 377 = 54%

Mental 49 = 8% 61 = 8%

Relacional 129 = 22% 109 = 16%

Verbal 3 = 1% 17 = 3%

Comportamental 55 = 9% 59 = 8%

Existencial 13 = 2% 18 = 2%

Verbo suporte/Expressão Cristalizada 72 = 12 % 65 = 9%

Total 592 706

A grande dispersão dos dados na tabela acima coloca dificuldades para uma

conclusão mais definitiva. Ainda assim, podemos observar, na tabela 18, que as duas

sincronias apresentam distribuição muito semelhante para os diferentes tipos de processo de

V2. Em ambas, destaca-se o percentual associado aos processos materiais, com 46%, na

amostra Censo 1980, e 54% na amostra Censo 2000. A predominância da construção ter que

+ infinitivo com verbos do tipo material torna-se ainda mais nítida em 2000, em que

corresponde a mais da metade dos dados.91

Essa tendência é também verificada para as

ocorrências de ter de + infinitivo na amostra Censo 2000, correspondendo a 60% (03/05). A

comparação com a construção ter de + infinitivo sugere que a recorrência do processo

material constitui uma propriedade mais inerente ao próprio valor modal dessas perífrases do

que um traço distintivo de ter que + infinitivo.

Observa-se, ainda, na tabela 18, índices mais significativos nos processos

relacionais, 22% na amostra Censo 1980 e 16% na amostra Censo 2000. Esses índices

contrariam, aparentemente, os resultados em relação à ao tipo sintático de V2 associado à ter

que que, como vimos em 5.4.2, apresenta menor incidência com os verbos de ligação (ser,

estar, ficar, parecer).

Como já constatado por diversos autores (cf. COATES, 1983; BYBEE et al., 1994;

HEINE, 1995; NEVES, 2000, 2001b, dentre outros), verbos dinâmicos tendem a se asssociar

mais à modalidade deôntica, enquanto verbos estativos ou existenciais são mais fortemente

91

A construção ter que + infinitivo nas orações com polaridade negativa apresenta uma distribuição

diversificada em relação aos vários tipos de processo.

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associados à modalidade epistêmica (COATES, 1983; BYBEE et al. 1994; HEINE, 1995;

NEVES, 2000, 2001b).

Portanto, a maior incidência de ter que com verbos materiais (dinâmicos) nas duas

sincronias pode ser explicada pela própria natureza desse processo que implica uma estrutura

do tipo „X faz alguma coisa‟. Sob certos aspectos, essa propriedade dos processos materiais é

mais compatível com os valores mais frequentemente atestados para a construção ter que +

infinitivo, ou seja, com a modalidade extrínseca e deôntica que requerem um participante

consciente que possa realizar uma ação imposta por condições externas ou por regras e

normas. Por outro lado, a segunda maior incidência de ter que com infinitivos do tipo

relacional (verbos estativos), devido à própria característica desse processo, poderia estar

associada à modalidade epistêmica. Essa hipótese encontra respaldo em Scheibman (2001, p.

83) em sua análise de um corpus do Inglês americano. A autora constatou que "A frequência

desse tipo de cláusulas reflete o que os falantes estão geralmente fazendo na conversa – eles

estão avaliando e situando atitudes, eventos e lugares. Em resumo, eles personalizam seu

discurso usando essas construções com cópula."92

Considerando, também, as características dos processos mental e comportamental,

poderíamos pressupor as seguintes correlações: o processo mental estaria associado à

modalidade epistêmica e, ainda, o processo comportamental ocorreria nos três domínios.

Dessa forma, pode-se suspeitar que haja relação entre o tipo de processo e a modalidade

expressa pela construção ter que + infinitivo. Para tanto, procedemos ao cruzamento entre

tipos de processo e domínios modais, como mostra a tabela 19, em que consideramos apenas

os tipos de processos mais recorrentes:

92

“The frequency of these cluse types reflects what speakers are commonly doing in conversation – they are

evaluating and situating attitudes, events, and places. In short, they are personalizing their discourse using these

copular constructions” (SCHEIBMAN, 2001, p. 83).

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141

Tabela 19 – Interação entre domínio modal e tipo de processo de V2 -

Amostra Censo 1980.

Domínios

Processos Extrínseco Deôntico Epistêmico

Material 128 = 64% 110 = 49% 33 = 47%

Mental 8 = 4% 28 = 12% 8 = 11%

Relacional 43 = 21% 58 = 26% 27 = 39%

Comportamental 22 = 11% 29 = 13% 2 = 3%

Total 201 225 70

Os resultados da tabela 19 poderiam conduzir à conclusão de certa independência

entre o tipo de processo realizado pelo V2 de ter que e o domínio modal. No entanto, convém

observar que a predominância de processos materiais é muito mais nítida para o valor

extrínseco (64%). Não chega a haver diferença significativa entre o processo material e os

domínios deôntico (49%) e epistêmico (47%). No domínio epistêmico, também não há

diferença significativa entre o processo material (47%) e o relacional (39%).

A significativa incidência da construção ter que + infinitivo no domínio epistêmico

com o processo do tipo relacional (39%) pode ser explicada pela própria perspectiva de

avaliação desse domínio, ou seja, uma avaliação subjetiva que só pode incidir sobre estados,

já que não está mais em causa garantir a realização de um EsC. Ressalta, ainda, na tabela 19,

o índice bastante elevado do processo mental no domínio deôntico (12%) em oposição à sua

baixa frequência no domínio extrínseco (4%).

Tendências similares às da amostra Censo 1980 se verificam na amostra Censo 2000,

conforme mostra a tabela 20:

Tabela 20 – Interação entre domínio modal e tipo de processo de V2 -

Amostra Censo 2000.

Domínios

Processos Extrínseco Deôntico Epistêmico

Material 121 = 70% 212 = 64% 43 = 42%

Mental 9 = 5% 31 = 9% 12 = 12%

Relacional 28 = 16% 49 = 15% 32 = 31%

Comportamental 15 = 9% 38 = 12% 16 = 15%

Total 173 330 103

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142

De acordo com a tabela 20, predominam, em todos os domínios, verbos que

codificam processo material. Nota-se, porém, que, em 2000, como em 1980, sua incidência se

torna mais expresiva no domínio extrínseco (70%). No domínio epistêmico, destaca-se a

recorrência do processo relacional (31%) que, nos valores modais extrínseco (16%) e

deôntico (15%), não chega a se distinguir do processo do tipo comportamental (15%). Como

ocorreu na amostra Censo 1980, há um aumento de frequência da construção ter que +

infinitivo com o tipo de processo relacional de valor epistêmico (31%).

A diferença mais marcante entre as duas sincronias encontra-se no processo

comportamental, que aumenta sua frequência no domínio epistêmico (de 3% para 15%), o que

poderia estar indicando certa expansão da construção ter que + infinitivo nesse domínio e tipo

de processo.

Em relação às hipóteses formuladas, depreendemos que, de fato, há forte associação

entre ter que e processo material no domínio extrínseco nas duas sincronias, sendo que, no

domínio deôntico, essa correlação é maior na amostra Censo 2000 (64%) comparada a de

1980 (49%). O processo mental, nas duas sincronias, associa-se, de forma similar, tanto à

modalidade deôntica quanto à epistêmica. O processo relacional, nas duas sincronias,

associa-se mais fortemente à modalidade epistêmica, conforme o esperado.

5.5 Propriedades semântico-discursivas do contexto

Nesta seção, estendemos a análise ao contexto mais amplo em que se inserem as

construções ter que/de + infinitivo, considerando a relação semântico-discursiva entre as

orações com as construções ter de + infinitivo e ter que + infinitivo e as orações adjacentes

(precedentes ou subsequentes), com o objetivo de evidenciar a forma como essas relações

podem ancorar a interpretação modal que emerge naquele contexto. Nesta análise, seguimos a

perspectiva de Kratzer (cf. 1981, 1991 apud Von FINTEL, 2006, p. 5) para quem

] ao invés de tratar os numerosos significados modais como um caso (acidental)

de polissemia, deve ser considerado como o resultado da dependência-

contextual. Em outras palavras, as expressões modais têm em si mesmas um

significado que lhe é próprio e é somente pela combinação com o background

contextual que elas assumem uma forma particular de significado (tal como epistêmico ou deôntico) (cf. KRATZER, 1981, 1991, apud Von FINTEL, 2006,

p. 5).93

93

[ ] rather than treating the multitude of modal meanings as a case of (accidental) polysemy, it should be seen

as the outcome of context-dependency. In other words, modal expressions have in of themselves a rather skeletal

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143

Assim como Kratzer (1981, 1991), Von Fintel (2006) considera que a interpretação

de um determinado elemento modal pode ficar explícita pelas pistas disponíveis no seu

contorno.

Na grande maioria das suas ocorrências, as orações com ter que + infinitivo ou ter +

de + infinitivo registradas nas amostras Censo estão ligadas a outras, dando origem a períodos

complexos nos quais emergem diferentes relações lógico-semânticas. Partindo da hipótese de

que essa propriedade pode explicar os diferentes valores modais instanciados pelas

construções modais com ter, controlamos as relações semânticas que se estabelecem entre a

oração com a construção modal e aquela que a antecede ou a segue, de acordo com a maior

relevância no contexto discursivo e independentemente da presença ou ausência de conectores

explícitos. Nesse sentido, acompanhamos a posição de Decat (2001), para quem:

Importa o tipo de proposição relacional que emerge da articulação de cláusulas, e

não a marca lexical dessa relação. Tal marca restringe-se, em muitos casos, à

função de estabelecer um elo [ ] entre duas porções textuais [ ]. A materialização

linguística (codificação) desse tipo de relação hipotática poderá vir a ser feita por

intermédio de outros tipos de elo como, por exemplo, a pausa e a entonação [ ]

que poderão se mostrar relevantes para a determinação da inferência resultante

da relação hipotática adverbial. (DECAT, 2001, p. 128-9).

Reconhecemos, nas amostras sob análise, as seguintes relações:94

Relação de condição

(77) F: Quer dizer que então não é interessante, para mim, sair daqui, não é?

Ainda mais agora, com trinta e nove anos. Se eu sair daqui, tenho que sair

daqui já formado, já com uma situação financeira bem estabelecida, não

é? Aí dá para se sair do lugar. Que a gente não saindo, a gente não saindo

daqui, para a gente é o melhor negócio. (CEN-80/09)

Em (77), o EsC codificado na oração núcleo que contém a construção modal com ter

é apresentado como certo, desde que, eventualmente, seja satisfeita a condição enunciada na

oração adverbial hipotética introduzida por se. Assim, a atitude do enunciador em relação à

„realidade‟ da informação contida na oração adverbial é de suposição/hipótese (fato

possível/provável) expressa através do conectivo se e pelo futuro do subjuntivo sair. Nesse

meaning and it is only in combination with the background context that they take on a particular shade of

meaning (such as epistemic or deontic) (cf. KRATZER, 1981, 1999 apud von FINTEL, 2006, p. 5).

94

Excluímos dessa análise as relações por projeção (cf. Halliday 1994, 2004) representadas quer pelo discurso

direto quer pelo indireto que correspondem a 15 ocorrências na amostra Censo 1980 e 31 na amostra Censo

2000.

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tipo de condicionais, esquema [se+subjuntivo/indicativo], o mundo é representado

epistemicamente possível (cf. GRYNER, 1990). Deste modo, a oração com a construção ter

que + infinitivo contém uma inferência do que se declara na oração anterior, ou seja,

corresponde à construção condicional canônica, estrutura “se p,(então) que” (uso prototípico

da condicional).

Relação de tempo

(78) F: Teve arrastão na praia, lá pro lado da Barra, não sei pra onde que foi, é

que tava muito calor, né aí [encheu] a praia em pleno feriado, aí quando foi

de tarde foi arrastão, o pessoal saiu correndo, daqui a pouco não pode ir

mais na praia, ou tem que ir bem cedinho enquanto tá todo mundo

dormindo e voltar quando eles acordarem. (CEN-00/18)

Em (78), a ocorrência do EsC expresso na oração-núcleo com a construção modal ter

que + infinitivo é co-extensiva ao EsC introduzido pela oração enquanto tá todo mundo

dormindo, superpondo-se temporalmente a ele.

Relação de causalidade

(79) E: O senhô acha que, a máquina vai ajudá o seu desempenho?

F: E muito, e muito.

E: Vai fazê com que o senhô produza cada vez mais?

F: Ela foi feita pra isso. Eu tenho que dominá-la, não ela a mim, entendeu?

se ela tá ali, se ela pensa... que a máquina num pensa, ela faz aquilo que eu

penso, entendeu? Então, eu tenho que fazê ela trabalhá pra mim, se

fosse assim, eu fazia um monte de cálculo pra chegá a um determinado

número, eu boto a máquina pra fazê isso. (CEN-00/31)

Em (79), a oração que contém a construção modal com ter estabelece com aquelas

que a precede uma relação de causalidade.

Relação de finalidade

(80) E: Eu quero que você descreva o seu dia, o seu dia. Se acorda,você faz o

quê primeiramente até a noite?

F: Eu tenho que acordar seis e <mei-> seis horas pra ir pra escola, aí eu

acordo, tomo banho, escovo os dentes, tomo café, me arrumo e vou pra

escola. Quando eu volto, eu fico dormindo. E a noite eu vou pra rua. Até

umas dez horas, dez e meia e vou dormi de novo pra ir pra escola no outro

dia. (CEN-00/04)

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Em (80), a necessidade expressa na oração núcleo se explica em função de um

objetivo, um propósito a ser alcançado, expresso na oração hipotática final. Portanto, uma

circunstância externa motiva a realização do EsC: acordar às seis horas.

Além das relações no domínio da condicionalidade, exemplificadas até aqui, foram

encontradas ainda as seguintes relações:

Relação de contraste/oposição

(81) F: Sou a favor mesmo da mulher trabalhar. Agora, sinto que as crianças às

vezes sofrem com isso. Por isso que eu estou sonhando em ser vovó "e"

poder dar aquela ajuda para os meus filhos, que eu acho que realmente não

dá para mulher ficar em casa sem trabalhar hoje em dia. Não dá mesmo!

Todos têm que trabalhar, mas elas vão enfrentar, as mulheres, muita

tentações na rua, não é? (CEN-80/48)

Em (81), o contraste efetuado pelo conector mas, pode ser explicado com base no

conhecimento comum, culturalmente partilhado, de que todos têm que trabalhar.

Contrariando esse pressuposto consensual, o informante, embora aceitando que tal regra se

aplica às mulheres, coloca-se na posição de que elas enfrentarão mais problemas nas ruas em

razão do assédio de que podem ser vítimas.

Na relação semântica por contraste/oposição, consideramos tanto as adversativas

como as concessivas95

, visto que ambas têm o significado básico de “contrariedade à

expectativa”, derivado do conteúdo do que está sendo dito (cf. HALLIDAY & HASAN,

1976; MIRA MATEUS ET AL., 1983).

Outra relação possível entre as orações com as construções modais com ter e as

adjacentes envolvem situações em que a oração na qual ocorre a construção ter que +

infinitivo constitui uma oração conformativa, geralmente introduzida pelas conjunções

prototípicas conforme, consoante, segundo e como (cf. NEVES, 2000), como no seguinte

exemplo:

95

O conector contrastivo prototípico é mas. Além deste, o contraste interoracional pode ser marcado por diversas

expressões contrastivas, como agora, e, já, porém, entretanto, no entanto, por outro lado, ao contrário. Na

ausência de marcadores explícitos, o contraste pode ser recuperado pela entoação e/ou pelo contexto. (cf.

GRYNER, 2008, p. 217).

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Relação de conformidade

(82) F: Quer dizer, "quis ver não." o brasileiro [mesmo]- mesmo não sabendo

muito, ele conseguiu inventar um- E aí esse <negócio> do bujão de gás

no... automóvel, está num instante o brasileiro conseguiu, fazer errado,

porque eles não fazem aquilo conforme tem que ser feito. Então, começa

[a]- a explodir. Sabe que dá certo. "Porque" brasileiro descobriu que aquilo

dá certo. (CEN-80/08)

Os diferentes tipos de relação entre orações acima apresentados estariam incluídos no

que Halliday (1994, 2004) denomina hipotaxe de realce por não estarem sujeitas a uma

integração sintática estrutural, ou seja, a oração satélite não funciona como um constituinte da

oração núcleo. Estabelece-se entre elas uma relação de interdependência semântica.

Além desses tipos, foram consideradas as seguintes outras possibilidades de relação

da oração com ter que e ter de + infinitivo com as orações adjacentes:

Relação de adição

(83) E: Como é que é feito isso?

F: Ah, é, muqueca, [claro].é claro que tem uma porção de rituais, né? Cê

tem que comprá um peixe fresco, limpá-lo muito bem, deixá-lo de molho

de um dia pro outro, à base de limão, salsa, cebolinha, alho, cebola e no

dia seguinte você começa um ritual grande no fogo. (CEN-00/29)

Em (83), nas orações sublinhadas, temos uma relação de adição entre a oração com a

construção ter que + infinitivo e as subsequentes numa sucessão temporal. Nesse caso,

optamos por considerar a relação com as orações subsequentes por entendermos que, no

contexto discursivo em que se insere a construção ter que + infinitivo, a relação de adição

torna-se mais relevante do que a relação com a oração anterior.96

Relação de especificação/expansão de um SN

(84) E: Por que você gosta de vôlei?

F: Eu não sei, acho que é por causa dos saque, da cortada que a gente tem

que dar. É por isso que eu gosto de vôlei. (CEN-80/02)

Em (84), conforme já explicitamos, embora emerja outras relações semânticas, como

a relação de conclusão entre a oração com a construção modal e a subsequente, optamos, por

considerarmos mais relevante, pela relação de especificação/expansão de SN entre a oração

96 Tal procedimento foi adotado para todos os casos em que a relação semântica entre a oração com as

construções modais com ter poderia ocorrer com a oração antecedente ou com a subsequente.

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com a construção modal e a antecedente. Tratamos, separadamente, os casos em que a oração

com a construção modal com ter opera uma expansão do SN, introduzindo uma informação

adicional que explica ou restringe uma informação anterior. Em (84), a oração que a gente

tem que dar se encaixa nos SNs que a antecede (saque/cortada), restringindo-os. O falante

explicita que as normas do vôlei (saque/cortada) podem ser o motivo de ele gostar desse

esporte.

Há, ainda, os casos em que a oração modalizada com ter se apresenta desvinculada,

constituindo uma forma de acréscimo ou explicitação dentro de um discurso, como no

exemplo (85):

Oração desvinculada

(85) F: Aí você joga em cima "no" bacalhau. Primeiro você passa um pouco

assim [de]- de óleo em volta do tabuleiro para não segurar, não é? Aí você

bota o bacalhau, forra direitinho, assim, tudo... para ficar bem certinha,

você joga o creme ali em cima "de" tudo, aí joga o camarão assim em

cima. O camarão tem que ser inteiro. Aí joga aquela azeitonas, tudo em

cima, não é? Ah, fica uma delícia! Poxa, fica um prato! (CEN-80/12)

A tabela 21 mostra, em termos de frequência, a distribuição das orações modalizadas

com ter que + infinitivo de acordo com a relação proposicional que estabelecem com as

cláusulas adjacentes nas amostras Censo 1980 e Censo 2000:

Tabela 21 – Distribuição de ter que + infinitivo de acordo com a relação semântica

entre as orações.

Relação semântica Censo 1980 Censo 2000

Condição 62 = 10% 51 = 7%

Finalidade 94 = 16% 82 = 12%

Contraste/oposição 79 = 13% 80 = 12%

Causa/explicação/consequência/conclusão 199 = 34% 253 = 38%

Conformidade 4 = 0% 6 = 1%

Tempo 29 = 4% 27 = 4%

Especificação/Expansão de um SN 11 = 1% 21 = 3%

Adição 29 = 4% 93 = 14%

Desvinculada 17 = 2% 40 = 6%

Total 581 663

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A tabela 21 sinaliza, nas duas sincronias, a correlação entre ter que + infinitivo e

algumas relações semânticas, em especial às que se situam no domínio da causalidade (causa,

explicação, consequência e conclusão). De forma regular nas duas amostras, predomina a

relação de causalidade, com 34%, na amostra de 1980 e 38%, na amostra de 2000. Podem ser

observadas, ainda, outras semelhanças entre as duas amostras, na recorrência das relações de

finalidade e contraste. No entanto, verificam-se algumas diferenças importantes na hierarquia

da relação de adição e das orações desvinculadas. A relação de adição, em 1980, apresenta

frequência bastante baixa (4%); em 2000, apresenta índice de 14%, aproximando-se aos de

finalidade e contraste, o que indica, portanto, que essa relação ganha maior relevância ao

longo do período que separa as duas amostras.

Ao que tudo indica, a relação de causalidade entre a oração com ter que + infinitivo

e as adjacentes é independente da polaridade da oração, visto que, nas orações com ter que +

infinitivo com polaridade negativa, verifica-se igualmente essa contextualização, com 62%

(5/8) na amostra Censo 1980 e 33% (3/9) na amostra Censo 2000. A predominância dessa

relação é confirmada nos dados da amostra NURC, tanto em inquéritos do tipo DID como nas

EF, com 34% (21/62) e 35%% (15/43), respectivamente.

Essa correlação parece ser inerente aos próprios valores modais expressos pelas

construções com ter e independente da forma da construção. Mesmo que sejam poucas as

ocorrências tanto nas amostras Censo como na amostra NURC, constatamos que ter de +

infinitivo também está associada à relação causal. Nas entrevistas do tipo DID, por exemplo,

observa-se que, em 57% dos casos (4/7), essa construção modal está conectada a outra oração

pelo elo de causalidade/explicação.

Parece, portanto, que as orações com a construção ter que + infinitivo, ou mesmo as

com ter de + infinitivo, tendem a predominar em contextos em que emergem relações

semânticas de causalidade/explicação, seja em registros orais mais formais, como nas EF, ou

em registros menos formais, semi-espontâneos, como nas amostras Censo 1980, Censo 2000 e

DID.

É, ainda, plausível supor uma correlação entre o valor modal expresso pela perífrase

ter que + infinitivo e a relação semântica entre as orações adjacentes. Deste modo, podemos

pressupor que essa construção esteja mais associada aos domínios extrínseco e deôntico nos

quais emerjam relações proposicionais de condição, causa/explicação, finalidade ou tempo

em que uma circunstância e/ou „princípios‟ estejam ancorados em uma condição, para que um

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EsC se torne necessário/obrigatório. Por outro lado, as relações de contraste/oposição e

adição poderiam estar mais correlacionadas ao domínio epistêmico, considerando que tais

contextos limitam-se a constatar mais uma necessidade do que impor uma injunção.

Essas hipóteses são verificadas através de um cruzamento entre a relação semântica

estabelecida pela oração com ter que + infinitivo e o tipo de modalidade codificada,

concentrando-nos naquelas que se mostraram mais recorrentes: causa/explicação, finalidade,

contraste/oposição, condição, adição e tempo. Os resultados obtidos para a amostra Censo

1980 encontram-se na tabela 22:

Tabela 22 – Interação entre domínio modal e relação semântica entre

as orações – Amostra Censo 1980.

Domínio modal/

Rel. Semântica Extrínseco Deôntico Epistêmico

Condição 23 = 10% 26 = 11% 13 = 16%

Finalidade 57 = 25% 31 = 13% 6 = 3%

Contraste/Oposição 18 = 8% 41 = 17% 20 = 24%

Causa/Explicação 94 = 42% 110 = 46% 42 = 51%

Tempo 17 = 8% 10 = 4% 2 = 2%

Adição 12 = 5% 17 = 7% 0 = 0%

Total 223 236 83

Os dados da tabela 22 reiteram a correlação entre relações semânticas no domínio da

causalidade e o valor modal da perífrase ter que + infinitivo. De acordo com essa tabela, a

relação semântica de causa/explicação predomina para todos os valores modais da perífrase

ter que + infinitivo: 42% no domínio extrínseco, 46% no domínio deôntico e destaca-se,

principalmente, no domínio epistêmico, com 51%. Convém ressaltar que, no domínio

extrínseco, a grande maioria dos casos de relação causal ocorre com alvo no participante,

44% (73/169).

Podemos observar, ainda, na tabela 22, que os diferentes valores semânticos se

distinguem em termos da segunda relação semântica mais frequente. No domínio extrínseco,

ressalta a relação semântica de finalidade, com 25%. No domínio deôntico, não chega a haver

diferença entre os índices para contraste (17%), finalidade (13%) e condição (11%). No

domínio epistêmico, por sua vez, destacam-se as relações de constraste (24%) e condição

(16%).

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A maioria dessas correlações é confirmada na tabela 23, relativa à amostra Censo

2000:

Tabela 23 – Interação entre domínio modal e relação semântica entre

as orações – Amostra Censo 2000.

Domínio modal/

Rel. Semântica Extrínseco Deôntico Epistêmico

Condicão 15 = 8% 26 = 8% 10 = 11%

Finalidade 35 = 19% 42 = 13% 5 = 5%

Contraste/Oposição 22 = 12% 41 = 13% 17 = 19%

Causa/Explicação 96 = 51% 122 = 38% 45 = 50%

Tempo 12 = 6% 12 = 4% 3 = 3%

Adição 6 = 3% 77 = 24% 10 = 11%

Total 186 320 90

Comparando as tabelas 22 e 23, podem ser atestadas maiores similaridades entre os

dois períodos no que diz respeito aos domínios extrínseco e epistêmico. Assim como na

amostra Censo 1980, na amostra Censo 2000, observa-se o predomínio de orações com ter

que + infinitivo ligadas à outra oração que expressa a causa/explicação, com 51% e 50%,

respectivamente. Uma outra similaridade é que, no domínio extrínseco, a relação de

finalidade aparece como a segunda mais frequente, com 19%.

A diferença mais notável entre os dois períodos considerados diz respeito à relação

de adição nos domínios deôntico e epistêmico, considerando que, na amostra Censo 1980, no

domínio deôntico (7%) e epistêmico (0%) aumenta significativamente na amostra Censo

2000: 24% no domínio deôntico e 11% no epistêmico. Nesse sentido, a semelhança entre as

duas amostras encontra-se na perda de expressividade da relação de adição no domínio

extrínseco, 5% na amostra Censo 1980 e 3% na amostra Censo 2000.

Uma primeira regularidade, que se destaca na análise do contexto em que se insere a

construção ter que + infinitivo, é a recorrência da relação semântica de causa/explicação.

Convém destacar que , no domínio extrínseco e no deôntico, em contextos nos quais é explicitada

uma causa/explicação para uma injunção, ter que + infinitivo incide sobre o participante,

tanto na amostra Censo 1980, com 41% (62/152), quanto na amostra Censo 2000, com 44%

(73/169), como podemos observar nos exemplos (86) e (87):

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151

Relação de causa/explicação no domínio extrínseco

(86) E: Você não gosta de lugar calmo que nem aqui a sua casa?

F: Eu não gosto não.

E: Por quê?

F: Ah, porque eu me sinto mal. [Olha] quando eu estou dormindo, está

todo mundo dormindo, sabe? Lá no meu quarto quase ninguém ronca, mas

daí fica aquele silêncio, aquilo vai me dando um nervoso. Daí eu tenho

que falar alguma coisa. Falando sozinha, isso eu acho que é psicológico.

Porque me dá um nervoso, eu falo, daí eu falo alto. (CEN-80/52)

Relação de causa/explicação no domínio deôntico

(87) E: Agora me diz: Você acredita assim em espírito?

F: Ah, eu acredito. Eu não tenho, eu não tenho desconfiança de nada. Não

tenho desconfiança de nada. Eu acredito em tudo. Tudo que a pessoa me

falá, eu acredito, por exemplo assim: cada um tem a sua religião, certo?

Então eu não posso, eu não posso... zombá de ninguém. Eu sempre

tenho que tê respeito "com as" com as pessoas que... que tem cada um

tem a sua religião. Então... eu sou assim. Cada um tem a sua, cada um

toca teu barco. (CEN-00/05)

A correlação de causa/explicação no domínio extrínseco pode ser explicada como

uma consequência da fonte de imposição nesse valor modal, ou seja, é uma

circunstância/condição externa que acarreta a execução de uma ação. Em (86), por exemplo, o

silêncio/nervosismo determina a necessidade de o participante falar alguma coisa. A

correlação de causa/explicação no domínio deôntico, como em (87), por outro lado, parece

envolver outros aspectos que dizem respeito à natureza imperativa desse valor modal. De

acordo com a posição de Von Fintel (2006), a modalidade deôntica baseia-se numa

circunstância que pode ser ou não explicitada. Nos dados sob análise, encontramos uma

tendência de essa base circunstancial ser explicitada, mesmo sendo desnecessária, em razão

do caráter de regra/convenções mais gerais da injunção colocada, como ocorre em (87). A

recorrência de causais/explicativas ligadas às orações com ter que + infinitivo, nesse domínio,

pode ser entendida, portanto, como uma forma de atenuação do valor imperativo da

construção, visto que a imposição de uma obrigação pode constituir uma ameaça à face do

interlocutor (cf. Brown & Levinson, 1978). Dada a natureza injuntiva do ato que se espera

que seja realizado, o acréscimo de uma justificativa funciona como uma estratégia de

atenuação. Assim, na medida em que explicita uma razão de apresentar um EsC como

obrigatório, o falante reduz seu caráter imperativo.

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152

A associação entre causa/explicação no domínio epistêmico97

, por sua vez, deve ser

explicada em termos de outros aspectos. Como a modalidade epistêmica está baseada em

premissas que autorizam uma conclusão por parte do falante, isto é, levando-o a acreditar na

inevitabilidade de um EsC (orientanda para o evento) ou na sua própria avaliação (orientada

para a proposição), a correlação com a oração causal, nesses casos, mais que uma explicação,

constitui ela mesma a premissa que garante o raciocínio inferencial.

5.6 Presença de elementos intervenientes

Como já abordado no capítulo 3, um dos aspectos mais frequentemente considerados

na análise do processo de formação de perífrases temporais, aspectuais e modais é o grau de

integração entre os elementos que as compõem, o que pode ser verificado através da

possibilidade de inserção de outros elementos (cf. BYBEE et al. 1991; HOPPER, 1991;

HEINE, 1993; HOPPER & TRAUGOTT, 1993, 2003; CASTILHO, 2002; LONGO &

CAMPOS, 2002). A possibilidade de intervenção de algum elemento, principalmente entre o

verbo auxiliar e o verbo principal, indica um fraco grau de gramaticalização, visto que, num

estágio mais avançado de gramaticalização, a construção verbo auxiliar+principal forma

uma unidade de maior coesão sintagmática.

Dentre os parâmetros de gramaticalização propostos por Lehmann (1985, 2002), a

conexidade e a variabilidade sintagmática têm maior relevância para este estudo, pois

permitem averiguar o grau de autonomia de um item/construção e, consequentemente, seu

grau de gramaticalização98

. Segundo o autor (2002, p. 131):

A coesão sintagmática ou vinculação de um signo é a intimidade com que um

signo se liga aos outros signos com os quais tem uma relação sintagmática. O

grau de vinculação de um signo vai da justaposição à fusão, em proporção ao

seu grau de gramaticalização.99

97

Em que o alvo incide quer no evento quer na proposição: 58% (21/36) com orientação para a proposição e

43% (21/48) com orientação para o evento na amostra Censo 1980; 32% (14/ 43) com orientação para a

proposição e 30% (21/70) com orientação para o evento na amostra Censo 2000.

98

Casseb-Galvão (1999, 2001) e Gonçalves (2003) verificaram que os parâmetros sintagmáticos propostos por

Lehmann (2002) não são eficientes em análises que envolvem a gramaticalização de modalizadores no português

brasileiro. São relacionados a processos específicos de gramaticalização, envolvendo morfologização de itens

lexicais em estágios avançados (cf. Hopper, 1996, p. 230).

99

“The syntagmatic cohesion or bondedness of a sign is the intimacy with it is connected with another sign to

which it bears a syntagmatic relation. The degree of bondedness of a sign varies from juxtaposition to merger, in

proportion to its degree of grammaticality.” (LEHMANN, 2002, p. 131).

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Deste modo, quanto mais dependente for um item de outro, mais avançado será seu

grau de gramaticalização. O terceiro parâmetro refere-se à mobilidade de um item no interior

da construção: quanto mais fixa a posição de um item dentro de um sintagma, menor será sua

autonomia.

O parâmetro grau de coesão sintagmática, verificado a partir da possibilidade de

inserção de elementos, principalmente entre V1 e V2, tem-se mostrado relevante para

mensurar o grau de gramaticalização de diferentes perífrases no PB. Veem-se, como

exemplos, Souza Campos (1998), para perífrases temporais e aspectuais; Casseb-Galvão

(2001), para o desenvolvimento do valor evidencial de diz que; Oliveira (2006), na análise de

ir + infinitivo para expressão de futuro; Almeida (2006), no desenvolvimento das perífrases

participiais com ter e haver; Travaglia (2007), para a gramaticalização dos verbos passar e

deixar como aspectuais e o de Souza (2011), voltado para o uso aspectual da construção

[PEGAR (E) V2]. O estudo de Esteves (2010) mostra, igualmente, a importância da coesão

sintagmática para maior ou menor gramaticalização de construções com os verbos

ter/dar/fazer+SN. O trabalho de Almeida (2006) traz evidências mais seguras quanto à

fixação sintagmática e maior coesão ou coalescência dos elementos formadores das perífrases

participiais com ter e haver. Nos termos da autora, “À proporção em que o processo de

mudança foi avançando, houve uma tendência a ocorrer uma maior integração nas construções

participiais que passam a formar estruturas perifrásticas.” (ALMEIDA, op. cit., p. 44).

Como já discutimos no capítulo 3, alguns autores consideram o verbo ter nas

perífrases modais como semimodal100

(cf. BRINTON, 1991; Von FINTEL, 2006) ou semi-

auxiliar (cf. OLBERTZ, 1998; KRUG, 2000; TRAUGOTT & DASCHER, 2005). Neste

estudo, consideramos ter de + infintivo e ter que + infinitivo como uma estrutura única

([V1fin..+V2infin.): na primeira, o verbo auxiliar ter (V1) liga-se ao infinitivo (V2) por meio da

preposição de e na segunda através do elemento que. Verificamos que, nas amostras Censo

1980 e 2000, apenas na construção ter que + infinitivo101

pode ocorrer a inserção de

elementos diversificados, como no exemplo (88):

100

Pires de Oliveira & Scarduelli (2008, p. 218-219) não consideram tem que como semimodal, mas auxiliar

modal, formando uma única estrutura, embora reconheçam que “Costuma-se distinguir, na literatura, entre os

auxiliares modais, como deve e os semimodais como tem que. Aqueles se caracterizam por se ligarem

diretamente à proposição, ao passo que estes últimos necessitam da intermediação de um complementizador,

como o que, ou de uma preposição”.

101

Nas 05 ocorrências registradas na amostra Censo 2000, não foram encontrados elementos intervenientes entre

os constituintes da construção ter de + infinitivo.

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(88) E: E você acha que a vida de jogador é fácil? Como é que você imagina

que seja a vida de um jogador de futebol?

F: Eu não vou dizer que é fácil porque eu não sou jogador de futebol, mas,

pelo que eu sei, jogador tá...tem sempre que comparecer aos treinos

todos os dias, não pode atrasar senão paga multa. (CEN-00/09)

Como mostram os resultados do gráfico 1, o índice geral de inserção de material

interveniente entre os elementos da construção modal ter que + infinitivo é bastante baixo,

tanto em 1980 como em 2000:

Gráfico 1 – Frequência de material interveniente em ter que + infinitivo.

O gráfico 1 é favorável à interpretação de ter que + infinitivo como uma perífrase em

grau avançado de gramaticalização. Nas duas sincronias, o índice de ausência de material

interveniente entre os elementos dessa construção é superior a 90%, ocorrendo apenas 7% de

rupturas em cada uma das amostras. Esses valores indicam acentuada coesão sintagmática

entre os elementos constitutivos de ter que + infinitivo.

A restrição à inserção de elementos entre os componentes das construções modais

com ter é confirmada nos dados da amostra NURC, tanto nas entrevistas do tipo DID, como

nas EF. Nas primeiras, num total de 62 ocorrências de ter que + infinitivo, apenas em 03

foram registradas a inserção de elementos entre seus constituintes (03/62 = 9%), sendo que

nesse registro houve apenas uma ocorrência de elemento interveniente entre os elementos da

construção ter de + infinitivo (01/07 = 14%). Nas EF, num total de 43 ocorrências de ter que

+ infinitivo, apenas em 07 observa-se a inserção de elementos intervenientes (07/43 = 16%).

Um aspecto a destacar é o de que, nas amostras sob análise, a inserção de material

interveniente entre os constituintes da perífrase ter que + infinitivo pode-se dar em espaços

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estruturais diferentes: na fronteira entre ter e que ou entre o elemento que e a forma infinitiva,

como ilustram, respectivamente (89) e (90):

(89) E: O seu irmão falou que sua mãe também foi assaltada?

F: Meu pai.

E: Como é que foi?

F: Foi que ele sofria-sofria, olha só! pigarro e que ele passava mal, negócio

[de asma, não é?] aí ele era pequeno, então, quando ele tinha esses

negócio, ele- a gente tinha até que comprar um negócio assim para- de

ar para ele, que ele começava a sentir falta de ar e ficava gelado. (CEN-

80/61)

(90) F: Qué dizê, então existe eh... esse problema que eu acho que é muito

sério aqui no- não só no Rio como em todos os lugares que você vê

meninos de rua, São Paulo, é um grande exemplo. Então eu acho que tem

que se pegá essas crianças e dá um pouco de amor pra eles, né? (CEN-

00/24)

O gráfico 2 mostra a distribuição dessas interrupções, considerando cada uma das

amostras em estudo:

Gráfico 2 – Distribuição de elementos intervenientes por fronteira.

O gráfico 2 permite concluir que, de forma geral, a inserção de material é mais

frequente entre ter que e a forma verbal no infinitivo: 83% (36/43) na amostra Censo 1980 e

88% (46/52) na amostra Censo 2000, sugerindo que a sequência ter que está mais integrada

sintaticamente.

Nos dados sob análise, nas duas amostras, há evidência de que é restrita a

possibilidade de ruptura entre ter e que. Uma evidência favorável a essa restrição são os casos

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de estruturas simétricas, coordenadas e justapostas, nas quais se pode ter uma elipse de ter

que, sem comprometer o significado modal, como em (91) e (92):

(91) E: E você segue receita, para cozinhar, ou faz de cabeça?

F: Não. Às vezes a- a- não, atualmente eu já tenho muita coisa de cabeça,

às vezes nem vou olhar a receita. Mas tem coisas que a gente tem que

olhar, seguir pela receita, não é? (CEN-80/11)

(92) E: Cê já foi assaltada?

F: Eu já tive carros roubados. Agora, sê assaltada assim, eu não, até porque

eu num ando com nada né? eu num ando com jóia, num ando com anel,

num ando com relógio, nunca ando com nada.que possa... porque eles têm

que sê rápidos, né? O assaltante ele tem que pegá e corrê. Né? então eu

nunca ando com nada, tô sempre de short, tênis, de camiseta, nunca tem

atrativos pra eles. Acredito que por causa disso. (CEN-00/24)

Uma outra possibilidade é a elipse de toda a perífrase, como em (93):

(93) F: No trânsito você tem que dirigi pra você e pros outros também, né? (CEN-00/10)

Em estudo sobre as perífrases temporais no Português, Souza Campos (1998) admite,

como ponto de partida, que nem todos os elementos passíveis de intervir nas fronteiras entre

elementos das perífrases possuem o mesmo efeito de ruptura. A autora mostra que, quando

possível, a intervenção de elementos, principalmente entre V1 e V2 fica restrita a itens de

pouca extensão fônica e, mais frequentemente, de natureza adverbial, portanto não-

argumentais. Nos termos da autora, “trata-se, deste modo, de vocábulos de pouco peso

semântico na oração como um conjunto, por não dependerem diretamente do verbo. Ligam-se

diretamente ao verbo, sem terem com ele vínculo de dependência.” (op. cit. p. 80). É

necessário, portanto, considerar a natureza morfossintática do material interveniente.

Relacionamos, a seguir, as possibilidades de elementos intervenientes nas estruturas

ter [ ] que + infinitivo e ter que [ ] + infinitivo:102

102

Baseando-se na amostra NURC-RJ/70 (Norma Urbana Culta Oral), Vieira (2008) considera de e que em ter

de/que + infinitivo como elementos intervenientes. Neste estudo, adotamos uma posição distinta, considerando

que a preposição de e o elemento que são partes integrantes das construções modais, não representando,

portanto, uma intercalação. Nesse sentido partilhamos a análise de Travaglia (2007), para quem, no caso de

perífrases como passar+a+infinitivo e deixar+de+infinitivo, a preposição é inerente à perífrase, não podendo ser

suprimida. Outro argumento que sustenta essa posição é a impossibilidade de variar a preposição.

Diferentemente de outros elementos intervenientes, de e que não podem ser suprimidos das construções modais

em análise e nem ser substituídos por outros elementos do mesmo paradigma.

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1º) ter [ ] que + infinitivo

Operador de foco

(94) F: [Não] ela er- era realmente difícil: de começo a gente n- não sabia nada,

então a professora tinha que explicá “pa gente” como é que era; “tão”

como a gente ia se... “sech-” eh... se esforçar... que a gente tinha é que

prestá muita atenção no que ela tava falando, escrevia no quadro, tinha

que té- prestá muita atenção. (CEN-00/05)

Marcador discursivo

(95) E: Mas por que especificamente língua portuguesa é importante?

F: Não sei, porque as pessoas tem, não é? que aprender [a]... [a]... a

falar, porque- inclusive para sei lá, poder se colocar no mundo. (CEN-80/22)

Advérbio

(96) E: E... você acha que... a vida de jogador é fácil? Como é que você

imagina que seja a vida de um jogador de futebol?

F- Eu não vou dizer que é fácil porque eu não sou jogador de futebol, mas,

pelo que eu sei, jogador tá...tem sempre que comparecer aos treinos

todos os dias, não pode atrasar senão paga multa. (CEN-00/09)

Elemento até

(97) F: E a mãe dizia: pode, filho. Pode, filho, você coma isso, cuidado, viu?

Cuidado que você até pode ter uma dor de barriga, não é? Depois tem até

que chamar o médico, não é? Até que o médico chegue, você "pode até

morrer," não é? (CEN-80/46)

Elemento mesmo

(98) E: César Maia.

F: É, o César Maia. É o Conde e o César Maia. Então eles dois já tava

assim, eu acho que todos dois são os dois melhores...

E: É eu também acho.

F: Agora, acho que pra mim tanto faz um quanto outro, mas eu vou votar

no Conde porque eu tenho mesmo que votar em quem tá arriscado

ganhar porque depois num acontece... (CEN-00/25)

Hesitação103

(99) F: Não, eu- se eu tivesse [que]- que saltar, eu gostaria, mas eu não sei se

é o que eu quero não. (CEN-80/22)

103

Embora não se trate de elementos intervenientes, a hesitação foi considerada nessa análise porque estabelece

um corte entre os constituintes das perífrases em estudo.

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2º) ter que [ ] infinitivo

Marcador discursivo

(100) E: Colar como?

F: Ah? Aí a pessoa tem que, sabe, batê e a pessoa corrê, corrê e pegá a

bandeirinha. (CEN-00/21)

Locução adverbial

(101) F: Então, a mesma coisa eu acho de uma esposa. Uma profissão. Eu

escolhi como profissão. Então, se eu quero <só>- ter sucesso na minha

profissão, eu vou ter que, cada dia mais, levar minha profissão a

sério. Realmente levar a minha profissão a sério. E procurar, a cada dia,

melhorar. Porque‚ uma profissão. Casamento‚ uma profissão. (CEN-80/43)

Elemento só

(102) E: Leite em pó?

F: Não. Leite. Leite comum. É um pouquinho de leite só. Acho que é

queijo- Ah! Não sei muito não. Bota um pouquinho de manteiga, um

negócio assim. Tem que só ver na receita. Eu não sei não. (CEN-80/24)

Elemento também

(103) F: Faço a prova, oito horas já chego da escola, tiro o uniforme, às vez eu

arrumo meu quarto, aí depois de uma hora, eu estudo, ajudo ela fazer o

almoço, arrumo a cozinha, e aí vai. Ela não gosta de- que eu arrume a

sala. Eu tiro o pó dos móveis. Agora ela que ajeita legal, porque acho que

tem que também ter um pouco dela na casa, não é? Não só "minha"

dos- das duas, não é? Já que eu sou garota, não é? "eu" tenho que-

arrumo meu quarto, não é? (CEN-80/24)

Elemento sequenciador

(104) E: Me diz uma coisa: no ballett, você já tá fazendo ponta?

F: Já.

E: Como é que faz? Eu nunca entendi.

F: Ah tipo assim tem uma... Cê bota no pé uma ponteira né? aí cê bota a

sapatilha, né?, amarra, tudo bem, aí cê tem que cê tem que primeiro

amolecê a sapatilha se você nunca usou sapatilha. (CEN-00/01)

Sujeito explícito do infinitivo

(105) F: Só são dois: um se torna-se a mulher e o outro, homem. Correto?

Obrigações, então, para que que fica com aquela exigência de ter que eu

chegar, digamos, oito horas e sair às quatro e meia à tarde. (CEN-80/26)

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Clítico104

(106) E: E o problema da aids, hem, Simone? Como é que cê vê isso?

F: Eu acho que quem tem muito parceiro tem que usá camisinha, tem

que se cuidá, porque o bicho tá solto, que isso mata, e pode passá [de] de

um parceiro pro outro. Às vezes, um parceiro tá com aids, e não fala

pro...prá parceira, aí a parceira pega aids, e aí que mora, aí que mora o

perigo. (CEN-00/17)

Hesitação

(107) I- Vocês tiveram uma festa. Conta para gente que festa foi essa?

F- Ah, nossa festa- nossa festa foi legal, sabe?

E- Como foi?

F- Foi legal, não é? Nós tivemos que- que- que falar, que coisa. Nós

vamos ter outra festa no dia nove, não é? Essa é de encerramento. (CEN-

80/05)

Mais de um elemento interveniente

(108) F:Se eu não casar, por exemplo, eu não vou estar nem aí. Eu acho que eu

tenho que bastante é curtir a minha vida, não é? <pa...>- Quando

chegar- quando eu tiver meus quarenta anos, dizer: "pô, eu já fiz isso,

agora eu vejo minha neta fazendo." (CEN-80/24)

Na tabela 24, apresentamos os resultados em relação ao tipo de estrutura e a

frequência de elementos intervenientes nas amostras Censo 1980 e Censo 2000. Por

apresentarem identidade de comportamento, foram amalgamados os seguintes tipos de

elementos intervenientes: hesitação com marcador discursivo, elementos de inclusão (até,

mesmo e também), operador de foco com o elemento só e, ainda, advérbio, locução adverbial

e elemento de enumeração.

104

Nas duas amostras, há predominância do clítico se. Não especificamos a natureza desse clítico (como

recíproco, reflexivo, índice de indeterminação do sujeito, parte integrante do verbo), visto que o foco de atenção

é verificar a interveniência dos clíticos entre os constituintes da construção ter que + infinitivo.

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Tabela 24 – Natureza dos elementos intervenientes na construção ter que + infinitivo.

Elementos

Intervenientes

Censo 1980 Censo 2000

ter [ ] que ter que [ ] ter [ ] que ter que [ ]

Operador de foco/só 1 = 14% 1 = 3% 2 = 33% 0 = 0%

Mar. discur./Hesitação 3 = 43% 4 = 12% 0 = 0% 8 = 20%

Adv./Loc.Adv./Enum. 0 = 0% 2 = 6% 3 = 50% 1 = 2%

Até, mesmo, também 3 = 43% 1 = 3% 1 = 16% 0 = 0%

Sujeito explícito do inf. 0 = 0% 1 = 3% 0 = 0% 0 = 0%

Clítico105

0 = 0% 19 = 59% 0 = 0% 24 = 61%

Mais de um elemento 0 = 0% 4 = 12% 0 = 0% 6 = 15%

Total 7 32 6 39

A tabela 24 indica, em primeiro lugar, que há maior diversidade no tipo de elemento

interveniente que pode ocupar a fronteira entre ter que e o infinitivo e maiores restrições na

fronteira entre ter e que + infinitivo, reiterando maior coesão sintagmática entre ter e que.

Embora o número de ocorrências para a maioria dos tipos de elementos

intervenientes considerados seja bastante escasso para garantir uma conclusão mais definitiva,

os dados da tabela 24 apontam diferenças e correlações interessantes. Considerando,

inicialmente, a fronteira entre [ter] e [que + infinitivo], atesta-se diferença entre os dois

períodos analisados. Em primeiro lugar, alguns elementos intervenientes tendem a ocorrer em

uma amostra e não em outra, como é o caso dos marcadores discursivos/hesitação e

advérbio/locução adverbial/elemento de enumeração. No primeiro caso, o percentual de 43%,

na amostra Censo 1980, corresponde a dois casos de hesitação e a apenas um de marcador

discursivo. No segundo caso, o percentual de 50%, na amostra Censo 2000, corresponde a três

ocorrências do advérbio sempre. Outra diferença entre as duas amostras refere-se à

predominância dos elementos operador de foco/só na amostra Censo 2000 (33%) em relação

aos 14% da amostra Censo 1980, sendo que esse aumento de percentual corresponde a apenas

uma ocorrência do operador de foco e uma quanto à inserção do elemento só. Destaca-se,

ainda, a inserção do elemento até na amostra Censo 1980, com 43%, e do elemento mesmo na

amostra Censo 2000, com 16%. Como os casos da inserção do advérbio sempre, do elemento

só, do elemento até e do elemento mesmo correspondem a elementos intervenientes de pouca

extensão (monossílabo e dissílabos), com pouco peso semântico na oração (cf. SOUZA

105

Na amostra Censo 1980, das 19 ocorrências com clítico, 14 correspondem ao clítico se e 05 ao clítico me. Na

amostra Censo 2000, das 24 ocorrências com clítico, 18 correspondem ao clítico se, 05 ao clítico me e apenas

uma ao clítico nos.

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CAMPOS, 1998), e, aceitando a posição de Campos (1997), não chegam a comprometer a

unidade interna entre ter e que + infinitivo da perífrase.

Na fronteira entre ter que e o verbo no infinitivo (estrutura ter que [ ] infinitivo),

destacam-se os clíticos como o tipo de material interveniente mais recorrente, com índices

quase idênticos para os dois períodos de tempo: 59% na amostra Censo 1980 e 61% na

amostra Censo2000.106

Essa intromissão de clíticos entre os dois elementos verbais da construção, no

entanto, pode ser um reflexo de uma tendência mais geral do PB, qual seja a de situar o

pronome objeto em próclise ao segundo verbo, como mostra, por exemplo,Vieira (2008). A

autora constata que, em complexos verbais, como é caso das estruturas em análise, predomina

no PB a ordenação V1 cl V2. Aparentemente, portanto, observa-se uma tendência que vai de

encontro à restrição proposta por Campos (op. cit.) quanto à natureza não argumental dos

elementos intervenientes mais susceptíveis de ocorrerem no interior da perífrase. Entretanto, é

necessário notar que os clíticos são elementos de baixíssimo peso fonológico, o que reitera a

tendência observada para a configuração estrutural ter [ ] que + infinitivo. Tudo indica,

inclusive, que, nas construções modais em estudo, a ordem dos clíticos é fixa, contemplando,

assim, uma das características de gramaticalização, a fixação da ordem, proposta por Hopper

(1991).

A tendência à inserção de itens de menor peso fonológico é reforçada pela incidência

um pouco mais expressiva, na amostra Censo 2000 (20%), de marcador dicursivo e da

hesitação (20%)107

entre ter que e a forma de infinitivo, porém com a presença de apenas dois

marcadores discursivos, que pode ser indicativo de um aumento da coalescência entre os

elementos da perífrase, dado que constituem elementos quase que inteiramente esvaziados de

significado.

No entanto, a interpretação desse resultado exige certa cautela, visto que a hesitação,

com maior presença nas duas amostras (04 na amostra Censo 1980 e 06 na amostra Censo

106

A presença de clítico nessa posição também ocorre em orações com polaridade negativa:

F- É. Teixeira, Nova Holanda, baixa e- contra o chiqueiro, um pessoal lá de trás que o pessoal chama de

Chiqueiro. Então, quer dizer, há guerras entre quadrilhas. Mas sobre essa guerra, quem não tem que se

preocupar, não é? (CEN-80/15)

107

A presença de marcador discursivo também é registrada em orações com polaridade negativa, como em:

E- Por que que acontece isso daí? Você ... qual a sua opinião sobre isso?

F- Tinha que ficá lá mofano, né? na delegacia, na cadeia. Ficá mofano pro resto da vida dela. Ela num vai tê

que, né, fazê de novo, né? (CEN-00/21).

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2000) coloca alguns problemas particulares. De acordo com a posição de Heine (1993), a

possibilidade de hesitação criadora de pausa entre os constituintes de uma perífrase pode ser

tomada como um índice de menor integração, ou seja, de que ela não constitui ainda uma

unidade semântica e sintática indissociável. Essa posição pode ser discutida, se

considerarmos, de acordo com Travaglia (2007), que as pausas podem ser interpretadas como

hesitações do falante, não representando uma quebra de vínculo entre os componentes da

perífrase. Retomando os termos do autor:

Na verdade, segundo os estudos de conversação e da língua oral, a hesitação

acontece quase sempre em itens gramaticais (preposições, artigos, pronomes,

etc.), enquanto o falante decide o item lexical a empregar. O verbo auxiliar neste

caso estaria, então, sendo usado como um item gramatical no comportamento da

hesitação, pois a hesitação criadora de pausa se dá após o mesmo.

(TRAVAGLIA, 2007, p. 35)

Na tabela 24, ressalta, ainda, nas duas amostras, a presença de mais de um elemento

interveniente entre ter que e o infinitivo, com percentuais semelhantes nas duas sincronias,

12% na amostra Censo 1980 e 15% na amostra Censo 2000. De modo geral, observamos que

o advérbio pode ocorrer com outros elementos, como sujeito de infinitivo, operador de foco,

hesitação; o marcador discursivo com outro marcador discursivo e com hesitação e esta com

outros elementos. Os demais elementos intervenientes tendem a ocorrer em uma amostra e

não em outra, como é os caso do elemento só, sujeito explícito do infinitivo e do elemento

também. A locução adverbial só ocorre na amostra Censo 1980 e um único caso de elemento

de enumeração (primeiro) só ocorre na amostra Censo 2000.

Considerando as características dos elementos acima elencados, principalmente sua

função [-argumental], podemos concluir que não há ruptura de coesão sintagmática entre os

elementos constitutivos da perífrase modal ter que + infinitivo, indiciando, portanto, maior

coalescência entre eles e alto grau de gramaticalidade da construção como um todo.

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5.7 Variáveis extralinguísticas

À luz dos postulados teórico-metodológicos da Sociolinguística Variacionista,

discutidos em 2.2., focalizamos, nessa seção, a correlação entre os usos das construções ter

de/que + infinitivo e as variáveis extralinguísticas faixa etária e gênero/sexo, dois parâmetros

utilizados na estratificação das amostras Censo 1980 e Censo 2000. A própria hipótese central

deste estudo, a de implementação de novos valores à construção ter que + infinitivo, impõe a

necessidade de verificar em que medida esse movimento pode ser identificado no uso da

língua por diferentes estratos da população considerada. Admitimos, seguindo a posição de

Nevalainen & Palander-Collin (2011, p. 119), que processos de mudança linguística por

gramaticalização, assim como a implementação de novas variantes fonológicas, morfológicas

ou sintáticas, estão sujeitos a um encaixamento social.

Nas seções a seguir, verificamos a distribuição da construção ter que + infinitivo de

acordo com as variáveis faixa etária e gênero/sexo.

5.7.1 Faixa Etária

Nesta seção, discutimos o efeito da variável idade sobre o uso da construção ter que

+ infinitivo, com o objetivo de buscar outras evidências de um processo de mudança.

Conjugamos, neste ponto, as evidências do tempo aparente com as evidências do tempo real

de curta duração, para que se possa identificar a forma como essa construção se espraia nas

diversas gerações.

As indicações obtidas, através da comparação entre as amostras Censo 1980 e Censo

2000, já forneceram algumas indicações acerca do comportamento da construção ter que +

infinitivo em tempo real de curta duração. Destacou-se, em primeiro lugar, o uso

predominante da construção ter que + infinitivo. Pode-se dizer que, no estágio atual do PB, na

variedade carioca, não existe concorrência/competição entre as duas construções com ter,

tratando-se, portanto, de um processo concluído. Considerando os três estágios propostos por

Labov (1972) para a implementação da mudança, podemos dizer que ter que + infinitivo está

no último estágio, em que a variante concorrente é praticamente eliminada.

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Além disso, pudemos atestar a sistematicidade da maioria dos grupos de fatores

analisados, nos dois momentos considerados: a construção ter que + infinitivo predomina,

praticamente, em todos os contextos. Desse ponto de vista, pode-se falar, portanto, em

estabilidade na comunidade de fala.

A distribuição em tempo aparente das amostras Censo confirma a estabilidade no

uso da construção ter que + infinitivo, como indica a tabela 25:

Tabela 25 – Distribuição de ter que + infinitivo de acordo com a faixa etária.

Faixa etária Censo 1980 Censo 2000

1 - 7-14 anos 36 = 6% 53 = 7%

2 - 15-25 anos 274 = 46% 251 = 35%

3 - 26-49 anos 160 = 27% 224 = 33%

4 - +50 anos 122 = 21% 178 = 25%

Total 592 706

Nos resultados da tabela 25, a distribuição por faixa etária, na amostra Censo 1980,

mostra o predomínio da variante ter que + infinitivo na faixa 2 (46%) e seu uso mais restrito

na última faixa (21%) e, principalmente, na faixa 1 (6%)108

. Essa distribuição é preservada na

amostra Censo 2000, no que se refere às faixas 1 e 3. Observa-se, no entanto, uma alteração

entre as duas amostras nas faixas intermediárias. Na amostra Censo 1980, a variante ter que +

infinitivo predomina na faixa 2 (46%), decrescendo significativamente na faixa 3 (27%),

enquanto na amostra Censo 2000, as frequências entre essas faixas se aproximam, com 35% e

33%, respectivamente. Esses padrões ficam mais evidentes no gráfico 3:

108

Distribuição semelhante se reproduz nas orações de polaridade negativa em que, num total de 17 ocorrências

nas duas amostras, a variante ter que + infinitivo, com 41% (7/17), predomina na faixa 2.

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Gráfico 3 - Distribuição de ter que + infinitivo por faixa etária.

O padrão curvilinear que se visualiza no gráfico 3 sugere uma interpretação de

gradaçao etária109

, com uso mais expressivo de ter que + infinitivo nas faixas intermediárias e

uma queda nas faixas extremas.

A faixa 2 das amostras Censo 1980 e Censo 2000 corresponde, aproximadamente, ao

período da adolescência. É possível que algumas características desse período possam

explicar a tendência destacada acima. Segundo Chambers (1995), o período da adolescência é

uma fase de rebeldia, de contestação dos valores sociais, de insegurança em que os indivíduos

buscam independência em relação aos pais e auto-afirmação pessoal. Sociolinguisticamente, a

combinação entre o desejo de separação dos mais velhos e a união com o grupo (seus pares)

faz com que os adolescentes sejam o principal agente de variação e mudança linguística (cf.

LABOV, 1994; CHAMBERS, 1995). Ainda, de acordo com Chambers (op. cit.), depois dos

anos turbulentos da adolescência, os indivíduos tendem a buscar realização profissional e

afetiva. Seus interesses passam a ser a carreira, o casamento e a família. Essas características

dos jovens adultos marcam a sua linguagem. Portanto, alguns deles moldam a sua forma de

falar de acordo com sua ambição profissional: quanto mais desejam ascender na escala social,

aspirar a um alto cargo ou a uma profissão valorizada socialmente, mais tendem adequar sua

fala à linguagem padrão, ou seja, submetem-se à “pressão de mercado”. Chambers (op. cit.)

ressalta que essa pressão não está diretamente relacionada à classe social, visto que uma

pessoa de qualquer camada social que deseja ascender socialmente tentará ajustar sua forma

109

De acordo com os termos de Labov (1994, p. 4) para quem “if individuals change their linguistic behavior

throughout their lifetimes, but the community as a whole does not change, the pattern can be characterized as

one of age-grading (LABOV, 1994, p. 84).

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de falar à linguagem mais valorizada socialmente. Depois dessa fase, os adultos mais velhos

“cristalizam” sua fala, e não se verificam mudanças significativas em sua linguagem.

As mudanças linguísticas ocorridas devido a pressões de ordem social e/ou

profissional, de acordo com Chambers (1995), apresentam-se como uma evidência que

contradiz à hipótese «clássica», ou seja, de que os indivíduos cristalizam sua forma de falar

por volta de 15 anos (cf. NARO, 2003, p. 44). Além disso, estudos de painel realizados por

pesquisadores brasileiros mostram que alguns indivíduos apresentam mudança no seu

comportamento linguístico durante sua vida, enquanto outros o mantêm (cf. BRAGA, 2003;

RONCARATI, 2003; NARO & SCHERRE, 2003; OMENA, 2003, dentre outros).

As explicações acima se aplicam de forma mais evidente a fenômenos de variação

em que se opõem uma forma padrão a uma não-padrão. Entretanto, o fenômeno em estudo

não envolve variação na modalidade falada e não se submete a nenhuma prescrição que

autorize pressupor a sua estigmatização linguística. Além disso, fenômenos em processo de

gramaticalização não pressupõem a implemetação de uma nova forma linguística, mas de um

novo uso (significado, valor) para uma forma já existente na língua, no caso em análise, o

valor epistêmico e o uso interacional da construção ter que + infinitivo. Uma análise mais

rigorosa do efeito da variável idade requer, portanto, considerar, as diferentes nuanças que

esta construção possa expressar. Como já observamos na seção 5.2 (tabela 4), há indicações

de um enfraquecimento do valor modal da construção ter que + infinitivo que se afasta de

seus domínios prototípicos (extrínseco/deôntico) com alvo no participante para um uso

predominante no domínio deôntico com o alvo no evento. Portanto, ainda que sutilmente, a

função de ter que + infinitivo muda através do tempo. De acordo com essas tendências, é

possível pressupor que o enfraquecimento dessa construção ocorra mais frequentemente nas

faixas mais jovens da comunidade carioca.

Na tabela 26, correlacionamos faixa etária e os valores modais para ter que +

infinitivo na amostra Censo 1980. Acrescentamos, nesta análise, os dados que denominamos

de uso interacional da construção ter que + infinitivo:

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Tabela 26 – Interação entre domínio modal/uso interacional e faixa etária –

Amostra Censo 1980.

Domínio

modal/ Faixa

etária

Extrínseco Deôntico Epistêmico Interacional Total

1 - 7-14 anos 17=47,22% 19 = 52,78% 0 = 0% 0 = 0% 36

2- 15-25 anos 100=36,49% 138 = 50,36% 30= 10,94% 6 = 2,18% 274

3- 26-49 anos 70=43,75% 54 =33,75% 32= 21,33% 4 = 2,5% 160

4 - +50 anos 46=37,70% 54 =44,26% 22= 18,03% 0 = 0% 122

Os resultados apresentados na tabela 26 são menos transparentes do que se esperava,

em razão da total ausência de construção ter que + infinitivo com valor epistêmico ou com

função interacional na faixa mais jovem da população (faixa 1). Ainda, nesta faixa, não

chegam a se distinguir os índices entre o domínio extrínseco (47,22%) e o deôntico (52,76%).

Além disso, observa-se a complementaridade entre as faixas 2 e 3: na segunda faixa

etária, predomina o valor deôntico da construção com ter (50,36%) e, na terceira faixa, o seu

valor extrínseco (43,75%). A última faixa etária, por sua vez, apresenta distribuição

semelhante à da faixa 1, distinguindo-se apenas pelo índice um pouco mais relevante de ter

que + infinitivo com valor epistêmico (18,03%).

Outro aspecto a considerar é a incidência de ter que + infinitivo com função

interacional nas faixas 2 e 3 do continuum etário e sua ausência na primeira e última faixa

etária.

As correlações observadas na tabela 26 não chegam a invalidar completamente a

hipótese colocada. A maior recorrência do valor deôntico na faixa 2 indica que algumas

alterações no uso da construção ter que + infinitivo podem ser vistas como um processo de

mudança em curso, visto que essa ainda é uma faixa mais jovem. Além disso, a ausência de

ter que + infinitivo no domínio epistêmico, na faixa 1 da população, pode ser uma

consequência da própria incorporação e manifestação de formas de modalidade entre crianças

e falantes em fase da pré- adolescência.

Como mostram os resultados da tabela 27, a distribuição por faixa etária e domínios

modais da construção ter que + infinitivo de acordo com os dados da amostra Censo 2000

reitera, apenas em parte, a que foi observada para a amostra Censo 1980:

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Tabela 27 – Interação entre domínio modal/uso interacional e faixa etária –

Amostra Censo 2000.

Domínio

modal/

Faixa etária

Extrínseco Deôntico Epistêmico Interacional Total

1- 7-14 anos 17 =32,07% 24=45,28% 12=22,64% 0 = 0% 53

2- 15-25 anos 82 =32,66% 131 =52,19% 29=11,55% 9 = 3,58% 251

3- 26-49anos 68=30,35% 132 =58,92% 24=10,71% 0 = 0% 224

4- +50 anos 35 =19,66% 96=53,93% 46=25,84% 1 = 0,56% 178

Segundo os resultados da tabela 27, a construção ter que + infinitivo com valor

extrínseco se reduz na faixa 4, aumentando o uso dessa construção no seu valor deôntico em

todas as faixas etárias. Dessa forma, confirma-se a sugestão da tabela 4 (seção 5.2) que já

sinalizava um aumento de ter que + infintivo como forma de modalização através da

convocação de regras e normas de procedimentos. Convém ressaltar que a grande maioria dos

dados corresponde ao valor deôntico orientado para o evento. Mesmo na faixa 2, em que já

predominava ter que + infinitivo com valor deôntico nos anos 80 em relação ao seu valor

extrínseco, observa-se um aumento considerável da diferença entre as frequências associadas

ao valor extrínseco e deôntico, que passa de 13,87 pontos, na amostra Censo 1980, para 19,53

pontos de diferença, na amostra Censo 2000.

A diferença marcante entre as duas sincronias diz respeito ao uso de ter que +

infinitivo como modalizador epistêmico. Na amostra Censo 1980, esse uso da construção está

ausente na fala da faixa mais jovem dos falantes cariocas. Na amostra 2000, já se observa um

índice de 22,64%, indicando que esse uso se propaga na comunidade de fala, embora de uma

forma mais tímida.

Considerando não só a distribuição da construção ter que + infinitivo como também

os seus diferentes valores modais em termos de tempo aparente, pode-se antever um processo

de mudança, que, passando por um estágio de deslocamento do alvo no participante para o

alvo no evento, culmina no uso mais enfraquecido do valor de obrigação/necessidade

atribuído, prototipicamente, à construção ter que + infinitivo. Essa questão será retomada na

seção seguinte na qual consideramos as correlações com a variável sexo/gênero.

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5.7.2 Gênero/sexo

Várias pesquisas já demonstraram que fenômenos de mudança em diferentes níveis

(fonológicos, morfossintáticos, semânticos, discursivos) estão associados ao gênero/sexo do

falante, principalmente quando envolvem o uso de variantes estigmatizadas em relação às

variantes mais prestigiadas socialmente. Os padrões frequentemente envolvidos nessas

pesquisas sugerem que as mulheres usam mais a variante padrão ou prestigiada e evitam a

variante estigmatizada ou não-padrão (cf. PAREDES SILVA, 2003; PAIVA, 2003).

Chambers (1992) destaca a responsabilidade das mulheres que, estando no mesmo grupo

social e nas mesmas circunstâncias que os homens, utilizam menos as variantes

estigmatizadas ou não-padrão. Para Labov (1994), é necessário considerar dois aspectos na

correlação entre a variável gênero e o uso de variantes linguísticas: a) a intervenção das

variável estilo, que mostra que a diferença no uso linguístico entre homens e mulheres se faz

mais notável “na fala cuidada” (p. 243), ou seja, em registros de maior formalidade e b) a

natureza do fenômeno variável (variação estável ou mudança em progresso). É no caso de

variações estáveis que as mulheres manifestam maior preferência por formas mais

prestigiadas.

Paiva (2003) ressalta que, em casos de mudança que não se submetem a uma

avaliação social explícita ou à exclusão normativa, fica mais difícil prever o comportamento

de homens e mulheres. Se essa questão é controversa em relação ao efeito da variável

gênero/sexo para fenômenos em variação no seu sentido mais estrito, ela coloca problemas

adicionais no que se refere a fenômenos de mudança por gramaticalização, porque temos um

novo uso da mesma forma e esse uso mais recente, mais inovador, nem sempre é percebido e

avaliado pelos membros da comunidade de fala. Algumas dessas questões são aqui retomadas

na análise do uso da construção modal ter que + infinitivo.

Como mostram os resultados do gráfico 4, a distribuição da construção ter que +

infinitivo é bastante diferenciada em relação à variável gênero:

Gráfico 4 - Distribuição de ter que + infinitivo por gênero.

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O gráfico 4 mostra paralelismo total quanto ao uso da perífrase ter que + infinitivo

nos dois momentos considerados: tanto na década de 80 quanto em 2000, essa construção

aparece fortemente associada às mulheres. Essa tendência é corroborada no uso de ter de +

infinitivo com polaridade afirmativa na amostra Censo 2000, visto que em 05 ocorrências

dessa construção, 03 correspondem ao uso pelas mulheres.110

Podemos nos perguntar, no entanto, se há um tipo de valor modal mais fortemente

associado ao gênero feminino ou se todos eles são igualmente predominantes entre as

mulheres. Considerando que as mulheres tendem a liderar os processos de mudança

linguística por gramaticalização, podemos pressupor que elas tenderiam a usar a construção

ter que + infinitivo em sua função menos prototípica, ou seja, na sua função inovadora como

expressão de modalidade epistêmica. A tabela 28 considera, conjuntamente, as variáveis

gênero e valor modal da construção ter que + infinitivo na amostra Censo 1980:

Tabela 28 – Interação entre domínio modal/uso interacional e gênero –

Amostra Censo 1980.

Domínio

modal/

Gênero

Extrínseco Deôntico Epistêmico Interacional Total

Masculino 81 =35,68% 102 = 44,93% 41 =18,06% 3 = 1,32% 227

Feminino 152 =41,64% 163 = 44,65% 43 =11,78% 7 = 1,91% 365

110

As ocorrências de ter que + infinitivo em orações de polaridade negativa na amostra Censo 1980 são

neutralizadas em relação ao gênero, visto que dentre as 08 ocorrências registradas, 04 ocorrem no gênero

feminino e 04 no gênero masculino. Porém, na amostra Censo 2000, ocorre a predominância no uso dessa

construção entre as mulheres: dentre as 09 ocorrências, 08 ocorrem no gênero feminino.

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171

A distribuição apresentada pela tabela 28 é bastante semelhante para homens e

mulheres, levando a acreditar que não há correlação significativa entre sexo/gênero e o valor

modal da perífrase ter que + infinitivo. No entanto, é possível constatar que, entre as

mulheres, não chega a haver diferença entre os percentuais associados ao valor extrínseco e

deôntico, 41,64% e 44,65%, respectivamente. Entre os falantes do sexo masculino, ao

contrário, observa-se diferença entre esses dois usos (9,25 pontos de diferença), com

predomínio de ter que para a expressão de modalidade deôntica. Entre os homens, observa-se,

também, um uso, pouco mais expressivo, de ter que no domínio epistêmico (18,06%) em

relação às mulheres (11,78%). Assim, pode-se dizer que as mulheres, muito mais do que os

homens, se valem da construção ter que + infinitivo tanto para a expressão de uma obrigação

provocada por uma contingência externa, como para a convocação de normas e princípios que

asseguram a necessidade de ocorrência de um EsC.

Podemos destacar, ainda, na tabela 28, outra diferença entre homens e mulheres, no

que se refere ao número de ocorrências no uso interacional, que é significativamente maior

entre as mulheres (70%) do que entre os homens (30%).

Considerando o intervalo de tempo que separa as duas amostras, observam-se

algumas alterações na distribuição de ter que + infinitivo em relação à variável gênero, de

acordo com os resultados da tabela 29:

Tabela 29 – Interação entre domínio modal/uso interacional e gênero –

Amostra Censo 2000.

Domínio

modal/

Gênero

Extrínseco Deôntico Epistêmico Interacional Total

Masculino 69 = 24,64% 148 = 52,85% 63 = 22,50% 2 = 0,71% 280

Feminino 133 = 31,89% 235 = 56,35% 48 = 11,51% 8 = 1,91% 417

Os resultados da tabela 29 mostram que entre a amostra Censo 1980 e Censo 2000 há

um aumento regular no uso da construção ter que + infinitivo no seu valor deôntico, tanto

entre os homens como entre as mulheres. A alteração mais importante se verifica, portanto, no

comportamento linguístico das mulheres, que se alinham a uma direcionalidade já sinalizada,

na amostra Censo 1980, pelos falantes masculinos.

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172

No uso da construção ter que + infinitivo com valor epistêmico, pode-se falar em um

quadro de estabilidade, embora o número de ocorrências desse emprego da construção

aumente consideravelmente mais entre os homens do que entre as mulheres. De certa forma,

podemos dizer que uma maior subjetivização da construção ter que + infinitivo seria liderada

pelos homens. As mulheres, por sua vez, estariam se mantendo no estágio de enfraquecimento

do valor modal da perífrase, ou seja, na passagem de extrínseco a deôntico. O fato de as

mulheres usarem mais o valor deôntico dessa construção, na segunda sincronia, poderia ser

explicado pelo seu maior apego às regras, convenções sociais, normas de conduta mais

genéricas que envolvem conhecimento compartilhado e consenso.

Até aqui, as correlações destacadas envolvem a consideração da variável sexo

isoladamente. Porém, seguindo o alerta de Paiva (2003), é necessário considerar a correlação

entre essa variável e outras, pois como destaca a autora, “o efeito da variável gênero/sexo

isoladamente camufla outros aspectos e complexas interações que devem ser examinadas no

estudo da variação e mudança.” (op. cit. p. 37). Na seção anterior, pudemos constatar a

importância da variável idade na indicação da direcionalidade da construção ter que +

infinitivo. Assim, justifica-se verificar a possibilidade de interação entre as variáveis

sexo/gênero e idade, tomando por base o valor modal da construção ter que + infinitivo. A

tabela 30 apresenta os resultados dessa correlação na amostra Censo 1980:

Tabela 30 – Interação entre domínio modal/uso interacional e as variáveis

gênero/idade – Amostra Censo 1980.

Interação

gênero/idade Extrísenco Deôntico Epistêmico Interacional Total

Homem faixa 1 3 = 27% 8 = 73% 0 = 0% 0 = 0% 11

Homem faixa 2 30 = 33% 47 = 52% 12 = 13% 1 = 1% 90

Homem faixa 3 27 = 41% 23 = 35% 15 = 23% 1 = 1% 66

Homem faixa 4 21 = 35% 24 = 41% 14 = 24% 0 = 0% 59

Mulher faixa 1 14 = 56% 11 = 44% 0 = 0% 0 = 0% 25

Mulher faixa 2 70 = 38% 91 = 49% 18 = 10% 5 = 3% 184

Mulher faixa 3 43 = 46% 31 = 33% 17 = 18% 3 = 3% 94

Mulher faixa 4 25 = 40% 30 = 47% 8 = 13% 0 = 0% 63

Na tabela 30, encontramos as seguintes correlações significativas entre a interação

sexo/idade e o tipo de domínio modal realizado por ter que + infinitivo: na modalidade

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extrínseca e na deôntica, só há diferença entre homens e mulheres da faixa 1: ter que +

infinitivo no domínio extrínseco predomina entre as mulheres da faixa 1 (56%); ao contrário,

entre os homens da faixa 1, predominam os usos deônticos.

Na modalidade epistêmica, os resultados são equiparáveis para homens e mulheres

das diferentes faixas etárias, com exceção da faixa mais velha com maior uso de ter que

epistêmico pelos homens. Outro aspecto importante é que o uso interacional (com número

reduzido de dados) concentra-se entre as mulheres das faixas etárias intermediárias 2 e 3.

Comparando esses resultados com os da amostra Censo 2000, observam-se algumas

diferenças importantes:

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Tabela 31 – Interação entre domínio modal/uso interacional e as variáveis gênero/idade –

Amostra Censo 2000.

Interação

gênero/idade Extrísenca Deôntica Epistêmica Interacional Total

Homem faixa 1 5 = 18% 13 = 46% 10 = 36% 0 = 0% 28

Homem faixa 2 31 = 31% 53 = 54% 14 = 14% 1 = 0% 99

Homem faixa 3 20 = 31% 30 = 48% 13 = 21% 0 = 0% 63

Homem faixa 4 13 = 14% 52 = 57% 26 = 28% 1 = 1% 92

Mulher faixa 1 12 = 48% 11 = 44% 02 = 8% 0 = 0% 25

Mulher faixa 2 51 = 34% 78 = 51% 15 = 10% 8 = 5% 152

Mulher faixa 3 48 = 28% 102 = 63% 11 = 7% 0 = 0% 161

Mulher faixa 4 22 = 26% 44 = 51% 20 = 23% 0 = 0% 86

Segundo os resultados da tabela 31, algumas diferenças entre os dois períodos podem

ser destacadas. Observa-se que, praticamente, em todas as faixas etárias, tanto entre homens

como entre mulheres, há um decréscimo de uso da construção ter que + infinitivo para a

expressão de modalidade extrínseca. Excetuam-se apenas os homens da faixa 2, que

apresentam índices equivalentes nas duas sincronias. Na faixa 4, por sua vez, observa-se

maior diferença entre homens e mulheres, com índices, expressivamente, mais altos entre as

mulheres.

Destaca-se, ainda, a acentuada redução do uso deôntico de ter que + infinitivo entre

os homens da faixa etária 1 (46%), em oposição ao seu aumento entre os homens da faixa 4

(57%). A tendência mais importante diz respeito ao aumento do uso epistêmico de ter que +

infinitivo entre os homens da faixa 1 (36%), sugerindo que seria esse o grupo responsável pela

expansão do processo de gramaticalização dessa construção. O mais interessante é que, na

modalidade epistêmica, os homens da faixa 1 passam a usar a construção ter que + infinitivo

com esse valor, inexistente na amostra Censo 1980, assim como as mulheres da faixa 1 (8%) e

com um aumento significativo entre as mulheres da faixa 4 (23%). Na amostra 1980, os

homens da faixa 3 lideram esse uso em relação às mulheres da faixa etária 4. O uso

interacional da construção com ter altera ligeiramente sua distribuição, concentrando-se entre

as mulheres da segunda faixa etária.

Os resultados da interação entre modalidade e sexo/idade indicam direções distintas,

segundo o sexo/gênero do falante. Por um lado, a subjetivização de ter que + infinitivo parece

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175

ser propulsionada pelos falantes do sexo masculino, enquanto o desenvolvimento de uma

função interacional para ter que + infinitivo parece ser liderado pelas mulheres.

Essas tendências contrariam, pelo menos em parte, a predominancia de valores

epistêmicos na fala feminina (COATES, 1987, 1989) que se explica, segundo Coates (2003),

como uma estratégia de proteção tanto de si mesma como do seu destinatário. Por outro lado,

a concentração do uso interacional de ter que pelas mulheres parece confirmar o maior uso de

estratégias linguísticas de cooperação e de interação com o interlocutor pelas mulheres do que

pelos homens (cf. COATES, 2003).

Apresentamos, a seguir, um resumo das principais tendências depreendidas para a

trajetória das construções modais com ter na modalidade falada da variedade carioca. Em

primeiro lugar, constatamos que ter que + infinitivo generaliza-se em detrimento de ter de +

infinitivo, tornando-se soberana no PB contemporâneo, independentemente de escolaridade e

de registro de fala (cf. confronto entre as amostras Censo e NURC-RJ/70).

No que tange ao valor modal da construção ter que + infinitivo, predomina, na

amostra Censo 1980, o seu uso nos domínios extrínseco e deôntico com alvo no participante

e, na amostra Censo 2000, no domínio deôntico com alvo no evento, evidenciando um

enfraquecimento da força modal dessa construção. Por outro lado, as escassas ocorrências de

ter de + infinitivo indicam a sua possibilidade de uso nos diferentes domínios modais e alvos.

A análise da propriedade número-pessoal do verbo ter evidencia sua maior

predominância no na terceira pessoa do singular nas duas sincronias e em todos os domínios

modais, sendo que, na amostra Censo 2000, ocorre variabilidade entre a primeira e a terceira

pessoa do singular, no domínio extrínseco. Nas duas sincronias, a predominância do verbo ter

na terceira pessoa do singular pode indiciar o descomprometimento do falante com o EsC

descrito ao se correlacionar com o domínio deôntico e/ou extrínseco.

Nas duas sincronias, o sujeito de V2 das construções modais com ter associa-se,

preferencialmente, ao traço [+humano], expandindo a construção ter que + infinitivo para

contextos de sujeito arbitrário. Nas duas amostras, o traço semântico [+humano] tende a

predominar no domínio extrínseco, sendo que, na amostra Censo 1980, o sujeito [+arbitrário]

tende a ocorrer em todos os domínios modais e, na amostra Censo 2000, verifica-se maior

variabilidade entre esses tipos de sujeito nos domínios deôntico e epistêmico. A associação

entre sujeito [+humano] e domínio extrínseco indicia o comprometimento do falante com o

EsC descrito determinado por circunstâncias externas e a associação entre sujeito arbitrário e

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176

os domínios deôntico e epistêmico evidencia o descomprometimento do falante com o EsC

e/ou com a veracidade da proposição.

Nas duas sincronias, o verbo no infinitivo das duas construções tende a ficar mais

restrito a verbos transitivos com complemento SN, podendo, porém, se expandir para verbos

intransitivos ou de ligação. A associação de ter que com verbos transitivos favorece a

hipótese do movimento do SN para depois do verbo-predicador, desencadeando o processo de

gramaticalização dessa construção, ou seja, da reanálise.

As duas construções caracterizam-se pelo tipo de processo material de V2 nas duas

sincronias, sugerindo que a recorrência desse processo constitui uma propriedade inerente ao

seu uso. Na amostra Censo 1980, a construção ter que + infinitivo tende a se correlacionar

preferencialmente, com verbos de processo material no domínio extrínseco, sendo que, na

amostra Censo 2000, esse processo tende também a predominar no domínio deôntico.

A relação semântica entre as orações com as construções modais com ter e as

adjacentes tendem a situar-se no âmbito da causalidade nas duas sincronias, predominando

em todos os domínios modais. A correlação entre causalidade e domínio extrínseco pode ser

explicada pela necessidade de o participante executar uma ação decorrente de uma

circunstância externa; no domínio deôntico, o acréscimo de uma justificativa funciona como

uma estratégia de atenuação de uma imposição e, no domínio epistêmico, advém de uma

premissa, no sentido de garantir um raciocínio inferencial.

Quanto às variáveis extralinguísticas, as tendências delineadas refere-se à maior

recorrência da construção ter que + infinitivo no seu valor epistêmico entre os falantes mais

jovens, podendo estar indiciando mudança em progresso, e o seu valor deôntico e extrínseco

entre as mulheres pode ser explicado pelo maior conservadorismo desse gênero. Ainda, na

amostra 2000, a associação entre o uso dessa construção no seu valor epistêmico com o

gênero masculino da primeira faixa etária pode estar indicando que o estágio de

gramaticalização de ter que + infinitivo de [-subjetivo] > [+subjetivo] é liderado pelos

homens. Esse estágio de gramaticalização parece estar prosseguindo, visto que encontramos

indícios de uso dessa construção no domínio interpessoal (uso interacional), correspondendo a

uma estratégia entre sujeitos que se encontram no espaço interlocutivo, evidenciada,

sobretudo, pelo gênero feminino.

No próximo capítulo, investigamos o uso das construções modais com ter na

modalidade escrita. Utilizaremos as mesmas propriedades linguísticas que propulsionaram a

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177

expansão de novas polissemias para o uso da construção ter que + infinitivo na modalidade

falada e variáveis que controlam a resistência de ter de + infinitivo em variação com ter que +

infinitivo.

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6 VARIAÇÃO ENTRE TER DE + INFINITIVO E TER QUE + INFINITIVO NA

MODALIDADE ESCRITA

No capítulo 5, vimos que a construção ter que + infinitivo é soberana na modalidade

falada, independentemente do registro de fala considerado. No entanto, como já explicitado na

introdução, essa construção alterna com ter de + infinitivo na modalidade escrita, como

mostram os exemplos (109) e (110):

(109) Ela acrescentou que lamenta muito ter que sair de Inhaúma, bairro

onde mora há 15 anos e onde o marido foi criado, mas teme que os

bandidos cumpram a ameaças. (Notícia/Reportagem - Povo - 09-01-04)

(110) Ninguém trabalha com eles para lhes aprimorar o passe e o drible, o

cruzamento e os chutes a distância, a matada de bola, o senso de

desmarcação e de colocação, e, enfim, esta habilidade hoje inalcançável:

dominar a bola sem ter de sair correndo atrás dela. (Artigo de Opinião -

Extra - 18-03-04)

A preservação de ter de + infinitivo na modalidade escrita é favorável à interpretação

de Luft (2003) para quem essa perífrase fica restrita a essa modalidade. Nesse capítulo,

discutimos algumas questões relevantes não só no que se refere à frequência das duas

construções, como também à trajetória de incorporação de ter que + infinitivo na escrita.

Podemos esperar que, refletindo a sua recorrência na fala, a construção ter que + infinitivo

predomine igualmente na modalidade escrita, acompanhando, assim, um movimento de

mudança já praticamente concluído naquela modalidade. Em princípio, nos termos de Gomes

(2007),

[ ] é possível que o domínio e uso de determinadas variantes em processo de

desaparecimento na língua sejam mantidas na escrita em função da pressão

normativa, mas, por outro, a direcionalidade da mudança e o estágio em que ela

se encontra podem também acabar se refletindo no texto escrito, mesmo sendo

este mais formal, como é o caso dos jornais da grande imprensa. (GOMES, 2007,

p. 8).

A expectativa em relação ao espraiamento da construção ter que + infinitivo na

modalidade escrita confirma-se na análise estatística das duas construções, de acordo com a

amostra de textos jornalísticos, como mostram os resultados do gráfico 5:

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Gráfico 5 – Distribuição das construções modais com ter na modalidade escrita.

De acordo com a distribuição apresentada no gráfico 5, a variante ter que + infinitivo

é significativamente mais frequente do que a variante ter de + infinitivo nos textos

jornalísticos, representativos de um registro escrito que requer maior planejamento,

correspondendo a 59% (94/157) de ocorrências. No entanto, as ocorrências de ter de +

infinitivo não podem ser negligenciadas, pois indica a existência de um espaço variável

considerável, com um percentual de 41% (63/157). Essa distribuição será retomada na seção

6.7, quando discutiremos a importância da variável gênero do discurso.

Dada a variação entre as duas construções modais com ter na modalidade escrita, o

uso dessas construções foi analisado segundo os moldes variacionistas (cf. SCHERRE &

NARO, 2003; ZILLES & GUY, 2007). Neste estudo, a construção ter que + infinitivo foi

tomada como ponto de partida, ou regra de aplicação, por duas razões: (i) as indicações de

que, mesmo na modalidade escrita, essa construção constitui a opção menos marcada, ou seja,

mais frequente e (ii) em razão do objetivo do trabalho que é o de verificar a incorporação e

expansão dessa construção numa modalidade mais sujeita a controle normativo.

Diferentemente do que se observou na modalidade falada, em que as raras

ocorrências de ter de + infinitivo não permitiram uma análise estatística, na modalidade

escrita, é possível obter evidências mais claras das especificidades de ter de + infinitivo em

relação a ter que + infinitivo e identificar os grupos de fatores que favorecem a maior

recorrência dessa construção. A análise multivariacional realizada apontou a relevância dos

seguintes grupos de fatores: o valor modal das perífrases, os traços semânticos do sujeito e as

desinências número-pessoais do verbo ter. No entanto, com o objetivo de depreender outras

particularidades de ter de + infinitivo em relação a ter que + infinitivo, consideramos

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igualmente os resultados dos seguintes grupos de fatores: o tipo sintático e o tipo de processo

codificado por V2 e as propriedades semântico-discursivas do contexto111

que, embora não

selecionados, apontam tendências que permitem delimitar com maior precisão os contextos de

resistência da construção ter de + infinitivo.

Nas seções seguintes, focalizamos, em primeiro lugar, as propriedades linguísticas

associadas às construções em estudo. A variável gênero do discurso será discutida na última

seção.

6.1 Valores modais das construções com ter

A análise multivariacional aponta o valor modal expresso pelas perífrases como o

aspecto de maior relevância estatística, com o nível de significância 0.03, para a variação

entre ter que + infinitivo e ter de + infinitivo na modalidade escrita. Na seção 5.2,

comparando a amostra Censo 1980 com a amostra Censo 2000, evidenciamos um certo

afastamento da construção ter que + infinitivo dos domínios extrínseco e deôntico com alvo

no participante para o domínio deôntico com alvo no evento, indicando, portanto, um certo

enfraquecimento do valor modal dessa perífrase (cf. COATES, 1980). Constatamos, também,

nas duas sincronias, que o uso epistêmico de ter que + infinitivo é mais incipiente e, ainda,

que as raras ocorrências da perífrase ter de + infinitivo, encontradas na modalidade falada, se

distribuem pelos diferentes valores modais, sem predomínio de um deles.

De forma semelhante ao observado na modalidade falada, na modalidade escrita,

tanto a construção ter que + infinitivo como a construção ter de + infinitivo podem ser usadas

em domínios modais distintos (extrínseco, deôntico e epistêmico) e podem, também, incidir

sobre alvos diferentes (participante, evento e proposição). Utilizando aqui a mesma

classificação adotada para os dados de fala, exemplificamos de (111) a (116) os diferentes

valores modais expressos pelas duas construções:

111

Observamos que, no arquivo de células, os grupos de fatores propriedades modo-temporais do verbo ter e

presença de elementos intervenientes, considerados na modalidade falada, não sinalizam maior diferença entre

ter que + infinitivo e ter de + infinitivo, por tal razão não serão discutidos neste capítulo.

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Modalidade extrínseca orientada para o participante

(111) Sempre vou para o trabalho pela Rua Voluntários da Pátria e várias vezes

tenho de atravessar para não pisar em esgoto ou evitar que este

respingue quando carros passam. (Carta do leitor - O Globo - 15-03-04)

Em (111), o enunciador, ou participante animado, nos termos de Olbertz (1998), vê-

se na necessidade de atravessar a rua Voluntários da Pátria, motivado por circunstâncias

externas explícitas: não pisar em esgoto ou evitar que este respingue quando carros passam.

Trata-se, portanto, de uma contingência independente da vontade do falante, mas que a ele se

impõe de forma imperiosa.

Modalidade extrínseca orientada para o evento

(112) Ontem, houve neblina o dia todo e o Aeroporto Tom Jobim teve que

operar de manhã e à tarde com o auxílio de aparelhos. O Aeroporto

Santos Dumont também funcionou com a ajuda de aparelhos até as

13h53m, quando fechou para decolagens. (Notícia/Reportagem - O Globo - 25-

09-02)

Em (112), a ocorrência do EsC é circunstancialmente necessária, ou seja, é a

circunstância do tempo que determina a necessidade de o Aeroporto Tom Jobim operar com o

auxílio de aparelhos. Neste caso, a necessidade expressa pela construção ter que + infinitivo

não incide sobre um determinado participante, mas sobre o próprio ECs descrito.

Modalidade deôntica orientada para o participante

(113) Para defender a seleção do Qatar, Aílton, natural da Paraíba, terá de

renunciar a sua cidadania brasileira. Ele não parece preocupado com

as possíveis críticas que venha a receber.

- Não vejo nada demais. O Paulo Rink, por exemplo, adotou a cidadania

alemã para jogar na seleção da Alemanha - lembrou o brasileiro. (Notícia/Reportagem - O Globo - 04-03-04)

Em (113), o participante (Aílton) vai ser obrigado a renunciar a sua cidadania

brasileira devido à imposição de normas que permitem ou não a um jogador integrar-se a uma

seleção de futebol. Nesse caso, o participante encontra-se sob a obrigação de se engajar no

evento designado pelo predicado.

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Modalidade deôntica orientada para o evento

(114) Os grandes bancos estão divulgando, mais uma vez, lucros espetaculares,

fruto da cobrança de juros e tarifas extorsivos sob o olhar complacente

das autoridades. As pessoas, impotentes, não conseguem escapar dessa

armadilha. Hoje, na planilha de pagamentos mensais obrigatórios, além

de aluguel, luz, água, gás, telefone, tem que adicionar uma previsão

para as tarifas bancárias. (Carta do leitor - O Globo - 25-02-04)

Em (114), a ocorrência do EsC, adicionar uma previsão para as tarifas bancárias,

precedida pelo modalizador tem que é considerada obrigatória pelo enunciador, devido às

normas do sistema bancário vigente em nosso país. A obrigação, nesse caso, não incide sobre

um determinado participante, mas representa regras gerais, característica das construções

impessoais, que devem ser cumpridas pelas pessoas que possuem uma conta bancária.

Modalidade epistêmica orientada para o evento

(115) Afinal, só foi possível aquela segunda-feira de terror porque os lojistas e

a população colaboraram com os bandidos – por medo, bem entendido.

Assistia-se ao estertor do monstro contrariado, sabendo-se que tem que

ser assim: a polícia precisa endurecer, mesmo que haja novos esperneios

da bandidagem. (Crônica – O Globo - 05-10-02)

Em (115), a ocorrência do EsC é apresentada como inevitável: tem que ser assim. A

construção ter que + infinitivo constitui uma conclusão possível, a partir de evidências

compartilhadas, explicitadas no uso do verbo saber: sabendo-se que, ou seja, é sabido por

todos que tem que ser assim. Interpretada dessa forma, a construção opera no domínio

epistêmico orientado para o evento, visto que o cronista avalia o EsC do ponto de vista do seu

próprio conhecimento da realidade.

Modalidade epistêmica orientada para a proposição

(116) O Cruzeiro é um clube que tem de ser levado a sério pelo simples fato

de levar o futebol a sério. Já nem falo dos cuidados com que se dedica a

manter em níveis razoavelmente equilibrados as suas finanças. Nem vou

aqui elogiar o que é de conhecimento público, a sofisticada, luxuosa e

eficiente infra-estrutura de seu departamento de futebol. (Artigo de opinião –

Extra - 18-12-03)

Em (116), o sujeito enunciador compromete-se, subjetivamente, com a verdade da

proposição que representa a sua visão e crença. Diz respeito ao grau de comprometimento do

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sujeito enunciador com relação à proposição que ele apresenta, ou seja, o cruzeiro é um time

que tem de ser levado a sério, com base na afirmação (um argumento, no caso) de que se trata

de um clube que leva o futebol a sério. Subjaz, portanto, ao raciocínio construído pelo

articulista um raciocínio que poderia ser reconstruído, como: o futebol é uma coisa séria, o

Cruzeiro leva o futebol a sério, portanto, o Cruzeiro tem de ser levado a sério.

Uma análise inicial, considerando as frequências e os pesos relativos, mostra

resultados um pouco diferenciados da modalidade falada para o uso de ter que + infinitivo

correlacionado ao domínio modal, como os apresentados na tabela 32:

Tabela 32 – Uso de ter que + infinitivo de acordo com domínio modal e alvo.

Domínio modal e alvo Frequência PR

Extrínseco → participante 38/49 = 77% .73

Extrínseco → evento 2/2 = 100% -

Deôntico → participante 12/21 = 57% .48

Deôntico → evento 5/9 = 55% .41

Epistêmico → evento 13/25 = 52% .38

Epistêmico → proposição 24/51 = 47% .34

Total 94/157 = 59% Input = .61

De acordo com a tabela 32, o uso de ter que + infinitivo é nitidamente favorecido,

tanto em termos de frequência quanto de peso relativo, no domínio inerente extrínseco

orientado para o participante, com PR .73, tornando-se categórico no caso de a obrigação

incidir sobre o evento. No domínio deôntico, independentemente do alvo considerado, há

maior variabilidade entre ter que + infinitivo e ter de + infinitivo (PR .48 e .41). No domínio

epistêmico, quer orientado para evento (PR .38) ou para a proposição (PR .34), a construção

ter que + infinitivo é suplantada pela construção ter de + infinitivo. Há, indicações, portanto,

de uma distribuição diferenciada para as duas construções modais com ter na modalidade

escrita.

Na modalidade falada, como ficou evidenciado na seção 5.2, os resultados

demonstraram um enfraquecimento da força modal da construção ter que + infinitivo, no

sentido de necessidade [+forte] no domínio extrínseco com alvo no participante (cf. amostra

Censo 1980) para obrigação [-forte] no domínio deôntico com alvo no evento (cf. amostra

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Censo 2000). Na modalidade escrita, ter que + infinitivo conserva o seu valor de necessidade

[+forte], visto que o domínio inerente extrínseco com alvo no participante favorece,

predominantemente, o seu uso.

Ao indicar que a maior variação entre as duas construções se instaura,

principalmente, no domínio deôntico, esses resultados vão ao encontro dos resultados do

capítulo 5 (seção 5.2, tabela 4), que mostram um certo deslocamento de ter que + infinitivo

dos domínios extrínseco e deôntico orientado para o participante (cf. amostra Censo 1980)

para o deôntico orientado para o evento (cf. amostra Censo 2000) e, na medida em que as duas

construções estabelecem maior competição no domínio deôntico, a construção ter de +

infinitivo desloca-se para a expressão de valores epistêmicos.

Considerando os pontos acima ressaltados, há indicação de que a dimensão domínio

é mais relevante do que alvo, o que se confirma nos resultados da tabela 33:

Tabela 33 – Uso de ter que + infinitivo de acordo com o domínio modal.

Domínio Modal Freq. (%) PR

Extrínseco 40/51 = 78% .86

Deôntico 17/30 = 56% .40

Epistêmico 37/76 = 48% .25

Total 94/157 = 59% Input = .68

Corroborando a tendência delineada na tabela 32, na tabela 33, a construção ter que

+ infinitivo particulariza-se pela associação com a modalidade extrínseca, com o PR .86, ou

seja, naqueles contextos em que uma circunstância externa se impõe sobre a realização de um

EsC. No domínio da modalidade deôntica, ou seja, nos contextos em que a obrigação envolve

a convocação de normas, regras ou procedimentos aceitos como indiscutíveis, verifica-se,

aparentemente, maior recorrência da construção ter de + infinitivo, como indica o PR .40 para

ter que + infinitivo. É necessário considerar, porém, que o valor percentual associado a este

domínio modal sinaliza uma certa predominância da construção ter que + infinitivo, mas

configurando o que se viu na tabela 32, ou seja, um espaço maior de variação.

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185

No domínio da modalidade epistêmica, ou seja, nos contextos em que a apresentação

do EsC envolve maior subjetividade, um julgamento do enunciador/escritor, confirma-se a

maior probabilidade de ocorrência da construção ter de + infinitivo, com PR .25.

De forma geral, o que os resultados acima indicam é que, embora as construções ter

de/que + infinitivo possuam um ponto de interseção nos seus empregos deônticos, elas se

distinguem em termos do grau de envolvimento do enunciador com a obrigatoriedade e/ou

necessidade de realização do EsC (cf. PAIVA & BARROS, 2011). Retomando aqui o

continuum de força modal, proposto na seção 5.2 e defendido por Paiva & Barros (op. cit.),

podemos esquematizar as diferenças entre as duas construções da seguinte forma:

Quadro 7 – Continuum de força modal.

Domínio Extrínseco Domínio deôntico Domínio epistêmico

+ externa + externa - externa

envolvimento 0 envolvimento 1 envolvimento 2

ter que + infinitivo ter que/ter de + infinitivo ter de + infinitivo

O esquema apresentado no quadro 7 sugere que, na modalidade escrita,

diferentemente do que se verifica na modalidade falada, há uma certa especialização das duas

construções: ter de + infinitivo se associando ao domínio epistêmico e ter que + infinitivo ao

domínio extrínseco. Nesse sentido, a sobrevivência da construção ter de + infinitivo na

modalidade escrita é possível graças a uma distribuição funcional entre as duas construções

com ter: ter de + infinitivo empreendendo uma trajetória de maior subjetivização.

Nas seções seguintes, vamos discutir algumas das propriedades já consideradas no

capítulo 5, com o objetivo de verificar em que medida elas motivam a variação constatada na

modalidade escrita. Partimos da hipótese de que a expansão da construção ter que + infinitivo,

em detrimento de ter de + infinitivo, reflete os contextos que caracterizam sua larga extensão

na modalidade falada. Acreditamos que, dessa forma, será possível depreender os traços mais

pertinentes à construção ter de infinitivo que possam explicar sua resistência na modalidade

escrita.

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186

6.2 Traços semânticos do sujeito

Como já mostramos na seção 5.4.1, os traços semânticos do sujeito se associam de

forma significativa com a construção ter que + infinitivo. Do ponto de vista do tempo real de

curta duração, constatamos que essa construção, mesmo que ainda esteja mais concentrada em

orações com sujeito [+humano] (cf. tabela 13, seção 5.4.1), generaliza-se para os contextos de

sujeito arbitrário, ou seja, afasta-se, gradativamente, da configuração prototípica dos verbos

modais que, por princípio, requerem sujeito [+humano] e agentivo. A questão é se esse

comportamento se mantém na concorrência com ter de + infinitivo.

Os resultados obtidos na análise multivariacional apontam os traços semânticos do

sujeito como um grupo de fatores relevante para a alternância entre ter de + infinitivo e ter

que + infinitivo. Esse grupo foi o segundo selecionado em todas as análises realizadas, com

nível de significância 0.02. Os resultados estão expostos na tabela 34112

:

Tabela 34 – Uso de ter que + infinitivo de acordo com os traços

semânticos do sujeito.

Traços sem. do sujeito Frequência PR

Humano 46/77 = 59% .44

Coletivo humano 14/32 = 43% .38

Abstrato 10/18 = 55% .34

Arbitrário 12/13 = 92% .92

Oração sem sujeito 01/02 = 50% .53

Referência estendida 03/05 = 60% .72

Total 86/147 = 58% Input = .61

Apesar do desequilíbrio no número de dados por célula, algumas tendências

ressaltam na tabela 34. Destaca-se, em primeiro lugar, o favorecimento da construção ter que

+ infinitivo em orações com sujeito arbitrário, com PR .92, confirmando a distribuição

observada para o uso de ter que + infinitivo na modalidade falada. Na mesma direção se

situam os sujeitos de referência estendida (PR .72) e as orações sem sujeito (PR .53). Os

112 Desta tabela, assim como da tabela 35, estão excluídos os dados de sujeito animado não-humano, porque não

houve ocorrências com a construção ter que + infinitivo (0/2), assim como as ocorrências categóricas com

sujeito inanimado (8/8).

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sujeitos abstratos e os coletivos animados destacam-se como os que mais desfavorecem a

construção ter que + infinitivo, com PR .34 e .38, respectivamente. Os sujeitos [+humano] se

situam em posição intermediária, sinalizando maior variação entre as duas construções

modais com ter (PR .44).

A ocorrência predominante da construção ter que + infinitivo em orações com sujeito

arbitrário vai ao encontro da constatação de que a perífrase ter que + infinitivo está associada

a uma necessidade externa, independente da vontade do falante. Dada a natureza do sujeito

arbitrário, a imposição origina-se de uma fonte que não pode ser identificada, investindo-se

de um caráter de generalidade que a valida por si mesma. Assim, há indicações mais claras de

que a variante ter que + infinitivo se associa ao descomprometimento do enunciador com o

EsC descrito, como em:

(117) Tem que se mostrar a diferença entre povo marginal e povo

marginalizado, aquele que vive nas favelas e repudia - de boca fechada -

o tráfico de drogas. (Carta do leitor - O Globo - 07-03-04).

Em (117), embora o enunciador esteja convencido sobre a veracidade de sua

proposição, ao usar o verbo ter na terceira pessoa do singular, com sujeito indeterminado

através do clítico se, indica o seu descomprometimento ou não envolvimento com o EsC

descrito, visto que não se pode identificar a fonte da obrigação, pois ela se impõe por si

mesma.

Correspondendo a essa tendência, a variante ter que + infinitivo é fortemente

desfavorecida em orações com sujeito coletivo animado. Se há um grupo maior de pessoas,

pode-se imaginar que há um aumento no grau de agentividade do sujeito e, portanto, no grau

de comprometimento/envolvimento do enunciador com o EsC, como mostra o exemplo (118):

(118) O povo tem de levantar a cabeça e começar a botar para fora todos

esses políticos profissionais e cafajestes que estão por aí. Está na hora

de o povo enxergar melhor e votar com real maturidade. (Carta do leitor - JB

- 04-03-04)

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Para verificar essas tendências de forma mais precisa, apresentamos, na tabela 35, o

comportamento das duas construções, correlacionando domínios modais e traços semânticos

do sujeito113

:

Tabela 35 – Interação entre domínio modal e traços semânticos do sujeito.

Traços semânticos

do sujeito

Domínio modal

Extrínseco Deôntico Epistêmico

Humano/Col. Hum. 31/42 = 74% 07/18 = 39% 22/51 = 43%

Abstrato 01/01 = 100% 01/01 = 100% 08/16 = 50%

Referência estendida 00/00 = 0% 01/03 = 33% 02/02 = 100%

Arbitrário 03/03 = 100% 06/06 = 100% 03/04 = 75%

Oração sem sujeito 00/00 = 0% 00/00 = 0% 01/02 = 50%

Os resultados da tabela 35 apontam algumas associações interessantes. O primeiro

aspecto a ressaltar é a predominância de sujeito humano e coletivo humano em todos os

domínios modais. No entanto, é no domínio extrínseco que se torna mais saliente a ocorrência

de ter que + infinitivo com sujeitos humano e coletivo humano (74%), uma correlação já

evidenciada na análise da fala em tempo real (cf. tabelas 14 e 15, seção 5.4.1). O uso de ter

que + infinitivo com sujeitos humano e coletivo humano se reduz no domínio epistêmico

(43%) e torna-se, ainda mais restrito, na modalidade deôntica (39%).

Considerando a modalidade escrita, essa distribuição funcional entre as duas

construções mantém para ter que + infinitivo o seu valor de obrigação mais imperiosa. Nesse

caso, pode-se dizer que o uso dessa construção na modalidade escrita é mais conservador,

visto que retém o valor que lhe é considerado inerente.

Outro ponto a destacar, na tabela 35, é que a associação entre ter que + infinitivo e

sujeito arbitrário se manifesta em todos os domínios: ocorre categoricamente nos domínios

extrínseco e deôntico e alcança um índice relevante no domínio epistêmico (75%). Podemos

observar, inclusive, que a ocorrência de sujeito arbitrário em todos os domínios modais

constitui outra característica da construção ter que + infinitivo, conforme tendências já

verificadas nas amostras Censo 1980 e 2000 (cf. tabelas 14 e 15, seção 5.4.1), constituindo um

recurso através do qual o sujeito deixa de ser a fonte da imposição que se coloca sobre um EsC.

113

Na tabela 35, não foram considerados os dados categóricos, ou seja, o contexto de sujeito inanimado, assim

como a não ocorrência de sujeito animado não-humano. Os dados de sujeito coletivo humano foram

amalgamados aos de sujeito humano.

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6.3 Desinências número-pessoais do verbo ter

Como já vimos no capítulo 5 (seção 5.3.2,), é inevitável uma certa superposição entre

traços semânticos do sujeito e suas propriedades número-pessoais, visto que sujeitos

arbitrários correspondem à terceira pessoa do singular. Constatamos, também (cf. tabela 10),

que a construção ter que + infinitivo ocorre, predominantemente, nas duas sincronias, em

orações com sujeito de terceira pessoa do singular. Podemos esperar uma tendência similar na

modalidade escrita, por duas razões: a) como vimos acima, a perífrase ter que + infinitivo é

favorecida em contextos de sujeito [+arbitrário]; b) como ter de + infinitivo é favorecida em

contextos de sujeitos com o traço [+humano], podemos esperar que ela estenda seus contextos

para a primeira pessoa do singular.

Os resultados da tabela 36114

confirmam o controle da variação entre ter que +

infinitivo e ter de + infinitivo na modalidade escrita pelos traços gramaticais do sujeito. (Essa

variável é selecionada em terceiro lugar, com nível de significância 0.036):

Tabela 36 – Uso da construção ter que + infinitivo de acordo

com a pessoa gramatical do verbo ter.

Pessoa gramatical Frequência PR

1a. pessoa do singular 9/19 = 47% .27

3a. pessoa do singular 54/82 = 65% .52

1a. pessoa do plural 14/20 = 70% .61

3a. pessoa do plural 17/35 = 48% .51

Total 94/156 = 60% Input=61

Segundo os resultados da tabela 36, a primeira pessoa do plural tende a favorecer o

uso da construção ter que + infinitivo, com PR .61. Considerando que a primeira pessoa do

plural pode expressar impessoalidade, descompromissando o enunciador com o EsC descrito,

essa tendência poderia estar seguindo a mesma direção da que foi observada no grupo

anterior, ou seja, constituindo estratégias para evitar a identificação da fonte de imposição.

Verificamos que esse não é o caso, visto que das 14 ocorrências com ter que + infinitivo na

114

Na distribuição da tabela 36 foi excluída a 2ª. pessoa do singular, pelo fato de apresentar apenas uma

ocorrência com ter de + infintivo (0/1): Perguntei a ela se sabia que ali existia um sinal para bicicletas: “Sei sim,

mas é você quem tem de olhar dos dois lados”, respondeu. (Carta do leitor – O Globo – 23-02-04)

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primeira pessoa do plural, apenas 02 correspondem ao nós impessoal. Porém, é preciso

relativizar esse resultado, considerando que essas ocorrências concentram-se, principalmente,

no gênero notícia/reportagem. É comum encontrarmos nesse gênero relatos de fragmentos de

fala alheia, estratégia utilizada pelo enunciador, nos termos de Cunha (2005, p.179), “para

marcar uma posição discursiva ou para tornar a informação mais verdadeira”. Nesse sentido, a

maioria das ocorrências corresponde à fala de um técnico de futebol que utiliza a primeira

pessoa do plural para se dirigir aos jogadores e/ou ao trabalho em equipe.

A primeira pessoa do singular, com PR .27, desfavorece o uso de ter que + infinitivo

e a terceira pessoa do singular (PR .52) e do plural (PR .51) apresentam tendência similar,

indicando maior variabilidade entre as duas construções. Nesse sentido, as duas modalidades

se distinguem, pois, na modalidade falada, pudemos atestar maior instanciação da construção

ter que + infinitivo com sujeitos de terceira pessoa do singular. A distinção mais contundente

entre as modalidades falada e escrita reside, porém, na recorrência da construção ter que +

infinitivo na primeira pessoa do plural, principalmente nos contextos em que é possível

identificar os sujeitos incluídos no pronome nós, como mostra o exemplo (119):

(119) De acordo com o volante Marcão, o time precisa se comunicar mais em

campo.

- É preciso conversar bastante dentro e fora do campo. No jogo, além de

melhorar o posicionamento, temos que nos falar mais, um com o outro.

Quando um jogador subir ao ataque, por exemplo, vira para o outro e pde

cobertura – comentou. (Notícia/reportagem – JB – 05-03-04)

Com o objetivo de verificar a possível intersecção entre as desinências número-

pessoais do verbo ter e o domínio modal, procedemos ao cruzamento dessas duas variáveis,

como mostra a tabela 37:

Tabela 37 – Interação entre domínio modal e pessoa gramatical do verbo ter.

Pessoa gramatical do

verbo ter

Domínio modal

Extrínseco Deôntico Epistêmico

1a. pessoa do singular 07/11 = 64% 02/05 = 40% 00/03 = 0%

3a. pessoa do singular 16/22 = 73% 14/21 = 67% 24/40 = 60%

1a. pessoa do plural 07/07 = 100% 00/00 = 0% 07/13 = 54%

3a. pessoa do plural 10/11 = 91% 01/04 = 25% 06/20 = 30%

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A tabela 37 indica diferenças no uso de ter que + infinitivo de acordo com a

correlação entre domínio modal e propriedades número-pessoais do verbo ter. No seu valor

extrínseco essa construção tende a ser predominante com todas as pessoas gramaticais, sendo

categórica com a primeira pessoa do plural e alcançando 91% com sujeitos de terceira pessoa

do plural. Reduz sua incidência apenas com a primeira pessoa do singular (64%).

No valor deôntico da construção ter que + infinitivo, observam-se algumas alterações

no uso de ter que + infinitivo que predomina apenas com sujeitos na terceira pessoa do

singular (67%). Por outro lado, na primeira pessoa do singular e na terceira pessoa do plural,

há maior predomínio da construção ter de + infinitivo, embora seja necessário relativizar

esses resultados em função do número reduzido de ocorrências.

No domínio epistêmico, a construção ter que + infinitivo tende a ser mais recorrente

com sujeitos de terceira pessoa do singular (60%), seguido da primeira pessoa do plural

(54%). Nesse domínio, observa-se, ainda, na tabela 37, uma forte redução de ter que +

infinitivo na terceira pessoa do plural (30%) e a sua ausência com sujeitos de primeira pessoa.

Os resultados apresentados na tabela 37, em relação aos domínios deôntico e

epistêmico, são similares aos que foram encontrados na modalidade falada. Nesses domínios,

tanto na amostra Censo 1980 quanto na amostra Censo 2000, a construção ter que + infinitivo

é mais recorrente na terceira pessoa do singular. A diferença entre as duas modalidades recai

no domínio extrínseco, em que há maior recorrência da primeira pessoa do singular, na

modalidade falada, e de terceira pessoa do plural na modalidade escrita.

Na correlação entre domínios modais e pessoa gramatical do verbo ter, o fato mais

revelador que pode ser extraído da tabela 37 é a distribuição diferenciada entre as construções

ter que + infinitivo e ter de + infinitivo. No domínio deôntico, ter que + infinitivo é mais

recorrente na terceira pessoa do singular (conforme tendências já detectadas na modalidade

falada) e ter de + infinitivo, na terceira pessoa do plural. No domínio epistêmico, por sua vez,

o uso de ter de + infinitivo é categórico na primeira pessoa do singular e predomina na

terceira do singular.

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6.4 Tipo sintático de V2

Como vimos no capítulo 3, um ponto considerado distintivo entre as duas

construções modais com ter envolve o tipo sintático do verbo no infinitivo (V2): transitivo

nas construções com ter que e transitivo/intransitivo nas construções com ter de (cf. ROCHA

LIMA, 2008, p. ; ALMEIDA, 1979, p. 243). Na análise da modalidade falada, essa distinção

revela-se inoperante, pois, como vimos na seção 5.4.2, a construção ter que + infinitivo,

embora predomine, nas duas sincronias (cf. tabela 16), com verbos de dois argumentos

(estrutura transitiva), pode também ocorrer com verbos monoargumentais e de ligação.

Assim como na modalidade falada, na modalidade escrita, as duas construções

modais com ter podem ocorrer com diferentes tipos sintáticos de verbos, como mostram os

exemplos de (120) a (125):

Verbo de um argumento

(120) O Brasil será sede dos Jogos Pan-Americanos de 2007. Para ir mais

longe e conquistar o direito de realizar os Jogos Olímpicos de 2012 e a

Copa do Mundo de 2014 vai ter que trabalhar muito. Como estão hoje,

muito poucos passariam pelo caderno de encargos da Fifa e do COI. (Editorial – JB - 02-06-03)

(121) A estatística e a organização do crime marcam a nova etapa em que as

instituições policiais terão de trabalhar em conjunto e aproveitar a

experiência de outras nações em que prevaleceu finalmente a lei. (Editorial

- JB - 07-06-03)

Verbo de dois argumentos

(122) Quando tirar a estrelinha do PT da lapela e colocar no lugar o símbolo da

República, assumindo oficialmente como presidente de todos os

brasileiros, Lula terá que controlar os seus radicais, que a esta altura já

devem estar incomodados com sua coreografia presidencial que o

aproxima do povo, mas vai abrindo um fosso que o separa dos militantes. (Artigo de opinião - O Globo - 03-11-03)

(123) Temos de consolidar nossos ganhos. Eles serão efetivos a partir do

nosso empenho em participar ativamente da vida pública. (Crônica – JB -

08-03-04)

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Verbo de ligação

(124) Toda política tem que ser ética, o que lhe dá a sua superioridade moral

e lhe multiplica a força. (Artigo de opinião – JB - 07-03-04)

(125) Ou seja, todos precisam ser iguais perante a nova previdência;o teto da

seguridade oficial tem de ser comum a todos, e acima dele as

complementações deverão sair de fundos de pensão constituídos para tal. (Editorial - O Globo - 16-01-03)

Pressupondo que a modalidade escrita seja mais controlada por prescrições

normativas, podemos esperar que, nessa modalidade, a construção ter que + infinitivo seja

preponderante com as formas verbais transitivas e que ter de + infinitivo ocorra, mais

frequentemente, com formas verbais transitivas ou intransitivas.

Os resultados da tabela 38 fornecem evidências fracas para a hipótese colocada, pois,

também, na modalidade escrita, sinalizam o espraiamento considerável de ter que através de

formas verbais infinitivas transitivas, intransitivas e de ligação:

Tabela 38 – Uso de ter que + infinitivo de acordo com o tipo sintático de V2.

Tipo de verbo Frequência

Monoargumental 12/24 = 50%

Com dois ou + argumentos 74/120 = 61%

De ligação 08/13 = 61%

Total 94/157 = 59%

Os resultados da tabela 38 mostram fraca correlação entre a construção ter que +

infinitivo e o tipo sintático de verbo: essa construção é igualmente recorrente com verbos de

dois ou mais argumentos e com verbos de ligação (61%). No entanto, observa-se sua redução

com verbos de um argumento (50%), que se destaca como o contexto que pode admitir

variabilidade entre ter que + infinitivo e ter de + infinitivo.

A distribuição observada na escrita reitera o que foi constatado na modalidade falada

para a recorrência da construção ter que com verbos transitivos e de ligação. A possibilidade

de variação com verbos intransitivos é uma evidência favorável ao pressuposto de que,

embora as duas construções tenham se originado de forma independente (cf. SAID ALI,

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1966b), a construção ter que + infinitivo “invade” o contexto mais característico de ter de +

infinitivo, anulando uma parte considerável das diferenças entre as duas construções.

A recorrência da construção ter que + infinitivo com os verbos de ligação tem que

ser relativizada devido ao número mais escasso de dados. Entretanto, diferenciando da

modalidade escrita, na modalidade falada, tanto na amostra Censo 1980 quanto na amostra

Censo 2000, o verbo de ligação é o contexto menos propiciador dessa construção (cf. tabela

16, seção 5.4.2). Como observamos nos dados da amostra de fala, o verbo de ligação

corresponde principalmente ao verbo ser, indicativo de estado permanente, que se presta bem

à expressão de generalizações ou verdades indiscutíveis. Esse grupo de fatores fornece,

portanto, índices adicionais de uma confluência de traços mais diretamente associados à

construção ter que + infinitivo: ela está mais fortemente associada a uma restrição/condição

que o enunciador situa como irrecusável em razão de sua natureza geral e um tanto

axiomática. Quanto ao uso da construção ter de + infinitivo, na amostra escrita, verificamos

que ela se associa tanto ao verbo ser (03 ocorrências) quanto ao verbo estar (02 ocorrências),

possuindo, portanto, maior flexibilidade.

6.5 Tipo de processo de V2

Uma das características depreendida para as construção ter que + infinitivo na

modalidade falada é a sua associação com predicadores que codificam processos materiais

(cf. seção 5.4.3, tabela 18). Apesar de ocorrências escassas, essa mesma correlação foi

observada também para a construção ter de + infinitivo na amostra Censo 2000, sugerindo

que a recorrência desse processo constitui uma propriedade inerente a essas construções. No

que se refere à modalidade escrita, podemos pressupor uma distribuição semelhante, se

mantivermos a hipótese mais geral de que a expansão de ter que + infinitivo, na escrita, se dá

de acordo com os constextos predominantes dessa construção na modalidade falada.

Os resultados expostos na tabela 39 indicam, no entanto, correlações um pouco

distintas da modalidade falada entre o tipo de processo e o uso das construções modais com

ter:

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Tabela 39 – Uso de ter que + infinitivo de acordo com

o tipo de processo de V2.

Tipo de processo de V2 Frequência

Material 35/62 = 56%

Mental 04/11 = 36%

Relacional 27/39 = 69%

Verbal 01/03 = 33%

Comportamental 16/23 = 69%

Existencial 01/02 = 50%

Verbo suporte 10/17 = 58%

Total 94/157 = 59%

A distribuição bastante desequilibrada dos dados na tabela 39 impõe cautela nas

conclusões. No entanto, podemos observar que a construção ter que + infinitivo é mais

recorrente com verbos do tipo comportamental e relacional, ambos com frequência de 69%.

Considerando que verbos que codificam processos comportamentais podem abranger tanto

comportamento físico quanto psíquico, indicando que o participante, aquele que se comporta

(behaver), um ser consciente, realiza processos também no âmbito dos processos materiais

(processo do fazer), tais características podem estar contribuindo para a maior recorrência de

ter que com verbos nesse tipo de processo. Em outros termos, a obrigação/necessidade se

impõe sobre uma ação material e psíquica. A associação entre ter que e verbos relacionais

confirma a tendência já verificada para os verbos de ligação (cf. seção 5.4.3, tabela 18).

A variabilidade entre as duas construções recai nos processos do tipo material (56%)

e existencial (50%), o que pode ser tomado como uma indicação da forma de expansão de ter

que na modalidade falada. Os exemplos de (126) a (129) demonstram a variação entre as duas

construções nesses tipos de processos:

Processo material

(126) Temendo a violência do Rio, alguns parentes da corretora de imóveis

Juçara Dias Menez já tinham decidido se mudar para Cabo Frio, na

Região dos Lagos. Ontem, eles tiveram que voltar à cidade, para

acompanhar o enterro dela, no Cemitério de Irajá. (Notícia/Reportagem -

Extra - 04-06-03)

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(127) É preciso ver que as favelas são como as cidades medievais, onde ruelas

serpenteiam apertadas entre os barracos geminados, formando um

labirinto que só favorece o bandido que se esconde. Por outro lado, essa

proteção que beneficia o bandido expõe, de um lado, o habitante honesto

e trabalhador e, de outro, o policial que sobe o morro debaixo dos tiros

dos bandidos e tem de atirar para se defender. (Carta do leitor - O Globo -

07-03-04)

Processo existencial

(128) Tem que ter alguém com coragem suficiente para tomar esta iniciativa.

O dinheiro que se perde com a fuga de turistas e negócios da cidade e do

estado é muito maior do que o investimento necessário para esta ação. (Carta do leitor - O Globo - 07-03-04)

(129) O treinador fez críticas aos defensores do Fluminense. Segundo Ricardo

Gomes, os zagueiros falharam muito na cobertura dos laterais.

- Não dá para culpar o Júnior César, por exemplo, porque perdeu a bola

no primeiro gol. Tem de haver uma cobertura bem feita. (Notícia/Reportagem - JB - 08-03-04)

O processo do tipo existencial, devido ao número escasso de dados, não nos permite

fazer nenhuma conjectura. Os menores índices para ter que são observados com predicadores

do tipo mental (36%) e verbal (33%). Embora nesses dois casos o baixo número de

ocorrências dificulte conclusões mais definitivas, indiciam serem estes os contextos de maior

resistência da construção ter de + infinitivo, como em:

Processo Mental

(130) Se quiserem acabar com o cancro que é a Rocinha e similares, temos de

pensar em criar leis de exceção, próprias a um estado de guerra. (Carta

do leitor - JB - 20-04-04)

Processo Verbal

(131) - Estava parado, o Vasco me contratou e eu salvei o clube do

rebaixamento no Brasileiro de 2002. Ano passado, fiz gols que também

salvaram o time do rebaixamento e fui campeão carioca. Só tenho de

dizer que estou aí - desabafou o jogador. (Notícia/Reportagem - JB 08-03-04)

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197

Uma análise mais aprofundada dessa questão requer, no entanto, considerar o

possível cruzamento entre o tipo de processo de V2 e o valor modal expresso pelas perífrases

com ter, conforme a tabela 40115

:

Tabela 40 – Interação entre domínio modal e tipo de processo de V2.

Tipo de processo de

V2

Domínio modal

Extrínseco Deôntico Epistêmico

Material 20/26 = 77% 04/13 = 31% 11/23 = 48%

Mental 00/00 = 0% 01/02 = 50% 03/09 = 33%

Relacional 10/11 = 91% 06/07 = 86% 11/21 = 52%

Comportamental 04/07= 57% 05/06 = 83% 07/10 = 70%

Total 34/44 = 77% 16/28 = 57% 32/63 = 51%

A tabela 40 revela uma correlação diferenciada entre o tipo de processo e o valor

modal das perífrases com ter. No domínio extrínseco, a construção ter que + infinitivo é

significativamente mais recorrente com predicadores do tipo relacional (91%), seguida dos

predicadores do tipo material (77%). Nesse domínio, não há nenhuma ocorrência de

predicadores do tipo mental e os do tipo comportamental (57%) possibilitam a alternância

entre as duas construções.

No domínio deôntico, a construção ter que + infinitivo é mais recorrente com

processos do tipo relacional (86%) e comportamental (83%). O baixo número de ocorrências

de predicadores do tipo mental não nos permite considerá-los pertinentes. Destaca-se, ainda, o

comportamento particular dos predicadores do tipo material, que favorecem maior ocorrência

de ter de + infinitivo (31%) no domínio deôntico.

No domínio epistêmico, a construção ter que + infinitivo é mais recorrente com

predicadores do tipo comportamental (70%). Nesse domínio, a alternância entre as duas

construções ocorre com o tipo de predicador relacional (52%) e material (48%) e a

construção ter de + infinitivo predomina com os predicadores do tipo mental (33%).

Os resultados da tabela 40 indiciam, portanto, comportamentos diferenciados e

grande flexibilidade no uso dessas construções, quando associadas aos tipos de processo e

tipos de domínio modal.

115

Devido ao número mais escasso de dados, excluímos da tabela 40 os processos do tipo verbal e do tipo

existencial.

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198

Comparando as duas modalidades, podemos dizer que a menor flexibilidade é

encontrada na modalidade falada (cf. seção 5.4.3), visto que nessa modalidade evidenciou-se,

tanto na amostra Censo 1980 (cf. tabela 19) quanto na amostra Censo 2000 (cf. tabela 20),

maior recorrência de uso da construção ter que + infinitivo em orações com predicadores do

tipo material, dispersando-se, porém, nos domínios extrínseco, deôntico e epistêmico. Na

modalidade escrita, como vimos, nesse tipo de processo, ter que tende a ser mais recorrente

no domínio extrínseco; ter de no domínio deôntico, com tendência à variabilidade entre as

duas construções no domínio epistêmico. Portanto, a similaridade entre as modalidades falada

e escrita fica restrita ao uso de ter que + infinitivo no tipo de processo material associado ao

domínio extrínseco.

6.6 Propriedades semântico-discursivas das construções com ter

A relação semântico-discursiva entre as orações com as construções ter de/que +

infinitivo e as orações adjacentes (precedentes ou subsequentes) mostrou-se, como vimos na

análise da modalidade falada, um aspecto fundamental não só para o uso da construção ter

que + infinitivo, como também para a própria determinação do valor modal desta perífrase.

Podemos pressupor que, até certo ponto, a modalidade escrita reflita tendências verificadas na

modalidade falada, como a de forte associação entre ter que + infinitivo no domínio inerente

extrínseco e presença de orações que explicitam condições que tornam o estado de coisas

modalizado como obrigatório. Considerando, porém, a possibilidade de variação entre ter que

e ter de + infinitivo na modalidade escrita, podemos esperar especificidades na forma como o

contexto em que se insere a construção modal esteja correlacionado ao uso das duas

construções.

A tabela 41 mostra a distribuição das orações com a construção ter que + infinitivo116

de acordo com a relação semântico-discursiva entre as orações:

116 Na tabela 41 não foi considerada a única ocorrência de relação de conformidade, por isso o total passa de 157

para 156.

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199

Tabela 41 – Uso de ter que + infinitivo de acordo com

a relação semântica entre as orações.

Relação semântica Freq. %

Condição 10/17 = 58%

Finalidade 24/36 = 66%

Contraste/oposicao 8/18 = 44%

Causa/explicação/consequência/conclusao 12/21 = 57%

Tempo 5/7 = 71%

Especificacao/expansão de SN 4/10 = 40%

Adição 15/23 = 65%

Desvinculada 15/24 = 62%

Total 93/156 = 59%

Os resultados da tabela 41 indicam correlações ligeiramente diferenciadas das que

foram atestadas para a modalidade falada quanto à relação semântica entre orações com as

construções modais com ter e suas adjacentes. Em primeiro lugar, observa-se que nao há

diferença significativa entre os índices para finalidade (66%), tempo (71%), adição (65%) e

as desvinculadas (62%), contextos em que há maior recorrência de ter que + infinitivo. No

outro extremo, com menor índice de ter que + infinitivo, situa-se a relação de contraste (44%)

e as orações que especificam ou expandem um SN (40%). As relações de causa e condição

apresentam índices muito aproximados, 57% e 58%, respectivamente, indicando variabilidade

acentuada entre as duas construções modais com ter nestes contextos.

Em segundo lugar, aproximando-se das frequências associadas às relações

semânticas de finalidade e adição, destaca-se ainda, na tabela 41, as orações que não

estabelecem relação proposicional com nenhuma das orações adjacentes (62%),

diferenciando-se da amostra falada em que se verifica baixa frequência de ter que + infinitivo

nesta situação.

Comparativamente à modalidade falada, é na associação entre ter que + infinitivo e

relação causal/explicativa que se observam as maiores especificidades da modalidade escrita:

enquanto na modalidade falada, a construção ter que + infinitivo está, predominantemente,

correlacionada com esta relação, na modalidade escrita, verifica-se variação acentuada neste

contexto. Esta diferença sugere que esse é, possivelmente, o contexto em que teria se iniciado

a neutralização entre as duas construções, em favor de ter que + infinitivo na modalidade

falada. As diferenças entre as duas modalidades podem ser percebidas também na relação de

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200

contraste/oposição que, na modalidade falada, se associa de forma expressiva com ter que +

infinitivo e, na modalidade escrita, propicia maior ocorrência de ter de + infinitivo, como

mostra o exemplo (132):

(132) – Fiquei muito triste, é claro, com a não classificação do Brasil. Mas

tenho de tocar a minha carreira e o que passou, passou - afirmou o

técnico, de maneira tranqüila e de fala pausada. (Notícia - JB - 06-03-04)

A maior similaridade entre as duas modalidades está na baixa frequência da

construção ter que + infinitivo em orações que especificam ou expandem um SN, orações

adjetivas. Como vimos no capítulo 5 (seção 5.5), há uma redução importante da construção

ter que + infinitivo neste contexto e, na modalidade escrita, ocorre, principalmente, a

construção ter de + infinitivo, como no exemplo (133):

(133) É, parece que o governo venceu mais uma batalha, pois a denúncia do

senador Almeida Lima, com certeza, teve aquele jeitinho que o governo

e o PT têm de mudar as coisas. O PT está com medo de que seus podres

venham a público, pois, com certeza, o que está escondido é mais podre

ainda do que pensamos. (Carta do leitor - JB - 04-03-04)

A predominância de orações com a construção ter de + infinitivo em orações

relacionadas por contraste e nas orações adjetivas pode ser indicativa de que, diferentemente

de ter que + infinitivo, mais frequentemente associada a um contexto atenuador, a construção

ter de + infinitivo coloca uma injunção, sem se preocupar com os seus possíveis efeitos para a

face do interlocutor.

No entanto, é possível pressupor, como já mostramos para a modalidade falada, que

exista uma correlação entre o domínio modal expresso pelas perífrases com ter e o tipo de

relação que se estabelece entre a oração modalizada e as orações adjacentes. Essa expectativa

é mostrada nos resultados da tabela 42 em que consideramos o uso de ter que + infinitivo, de

acordo com o cruzamento entre domínio modal e as relações semânticas entre a oração

modalizada e suas adjacentes:

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201

Tabela 42 – Interação entre domínio modal e relação semântica entre as orações.

Relação semântica Domínio modal

Extrínseco Deôntico Epistêmico

Condição 4/5 = 80% 1/2 = 50% 5/10 = 50%

Finalidade 19/24 = 79% 1/2 = 50% 4/10 = 40%

Contraste/oposição 2/4 = 50% 1/7 = 14% 5/7 = 71%

Causa/explicação 5/6 = 83% 2/3 = 67% 6/13 = 46%

Tempo 0/1 = 0% 3/3 = 100% 2/3 = 67%

Adição 3/3 = 100% 2/3 = 67% 10/17 = 59%

Especif./Exp. de SN 2/3 = 67% 2/4 = 50% 0/3 = 0%

Desvinculada 5/5 = 100% 5/6 = 83% 5/13 = 38%

A tabela 42 dificulta conclusões mais seguras, devido à pulverização dos dados.

Entretanto, é possível estabelecer algumas correlações, considerando o número mais

expressivo de ocorrências. No domínio extrínseco, as orações com a construção ter que +

infinitivo tendem a se correlacionar com orações que indicam finalidade; no domínio

deôntico, as orações com a construção ter de + infinitivo tendem a se correlacionar com

orações que indicam contraste/oposição; no domínio epistêmico, as orações com ter que +

infinitivo tendem a se associar com as orações que indicam adição e as orações com ter de +

infinitivo com orações que indicam finalidade e com as desvinculadas. A maior variabilidade

nesse domínio encontra-se na relação de condição e causa/explicação.

O uso de orações com a construção ter que + infinitivo relacionada, semanticamente,

às orações adjacentes que indicam finalidade no domínio extrínseco vai ao encontro do que

foi verificado na modalidade falada, evidenciando, portanto, um contexto propício para essa

construção, quando o enunciador se apoia em uma justificativa para que uma imposição seja

aceita. Por outro lado, essa relação tende a ser mais atuante com a construção ter de +

infinitivo no domínio epistêmico, como forma de justificar a inevitabilidade de um Ecs ou a de

convencer o interlocutor a acreditar na veracidade de uma proposição.

Ao longo das seções deste capítulo, detectamos e analisamos algumas propriedades

linguísticas associadas às construções modais com ter na modalidade escrita do Português

contemporâneo. De acordo com a análise realizada, o percurso do processo de

gramaticalização das duas construções se desenvolve através de trajetórias diferenciadas. Os

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202

resultados obtidos revelam que a construção ter que + infinitivo tende a predominar em

contextos nos quais o participante vê-se na necessidade de executar uma ação por imposição

de circunstâncias externas (domínio extrínseco), ancorado por orações que determinam uma

finalidade ou adição. Os contextos de sujeito arbitrário em que essa construção é mais

recorrente sugere o descomprometimento do enunciador com o EsC descrito.

Desenvolvendo maior grau de gramaticalização, a construção ter de + infinitivo

tende a predominar no domínio epistêmico. Compatível com esse valor modal, o verbo ter

dessa construção tende a ser mais recorrente com sujeitos de primeira pessoa do singular e,

consequentemente, com o traço [+humano], como, ainda, com a correlação de V2 com verbos

de processo mental, sugerindo, deste modo, maior comprometimento, envolvimento,

subjetividade do enunciador com o EsC descrito. A recorrência dessa construção em

contextos que emergem relações de contraste e de especificação/expansão de SN apóiam a

hipótese de que essa construção vem desenvolvendo valores mais subjetivos.

Essa distribuição funcional diferenciada entre as duas construções encontra uma

intersecção no domínio deôntico, com o verbo ter na terceira pessoa do singular, em contextos

de sujeito com o traço [+humano], com verbos no infinitivo de processo material e com

relações semânticas entre as orações com essas construções e orações adjacentes no domínio

da causalidade. Deste modo, a construção ter de + infinitivo tende a percorrer um cline de

significados [-subjetivo] > [+subjetivo].

Na seção seguinte, correlacionamos os valores modais das construções com ter aos

diversos gêneros da mídia jornalística.

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203

6.7 A variável gênero do discurso

Até este ponto, consideramos a variação entre ter que + infinitivo e ter de + infinitivo

na modalidade escrita em contraposição à modalidade falada. No entanto, a distribuição

mostrada no gráfico 1, no início deste capítulo, assim como a importância da variável domínio

modal na escrita têm que ser vistas com uma certa cautela, já que a amostra analisada

compreende textos de diferentes gêneros, como já detalhamos no capítulo 4, o que pode

relativizar os resultados.

As relações entre fala e escrita não são simples e podem ser vistas sob diferentes

perspectivas. Como bem aponta Marcuschi (2001), podem ser identificadas quatro tendências

no que se refere a essas relações: a primeira delas, a perspectiva da dicotomia estrita, sob o

ponto de vista prescritivo, considera a escrita a norma linguística padrão (culta) e a fala não-

normatizada. A segunda tendência, sob o paradigma da visão culturalista, baseia-se na

dicotomia cultura oral (fala) versus cultura letrada (escrita), com a supervalorização da

escrita. A terceira e quarta tendências se afastam de uma postura dicotômica, seja do ponto de

vista variacionista, seja sob uma perspectiva sociointeracionista.

De um ponto de vista variacionista, como afirmam Marcuschi (op. cit.) e Decat

(2002), as variações são decorrentes dos usos e das práticas sociais. Assim, em maior ou

menor grau, as diferenças entre fala e escrita devem-se à situação discursiva, visto que há

diferença entre situação de fala e situação de escrita, ou seja, entre as condições de produção

textual nas diferentes modalidades de uso, ou nas diferentes práticas sociais (como a família,

o dia a dia, o telefonema, a escola, o trabalho).

A perspectiva sociointeracionista (cf. MARCUSCHI, 2001, 2005, 2008;

MARCUSCHI & DIONÍSIO, 2007; KOCH & ELIAS, 2009; BAZERMAN, 2011, dentre

outros) é a que melhor se adéqua a este estudo, principalmente em razão do fenômeno em

análise. Nessa perspectiva, as diferenças entre fala e escrita são tratadas sob o prisma do

dialogismo (cf. BAKHTIN, 2003 [1979]), preocupando-se com os processos de produção

textual em contextos sócio-historicamente situados por atividades de negociação ou por

processos inferenciais e com a análise dos gêneros e seus usos na sociedade. Nesse enquadre

teórico, a comunicação verbal (oral ou escrita) só se efetiva por meio de textos realizados em

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204

algum gênero, daí a multiplicidade de gêneros textuais117

em oposição aos tipos textuais, que

incluem, geralmente, categorias como narração, argumentação, exposição, descrição,

injunção.

Considerando a impossibilidade de situar fala e escrita em sistemas linguísticos

diferentes, visto que ambas são modos de produção textual-discursiva que fazem parte do

mesmo sistema da língua, a distinção entre as duas modalidades corresponde aos modos de

representação da língua: a fala situando-se no plano da oralidade e a escrita caracterizando-se

por sua constituição gráfica (cf. MARCUSCHI, 2001, 2008).

Assim, embora possuam características próprias, as diferenças entre fala e escrita

não devem ser consideradas de forma dicotômica (cf. MARCUSCHI, 2001, 2008;

MARCUSCHI & DIONÍSIO, 2007; KOCH & ELIAS, 2009, dentre outros), mas “dentro do

continuum tipológico das práticas sociais de produção textual” (MARCUSCHI, 2001, p. 37).

Considerando o continuum entre a modalidade falada e escrita, Marcuschi (2001,

2008) e Koch & Elias (2009) estabelecem a correlação entre esse continuum e gêneros

discursivos dos mais informais aos mais formais, distribuindo-os em dois polos: em uma das

extremidades estariam as comunicações pessoais e conversas informais e, na outra, os textos

acadêmicos e exposições acadêmicas. Deste modo, existem textos escritos (comunicações

pessoais), como bilhetes, cartas pessoais, avisos, que se situam mais próximos ao polo da fala

informal, como conversas públicas, telefônicas, espontâneas e textos falados, como

conferências, discursos oficiais, que mais se aproximam do polo da escrita formal (textos

acadêmicos), como artigos científicos, documentos oficiais, havendo, ainda, tipos mistos e

muitos outros intermediários. Como há um consenso entre diversos autores (cf., por exemplo,

MARCUSCHI, 2001, 2008; FÁVERO, ANDRADE & AQUINO, 2003; KOCH & ELIAS,

2009) de que as duas modalidades de comunicação inserem-se num continuum, perpassando

do nível mais informal ao mais formal, através de graus intermediários, a informalidade é

considerada apenas uma das possibilidades de realização não só da fala, como também da

escrita.

117

Bakhtin justifica a riqueza, a diversidade e a infinidade de gêneros do discurso devido às inesgotáveis

possibilidades da atividade humana, como também “porque em cada campo dessa atividade é integral o

repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um

determinado campo” (BAKHTIN, 2003 [1979], p. 262). Deste modo, de acordo com Bakhtin, Marcuschi (2005),

considerando os gêneros textuais como fenômenos sócio-históricos e culturalmente sensíveis, também ressalta a

variedade de gêneros textuais e a impossibilidade de se fazer uma lista fechada de todos os gêneros.

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205

No intuito de comprovar empiricamente essas dimensões, Chafe (1982) analisa

quatro estilos (língua falada formal/informal; língua escrita formal/informal), utilizando

informantes de nível superior. A pesquisa demonstrou que a língua escrita favorece o não-

envolvimento entre escritor/leitor, evidenciado pelo uso de passivas e nominalizações,

enquanto a língua falada apresenta uma variedade de manifestações de envolvimento do

falante com a sua audiência, evidenciado, por exemplo, pelas referências ao próprio falante,

pelos mecanismos de monitoramento do fluxo da informação, pelo uso de partículas enfáticas

e de discurso direto. O autor salienta que essas diferenças se aplicam aos extremos de um

continuum, tendo em vista a sua comparação entre conversas espontâneas orais com conversas

acadêmicas formais. É importante a ressalva do autor (op. cit., p. 49) de que “há estilos de fala

que estão mais próximos da escrita, e estilos de escrita que estão mais próximos da fala”.118

Entretanto, Biber (1988, p. 36) adverte que se “Por um lado, alguns gêneros falados e escritos

são muito similares uns aos outros (por exemplo, discursos públicos e exposição escrita), por

outro, alguns gêneros falados são bem diferentes uns dos outros (por exemplo, conversa e

discurso público)”119

A análise da variável gênero do discurso, nesta pesquisa, insere-se na perspectiva da

relação não-dicotômica entre fala e escrita, levando em consideração as diversas situações de

uso e de interação verbal120

entre sujeitos “sócio-historicamente situados” (cf. BAKHTIN,

2003 [1979]; MARCUSCHI, 2001, 2005, 2008; MARCUSCHI & DIONÍSIO, 2007, dentre

outros).

De modo geral, a definição de gênero do discurso como prática social proposta por

vários autores, dentre eles Marcuschi (2001, 2005, 2008) e Bazerman (2011), remonta a

Baktin (2003 [1979]). Bakhtin já relacionava os gêneros à utilização da linguagem na forma

de enunciados ligados às atividades humanas. Para o autor, gêneros são “tipos relativamente

estáveis de enunciados” (op. cit. p. 262). Nessa mesma direção, Marcuschi (2008, p. 155)

118 There are other styles of speaking which are more in the direction of writing, and other styles of writing

which are more like speech” (CHAFE, 1982, p. 49).

119 On the one hand, some spoken and written genres are very similar to one another (e.g., public speeches and

written exposition). On the other hand, some spoken genres are quite different from one another (e.g.,

conversation and public speeches)” (BIBER, 1988, p. 36).

120

Compreendemos que a interação é uma propriedade geral tanto da modalidade falada quanto da escrita, visto

que ninguém escreve/fala sem ter em mente um leitor/ouvinte, correspondendo, portanto, à propriedade

dialógica da linguagem, ou seja, a orientação para o outro. (cf. BAKHTIN, 2003 [1979]).

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206

define gêneros como “formas textuais escritas ou orais bastante estáveis, histórica e

socialmente situadas”.

Bazerman (2011) estabelece a definição de gênero ancorado na relação entre fatos

sociais121

(ações sociais significativas) e atos de fala (formas textuais padronizadas, típicas,

compartilhadas) que fazem parte dos sistemas de atividades humanas. Deste modo, o autor

propõe que os gêneros textuais são responsáveis pelo surgimento e estabelecimento de fatos

sociais os quais regem e orientam a vida social e são usados, principalmente, com o objetivo

de promover e organizar atividades entre os seres humanos. Nesse sentido, Bazerman (2011,

p. 32) ressalta que

Gêneros são tão-somente os tipos que as pessoas reconhecem como sendo usados

por elas próprias e pelos outros. Gêneros são o que nós acreditamos que eles

sejam. Isto é, são fatos sociais sobre os tipos de atos de fala que as pessoas

podem realizar e sobre os modos como elas os realizam. Gêneros emergem nos

processos sociais em que pessoas tentam compreender umas às outras

suficientemente bem para coordenar atividades e compartilhar significados com

vistas a seus propósitos práticos.

Os conceitos de gênero propostos por Bakhtin (2003 [1979]), Marcuschi (2001,

2008) e Bazerman (2011) permitem evidenciar, portanto, a sua função social e,

consequentemente, seu aspecto histórico e dinâmico, uma vez que são usados para atender às

necessidades sociais de seus produtores/receptores. Por serem dinâmicos, variam conforme as

necessidades de comunicação e por serem históricos, variam com o tempo, portanto sem

possibilidade de classificação rígida.

A distinção entre os gêneros textuais depende dos parâmetros adotados pelos

diversos autores. Bakhtin (op. cit.) considera aspectos como conteúdo temático, estilo e

construção composicional. Salientando a “extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso

(orais e escritos)”, Bakhtin (op. cit., p. 263) distingue gêneros discursivos primários (simples)

de gêneros discursivos secundários (complexos). Os primários são os que se formam nas

condições de comunicação discursiva imediata com nossos interlocutores através de diálogos

cotidianos, conversas informais, ou mesmo através de uma carta ou de um bilhete. São

denominados primários porque são atos conversacionais diversos a nossa disposição, desde

há muito tempo, ou seja, apareceram primeiro, são primitivos, originais. Os gêneros

121 Para Bazerman (2011), um fato social é o que as pessoas acreditam que seja verdadeiro, é o que está

relacionado com o social e aquilo que afeta o que as pessoas falam ou escrevem.

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207

discursivos secundários (romances, pesquisas científicas, grandes gêneros publicísticos, etc.)

são os que “surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente

muito desenvolvido e organizado (predominantemente o escrito) – artístico, científico,

sociopolítico, etc” (como um romance, uma palestra). Essa distinção estabelecida por Bakhtin

fundamenta-se na possibilidade de ocorrer superposições genéricas122

, ou seja, imbricações de

um gênero em outro, envolvendo, nesse caso, gêneros mais abrangentes, como é o caso das

entrevistas e do romance (cf. PAREDES SILVA, 2010).

Uma questão importante nesta seção é a caracterização dos diferentes gêneros

textuais, que compõem nossa amostra da modalidade escrita na esfera jornalística. Nessa

esfera, como em outras, estão envolvidas ações de ordem sociocultural, cognitiva e

comunicativa, com a utilização de estratégias convencionais para atingir determinados

objetivos (cf. MARCUSCHI, 2008). Deste modo, os textos sob análise pertencem ao mesmo

domínio (ou à mesma esfera), entendendo esse termo no sentido que lhe atribui Marcuschi

(2008), ou seja, como uma “esfera da atividade humana”, da vida social ou institucional, no

caso, a jornalística. Constituem práticas discursivas nas quais podemos identificar um

conjunto de gêneros textuais que, às vezes, lhes são próprios ou específicos como rotinas

comunicativas institucionalizadas:123

. “Portanto, o jornalismo é um domínio discursivo

compreendendo vários gêneros e o jornal é um suporte124

desses gêneros. Assim, a escrita

jornalística diz respeito a um campo de atividades, ou seja, a um domínio discursivo (cf.

MARCUSCHI, 2008).

Como já explicitamos na seção 4.2, a amostra de escrita sob análise compreende

textos representativos de diversos gêneros jornalísticos, tais como cartas do leitor, coluna

122

Da mesma forma, Paredes Silva (2010) adverte que, na estrutura composicional dos gêneros, pode ocorrer

diferentes tipos de texto, sendo que há gêneros que são mais propícios a esse hibridismo que outros, como a carta

pessoal em relação à escrita e a entrevista sociolinguística em relação à modalidade falada.

123 “Na realidade, temos uma série de textos produzidos em condições naturais e espontâneas nos mais diversos

domínios discursivos das duas modalidades. Os textos se entrecruzam sob muitos aspectos e por vezes

constituem domínios mistos. [...] Há gêneros que se aproximam da oralidade pelo tipo de linguagem e pela

natureza da relação entre os indivíduos [...]” (MARCUSCHI, 2001, p. 38).

124 O suporte de um gênero é “uma superfície física em formato específico que suporta, fixa e mostra um texto.”

(MARCUSCHI, 2008, p. 174). Assim, “O jornal [...] é nitidamente um suporte com muitos gêneros.

(MARCUSCHI, 2008, p. 179). Considerando que Marcuschi diferencia gênero de suporte como elementos

independentes, suporte convencional (como o jornal) e incidental (como o tronco de uma árvore), Bonini (2008)

apresenta uma posição contrária. Entende que o suporte pode ser físico ou convencionado, sendo que no primeiro

caso a distinção entre gênero e suporte é nítida, porém, no segundo caso, há sobreposição entre gênero e suporte

porque um gênero pode ser convencionado como suporte de um outro gênero (ou de outros): “O jornal, nesse

sentido, é um típico exemplar de suporte convencionado que eu tenho denominado de hiper-gênero, uma vez que

é um gênero constituído por vários outros”. (BONINI, 2008, p. 51).

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208

social, horóscopo, crônica, editorial, notícia e artigo de opinião, diferenciando-se pelos

aspectos composicionais ou formais (tipos de texto125

), pelo estilo, conteúdo temático, pelas

circunstâncias de produção/recepção e pela interação com o público alvo (cf. BAKHTIN,

2003 [1979]; MARCUSCHI, 2008; PAREDES SILVA 2010, dentre outros).

A grande maioria dos jornais brasileiros divide os gêneros jornalísticos em quatro

grandes grupos (cf. MEDINA, 2001). O primeiro grupo, informativo, caracteriza-se pelo

relato dos fatos da maneira mais objetiva possível. No segundo, interpretativo, há a

interpretação dos fatos, além da informação. No terceiro, opinativo, encontra-se a expressão

de um ponto de vista a respeito de um ou mais fatos e no quarto, entretenimento, dedica-se às

informações, com o objetivo de distrair os leitores.

Partindo do pressuposto de que todos os gêneros jornalísticos incluídos nos grupos

acima revelam ações/atividades sociais (cf. BAKHTIN, 2003 [1979]; BAZERMAN, 2011,

dentre outros) e tendo em vista que há um grande número de variáveis envolvidas na

caracterização dos gêneros da mídia jornalística126

, apresentamos, a seguir, algumas

propriedades de cada um dos gêneros que compõem nossa amostra na modalidade escrita.

A carta do leitor, geralmente de cunho argumentativo, é considerada como um

recurso em que o enunciador pode expressar seu ponto de vista, ideias, opiniões127

,

interagindo com o público leitor (cf. MEDINA, 2001; COSTA, 2008). É categorizada por

Passos (2003) e por Melo & Barbosa (2007) como uma carta aberta dirigida a destinatários

desconhecidos (indeterminados), ou seja, a uma audiência genérica. Melo & Barbosa (op. cit.)

especificam que nesse tipo de gênero o maior envolvimento é com o assunto, visto que o

objetivo do autor é expor sua opinião a respeito de algum fato noticiado na mídia. Uma

125

Paredes Silva (2010) identifica os tipos textuais através de marcas linguísticas, como tempo, aspecto, modo

do verbo, pessoa do discurso, tipos de predicados, etc. Entretanto, de acordo com Paredes Silva (2003, 2007), a

autora ressalta que não apenas os tipos textuais, mas também os gêneros demonstraram influenciar as escolhas

gramaticais.

126

Consideramos que a situação de produção de cada um dos gêneros jornalísticos é marcada por elementos

próprios: quem escreve (autor do texto), para quem escreve (os leitores do texto), quais as finalidades que tem o

texto (divertir o leitor ou convencê-lo de alguma ideia, por exemplo), para quem o autor escreve (uma empresa

jornalística, uma editora, pessoas indeterminadas etc.).

127

Bezerra (2005) observa que, embora esse gênero textual seja de produção do leitor, as cartas ou e-mails

enviados ao jornal podem ser resumidos, parafraseados ou ter informações eliminadas por razões de espaço

físico da seção, clareza e, de modo indireto, devido ao direcionamento argumentativo do jornal. Quando isso

ocorre, trata-se de um gênero de coautoria. Marques (2010) ainda ressalta que há “ainda que velado, um

cerceamento dessa liberdade de expressão, pois o jornal é o responsável pela publicação do texto desse gênero”

(MARQUES, 2010, p. 77).

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209

característica importante desse gênero, já que as empresas jornalísticas não publicam cartas

anônimas, é a identificação do redator através do seu nome e do local onde mora.

Quanto à questão de estilo, não há consenso quanto ao grau de formalidade das

cartas, admitindo-se, de forma geral, que elas são escritas em uma linguagem mais coloquial.

Marques (2010), por exemplo, considera as cartas de leitor como o gênero menos formal,

ainda que caracterizado por certa monitoração da escrita. Melo & Barbosa (2007), ao

contrário, consideram esses textos mais formais.

A notícia jornalística ou reportagem corresponde a um relato de fatos,

acontecimentos, informações, recentes ou atuais, ocorridos no cotidiano de um município e

redondezas, país ou mundo de interesse do leitor. Como este tipo de gênero raramente vem

assinado, os redatores costumam não ser identificados, porém são, geralmente, profissionais

que trabalham para o jornal em que publicam seus textos. O perfil do leitor desse tipo de

gênero é variado, dependendo do jornal (os considerados mais “sérios” e os populares

sensacionalistas). O discurso, sendo mais referencial e menos opinativo, evita posições e

avaliações subjetivas. O objetivo deste gênero é buscar uma comunicação eficiente,

informando os leitores de forma mais neutra possível e com grande fidedignidade, daí o

predomínio da terceira pessoa e a conciliação de registros linguísticos formais com informais

(cf. COSTA, 2008). Marques (2010) ressalta que o uso da terceira pessoa tem como função

criar um caráter de impessoalidade da notícia, a fim de desviar o foco para a informação.

Embora alguns autores diferenciem notícia de reportagem128

por ser esta mais

elaborada (maior investigação), seguimos, neste estudo, a forma de classificação do banco de

dados, que não separa os dois gêneros.

O artigo de opinião tem por objetivo interpretar os acontecimentos de um município

e redondezas, de um estado ou de um país, assim como suas consequências sociais,

econômicas e políticas (cf. GONZÁLES, 1999). O autor pode ser um jornalista ou um

colaborador do jornal que, geralmente, assina seu texto. Diferindo do editorial, esse gênero

não reflete necessariamente a opinião do veículo que o publica (cf. COSTA, 2008). Segundo

Gonzáles (1999, p. 72) outra diferença entre esse gênero e o editorial é quanto à estrutura

composicional: a estrutura do artigo de opinião envolve, necessariamente, uma tese e sua

128

O Manual de Redação e Estilo do Estado de São Paulo (1990) e Medina (2001) estabelecem diferenças entre

reportagem e notícia. Para Bonini (2003), os critérios linguísticos e sociais utilizados para diferenciar esses dois

gêneros são pouco conhecidos e confusos, evidenciados por manuais que utilizam os dois gêneros como único ou

não especificam a diferença, utilizando ora um termo ora outro.

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210

fundamentação, sendo, portanto, mais complexa. Deste modo, como ressalta Costa (2008, p.

34), no artigo de opinião, há sempre o desenvolvimento explícito ou implícito de uma opinião

sobre um assunto, sendo, portanto, um texto “claramente argumentativo” (CUNHA, 2005. p.

170). O fato de ser o autor quem interpreta os acontecimentos com a intenção de provocar a

opinião pública, leva Moirand (1999) a considerá-lo um gênero de “enunciação subjetiva”, em

que pode predominar a primeira pessoa e, ainda, apresentar dialogismo, quando o autor utiliza

a opinião de outras pessoas como argumento para sustentar os seus próprios pontos de vista.

Cunha (2005) acrescenta que nesse tipo de gênero podem ser encontradas narrativas,

funcionando como estratégia argumentativa, podem ser escritos em terceira pessoa e, com o

objetivo de dar objetividade aos argumentos, o autor pode inserir citações. Outro aspecto

característico desse tipo de gênero é o receptor, tendo em vista que se destina, praticamente,

aos leitores das classes sociais A e B (cf. RODRIGUES, 2005).

O editorial é um texto escrito de maneira impessoal, garantindo essa impessoalidade

através do uso da terceira pessoa, e pela não identificação do autor. Tem por objetivo

expressar a opinião oficial de um determinado jornal, discutindo os acontecimentos locais,

nacionais ou internacionais de maior repercussão no momento (cf. MELO, 1985; MEDINA,

2001). Segundo Costa (2008, p. 72), o editorial é um gênero que “recupera os fatos midiáticos

de maneira mais densa e formal”. Do ponto de vista linguístico, pode-se esperar nesse gênero

o uso da norma linguística mais prestigiada socialmente, a fim de conservar a imagem de

confiabilidade da empresa jornalística (cf. MARQUES, 2010).

Na amostra midiática sob análise, observamos que o tema predominante nos

editoriais varia em função do jornal. No Jornal do Brasil, predominam temas sobre eleições,

criminalidade e política. No jornal O Globo, predomina assuntos relacionados às questões

políticas do país e a única ocorrência no jornal Povo também versa sobre essa situação. Não

foram registradas ocorrências de orações com as construções modais em estudo no jornal

Extra. Portanto, o conteúdo temático desse gênero nem o veículo influenciaram no

favorecimento dessas construções no gênero editorial.

A crônica jornalística, originária de relatos de fatos históricos, de reis, do dia a dia

da corte, a partir do século XIX, passa a ser cultivada por grandes escritores. De publicação

periódica, geralmente é um texto curto que aborda temas variados, refletindo as atividades

culturais, políticas, econômicas, desportivas, de divulgação científica, abrangendo também o

noticiário social, mundano, assim como as atividades cotidianas (cf. COSTA, 2008). Assim, a

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211

crônica não se associa, necessariamente, a um tipo de texto, podendo conter trechos

narrativos, argumentativos ou expositivos. Costa (op. cit.) ainda informa que o escritor de

uma crônica procura se expressar de forma simples, interagindo e criando certa familiaridade

com o leitor. Como o estilo deve dar a impressão de naturalidade, a língua escrita aproxima-se

da fala, com marcas bem típicas da oralidade. Retomando os termos de Paredes da Silva &

Costa Pinto (2010, p. 39), “Livre da rigidez das notícias e da formalidade dos artigos de

opinião, a crônica estabelece um elo mais pessoal com o leitor, o que permite fazer uso de

uma linguagem marcada pela subjetividade e pela coloquialidade”.

A coluna social caracteriza-se, devido à limitação de espaço, por uma informação

apresentada de forma mais concisa que uma reportagem, que dispõe de maior espaço físico

nos jornais. Na opinião de Silva (2010), é o mais subjetivo dos gêneros jornalísticos, tendo em

vista que o colunista expõe o seu pensamento, faz interpretações, emite opiniões, sentimentos

e atitudes. A autora distingue esse gênero dos outros do jornal, tendo em vista que a coluna

parece ser especialmente endereçada ao leitor, ou seja, esse gênero é identificado por “por um

estilo alimentado pela fala, pelo diálogo, pela conversa, onde aquele que lê é muito mais que

um leitor: é um ouvinte” (SILVA, 2010, p. 40).

Dentre os gêneros considerados neste estudo, o horóscopo é, certamente, o de estilo

mais padronizado129

. A função pragmática desse gênero é aconselhar o leitor, orientando-o em

seus sentimentos e comportamentos a serem adotados. Não há consenso quanto à inclusão

desse gênero no discurso jornalístico. Pires (2007), por exemplo, considera-o como gênero

discursivo jornalístico, visto que se incorpora no cotidiano como consulta e corresponde a

uma manifestação social e linguística recorrente e legitimada, interrrelacionando-se, portanto,

na esfera social. Marcuschi (2008) insere esse gênero no domínio discursivo do lazer. Por

outro lado, Silva (2007), a partir do conceito de gênero proposto por Bakhtin (2003 [1979]) e

Bazerman (2011), não vê motivo para considerar textos de entretenimento, como horóscopo,

palavras cruzadas, tiras, charges, resumos de filmes, como uma categoria do texto jornalístico.

Esse posicionamento da autora é justificado pelo fato de esses textos não participarem da

comunidade discursiva jornalística e por não refletirem “a esfera de atividade social composta

por jornalistas e suas ações sociais” (SILVA, op. cit., p. 10). No nosso estudo, optamos,

129 Nos dados da amostra sob análise, predomina a estrutura “Você tem que [infinitivo]”.

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212

inicialmente, por incluir o horóscopo nos gêneros jornalísticos, por entendermos que esse

gênero também se inclui nas práticas sociais.

Em princípio, todos os gêneros considerados neste estudo foram produzidos em

contextos com certo grau de formalidade e maior monitoramento da linguagem. No entanto,

como mostram Biber (1988) e Marcuschi (2001, 2008), os gêneros do domínio jornalístico

podem se situar em diferentes pontos do continuum de formalidade, em decorrência das

diferenças contextuais de produção/recepção dos textos e do público-alvo, porém essa

distribuição não é consensual. Biber (1998, 2008), por exemplo, propõe a seguinte

distribuição de alguns gêneros jornalísticos numa escala de [-formal] para [+formal]: carta do

leitor/artigo de opinião (textos argumentativos) > crônica (argumentação/narração) >

reportagem (textos narrativos) > editoriais (textos argumentativos). Marcuschi (2001, 2008),

por sua vez, propondo um continuum entre fala e escrita, considera os seguintes gêneros

midiáticos: notícias de jornal/cartas do leitor (comunicações públicas) > textos

publicitários/narrativas (textos instrucionais). Entre as comunicações públicas e os textos

instrucionais, situam-se os gêneros híbridos ou mistos, como as convocações, os comunicados

e os anúncios classificados. Os editoriais situam-se entre os textos instrucionais e os textos

acadêmicos, portanto num nível maior de formalidade. Embora as duas propostas se

encontrem nos seus pontos extremos, elas se distinguem nos pontos intermediários.

Neste estudo, propomos uma distribuição ligeiramente distinta. Consideramos que o

editorial ocupa o grau mais alto de formalidade. Como já destacamos acima, por ser o porta-

voz do jornal, deve ser escrito de acordo com as prescrições normativas, como também seguir

as recomendadas pelo manual de redação da empresa. Ocupando o outro extremo do

continuum, ou seja, no grau mais baixo de formalidade, teríamos o horóscopo, a coluna social

e a crônica, gêneros [-formais], em que o autor, como vimos, interage mais intimamente com

o leitor, utilizando uma linguagem marcada pela coloquialidade. Entre esses dois extremos,

teríamos a carta do leitor e o artigo de opinião, gêneros que dependem do estilo do redator de

acordo com sua posição social, sendo que o artigo de opinião seria mais formal do que a

carta do leitor, devido à exigência de sua estrutura mais argumentativa na defesa, por

exemplo, de uma convicção ou julgamento e o público-alvo. Entre a carta do leitor e o artigo

de opinião, teríamos a notícia/reportagem, devido ao fato de que seu estilo pode depender do

veículo em que é publicada.

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213

Em relação ao grau de formalidade no uso das construções modais com ter, partimos

da hipótese de que os gêneros textuais jornalísticos situados em um ponto de menor

formalidade (cf. MARCUSCHI, 2001, 2008) seriam mais susceptíveis a expandirem o uso de

ter que + infinitivo. Assim, considerando que, na modalidade falada, o uso de ter que +

infinitivo é quase categórico, e, na modalidade escrita, ainda persiste o uso de ter de +

infinitivo, podemos pressupor que nos gêneros mais informais, aqueles mais próximos da fala

no continuum fala-escrita, predomine o uso da construção ter que + infinitivo. Por outro lado,

nos gêneros jornalísticos mais formais, pode-se esperar que predomine o uso de ter de +

infinitivo.

É plausível, portanto, a hipótese de uma distribuição diferenciada das duas

construções de acordo com o gênero textual: a maior frequência de ter que + infinitivo em

gêneros caracterizados por menor grau de formalidade e um aumento de ter de + infinitivo em

gêneros mais formais, da seguinte forma:

horóscopo/col. soc./crônica > carta do leitor/not./report. > artigo de opinião > editorial

ter que + infinitivo ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ter de + infinitivo

[-formal] [+formal]

Como os horóscopos visam ao entretenimento, inseridos por Marcuschi (2008),

conforme vimos, no domínio discursivo do lazer, são, portanto, bem diferentes dos outros

gêneros jornalísticos considerados na análise. Além disso, por possuírem uma estrutura

bastante padronizada e serem organizados com base em expressões formulaicas, ou seja, em

estruturas fixas que se repetem, consideramos conveniente excluir esse gênero130

do

continuum proposto acima.

Os resultados do gráfico 6 confirmam a expectativa no que se refere ao polo de maior

formalidade e no que diz respeito aos gêneros situados no polo de menor formalidade:

130 O gênero horóscopo apresentou resultado categórico (8/8) no uso da construção ter que + infinitivo.

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214

Gráfico 6 – Distribuição das construções modais com ter por gênero textual.

O gráfico 6 permite constatar variação significativa em relação à frequência de uso

de ter que + infinitivo de acordo com o gênero textual. Ressalta a preponderância da

construção ter que + infinitivo no gênero crônica (08/10 = 80%). Os índices percentuais

aproximam-se nos gêneros carta do leitor (28/46 = 60%), coluna social (02/03 = 66%) e

notícia/reportagem (21/36 = 58%). A maior variabilidade entre as duas construções modais

ocorre no gênero artigo de opinião (18/32 = 56%). De acordo com o esperado, o índice mais

baixo da variante ter que + infinitivo está associado ao gênero editorial (09/22 = 40%) que, de

acordo com a escala assumida, estaria mais próximo do polo de maior formalidade. É nesse

gênero, portanto, que se concentra a maior parte das ocorrências de ter de + infinitivo.

Os resultados da análise multivariacional, expostos na tabela 43, confirmam a

importância do gênero textual para a expansão da construção ter que + infinitivo na

modalidade escrita e, ao mesmo tempo, fornece algumas indicações acerca de ter de +

infinitivo. Dada à distribuição similar para alguns gêneros textuais, amalgamamos carta do

leitor, coluna social e notícia/reportagem, o que permite visualizar mais claramente um

continuum no uso de ter que +infinitivo de acordo com a variável gênero:

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215

Tabela 43 – Uso ter que + infinitivo de acordo com a variável gênero textual.

Gêneros jornalísticos Freq. (%) PR

Carta do Leitor/Coluna Social/Notícia/Report. 51/85 = 60 .46

Crônica 8/10 = 80 .84

Editorial 9/22 = 40 .28

Artigo de Opinião 18/32 = 56 .61

Total 86/149=57 Input = .68

Os resultados da tabela 43 confirmam, em termos de pesos relativos, algumas

tendências verificadas no gráfico 6. Confirma-se a particularidade do gênero editorial, com

PR .28, constituindo o contexto de resistência da perífrase ter de + infinitivo. Como o

editorial está situado no ponto mais alto de uma escala de formalidade, esses resultados vão

ao encontro da intuição de alguns autores (cf. FERREIRA, 1999; LUFT, 2003; BECHARA,

2009) de que a construção ter de + infinitivo, em processo de desaparecimento da língua

falada, torna-se mais restrita a contextos marcados por maior formalidade.

Reitera-se, também, a predominância de ter que + infinitivo nas crônicas, com PR

.84. Uma explicação possível para essa tendência é a de que as crônicas, como vimos,

apresentam uma linguagem mais coloquial ou que, pelo menos, são textos que buscam se

aproximar da oralidade.

No entanto, diferente do esperado, o artigo de opinião favorece o uso da construção

ter que + infinitivo, com PR .61. Em princípio, dada a sua estrutura composicional

argumentativa e o seu público alvo, poderia se esperar maior proximidade desses textos com

os editoriais. Uma questão, não controlada neste estudo, envolve o tema desses textos. Nos

trechos selecionados para análise, os temas variam, dependendo do veículo em que são

publicados. No jornal Extra, predomina temas esportivos, com ênfase no futebol. No jornal

Povo, o tema concentra-se apenas em corrida de cavalo. No Jornal do Brasil e no O Globo,

predominam temas políticos. É possível suspeitar de que o uso da construção ter que +

infinitivo seja mais recorrente em textos e em jornais que abordem assuntos mais populares,

como temas esportivos, por exemplo.

A tabela 43 revela que a alternância entre as construções ter que + infinitivo e ter de

+ infinitivo encontra-se nos gêneros carta do leitor, coluna social e notícia/reportagem,

gêneros situados num grau intermediário de formalidade, com PR .46, indicando, porém, uma

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certa predominância de ter que. Neste caso, também, seria possível suspeitar da interferência

de outras variáveis. No que se refere às cartas de leitores, por exemplo, Garcia Reis (2010) já

apontou a diversidade de temas, de acordo com o veículo em que são publicadas. Assim, na

amostra sob análise, nas cartas do jornal Extra, encontramos denúncias, reclamações acerca

de problemas nas imediações (bairro, rua) em que o redator mora, proliferando temas de

interesse do redator, como inundação causada pela chuva, abastecimento de água e de energia

elétrica, lixo que se acumula nas ruas, falta de respeito dos motoristas de ônibus; nas cartas do

jornal O Globo e do Jornal do Brasil, além da exposição desses problemas, encontramos

denúncias em relação à atuação de políticos, a falta de segurança pública devido à ineficácia

de policiais no combate à criminalidade e assim por diante.

Como já apontado anteriormente, não há consenso entre os diversos autores quanto

ao grau de formalidade das cartas dos leitores, uns consideram-nas [+formais], outros [-

formais]. Do mesmo modo, nas cartas do corpus do PEUL-UFRJ, tomando como critério

alguns aspectos mais gerais, umas podem ser consideradas mais formais, outras menos.

Parece-nos que o seu grau de formalidade pode depender, por exemplo, do veículo em que a

carta é publicada, visto que as cartas passam por uma revisão e, de acordo com o nível do

jornal, essa revisão pode ser mais ou menos rigorosa. Deste modo, verificamos que, nas

cartas do leitor, as ocorrências com a construção ter de + infinitivo foram registradas apenas

no Jornal do Brasil e no O Globo, jornais mais voltados para um público das classes A e B.

Em relação às notícias/reportagens, verificamos que, também, não há uniformidade

quanto aos temas tratados, embora se observe, nos quatro veículos (Extra, Povo, JB e O

Globo), a predominância de temas esportivos, principalmente os concernentes ao futebol.

Nesse sentido, muitas das notícias, principalmente as esportivas, são caracterizadas por um

certo dialogismo, com apelo frequente à opinião de um participante (um jogador ou o técnico)

sobre o fato relatado, na forma de discurso direto. Assim, na medida em que é introduzida a

fala do outro, de forma direta, pode-se esperar uma maior aproximação com a oralidade.

As tendências depreendidas na tabela 44 confirmam, em parte, a hipótese de uma

correlação entre grau de formalidade do gênero textual e maior ou menor recorrência de ter

que + infinitivo. Se os resultados para os pontos extremos se conformam às expectativas, os

resultados para os gêneros situados em pontos intermediários do continuum contradizem o

esperado, visto que, no artigo de opinião, as ocorrências de ter de + infinitivo são menos

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217

frequentes. Com base nos resultados identificados na análise multivariacional, teríamos o

seguinte continuum:

crônica > artigo de opinião > carta do leitor/coluna social/notícia/reportagem > editorial

ter que + infinitivo ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ⇨ ter de + infinitivo

[-formal] [+formal]

Outras questões devem, ainda, ser consideradas quanto à variável gênero do discurso.

Podemos pressupor que alguns gêneros se caracterizam por maior envolvimento do

enunciador com o leitor, enquanto em outros o envolvimento é menor. Como já destacado, o

gênero crônica, através de relatos de fatos do cotidiano, caracteriza-se pelo envolvimento do

cronista com seu leitor, como também o artigo de opinião, já que o articulista, além de

expressar seu posicionamento pessoal, prioriza, na amostra analisada, temas de interesse

popular (esporte/política). Da mesma forma, na notícia jornalística, encontramos, na maioria

das vezes, a fala de um jogador ou de um técnico de futebol, aproximando o leitor desses

relatores. Por outro lado, focalizando a informação de forma impessoal, com a predominância

da terceira pessoa do singular, nos editoriais, encontramos, em sua maioria, temas políticos,

refletindo o ponto de vista do jornal em que são publicados.

Se cada um dos gêneros analisados possui propriedades sociointeracionais

diversificadas, podemos esperar uma distinção entre eles quanto ao domínio modal

predominante, pressupondo que o próprio valor modal das construções com ter desempenhe

papel relevante na organização discursiva de cada um deles.

Uma análise que considera o cruzamento entre as variáveis gênero e modalidade

confirma essa expectativa, como mostram os resultados da tabela 44:

Tabela 44 – Interação entre domínio modal e a variável gênero textual.

Gênero Jornalístico Domínio modal

Extrínseco Deôntico Epistêmico

Carta/Col.Soc./Not. 26/33 = 79% 08/16 = 50% 17/36 = 47%

Crônica 04/05 = 80% 02/02 = 100% 02/03 = 67%

Editorial 02/04 = 50% 02/03 = 67% 05/15 = 33%

Artigo de opinião 06/07 = 86% 00/04 = 0% 12/21 = 57%

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A grande pulverização dos dados, na tabela 44, dificulta conclusões mais decisivas.

Entretanto, há algumas evidências interessantes quanto às tendências de uso das construções

ter de/que + infinitivo no domínio modal correlacionado ao gênero jornalístico. Observa-se

que os editoriais se distinguem por apresentarem o mais baixo índice para ter que no domínio

epistêmico (33%), indicando, assim, que, neste valor, predomina nesses textos a construção

ter de + infinitivo. Ainda nesse domínio, nos gêneros carta do leitor, coluna social e

notícia/reportagem (47%) e artigo de opinião (57%), constata-se variabilidade entre as duas

construções. Nas crônicas, seguindo a tendência já identificada, predomina ter que +

infinitivo, que pode constituir uma estratégia do cronista, principalmente, no sentido de

interagir com seu leitor de forma mais coloquial.

No domínio extrínseco, a construção ter que + infinitivo predomina nos gêneros

artigo de opinião (86%), crônica (80%), carta do leitor, coluna social e notícia/reportagem

(79%). Apenas nos editoriais, observa-se variação mais importante entre ter que e ter de +

infinitivo, embora o número de dados seja muito escasso. No domínio deôntico, ter que +

infinitivo predomina no gênero editorial (67%) e varia com ter de + infinitivo nos gêneros

carta do leitor, coluna social e notícia/reportagem (50%).

Na seção 6.1 (cf. tabela 33), verificamos que a construção ter que + infinitivo

apresentou maior probabilidade de ocorrência no domínio extrínseco e a construção ter de +

infinitivo no domínio epistêmico. Correlacionando essas tendências com os gêneros em que

essas construções se encontram (cf. tabela 44), podemos verificar que o valor extrínseco de

ter que + infinitivo é mais recorrente nos gêneros artigo de opinião, crônica, carta do leitor,

coluna social e notícia/reportagem. Essa correlação pode ser compreendida pela necessidade

de o enunciador apoiar-se em circunstâncias externas, no sentido de ancorar a realização do

EsC.

Por outro lado, o valor epistêmico de ter de + infinitivo predomina no gênero

editorial. Ainda, ter de + infinitivo alterna com ter que + infinitivo no domínio epistêmico,

quando inserido no artigo de opinião. Uma explicação para essas correlações requer

considerar outros parâmetros. Como vimos, no início desta seção, tanto o artigo de opinião

quanto o editorial são textos opinativos, portanto prototipicamente argumentativos. A

diferença entre estes gêneros reside na proposta argumentativa do enunciador: no primeiro

mais pessoal e no segundo mais impessoal, indeterminado, refletindo a opinião do jornal.

Como bem aponta Bonyadi (2011, p. 4), a modalidade constitui um meio explorado pelos

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219

jornais para expressar seus valores e atitudes. Parecem constituir, portanto, contextos bem

adequados para a instanciação da modalidade epistêmica, que envolve exatamente a expressão

de atitudes/posições/raciocínios inferenciais.

Apresentamos, no quadro 8, a correlação detectada entre o uso das construções com

ter com os domínios modais e os gêneros textuais jornalísticos.

Quadro 8 – Uso das construções modais com ter de acordo com a interação

gênero jornalístico e domínio modal.

Domínio modal ter que + infinitivo ter de/que + infinitivo ter de + infinitivo

Extrínseco Carta do leitor

Coluna social

Notícia/Report.

Crônica

Artigo de opinião

Editorial

Deôntico Editorial Carta do leitor

Coluna social

Notícia/Reportagem

Epistêmico Crônica Carta do leitor

Coluna social

Notícia/Report.

Artigo de opinião

Editorial

O quadro 8 sugere que a diferença entre os valores modais atribuídos às construções

modais com ter não depende, de modo preciso, do gênero textual, mas da intenção

comunicativa do falante/escritor na interação com seu interlocutor, portanto do contexto

discursivo-pragmático, propício à emergência de novas funções, valores, usos para formas já

existentes (cf. HOPPER, 1991).

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220

7 CONCLUSÕES

Ao longo deste estudo ficou empiricamente evidenciada, na modalidade falada, antes

de mais nada, a soberania da construção ter que + infinitivo em contraste com as escassas

ocorrências de ter de + infinitivo, mesmo em registros mais formais. Por outro lado, na

modalidade escrita, a variação entre as construções com ter é mais produtiva, embora com

predominância de uso da construção ter que + infinitivo. Confirmou-se, assim, a observação

de diversos autores acerca da maior restrição de ter de + infinitivo à modalidade escrita,

caracterizada, em geral, por maior conservadorismo.

No que se refere ao uso de ter que + infinitivo, na modalidade falada, através de um

estudo em tempo real de curta duração, comparando duas sincronias da variedade carioca,

depreendemos indícios de que, no intervalo compreendido entre a década de 80 e os anos

2000, ter que + infinitivo sofre algumas alterações nos valores modais que pode expressar: na

primeira sincronia, predomina o uso de ter que + infinitivo para expressar necessidade

imperiosa advinda de circunstâncias externas ou para expressar imposição decorrente de

normas ou convenções sociais, morais e legais com alvo no participante; na segunda

sincronia, predomina a modalidade deôntica com alvo no evento, indicando que o valor modal

de obrigação dessa construção passa a operar sobre a predicação. Considerando que

contingências externas possuem maior poder de imposição sobre o participante do que normas

e convenções e de que estas são mais contundentes do que as advindas do próprio EsC, a

mudança, embora sutil, de domínio e alvo, verificada entre as duas sincronias, sugere um

enfraquecimento da força modal de ter que + infinitivo, no sentido de um continuum de

obrigação [+forte] > [-forte].

A análise permitiu depreender, ainda, na modalidade falada, propriedades mais

gerais, independentes do valor modal expresso por ter que + infinitivo, e propriedades mais

especificamente associadas ao seu valor modal. Assim, independentemente do seu valor

modal, a construção ter que + infinitivo caracteriza-se, preferencialmente, por apresentar o

verbo ter na na terceira pessoa do singular; o verbo no infinitivo (V2), por sua vez, associa-se

a sujeitos com o traço semântico [+ humano], porém com expansão para sujeito [+ arbitrário],

e a verbos transitivos do tipo material. Destacou-se, também, a recorrência da construção ter

que + infinitivo em contextos nos quais se instancia uma relação no domínio da causalidade.

A correlação entre orações com a construção ter que + infinitivo e orações causais se

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manifesta nos diferentes valores modais. Nos domínios extrínseco e deôntico, essa associação

pode ser explicada pela fonte da imposição que, advindo de uma circunstância externa, é

explicitada na forma de uma justificativa. No domínio epistêmico, a justificativa

corresponderia a uma premissa que desencadeia o raciocínio inferencial próprio dessa

modalidade.

Considerando o cruzamento entre o valor modal da construção ter que + infinitivo e

as propriedades acima referidas, ressalta, ainda, a importância de traços semânticos e

morfológicos do sujeito: na primeira sincronia, os valores modais dessa perífrase associam-se

a sujeitos com o traço [+humano] e à terceira pessoa do singular. Porém, na segunda

sincronia, a primeira pessoa alterna com a terceira pessoa do singular apenas no domínio

extrínseco e o sujeito [+humano] alterna com sujeito arbitrário nos domínios deôntico e

epistêmico. No que se refere à correlação entre valor modal de ter que + infinitivo e tipo de

processo de V2, verificou-se maior recorrência de processos do tipo material nos domínios

extrínseco e deôntico.

Considerando a possibilidade e a natureza dos elementos intervenientes entre os

constituintes das construções analisadas, ficou evidenciado seu alto grau de gramaticalidade.

Observamos que elementos de pouca extensão fônica e função [-argumental] são os mais

susceptíveis de ocorrerem, principalmente na fronteira entre que e a forma de infinitivo. Esta

limitação, somada a outras propriedades, pode ser tomada como um indicador de que, se

considerarmos um continumm de auxiliaridade, o verbo ter, nessas construções, encontra-se

mais próximo de um semi-auxiliar, corroborando as constatações de Almeida (2006) e Vieira

(2004).

Um aspecto a ressaltar é que a análise das poucas ocorrências de ter de + infinitivo,

na modalidade falada, não nos permitiu indicar possíveis especificidades formais ou

funcionais desta construção. Verificamos, porém, que as duas construções modais com ter

partilham a maioria das propriedades.

Com base na diferente distribuição dos valores modais nas duas sincronias, há

indicações, como dissemos acima, de um enfraquecimento do valor modal da construção ter

que + infinitivo. No entanto, a análise da distribuição dos diferentes valores modais desta

construção em tempo aparente são pouco nítidos e não autorizam uma conclusão definitiva.

O resultado mais relevante para a hipótese central deste estudo envolveu a interação

entre as variáveis idade e gênero/sexo. A análise permitiu constatar, na amostra 2000, a

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associação entre o uso de ter que + infintivo no seu valor epistêmico com o gênero masculino

da primeira faixa etária. Essa tendência pode significar que, se há um outro estágio no

processo de gramaticalização dessa construção, ela é liderada pelos homens.

Praticamente ausente na amostra da modalidade falada, a construção ter de +

infinitivo compete com ter que + infinitivo na modalidade escrita do português

contemporâneo. A análise realizada permitiu identificar alguns aspectos que podem explicar a

resistência de ter de + infinitivo na escrita. Partimos da hipótese de que esta construção teria

funções discursivas mais específicas e contextos mais particulares, embora, em alguns pontos,

possa competir com ter que + infinitivo. A análise permitiu mostrar uma forma de

distribuição diferenciada das duas construções na modalidade escrita: ter que + infinitivo

tende a ser favorecido no domínio extrínseco e ter de + infinitivo no domínio epistêmico; no

domínio deôntico, por sua vez, instaura-se maior competição entre as duas construções. Sob

certos aspectos, depara-se com uma situação de especialização, nos termos de Hopper (1991):

enquanto a variante ter que + infinitivo mantém sua recorrência nos domínios extrínseco e

deôntico, a variante ter de + infinitivo, forma considerada mais antiga, expande-se para

contextos epistêmicos, situando-se, portanto, num grau mais alto de subjetividade. Esse

direcionamento leva-nos a seguinte pergunta: ter de + infinitivo já apresentava, em seus usos

iniciais, todos os valores modais e esses usos foram gradativamente assumidos por ter que +

infinitivo? Para responder esta questão, exigiria uma análise do desenvolvimento diacrônico

destas construções e da possível repartição funcional entre elas ao longo do tempo.

Ao que tudo indica, algumas propriedades mais fortemente associadas a ter de +

infinitivo corroboram o movimento desta construção na modalidade escrita. Os resultados

estatísticos significativos para as categorias gramaticais de número e pessoa do verbo ter, para

os traços semânticos do sujeito e para o tipo de processo codificado por V2 apontam o

favorecimento de ter de + infinitivo com a primeira pessoa do singular, com sujeito

[+humano] e com verbos de processo mental, sugerindo maior subjetividade e

comprometimento do redator com o EsC descrito.

Observa-se, ainda, uma certa particularidade de ter de + infinitivo, quando se

considera o contexto discursivo em que esta construção predomina. Diferentemente de ter que

+ infinitivo, mais frequente em contextos nos quais se instanciam relações no domínio da

causalidade, as orações com ter de + infinitivo, predominantemente, estabelecem relações de

contraste com orações adjacentes ou operam uma expansão/especificação de SN.

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A análise permitiu, também, identificar algumas similaridades entre os contextos de

ter que + infinitivo na modalidade falada e escrita, como a tendência de uso do verbo ter na

terceira pessoa do singular, a maior recorrência de V2 como verbo transitivo, como também a

incidência de sujeitos arbitrários, indiciando que essa construção é incorporada na escrita de

acordo com a sua contextualização na fala. Comparando, resumidamente, as duas

modalidades no que se refere às propriedades correlacionadas ao uso das duas construções

modais com ter, como mostra o quadro 9, podemos concluir que a construção ter de +

infinitivo estaria em grau mais avançado de gramaticalização do que ter que + infinitivo:

Quadro 9 – Propriedades das construções modais com ter na modalidade falada e na escrita.

Grupos de

Fatores

Censo 1980

TER QUE

Censo 2000

TER QUE

Modalidade escrita

TER QUE TER

DE/QUE

TER DE

Dom. Modal Ext./Deônt.

Alvo: part.

Deôntico

Alvo:

evento

Extrínseco

Alvo: part.

Deôntico

Alvo:

part./evento

Epistêmico

Alvo:

prop./evento

Traços Sem.

do Sujeito

Humano

arbitrário

Humano

arbitrário

Arbitrário Humano Col. hum.

Abstrato

Pessoa Gram. 3ª. do sing. 3ª. do sing. 1ª. do plural 3ª. sing./pl. 1ª. do sing.

V2 VT VT VT/Lig. VI VI

Processo de

V2

Material Material Rel./Comp. Material Mental

Rel.Semântica Causal Causal Fin./Adição Caus/Cond. Cont/Exp.SN

O quadro 9 apresenta algumas diferenças de propriedades associadas à construção ter

que + infinitivo de acordo com a modalidade falada ou escrita, principalmente no que se

refere à pessoa gramatical do verbo ter, ao tipo de processo de V2 e às relações semânticas

entre as orações. Indica, também, que as construções modais com ter se distribuem de forma

diferenciada na modalidade escrita: ter que + infinitivo mantém sua recorrência nos domínios

extrínseco e deôntico; a variante ter de + infinitivo expande-se para contextos epistêmicos de

acordo com a trajetória: [-subjetivo] > [+subjetivo]. E, como as duas construções codificam as

mesmas funções no domínio modal deôntico, podem ser consideradas variantes de uma

mesma variável.

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Um outro aspecto que se destaca na análise realizada é a distribuição diferenciada

das construções modais com ter de acordo com o gênero textual. Segundo a hipótese

inicialmente colocada, ter que + infinitivo seria mais recorrente em gêneros de menor

formalidade e ter de + infinitivo em gêneros caracterizados por maior formalidade. A análise

forneceu evidências para esta hipótese, revelando o um continuum entre as duas construções:

crônica > artigo de opinião > carta do leitor/coluna social/notícia > editorial

ter que + infinitivo ter de + infinitivo

[-formal] ⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨⇨ [+formal]

Nos textos representativos do extremo de maior formalidade, confirma-se a maior

ocorrência de ter de + infinitivo nos editoriais, que, de acordo com a análise efetuada,

associa-se ao domínio epistêmico, assim como no extremo de menor formalidade, ter que +

infinitivo alcança sua frequência mais alta nas crônicas, associando-se quer no domínio

extrínseco quer no epistêmico. Ao contrário do esperado, no entanto, os artigos de opinião

apresentam o mesmo grau de formalidade no uso da construção ter que + infinitivo do que a

carta do leitor, a coluna social e notícia/reportagem, quando associados ao domínio

extrínseco e ao domínio epistêmico em que ocorre a variabilidade entre as duas construções.

Entretanto, vimos que essas correlações são complicadas, considerando que os valores das

construções modais com ter podem emergir em diferentes gêneros. Nesse sentido, verifica-se

que, também, é difícil estabelecer um paralelismo entre um continuum de gêneros textuais,

que, normalmente, baseia-se em aspectos sócio-comunicativos, e um continuum de

formalidade, que depende de escolhas linguísticas decorrentes do contexto discursivo. Assim,

para aferir o grau de formalidade através de gêneros jornalísticos, seria necessário

correlacioná-lo com outras variáveis, como, por exemplo, tipos de texto, de jornal.

Para concluir, um ponto merece maior reflexão, qual seja, a soberania de ter que +

infinitivo na modalidade falada em oposição à variação entre as duas construções modais com

ter na modalidade escrita, que, a nosso ver, pode ser compreendida de diferentes formas: uma

explicação mais imediata pode fazer apelo ao maior conservadorismo da escrita em relação à

fala, mais susceptível ao desaparecimento de algumas formas e generalização de outras.

Acreditamos, no entanto, que a generalização de ter que + infinitivo na modalidade falada

envolva a produtividade do elemento que na constituição de diferentes locuções e perífrases

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de modalização no PB, como exemplificam parecer que, dizer que, querer que . Por analogia

com outras construções, os falantes tendem a privilegiar a construção ter que + infinitivo e

reduzir, gradativamente, o uso da sua concorrente ter de + infinitivo. Dado o recorte deste

estudo, esta questão não foi explorada e requer um outro tipo de análise empírica.

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