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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
ESCOLA DE ENFERMAGEM
JULIANA GUISARDI PEREIRA
CONTINUIDADES, AVANOS E RUPTURAS:
A CONSTRUO DA IDENTIDADE PROFISSIONAL DE
ENFERMEIRAS DA ESTRATGIA SADE DA FAMLIA
SO PAULO
2015
JULIANA GUISARDI PEREIRA
CONTINUIDADES, AVANOS E RUPTURAS:
A CONSTRUO DA IDENTIDADE PROFISSIONAL DE
ENFERMEIRAS DA ESTRATGIA SADE DA FAMLIA
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade de
So Paulo para a obteno do ttulo de doutora em
Cincias.
rea de concentrao: Cuidado em Sade
Orientadora: Profa. Dra. Maria Amlia de Campos Oliveira
VERSO CORRIGIDA
O ORIGINAL ENCONTRA-SE DISPONVEL NA ESCOLA DE
ENFERMAGEM DA USP.
SO PAULO
2015
AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL
DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU
ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE
CITADA A FONTE.
Assinatura: ____________________________
Data___/___/___
Catalogao na Publicao (CIP) Biblioteca Wanda de Aguiar Horta
Escola de Enfermagem da Universidade de So Paulo
Pereira, Juliana Guisardi
Continuidades, avanos e rupturas: a construo da identidade
profissional de enfermeiras da estratgia sade da famlia / Juliana
Guisardi Pereira. So Paulo, 2015.
314 p.
Tese (Doutorado) Escola de Enfermagem da Universidade de
So Paulo.
Orientadora: Prof. Dr. Maria Amlia de Campos Oliveira
rea de concentrao: Cuidado em Sade
1. Enfermagem. 2. Prtica profissional. 3. Histria da
enfermagem. 4. Sade da famlia. I. Ttulo.
Nome: Juliana Guisardi Pereira
Titulo: Continuidades, avanos e rupturas: a construo da identidade
profissional de enfermeiras da estratgia sade da famlia
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Enfermagem
da Escola de Enfermagem da Universidade de So Paulo para a
obteno do ttulo de doutora em Cincias
Aprovada em: ____/____/____
Banca Examinadora
Prof. Dr. _________________________ Instituio: __________________
Julgamento: _____________________ Assinatura: __________________
Prof. Dr. _________________________ Instituio: __________________
Julgamento: _____________________ Assinatura: __________________
Prof. Dr. _________________________ Instituio: __________________
Julgamento: _____________________ Assinatura: __________________
Prof. Dr. _________________________ Instituio: __________________
Julgamento: _____________________ Assinatura: __________________
Prof. Dr. _________________________ Instituio: __________________
Julgamento: _____________________ Assinatura: __________________
DEDICATRIA
s enfermeiras e enfermeiros que involuntria e
imperceptivelmente contriburam para que eu construsse minha
identidade profissional nesta (por vezes dbil) tentativa de me
aproximar um pouquinho mais da enfermeira que eu queria ser, em
ordem cronolgica: Pasqualina Jacomaci Sinhoretto, Maria Jlia
Paes da Silva, Maria Amlia de Campos Oliveira (Mia), Francies
Regyane de Oliveira, Marcia Regina Kretzer, Wnia Regina Martines,
Mrio Sergio Vianna, Clarice Rabelo, Alexandre Fonseca Batista,
Sebastio Junior Henrique Duarte, Ngima Luciana do Nascimento
Brasil.
E a todos os enfermeiros que diariamente contribuem para
fazer do desafio de trabalhar na ESF uma construo incrvel.
AGRADECIMENTOS
H tempos que venho considerando que esse trabalho no foi
escrito apenas a duas mos. No que isso se trate da confisso de
alguma transgresso tica na elaborao de uma pesquisa de cunho
cientifico e que requer um produto de autoria individual. Refiro-me
aqui aos diversos tipos de apoio que recebi ao longo dessa jornada
rdua, penosa e por vezes solitria. No foram poucos os momentos
em que pensei que a fora necessria para continuar havia se
esgotado, tendo os olhos embaados em razo da saudade, ou
cansados pelas horas noturnas passadas em claro.
Quando criana, recordo-me da estria de um homem que
percorreu um longo caminho para chegar ao final do arco-ris e
encontrar o tesouro mas, quando chegou l, nada encontrou.
Entretanto, olhando para trs, lembrou-se de como havia enfrentado
inmeros obstculos para chegar at ali e que, para venc-los, havia
recebido a ajuda de seus amigos. Foi ento que percebeu que seu
verdadeiro tesouro eram seus amigos.
Sou grata pelos desafios, pois eles contriburam para que eu
desse o meu melhor, mesmo antes de saber se seria possvel. Mas
sou duplamente grata pelos tesouros que tive ao meu redor seja
perto, em casa, no trabalho, nos encontros; seja distncia, em uma
mensagem instantnea, na rede social ou por telefone pessoas que
me apoiaram e incentivaram a seguir em frente.
Como felizmente somos esse todo indivisvel, o perodo em que
se uma doutoranda tambm se me, esposa, irm, amiga,
professora, cozinheira, motorista, s para citar algumas funes. Para
dar conta de tudo isso, agradeo por ter pessoas queridas em minha
vida.
Agradeo infinitamente a minha famlia. minha me Maria
Aparecida, ao meu pai Claudicilio, minha irm Marina, que nunca
mediram esforos para me acolher e dizer que era possvel. As
palavras so incapazes de dizer o quanto os amo e sou eternamente
grata por tudo que fizeram e fazem por mim.
Aos meus queridos sogros Elisabete e Jos Soares (in
memorian), que sempre foram to dedicados em nos apoiar
fisicamente, inclusive mudando de cidade temporariamente, seja
espiritualmente com suas oraes.
Agradeo aos meus cunhados e cunhadas David, Elaine e
Willian, e especialmente Elen e Andr, que por diversas vezes se
dispuseram gentilmente a me auxiliar nos momentos mais cruciais e
foram pais temporrios para a Isa. Sem vocs nada disso seria
possvel. E aos meus queridos sobrinhos que permitiram que eu me
tornasse a tia Ju: Hanna Kelly, Hadassa, Andrezinho e Antnio.
A todos os meus tios e tias, especialmente tia Pasqua e tio
Franco, pelo apoio constante e demonstraes de carinho que
aqueceram meu corao em diversos momentos, especialmente no
frio do hemisfrio norte. Tia Pasqua, voc um exemplo de tica, luta
e conquista. Que a vida continue a lhe retribuir na medida de sua
energia e generosidade.
A todos meus primos e primas, para que tambm sempre
alcancem os seus sonhos. Em especial a minha prima Jacque, a
quem ouso chamar de irm mais velha, pelos conselhos, apoio, por
compartilhar e sempre me acolher. Sua competncia inspira-me e
tambm me faz querer ser melhor.
Aos meus amigos especiais: Dbora, Carla, Tnia, Sebastio,
Silvana, Julia, Ariane, Marcos e Vanessa. Que nossa antiga amizade
continue assim e oxal um dia eu possa ser o suporte que vocs tm
sido para mim.
A minha querida orientadora, Profa. Dra. Maria Amlia de
Campos Oliveira (Mia), que durante esses ltimos cinco anos vem
me mostrando que ensinar incentivar o voo e no podar as asas.
Sua ampla generosidade, suas palavras de incentivo, alegria e
compreenso foram to preciosas quanto seu vasto conhecimento e
competncia, na qual pude me sustentar. Obrigada por sempre
acreditar e me fazer avanar.
Ao professor doutor Genival Fernandes de Freitas, a quem ouso
chamar de querido professor. Sou grata vida por ter tido a
oportunidade de encontr-lo em meu caminho, pela generosidade em
partilhar seu conhecimento, pelas discusses, por sempre me receber
to bem. Sua excelncia enquanto professor e pessoa tambm me
fizeram mais forte.
A professora doutora Maria da Glria Bonelli, que gentilmente se
disps a partilhar seu domnio acadmico com algum que arriscou
se aventurar pela Sociologia, e apontar direes criativas e
enriquecedoras para o desenvolvimento deste trabalho.
Agradeo tambm aos professores doutores da Escola de
Enfermagem da Universidade de So Paulo, Renata Ferreira
Takahashi, Maria Cristina Komatsu Braga Massarolo, Claudia Prado,
Marcelo Jos dos Santos, Celia Maria Sivalli Campos, Valria Marli
Leonello, Lislaine Aparecida Fracolli, Emiko Yoshikawa Egry, Lucia
Yasuko Izumi, Elizabeth Fujimori e Suely Itsuko Ciozak por terem me
apoiado de diversas maneiras ao longo dessa trajetria.
As professoras doutoras Julie Faiman, Barbra Wall, Cyntia
Connely, Jean Whelan, e em especial Patricia DAntonio pela
orientao da minha pesquisa no Barbara Bates Center for the History
of Nursing, da School of Nursing - University of Pennsylvania, com
quem pude aprender e compartilhar experincias singulares durante
o outono de 2014, quando realizei o doutorado sanduche. A Nancy e
Geri pela ajuda em minha adaptao e acolhimento na Filadlfia, e a
Jia e Sally pelo companheirismo.
Aos colegas de trabalho Mayumi Ucha, Daniela Navarro,
Manoel Miranda Neto e Maria Elisa Manso pela parceria e pelo apoio
constante. Aprendo e admiro cada dia mais vocs.
Agradeo s colegas da Faculdade de Enfermagem da
Universidade Federal do Mato Grosso, professoras doutoras Annelita
Reiners, Maria Aparecida Gava, Neuci dos Santos, Wilza Pereira,
Rosa Lcia Ribeiro, Mara Ribeiro, Aldenan da Costa, Neuma
Zamariano, Marlene Oliveira, Joceli Lins, Magali Olivi e Irene Kreutz
pelo apoio, incentivo, sugestes e companheirismo, e com as quais
tive o prazer de compartilhar experincias durante quatro anos.
Aos amigos do grupo de pesquisa Necessidades em Sade
Coletiva: Cintia, Jaque, Elaine, Talita, Fernanda, Marcia e Juliane,
pelas contribuies e parceria ao longo desse perodo, em especial
Luzmarina, pela contribuio.
Aos funcionrios do Departamento de Enfermagem em Sade
Coletiva e da Secretaria de Ps-Graduao da Escola de
Enfermagem da Universidade de So Paulo, pelo constante apoio.
Meu muito obrigada, ainda, a Silvana e Silvia, da Comisso de
Cooperao Internacional da Escola.
Ao estimado Jaime dos Santos Junior, que gentilmente me
agraciou com sugestes e recomendaes metodolgicas
importantes. Tambem sou grata Providncia por ter encontrado
esse parceiro durante a caminhada.
Coordenao de Apoio de Pessoal de Nvel Superior
(CAPES), que me contemplou com uma bolsa no pas, bem como no
exterior, viabilizando o doutorado sanduche e apoiando
financeiramente a realizao deste estudo.
s enfermeiras e enfermeiros da Estratgia Sade da Famlia e
aos profissionais do Ncleo de Apoio Sade da Famlia (NASF) da
Superviso Tcnica de Sade do Butant, SP, que receberam uma
desconhecida e contriburam com seu tempo e dividiram suas
histrias. Espero que o trabalho possa retribuir em alguma medida a
fundamental participao de vocs. Meu muito obrigada a todos os
demais funcionrios que colaboraram para que as entrevistas fossem
realizadas.
Obrigada aos queridos que me auxiliaram na transcrio das
entrevistas: Leticia, Talita, Paola, Karine e Maicon. Vocs foram
demais!
Muito obrigada a todos que auxiliaram no cuidado de minha filha.
Menciono aqueles a quem ainda no agradeci acima: Maria Cardoso,
Alyne, Raphael, Nelci, Glaucia.
Por ltimo, mas no com menor importncia, quero agradecer a
duas pessoas especiais. Ao meu amado esposo George, que
suportou minhas ausncias, apoiou-me nas dificuldades e nas
decises mais cruciais e que vibrou comigo nas conquistas. Obrigada
por sempre acreditar em mim e fazer o melhor pela nossa famlia.
Agradeo tambm a minha filha (e princesa) Isabella, que
mesmo sem a possibilidade de escolha, suportou bravamente as
mudanas, as ausncias, os momentos de espera e sempre me
encheu de energia, alegria e motivao para seguir em frente. A
mame tem muito orgulho de voc. Obrigada por abrilhantar minha
vida com alegria e paz todos os dias. Esse trabalho dedicado a voc.
Sou grata a Deus pelo dom da vida e pela esperana e a certeza
de dias sempre melhores. At aqui nos ajudou o Senhor!
PEREIRA, JG. Continuidades, avanos e rupturas: a construo da
identidade profissional de enfermeiras da Estratgia Sade da
Famlia. Tese (doutorado). So Paulo, Escola de Enfermagem da
Universidade de So Paulo, 2015.
RESUMO
Pesquisa de natureza descritiva e exploratria, que teve por objetivo
analisar o processo de construo da identidade profissional de
enfermeiras que atuam na Estratgia Sade da Famlia (ESF) e
verificar como se identificam (identidade para si) e so identificadas
(identidade para o outro) pelos demais profissionais de sade. O
referencial terico-metodolgico foi a hermenutica dialtica,
ancorada nos marcos tericos da Sociologia das Profisses e na
Histria da Enfermagem. Foram entrevistadas 27 enfermeiras da ESF
e 10 profissionais do Ncleo de Apoio Sade da Famlia (NASF) de
uma Superviso Tcnica de Sade do municpio de So Paulo. O
material emprico foi submetido tcnica de anlise de discurso. Os
resultados revelaram que, entre as participantes, a escolha pelo curso
de graduao em Enfermagem foi influenciada pelo conhecimento
prvio da profisso; os estgios da graduao foram importantes no
processo de formao inicial; os docentes e os enfermeiros de campo
foram os principais modelos profissionais e os alicerces para o incio
da vida profissional, motivando-as a trabalhar na ESF. Tambm foram
influenciadas pelo desenvolvimento do prprio trabalho. Na
identidade para si, as enfermeiras veem-se como coordenadoras da
equipe, exercendo liderana nas unidades de sade, a profissional
que resolve tudo, que tem autonomia e referncia para os usurios
dos servios e educadora em sade. Na identidade para o outro, a
enfermeira vista como gerente da equipe e referncia da equipe
para a coletividade, a parceira da equipe. Entretanto, a enfermeira
tambm vista como uma profissional desconhecida e desvalorizada,
em busca de especificidade e reconhecimento de seu papel
profissional. A identidade profissional da enfermeira da ESF transita
entre uma identidade socialmente imposta e outra reivindicada pelo
grupo profissional. A negociao de novas identidades vai ganhando
novos contornos pela ampliao dos conhecimentos da clnica,
medida que as enfermeiras se aproximam da prestao de cuidados
diretos aos usurios. A gesto do processo de trabalho e dos conflitos
coloca-as em uma posio diferenciada na equipe multidisciplinar, ao
mesmo tempo em que um investimento crescente despendido no
estabelecimento de vnculos significativos com a coletividade.
Conclui-se que a enfermeira continua a lutar por afirmao e
reconhecimento profissional, em busca de uma imagem de si
condizente com a concretude de sua prtica.
Palavras chave: Enfermagem; Prtica Profissional; Histria da
Enfermagem; Estratgia Sade da Famlia.
PEREIRA, JG. Continuities, advances and breaks: construction of
professional identity of nurses in Family Health Strategy. [Thesis]. So
Paulo, School of Nursing, University of So Paulo, 2015.
ABSTRACT
Exploratory and descriptive study that aimed to analyze the process of
construction of professional identity of nurses who work at the Family
Health Strategy (FHS), and see how they identify themselves (identity
for themselves) and how they are identified by other health
professionals (identity to the other). The theoretical and
methodological framework was the hermeneutic dialectics, anchored
in the theoretical framework of Sociology of the Professions and in
Nursing History. 27 FHS nurses were interviewed and 10 professional
of Support Group for Family Health in a Technical Supervision of So
Paulo City. The empirical material was submitted to discourse
analysis. Nurses professional pathways revealed that the choice to
study Nursing was influenced by former profession knowledge;
undergraduate training at FHS were important to the career; teachers
and practical nurses were the main professional models, providing the
motivation to work in the FHS and becoming the basis to entry into
professional life, which was also influenced by work development
itself. In the identity for themselves, nurses see themselves as team
coordinators, exercising leadership in the Health Center; the
professional who solves everything, which is autonomous, a reference
for service users and a health educator. In the identity to the other,
stood out the work of the nurse as team manager, the team's reference
to the community and a partner in the team. However, the nurse is also
seen as an unknown and undervalued professional who is searching
for specificity and recognition of her professional role. Professional
identity of FHS nurses transits between an imposed and a claimed
identity by the professional group. The negotiation of new identities is
gaining new shapes by the expansion of clinical knowledge and
autonomy, as they are approaching to provide care to users. On the
other hand, the management of the work process and the conflicts put
the nurses in a different rank in the multidisciplinary team at the same
time that a growing investment is realized towards the establishing of
significant links with the community. The conclusion is that nurses
continue to fight for affirmation and professional recognition in search
of an image of themsleves consistent with the concreteness of their
practice.
Keywords: Nursing, Professional Practice; History of Nursing; Family
Health Strategy
LISTA DE ILUSTRAES
FIGURAS
Figura 1 Mapa das subprefeituras do municpio de So Paulo. So
Paulo, 2010 .......................................................................... 150
Figura 2 Mapa das Supervises Tcnicas de Sade da
Coordenadoria Regional Centro-oeste. So Paulo, 2011 ..... 151
Figura 3 Estabelecimentos e servios de sade da rede municipal,
Coordenadoria Regional de Sade Centro-Oeste,
Municpio de So Paulo, Agosto de 2014 ............................. 152
QUADROS
Quadro 1 Distribuio das Unidades Bsicas de Sade da Famlia
da Superviso Tcnica de Sade do Butant, segundo
nmero de enfermeiras atuantes, enfermeiras
entrevistadas e motivos de no participao em abril de
2014 ................................................................................... 153
Quadro 2 Caracterizao das enfermeiras da Estratgia Sade da
Famlia, entrevistadas na pesquisa. So Paulo SP,
2014 ................................................................................... 166
Quadro 3 Caracterizao dos profissionais do Ncleo de Apoio
Sade da Famlia (NASF), entrevistados na pesquisa.
So Paulo SP, 2014......................................................... 169
Quadro 4 Sntese dos resultados das entrevistas com enfermeiras
e profissionais do NASF, So Paulo, 2014 ......................... 170
LISTA DE SIGLAS
AB Ateno Bsica
ABEn Associao Brasileira de Enfermagem
ACD Atendente de Consultrio Dentrio
ACS Agente Comunitrio de Sade
AE Ambulatrios de Especialidades
AMA Assistncia Mdica Ambulatorial
CAPS Centro de Ateno Psicossocial
CBEn Congresso Brasileiro de Enfermagem
CD Cirurgio-Dentista
CIE Conselho internacional de Enfermeiros
CNE/CES Conselho Nacional de Educao/Cmara de Educao Superior
CNS Conferncia Nacional de Sade
COFEN Conselho Federal de Enfermagem
COREN Conselho Regional de Enfermagem
CR Centro de Referncia
DCN/ENF Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduao em Enfermagem
DNSP Departamento Nacional de Sade Pblica
EEAN Escola de Enfermagem Anna Nery
EEUSP Escola de Enfermagem da Universidade de So Paulo
ENESPE Encontro de Entidades Sindicais e Pr-sindicais da Enfermagem
ESF Estratgia Sade da Famlia
EUA Estados Unidos da Amrica
Famema Faculdade de Medicina de Marlia
FNE Federao Nacional de Enfermeiros
ICN International Council of Nurses
IES Instituies de Ensino Superior
ISA International Sociological Association
LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educao
NASF Ncleo de Apoio Sade da Famlia
ONGs Organizaes No-Governamentais
OIT Organizao Internacional do Trabalho
PAS Plano de Assistncia Sade
PMAQ-AB Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Ateno Bsica
PSF Programa Sade da Famlia
QUALIS Qualidade Integral em Sade
REBEn Revista Brasileira de Enfermagem
SAE Servio de Atendimento Especializado
SENADEn Seminrio Nacional de Diretrizes para a Educao em Enfermagem
SESu Secretaria de Educao Superior
SMS Secretaria Municipal de Sade
STS Superviso Tcnica de Sade
SUS Sistema nico de Sade
THD Tcnico em Higiene Dental
UBS Unidade Bsica de Sade
UEL Universidade Estadual de Londrina
SUMRIO
1 INTRODUO ................................................................................... 313
1.1 A ENFERMAGEM COMO PROFISSO .................................... 37
1.2 A ENFERMAGEM PR-PROFISSIONAL: AS ORIGENS DAS PRTICAS DE CUIDAR ............................................................ 45
1.3 A PROFISSIONALIZAO DA ENFERMAGEM COMO FENMENO MUNDIAL ............................................................ 57
1.4 O DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL DA ENFERMAGEM BRASILEIRA ............................................................................. 64
2 REFERENCIAL TERICO .................................................................. 90
2.1 O FENMENO PROFISSIONAL NA PERSPECTIVA DA SOCIOLOGIA DAS PROFISSES ........................................... 92
2.2 O CONCEITO DE PROFISSO E SUAS RAZES HISTRICAS .......................................................................... 114
2.3 A QUESTAO DAS IDENTIDADES .......................................... 126
2.4 A IDENTIDADE PROFISSIONAL ............................................ 136
3 OBJETIVOS ...................................................................................... 142
4 MTODO ........................................................................................... 146
4.1 TIPO DE PESQUISA ............................................................... 148
4.2 LOCAL DO ESTUDO .............................................................. 149
4.3 PARTICIPANTES DO ESTUDO .............................................. 157
4.4 ASPECTOS TICOS .............................................................. 158
4.5 COLETA DE DADOS .............................................................. 159
4.6 PROCEDIMENTOS DE ANLISE DO MATERIAL EMPRICO 160
5 RESULTADOS .................................................................................. 164
5.1 A CARACTERIZAO DOS SUJEITOS DA PESQUISA ......... 166
5.2 RESULTADOS DAS ENTREVISTAS ...................................... 170 5.2.1 O processo inicial de socializao das enfermeiras ..................................... 171 5.2.2 A identidade para si segundo as enfermeiras .............................................. 186 5.2.3 A identidade para o outro segundo as enfermeiras ...................................... 197 5.2.4 A IDENTIDADE PARA O OUTRO, SEGUNDO OS PROFISSIONAIS DO
NASF ............................................................................................................ 215
6 DISCUSSO ...................................................................................... 229
6.1 O PROCESSO DE SOCIALIZAO DAS ENFERMEIRAS ..... 231
6.2 A IDENTIDADE PROFISSIONAL DA ENFERMEIRA DA ESF . 242 6.2.1 A liderana da equipe multiprofissional ........................................................ 242 6.2.2 A enfermeira como a profissional que promove o acesso, o vnculo e o
resolutividade ............................................................................................... 248 6.2.3 O conhecimento como um caminho possvel para a construo da identidade
e da autonomia profissional .......................................................................... 251 6.2.4 A enfermeira da ESF: uma identidade em construo ................................. 256
7 CONSIDERAES FINAIS ............................................................... 263
REFERNCIAS ...................................................................................... 271
APNDICES ........................................................................................... 285
APNDICE A: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ............................................................................. 287
APNDICE B: INSTRUMENTO PARA REALIZAO DA ENTREVISTA ENFERMEIRAS DA ESF ...................................... 289
APNDICE C: INSTRUMENTO PARA ENTREVISTA PROFISSIONAIS DO NASF .......................................................... 291
ANEXOS ................................................................................................ 293
ANEXO A: PARECER DO COMIT DE TICA EM PESQUISA EEUSP .......................................................................................... 295
ANEXO B: PARECER DA SUPERVISAO TCNICA DO BUTANT ...................................................................................... 299
ANEXO C: PARECER DO COMIT DE TICA EM PESQUISA SMS/SP (VERSO 1) .................................................................... 301
ANEXO D: PARECER DO COMIT DE TICA EM PESQUISA SMS/SP (VERSO 2) .................................................................... 305
ANEXO E: RESUMO DOS DISPOSITIVOS LEGAIS QUE RESPALDAM O EXERCCIO PROFISSIONAL DA ENFERMEIRA NA ESF NO MUNICPIO DE SO PAULO ........................................... 307
APRESENTAO
Existem certas coisas que s se entende com o tempo, talvez
com a maturidade. Conforme se olha para trs, percebe-se que
algumas coisas que aprendemos pela vida, sejam vindas de
experincias diretas ou no, emergem aos poucos. aquele tipo de
memria que a gente no sabe se sonhou, ou se, de fato, foi real.
Assim aconteceu em alguns aspectos da minha vida profissional.
Quando optei pelo curso de Enfermagem no vestibular, aos 18
anos de idade, tinha pouca noo do que isso significaria para minha
vida. Vinda de uma famlia da classe trabalhadora e nvel de
escolaridade no universitrio, visualizava na Enfermagem a quase
garantia de insero no mundo do trabalho e a possibilidade de
autonomia financeira, mais do que propriamente uma escolha
consciente e apaixonada pela profisso.
Essa ideia tambm era reforada pela convivncia com um
familiar enfemeira: inteligente, bem-sucedida e financeiramente
estabilizada. Era a referncia da famlia para o cuidado de sade, seja
prestando informao ou indicando cuidados domiciliares, mas
tambm a referncia no despertar da conscincia poltica, da
cidadania e dos direitos e deveres que tnhamos que praticar,
respeitando a si mesmo e ao prximo.
Sem ideias claras sobre o que era ou no era a enfermagem,
entendia que se tratava de uma profisso virtuosa: ajudar o prximo
numa situao de adoecimento, que requeria conhecimento e tica, e
para a qual eu acretitava que no teria dificuldade em me adaptar.
Somado a isso, a urgncia de uma autonomia econmica almejada
me fex eleger a enfermagem como uma opo vivel.
De fato, num primeiro momento, j na graduao, aprender a ser
enfermeira no me pareceu complicado. O conjunto de valores que
fundamentavam o ser enfermeira, como o respeito e a ateno
integral ao ser humano, coadunava-se com aspectos de minha
socializao anterior at aquele momento.
Entretanto, a realizao das atividades prticas,
predominantemente no ambiente hospitalar at o penltimo ano do
curso, levou-me a certo incmodo diante de uma realidade que at
ento eu desconhecia. Impressionaram-me o hospital com seu cheiro
caracterstico, o sofrimento de pacientes e familiares diante da morte
ou da doena, a normatividade, a rotina, os protocolos e a rigidez da
organizao do trabalho. Somado a isso, era evidente a busca de
afirmao profissional da enfermeira no cumprir e fazer cumprir as
regras da instituio, alm do carter subsidirio Medicina.
Nessa trajetria, diversos docentes exerceram papel
fundamental sobre meu processo de socializao como enfermeira.
Exemplos de como lidar com a questo do sofrimento humano, com
a supremacia mdica, inclusive em hospitais universitrios; como
gerenciar a equipe, como motiv-la, enfim. No primeiro e segundo
anos do curso, relembro com carinho de uma docente com quem
aprendi na prtica o que era competncia, conhecimento,
comunicao e humanizao do cuidado.
No ltimo ano do curso, o estgio da disciplina de administrao,
realizado em uma Clnica Cirrgica, foi um momento importante que
oportunizou colocar em prtica diversas habilidades da enfermeira
nesse ambiente de trabalho. Era o primeiro estgio em que ns
estudantes ficvamos no campo de estgio sem o docente. Recordo-
me de ter me sentido orgulhosa quando percebi que uma senhora
havia sido admitida no hospital, mas no estava na agenda cirrgica
daquela semana. Contactei o mdico que cuidava dela, o qual
confirmou que no havia planejamento cirrgico para a senhora,
dispensou-a e me perguntou surpreso: - Quem voc?
Outro fato importante nesse semestre ocorreu durante um
estgio de Sade Coletiva. A docente levou-nos para sala de vacina
e explicou detalhadamente como avaliar o local e os demais cuidados
relacionados aplicao na criana. Chamou-me e ateno sua
capacidade de atrair a ateno e falar com propriedade sobre o
assunto, fazendo com que at mesmo as auxiliares de enfermagem
do servio pedissem para acompanhar a explicao.
Ainda nesse ltimo ano do curso, descortinou-se a minha frente
uma perspectiva de trabalho da enfermeira na qual eu pude
encontrar-me profissionalmente: a atuao na Ateno Primria
Sade, especificamente na Estratgia Sade da Famlia. A
possibilidade de realizar visitas domicilirias, consultas com a
abordagem da clnica ampliada, o planejamento e a avaliao em
sade com base nas caractersticas territorial, a dinamicidade das
aes, a possibilidade de atuar na promoo da sade e na preveno
de agravos, enfim, vieram ao encontro de minhas aspiraes,
ensejando satisfao profissional e pessoal.
O fato que ter vivenciado aquela experincia durante o ltimo
ano da graduao marcou definitivamente minha trajetria enquanto
acadmica. Apaixonei-me pela Enfermagem em Sade Coletiva e
desde ento nunca mais olhei para trs e sequer pensei em qualquer
possibilidade de desistir.
A variedade de atividades executadas pelas enfermeiras, como
consultas de pr-natal, puericultura, ao adulto; realizando exame
fsico, prescrevendo medicaes, fazendo grupos educativos,
trabalhando em equipe, gerenciando a equipe e a unidade de sade,
sendo a referncia da unidade era algo que me enchia de satisfao.
Eu voltava todo dia para casa pensando: essa enfermeira que eu
quero ser; isso faz sentido para mim e traz significado
profissionalmente.
Na unidade de sade onde realizei o Estgio Curricular havia
uma enfermeira que marcou profundamente minha identidade
profissional. Ela havia iniciado a vida profissional na Estratgia Sade
da Famlia, estudava e sabia muito sobre propedutica mdica,
farmacologia, enfermagem clnico-cirrgica, dentre outros. Conhecia
vrios assuntos, fazia uma consulta como eu nunca havia visto antes,
alm das visitas domicilirias, as aes educativas e era visvel sua
liderana na equipe e na unidade.
Quando andvamos na rua, as crianas acenavam e gritavam:
Oi, Dra!. Ela visitava meninos usurios de drogas com algum agravo
transitrio de sade e dizia: - Fulano, voc precisa ficar limpo para
tomar esses remdios, est entendendo? Aquilo fez todo o sentido
para mim: ir aonde as pessoas estavam, na casa, na vizinhana,
conhec-las de perto, no ambiente familiar e comunitrio, onde
emergiam os determinantes sociais do processo sade-doena.
Assim que conclui a graduao, procurei inserir-me na ESF e por
sete anos e meio atuei em uma unidade de sade da Regio Sudeste
do municpio de So Paulo como enfermeira de famlia. Recordo-me
da insegurana e das dvidas sobre o que fazer que me invadiram
nos primeiros dias de trabalho. Agora eu era a enfermeira da equipe,
da unidade. Agora era eu quem tinha de organizar o trabalho, orientar
e supervisionar os trabalhadores da Enfermagem, consultar,
prescrever, orientar. Estava me tornando, enfim, uma referncia.
Sem dvida, minha experincia pessoal e as vivncias
anteriores na graduao, nos estgios e agora no dia-a-dia da
Unidade contriburam para forjar minha identidade profissional como
enfermeira de Sade da Famlia durante esses anos de trabalho.
Claro que o apoio das colegas enfermeiras, o estudo dos protocolos,
manuais do Ministrio da Sade, o resgate de contedos tericos da
graduao foram importantes naquele momento.
Mas logo foi possvel perceber que em paralelo satisfao
encontrada no trabalho, outras questes colocavam-se. Trabalhar em
equipe no era to fcil e as relaes interpessoais tinham um peso
importante nas relaes de trabalho. O trabalho flua bem quando o
mdico da equipe compreendia o papel da enfermeira criava-se uma
parceria; mas ficava desintegrado em situao contrria. O mesmo
princpio aplicava-se aos demais profissionais.
Realizar consultas com pessoas que necessitavam de respostas
que iam alm dos limites legais da minha profisso levavam ao
dilema: devo ir ao consultrio do mdico ou encaminhar o usurio
para a consulta mdica? Eram questes para as quais no havia uma
resposta definida e que demandavam criatividade e resolutividade de
acordo com a possibilidades que surgiam no dia-a-dia do trabalho.
Em se tratando de planejamento e priorizao de aes, a
sobrecarga de responsabilidades, a superviso do trabalho de outros
profissionais, as metas a serem atingidas, sem dvidas
dicotomizavam o querer fazer e o ter que fazer.
Outras problemticas vividas no trabalho despertaram a
necessidade de retomar os estudos e ingressei no mestrado.
Enquanto enfermeira de famlia que recebia em estgio estudantes de
enfermagem dos ltimos semestres do curso, concebia esse
momento de articulao como essencial para firmar a identidade do
futuro profissional de sade, prxima das necessidades de sade da
populao e afinada com os conhecimentos da Sade Coletiva.
O tema da investigao no mestrado foi a contribuio da
articulao ensino-servio para a mudana do modelo assistencial no
sentido da vigilncia da sade em unidades de Sade da Famlia no
municpio de So Paulo. Os achados revelaram aes incipientes de
articulao, por um lado devido falta de projeto poltico municipal na
direo da Vigilncia da Sade, por outro porque os sujeitos da
academia tinham pouca oportunidade de interferir no trabalho dos
profissionais, de forma que os estudantes muitas vezes limitavam-se
a acompanhar as atividades que j estavam em andamento na
unidade.
Aps concluir o mestrado, decidi enfrentar um novo desafio:
ingressar na rea da docncia. Comecei acompanhando o estgio de
estudantes de medicina de uma faculdade privada em So Paulo.
Embora envolvida com a formao de profissionais mdicos, mantive
o foco no desenvolvimento de caractersticas de futuros profissionais
para atuao na Sade Coletiva.
Aps seis meses fui chamada para assumir uma vaga efetiva de
professor assistente numa universidade federal na regio Centro-
Oeste do Pas. Durante quatro anos atuei nas Disciplinas Sade do
Adulto e Estgio Curricular em Enfermagem em Sade Coletiva,
tendo coordenado o Programa de Educao pelo Trabalho em
Sade/Sade da Famlia (PET-Sade da Famlia) no municpio de
Vrzea Grande (MT).
Durante os anos em que atuei no meio acadmico dessa
universidade pblica, desenvolvi diversos projetos de articulao
interprofissional com docentes e acadmicos de enfermagem e
tambm de medicina, educao fsica, nutrio, servio social,
psicologia, dentre outros. Tais iniciativas tinham por base as polticas
educacionais dos Ministrios da Educao e da Sade, as quais
fomentavam mudanas nos cursos de graduao das profisses da
sade.
Nessa caminhada que envolveu pesquisas, discusso e
conduo dos projetos, atuao conjunta nos servios de sade,
capacitao constante, ia ficando cada vez mais clara a
interprofissionalidade na atuao da enfermeira de Sade Coletiva.
Novos questionamentos fizeram-me retomar os estudos, agora no
nvel de doutorado.
Dada a complexidade da vida pessoal, no restrita ao campo
profissional, aps quatro anos na universidade federal voltei para So
Paulo e venho atuando novamente no curso de graduao em
medicina que havia trabalhado anteriormente.
Passados esses sete anos desde que venho atuando na
docncia, constato que que de alguma forma tambm venho
influenciando a construo da identidade profissional de estudantes
de enfermagem e tambm de outras profisses da sade.
Acredito que o percurso dirio em minha trajetria profissional
conduziu-me ao presente estudo, com o qual almejo ressignificar o
vivido e contribuir de alguma maneira para a reflexo de tantas outras
enfermeiras de Sade da Famlia e tambm de estudantes de
enfermagem, cujos esforos vo se somando no dia-a-dia para
aprimorar a profisso.
1 Introduo
Introduo 33
1 INTRODUCO
As ltimas dcadas caracterizam-se por grandes mudanas
sociais, tanto nos aspectos materiais quanto na subjetividade,
resultantes de transformaes sociais e econmicas mais amplas.
Tais mudanas tm impactado, tambm, o mundo do trabalho,
alterando a estrutura das ocupaes e a organizao do trabalho, de
forma que os padres profissionais e o profissionalismo esto
passando por uma reconceituao (ANTUNES, 1999; GONALVES,
2008).
As origens desse processo de mudanas podem ser
identificadas na crise estrutural do capitalismo a partir da dcada de
1970, inicialmente nos pases centrais, que desencadeou um
processo de reformulao ideolgica e poltica com vistas a
estabelecer novas formas de dominao, por meio do neoliberalismo,
cujas marcas tm sido a privatizao estatal e a desregulamentao
dos direitos trabalhistas pelo Estado e do mercado de trabalho
(ANTUNES, 1999; ANTUNES, 2014).
Dentre as mudanas supra citadas, destacam-se: o predomnio
do assalariamento, o surgimento e a expanso de novas formas de
vinculao empregatcia, com precarizao dos direitos trabalhistas;
a reduo dos padres de autonomia e autoridade profissionais
decorrentes das novas formas de regulao do trabalho; a
necessidade crescente de domnio de conhecimentos sobre gesto e
liderana, alm do conhecimento cientfico e tcnico; e
compatibilidade com as expectativas dos clientes (DUBAR, 2005;
GONALVES, 2008).
De fato, o trabalho profissional vem mudando e sendo
transformado: os profissionais antes ditos liberais vm cada vez mais
se vinculando s organizaes; muitas profisses vm conquistando
o controle legal de seu prprio trabalho e a autonomia vem
crescentemente perdendo terreno; no h mais uma clara diferena
entre empregos no setor pblico e no setor privado e o financiamento
Introduo 34
privado vem operando igualmente nos dois setores (parcerias
pblico/privado) (EVETTS, 2013).
Observam-se ainda mudanas na autonomia e no controle das
profisses quanto insero social e realizao de tarefas,
notadamente pela racionalizao econmica, fiscalizao dos atos
praticados, tanto por entidades representativas dos consumidores
como pela mdia; e globalizao crescente do mercado de servios
(GONALVES, 2008).
Outro fator o aumento do chamado ao profissionalismo no
voluntariado, na filantropia e nas Organizaes No-Governamentais
(ONGs). A transparncia pblica, por sua vez, requer crescentemente
regulao, auditoria e procedimentos avaliativos; o conhecimento est
mais aberto e acessvel na sociedade, principalmente em tempos de
Internet, desafiando a expertise profissional (EVETTS, 2013).
Somado a isso, ocorrem alteraes nas relaes entre o Estado
e as profisses, num momento em que ocorrem processos de reduo
das funes do primeiro, em particular nas reas de educao, sade
e justia, bem como de reconfigurao da abrangncia das
intervenes das associaes de consumidores e da prpria dinmica
econmica (GONALVES, 2008).
Ao mesmo tempo, nota-se o aumento de profissionais na
populao economicamente ativa, bem como a feminizao de vrios
grupos profissionais. Existe tendncia ao surgimento e
estabelecimento de novas profisses, com identidades prprias e que
requerem seu lugar na diviso social do trabalho, redefinindo os
limites jurisdicionais, alm de acentuada interdependncia entre as
profisses (BARBOSA, 1998; GONALVES, 2008; RODRIGUES,
1997).
Os efeitos dessa transformao puderam ser observados de
forma mais intensa no Brasil especialmente a partir dos ltimos 20
anos do sculo passado, acompanhado de estagnao do
crescimento e crise da dvida externa no pas, o que gerou regresso
Introduo 35
econmica e social, bem como o aumento vertiginoso da inflao, do
desemprego e da pobreza. A terceirizao ganhou fora ao mesmo
tempo em que a garantia dos direitos trabalhistas perdeu terreno
(ANTUNES, 1999; POCHEMAN, 2014).
Para Pocheman (2014), no comeo do sculo XXI, o Brasil
passou por uma importante transformao no trabalho, com retomada
do crescimento econmico e ampliao de conquistas em reas
sociais bsicas at ento marginalizadas, como investimento em
infraestrutura, polticas de redistribuio de renda, dentre outros.
Como lembra o autor, vem ocorrendo aumento na expectativa
mdia de vida, o que leva necessidade de abarcar diversas
questes na agenda das polticas pblicas (sade, mobilidade,
integrao social etc). H queda da taxa de fecundidade e do nmero
de membros por domiclios, impactando no predomnio de novas
estruturas familiares, notadamente mais monoparentais. Aumentam
as causas de morbimortalidade associadas s doenas crnicas no
transmissveis como as doenas cardiovasculares e neoplasias, bem
como s causas externas (acidentes de trnsito e violncias)
(POCHEMAN, 2014).
Nesse processo de ampla metamorfose social, as profisses so
impelidas a repensarem sua prtica e redesenharem sua trajetria
presente e futura, de forma a garantirem sua sustentabilidade nesse
contexto de incertezas e busca constante de sua prpria legitimao.
Nesse sentido, as identidades profissionais acabam por ser
impactadas.
O setor sade, ramo da economia brasileira que emprega cerca
de 3,9 milhes de trabalhadores ou 4,3% do total de empregos no
pas, tambm sofreu impactos. Novas profisses vm se inserindo no
setor, principalmente devido ao trabalho em equipes multidisciplinares
na Ateno Primria Sade. Diversas so as modalidades de
contratao, bem como as jornadas de trabalho, as formas de
remunerao e os modos de desenvolver o trabalho, aumentando a
Introduo 36
competio e a individualizao das carreiras (CONSELHO
FEDERAL DE ENFERMAGEM, 2011; MACHADO, VIEIRA,
OLIVEIRA, 2012).
No caso da Enfermagem, cujo contingente de profissionais no
Brasil ultrapassa a marca de 1,5 milhes de trabalhadores, as
mudanas no mundo do trabalho tambm vm exigindo novos perfis
profissionais. Segundo dados de 2010, havia no Brasil 287.119
enfermeiros, 625.863 tcnicos de enfermagem e 533.422 auxiliares
de enfermagem, totalizando 1.449.583 trabalhadores de enfermagem
ou 64,7% da fora de trabalho em sade no Pas (BARRETO,
KRUMPEL, HUMERO, 2012).
A extino de categorias profissionais no mbito da
Enfermagem, ao longo do tempo; a busca de qualificao de suas
diversas categorias, o aumento das exigncias de qualificao
profissional num mercado cada vez mais competitivo, a busca por
maior participao no sistema COFEN/COREN pelos auxiliares e
tcnicos de enfermagem, as atuais lutas ou bandeiras da
Enfermagem (como a jornada de 30h semanais), assinalam cises e
desafios que podem comprometer, dentre outros, o estabelecimento
de vnculo e a prestao de cuidados de qualidade no atendimento
aos usurios e suas famlias.
Outra mudana importante refere-se ao local de insero
profissional das enfermeiras. Uma pesquisa realizada na dcada de
1980 sobre o local de trabalho constatou que 70,4% dos
trabalhadores de enfermagem concentravam-se em hospitais. J em
2005 esse percentual era 57,2% e atualmente h perspectiva de
manter essa tendncia de reduo, haja vista que a implementao
do SUS e, mais recentemente, da Estratgia Sade da Famlia (ESF),
vem gerando o aumento de empregos para os profissionais de
enfermagem no setor pblico e na Ateno Primria (BARRETO,
KRUMPEL, HUMERO, 2012).
Introduo 37
Implantada no Brasil desde 1994, em agosto de 2013 a ESF
totalizava 46.443 equipes de sade da famlia credenciadas pelo
Ministrio da Sade (BRASIL, 2012). Se todas as vagas para
enfermeiras nas equipes estivessem preenchidas, haveria 46.443
enfermeiras atuando na ESF, ou seja 16,17% das enfermeiras do
Pas.
A organizao do trabalho na ESF prope que a enfermeira
exera atividades que envolvem desde a coordenao da equipe de
Enfermagem at a assistncia direta, diferentemente do que ocorria
tradicionalmente nas instituies tanto pblicas quanto privadas onde
esta profissional vinha desenvolvendo seu trabalho, inclusive com
ampliao do mbito de sua prtica.
Como se v, essas mudanas vm possibilitando Enfermagem
transformar sua profissionalidade. J tempo, portanto, de
examinarmos os impactos dessas mudanas nas identidades
profissionais das enfermeiras. Mais especificamente, o impacto que a
insero na Ateno Bsica vem produzindo na identidade
profissional das enfermeiras.
Diante do exposto, o presente estudo toma como objeto a
identidade profissional da enfermeira que atua na Ateno Bsica
Sade, mais especificamente na Estratgia Sade da Famlia (ESF),
buscando responder seguinte questo norteadora: Que
transformaes a insero na ESF vem produzindo na identidade
profissional das enfermeiras?
1.1 A ENFERMAGEM COMO PROFISSO
A profissionalizao da Enfermagem recente, datando do
sculo XIX, embora as prticas de cuidar remontem ao incio da
histria da humanidade. Florence Nightingale considerada a
fundadora da Enfermagem moderna, por ter desempenhado um papel
importante na profissionalizao do cuidado, contribuindo para a
Introduo 38
sada das mulheres do ambiente domstico para o mundo do trabalho
(BARREIRA, 1999).
Exercido inicialmente de forma emprica, o cuidado foi
adquirindo cientificidade, afastando-se do mbito dos leigos e
passando para as mos dos sacerdotes e mgicos, em seguida para
os religiosos e, posteriormente, para pessoas com conhecimento
formal. A prtica da Enfermagem resultou em acumulao de
conhecimentos prprios que, associados aos conhecimentos de
outras reas do saber, chega atualidade como profisso singular e
tipicamente configurada como um modo especfico de pensar e
exercer atividades no mundo do trabalho (CIOSAK, 2004; PADILHA;
BORENSTEIN; SANTOS, 2011).
A Enfermagem sempre se caracterizou pelo cuidado, tanto em
sua fase pr-profissional, quanto depois de elevada categoria
profissional. Entretanto, atualmente, vem caminhando para um
redimensionamento desse cuidar numa perspectiva mais integrada
com as demais profisses da sade, de forma interdisciplinar.
Embora o cuidar no seja uma ao exclusiva da Enfermagem,
prioritrio no exerccio da profisso. H uma tendncia favorvel
para se pensar coletivamente acerca do cuidar, envolvendo todos os
profissionais da rea, particularmente no que tange Ateno Bsica
(MEDEIROS, 2010; p. 100).
Ao longo de sua histria, a trajetria da Enfermagem vem
sofrendo inmeras mudanas. Moreira e Oguisso (2005), baseadas
em Lima et al (1994), identificam trs diferentes fases no
desenvolvimento profissional: a emprica ou primitiva (inexistncia de
profissionais de Enfermagem), a evolutiva (a partir de Florence
Nightingale, que estabeleceu a Enfermagem moderna) e a de
aprimoramento (assuno do holismo no atendimento ao ser
humano). Lembram, entretanto, que algumas iniciativas de
treinamentos e cursos nos Estados Unidos da Amrica (1798) e na
Introduo 39
Espanha (1833), anteriores a Florence, j representavam uma
contribuio ao agregar conhecimentos pela profisso.
Assim, torna-se imperativo relacionar os fatos histricos com o
desenvolvimento da profisso, tais como: o nascimento dos hospitais
e o desenvolvimento das cincias biolgicas e da sade; a
emancipao feminina, a Revoluo Industrial, os determinantes
sociais, polticos, econmicos e contextuais, dentre outros. Conhecer
a histria da profisso permite compreender a relao entre o
presente e o passado, sobretudo pela forma como veio se construindo
ao longo do tempo, realando a questo da identidade profissional
(OGUISSO, 2007; PADILHA; BORENSTEIN, 2005; PADILHA;
BORENSTEIN, 2006).
...a histria adere possibilidade de delinear e identificar
quem so, o que pensam, o que sentem, como agem as
enfermeiras e, ainda, quais as perspectivas do que sero
em sua caminhada como um grupo profissional
contextualizado (PADILHA; BORENSTEIN, 2011; p. 35).
A histria da Enfermagem revela o quanto esta parte integrante
da vida, do mundo da sade e de seus compromissos com a
sociedade na qual se encontra inserida.
Entretanto, inicialmente essa histria no foi contada pelas
mulheres que exerciam o cuidado, mas por diversas disciplinas como
a Medicina, a Histria e a Sociologia, que ora realavam seu carter
religioso e submisso, ora profano e imoral, levando a uma construo
social identitria que dificultava sua identificao como uma profisso
relacionada rea da sade (PADILHA; BORENSTEIN; 2006;
PADILHA; BORENSTEIN; SANTOS, 2011).
O distanciamento das parteiras, das religiosas e em seguida das
enfermeiras, sobre a influncia das correntes socioeconmicas,
culturais e polticas, assim como sobre a dominao da Igreja e
posteriormente dos mdicos sobre a prtica do cuidado, fez com que
sua identidade profissional ficasse marcada indelevelmente por sua
herana passada, isto , pelo sacerdcio, pela subordinao ao
Introduo 40
trabalho mdico, pela prevalncia da feminizao, dentre outros
(COLLIRE, 1989; PADILHA; BORENSTEIN, 2005).
A prpria desginao enfermeira suscita controvrsias.
Campos e Oguisso (2008) chamam a ateno para o fato de que a
denominao enfermeira ou enfermeiro no define
adequadamente a profisso, por sua associao com a noo de
enfermidade ou doena. A amplitude da prtica atual da enfermeira
muito mais complexa do que o foco na doena ou no doente,
abrangendo atividades de promoo da sade, preveno do
adoecimento, reabilitao e recuperao da sade. Na dcada de
1960, a Associao Brasileira de Enfermagem empreendeu uma
tentativa de mudana do nome da profisso, buscando auxlio entre
intelectuais da Academia Paulista de Letras, sem que se chegasse
alterao.
As definies existentes mais complicam do que explicam o
significado da profisso e acabam por afetar a representao social
sobre a Enfermagem e a enfermeira, conformando e legitimando
ideias que os indivduos tm de si mesmos e do grupo a que
pertencem, ou seja, a identidade profissional.
Na lngua inglesa, o primeiro registro da palavra nurse aparece
no ano de 1526, significando mulher que amamenta ou que cuida,
consistindo numa forma reduzida do termo nourish (nutrir). Outro
significado pode ser segurar carinhosa e cuidadosamente nos
braos. Pode ainda significar nutrir, alimentar e cuidar de doentes. A
palavra nurse pode referir-se a berrio, viveiro de plantas, casa de
repouso de idosos, dentre outros. J na lngua francesa, inexiste a
palavra Enfermagem, apenas enfermeira. Nos idiomas nrdicos
no existem as palavras Enfermagem e enfermeira, sendo
utilizados os termos profisso e profissionais da sade (SANTOS,
2011).
Na literatura sobre a histria dos cuidados ao ser humano e
sobre a histria da Enfermagem destacam-se imagens, figuras e
Introduo 41
smbolos que passaram a forjar identidades e manipular opinies
sobre a profisso e o exerccio profissional.
Alguns historiadores da Enfermagem brasileira afirmam que os
instrumentos de simbolizao e a ritualizao contriburam para a
incorporao de um habitus e a criao de esteretipos que hoje
influenciam a forma como as enfermeiras percebem-se e so
percebidas pela sociedade. A propaganda, o uniforme, a estrutura
fsica das escolas de enfermagem, as insgnias, os retratos, os
objetos como a lmpada, os contedos abordados nos cursos, os
discursos e os rituais de formatura estavam impregnados de uma
ideologia que destacava o servio abnegado, tendo por objetivo atrair
moas da classe mdia, de bons costumes e esprito altrusta, para
simbolizar a ordem e executara as determinaes governamentais na
primeira reforma sanitria brasileira (BARREIRA, 1993; BARREIRA,
1998; PORTO; SANTOS, 2009; SANTOS et al, 2011).
Predominava a identificao da Enfermagem como prtica
feminina, exercida ora de forma caritativa ou sacerdotal por mulheres
religiosas, ora de forma inescrupulosa por mulheres imorais; como
prtica leiga ou de pouca qualificao educacional, condizente com
uma baixa remunerao; profisso auxiliar ao exerccio da Medicina,
dentre outros (COLLIRE, 1989).
Personagem magnfica ou rebaixada, sublime ou
desprezada, sobre-estimada ou desvalorizada, a
enfermeira, figura mtica, determinada pelo papel que
dela se espera mais do que por aquilo que deveria
caracterizar profissionalmente e no pessoalmente a
sua prtica de cuidados (COLLIRE, 1989; p. 16; grifo da
autora).
Pelo fato de a Enfermagem pr-profissional ter nascido como
atividade domstica, de carter manual, assentada no empirismo de
mes de famlia, monjas ou escravos, permaneceu por longo perodo
destituda de qualquer conhecimento especializado prprio, de poder
e de prestgio. Os cuidados de Enfermagem, apesar de
imprescindveis e complementares atividade mdica, no eram
Introduo 42
remunerados e no tinham reconhecimento social, atrelados que
estavam s atividades domsticas (SILVA, 1986).
Baseada em Foucault (1978), Silva (1986) assinala que a
inexistncia de saber esotrico em algumas reas de conhecimento
implica falta de poder e desprestgio. O saber esotrico , na
linguagem da sociologia das profisses, um linguajar prprio a uma
profisso ou rea de conhecimento; linguagem tcnica, especializada,
codificada (MACHADO, 1995).
... a enfermagem, entretanto, no se constitura ainda
como um saber especializado. O enriquecimento
progressivo e admirvel da medicina, a partir do sculo
XVI, no encontrou nenhuma correspondncia na rea da
enfermagem que, at meados do sculo XIX, manteve-se
fora dos domnios intelectuais propriamente ditos,
identificada quase que exclusivamente aos servios
domsticos (SILVA, 1986; p. 98).
Ao longo do perodo pr-capitalista, a prtica de Medicina
demandava um preparo especfico, inicialmente a partir da
transmisso oral de uma gerao a outra e, mais tarde, codificado em
livros sagrados do Egito Antigo, no Cdigo de Hamurabi, nos Escritos
Hipocrticos, dentre outros (OGUISSO, 2007; SILVA, 1986).
Quanto questo salarial, na civilizao antiga, o mdico-
arteso geralmente recebia pelos seus prstimos em espcie ou
dinheiro. J na Idade Mdia, houve diviso tcnica e social do trabalho
entre os fsicos (mdicos internos) e cirurgies-barbeiros (leigos), que
persistiu at final do sc. XVIII, quando se uniram no ensino e na
prtica. Quando exercida por clrigos, a Medicina estava sob o signo
da caridade e do sacerdcio, no sendo atividade remunerada,
diferentemente do que ocorria com o cirurgio-barbeiro, cuja prtica
constitua uma profisso (SILVA, 1986).
Para a autora, ao longo da histria, os homens desenvolveram
condies para assumir papel hegemnico na produo econmica,
que no esto fundamentalmente ligadas aos aspectos biolgicos.
Embora sempre presentes no mundo do trabalho, as tarefas
Introduo 43
desempenhadas pelas mulheres sempre foram menos valorizadas
socialmente.
A Enfermagem tem ocupado um status subordinado categoria
mdica, definida (ainda) na sociedade ocidental como profisso
masculina, de tal modo que o trabalho da enfermeira no
desprestigiado por ser feminino, mas feminino por ser
desprestigiado (SILVA, 1986).
Castro Santos (2008) aponta o predomnio de questes como
religiosidade, moralidade, maternidade e represso no ethos
profissional da Enfermagem. No entanto, para o autor:
... em vez de se chocar com a dimenso profissional, na
verdade pde, em muitos casos, representar um substrato
emocional poderoso para a conquista de um ns coletivo,
condio indispensvel para a busca de posies de
autonomia (CASTRO SANTOS, 2008, p. 15).
A Revoluo Industrial intensificou a diferenciao entre as
atividades econmicas e o trabalho domstico. No capitalismo, a
preocupao com a salvao das almas foi substituda pela
preocupao com a preservao dos corpos saudveis para o
desempenho de funes produtivas no processo de acumulao de
capital (SILVA, 1986).
As polticas de sade pblica adotada pelo Estado decorreram
de necessidades especficas do sistema produtivo ou do capital.
Havia um novo quadro em que predominam as doenas
infectocontagiosas e os acidentes de trabalho, com distribuio
desigual entre pobres e ricos. A Enfermagem tambm enfrentou
mudanas quando da transformao do modo de produo. De
ocupao pouco qualificada durante o perodo pr-profissional,
passou a trabalho assalariado, cujas atividades desenvolvem-se
majoritariamente no hospital, fortemente influenciada pela Medicina.
Com a Revoluo Industrial, os novos mtodos diagnsticos e
teraputicos passaram a exigir maior preparo do pessoal paramdico,
trazendo, como consequncia, as especializaes (SILVA, 1986).
Introduo 44
V-se, portanto, que a evoluo profissional na Enfermagem
est atrelada definio de quem a enfermeira, transpondo uma
definio forjada sobre o seu papel para uma identidade de
prestadora de cuidados de enfermagem. Trata-se da identificao de
sua razo de ser, o significado, a projeo social e econmica da
prestao de cuidados que oferece (CARVALHO, 2007).
Ao longo de sua histria, a Enfermagem vem desconstruindo
paradigmas e procurando estabelecer outros mais condizentes com o
entendimento de seu papel na sociedade (Padilha; Borenstein;
Santos, 2011). Conhecer a origem e a evoluo profissional em
Enfermagem permite compreender sua posio e os deveres que lhe
correspondem.
A Enfermagem um saber especfico de cuidar e uma
profisso da sade desenvolvida em estreita relao com
a histria da humanidade, e ser sempre til enfermeira
uma reviso desta para melhor compreenso daquela
(CARVALHO, 2007; p. 502).
Neste estudo, parte-se da concepo de que as profisses so
ocupaes que adquiriram tal status a partir da aquisio de
conhecimento por meio do ensino formal (learned professions); do
oferecimento de um mercado prprio de servios e de entidades que
as representam. Tais aquisies ocorrem por negociaes com o
Estado, que garante legitimidade jurdico-poltica s profisses e
possibilidade de reproduo da cultura profissional e o controle sobre
seus membros.
As profisses tambm so formas de grupos organizarem-se e
reivindicarem sua posio na estrutura social, pois:
... pertencer a uma profisso pertencer a uma classe
social com um lugar determinado na hierarquia dos
poderes reguladores da sociedade (COLLIRE, 1989; p.
16).
Introduo 45
1.2 A ENFERMAGEM PR-PROFISSIONAL: AS ORIGENS
DAS PRTICAS DE CUIDAR
Como prtica social, o cuidado vem sendo desenvolvido desde
os primrdios da histria da humanidade, incialmente sem pertencer
a um oficio ou profisso, sendo prestado por um cuidador, para
preservar a vida individual e coletiva (COLLIRE, 1989; FREITAS,
2011).
cuidar... um ato de vida que tem, primeiro e antes de
tudo, como fim, permitir a vida continuar, desenvolver-se
e assim lutar contra a morte: morte do indivduo, morte do
grupo, morte da espcie (COLLIRE, 1989, p. 27).
O cuidado refere-se a uma ao autodirigida, desde que haja
autonomia para realiz-lo, mas tambm um ato de reciprocidade
oferecido a outra pessoa que necessite de ajuda, temporal ou
definitivamente. A Enfermagem constituiu-se como prtica social
tendo em vista o atendimento a interesses ou necessidades sociais,
fazendo uso de saberes prprios a fim de transformar uma dada
realidade (COLLIRE, 1989; FREITAS, 2011).
A profisso de enfermagem.... qualifica como cuidados a prestao que oferece, cuidados esses muito
recentemente denominados cuidados de enfermagem
(COLLIRE, 1989; p. 15; grifos da autora).
certo que o conceito de doena e as formas de desenvolver o
cuidado guardam relao com o contexto socioeconmico, poltico e
cultural em cada poca ou sociedade especfica (Ciosak, 2004).
Equivale a dizer que em cada fase ou perodo da histria da
humanidade h concepes predominantes sobre o processo sade-
doena, o que implica diferentes formas de desenvolver o cuidado
(OLIVEIRA; EGRY, 2000).
Nas sociedades primitivas, a organizao das tarefas para o
atendimento das necessidades dirias atribuiu mulher a
responsabilidade de cuidar dos filhos, da casa, dos enfermos,
Introduo 46
enquanto que aos homens cabiam os deveres nobres como a caa,
a pesca, a guerra, a administrao das cidades, aldeias e campo, bem
como a funo de guardar os segredos mstico-religiosos da cura das
enfermidades (FREITAS, 2011; PILARTES; SNCHEZ, 2014;
OGUISSO, 2007; SILVA, 1986).
Inicialmente exercido pelas mes, monjas e escravos, no seio
das famlias, o cuidado era baseado em um saber de senso comum e
desprovido de conhecimento especializado e intrnseco a sua prtica,
por vezes sendo considerado uma forma primitiva de cuidado
(FREITAS, 2011; OGUISSO, 2007; OGUISSO; CAMPOS; MOREIRA,
2011; PADILHA; BORENSTEIN; SANTOS, 2011; SILVA, 1986).
A necessidade de sobrevivncia da espcie humana levou ao
desenvolvimento das prticas de cuidar, caracterizadas inicialmente
pelo empirismo (observncia da natureza, intuio e observao) e o
carter mgico-religioso. As mulheres encarregavam-se
predominantemente do cuidado, cabendo aos feiticeiros a cura das
enfermidades e o tratamento de feridas, por meio de rituais
(COLLIRE, 1989; PADILHA, BORENSTEIN, SANTOS, 2011; SILVA,
1986).
Nas sociedades tribais primitivas, o incomum ou inexplicvel era
atribudo s divindades. Os feiticeiros uniam magia e religio com os
recursos naturais disponveis, praticando uma medicina baseada em
ritos e frmulas complexas, as quais requeriam preparo. O cuidado
aos doentes e feridos era feito pelas mulheres das famlias, atividade
esta atrelada ao cuidado domstico de crianas e idosos, no
requerendo conhecimento ou treinamento por ser apreendido na
rotina da vida familiar. De fato, os cuidados realizados no domiclio
constituem a forma mais antiga de ateno ao ser humano, uma vez
que este sempre precisou de cuidados (PADILHA; BORENSTEIN;
SANTOS, 2011; SILVA, 1986).
Na Grcia Antiga, acreditava-se que a doena tinha causas
sobrenaturais, era um mal afastava o homem do estado de equilbrio.
Introduo 47
O cuidado era prestados por sacerdotes nos santurios de Asclpio
(Esculpio dos romanos), os quais foram considerados os primeiros
mdicos gregos e faziam uso de elementos mgicos, religiosos e
empricos (PADILHA; BORENSTEIN; SANTOS, 2011; SILVA, 1986).
Hipcrates (460 a.C. a 375 a.C.), grego considerado o pai da
medicina, contestou o misticismo nas prticas de sade, atribuindo a
origem das doenas ao desequilbrio entre os humores do corpo e as
condies climticas e atmosfricas. Defendia a viso holstica do
doente, a importncia da histria clnica, da epidemiologia e do exame
fsico, enfatizando a capacidade curativa do prprio corpo, auxiliado
pela natureza (OGUISSO, 2007; PADILHA; BORENSTEIN; SANTOS,
2011; SILVA, 1986).
Foi Hipcrates quem estabeleceu um assistente do mdico que,
devidamente treinado (portanto, no leigo), deveria observar e assistir
o doente, tomar decises teraputicas durante a ausncia do mdico
e relatar o ocorrido durante esse perodo. Alguns autores chegam a
consider-lo tambm o pai da Enfermagem (OGUISSO, 2007).
A influncia romana destacou-se no desenvolvimento da sade
pblica, notadamente na construo de aquedutos, termas, banho
pblicos, limpeza das ruas, esgotos. A Medicina tambm se
modificou: inicialmente era mgica, praticada por escravos;
entretanto, as guerras para expanso do imprio suscitaram a
importao de mdicos estrangeiros pelo governo romano, a partir do
sculo IV A.C. O cuidado aos doentes e pobres geralmente era feito
por militares ou mulheres da nobreza romana, as quais
transformavam seus palcios em hospitais. As matronas romanas
eram um grupo de mulheres que prestava cuidados aos pobres e
doentes e, abdicando da vida social, transformavam seus palcios em
abrigos. Dentre elas, destacaram-se Santa Helena, Marcela, Fabola
e Paula (OGUISSO, 2007; PADILHA, BORENSTEIN, SANTOS, 2011;
SILVA, 1986).
Introduo 48
Por volta dos sculos III e V d.C., com a decadncia do imprio
romano, sobretudo pelas invases brbaras, somada influncia do
cristianismo, levaram a um novo modo de produo, no qual a religio
passou a desempenhar um importante papel (PADILHA;
BORENSTEIN; SANTOS, 2011; SILVA, 1986).
Com a gradativa desintegrao do antigo modo de produo e a
decadncia econmica que se seguiu, as novas relaes econmicas
deram origem ao feudalismo. A urbanizao perdeu fora e ganharam
terreno a agricultura de produo servil e as relaes de vassalagem.
Ao panorama de superstio e a ignorncia, acrescentava-se o
desprezo vida terrena incentivado pela Igreja. Paradoxalmente, as
ordens monsticas mantiveram a cultura helnica por meio de seus
copistas e assumiram a assistncia aos pobres (PADILHA;
BORENSTEIN; SANTOS, 2011; SILVA, 1986).
No medievo, a sociedade ocidental passou a se organizar em
trs classes: o clero, a nobreza (cavaleiros e senhores feudais) e os
citadinos (artesos, mercadores e camponeses). A nica atividade
prestigiada era a dos guerreiros, sendo as demais consideradas
degradantes). Feiticeiros foram substitudos por sacerdotes e
mdicos-artesos, sendo que, nas famlias de posse, o cuidado direto
ao doente, antes exclusivo dos familiares, passou a admitir tambm o
auxlio de escravos, notadamente do sexo feminino, pela semelhana
com o trabalho domstico (OGUISSO, 2007; PADILHA;
BORENSTEIN; SANTOS; 2011).
O advento do cristianismo trouxe a concepo da enfermidade
como castigo divino, mas tambm como instrumento de remisso dos
pecados. queles que prestavam cuidados aos doentes abria-se a
possibilidade de salvao da prpria alma ao exercer a caridade e o
amor ao prximo, embora alguns autores apontem que, na realidade,
tal ideologia tenha contribudo para reproduzir as relaes sociais
ento estabelecidas (FREITAS, 2011; SILVA, 1986).
Introduo 49
Nos primeiros sculos da era crist, em Roma, houve a
constituio do diaconato, cujo propsito consistia em levar conforto
fsico e espiritual a pobres e doentes. Vivas, virgens, religiosas e
mulheres da nobreza deram origem a diversas ordens ou
congregaes religiosas que se ocupavam do cuidado, dando s
mulheres a oportunidade de se dedicar a atividades fora do ambiente
domstico. As diaconisas eram visitadoras e cuidadoras domicilirias,
consideradas as precursoras da Enfermagem de Sade Pblica
(OGUISSO, 2007; SILVA, 1986).
Iniciadas no sculo XI, as Cruzadas eram expedies militares
crists que tinham por objetivo resgatar a Terra Santa do poder dos
muulmanos. A necessidade de cuidar dos feridos das batalhas
demandou a criao de hospitais, como o de So Joo de Jerusalm
e o de Santa Maria de Madalena, em que monges-militares cuidavam
tanto de soldados como de peregrinos. Tambm foram criadas ordens
militares de Enfermagem, como os Cavaleiros de So Joo, de So
Lzaro, os Templrios e os Teutnicos.
A partir do sculo XIII, a influncia da burguesia ascendente
levou secularizao do hospital, mantendo-se, entretanto, a atuao
de freiras e monges como enfermeiros. Com a Reforma Protestante,
o hospital seculariza-se ainda mais e a assistncia mdica passou a
ser considerada responsabilidade da comunidade e no da Igreja.
Sob a tica de eliminao da pobreza e fortalecimento dos Estados
Nacionais em ascenso, o hospital , na sua essncia, um local de
assistncia, separao e excluso do pobre e doente, um lugar onde
se vai para morrer. Os trabalhadores do hospital no visavam cura
do doente, mas uma forma de caridade e salvao da prpria alma
(MELO,1986).
Os cuidados de Enfermagem poca eram simples, voltados
para os cuidados fsicos, como alimentao, sono, hidratao,
cuidados com as feridas e eram realizados por religiosos ou pelos
prprios familiares. At o sculo XIX, as prticas de cuidado visavam
Introduo 50
ao conforto da alma do individuo doente, independentemente da
prtica mdica (FREITAS, 2011; SILVA, 1986).
Durante a Idade Mdia, o poder poltico e econmico da Igreja
favoreceu o conformismo, a hierarquia, a obedincia e a disciplina nas
ordens monsticas, afetando as prticas dos monges-enfermeiros e
nas organizaes seculares posteriores, dentre elas o sistema
nightingaleano (FREITAS, 2011; OGUISSO, 2007; SILVA, 1986).
A enfermagem aparece neste perodo como prtica leiga,
desenvolvida por religiosos e deixou como legado uma
srie de valores que, com o passar do tempo, foram
legitimados e aceitos pela sociedade como caractersticas
inerentes enfermagem como: a abnegao, o esprito de
servio, a obedincia e outros atributos que deram
enfermagem a conotao de sacerdcio, pelo qual seriam
rotulados pelos sculos seguintes (CIOSAK, 2004; p. 60).
Os monastrios, que centralizavam a educao, no
empreendiam esforos nos estudos de laboratrio e histria.
Entretanto, com a Renascena carolngia, surgiram escolas e
bibliotecas e foram criadas universidades. Acredita-se que a primeira
tenha sido a de Salerno, que j tinha estudos mdicos desde o sculo
X; em seguida as de Bolonha (1150) e Paris, no final do sculo XII
(SILVA, 1986).
Com a urbanizao crescente, as pssimas condies sanitrias
e de vida favoreceram a ocorrncia de epidemias como a Peste Negra
(1340-1360). Em decorrncia, a Medicina retomou a histria clnica e
instituiu a quarentena, e foram criados os primeiros hospitais: Htel
Dieu, na Frana; Hospital Saint Thomas e So Bartolomeu em
Londres (SILVA, 1986).
Durante a Idade Mdia, inmeras pessoas no cuidado aos
pobres e doentes, sendo reconhecidas como precursoras de
Enfermagem, dentre elas So Vicente de Paulo (1576-1660) e Santa
Luisa de Marillac (1591-1660). So Vicente de Paulo nasceu na
Frana e viveu numa poca de importante crise econmica, social e
poltica, relacionada Guerra dos Trinta Anos. Comeou sua carreira
Introduo 51
como proco e no contato com a comunidade nos domiclios, notou a
importncia do cuidado junto aos pobres e doentes. Juntamente com
Luisa de Marillac, viva e de famlia nobre, fundou a comunidade
Filhas de Caridade de So Vicente de Paulo e uma escola para
preparar camponesas para serem cuidadoras, cujo trabalho inclua
cuidados fsicos e espirituais (OGUISSO, 2007).
As Filhas de Caridade chegaram a administrar hospitais
franceses, como o Hospital Dieu em Paris, passando posteriormente
a outros continentes. Chegaram ao Brasil em 1852 para trabalhar na
Santa Casa de Misericrdia do Rio de Janeiro, numa poca de
epidemia de febre amarela e clera, e depois se espalharam para
outros hospitais do Pas (OGUISSO, 2007).
O restabelecimento do comrcio com o Oriente, o deslocamento
e expanso do eixo econmico do campo para as cidades, as
Cruzadas, a Peste Negra, o fortalecimento das monarquias nacionais,
no final do sculo XIV, desencadearam um processo de declnio do
feudalismo e o alvorecer de uma nova ordem social (SILVA, 1986).
Nesse sculo e no seguinte, ocorreu um perodo de importantes
transformaes econmicas, polticas e intelectuais, evidenciado
pelos descobrimentos martimos, a revoluo agrcola, o
desenvolvimento do sistema bancrio e a explorao das colnias
americanas gerando riquezas. Todo esse panorama de
transformaes das relaes econmicas e polticas culminou na
constituio da burguesia, formando os alicerces para a Revoluo
Industrial dos sculos XVII e XVIII (SILVA, 1986).
Com o Renascimento e seus ideais (iluminismo, naturalismo,
racionalismo etc.), o interesse pelo estudo do corpo humano
ressurgiu, levando ao desenvolvimento das disciplinas de Anatomia,
Fisiologia, Histologia, Obstetrcia, Ginecologia, Cirurgia etc. As
catstrofes que acometeram a Europa como a fome, a Peste Negra e
a Guerra dos Cem Anos geraram escassez de mo de obra e
diminuio da produo e do consumo (SILVA, 1986).
Introduo 52
Em 1527, o rei Henrique VII da Inglaterra teve seu pedido de
divrcio da primeira esposa, Catarina de Arago, negado pelo papa
Clemente VII. Em consequncia, o rei fundou a Igreja Anglicana,
estabelecendo-se como chefe religioso do pas, confiscou os bens da
Igreja Catlica e expulsou os religiosos da Inglaterra. Sem haver
quem os substitusse de imediato, desencadeou-se uma grande crise
nos hospitais e abrigos de doentes e rfos onde prestavam o
cuidado. A estratgia que se seguiu foi o recrutamento de mulheres
nas ruas e presidirias, de pouca ou nenhuma formao educacional
e pouco escrupulosas. Esse foi o perodo conhecido como perodo
negro da Enfermagem e estendeu-se de 1500 a 1860 (Oguisso,
2007). A prtica de enfermagem passou a ser considerada
abominvel pelas mulheres da nobreza, contribuindo para declnio
dos padres assistenciais e para o desprestgio da enfermagem nos
sculos XVI e XVII (PADILHA; BORENSTEIN; SANTOS, 2011).
No final do sculo XVII, a burguesia havia se tornado dominante,
impulsionada principalmente pela Reforma Protestante que
apregoava o abandono da vida monstica, a condenao do lucro e
da riqueza, pois estes ltimos eram vistos como sinais de
predestinao e escolha divina, e o trabalho como meio para atingir a
graa (SILVA, 1986).
A diminuio do interesse pela vida monstica e a reduo do
nmero de monjas, incitados pela Reforma, ocasionaram a
obsolescncia do sistema de assistncia social e sade dos pobres,
ento vigente. A assistncia sade, que havia sculos vinha sendo
exercida pela Igreja, deixou de ser gratuita e passou a requerer
remunerao, ainda que de forma miservel. As mulheres que
trabalhavam como enfermeiras eram as que no serviam para a
indstria, geralmente analfabetas, bbadas e imorais (SILVA, 1986).
Foram criados novos hospitais, que pouco a pouco se
transformaram de asilos e hospedarias para deserdados em centro de
estudos, pesquisas e tratamentos. O setor sade desvinculou-se da
Introduo 53
assistncia social, articulou-se esfera produtiva e passou a ser
responsabilidade legal do Estado.
... a medicina perde o seu carter religioso para articular-se direta ou indiretamente com a esfera produtiva. No
mais a salvao das almas o objetivo principal das
atividades mdicas e de enfermagem, mas a conservao
e adaptao da fora de trabalho dos corpos necessrios
ao setor produtivo (FOUCAULT, 1978; p. 49).
Nesse contexto de solidificao do modo de produo
capitalista, no sculo XIX, a Enfermagem institucionalizou-se nos
hospitais, os quais passam a se constituir como local de cura. Surge
uma nova concepo do hospital como local de tratamento, estudo e
ensino de Medicina, notadamente fundada em razes polticas e
econmicas.
Ao mesmo tempo em que o saber e prtica mdica passavam
por transformaes, incorporou-se a prtica da disciplina hospitalar,
oportuna vigilncia que se fazia necessria. O detalhamento de
regulamentos, inspees e controle sobre a vida e o corpo configuram
uma racionalidade econmica ou tcnica da escola, do quartel ou do
hospital. De local onde se aguardava a morte, os hospitais passam a
coordenar cuidados, vigiar doentes, separ-los e impedir contgios
(FOUCAULT, 1978).
A partir de ento, surgiram na Inglaterra e nos Estados Unidos
hospitais no mais administrados pelo governo, mas sim pelos
cidados, em pssimas condies de higiene, e com uma
enfermagem ainda rudimentar. Ganhou espao um novo membro da
estrutura hospitalar, o mdico, ainda subordinado ao pessoal
religioso, sendo-lhe confiado um papel especfico e aos poucos o
hospital vai se tornando um local de formao profissional e
aperfeioamento cientfico.
Delineia-se ento um processo de diviso das funes do
trabalho, no apenas tcnico, mas que tem seu significado na
reproduo do trabalho intelectual/manual. O trabalho de assistncia
Introduo 54
ao doente o primeiro a se separar do ofcio mdico, passando a
constituir o trabalho de enfermagem (SILVA, 1986).
Entre as religiosas e leigos que formavam o pessoal de
enfermagem, ainda que sem preparo tcnico, j havia uma diviso
social do trabalho como reproduo da hierarquia dos conventos e
dos hospitais. As religiosas coordenavam e supervisionavam o
servio hospitalar e os leigos voluntrios ou mal pagos eram
responsveis pelo trabalho manual (SILVA, 1986).
A Enfermagem passou a requerer preparo tcnico especfico
para exercer suas atividades, tendo o hospital como espao de
aprendizagem. Nesse novo hospital considerado fbrica de
produo de servios de sade e no mais hospedaria de mendigos
e velhos, toma corpo a reforma da Enfermagem, abalizada na
separao entre a prtica religiosa e a tcnico-profissional, tendo em
vista a necessidade de contribuir para a melhora da qualidade e dos
resultados da assistncia (SILVA, 1986).
Segundo a autora, a conformao da prtica de Enfermagem
como profisso ocorre quando se separa, por um lado, dos leigos e
religiosos sem preparo e adquire certo status tcnico, e por outro, da
prtica mdica, assumindo suas funes tcnicas manuais. Mantm
a subdiviso tcnica do trabalho, reproduzindo a dicotomia social dos
novos agentes da profisso: as enfermeiras responsveis pelo ensino,
coordenao e superviso do trabalho e as executoras dos cuidados,
oriundas de classes sociais menos favorecidas (SILVA, 1986).
No sculo XIX, ainda persistiam algumas iniciativas de cuidados
domicilirios a pobres e doentes realizados por religiosos. Destaca-se
o trabalho do pastor Theodor Fliedner, da Igreja Protestante, que
fundou uma escola chamada Diaconisas de Kaiserwerth, com sua
esposa Frederika. O termo diaconisa foi usado como o objetivo de
evitar o uso da palavra enfermeira, dado o estigma que envolvia a
profisso na Europa poca. As estudantes tinham aulas de tica,
princpios religiosos, prticas de enfermagem, noes de
Introduo 55
farmacologia, dentre outros. Saliente-se que essa escola recebeu
Florence Nigthingale em 1851. Entretanto, por no ter se constitudo
como um curso formal, mesmo que tivessem realizado trabalho nos
hospitais, as formadas eram consideradas aptas apenas para realizar
atividades domicilirias (OGUISSO, 2007).
Ainda no sculo XIX, houve a criao da Cruz Vermelha
Internacional, por iniciativa do suo Jean Henri Dunant (1828-1910),
motivado pelos horrores que viu em 1859 por ocasio da Batalha de
Solferino na guerra que envolveu a Itlia e a Frana contra a ustria.
Em 1864, na Primeira Conveno de Genebra, foi estabelecido que
cada pas membro deveria criar sua prpria sociedade da Cruz
Vermelha, cujo pessoal ficaria responsvel por cuidar de feridos de
guerra de qualquer nacionalidade (OGUISSO, 2007).
Atualmente, em Genebra, esto sediadas duas entidades: o
Comit Internacional da Cruz Vermelha e a Federao ou Liga das
Sociedades da Cruz Vermelha. A primeira ocupa-se da preservao
de dados sobre pessoas desaparecidas em guerras e a segunda
mantm contato com as entidades nacionais e cuida de questes
relativas cooperao em situaes de catstrofe, presos polticos e
outros (OGUISSO, 2007).
Miranda (1996) chama a ateno para as condies
degradantes dos pobres na sociedade inglesa no sculo XIX, a
chamada era vitoriana. A promulgao da Nova Lei dos Pobres, ou
New Poor Law a primeira era de 1600 pelo governo britnico, em
1834, contribuiu para estabelecer a pobreza e a doena como
fenmenos naturais, deixando de fazer parte do domnio das relaes
econmicas e, portanto, dos problemas do Estado. As cidades e
zonas industriais cresciam rpida e descontroladamente, com
escassas condies sanitrias e habitacionais; as guerras, as lutas de
classe, o preconceito religioso e tnico (darwinismo social),
juntamente com o alcoolismo, o aumento da criminalidade, as
desavenas familiares resultantes da dissoluo dos feudos, dentre
Introduo 56
outros, conformavam o panorama catico que a sociedade inglesa
enfrentava (MIRANDA, 1996).
Segundo a autora, as obras literrias de Charles Dickens (1812-
1870), contemporneas ao perodo vitoriano, embora no fatuais,
constituem documentos singulares que retratam a conscincia social
sobre questes as que envolviam aquela sociedade em particular, por
meio da crtica e da denncia das injustias sociais que o autor
assume atravs de seus personagens.
Com sua produo literria, Dickens contribuiu para evidenciar
as marcas morais que caracterizaram o nascimento da assim
chamada Enfermagem Moderna. A autora considera que a fico de
Dickens contribuiu na formao da identidade profissional das
enfermeiras. Em seus romances Oliver Twist e Martin Chuzzllewit,
Dickens alude a algumas mulheres que se ocupavam de assistir,
cuidar e disciplinar em instituies de sade, cujo perfil negativo
satiriza-se na personagem Sairey Gamp, a quem o autor descreve
como uma enfermeira obesa, corrupta, m, promscua e
permanentemente bbada (MIRANDA, 1996).
Nos sculos precedentes, a revoluo burguesa promoveu a
unio perfeita entre a tica protestante e o esprito do capitalismo; no
sculo XIX houve uma convulso... em todas as dimenses da vida,
que envolveu a economia, a moral, a poltica, a arte, dentre outros.
Podemos chamar os vitorianos de agressivos... porque
sua caa ao lucro e ao poder implicava em graves custos
sociais aos trabalhadores... exacerbando as tenses entre
os poderosos e os sem poder, entre os ricos e os pobres...
Foi uma poca de destruio que teria tido um destino
hediondo se no tivesse sido tambm uma poca de
preparao para a reconstruo (MIRANDA, 1996; p. 28).
nesse contexto do sculo XIX que Florence Nigthingale
empenhou-se para construir uma nova subjetividade para as
enfermeiras, na tentativa de superar o preconceito. Dickens descreve