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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ENFERMAGEM JULIANA GUISARDI PEREIRA CONTINUIDADES, AVANÇOS E RUPTURAS: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE PROFISSIONAL DE ENFERMEIRAS DA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA SÃO PAULO 2015

Continuidades, avanços e rupturas: a construção da identidade

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    ESCOLA DE ENFERMAGEM

    JULIANA GUISARDI PEREIRA

    CONTINUIDADES, AVANOS E RUPTURAS:

    A CONSTRUO DA IDENTIDADE PROFISSIONAL DE

    ENFERMEIRAS DA ESTRATGIA SADE DA FAMLIA

    SO PAULO

    2015

  • JULIANA GUISARDI PEREIRA

    CONTINUIDADES, AVANOS E RUPTURAS:

    A CONSTRUO DA IDENTIDADE PROFISSIONAL DE

    ENFERMEIRAS DA ESTRATGIA SADE DA FAMLIA

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

    Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade de

    So Paulo para a obteno do ttulo de doutora em

    Cincias.

    rea de concentrao: Cuidado em Sade

    Orientadora: Profa. Dra. Maria Amlia de Campos Oliveira

    VERSO CORRIGIDA

    O ORIGINAL ENCONTRA-SE DISPONVEL NA ESCOLA DE

    ENFERMAGEM DA USP.

    SO PAULO

    2015

  • AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL

    DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU

    ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE

    CITADA A FONTE.

    Assinatura: ____________________________

    Data___/___/___

    Catalogao na Publicao (CIP) Biblioteca Wanda de Aguiar Horta

    Escola de Enfermagem da Universidade de So Paulo

    Pereira, Juliana Guisardi

    Continuidades, avanos e rupturas: a construo da identidade

    profissional de enfermeiras da estratgia sade da famlia / Juliana

    Guisardi Pereira. So Paulo, 2015.

    314 p.

    Tese (Doutorado) Escola de Enfermagem da Universidade de

    So Paulo.

    Orientadora: Prof. Dr. Maria Amlia de Campos Oliveira

    rea de concentrao: Cuidado em Sade

    1. Enfermagem. 2. Prtica profissional. 3. Histria da

    enfermagem. 4. Sade da famlia. I. Ttulo.

  • Nome: Juliana Guisardi Pereira

    Titulo: Continuidades, avanos e rupturas: a construo da identidade

    profissional de enfermeiras da estratgia sade da famlia

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Enfermagem

    da Escola de Enfermagem da Universidade de So Paulo para a

    obteno do ttulo de doutora em Cincias

    Aprovada em: ____/____/____

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. _________________________ Instituio: __________________

    Julgamento: _____________________ Assinatura: __________________

    Prof. Dr. _________________________ Instituio: __________________

    Julgamento: _____________________ Assinatura: __________________

    Prof. Dr. _________________________ Instituio: __________________

    Julgamento: _____________________ Assinatura: __________________

    Prof. Dr. _________________________ Instituio: __________________

    Julgamento: _____________________ Assinatura: __________________

    Prof. Dr. _________________________ Instituio: __________________

    Julgamento: _____________________ Assinatura: __________________

  • DEDICATRIA

    s enfermeiras e enfermeiros que involuntria e

    imperceptivelmente contriburam para que eu construsse minha

    identidade profissional nesta (por vezes dbil) tentativa de me

    aproximar um pouquinho mais da enfermeira que eu queria ser, em

    ordem cronolgica: Pasqualina Jacomaci Sinhoretto, Maria Jlia

    Paes da Silva, Maria Amlia de Campos Oliveira (Mia), Francies

    Regyane de Oliveira, Marcia Regina Kretzer, Wnia Regina Martines,

    Mrio Sergio Vianna, Clarice Rabelo, Alexandre Fonseca Batista,

    Sebastio Junior Henrique Duarte, Ngima Luciana do Nascimento

    Brasil.

    E a todos os enfermeiros que diariamente contribuem para

    fazer do desafio de trabalhar na ESF uma construo incrvel.

  • AGRADECIMENTOS

    H tempos que venho considerando que esse trabalho no foi

    escrito apenas a duas mos. No que isso se trate da confisso de

    alguma transgresso tica na elaborao de uma pesquisa de cunho

    cientifico e que requer um produto de autoria individual. Refiro-me

    aqui aos diversos tipos de apoio que recebi ao longo dessa jornada

    rdua, penosa e por vezes solitria. No foram poucos os momentos

    em que pensei que a fora necessria para continuar havia se

    esgotado, tendo os olhos embaados em razo da saudade, ou

    cansados pelas horas noturnas passadas em claro.

    Quando criana, recordo-me da estria de um homem que

    percorreu um longo caminho para chegar ao final do arco-ris e

    encontrar o tesouro mas, quando chegou l, nada encontrou.

    Entretanto, olhando para trs, lembrou-se de como havia enfrentado

    inmeros obstculos para chegar at ali e que, para venc-los, havia

    recebido a ajuda de seus amigos. Foi ento que percebeu que seu

    verdadeiro tesouro eram seus amigos.

    Sou grata pelos desafios, pois eles contriburam para que eu

    desse o meu melhor, mesmo antes de saber se seria possvel. Mas

    sou duplamente grata pelos tesouros que tive ao meu redor seja

    perto, em casa, no trabalho, nos encontros; seja distncia, em uma

    mensagem instantnea, na rede social ou por telefone pessoas que

    me apoiaram e incentivaram a seguir em frente.

    Como felizmente somos esse todo indivisvel, o perodo em que

    se uma doutoranda tambm se me, esposa, irm, amiga,

    professora, cozinheira, motorista, s para citar algumas funes. Para

    dar conta de tudo isso, agradeo por ter pessoas queridas em minha

    vida.

    Agradeo infinitamente a minha famlia. minha me Maria

    Aparecida, ao meu pai Claudicilio, minha irm Marina, que nunca

  • mediram esforos para me acolher e dizer que era possvel. As

    palavras so incapazes de dizer o quanto os amo e sou eternamente

    grata por tudo que fizeram e fazem por mim.

    Aos meus queridos sogros Elisabete e Jos Soares (in

    memorian), que sempre foram to dedicados em nos apoiar

    fisicamente, inclusive mudando de cidade temporariamente, seja

    espiritualmente com suas oraes.

    Agradeo aos meus cunhados e cunhadas David, Elaine e

    Willian, e especialmente Elen e Andr, que por diversas vezes se

    dispuseram gentilmente a me auxiliar nos momentos mais cruciais e

    foram pais temporrios para a Isa. Sem vocs nada disso seria

    possvel. E aos meus queridos sobrinhos que permitiram que eu me

    tornasse a tia Ju: Hanna Kelly, Hadassa, Andrezinho e Antnio.

    A todos os meus tios e tias, especialmente tia Pasqua e tio

    Franco, pelo apoio constante e demonstraes de carinho que

    aqueceram meu corao em diversos momentos, especialmente no

    frio do hemisfrio norte. Tia Pasqua, voc um exemplo de tica, luta

    e conquista. Que a vida continue a lhe retribuir na medida de sua

    energia e generosidade.

    A todos meus primos e primas, para que tambm sempre

    alcancem os seus sonhos. Em especial a minha prima Jacque, a

    quem ouso chamar de irm mais velha, pelos conselhos, apoio, por

    compartilhar e sempre me acolher. Sua competncia inspira-me e

    tambm me faz querer ser melhor.

    Aos meus amigos especiais: Dbora, Carla, Tnia, Sebastio,

    Silvana, Julia, Ariane, Marcos e Vanessa. Que nossa antiga amizade

    continue assim e oxal um dia eu possa ser o suporte que vocs tm

    sido para mim.

    A minha querida orientadora, Profa. Dra. Maria Amlia de

    Campos Oliveira (Mia), que durante esses ltimos cinco anos vem

  • me mostrando que ensinar incentivar o voo e no podar as asas.

    Sua ampla generosidade, suas palavras de incentivo, alegria e

    compreenso foram to preciosas quanto seu vasto conhecimento e

    competncia, na qual pude me sustentar. Obrigada por sempre

    acreditar e me fazer avanar.

    Ao professor doutor Genival Fernandes de Freitas, a quem ouso

    chamar de querido professor. Sou grata vida por ter tido a

    oportunidade de encontr-lo em meu caminho, pela generosidade em

    partilhar seu conhecimento, pelas discusses, por sempre me receber

    to bem. Sua excelncia enquanto professor e pessoa tambm me

    fizeram mais forte.

    A professora doutora Maria da Glria Bonelli, que gentilmente se

    disps a partilhar seu domnio acadmico com algum que arriscou

    se aventurar pela Sociologia, e apontar direes criativas e

    enriquecedoras para o desenvolvimento deste trabalho.

    Agradeo tambm aos professores doutores da Escola de

    Enfermagem da Universidade de So Paulo, Renata Ferreira

    Takahashi, Maria Cristina Komatsu Braga Massarolo, Claudia Prado,

    Marcelo Jos dos Santos, Celia Maria Sivalli Campos, Valria Marli

    Leonello, Lislaine Aparecida Fracolli, Emiko Yoshikawa Egry, Lucia

    Yasuko Izumi, Elizabeth Fujimori e Suely Itsuko Ciozak por terem me

    apoiado de diversas maneiras ao longo dessa trajetria.

    As professoras doutoras Julie Faiman, Barbra Wall, Cyntia

    Connely, Jean Whelan, e em especial Patricia DAntonio pela

    orientao da minha pesquisa no Barbara Bates Center for the History

    of Nursing, da School of Nursing - University of Pennsylvania, com

    quem pude aprender e compartilhar experincias singulares durante

    o outono de 2014, quando realizei o doutorado sanduche. A Nancy e

    Geri pela ajuda em minha adaptao e acolhimento na Filadlfia, e a

    Jia e Sally pelo companheirismo.

  • Aos colegas de trabalho Mayumi Ucha, Daniela Navarro,

    Manoel Miranda Neto e Maria Elisa Manso pela parceria e pelo apoio

    constante. Aprendo e admiro cada dia mais vocs.

    Agradeo s colegas da Faculdade de Enfermagem da

    Universidade Federal do Mato Grosso, professoras doutoras Annelita

    Reiners, Maria Aparecida Gava, Neuci dos Santos, Wilza Pereira,

    Rosa Lcia Ribeiro, Mara Ribeiro, Aldenan da Costa, Neuma

    Zamariano, Marlene Oliveira, Joceli Lins, Magali Olivi e Irene Kreutz

    pelo apoio, incentivo, sugestes e companheirismo, e com as quais

    tive o prazer de compartilhar experincias durante quatro anos.

    Aos amigos do grupo de pesquisa Necessidades em Sade

    Coletiva: Cintia, Jaque, Elaine, Talita, Fernanda, Marcia e Juliane,

    pelas contribuies e parceria ao longo desse perodo, em especial

    Luzmarina, pela contribuio.

    Aos funcionrios do Departamento de Enfermagem em Sade

    Coletiva e da Secretaria de Ps-Graduao da Escola de

    Enfermagem da Universidade de So Paulo, pelo constante apoio.

    Meu muito obrigada, ainda, a Silvana e Silvia, da Comisso de

    Cooperao Internacional da Escola.

    Ao estimado Jaime dos Santos Junior, que gentilmente me

    agraciou com sugestes e recomendaes metodolgicas

    importantes. Tambem sou grata Providncia por ter encontrado

    esse parceiro durante a caminhada.

    Coordenao de Apoio de Pessoal de Nvel Superior

    (CAPES), que me contemplou com uma bolsa no pas, bem como no

    exterior, viabilizando o doutorado sanduche e apoiando

    financeiramente a realizao deste estudo.

    s enfermeiras e enfermeiros da Estratgia Sade da Famlia e

    aos profissionais do Ncleo de Apoio Sade da Famlia (NASF) da

    Superviso Tcnica de Sade do Butant, SP, que receberam uma

  • desconhecida e contriburam com seu tempo e dividiram suas

    histrias. Espero que o trabalho possa retribuir em alguma medida a

    fundamental participao de vocs. Meu muito obrigada a todos os

    demais funcionrios que colaboraram para que as entrevistas fossem

    realizadas.

    Obrigada aos queridos que me auxiliaram na transcrio das

    entrevistas: Leticia, Talita, Paola, Karine e Maicon. Vocs foram

    demais!

    Muito obrigada a todos que auxiliaram no cuidado de minha filha.

    Menciono aqueles a quem ainda no agradeci acima: Maria Cardoso,

    Alyne, Raphael, Nelci, Glaucia.

    Por ltimo, mas no com menor importncia, quero agradecer a

    duas pessoas especiais. Ao meu amado esposo George, que

    suportou minhas ausncias, apoiou-me nas dificuldades e nas

    decises mais cruciais e que vibrou comigo nas conquistas. Obrigada

    por sempre acreditar em mim e fazer o melhor pela nossa famlia.

    Agradeo tambm a minha filha (e princesa) Isabella, que

    mesmo sem a possibilidade de escolha, suportou bravamente as

    mudanas, as ausncias, os momentos de espera e sempre me

    encheu de energia, alegria e motivao para seguir em frente. A

    mame tem muito orgulho de voc. Obrigada por abrilhantar minha

    vida com alegria e paz todos os dias. Esse trabalho dedicado a voc.

    Sou grata a Deus pelo dom da vida e pela esperana e a certeza

    de dias sempre melhores. At aqui nos ajudou o Senhor!

  • PEREIRA, JG. Continuidades, avanos e rupturas: a construo da

    identidade profissional de enfermeiras da Estratgia Sade da

    Famlia. Tese (doutorado). So Paulo, Escola de Enfermagem da

    Universidade de So Paulo, 2015.

    RESUMO

    Pesquisa de natureza descritiva e exploratria, que teve por objetivo

    analisar o processo de construo da identidade profissional de

    enfermeiras que atuam na Estratgia Sade da Famlia (ESF) e

    verificar como se identificam (identidade para si) e so identificadas

    (identidade para o outro) pelos demais profissionais de sade. O

    referencial terico-metodolgico foi a hermenutica dialtica,

    ancorada nos marcos tericos da Sociologia das Profisses e na

    Histria da Enfermagem. Foram entrevistadas 27 enfermeiras da ESF

    e 10 profissionais do Ncleo de Apoio Sade da Famlia (NASF) de

    uma Superviso Tcnica de Sade do municpio de So Paulo. O

    material emprico foi submetido tcnica de anlise de discurso. Os

    resultados revelaram que, entre as participantes, a escolha pelo curso

    de graduao em Enfermagem foi influenciada pelo conhecimento

    prvio da profisso; os estgios da graduao foram importantes no

    processo de formao inicial; os docentes e os enfermeiros de campo

    foram os principais modelos profissionais e os alicerces para o incio

    da vida profissional, motivando-as a trabalhar na ESF. Tambm foram

    influenciadas pelo desenvolvimento do prprio trabalho. Na

    identidade para si, as enfermeiras veem-se como coordenadoras da

    equipe, exercendo liderana nas unidades de sade, a profissional

    que resolve tudo, que tem autonomia e referncia para os usurios

    dos servios e educadora em sade. Na identidade para o outro, a

    enfermeira vista como gerente da equipe e referncia da equipe

    para a coletividade, a parceira da equipe. Entretanto, a enfermeira

    tambm vista como uma profissional desconhecida e desvalorizada,

    em busca de especificidade e reconhecimento de seu papel

    profissional. A identidade profissional da enfermeira da ESF transita

  • entre uma identidade socialmente imposta e outra reivindicada pelo

    grupo profissional. A negociao de novas identidades vai ganhando

    novos contornos pela ampliao dos conhecimentos da clnica,

    medida que as enfermeiras se aproximam da prestao de cuidados

    diretos aos usurios. A gesto do processo de trabalho e dos conflitos

    coloca-as em uma posio diferenciada na equipe multidisciplinar, ao

    mesmo tempo em que um investimento crescente despendido no

    estabelecimento de vnculos significativos com a coletividade.

    Conclui-se que a enfermeira continua a lutar por afirmao e

    reconhecimento profissional, em busca de uma imagem de si

    condizente com a concretude de sua prtica.

    Palavras chave: Enfermagem; Prtica Profissional; Histria da

    Enfermagem; Estratgia Sade da Famlia.

  • PEREIRA, JG. Continuities, advances and breaks: construction of

    professional identity of nurses in Family Health Strategy. [Thesis]. So

    Paulo, School of Nursing, University of So Paulo, 2015.

    ABSTRACT

    Exploratory and descriptive study that aimed to analyze the process of

    construction of professional identity of nurses who work at the Family

    Health Strategy (FHS), and see how they identify themselves (identity

    for themselves) and how they are identified by other health

    professionals (identity to the other). The theoretical and

    methodological framework was the hermeneutic dialectics, anchored

    in the theoretical framework of Sociology of the Professions and in

    Nursing History. 27 FHS nurses were interviewed and 10 professional

    of Support Group for Family Health in a Technical Supervision of So

    Paulo City. The empirical material was submitted to discourse

    analysis. Nurses professional pathways revealed that the choice to

    study Nursing was influenced by former profession knowledge;

    undergraduate training at FHS were important to the career; teachers

    and practical nurses were the main professional models, providing the

    motivation to work in the FHS and becoming the basis to entry into

    professional life, which was also influenced by work development

    itself. In the identity for themselves, nurses see themselves as team

    coordinators, exercising leadership in the Health Center; the

    professional who solves everything, which is autonomous, a reference

    for service users and a health educator. In the identity to the other,

    stood out the work of the nurse as team manager, the team's reference

    to the community and a partner in the team. However, the nurse is also

    seen as an unknown and undervalued professional who is searching

    for specificity and recognition of her professional role. Professional

    identity of FHS nurses transits between an imposed and a claimed

    identity by the professional group. The negotiation of new identities is

    gaining new shapes by the expansion of clinical knowledge and

    autonomy, as they are approaching to provide care to users. On the

  • other hand, the management of the work process and the conflicts put

    the nurses in a different rank in the multidisciplinary team at the same

    time that a growing investment is realized towards the establishing of

    significant links with the community. The conclusion is that nurses

    continue to fight for affirmation and professional recognition in search

    of an image of themsleves consistent with the concreteness of their

    practice.

    Keywords: Nursing, Professional Practice; History of Nursing; Family

    Health Strategy

  • LISTA DE ILUSTRAES

    FIGURAS

    Figura 1 Mapa das subprefeituras do municpio de So Paulo. So

    Paulo, 2010 .......................................................................... 150

    Figura 2 Mapa das Supervises Tcnicas de Sade da

    Coordenadoria Regional Centro-oeste. So Paulo, 2011 ..... 151

    Figura 3 Estabelecimentos e servios de sade da rede municipal,

    Coordenadoria Regional de Sade Centro-Oeste,

    Municpio de So Paulo, Agosto de 2014 ............................. 152

    QUADROS

    Quadro 1 Distribuio das Unidades Bsicas de Sade da Famlia

    da Superviso Tcnica de Sade do Butant, segundo

    nmero de enfermeiras atuantes, enfermeiras

    entrevistadas e motivos de no participao em abril de

    2014 ................................................................................... 153

    Quadro 2 Caracterizao das enfermeiras da Estratgia Sade da

    Famlia, entrevistadas na pesquisa. So Paulo SP,

    2014 ................................................................................... 166

    Quadro 3 Caracterizao dos profissionais do Ncleo de Apoio

    Sade da Famlia (NASF), entrevistados na pesquisa.

    So Paulo SP, 2014......................................................... 169

    Quadro 4 Sntese dos resultados das entrevistas com enfermeiras

    e profissionais do NASF, So Paulo, 2014 ......................... 170

  • LISTA DE SIGLAS

    AB Ateno Bsica

    ABEn Associao Brasileira de Enfermagem

    ACD Atendente de Consultrio Dentrio

    ACS Agente Comunitrio de Sade

    AE Ambulatrios de Especialidades

    AMA Assistncia Mdica Ambulatorial

    CAPS Centro de Ateno Psicossocial

    CBEn Congresso Brasileiro de Enfermagem

    CD Cirurgio-Dentista

    CIE Conselho internacional de Enfermeiros

    CNE/CES Conselho Nacional de Educao/Cmara de Educao Superior

    CNS Conferncia Nacional de Sade

    COFEN Conselho Federal de Enfermagem

    COREN Conselho Regional de Enfermagem

    CR Centro de Referncia

    DCN/ENF Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduao em Enfermagem

    DNSP Departamento Nacional de Sade Pblica

    EEAN Escola de Enfermagem Anna Nery

    EEUSP Escola de Enfermagem da Universidade de So Paulo

    ENESPE Encontro de Entidades Sindicais e Pr-sindicais da Enfermagem

    ESF Estratgia Sade da Famlia

  • EUA Estados Unidos da Amrica

    Famema Faculdade de Medicina de Marlia

    FNE Federao Nacional de Enfermeiros

    ICN International Council of Nurses

    IES Instituies de Ensino Superior

    ISA International Sociological Association

    LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educao

    NASF Ncleo de Apoio Sade da Famlia

    ONGs Organizaes No-Governamentais

    OIT Organizao Internacional do Trabalho

    PAS Plano de Assistncia Sade

    PMAQ-AB Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Ateno Bsica

    PSF Programa Sade da Famlia

    QUALIS Qualidade Integral em Sade

    REBEn Revista Brasileira de Enfermagem

    SAE Servio de Atendimento Especializado

    SENADEn Seminrio Nacional de Diretrizes para a Educao em Enfermagem

    SESu Secretaria de Educao Superior

    SMS Secretaria Municipal de Sade

    STS Superviso Tcnica de Sade

    SUS Sistema nico de Sade

    THD Tcnico em Higiene Dental

    UBS Unidade Bsica de Sade

    UEL Universidade Estadual de Londrina

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ................................................................................... 313

    1.1 A ENFERMAGEM COMO PROFISSO .................................... 37

    1.2 A ENFERMAGEM PR-PROFISSIONAL: AS ORIGENS DAS PRTICAS DE CUIDAR ............................................................ 45

    1.3 A PROFISSIONALIZAO DA ENFERMAGEM COMO FENMENO MUNDIAL ............................................................ 57

    1.4 O DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL DA ENFERMAGEM BRASILEIRA ............................................................................. 64

    2 REFERENCIAL TERICO .................................................................. 90

    2.1 O FENMENO PROFISSIONAL NA PERSPECTIVA DA SOCIOLOGIA DAS PROFISSES ........................................... 92

    2.2 O CONCEITO DE PROFISSO E SUAS RAZES HISTRICAS .......................................................................... 114

    2.3 A QUESTAO DAS IDENTIDADES .......................................... 126

    2.4 A IDENTIDADE PROFISSIONAL ............................................ 136

    3 OBJETIVOS ...................................................................................... 142

    4 MTODO ........................................................................................... 146

    4.1 TIPO DE PESQUISA ............................................................... 148

    4.2 LOCAL DO ESTUDO .............................................................. 149

    4.3 PARTICIPANTES DO ESTUDO .............................................. 157

    4.4 ASPECTOS TICOS .............................................................. 158

    4.5 COLETA DE DADOS .............................................................. 159

    4.6 PROCEDIMENTOS DE ANLISE DO MATERIAL EMPRICO 160

    5 RESULTADOS .................................................................................. 164

    5.1 A CARACTERIZAO DOS SUJEITOS DA PESQUISA ......... 166

    5.2 RESULTADOS DAS ENTREVISTAS ...................................... 170 5.2.1 O processo inicial de socializao das enfermeiras ..................................... 171 5.2.2 A identidade para si segundo as enfermeiras .............................................. 186 5.2.3 A identidade para o outro segundo as enfermeiras ...................................... 197 5.2.4 A IDENTIDADE PARA O OUTRO, SEGUNDO OS PROFISSIONAIS DO

    NASF ............................................................................................................ 215

    6 DISCUSSO ...................................................................................... 229

    6.1 O PROCESSO DE SOCIALIZAO DAS ENFERMEIRAS ..... 231

    6.2 A IDENTIDADE PROFISSIONAL DA ENFERMEIRA DA ESF . 242 6.2.1 A liderana da equipe multiprofissional ........................................................ 242 6.2.2 A enfermeira como a profissional que promove o acesso, o vnculo e o

    resolutividade ............................................................................................... 248 6.2.3 O conhecimento como um caminho possvel para a construo da identidade

    e da autonomia profissional .......................................................................... 251 6.2.4 A enfermeira da ESF: uma identidade em construo ................................. 256

  • 7 CONSIDERAES FINAIS ............................................................... 263

    REFERNCIAS ...................................................................................... 271

    APNDICES ........................................................................................... 285

    APNDICE A: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ............................................................................. 287

    APNDICE B: INSTRUMENTO PARA REALIZAO DA ENTREVISTA ENFERMEIRAS DA ESF ...................................... 289

    APNDICE C: INSTRUMENTO PARA ENTREVISTA PROFISSIONAIS DO NASF .......................................................... 291

    ANEXOS ................................................................................................ 293

    ANEXO A: PARECER DO COMIT DE TICA EM PESQUISA EEUSP .......................................................................................... 295

    ANEXO B: PARECER DA SUPERVISAO TCNICA DO BUTANT ...................................................................................... 299

    ANEXO C: PARECER DO COMIT DE TICA EM PESQUISA SMS/SP (VERSO 1) .................................................................... 301

    ANEXO D: PARECER DO COMIT DE TICA EM PESQUISA SMS/SP (VERSO 2) .................................................................... 305

    ANEXO E: RESUMO DOS DISPOSITIVOS LEGAIS QUE RESPALDAM O EXERCCIO PROFISSIONAL DA ENFERMEIRA NA ESF NO MUNICPIO DE SO PAULO ........................................... 307

  • APRESENTAO

    Existem certas coisas que s se entende com o tempo, talvez

    com a maturidade. Conforme se olha para trs, percebe-se que

    algumas coisas que aprendemos pela vida, sejam vindas de

    experincias diretas ou no, emergem aos poucos. aquele tipo de

    memria que a gente no sabe se sonhou, ou se, de fato, foi real.

    Assim aconteceu em alguns aspectos da minha vida profissional.

    Quando optei pelo curso de Enfermagem no vestibular, aos 18

    anos de idade, tinha pouca noo do que isso significaria para minha

    vida. Vinda de uma famlia da classe trabalhadora e nvel de

    escolaridade no universitrio, visualizava na Enfermagem a quase

    garantia de insero no mundo do trabalho e a possibilidade de

    autonomia financeira, mais do que propriamente uma escolha

    consciente e apaixonada pela profisso.

    Essa ideia tambm era reforada pela convivncia com um

    familiar enfemeira: inteligente, bem-sucedida e financeiramente

    estabilizada. Era a referncia da famlia para o cuidado de sade, seja

    prestando informao ou indicando cuidados domiciliares, mas

    tambm a referncia no despertar da conscincia poltica, da

    cidadania e dos direitos e deveres que tnhamos que praticar,

    respeitando a si mesmo e ao prximo.

    Sem ideias claras sobre o que era ou no era a enfermagem,

    entendia que se tratava de uma profisso virtuosa: ajudar o prximo

    numa situao de adoecimento, que requeria conhecimento e tica, e

    para a qual eu acretitava que no teria dificuldade em me adaptar.

    Somado a isso, a urgncia de uma autonomia econmica almejada

    me fex eleger a enfermagem como uma opo vivel.

    De fato, num primeiro momento, j na graduao, aprender a ser

    enfermeira no me pareceu complicado. O conjunto de valores que

    fundamentavam o ser enfermeira, como o respeito e a ateno

  • integral ao ser humano, coadunava-se com aspectos de minha

    socializao anterior at aquele momento.

    Entretanto, a realizao das atividades prticas,

    predominantemente no ambiente hospitalar at o penltimo ano do

    curso, levou-me a certo incmodo diante de uma realidade que at

    ento eu desconhecia. Impressionaram-me o hospital com seu cheiro

    caracterstico, o sofrimento de pacientes e familiares diante da morte

    ou da doena, a normatividade, a rotina, os protocolos e a rigidez da

    organizao do trabalho. Somado a isso, era evidente a busca de

    afirmao profissional da enfermeira no cumprir e fazer cumprir as

    regras da instituio, alm do carter subsidirio Medicina.

    Nessa trajetria, diversos docentes exerceram papel

    fundamental sobre meu processo de socializao como enfermeira.

    Exemplos de como lidar com a questo do sofrimento humano, com

    a supremacia mdica, inclusive em hospitais universitrios; como

    gerenciar a equipe, como motiv-la, enfim. No primeiro e segundo

    anos do curso, relembro com carinho de uma docente com quem

    aprendi na prtica o que era competncia, conhecimento,

    comunicao e humanizao do cuidado.

    No ltimo ano do curso, o estgio da disciplina de administrao,

    realizado em uma Clnica Cirrgica, foi um momento importante que

    oportunizou colocar em prtica diversas habilidades da enfermeira

    nesse ambiente de trabalho. Era o primeiro estgio em que ns

    estudantes ficvamos no campo de estgio sem o docente. Recordo-

    me de ter me sentido orgulhosa quando percebi que uma senhora

    havia sido admitida no hospital, mas no estava na agenda cirrgica

    daquela semana. Contactei o mdico que cuidava dela, o qual

    confirmou que no havia planejamento cirrgico para a senhora,

    dispensou-a e me perguntou surpreso: - Quem voc?

    Outro fato importante nesse semestre ocorreu durante um

    estgio de Sade Coletiva. A docente levou-nos para sala de vacina

    e explicou detalhadamente como avaliar o local e os demais cuidados

  • relacionados aplicao na criana. Chamou-me e ateno sua

    capacidade de atrair a ateno e falar com propriedade sobre o

    assunto, fazendo com que at mesmo as auxiliares de enfermagem

    do servio pedissem para acompanhar a explicao.

    Ainda nesse ltimo ano do curso, descortinou-se a minha frente

    uma perspectiva de trabalho da enfermeira na qual eu pude

    encontrar-me profissionalmente: a atuao na Ateno Primria

    Sade, especificamente na Estratgia Sade da Famlia. A

    possibilidade de realizar visitas domicilirias, consultas com a

    abordagem da clnica ampliada, o planejamento e a avaliao em

    sade com base nas caractersticas territorial, a dinamicidade das

    aes, a possibilidade de atuar na promoo da sade e na preveno

    de agravos, enfim, vieram ao encontro de minhas aspiraes,

    ensejando satisfao profissional e pessoal.

    O fato que ter vivenciado aquela experincia durante o ltimo

    ano da graduao marcou definitivamente minha trajetria enquanto

    acadmica. Apaixonei-me pela Enfermagem em Sade Coletiva e

    desde ento nunca mais olhei para trs e sequer pensei em qualquer

    possibilidade de desistir.

    A variedade de atividades executadas pelas enfermeiras, como

    consultas de pr-natal, puericultura, ao adulto; realizando exame

    fsico, prescrevendo medicaes, fazendo grupos educativos,

    trabalhando em equipe, gerenciando a equipe e a unidade de sade,

    sendo a referncia da unidade era algo que me enchia de satisfao.

    Eu voltava todo dia para casa pensando: essa enfermeira que eu

    quero ser; isso faz sentido para mim e traz significado

    profissionalmente.

    Na unidade de sade onde realizei o Estgio Curricular havia

    uma enfermeira que marcou profundamente minha identidade

    profissional. Ela havia iniciado a vida profissional na Estratgia Sade

    da Famlia, estudava e sabia muito sobre propedutica mdica,

    farmacologia, enfermagem clnico-cirrgica, dentre outros. Conhecia

  • vrios assuntos, fazia uma consulta como eu nunca havia visto antes,

    alm das visitas domicilirias, as aes educativas e era visvel sua

    liderana na equipe e na unidade.

    Quando andvamos na rua, as crianas acenavam e gritavam:

    Oi, Dra!. Ela visitava meninos usurios de drogas com algum agravo

    transitrio de sade e dizia: - Fulano, voc precisa ficar limpo para

    tomar esses remdios, est entendendo? Aquilo fez todo o sentido

    para mim: ir aonde as pessoas estavam, na casa, na vizinhana,

    conhec-las de perto, no ambiente familiar e comunitrio, onde

    emergiam os determinantes sociais do processo sade-doena.

    Assim que conclui a graduao, procurei inserir-me na ESF e por

    sete anos e meio atuei em uma unidade de sade da Regio Sudeste

    do municpio de So Paulo como enfermeira de famlia. Recordo-me

    da insegurana e das dvidas sobre o que fazer que me invadiram

    nos primeiros dias de trabalho. Agora eu era a enfermeira da equipe,

    da unidade. Agora era eu quem tinha de organizar o trabalho, orientar

    e supervisionar os trabalhadores da Enfermagem, consultar,

    prescrever, orientar. Estava me tornando, enfim, uma referncia.

    Sem dvida, minha experincia pessoal e as vivncias

    anteriores na graduao, nos estgios e agora no dia-a-dia da

    Unidade contriburam para forjar minha identidade profissional como

    enfermeira de Sade da Famlia durante esses anos de trabalho.

    Claro que o apoio das colegas enfermeiras, o estudo dos protocolos,

    manuais do Ministrio da Sade, o resgate de contedos tericos da

    graduao foram importantes naquele momento.

    Mas logo foi possvel perceber que em paralelo satisfao

    encontrada no trabalho, outras questes colocavam-se. Trabalhar em

    equipe no era to fcil e as relaes interpessoais tinham um peso

    importante nas relaes de trabalho. O trabalho flua bem quando o

    mdico da equipe compreendia o papel da enfermeira criava-se uma

    parceria; mas ficava desintegrado em situao contrria. O mesmo

    princpio aplicava-se aos demais profissionais.

  • Realizar consultas com pessoas que necessitavam de respostas

    que iam alm dos limites legais da minha profisso levavam ao

    dilema: devo ir ao consultrio do mdico ou encaminhar o usurio

    para a consulta mdica? Eram questes para as quais no havia uma

    resposta definida e que demandavam criatividade e resolutividade de

    acordo com a possibilidades que surgiam no dia-a-dia do trabalho.

    Em se tratando de planejamento e priorizao de aes, a

    sobrecarga de responsabilidades, a superviso do trabalho de outros

    profissionais, as metas a serem atingidas, sem dvidas

    dicotomizavam o querer fazer e o ter que fazer.

    Outras problemticas vividas no trabalho despertaram a

    necessidade de retomar os estudos e ingressei no mestrado.

    Enquanto enfermeira de famlia que recebia em estgio estudantes de

    enfermagem dos ltimos semestres do curso, concebia esse

    momento de articulao como essencial para firmar a identidade do

    futuro profissional de sade, prxima das necessidades de sade da

    populao e afinada com os conhecimentos da Sade Coletiva.

    O tema da investigao no mestrado foi a contribuio da

    articulao ensino-servio para a mudana do modelo assistencial no

    sentido da vigilncia da sade em unidades de Sade da Famlia no

    municpio de So Paulo. Os achados revelaram aes incipientes de

    articulao, por um lado devido falta de projeto poltico municipal na

    direo da Vigilncia da Sade, por outro porque os sujeitos da

    academia tinham pouca oportunidade de interferir no trabalho dos

    profissionais, de forma que os estudantes muitas vezes limitavam-se

    a acompanhar as atividades que j estavam em andamento na

    unidade.

    Aps concluir o mestrado, decidi enfrentar um novo desafio:

    ingressar na rea da docncia. Comecei acompanhando o estgio de

    estudantes de medicina de uma faculdade privada em So Paulo.

    Embora envolvida com a formao de profissionais mdicos, mantive

  • o foco no desenvolvimento de caractersticas de futuros profissionais

    para atuao na Sade Coletiva.

    Aps seis meses fui chamada para assumir uma vaga efetiva de

    professor assistente numa universidade federal na regio Centro-

    Oeste do Pas. Durante quatro anos atuei nas Disciplinas Sade do

    Adulto e Estgio Curricular em Enfermagem em Sade Coletiva,

    tendo coordenado o Programa de Educao pelo Trabalho em

    Sade/Sade da Famlia (PET-Sade da Famlia) no municpio de

    Vrzea Grande (MT).

    Durante os anos em que atuei no meio acadmico dessa

    universidade pblica, desenvolvi diversos projetos de articulao

    interprofissional com docentes e acadmicos de enfermagem e

    tambm de medicina, educao fsica, nutrio, servio social,

    psicologia, dentre outros. Tais iniciativas tinham por base as polticas

    educacionais dos Ministrios da Educao e da Sade, as quais

    fomentavam mudanas nos cursos de graduao das profisses da

    sade.

    Nessa caminhada que envolveu pesquisas, discusso e

    conduo dos projetos, atuao conjunta nos servios de sade,

    capacitao constante, ia ficando cada vez mais clara a

    interprofissionalidade na atuao da enfermeira de Sade Coletiva.

    Novos questionamentos fizeram-me retomar os estudos, agora no

    nvel de doutorado.

    Dada a complexidade da vida pessoal, no restrita ao campo

    profissional, aps quatro anos na universidade federal voltei para So

    Paulo e venho atuando novamente no curso de graduao em

    medicina que havia trabalhado anteriormente.

    Passados esses sete anos desde que venho atuando na

    docncia, constato que que de alguma forma tambm venho

    influenciando a construo da identidade profissional de estudantes

    de enfermagem e tambm de outras profisses da sade.

  • Acredito que o percurso dirio em minha trajetria profissional

    conduziu-me ao presente estudo, com o qual almejo ressignificar o

    vivido e contribuir de alguma maneira para a reflexo de tantas outras

    enfermeiras de Sade da Famlia e tambm de estudantes de

    enfermagem, cujos esforos vo se somando no dia-a-dia para

    aprimorar a profisso.

  • 1 Introduo

  • Introduo 33

    1 INTRODUCO

    As ltimas dcadas caracterizam-se por grandes mudanas

    sociais, tanto nos aspectos materiais quanto na subjetividade,

    resultantes de transformaes sociais e econmicas mais amplas.

    Tais mudanas tm impactado, tambm, o mundo do trabalho,

    alterando a estrutura das ocupaes e a organizao do trabalho, de

    forma que os padres profissionais e o profissionalismo esto

    passando por uma reconceituao (ANTUNES, 1999; GONALVES,

    2008).

    As origens desse processo de mudanas podem ser

    identificadas na crise estrutural do capitalismo a partir da dcada de

    1970, inicialmente nos pases centrais, que desencadeou um

    processo de reformulao ideolgica e poltica com vistas a

    estabelecer novas formas de dominao, por meio do neoliberalismo,

    cujas marcas tm sido a privatizao estatal e a desregulamentao

    dos direitos trabalhistas pelo Estado e do mercado de trabalho

    (ANTUNES, 1999; ANTUNES, 2014).

    Dentre as mudanas supra citadas, destacam-se: o predomnio

    do assalariamento, o surgimento e a expanso de novas formas de

    vinculao empregatcia, com precarizao dos direitos trabalhistas;

    a reduo dos padres de autonomia e autoridade profissionais

    decorrentes das novas formas de regulao do trabalho; a

    necessidade crescente de domnio de conhecimentos sobre gesto e

    liderana, alm do conhecimento cientfico e tcnico; e

    compatibilidade com as expectativas dos clientes (DUBAR, 2005;

    GONALVES, 2008).

    De fato, o trabalho profissional vem mudando e sendo

    transformado: os profissionais antes ditos liberais vm cada vez mais

    se vinculando s organizaes; muitas profisses vm conquistando

    o controle legal de seu prprio trabalho e a autonomia vem

    crescentemente perdendo terreno; no h mais uma clara diferena

    entre empregos no setor pblico e no setor privado e o financiamento

  • Introduo 34

    privado vem operando igualmente nos dois setores (parcerias

    pblico/privado) (EVETTS, 2013).

    Observam-se ainda mudanas na autonomia e no controle das

    profisses quanto insero social e realizao de tarefas,

    notadamente pela racionalizao econmica, fiscalizao dos atos

    praticados, tanto por entidades representativas dos consumidores

    como pela mdia; e globalizao crescente do mercado de servios

    (GONALVES, 2008).

    Outro fator o aumento do chamado ao profissionalismo no

    voluntariado, na filantropia e nas Organizaes No-Governamentais

    (ONGs). A transparncia pblica, por sua vez, requer crescentemente

    regulao, auditoria e procedimentos avaliativos; o conhecimento est

    mais aberto e acessvel na sociedade, principalmente em tempos de

    Internet, desafiando a expertise profissional (EVETTS, 2013).

    Somado a isso, ocorrem alteraes nas relaes entre o Estado

    e as profisses, num momento em que ocorrem processos de reduo

    das funes do primeiro, em particular nas reas de educao, sade

    e justia, bem como de reconfigurao da abrangncia das

    intervenes das associaes de consumidores e da prpria dinmica

    econmica (GONALVES, 2008).

    Ao mesmo tempo, nota-se o aumento de profissionais na

    populao economicamente ativa, bem como a feminizao de vrios

    grupos profissionais. Existe tendncia ao surgimento e

    estabelecimento de novas profisses, com identidades prprias e que

    requerem seu lugar na diviso social do trabalho, redefinindo os

    limites jurisdicionais, alm de acentuada interdependncia entre as

    profisses (BARBOSA, 1998; GONALVES, 2008; RODRIGUES,

    1997).

    Os efeitos dessa transformao puderam ser observados de

    forma mais intensa no Brasil especialmente a partir dos ltimos 20

    anos do sculo passado, acompanhado de estagnao do

    crescimento e crise da dvida externa no pas, o que gerou regresso

  • Introduo 35

    econmica e social, bem como o aumento vertiginoso da inflao, do

    desemprego e da pobreza. A terceirizao ganhou fora ao mesmo

    tempo em que a garantia dos direitos trabalhistas perdeu terreno

    (ANTUNES, 1999; POCHEMAN, 2014).

    Para Pocheman (2014), no comeo do sculo XXI, o Brasil

    passou por uma importante transformao no trabalho, com retomada

    do crescimento econmico e ampliao de conquistas em reas

    sociais bsicas at ento marginalizadas, como investimento em

    infraestrutura, polticas de redistribuio de renda, dentre outros.

    Como lembra o autor, vem ocorrendo aumento na expectativa

    mdia de vida, o que leva necessidade de abarcar diversas

    questes na agenda das polticas pblicas (sade, mobilidade,

    integrao social etc). H queda da taxa de fecundidade e do nmero

    de membros por domiclios, impactando no predomnio de novas

    estruturas familiares, notadamente mais monoparentais. Aumentam

    as causas de morbimortalidade associadas s doenas crnicas no

    transmissveis como as doenas cardiovasculares e neoplasias, bem

    como s causas externas (acidentes de trnsito e violncias)

    (POCHEMAN, 2014).

    Nesse processo de ampla metamorfose social, as profisses so

    impelidas a repensarem sua prtica e redesenharem sua trajetria

    presente e futura, de forma a garantirem sua sustentabilidade nesse

    contexto de incertezas e busca constante de sua prpria legitimao.

    Nesse sentido, as identidades profissionais acabam por ser

    impactadas.

    O setor sade, ramo da economia brasileira que emprega cerca

    de 3,9 milhes de trabalhadores ou 4,3% do total de empregos no

    pas, tambm sofreu impactos. Novas profisses vm se inserindo no

    setor, principalmente devido ao trabalho em equipes multidisciplinares

    na Ateno Primria Sade. Diversas so as modalidades de

    contratao, bem como as jornadas de trabalho, as formas de

    remunerao e os modos de desenvolver o trabalho, aumentando a

  • Introduo 36

    competio e a individualizao das carreiras (CONSELHO

    FEDERAL DE ENFERMAGEM, 2011; MACHADO, VIEIRA,

    OLIVEIRA, 2012).

    No caso da Enfermagem, cujo contingente de profissionais no

    Brasil ultrapassa a marca de 1,5 milhes de trabalhadores, as

    mudanas no mundo do trabalho tambm vm exigindo novos perfis

    profissionais. Segundo dados de 2010, havia no Brasil 287.119

    enfermeiros, 625.863 tcnicos de enfermagem e 533.422 auxiliares

    de enfermagem, totalizando 1.449.583 trabalhadores de enfermagem

    ou 64,7% da fora de trabalho em sade no Pas (BARRETO,

    KRUMPEL, HUMERO, 2012).

    A extino de categorias profissionais no mbito da

    Enfermagem, ao longo do tempo; a busca de qualificao de suas

    diversas categorias, o aumento das exigncias de qualificao

    profissional num mercado cada vez mais competitivo, a busca por

    maior participao no sistema COFEN/COREN pelos auxiliares e

    tcnicos de enfermagem, as atuais lutas ou bandeiras da

    Enfermagem (como a jornada de 30h semanais), assinalam cises e

    desafios que podem comprometer, dentre outros, o estabelecimento

    de vnculo e a prestao de cuidados de qualidade no atendimento

    aos usurios e suas famlias.

    Outra mudana importante refere-se ao local de insero

    profissional das enfermeiras. Uma pesquisa realizada na dcada de

    1980 sobre o local de trabalho constatou que 70,4% dos

    trabalhadores de enfermagem concentravam-se em hospitais. J em

    2005 esse percentual era 57,2% e atualmente h perspectiva de

    manter essa tendncia de reduo, haja vista que a implementao

    do SUS e, mais recentemente, da Estratgia Sade da Famlia (ESF),

    vem gerando o aumento de empregos para os profissionais de

    enfermagem no setor pblico e na Ateno Primria (BARRETO,

    KRUMPEL, HUMERO, 2012).

  • Introduo 37

    Implantada no Brasil desde 1994, em agosto de 2013 a ESF

    totalizava 46.443 equipes de sade da famlia credenciadas pelo

    Ministrio da Sade (BRASIL, 2012). Se todas as vagas para

    enfermeiras nas equipes estivessem preenchidas, haveria 46.443

    enfermeiras atuando na ESF, ou seja 16,17% das enfermeiras do

    Pas.

    A organizao do trabalho na ESF prope que a enfermeira

    exera atividades que envolvem desde a coordenao da equipe de

    Enfermagem at a assistncia direta, diferentemente do que ocorria

    tradicionalmente nas instituies tanto pblicas quanto privadas onde

    esta profissional vinha desenvolvendo seu trabalho, inclusive com

    ampliao do mbito de sua prtica.

    Como se v, essas mudanas vm possibilitando Enfermagem

    transformar sua profissionalidade. J tempo, portanto, de

    examinarmos os impactos dessas mudanas nas identidades

    profissionais das enfermeiras. Mais especificamente, o impacto que a

    insero na Ateno Bsica vem produzindo na identidade

    profissional das enfermeiras.

    Diante do exposto, o presente estudo toma como objeto a

    identidade profissional da enfermeira que atua na Ateno Bsica

    Sade, mais especificamente na Estratgia Sade da Famlia (ESF),

    buscando responder seguinte questo norteadora: Que

    transformaes a insero na ESF vem produzindo na identidade

    profissional das enfermeiras?

    1.1 A ENFERMAGEM COMO PROFISSO

    A profissionalizao da Enfermagem recente, datando do

    sculo XIX, embora as prticas de cuidar remontem ao incio da

    histria da humanidade. Florence Nightingale considerada a

    fundadora da Enfermagem moderna, por ter desempenhado um papel

    importante na profissionalizao do cuidado, contribuindo para a

  • Introduo 38

    sada das mulheres do ambiente domstico para o mundo do trabalho

    (BARREIRA, 1999).

    Exercido inicialmente de forma emprica, o cuidado foi

    adquirindo cientificidade, afastando-se do mbito dos leigos e

    passando para as mos dos sacerdotes e mgicos, em seguida para

    os religiosos e, posteriormente, para pessoas com conhecimento

    formal. A prtica da Enfermagem resultou em acumulao de

    conhecimentos prprios que, associados aos conhecimentos de

    outras reas do saber, chega atualidade como profisso singular e

    tipicamente configurada como um modo especfico de pensar e

    exercer atividades no mundo do trabalho (CIOSAK, 2004; PADILHA;

    BORENSTEIN; SANTOS, 2011).

    A Enfermagem sempre se caracterizou pelo cuidado, tanto em

    sua fase pr-profissional, quanto depois de elevada categoria

    profissional. Entretanto, atualmente, vem caminhando para um

    redimensionamento desse cuidar numa perspectiva mais integrada

    com as demais profisses da sade, de forma interdisciplinar.

    Embora o cuidar no seja uma ao exclusiva da Enfermagem,

    prioritrio no exerccio da profisso. H uma tendncia favorvel

    para se pensar coletivamente acerca do cuidar, envolvendo todos os

    profissionais da rea, particularmente no que tange Ateno Bsica

    (MEDEIROS, 2010; p. 100).

    Ao longo de sua histria, a trajetria da Enfermagem vem

    sofrendo inmeras mudanas. Moreira e Oguisso (2005), baseadas

    em Lima et al (1994), identificam trs diferentes fases no

    desenvolvimento profissional: a emprica ou primitiva (inexistncia de

    profissionais de Enfermagem), a evolutiva (a partir de Florence

    Nightingale, que estabeleceu a Enfermagem moderna) e a de

    aprimoramento (assuno do holismo no atendimento ao ser

    humano). Lembram, entretanto, que algumas iniciativas de

    treinamentos e cursos nos Estados Unidos da Amrica (1798) e na

  • Introduo 39

    Espanha (1833), anteriores a Florence, j representavam uma

    contribuio ao agregar conhecimentos pela profisso.

    Assim, torna-se imperativo relacionar os fatos histricos com o

    desenvolvimento da profisso, tais como: o nascimento dos hospitais

    e o desenvolvimento das cincias biolgicas e da sade; a

    emancipao feminina, a Revoluo Industrial, os determinantes

    sociais, polticos, econmicos e contextuais, dentre outros. Conhecer

    a histria da profisso permite compreender a relao entre o

    presente e o passado, sobretudo pela forma como veio se construindo

    ao longo do tempo, realando a questo da identidade profissional

    (OGUISSO, 2007; PADILHA; BORENSTEIN, 2005; PADILHA;

    BORENSTEIN, 2006).

    ...a histria adere possibilidade de delinear e identificar

    quem so, o que pensam, o que sentem, como agem as

    enfermeiras e, ainda, quais as perspectivas do que sero

    em sua caminhada como um grupo profissional

    contextualizado (PADILHA; BORENSTEIN, 2011; p. 35).

    A histria da Enfermagem revela o quanto esta parte integrante

    da vida, do mundo da sade e de seus compromissos com a

    sociedade na qual se encontra inserida.

    Entretanto, inicialmente essa histria no foi contada pelas

    mulheres que exerciam o cuidado, mas por diversas disciplinas como

    a Medicina, a Histria e a Sociologia, que ora realavam seu carter

    religioso e submisso, ora profano e imoral, levando a uma construo

    social identitria que dificultava sua identificao como uma profisso

    relacionada rea da sade (PADILHA; BORENSTEIN; 2006;

    PADILHA; BORENSTEIN; SANTOS, 2011).

    O distanciamento das parteiras, das religiosas e em seguida das

    enfermeiras, sobre a influncia das correntes socioeconmicas,

    culturais e polticas, assim como sobre a dominao da Igreja e

    posteriormente dos mdicos sobre a prtica do cuidado, fez com que

    sua identidade profissional ficasse marcada indelevelmente por sua

    herana passada, isto , pelo sacerdcio, pela subordinao ao

  • Introduo 40

    trabalho mdico, pela prevalncia da feminizao, dentre outros

    (COLLIRE, 1989; PADILHA; BORENSTEIN, 2005).

    A prpria desginao enfermeira suscita controvrsias.

    Campos e Oguisso (2008) chamam a ateno para o fato de que a

    denominao enfermeira ou enfermeiro no define

    adequadamente a profisso, por sua associao com a noo de

    enfermidade ou doena. A amplitude da prtica atual da enfermeira

    muito mais complexa do que o foco na doena ou no doente,

    abrangendo atividades de promoo da sade, preveno do

    adoecimento, reabilitao e recuperao da sade. Na dcada de

    1960, a Associao Brasileira de Enfermagem empreendeu uma

    tentativa de mudana do nome da profisso, buscando auxlio entre

    intelectuais da Academia Paulista de Letras, sem que se chegasse

    alterao.

    As definies existentes mais complicam do que explicam o

    significado da profisso e acabam por afetar a representao social

    sobre a Enfermagem e a enfermeira, conformando e legitimando

    ideias que os indivduos tm de si mesmos e do grupo a que

    pertencem, ou seja, a identidade profissional.

    Na lngua inglesa, o primeiro registro da palavra nurse aparece

    no ano de 1526, significando mulher que amamenta ou que cuida,

    consistindo numa forma reduzida do termo nourish (nutrir). Outro

    significado pode ser segurar carinhosa e cuidadosamente nos

    braos. Pode ainda significar nutrir, alimentar e cuidar de doentes. A

    palavra nurse pode referir-se a berrio, viveiro de plantas, casa de

    repouso de idosos, dentre outros. J na lngua francesa, inexiste a

    palavra Enfermagem, apenas enfermeira. Nos idiomas nrdicos

    no existem as palavras Enfermagem e enfermeira, sendo

    utilizados os termos profisso e profissionais da sade (SANTOS,

    2011).

    Na literatura sobre a histria dos cuidados ao ser humano e

    sobre a histria da Enfermagem destacam-se imagens, figuras e

  • Introduo 41

    smbolos que passaram a forjar identidades e manipular opinies

    sobre a profisso e o exerccio profissional.

    Alguns historiadores da Enfermagem brasileira afirmam que os

    instrumentos de simbolizao e a ritualizao contriburam para a

    incorporao de um habitus e a criao de esteretipos que hoje

    influenciam a forma como as enfermeiras percebem-se e so

    percebidas pela sociedade. A propaganda, o uniforme, a estrutura

    fsica das escolas de enfermagem, as insgnias, os retratos, os

    objetos como a lmpada, os contedos abordados nos cursos, os

    discursos e os rituais de formatura estavam impregnados de uma

    ideologia que destacava o servio abnegado, tendo por objetivo atrair

    moas da classe mdia, de bons costumes e esprito altrusta, para

    simbolizar a ordem e executara as determinaes governamentais na

    primeira reforma sanitria brasileira (BARREIRA, 1993; BARREIRA,

    1998; PORTO; SANTOS, 2009; SANTOS et al, 2011).

    Predominava a identificao da Enfermagem como prtica

    feminina, exercida ora de forma caritativa ou sacerdotal por mulheres

    religiosas, ora de forma inescrupulosa por mulheres imorais; como

    prtica leiga ou de pouca qualificao educacional, condizente com

    uma baixa remunerao; profisso auxiliar ao exerccio da Medicina,

    dentre outros (COLLIRE, 1989).

    Personagem magnfica ou rebaixada, sublime ou

    desprezada, sobre-estimada ou desvalorizada, a

    enfermeira, figura mtica, determinada pelo papel que

    dela se espera mais do que por aquilo que deveria

    caracterizar profissionalmente e no pessoalmente a

    sua prtica de cuidados (COLLIRE, 1989; p. 16; grifo da

    autora).

    Pelo fato de a Enfermagem pr-profissional ter nascido como

    atividade domstica, de carter manual, assentada no empirismo de

    mes de famlia, monjas ou escravos, permaneceu por longo perodo

    destituda de qualquer conhecimento especializado prprio, de poder

    e de prestgio. Os cuidados de Enfermagem, apesar de

    imprescindveis e complementares atividade mdica, no eram

  • Introduo 42

    remunerados e no tinham reconhecimento social, atrelados que

    estavam s atividades domsticas (SILVA, 1986).

    Baseada em Foucault (1978), Silva (1986) assinala que a

    inexistncia de saber esotrico em algumas reas de conhecimento

    implica falta de poder e desprestgio. O saber esotrico , na

    linguagem da sociologia das profisses, um linguajar prprio a uma

    profisso ou rea de conhecimento; linguagem tcnica, especializada,

    codificada (MACHADO, 1995).

    ... a enfermagem, entretanto, no se constitura ainda

    como um saber especializado. O enriquecimento

    progressivo e admirvel da medicina, a partir do sculo

    XVI, no encontrou nenhuma correspondncia na rea da

    enfermagem que, at meados do sculo XIX, manteve-se

    fora dos domnios intelectuais propriamente ditos,

    identificada quase que exclusivamente aos servios

    domsticos (SILVA, 1986; p. 98).

    Ao longo do perodo pr-capitalista, a prtica de Medicina

    demandava um preparo especfico, inicialmente a partir da

    transmisso oral de uma gerao a outra e, mais tarde, codificado em

    livros sagrados do Egito Antigo, no Cdigo de Hamurabi, nos Escritos

    Hipocrticos, dentre outros (OGUISSO, 2007; SILVA, 1986).

    Quanto questo salarial, na civilizao antiga, o mdico-

    arteso geralmente recebia pelos seus prstimos em espcie ou

    dinheiro. J na Idade Mdia, houve diviso tcnica e social do trabalho

    entre os fsicos (mdicos internos) e cirurgies-barbeiros (leigos), que

    persistiu at final do sc. XVIII, quando se uniram no ensino e na

    prtica. Quando exercida por clrigos, a Medicina estava sob o signo

    da caridade e do sacerdcio, no sendo atividade remunerada,

    diferentemente do que ocorria com o cirurgio-barbeiro, cuja prtica

    constitua uma profisso (SILVA, 1986).

    Para a autora, ao longo da histria, os homens desenvolveram

    condies para assumir papel hegemnico na produo econmica,

    que no esto fundamentalmente ligadas aos aspectos biolgicos.

    Embora sempre presentes no mundo do trabalho, as tarefas

  • Introduo 43

    desempenhadas pelas mulheres sempre foram menos valorizadas

    socialmente.

    A Enfermagem tem ocupado um status subordinado categoria

    mdica, definida (ainda) na sociedade ocidental como profisso

    masculina, de tal modo que o trabalho da enfermeira no

    desprestigiado por ser feminino, mas feminino por ser

    desprestigiado (SILVA, 1986).

    Castro Santos (2008) aponta o predomnio de questes como

    religiosidade, moralidade, maternidade e represso no ethos

    profissional da Enfermagem. No entanto, para o autor:

    ... em vez de se chocar com a dimenso profissional, na

    verdade pde, em muitos casos, representar um substrato

    emocional poderoso para a conquista de um ns coletivo,

    condio indispensvel para a busca de posies de

    autonomia (CASTRO SANTOS, 2008, p. 15).

    A Revoluo Industrial intensificou a diferenciao entre as

    atividades econmicas e o trabalho domstico. No capitalismo, a

    preocupao com a salvao das almas foi substituda pela

    preocupao com a preservao dos corpos saudveis para o

    desempenho de funes produtivas no processo de acumulao de

    capital (SILVA, 1986).

    As polticas de sade pblica adotada pelo Estado decorreram

    de necessidades especficas do sistema produtivo ou do capital.

    Havia um novo quadro em que predominam as doenas

    infectocontagiosas e os acidentes de trabalho, com distribuio

    desigual entre pobres e ricos. A Enfermagem tambm enfrentou

    mudanas quando da transformao do modo de produo. De

    ocupao pouco qualificada durante o perodo pr-profissional,

    passou a trabalho assalariado, cujas atividades desenvolvem-se

    majoritariamente no hospital, fortemente influenciada pela Medicina.

    Com a Revoluo Industrial, os novos mtodos diagnsticos e

    teraputicos passaram a exigir maior preparo do pessoal paramdico,

    trazendo, como consequncia, as especializaes (SILVA, 1986).

  • Introduo 44

    V-se, portanto, que a evoluo profissional na Enfermagem

    est atrelada definio de quem a enfermeira, transpondo uma

    definio forjada sobre o seu papel para uma identidade de

    prestadora de cuidados de enfermagem. Trata-se da identificao de

    sua razo de ser, o significado, a projeo social e econmica da

    prestao de cuidados que oferece (CARVALHO, 2007).

    Ao longo de sua histria, a Enfermagem vem desconstruindo

    paradigmas e procurando estabelecer outros mais condizentes com o

    entendimento de seu papel na sociedade (Padilha; Borenstein;

    Santos, 2011). Conhecer a origem e a evoluo profissional em

    Enfermagem permite compreender sua posio e os deveres que lhe

    correspondem.

    A Enfermagem um saber especfico de cuidar e uma

    profisso da sade desenvolvida em estreita relao com

    a histria da humanidade, e ser sempre til enfermeira

    uma reviso desta para melhor compreenso daquela

    (CARVALHO, 2007; p. 502).

    Neste estudo, parte-se da concepo de que as profisses so

    ocupaes que adquiriram tal status a partir da aquisio de

    conhecimento por meio do ensino formal (learned professions); do

    oferecimento de um mercado prprio de servios e de entidades que

    as representam. Tais aquisies ocorrem por negociaes com o

    Estado, que garante legitimidade jurdico-poltica s profisses e

    possibilidade de reproduo da cultura profissional e o controle sobre

    seus membros.

    As profisses tambm so formas de grupos organizarem-se e

    reivindicarem sua posio na estrutura social, pois:

    ... pertencer a uma profisso pertencer a uma classe

    social com um lugar determinado na hierarquia dos

    poderes reguladores da sociedade (COLLIRE, 1989; p.

    16).

  • Introduo 45

    1.2 A ENFERMAGEM PR-PROFISSIONAL: AS ORIGENS

    DAS PRTICAS DE CUIDAR

    Como prtica social, o cuidado vem sendo desenvolvido desde

    os primrdios da histria da humanidade, incialmente sem pertencer

    a um oficio ou profisso, sendo prestado por um cuidador, para

    preservar a vida individual e coletiva (COLLIRE, 1989; FREITAS,

    2011).

    cuidar... um ato de vida que tem, primeiro e antes de

    tudo, como fim, permitir a vida continuar, desenvolver-se

    e assim lutar contra a morte: morte do indivduo, morte do

    grupo, morte da espcie (COLLIRE, 1989, p. 27).

    O cuidado refere-se a uma ao autodirigida, desde que haja

    autonomia para realiz-lo, mas tambm um ato de reciprocidade

    oferecido a outra pessoa que necessite de ajuda, temporal ou

    definitivamente. A Enfermagem constituiu-se como prtica social

    tendo em vista o atendimento a interesses ou necessidades sociais,

    fazendo uso de saberes prprios a fim de transformar uma dada

    realidade (COLLIRE, 1989; FREITAS, 2011).

    A profisso de enfermagem.... qualifica como cuidados a prestao que oferece, cuidados esses muito

    recentemente denominados cuidados de enfermagem

    (COLLIRE, 1989; p. 15; grifos da autora).

    certo que o conceito de doena e as formas de desenvolver o

    cuidado guardam relao com o contexto socioeconmico, poltico e

    cultural em cada poca ou sociedade especfica (Ciosak, 2004).

    Equivale a dizer que em cada fase ou perodo da histria da

    humanidade h concepes predominantes sobre o processo sade-

    doena, o que implica diferentes formas de desenvolver o cuidado

    (OLIVEIRA; EGRY, 2000).

    Nas sociedades primitivas, a organizao das tarefas para o

    atendimento das necessidades dirias atribuiu mulher a

    responsabilidade de cuidar dos filhos, da casa, dos enfermos,

  • Introduo 46

    enquanto que aos homens cabiam os deveres nobres como a caa,

    a pesca, a guerra, a administrao das cidades, aldeias e campo, bem

    como a funo de guardar os segredos mstico-religiosos da cura das

    enfermidades (FREITAS, 2011; PILARTES; SNCHEZ, 2014;

    OGUISSO, 2007; SILVA, 1986).

    Inicialmente exercido pelas mes, monjas e escravos, no seio

    das famlias, o cuidado era baseado em um saber de senso comum e

    desprovido de conhecimento especializado e intrnseco a sua prtica,

    por vezes sendo considerado uma forma primitiva de cuidado

    (FREITAS, 2011; OGUISSO, 2007; OGUISSO; CAMPOS; MOREIRA,

    2011; PADILHA; BORENSTEIN; SANTOS, 2011; SILVA, 1986).

    A necessidade de sobrevivncia da espcie humana levou ao

    desenvolvimento das prticas de cuidar, caracterizadas inicialmente

    pelo empirismo (observncia da natureza, intuio e observao) e o

    carter mgico-religioso. As mulheres encarregavam-se

    predominantemente do cuidado, cabendo aos feiticeiros a cura das

    enfermidades e o tratamento de feridas, por meio de rituais

    (COLLIRE, 1989; PADILHA, BORENSTEIN, SANTOS, 2011; SILVA,

    1986).

    Nas sociedades tribais primitivas, o incomum ou inexplicvel era

    atribudo s divindades. Os feiticeiros uniam magia e religio com os

    recursos naturais disponveis, praticando uma medicina baseada em

    ritos e frmulas complexas, as quais requeriam preparo. O cuidado

    aos doentes e feridos era feito pelas mulheres das famlias, atividade

    esta atrelada ao cuidado domstico de crianas e idosos, no

    requerendo conhecimento ou treinamento por ser apreendido na

    rotina da vida familiar. De fato, os cuidados realizados no domiclio

    constituem a forma mais antiga de ateno ao ser humano, uma vez

    que este sempre precisou de cuidados (PADILHA; BORENSTEIN;

    SANTOS, 2011; SILVA, 1986).

    Na Grcia Antiga, acreditava-se que a doena tinha causas

    sobrenaturais, era um mal afastava o homem do estado de equilbrio.

  • Introduo 47

    O cuidado era prestados por sacerdotes nos santurios de Asclpio

    (Esculpio dos romanos), os quais foram considerados os primeiros

    mdicos gregos e faziam uso de elementos mgicos, religiosos e

    empricos (PADILHA; BORENSTEIN; SANTOS, 2011; SILVA, 1986).

    Hipcrates (460 a.C. a 375 a.C.), grego considerado o pai da

    medicina, contestou o misticismo nas prticas de sade, atribuindo a

    origem das doenas ao desequilbrio entre os humores do corpo e as

    condies climticas e atmosfricas. Defendia a viso holstica do

    doente, a importncia da histria clnica, da epidemiologia e do exame

    fsico, enfatizando a capacidade curativa do prprio corpo, auxiliado

    pela natureza (OGUISSO, 2007; PADILHA; BORENSTEIN; SANTOS,

    2011; SILVA, 1986).

    Foi Hipcrates quem estabeleceu um assistente do mdico que,

    devidamente treinado (portanto, no leigo), deveria observar e assistir

    o doente, tomar decises teraputicas durante a ausncia do mdico

    e relatar o ocorrido durante esse perodo. Alguns autores chegam a

    consider-lo tambm o pai da Enfermagem (OGUISSO, 2007).

    A influncia romana destacou-se no desenvolvimento da sade

    pblica, notadamente na construo de aquedutos, termas, banho

    pblicos, limpeza das ruas, esgotos. A Medicina tambm se

    modificou: inicialmente era mgica, praticada por escravos;

    entretanto, as guerras para expanso do imprio suscitaram a

    importao de mdicos estrangeiros pelo governo romano, a partir do

    sculo IV A.C. O cuidado aos doentes e pobres geralmente era feito

    por militares ou mulheres da nobreza romana, as quais

    transformavam seus palcios em hospitais. As matronas romanas

    eram um grupo de mulheres que prestava cuidados aos pobres e

    doentes e, abdicando da vida social, transformavam seus palcios em

    abrigos. Dentre elas, destacaram-se Santa Helena, Marcela, Fabola

    e Paula (OGUISSO, 2007; PADILHA, BORENSTEIN, SANTOS, 2011;

    SILVA, 1986).

  • Introduo 48

    Por volta dos sculos III e V d.C., com a decadncia do imprio

    romano, sobretudo pelas invases brbaras, somada influncia do

    cristianismo, levaram a um novo modo de produo, no qual a religio

    passou a desempenhar um importante papel (PADILHA;

    BORENSTEIN; SANTOS, 2011; SILVA, 1986).

    Com a gradativa desintegrao do antigo modo de produo e a

    decadncia econmica que se seguiu, as novas relaes econmicas

    deram origem ao feudalismo. A urbanizao perdeu fora e ganharam

    terreno a agricultura de produo servil e as relaes de vassalagem.

    Ao panorama de superstio e a ignorncia, acrescentava-se o

    desprezo vida terrena incentivado pela Igreja. Paradoxalmente, as

    ordens monsticas mantiveram a cultura helnica por meio de seus

    copistas e assumiram a assistncia aos pobres (PADILHA;

    BORENSTEIN; SANTOS, 2011; SILVA, 1986).

    No medievo, a sociedade ocidental passou a se organizar em

    trs classes: o clero, a nobreza (cavaleiros e senhores feudais) e os

    citadinos (artesos, mercadores e camponeses). A nica atividade

    prestigiada era a dos guerreiros, sendo as demais consideradas

    degradantes). Feiticeiros foram substitudos por sacerdotes e

    mdicos-artesos, sendo que, nas famlias de posse, o cuidado direto

    ao doente, antes exclusivo dos familiares, passou a admitir tambm o

    auxlio de escravos, notadamente do sexo feminino, pela semelhana

    com o trabalho domstico (OGUISSO, 2007; PADILHA;

    BORENSTEIN; SANTOS; 2011).

    O advento do cristianismo trouxe a concepo da enfermidade

    como castigo divino, mas tambm como instrumento de remisso dos

    pecados. queles que prestavam cuidados aos doentes abria-se a

    possibilidade de salvao da prpria alma ao exercer a caridade e o

    amor ao prximo, embora alguns autores apontem que, na realidade,

    tal ideologia tenha contribudo para reproduzir as relaes sociais

    ento estabelecidas (FREITAS, 2011; SILVA, 1986).

  • Introduo 49

    Nos primeiros sculos da era crist, em Roma, houve a

    constituio do diaconato, cujo propsito consistia em levar conforto

    fsico e espiritual a pobres e doentes. Vivas, virgens, religiosas e

    mulheres da nobreza deram origem a diversas ordens ou

    congregaes religiosas que se ocupavam do cuidado, dando s

    mulheres a oportunidade de se dedicar a atividades fora do ambiente

    domstico. As diaconisas eram visitadoras e cuidadoras domicilirias,

    consideradas as precursoras da Enfermagem de Sade Pblica

    (OGUISSO, 2007; SILVA, 1986).

    Iniciadas no sculo XI, as Cruzadas eram expedies militares

    crists que tinham por objetivo resgatar a Terra Santa do poder dos

    muulmanos. A necessidade de cuidar dos feridos das batalhas

    demandou a criao de hospitais, como o de So Joo de Jerusalm

    e o de Santa Maria de Madalena, em que monges-militares cuidavam

    tanto de soldados como de peregrinos. Tambm foram criadas ordens

    militares de Enfermagem, como os Cavaleiros de So Joo, de So

    Lzaro, os Templrios e os Teutnicos.

    A partir do sculo XIII, a influncia da burguesia ascendente

    levou secularizao do hospital, mantendo-se, entretanto, a atuao

    de freiras e monges como enfermeiros. Com a Reforma Protestante,

    o hospital seculariza-se ainda mais e a assistncia mdica passou a

    ser considerada responsabilidade da comunidade e no da Igreja.

    Sob a tica de eliminao da pobreza e fortalecimento dos Estados

    Nacionais em ascenso, o hospital , na sua essncia, um local de

    assistncia, separao e excluso do pobre e doente, um lugar onde

    se vai para morrer. Os trabalhadores do hospital no visavam cura

    do doente, mas uma forma de caridade e salvao da prpria alma

    (MELO,1986).

    Os cuidados de Enfermagem poca eram simples, voltados

    para os cuidados fsicos, como alimentao, sono, hidratao,

    cuidados com as feridas e eram realizados por religiosos ou pelos

    prprios familiares. At o sculo XIX, as prticas de cuidado visavam

  • Introduo 50

    ao conforto da alma do individuo doente, independentemente da

    prtica mdica (FREITAS, 2011; SILVA, 1986).

    Durante a Idade Mdia, o poder poltico e econmico da Igreja

    favoreceu o conformismo, a hierarquia, a obedincia e a disciplina nas

    ordens monsticas, afetando as prticas dos monges-enfermeiros e

    nas organizaes seculares posteriores, dentre elas o sistema

    nightingaleano (FREITAS, 2011; OGUISSO, 2007; SILVA, 1986).

    A enfermagem aparece neste perodo como prtica leiga,

    desenvolvida por religiosos e deixou como legado uma

    srie de valores que, com o passar do tempo, foram

    legitimados e aceitos pela sociedade como caractersticas

    inerentes enfermagem como: a abnegao, o esprito de

    servio, a obedincia e outros atributos que deram

    enfermagem a conotao de sacerdcio, pelo qual seriam

    rotulados pelos sculos seguintes (CIOSAK, 2004; p. 60).

    Os monastrios, que centralizavam a educao, no

    empreendiam esforos nos estudos de laboratrio e histria.

    Entretanto, com a Renascena carolngia, surgiram escolas e

    bibliotecas e foram criadas universidades. Acredita-se que a primeira

    tenha sido a de Salerno, que j tinha estudos mdicos desde o sculo

    X; em seguida as de Bolonha (1150) e Paris, no final do sculo XII

    (SILVA, 1986).

    Com a urbanizao crescente, as pssimas condies sanitrias

    e de vida favoreceram a ocorrncia de epidemias como a Peste Negra

    (1340-1360). Em decorrncia, a Medicina retomou a histria clnica e

    instituiu a quarentena, e foram criados os primeiros hospitais: Htel

    Dieu, na Frana; Hospital Saint Thomas e So Bartolomeu em

    Londres (SILVA, 1986).

    Durante a Idade Mdia, inmeras pessoas no cuidado aos

    pobres e doentes, sendo reconhecidas como precursoras de

    Enfermagem, dentre elas So Vicente de Paulo (1576-1660) e Santa

    Luisa de Marillac (1591-1660). So Vicente de Paulo nasceu na

    Frana e viveu numa poca de importante crise econmica, social e

    poltica, relacionada Guerra dos Trinta Anos. Comeou sua carreira

  • Introduo 51

    como proco e no contato com a comunidade nos domiclios, notou a

    importncia do cuidado junto aos pobres e doentes. Juntamente com

    Luisa de Marillac, viva e de famlia nobre, fundou a comunidade

    Filhas de Caridade de So Vicente de Paulo e uma escola para

    preparar camponesas para serem cuidadoras, cujo trabalho inclua

    cuidados fsicos e espirituais (OGUISSO, 2007).

    As Filhas de Caridade chegaram a administrar hospitais

    franceses, como o Hospital Dieu em Paris, passando posteriormente

    a outros continentes. Chegaram ao Brasil em 1852 para trabalhar na

    Santa Casa de Misericrdia do Rio de Janeiro, numa poca de

    epidemia de febre amarela e clera, e depois se espalharam para

    outros hospitais do Pas (OGUISSO, 2007).

    O restabelecimento do comrcio com o Oriente, o deslocamento

    e expanso do eixo econmico do campo para as cidades, as

    Cruzadas, a Peste Negra, o fortalecimento das monarquias nacionais,

    no final do sculo XIV, desencadearam um processo de declnio do

    feudalismo e o alvorecer de uma nova ordem social (SILVA, 1986).

    Nesse sculo e no seguinte, ocorreu um perodo de importantes

    transformaes econmicas, polticas e intelectuais, evidenciado

    pelos descobrimentos martimos, a revoluo agrcola, o

    desenvolvimento do sistema bancrio e a explorao das colnias

    americanas gerando riquezas. Todo esse panorama de

    transformaes das relaes econmicas e polticas culminou na

    constituio da burguesia, formando os alicerces para a Revoluo

    Industrial dos sculos XVII e XVIII (SILVA, 1986).

    Com o Renascimento e seus ideais (iluminismo, naturalismo,

    racionalismo etc.), o interesse pelo estudo do corpo humano

    ressurgiu, levando ao desenvolvimento das disciplinas de Anatomia,

    Fisiologia, Histologia, Obstetrcia, Ginecologia, Cirurgia etc. As

    catstrofes que acometeram a Europa como a fome, a Peste Negra e

    a Guerra dos Cem Anos geraram escassez de mo de obra e

    diminuio da produo e do consumo (SILVA, 1986).

  • Introduo 52

    Em 1527, o rei Henrique VII da Inglaterra teve seu pedido de

    divrcio da primeira esposa, Catarina de Arago, negado pelo papa

    Clemente VII. Em consequncia, o rei fundou a Igreja Anglicana,

    estabelecendo-se como chefe religioso do pas, confiscou os bens da

    Igreja Catlica e expulsou os religiosos da Inglaterra. Sem haver

    quem os substitusse de imediato, desencadeou-se uma grande crise

    nos hospitais e abrigos de doentes e rfos onde prestavam o

    cuidado. A estratgia que se seguiu foi o recrutamento de mulheres

    nas ruas e presidirias, de pouca ou nenhuma formao educacional

    e pouco escrupulosas. Esse foi o perodo conhecido como perodo

    negro da Enfermagem e estendeu-se de 1500 a 1860 (Oguisso,

    2007). A prtica de enfermagem passou a ser considerada

    abominvel pelas mulheres da nobreza, contribuindo para declnio

    dos padres assistenciais e para o desprestgio da enfermagem nos

    sculos XVI e XVII (PADILHA; BORENSTEIN; SANTOS, 2011).

    No final do sculo XVII, a burguesia havia se tornado dominante,

    impulsionada principalmente pela Reforma Protestante que

    apregoava o abandono da vida monstica, a condenao do lucro e

    da riqueza, pois estes ltimos eram vistos como sinais de

    predestinao e escolha divina, e o trabalho como meio para atingir a

    graa (SILVA, 1986).

    A diminuio do interesse pela vida monstica e a reduo do

    nmero de monjas, incitados pela Reforma, ocasionaram a

    obsolescncia do sistema de assistncia social e sade dos pobres,

    ento vigente. A assistncia sade, que havia sculos vinha sendo

    exercida pela Igreja, deixou de ser gratuita e passou a requerer

    remunerao, ainda que de forma miservel. As mulheres que

    trabalhavam como enfermeiras eram as que no serviam para a

    indstria, geralmente analfabetas, bbadas e imorais (SILVA, 1986).

    Foram criados novos hospitais, que pouco a pouco se

    transformaram de asilos e hospedarias para deserdados em centro de

    estudos, pesquisas e tratamentos. O setor sade desvinculou-se da

  • Introduo 53

    assistncia social, articulou-se esfera produtiva e passou a ser

    responsabilidade legal do Estado.

    ... a medicina perde o seu carter religioso para articular-se direta ou indiretamente com a esfera produtiva. No

    mais a salvao das almas o objetivo principal das

    atividades mdicas e de enfermagem, mas a conservao

    e adaptao da fora de trabalho dos corpos necessrios

    ao setor produtivo (FOUCAULT, 1978; p. 49).

    Nesse contexto de solidificao do modo de produo

    capitalista, no sculo XIX, a Enfermagem institucionalizou-se nos

    hospitais, os quais passam a se constituir como local de cura. Surge

    uma nova concepo do hospital como local de tratamento, estudo e

    ensino de Medicina, notadamente fundada em razes polticas e

    econmicas.

    Ao mesmo tempo em que o saber e prtica mdica passavam

    por transformaes, incorporou-se a prtica da disciplina hospitalar,

    oportuna vigilncia que se fazia necessria. O detalhamento de

    regulamentos, inspees e controle sobre a vida e o corpo configuram

    uma racionalidade econmica ou tcnica da escola, do quartel ou do

    hospital. De local onde se aguardava a morte, os hospitais passam a

    coordenar cuidados, vigiar doentes, separ-los e impedir contgios

    (FOUCAULT, 1978).

    A partir de ento, surgiram na Inglaterra e nos Estados Unidos

    hospitais no mais administrados pelo governo, mas sim pelos

    cidados, em pssimas condies de higiene, e com uma

    enfermagem ainda rudimentar. Ganhou espao um novo membro da

    estrutura hospitalar, o mdico, ainda subordinado ao pessoal

    religioso, sendo-lhe confiado um papel especfico e aos poucos o

    hospital vai se tornando um local de formao profissional e

    aperfeioamento cientfico.

    Delineia-se ento um processo de diviso das funes do

    trabalho, no apenas tcnico, mas que tem seu significado na

    reproduo do trabalho intelectual/manual. O trabalho de assistncia

  • Introduo 54

    ao doente o primeiro a se separar do ofcio mdico, passando a

    constituir o trabalho de enfermagem (SILVA, 1986).

    Entre as religiosas e leigos que formavam o pessoal de

    enfermagem, ainda que sem preparo tcnico, j havia uma diviso

    social do trabalho como reproduo da hierarquia dos conventos e

    dos hospitais. As religiosas coordenavam e supervisionavam o

    servio hospitalar e os leigos voluntrios ou mal pagos eram

    responsveis pelo trabalho manual (SILVA, 1986).

    A Enfermagem passou a requerer preparo tcnico especfico

    para exercer suas atividades, tendo o hospital como espao de

    aprendizagem. Nesse novo hospital considerado fbrica de

    produo de servios de sade e no mais hospedaria de mendigos

    e velhos, toma corpo a reforma da Enfermagem, abalizada na

    separao entre a prtica religiosa e a tcnico-profissional, tendo em

    vista a necessidade de contribuir para a melhora da qualidade e dos

    resultados da assistncia (SILVA, 1986).

    Segundo a autora, a conformao da prtica de Enfermagem

    como profisso ocorre quando se separa, por um lado, dos leigos e

    religiosos sem preparo e adquire certo status tcnico, e por outro, da

    prtica mdica, assumindo suas funes tcnicas manuais. Mantm

    a subdiviso tcnica do trabalho, reproduzindo a dicotomia social dos

    novos agentes da profisso: as enfermeiras responsveis pelo ensino,

    coordenao e superviso do trabalho e as executoras dos cuidados,

    oriundas de classes sociais menos favorecidas (SILVA, 1986).

    No sculo XIX, ainda persistiam algumas iniciativas de cuidados

    domicilirios a pobres e doentes realizados por religiosos. Destaca-se

    o trabalho do pastor Theodor Fliedner, da Igreja Protestante, que

    fundou uma escola chamada Diaconisas de Kaiserwerth, com sua

    esposa Frederika. O termo diaconisa foi usado como o objetivo de

    evitar o uso da palavra enfermeira, dado o estigma que envolvia a

    profisso na Europa poca. As estudantes tinham aulas de tica,

    princpios religiosos, prticas de enfermagem, noes de

  • Introduo 55

    farmacologia, dentre outros. Saliente-se que essa escola recebeu

    Florence Nigthingale em 1851. Entretanto, por no ter se constitudo

    como um curso formal, mesmo que tivessem realizado trabalho nos

    hospitais, as formadas eram consideradas aptas apenas para realizar

    atividades domicilirias (OGUISSO, 2007).

    Ainda no sculo XIX, houve a criao da Cruz Vermelha

    Internacional, por iniciativa do suo Jean Henri Dunant (1828-1910),

    motivado pelos horrores que viu em 1859 por ocasio da Batalha de

    Solferino na guerra que envolveu a Itlia e a Frana contra a ustria.

    Em 1864, na Primeira Conveno de Genebra, foi estabelecido que

    cada pas membro deveria criar sua prpria sociedade da Cruz

    Vermelha, cujo pessoal ficaria responsvel por cuidar de feridos de

    guerra de qualquer nacionalidade (OGUISSO, 2007).

    Atualmente, em Genebra, esto sediadas duas entidades: o

    Comit Internacional da Cruz Vermelha e a Federao ou Liga das

    Sociedades da Cruz Vermelha. A primeira ocupa-se da preservao

    de dados sobre pessoas desaparecidas em guerras e a segunda

    mantm contato com as entidades nacionais e cuida de questes

    relativas cooperao em situaes de catstrofe, presos polticos e

    outros (OGUISSO, 2007).

    Miranda (1996) chama a ateno para as condies

    degradantes dos pobres na sociedade inglesa no sculo XIX, a

    chamada era vitoriana. A promulgao da Nova Lei dos Pobres, ou

    New Poor Law a primeira era de 1600 pelo governo britnico, em

    1834, contribuiu para estabelecer a pobreza e a doena como

    fenmenos naturais, deixando de fazer parte do domnio das relaes

    econmicas e, portanto, dos problemas do Estado. As cidades e

    zonas industriais cresciam rpida e descontroladamente, com

    escassas condies sanitrias e habitacionais; as guerras, as lutas de

    classe, o preconceito religioso e tnico (darwinismo social),

    juntamente com o alcoolismo, o aumento da criminalidade, as

    desavenas familiares resultantes da dissoluo dos feudos, dentre

  • Introduo 56

    outros, conformavam o panorama catico que a sociedade inglesa

    enfrentava (MIRANDA, 1996).

    Segundo a autora, as obras literrias de Charles Dickens (1812-

    1870), contemporneas ao perodo vitoriano, embora no fatuais,

    constituem documentos singulares que retratam a conscincia social

    sobre questes as que envolviam aquela sociedade em particular, por

    meio da crtica e da denncia das injustias sociais que o autor

    assume atravs de seus personagens.

    Com sua produo literria, Dickens contribuiu para evidenciar

    as marcas morais que caracterizaram o nascimento da assim

    chamada Enfermagem Moderna. A autora considera que a fico de

    Dickens contribuiu na formao da identidade profissional das

    enfermeiras. Em seus romances Oliver Twist e Martin Chuzzllewit,

    Dickens alude a algumas mulheres que se ocupavam de assistir,

    cuidar e disciplinar em instituies de sade, cujo perfil negativo

    satiriza-se na personagem Sairey Gamp, a quem o autor descreve

    como uma enfermeira obesa, corrupta, m, promscua e

    permanentemente bbada (MIRANDA, 1996).

    Nos sculos precedentes, a revoluo burguesa promoveu a

    unio perfeita entre a tica protestante e o esprito do capitalismo; no

    sculo XIX houve uma convulso... em todas as dimenses da vida,

    que envolveu a economia, a moral, a poltica, a arte, dentre outros.

    Podemos chamar os vitorianos de agressivos... porque

    sua caa ao lucro e ao poder implicava em graves custos

    sociais aos trabalhadores... exacerbando as tenses entre

    os poderosos e os sem poder, entre os ricos e os pobres...

    Foi uma poca de destruio que teria tido um destino

    hediondo se no tivesse sido tambm uma poca de

    preparao para a reconstruo (MIRANDA, 1996; p. 28).

    nesse contexto do sculo XIX que Florence Nigthingale

    empenhou-se para construir uma nova subjetividade para as

    enfermeiras, na tentativa de superar o preconceito. Dickens descreve