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Mito e Religião em Cassirer... - Costa
Revista Diálogos – set. / out. – 2018 – N.° 20 232
Mito e religião em Cassirer: rupturas e continuidades
Gildo José da Costa – Faculdades Guarulhos1
d.o.i. 10.13115/2236-1499v2n20p232
Resumo: Este estudo perguntará pela relação entre mito e religião em
Cassirer, procurando compreender em que medida o substrato extraído
de tal relação justificaria as objeções feitas ao neokantianismo,
sobretudo no que se refere à “equidade epistemológica”.
Palavras-chave: mito; religião; neokantianismo; epistemologia.
Myth and religion in Cassirer: ruptures and continuities
Abstract: This study will ask about the relationship between myth and
religion in Cassirer, trying to understand to what extent the substrate
extracted from such a relationship would justify the objections made to
neo-Kantianism, especially with regard to "epistemological equity."
Keywords: myth; religion; neo-kantianism; epistemology.
A filosofia da cultura empreende, para além de uma coleta de
dados informativos empíricos ou históricos das diversas manifestações
1 Possui graduação em Filosofia pelo Mosteiro de São Bento e graduação em História
pela UBC. Possui pós-graduação em Didática do ensino superior e mestrado em Educação pelo Programa de História e Filosofia da Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC). Atualmente é professor da Prefeitura de São Paulo e das Faculdades de Guarulhos. Tem experiência na área de Educação, História e Filosofia.
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da cultura humana, uma unidade explicativa comum do objeto
proposto, muito embora para tal perscrute sobre suas particularidades2.
Esse ponto comum, indubitavelmente, existente nas diversas
expressões humanas, para Ernst Cassirer, se exterioriza a partir das
formas simbólicas. Sendo estas a base a partir da qual as culturas
procedem, é por meio delas também que as diferenças distintivas de
cada cultura confluem, equivalem-se e adquirem valor e status
isonômicos.
Essas informações acima não designam, por qualquer via, que,
no primeiro momento de sua trajetória filosófica, Cassirer3 privilegiava
os objetos da ciência sobre os demais, mas sendo isso um fato, poderão
ser tomadas como indicadoras de um percurso realizado pelo autor que
viria conferir aos diversos “mundos objetuais” a dignidade de serem
considerados e compreendidos equitativamente na peculiaridade de sua
estruturação simbólica.
Porém, se sob a pressuposição de uma singularidade teórica
entre as diversas ocorrências culturais o neokantismo dá um passo
apreciável para solucionar a necessidade de um princípio comum que
permita a unidade do conhecimento como um todo, não significa que a
equidade epistemológica entre as formas simbólicas, tal como
pretendidas, isente de críticas o sistema. É desse ângulo que Mario
Ariel Gonzáles Porta observa que a ruptura promovida da ordenação
linear que pressupunha graus de objetividade em favor de uma
equidade epistemológica entre as esferas do saber,4 assim como a
predisposição à “tendência sintético-totalizante”,5 constituem, em
Cassirer, pontos discutíveis de sua filosofia.
2. Ernst Cassirer. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura
humana. 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, pp. 361-362. 3. E, nesse momento, em relação a este aspecto não diferentemente de Herman
Cohen. 4. Mario Ariel González Porta. Estudos neokantianos. São Paulo, Edições Loyola, 2011,
p. 70 5. Idem, p. 45
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Permitindo destaque a essas implicações, o presente esboço
buscará entender a relação entre mito e religião postulada por Cassirer,
a partir, principalmente, do capítulo VII de seu Ensaio sobre o homem:
introdução a uma filosofia da cultura, ao passo em que perguntará se
algum substrato dessa relação revalida as objeções acima.
Para a filosofia da cultura, em diferenciação aos procedimentos
metodológicos de um sistema metafísico ou teológico, preliminarmente
cabe, mais que se concentrar nas discrepâncias internas relativas às
interpretações do mito e da religião, que não corresponderiam à mera
diferenciação entre “uma massa disforme de ideias incoerentes” e um
pensamento conciliável à razão,6 atentar para um princípio subjacente
nessas regiões do conhecimento que preserve possível homogeneidade.
Dito de outra maneira, em desvantagem das questões de substância
como é mais comumente encontrado nos estudos que envolvem o mito
e a religião, Cassirer opta por inquerir sobre a forma. Ante essa
orientação, o pensador alemão julga ser flagrante, nos estudos das
manifestações religiosas em geral, incluindo aqui o mito, a incessante
6. A pretensa harmonização da Religião com a Ciência e sua possível incongruência
interna tem, grosso modo, colocado, de um lado, os pensadores medievais e, de outro, os modernos. Procurar entre estes, contudo, um padrão explicativo único do fenômeno religioso é se submeter ao insucesso. Para tomar como exemplo os modernos, Cassirer afirma que “Pascal declarou que a obscuridade e a incompreensibilidade eram os próprios elementos da religião. O verdadeiro Deus, o Deus da religião cristã, nunca deixa de ser um Deus absconditus, um Deus oculto. Kierkegaard descreve a vida religiosa como grande ‘paradoxo’. Para ele, uma tentativa de atenuar esse paradoxo significava a negação e a destruição da vida religiosa. E a religião é um enigma não só no sentido teórico, mas também no sentido ético. Esta réplica de antinomias teóricas e contradições éticas promete-nos uma comunhão com a natureza, com os homens, com os poderes sobrenaturais e com os próprios deuses. No entanto, o seu efeito é precisamente o seu oposto.” Ernst Cassirer, op. cit, pp. 121-122.
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alteração dos símbolos, mas não da atividade simbólica que se mantém
salvaguardada7.
Essa constatação não implica a máxima eliminação das
dificuldades. Empreender a compreensão do tema inclui desafios
históricos. Um desnível próprio entre as possibilidades de
caracterização da expressão mítica em relação à religião, justamente
pelo fato de sua constituição não-teórica, conduziu os antigos a
interpretá-la alegoricamente. O obstáculo para os modernos diante do
método alegórico é que de seus procedimentos decorre um substrato
risível da manifestação mítica.8 Vale ressaltar que, dessa imprecisão, os
métodos posteriores, embora mais sofisticados, não conseguiram se
furtar. Para Cassirer, no entanto, uma diferença entre o método
alegórico e os métodos modernos ocorre devido ao fato de que para
estes o mito em seu sentido mais amplo não redunda em uma ficção
consciente9. O que está em jogo para o filósofo alemão, conquanto,
ultrapassa essa polêmica e impõe, como demanda da investigação
científica, desvelar tal sentido.
Isso demandaria uma atividade classificatória dos objetos e dos
motivos próprios da consciência mítica. Para Cassirer, esse projeto de
classificação culminaria, em sua positividade, com a “simplificação” de
todos os aspectos pertinentes ao mito em um princípio único, a exemplo
do que já haviam tentado a etnografia e a psicologia. É nesse amplo
debate que o pensador neokantiano se inscreve tomando como
interlocutores autores predecessores a ele e outros contemporâneos que
7. Nas palavras do autor: “Até mesmo os ideais éticos de diferentes religiões são
amplamente divergentes e dificilmente conciliáveis entre si. mas nada disso afeta a forma específica do sentimento religioso e a unidade interna do pensamento religioso. Os símbolos religiosos mudam incessantemente, mas o princípio subjacente, a atividade simbólica como tal, permanece a mesma: una est religio in rituum varietate”, op. cit, p. 123. 8. Op. cit, p. 124.
9. Idem, p. 124. Essa é uma diferença expressiva haja vista que entre outras coisas o
mito não pode ser visto como uma mentira ou invenção gratuita. Mircea Eliade. Mito e realidade. 5ª ed. São Paulo, Perspectiva, 1998, pp. 11-18.
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aludem sobre certa recorrência da manifestação mítica. Inicialmente
evoca Malinowski, cuja investigação acusa certa recorrência nas leituras
míticas das escolas acima mencionadas. Ambas teriam apontado a
existência de um “fenômeno natural” no interior do mito: ora a lua, ora
o sol, o clima, as cores dos céus10
. Sob outra perspectiva, dirá Freud que
o traço a ser evidenciado no mito é a sexualidade. Para além, contudo,
dessa pluralidade de conteúdos entre essas teorias, há, para Cassirer, a
prevalência de uma metodologia comum que apela para um “processo
de redução intelectual”11
.
Por sua pluralidade, o mito se mostra amplamente relacionável.
Aproxima-se tanto da arte (tal é seu vínculo com a poesia) quanto do
pensamento científico (tal a crença na veracidade de seu objeto)12
. É por
conta dessa última comparação que, para Frazer, embora a magia seja
discrepante da ciência quanto aos meios, os seus fins são também
científicos13
incluindo, ademais, a mesma crença na consecutividade
dos eventos naturais desprovidos de um elemento sobrenatural como
agente propulsor.
A essa leitura mecanicista de Frazer, Cassirer opõe os resultados
da antropologia moderna, cujos argumentos denunciam a
impraticabilidade de essa concepção estática da realidade dar conta da
dinâmica que envolve o mito14
e todo seu “mundo dramático – um
10
. Idem, p. 125. 11
. Cassirer, por essa ocasião, se reveste de certa desconfiança em relação à possibilidade de estas teorias serem conclusivas sem postergar dados significativos do fenômeno. Dirá o autor: “Não precisamos entrar aqui nos detalhes de todas essas teorias. Por mais divergentes que sejam em seus conteúdos, todas elas exibem a mesma atitude metodológica. Têm esperanças de fazer-nos entender o mundo mítico por um processo de redução intelectual. Mas nenhuma delas pode alcançar seus objetivos sem apertar e esticar constantemente os fatos para transformar a teoria em um todo homogêneo”. Idem, p. 126. 12
. Idem, p. 127. 13
. Idem, p. 127. 14
. Idem, p. 127.
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mundo de ações, de forças, de poderes conflitantes”15
. Essas
ocorrências não aferem valores cosmológicos e objetivos, mas, na visão
de Cassirer, seu valor antropológico não pode ser subsumido e manterá
seu “lugar e significado”16
. Para esse pensador, a questão se explica no
fato de o caráter restritivo da ciência no que tange às qualidades
subjetivas, isto é, as qualidades de sentimento não suprimirem seus
vestígios por completo, assim a objetividade, embora descarte parte da
realidade, não pode liquidá-la de todo17
. O mito deve ser aceito em suas
qualidades de experiência na medida em que está pautado pelas ações e
não pelo universo das representações18
.
Por outro lado também Lévy Bruhl, na esteira de Durkheim,
salienta que as causas míticas prescindem do pensamento lógico pelo
fato de as ‘representações coletivas’ se constituírem descritas na ordem
pré-lógica e, portanto, não serem abarcáveis pelas leis do pensamento
racional. Para o alemão, entretanto, esses autores que representam a
escola sociológica francesa teriam acertado quanto ao ‘caráter social’ do
mito, mas, ao situarem-no num estágio pré-lógico, ignoraram que a vida
primitiva não se resume à esfera sagrada, mas, como bem assinala
Malinowski19
consta de uma esfera secular, cujas regras escapam àquele
enquadramento20
. Frente a isso, acrescenta Cassirer que, mesmo no
âmbito do mito e da religião, não se encontra uma totalidade de sentido
despossuída de razão. Isso não implica, para o autor, a possibilidade de
15
. Idem, p. 128. 16
. Idem, p. 129. 17
. Idem, p. 130. 18
. Dito assim, em benefício da clareza que, em última instância, sugere o texto, mas na verdade Cassirer se pronunciará de maneira menos incisiva e categórica: “Devemos aceitar as qualidades da experiência mítica por sua ‘qualitatividade imediata’. Pois o que precisamos aqui não é de uma explicação de meros pensamentos ou crenças, mas de uma interpretação da vida mítica. O mito não é um sistema de credos dogmáticos. Consiste muito mais em ações que em simples imagens ou representações”. Idem, p. 132. 19
. Idem, p. 134. 20
. Idem, p. 134.
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teorização do mito, tendo em vista que em última instância o “mito não
é um substrato de pensamento, mas sim de sentimento.”21
Uma unidade
de pensamento em metamorfose, se quiser resumir, que tem uma visão
simpática da natureza. Essa unidade pode ser melhor considerada na
disposição apresentada pelo mito a uma fundamentação que reside na
solidariedade da vida. Dessas alegações, essencialmente, deriva a
incoerência de se exigir do mito uma exclusividade teórica ou prática22
.
Essa atmosfera ateórica e não prática que embala o mito
encontra-se presente na origem da religião por ocasião do culto aos
ancestrais23
. No que tange aos ritos fúnebres, veem-se eliminadas as
barreiras entre o pensamento mítico e o pensamento religioso que, por
sua vez, historicamente se viu impregnado dos elementos daquele24
.
Para Cassirer, em oposição a Bergson, é um equívoco supor um
abismo inconciliável entre o que pode ser considerado, por um lado,
“formas mais grosseiras e rudimentares” do mito e, por outro, os “ideais
religiosos superiores”. Bergson apostará na tese da diferença, balizado
nas noções de “Religião Estática” e “Religião Dinâmica” que a seus
modos, respectivamente, se impõem por via da pressão e da
21
. Idem, p. 135. 22
. Em particular, vale conferir este fragmento: “Se o pensamento científico pretende descrever e explicar a realidade, é forçado a usar seu método geral que é o da classificação e o da sistematização. A vida é dividida em províncias separadas que são claramente distinguidas umas das outras. Os limites entre os reinos das plantas, dos animais, do homem – as diferenças entre as espécies, famílias, gêneros – são fundamentais e indeléveis. Mas a mente primitiva ignora e rejeita. Sua visão da vida é sintética, e não analítica. A vida não é dividida em classes e subclasses. É sentida como um todo contínuo e ininterrupto que não admite distinções nítidas e claras”. Idem, p. 136. 23
. Idem, p. 141. 24
. Nas palavras do autor: “Não há qualquer diferença radical entre o pensamento mítico e o religioso. Ambos têm origem nos mesmos fenômenos fundamentais da vida humana. No desenvolvimento da cultura humana, não podemos fixar um ponto em que o mito acaba ou começa a religião.” Idem, p. 145-146.
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liberdade25
. Por constituir-se inamovível, o mito se revela incapaz de,
por si só, desencadear o processo que conduziria de um estágio para o
outro. Assim, para o pensador francês, a passagem necessária das
crenças grosseiras para formas mais sublimes de religião dar-se-ia por
saltos involuntários. Apenas uma mudança repentina explicaria o
trânsito de um estado passivo de coisas para o da atividade e liberdade.
A exemplo de uma ética inflexível que, numa determinada sociedade,
sob pressão social, não é capaz de transmutar-se em uma ética
individual permeada pela liberdade, o mito não conduz à religião. A
estas alegações de Bergson, Cassirer não economizará objeções. Não
obstante a negação, que propõe Bergson, da transponibilidade contínua
entre mito e religião, bem como sua defesa da ausência de
individualidade e liberdade que nas sociedades arcaicas seguem
fundamentadas em um ponto de vista mais histórico e menos
metafísico, o embaraço entre esses autores tornou-se inevitável. Para
Cassirer, não parece ser possível postular a existência em tais
sociedades de algo equivalente a uma pura absolutização da
dependência, isto é, da submissão automática. Mesmo que Bergson
possa valer-se da antropologia de sua época para respaldar tais
conclusões, pesquisas mais recentes realizadas nesse campo do
conhecimento armazenavam surpresas. A noção de absolutização da
pressão social nas sociedades míticas, paulatinamente, para alguns
antropólogos, passava a ser vista como um dogma a ser superado26
.
Malinowski já havia oferecido elementos significativos a
Cassirer para desautorizar a ideia do acesso instantâneo do mito para a
religião, como queria Bergson, mas é alicerçado em Gilbert Murray que
25
. Idem, p. 146. 26
. De acordo com Malinowski, “esse dogma colocou a realidade da vida nativa em uma perspectiva falsa”. Idem, p. 149-150. Para Cassirer, Malinowski ressalta com pertinência o envolvimento e até a veneração dos integrantes da tribo para com os valores tribais, isso não significando, necessariamente, uma redução plena a esses a ponto de descaracterizar a existência de uma vida subsumida pela tribo sem qualquer traço de individualidade.”
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o filósofo alemão estabelece uma oposição ainda mais contundente a
Bergson. Embora os deuses do Olimpo tenham sido criticados por
alguns pré-socráticos em virtude do caráter antropomórfico que
adquiriram naquele estágio da mitologia grega, a rigor, para Murray,
essa antropomorfização sintetizava uma notável evolução dado o fato de
que em estágios precedentes estes deuses nada mais simbolizavam que
fenômenos naturais e animais27
. A partir de Murray, para quem a
religião homérica fora “uma etapa de autorrealização da Grecia”, pôde
Cassirer pensar que, por via de um processo de antropomorfização dos
deuses gregos, o homem começara “a ver sua própria personalidade sob
uma nova luz”28
.
Aproxima-se o momento em que Cassirer terá que enfrentar dois
pontos delicados sobre a evolução da religião homérica, já assinalados
por Frazer: para este autor, primeiramente a religião surge do
“sentimento de absoluta dependência do homem” e corresponde a uma
“atitude de abjeta prostração perante os poderes misteriosos do
invisível”29
e, em segundo lugar, Frazer irá apostar que o mito e a
religião não poderão conter o mesmo valor estatutário dadas as suas
diferenças no que tange às suas “metas” e à sua “origem psicológica”30
.
Com uma interpretação de caráter etapista, assinalará que a religião
emerge da queda da magia. Evidencia-se aqui certa inflexibilidade do
antropólogo escocês. Inserido numa tendência estritamente
demarcatória da religião em relação à mitologia, flagra-se em Frazer um
campo de valoração da primeira em detrimento da segunda. Para
Cassirer, primeiramente, a fé na magia assenta o homem primitivo
numa condição não mais susceptível às formas naturais, o elevando à
27
. Idem, p. 150. 28
. Idem, p. 151. “Os grandes poetas e os grandes pensadores – Ésquilo, Eurípedes, Xenófanes, Heráclito, Anaxágoras – criam novos padrões intelectuais e morais. Quando medidos por esses padrões, os deuses homéricos perdem autoridade. Seu caráter antropomórfico é claramente visto e duramente atacado”. Idem, p. 150. 29
. Idem, p. 152. 30
. Idem, p. 155.
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circunstância de “ator no espetáculo da natureza” e esse novo estado,
por si só, significa uma refutação da tese da abjeta prostração de
Frazer31
. Já quanto à separação em campos distintos, sugerida por este
autor, da religião e do mito, Cassirer evoca a inexistência de prova
empírica da passagem irresoluta de uma atividade para outra.
A questão valorativa em Frazer, que estabelece um hiato entre
religião e mito, pressupõe que a magia, para as sociedades primitivas,
fora simples consequência frustrada da busca dos homens pelas “causas
das coisas” cujo resultado não teria ido além das causas fictícias. Como
consequência direta dessa fraqueza dos mitos, a religião teria, no que
lhe concerne, se concebido, estritamente, enquanto “expressão de ideais
éticos” em renúncia a um componente teórico32
. Em desacordo com
essa ideia, Cassirer, em congruência com o que pensa Freud, alerta para
a realidade de que a religião sempre esteve inserida, desde seu
princípio, nas questões cosmológicas da humanidade e que é apenas a
partir desse envolvimento, das respostas daí advindas, que traça um
comportamento moral viável33
. Essa refutação, em particular, se não é
suficiente para subverter a ordem acima que privilegia a ética no
desenrolar religioso, desabona a recusa de Frazer em relação à presença
de um componente teorizante na religião.
A estratégia de Cassirer, por essa ocasião, é ir minando os
argumentos de Frazer, identificando neles sua fragilidade e
inconsistência. Por exemplo, quando da distinção realizada por Frazer
entre “magia imitativa” e “magia simpática”34
, Cassirer adverte o
quanto essa divisão carece de regulação lógica: não poderia o homem
31
. De acordo com Frazer, a religião “começando como um reconhecimento ligeiro e parcial de poderes superiores ao homem, com aumento do conhecimento tende a aprofundar-se em uma confissão de uma inteira e absoluta dependência do homem em relação ao divino; sua velha conduta livre é substituída por uma atitude de abjeta prostração perante os poderes misteriosos do invisível”. Frazer na citação de Cassirer, op. cit, p. 152. 32
. Idem, p. 156. 33
. Idem, p. 156. 34
. Idem, p. 156.
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primitivo procurar um contato com a natureza sem supor um vínculo
possível com essa natureza. Isso presume, como consequência
necessária, a existência de simpatia em toda magia, indistintamente35
.
Da mesma forma, quando Frazer especifica, como condição para o
surgimento da religião, “o colapso da magia”36
, Cassirer salienta a
impropriedade de se atribuir à religião o poder de supressão dos
“instintos mais profundos da humanidade”37
. Para o filósofo alemão,
seu caráter simpático não poderia mesmo transitar nessa direção,
contudo deve-se, admite ele, diferenciar a simpatia religiosa que evoca
a “individualidade” da mítica e mágica que reside na “universalidade
de sentidos”. Mas, precisamente aí, um paradoxo se presentifica. Deve a
religião caracterizar-se pela “individualidade” sem se furtar à
“universalidade de sentido”: o que acarreta não abdicar necessariamente
da “simpatia do Todo”38
.
Para que essa condição individualizante da religião se
evidenciasse, todavia, fora necessário um longo percurso perpassando
toda concepção pré-animista, animista, funcional e, por fim, personal da
divindade39
. Os deuses homéricos sob as formas rapsódicas e da
arquitetura40
, não eram necessariamente imorais, contudo, sintetizavam
o retrato dos homens nessas colagens poética e artística. No esquema
explicativo, utilizado por Cassirer, o percurso monumental ocorrido
desde as formas mais arcaicas da divindade até o monoteísmo, teve que
passar pela indiferença estética própria dos deuses homéricos. Nas
primeiras manifestações do sagrado, os poderes foram usados tanto
35
. Idem, p. 156. 36
. Idem, p. 155. 37
. Idem, p. 158. 38
. Cassirer deseja tipificar a religião como “simpaticamente” distinta da simpatia mítica e mágica. O aspecto distintivo gira em torno da individualidade, contudo, a relação pleiteia uma universalidade de sentido. Esta última é uma implicação que se desdobra em diferentes aspectos da realidade humana: psicologia, sociologia e ética, pois tende ao desenvolvimento humano, social e da consciência moral. Idem, p. 158. 39
. Idem, p. 160. 40
. Idem, p. 162.
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“para o bem como para o mal”41
. A antropomorfização da deidade
ocorrida a partir do Olimpo inaugura um processo de individualização
do homem no que tange à sua relação com o deus. Essa novidade,
contudo, não traz consigo qualquer alteração no tocante à integração do
homem com a natureza42
. O monoteísmo será, portanto, a chancela
cabal dessa humanização individualizada sem desatar o laço que une o
homem à natureza: se no universo mítico a natureza se constituía num
elemento divinizado, agora reflete o poder do criador circunscrito em
“uma ordem universal, eterna e inviolável”43
. A relação simpática com
o todo natural ultrapassa sua dimensão mágico-estética para se ancorar
sob o “ponto de vista racional”, na medida em que é “concebida como a
esfera da lei e da obediência às leis”44
. O paradoxo acima tende a ser
dissolvido na formula sui generis no monoteísmo que preenche o
vínculo entre o homem e a divindade com uma concepção ética do
indivíduo. A totalidade organizada será mantida agora, dirá Cassirer,
“pela força do Bem”. Disso provém um mundo apenas compreensível
“um grande drama moral no qual tanto a natureza quanto o homem
devem representar seus papeis”45
.
Cassirrer caminha para suas conclusões finais, mas sem se
esquivar do confronto de ideias. Frente a Bergson, reitera sua
concepção de inexistência de um “salto repentino” e, portanto,
involuntário, entre o mito e a religião46
. Para o neokantiano, ocorreu um
“esforço heroico da humanidade” para “livrar-se da pressão e da
compulsão das forças mágicas”47
e tal fenômeno não sobreveio de uma
mera instantaneidade temporal, tal qual pretendida por Bergson48
.
41
. Cita Cassirer a expressão de Codrington, Idem, p. 165. 42
. Idem, p. 163. 43
. Idem, p. 165. 44
. Idem, p. 165. 45
. Idem, p. 166. 46
. Idem, p. 168. 47
. Idem, p. 167. 48
. Ante o argumento de Bergson, dirá Cassirer: “Não podiam criar uma religião nova a partir do nada. Os grandes reformistas religiosos individuais não viviam no espaço
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Cassirer lança mão dos fatos históricos para dilucidar que a passagem
da consciência mítica para a religiosidade não sobreveio da
dissolubilidade do mito e surgimento repentino da religião, mas sim de
uma transição lenta e só isso permite a preservação de elementos
míticos nas religiões superiores49
. A luta da religião se caracterizou pela
peculiaridade de sua natureza ética e libertária do homem; em tomá-lo
como fim religioso em contraposição ao tabu diluído nas estranhas do
todo das sociedades, mesmo sob a convicção de que tal empresa não o
eliminaria radicalmente.
Tomando como referência William Robertson-Smith, Cassirer
compreende que a passagem entre o mito e a religião, embora lenta e
gradual, só foi possível a partir do estabelecimento de uma linha
demarcatória entre “a esfera sagrada e a esfera do impuro ou do
fantástico50
”. Para Robertson–Smith, o que possibilitou essa
demarcação foi o fato de os semitas terem regras de pureza e santidade
diferenciadas. Entre eles aquilo que pertencia, anteriormente, ao campo
de superstição mágica iria sofrer uma delimitação inédita surpreendente
ao tabu: “a distinção clara entre a violação subjetiva e a objetiva de uma
lei religiosa.51
” A franquia de um deus amistoso correspondia a uma
fase embrionária do progresso moral e social.
É desencadeada a partir de então uma “mudança de sentido” na
religião. Duas discriminações darão conta, por fim, da passagem em
questão: o ideal de pureza é transferido do objeto para o homem52
e, a
despeito da negatividade que domina todo sistema de proibição medo e
privação no tabu, sobreveio um “poder positivo” não inibitório, não
vazio, no espaço de suas próprias experiências e inspiração religiosas. Mil vínculos ligavam-nos ao seu ambiente social”. Idem, p. 169. 49
Idem, p. 170. 50
. Idem, pp. 176-177. O tabu está envolvido por uma atmosfera sobrenatural de “temor e perigo” na qual o divino e o impuro, o “sagrado e o abominável estão no mesmo nível”. Idem, pp .173-174. 51
. Idem, p. 175. 52
. Nas palavras de Cassirer “pureza do coração”.
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subscrito na passividade, mas expressão de uma positividade marcada
pela “liberdade humana”.
Finalizando, é indispensável mencionar que, para o pensador de
Marburgo, toda essa trajetória do mito até atingir as formas mais
sofisticadas de religiosidade traduz-se por uma hipótese e duas
importantes recorrências: esse processo é resultado da forma simbólica
nele implícita e se caracteriza por uma tendência progressiva a partir de
uma tensão interna. Como todas as demais atividades humanas, se
estabelece numa latência entre reprodução e conservação, por um lado,
e inovação que se dá numa dinâmica que compreende rupturas e
avanços, por outro. A força estabilizadora do mito o coloca, frente às
demais atividades humanas, menos susceptível à mudança. Não
obstante, sua rigidez traz consigo “um avanço contínuo em direção
oposta”. As formas mais arcaicas de religiosidade são eclipsadas e
oferecem espaços as religiões mais dinâmicas, isso, contudo, a partir de
um mecanismo interno evolutivo.
Conclusão
Rejeitada, inicialmente, a distinção entre mito e religião como
caos generalizado versus ordem racional, Cassirer, sublinhará as
distinções necessárias entre religião e mito a fim de contestar, entre
outras ideias, em primeiro plano, a possibilidade de uma leitura
mecanicista do mito – como queria Frazer – e a admissibilidade de uma
descontinuidade radical entre mito e religião – como defendia Bergson.
Desses principais confrontos, o pensador alemão postulará um estatuto
próprio para a religião.
Nutrido por uma vasta bibliografia antropológica, Cassirer
desfila sobre a história possível da religiosidade humana selecionando
informações à concepção de Mito e de Religião que por fim esboça. O
critério para tal é inexato, dado que por vezes salva aspectos
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demarcados de teorias que no geral refuta53
e os associa aos elementos
de outras as quais toma como parâmetro. Curioso é perceber que se, por
um lado, fazendo uso da etnografia, sob notação malinowiskiana,
Cassirer acusa a impertinência do uso da psicologia empírica em
questões defendidas por Frazer54
, bem como a disposição metafísica
empreendida por Bergson, por outro, é através dos relatos estritamente
literários de Robertson-Smith que julga possível – além de ratificar a
acusação acima – fundamentar sua conclusão sobre as dimensões, que
ora confluem e ora se repelem, do mito e da religião. Tudo resulta numa
composição arbitrária e discutível própria de sua predisposição sintético
totalizante.
No que tange à deslinearização de toda objetivação, proposta
por Cassirer, em favor da ideia de coexistência isonômica em termos de
validade epistemológica, eliminando os níveis de objetividade entre
diversos campos da experiência, os desdobramentos e conclusividade
presentes no texto, em questão, parecem reforçar a desconfiança em
torno das possibilidades de objetividade equitativa entre os saberes.
O procedimento que adotou por ocasião da rejeição da ideia de
ruptura traumática subjacente à transposição de uma atividade mítica
para uma científica55
, Cassirer o reproduz no que concerne à transição
do mito para a religião. Para o autor, o desenvolvimento da humanidade
não pode ser considerado a partir de um inesperado movimento em que
uma fase subscrita exclusivamente na superstição repentinamente
ecloda racional, ou seja, que um estágio fundamentalmente intuitivo
seja interrompido por outro essencialmente conceitual.56
Como visto,
sua proposta impõe, no que tange à passagem das formas míticas nas
53
. Como, por exemplo, em Bergson, as duas formas de religião pautadas nas noções de pressão e apelo ou, como no caso de Spencer, as concepções gerais que giram em torno do culto dos ancestrais, idem, pp.141-148. 54
. Idem, p. 157. 55
. Ver Ludovico Geymonat. Historia del pensamento filosófico y científico, VII, Siglo XX (I). Barcelona, Ariel, 1984, p. 146. 56
. Ludovico Geymonat, idem, p. 146.
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quais reside a erupção do tabu para a religião, similar gradação. Talvez
seja significativo perceber nessa analogia, numa escala expandida, a
noção de progressão da objetividade, dada a sucessiva alteração
ocorrida nas formas simbólicas mais intuitivas para outras mais
conceituais, sem que, no entanto, se confunda com desequivalência de
graus de objetividade. Nas múltiplas conformações desde o mito até a
religião e daquele até a ciência, o autor impõe e preserva,
rigorosamente, estas duas exigências subordinado-as à noção de formas
simbólicas e enfatizando a diferença entre elas, mas é justamente a
ênfase na diferença que abre espaço para que se inquerir sobre certas
igualdades tributáveis à conveniência sistêmica.
Bibliografia:
Cassirer, Ernst. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da
cultura humana. 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.
Eliade, Mircea. Mito e realidade. 5ª ed. São Paulo, Perspectiva, 1998.
Geymonat, Ludovico. Historia del pensamento filosófico y científico,
VII, Siglo XX (I). Barcelona, Ariel, 1984.
Porta, Mario Ariel González. Estudos neokantianos. São Paulo, Edições
Loyola, 2011.