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Contos de Andersen...se. Estava muito desolado por ter assim um aspeto tão feio e servir de escárnio para todo o pátio dos patos. Assim se passou no primeiro dia e depois tornou-se

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Título:ContosdeAndersen

Autor:HansChristianAndersen

Ilustrações:EdnaF.HarteEdmundDulace

Edição:AgrupamentodeEscolasdeRiodeMouro

Coleção:ClássicosInfantojuvenis

Seleção,paginaçãoeprojetográfico:CarlosPinheiro

Imagemdacapa:AChristmasGreeting,byHansChristianAndersen

1.ªedição:outubrode2013

ISBN:978-989-8671-14-1

EdiçãosegundoasregrasdoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesade1990.

AdaptaçãodoebookempdfOscontosdeHansChristianAndersen,disponiblizado

pela DGARQ (http://dgarq.gov.pt/files/2013/09/Os-Contos-H-C-Andersen.pdf),

cominclusãodealgunsoutroscontos.

Origemdasilustrações:

http://www.gutenberg.org/files/32571/32571-h/32571-h.htm

http://www.gutenberg.org/files/32572/32572-h/32572-h.htm

http://www.gutenberg.org/files/17860/17860-h/17860-h.htm

http://www.gutenberg.org/files/27000/27000-h/27000-h.htm

Page 3: Contos de Andersen...se. Estava muito desolado por ter assim um aspeto tão feio e servir de escárnio para todo o pátio dos patos. Assim se passou no primeiro dia e depois tornou-se

ÍndiceOPatinhoFeioODuendeemCasadoMerceeiroOMontedasSílfidesOPapílioAGotadeÁguaAsVelasOElfodaRosaÉabsolutamentecerto!IbeCristininhaOAnjoOsDiasdaSemanaOJardineiroeoSenhorAPastoraeoLimpa-ChaminésOsSapatosVermelhosACasaAntigaOAbetoAFamíliaFelizAVestimentaNovadoImperadorHistóriasdoBrilhodoSolOsCisnesSelvagensAArcaVoadoraOlavinhoFecha-os-OlhosASereiazinhaAPolegarzinhaAsFloresdeIdinhaOHomemdosFantochesOSinoOLivroMudoASombraSaltadoresARapariguinhadosFósforosORouxinolOFuzilOColarinhoPostiçoOValenteSoldadinhodeChumboOPequenoClauseoGrandeClausSoboSalgueiroJoãoPatetaOSapoNoPátiodosPatosARainhadasNevesUmcontocomsetehistórias

Primeirahistória—quetratadoespelhoedosseusfragmentosSegundahistória—UmrapazinhoeumameninaTerceirahistória—OjardimdamulherquesabiafazerfeitiçosQuartahistória—PríncipeeprincesaQuintahistória—ApequenasalteadoraSextahistória—AmulherdaLapóniaeamulherdaFinlândia

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Sétimahistória—OqueaconteceunopaláciodaRainhadasNeveseoquesepassoudepoisAHistóriadeUmaMãeAPrincesaeaErvilhaABorboletaOBuleOCaracoleaRoseiraOHomemdeNeveOsVerdinhos

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OPatinhoFeio

Estavatãobonitoocampo!

Eraverão,otrigoeradourado,aaveiaverdeeofenoamontoadoemmedasnos

pradosverdes.Poraíandavaacegonhacomassuaslongaspernasvermelhasfalando

egípcio, uma língua que aprendeu com a sua mãe. Em redor dos campos e dos

prados havia grandes bosques e no meio deles profundos lagos. Sim, estava tão

bonitoocampo!

No meio, iluminado pelo Sol, via-se um velho solar rodeado por profundos

canais.Dosmuroseparabaixo,atéàágua,cresciamgrandesfolhasdebardanas,tão

altasqueascriançaspodiampôr-sedepéporbaixodasmaiores.Eratãointricadoaí

comonobosquemaisespessoe,lánomeio,encontrava-seumapatanoseuninho.

Deviachocarosovos,poisesperavapatinhos,masestavacansadaporquedemorava

muito tempoe raramente recebiavisitas.Asoutraspatasgostavammaisdenadar

nos canais do que correr lá acima e sentarem-se sob uma folha de bardana para

grasnaremcomela.

Por fim rebentou um ovo após outro. Pi! Pi! — diziam os patinhos recém-

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nascidos.Todasasgemasdeovosetornaramcriaturasvivas,malpunhamacabeça

defora.

—Vá!Vá!—disseela,eospatinhosapressaram-sequantopodiameolhavam

para todos os lados sob as folhas verdes. E amãe deixava-os olhar, as vezes que

quisessem,poisoverdeébomparaosolhos.

— Como o mundo é tão grande! — disseram os filhotes. Pois, na verdade,

tinhamagorabemmaisespaçodoquequandoseencontravamdentrodoovo.

—Nãojulguemqueistoéomundotodo!—disseamãe.—Estende-semuito

paraalémdooutroladodojardim,bemparadentrodaquintadoPadre!Masnunca

estive aí!… Estais pois todos juntos!— disse, levantando-se.—Não, não estão

todos!Oovomaioraindaestáali!Quantotempovaidemorar?Estouacomeçara

ficarcansada!—Evoltouadeitar-se.

—Então,comovaiisso?—perguntouumavelhapataquevinhafazer-lheuma

visita.

—Estátãodemoradoesteovo!—disseapataquechocava.—Nãohámeiode

furá-lo!Masvêosoutros!Sãoospatinhosmaisbonitosquevi!Parecem-setodos

comopai,essemalvadoquenemvemvisitar-me.

—Deixa-meveroovoquenãoquerrebentar!—pediuavelha.—Podescrer

que é um ovo de peru! Também fui enganada uma vez e tive muitos

aborrecimentos com osmeus filhotes, pois, devo dizer-te, ficaram commedo da

água!Nãoconseguilevá-losatélá!Eugrasneiedei-lhesbicadas,masnãoserviude

nada!…Deixa-meveroovo!Érealmenteumovodeperu!Deixa-oficaraíeensina

osoutrosfilhotesanadar!

—Quero ainda chocá-lo umbocado!Estive deitada tanto tempoque nãome

custanadadescontarumpoucodomeulazer!

—Comoquiseres!—afirmouavelhapata,efoi-seembora.Finalmenteoovo

granderebentou.

—Pi!Pi!—disseofilhote,deixando-setombarparafora.

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Eratãograndeetãofeio!Apataolhouparaele:

— Mas é um patinho terrivelmente grande! — exclamou. — Nenhum dos

outrossepareceassim!Esperoquenãovenhaaserumperuzinho!

—Bem,embrevevamosver isso!Paraaáguateráde ir,nemqueeutenhade

arrastá-loàsbicadas!

No dia seguinte fazia um tempo maravilhoso. O Sol brilhava sobre todas as

bardanas verdes.Amãe dos patinhos, com toda a família, avançoupara baixo em

direçãoaocanal.Chape!,e saltouparaaágua.Vá!Vá!—disseela,eospatinhos

deixaram-secairunsatrásdosoutros.Ficaramcomacabeçadebaixodeágua,mas

vieram logo ao de cima e flutuaram deliciosamente. As pernas andavam por si

própriasetodosláestavam.Ofilhotefeioecinzentotambémnadava.

—Não, não é nenhum peru!— exclamou ela.—Vê comomexe tão bem as

pernas,comosemantémdireito!Émesmomeufilho!Nofundo,ébastantebonito,

quandoseobservabem!Vá!Vá!Venhamagoratodoscomigo.Voulevá-losparao

mundoeapresentá-losnopátiodospatos,masandemsempreaopédemim,para

queninguémospiseetenhammuitocuidadocomogato!

E entraram assim no pátio dos patos. Havia um barulho terrível lá dentro,

porque duas famílias lutavam pela posse de uma cabeça de enguia, mas,

aproveitandoaconfusão,foiomatreirodogatoqueaapanhou.

— Vejam como se passam as coisas no mundo!— disse a mãe dos patinhos,

lambendoobico,poistambémlheapeteciaacabeçadeenguia.—Mexamagoraas

pernas!—continuouela.—Vejamsepodemgrasnarefazerumacortesiacomo

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pescoço diante daquela pata velha!É amais distinta de todas aqui.É de sangue

espanhol, portanto, é pesada. Vejam como tem um trapo vermelho em volta da

perna!Éalgodeextraordinariamentebeloeamaiordistinçãoqueumapatapode

receber. Significa muito, que não se querem desembaraçar dela e que deve ser

reconhecidaporanimaisehomens.Mexam-se!…Nãocomaspernasparadentro!

Umpatinhobem-criadopõeaspernasbemafastadasumadaoutracomoopaiea

mãe!Assim!Façamumacortesiacomacabeçaedigam:quá!

Eassimfizeram.Masasoutraspatasàvoltaolharamparaelesedisserambem

alto:

— Vejam! Vamos ter agora mais aquela ninhada! Como se não fôssemos já

bastantes!Hui!Queaspeto temaquelepatinho!Nãopodemos tolerar isso!—E

logoesvoaçaram,umapataatrásdaoutra,paraomordernanuca.

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—Deixem-no!—disseamãe.—Nãofezmalnenhumaninguém!

—Sim,mas é demasiado grande e demasiado estranho!—disse a pata que o

mordeu.—Eporissotemdesertosado!

—Sãobonitososfilhotesqueamãetem!—disseapatavelhacomotrapona

perna.—Todosbonitos,excetoum,quenãoteveêxito!Gostariaqueelapudesse

refazê-lo!

—Nãoservedenada,VossaMercê!—disseamãedospatinhos.—Elenãoé

bonito,mas tem bom feitio e nada tão bem como qualquer um dos outros. Sim,

ouso mesmo dizer, um pouco melhor! Penso que vai tornar-se bonito e com o

tempoficarámaispequeno!Ficoudemasiadotemponoovoeporissonãorecebeua

formacorretanocorpo!—Epassou-lheobiconanucaalisando-lheaspenas.—

Alémdissoéumpato—disseela—,porissonãotemmuitaimportância!Confio

quevenhaaterboasforçasevaivencerdecerteza!

—Osoutrospatinhossãoengraçadinhos!—ripostouavelha.—Façamcomose

estivessememcasa,eseencontraremumacabeçadeenguia,podemtrazer-ma!

Sentiam-secomoseestivessememsuacasa.Masopobrepatinho,quesaíraem

último lugar do ovo e que tinha um aspeto tão feio, foimordido, tosado, e dele

escarneceram.Tantoaspatascomoasgalinhas.—Édemasiadogrande!—diziam

todos, e o peru, que nasceu com esporas e que julgava por isso ser imperador,

inchou todo como um barco de velas enfunadas, foi direito a ele e gorgolejou,

ficandotodovermelhonacabeça.Opobrepatinhonãosabiaondehaviademeter-

se.Estavamuitodesoladoporterassimumaspetotãofeioeservirdeescárniopara

todoopátiodospatos.

Assim se passou no primeiro dia e depois tornou-se cada vez pior. O pobre

patinho era perseguido por todos, até mesmo os irmãos eram maus para ele e

diziam sempre: — Se ao menos o gato te levasse, feia criatura! — E a mãe

acrescentava:—Quemmederaquefossesparalonge!—Easpatasmordiam-no,

asgalinhaspicavam-noea raparigaquedistribuíaa comidaaosanimaisdava-lhe

pontapés.

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Entãoelevou-seevoouparaforadasebe.Ospassarinhosnosarbustosfugiram

espavoridos. «É porque sou feio!», pensou o patinho e fechou os olhos, mas

continuoua correr até chegar aograndepântanoondemoravamospatos-bravos.

Alificoutodaanoite.Estavamuitocansadoeaflito!

Demanhã,ospatos-bravoslevantaramvooeolharamparaonovocamarada.

—Dequeespécieéstu?—perguntarameles,eopatinhovoltou-separatodos

osladosesaudou-osomelhorquesabia.

—Éextraordinariamentefeio!—disseramospatos-bravos.—Masparanóséo

mesmo,desdequenãocasesnanossafamília!

Pobrezinho! Não pensava, de certeza, em casar-se. Pudesse apenas ter

autorizaçãoparasedeitarnosjuncosebeberumpoucodeáguadopântano!

Ali ficou durante dois dias inteiros. Então vieram dois gansos-bravos, dois

machos.Nãoforahámuitoquehaviamsaídodoovoeporissoeramtãoatrevidos.

—Ouve, camarada!— disseram eles.—Tu és tão feio, que até gosto de ti!

Queres vir connosco e ser avede arribação?Numoutropântanoháumaspatas-

bravasencantadoras,todasmeninas,quesabemdizer:quá!Estásemcondiçõesde

fazeratuafelicidade,tãofeioés!…

— Pum! Pum! — ouviu-se naquele momento, os dois gansos-bravos caíram

mortosnosjuncoseaáguatornou-severmelhadesangue.Pum!Pum!—voltoua

ouvir-se.Todoobandodegansos-bravosvooudosjuncos.Troouaindamaisuma

vez.Eraumagrandecaçada.Oscaçadoresestavamàvoltadopântano.Sim,alguns

encontravam-semesmosentadosnosramosdasárvoresqueseestendiamsobreos

juncos.Ofumoazul subiacomonuvensentreas árvores sombriase suspendia-se

sobre a água. Pelo lodo vieram os cães de caça, platch, platch. Juncos e canas

abanavamportodososlados.Eraterrívelparaopobrepatinho,quevirouacabeça

paraapôrdebaixodaasa eprecisamentenessemomentoapareceu juntodeleum

cãoterrivelmentegrande,comalínguapendendoforadabocaeosolhosabrilhar,

horríveis.Pôsofocinhomesmocontraopatinho,mostrouosdentesaguçadose…

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platch,platch,lásefoisempegarnele.

—Deussejalouvado!—sussurrouopatinho.—Soutãofeioquenemmesmoo

cãoquermorder-me!

E assim ficou completamente quieto, enquanto as chumbadas sibilavam nos

juncoseestoiravamtiroapóstiro.

Sómaisparaofimdodiaéquesefezsilêncio,masopobrepatinhonãoousou

levantar-se.Esperoualgumashorasmais,antesdeolharàvoltaedepoisapressou-

se a sair do pântano o mais rápido que pôde. Havia vento forte e teve grandes

dificuldadesparasairdali.

Perto da noite chegou a uma pequena e pobre casa de camponeses. Era tão

miserávelqueelapróprianãosabiaparaqueladohaviadecair.Tantoassimqueera

melhorficardepé.Oventosibilavadetalmodoàvoltadopatinhoqueestetinhade

apoiar-se na cauda para o enfrentar e cada vez soprava com mais força. Então

observouqueaportatinhasaídodeumdosgonzoseficadosuspensaparaumdos

lados,permitindoqueelesepudesseintroduzirpelaabertura.Foioquefez.

Na casamorava uma velha senhora como seu gato e a sua galinha.O gato, a

quemelachamavaFilhinho, sabiacorcovaraespinhaebufar.Quandoseeriçava,

até fazia faísca, sendo então necessário passar-lhe a mão pelo pelo em sentido

contrário.Agalinhatinhaumaspernaspequenasmuitobaixaseporissosechamava

Franganinha PernaCurtinha. Punha bons ovos e a mulher gostava dela como se

fossesuafilha.

Demanhã,logoquesedeupelapresençadoestranhopatinho,ogatocomeçoua

corcovaraespinhaeagalinhaacacarejar.

—Queéisto?—disseavelhaolhandoàvolta,mas,comonãoviabem,julgou

queopatinhoeraumapatagordaqueseperdera.—Éumachado!—continuou.

—Agorapossoterovosdepata,senãoforumpato!Temosdeverisso!

E o patinho foi posto à experiência durante três semanas. Mas não apareceu

nenhum ovo. O gato, que era o senhor da casa, e a galinha, a senhora, diziam

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sempre:

—Nós e omundo!— pois acreditavam que erammetades deste e a melhor

parte.Aopatinhoparecia-lhequesepodiateroutraopinião,masissonãosuportava

agalinha.

—Sabespôrovos?—perguntouela.

—Não.

—Bem,entãocalaobico!

Eogatodizia:

—Sabescorcovaraespinha,bufarefazerfaíscas?

—Não.

—Entãonãodevesteropiniõesquandofalagenterazoável!

Opatinhosentava-seaumcantoeficavadeprimido.Entãosucedeu-lhepensar

noarlivreenaluzdoSol.Ficoucomumtalanseiomaravilhosodeflutuarnaágua

que,porfim,nãopodiaaguentar.Tinhadedizê-loàgalinha.

—Quesepassacontigo?—perguntouela.—Nãotensnadaparafazer,porisso

tevêmessasfantasiasàcabeça!Põeovosoubufaqueassimtepassarão.

—Masétãobeloflutuarnaágua!—disseopatinho.—Tãobelopôracabeça

debaixodelaemergulharatéaofundo!

— Sim, é um grande prazer!— disse a galinha.— Ficaste bastante maluco!

Perguntaaogato—éomaisinteligentequeconheço—segostadeflutuarnaágua

oumergulharnela.Nãoquerofalardemim…Perguntamesmoànossadona,que

maisinteligentedoqueelanãohánomundo!Crêsquetemvontadedeflutuarna

águaoudepôracabeçadebaixodela?

—Nãomecompreendem—disseopatinho.

— Bem, se não te compreendemos, quem te compreenderá? Certamente não

pretendessermaisinteligentequeogatoeamulher,paranãofalardemim!Não

sejaspresunçoso,criança!EagradeceaoCriadorportudodebomquefezporti!

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Não vieste para uma casa quente e não tens um ambiente onde podes aprender

alguma coisa?Tu és umdisparatado e não é divertido falar contigo!Acredita!É

parateubemquetedigoestascoisasdesagradáveiseénissoquesereconhecemos

verdadeirosamigos!Vêapenasseconseguespôrovoseaprendesabufarouafazer

faíscas!

—Creioquemevouembora,poressemundofora!—disseopatinho.

—Vaipois!—retorquiuagalinha.

Eopatinhofoi.Flutuounaágua,mergulhounela,masportodososanimaisfoi

desdenhado,pelasuafealdade.

Chegouentãoooutono.As folhasnosbosques ficaramamarelasecastanhas,o

ventopegounelas,detalmodoquedançavamàrodae láemcimanocéuparecia

fazerfrio.Asnuvenssuspendiam-sepesadas,carregadasdegranizoedegeadaena

sebe estava o corvo que gritava: ai!, ai!, transido de frio. Podia-se ficar

completamente enregelado só de pensar nisso.O pobre patinho, na verdade, não

passavanadabem.

Umatardinha,emquehouveumlindopôrdoSol,saiudasmoitasumbandode

aves grandes e belas. O patinho nunca vira nenhumas tão bonitas. Eram de um

brancobrilhante,compescoçoslongoseflexíveis.Eramcisnes.Lançaramumsom

estranhamentebonito,abriramasasaslargasebelasevoaramparaforadasregiões

frias, para terrasmais quentes, para os lagos abertos. Subiram alto, bem alto e o

patinho feio sentiu-semuito esquisito.Pôs-se a andar à voltana água comouma

roda,estendeuopescoçograndeparaoarnadireçãodeles,lançouumgritotãoalto

eestranhoqueelepróprioficoucommedo.Oh!Nãopodiaesquecerasbelasaves,

as aves felizes, e assim que as deixou de ver,mergulhou até ao fundo, e quando

voltou,estavacomoforadesi.Nãosabiacomosechamavamasaves,nemparaonde

voavam, mas ficou a gostar delas como nunca tinha gostado de alguém.Não as

invejavademodoalgum,poiscomopodiadesejarumatalbeleza!Jásecontentaria

sefossetoleradoentreospatos!…opobreanimalzinhofeio!

Eoinvernoficoutãofrio,tãofrio.Opatinhotinhadenadaràvoltanaáguapara

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evitarqueestagelassecompletamente.Mascadanoitequepassavaoburacoemque

elenadava tornava-se cadavezvaispequeno.Geloude talmodoque até a crosta

estalava.Opatinhotinhadeestarsempreamexeraspernasparaqueaáguanãose

fechasse.Porfim,extenuado,paroueficoucompletamentecoladoaogelo.

Demanhã cedo passou um camponês. Viu-o e foi direito a ele. Bateu com o

tamanconogelopartindo-oempedaçoselevou-oparacasa,paraamulher.Voltou

depoisàvida.

Ascriançasqueriambrincarcomele,masopatinhojulgouquelhequeriamfazer

malefugiu,commedo,paradentrodamalgadoleite,detalformaqueestesalpicou

asparedesdacasa.Amulhergritoueagitouosbraçosnoar.Entãovooudalipara

dentroda selhaondeestavaamanteiga,depoisparadentrodobarrilda farinhae

seguidamente veio para cima.Ui! Como ele estava! E amulher gritava e corria

atrásdeleparalhebatercomatenazdofogão,eascriançascorriamatrásumada

outra atropelando-se para apanhar o patinho e riam e gritavam…Foi bomque a

portaestivesseaberta!Correuparafora,porentreosarbustos,paraaneverecém-

caída…eaíficou,comoqueentorpecido.

Mas seria demasiado triste contar todas as necessidades e misérias por que

passou, no inverno rigoroso… Estava no pântano, entre as canas, quando o Sol

começou a brilhar quente de novo. As cotovias cantavam… como era bela a

primavera.

Entãoergueuasasas,queseagitaramfortementecomonuncaantesacontecerae

elevaram-no comgrande impulso.E antesquedessepor isso, encontrou-senum

grande jardim onde as macieiras floriam, os lilases perfumavam o ar e se

suspendiamnos longos ramos verdes que acompanhavam as curvas serpenteantes

dos canais.Oh!Ali era tão belo, deuma frescura tão primaveril!Emesmo à sua

frentesurgiram,vindosdasmoitas, trêsbeloscisnesbrancos.Armavamaspenase

flutuavam tão levemente na água...O patinho reconheceu os belos animais e foi

tomadoporumaestranhatristeza.

—Vouvoarparajuntodeles,osanimaisreais!Picar-me-ãodemorteporqueeu,

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que sou tão feio, ouso aproximar-medeles!Masque importa!Melhor sermorto

porelesdoqueserbicadopelaspatas,espicaçadopelasgalinhas,levarpontapésda

raparigaquetratadogalinheiroesofrerdesgraçasnoinverno!Voouparaaáguae

nadou ao encontro dos belos cisnes. Estes viram-no e nadaram ao seu encontro,

agitando as asas.—Vá,matem-me!— disse o pobre animal, curvando a cabeça

paraasuperfíciedaáguaàesperadamorte…masoqueviuelenaáguaclara?Viua

suaprópria imagem. Jánão eramais uma ave desajeitada, cinzento-escura, feia e

horrível.

Eraumcisne.

Nãotemimportâncianascernumpátiodepatos,sesefoichocadonumovode

cisne!

Sentiu-se recompensado pelas misérias e privações por que passara. Agora

apreciavaafelicidadeetodaabelezaquelhesorria…Eoscisnesgrandesnadavamà

suavoltaeacariciavam-nocomobico.

Chegaram criancinhas ao jardim, lançaram pão e trigo para a água e a mais

pequenagritou:

—Háumnovo!—Easoutrascriançasalegraram-secomisso.—Sim,chegou

umnovo!—Batiam palmas e dançavam à roda.Correram a buscar os pais, que

lançarampãoebolosàágua.Etodosdisseram:—Onovoéomaisbonitodetodos!

Tãojovemetãobelo!—Eoscisnesvelhoscurvaram-sereverenciando-o.

Sentiu-se entãomuito envergonhado e escondeu a cabeçadebaixoda asa.Não

sabiaoquefazer!Estavaextraordinariamentefeliz,masdemodoalgumorgulhoso,

poisumbomcoraçãonuncaficaorgulhoso!

Pensavacomoforaperseguidoeofendidoeouviaagoratodosdizeremqueeraa

maisbeladetodasasavesbelas.Oslilasescurvavamosramosparaaágua.Paraele.

O Sol brilhava tão quente e tão agradável! Então agitou as asas e esticou o seu

elegantepescoçoealegrou-sedetodoocoração:

—Tantafelicidadenuncasonhei,quandoeraopatinhofeio!

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ODuendeemCasadoMerceeiro

Haviaumestudante,dosautênticos,quevivianumaágua-furtadaenadapossuía.

Haviaummerceeiro,dosautênticos,queviviaemváriasdivisõesepossuía todaa

casa.NelaseinstalaratambémumduendeporquerecebianasnoitesdeNatalum

bom prato de papas com um grande pedaço demanteiga nomeio. Bem podia o

merceeirooferecê-lo.Oduendeficavanaloja,porqueotinhaescolhidoetambém

eramuitoinstrutivo.

Uma noite o estudante entrou pela porta das traseiras para comprar velas e

queijo.Comonãotinhaninguémaquemmandar, foielepróprio.Recebeuoque

pretendia,pagou-oeomerceeiroeamulheracenaram-lhecomacabeçadizendo

«boa noite».A patroa era umamulher que sabia bemmais do que acenar com a

cabeça,tinhaodomdapalavra!Eoestudanteacenoutambém,masficoualiparado

no meio da leitura da folha de papel que embrulhava o queijo. Era uma folha

arrancada de um velho livro, que nãomerecia ser rasgado empedaços, um velho

livrocheiodepoesia.

—Háalimais—disseomerceeiro.—Deiaumavelhaalgunsgrãosdecafépor

ele.Sequerdar-meoitoxelins,podelevarorestodolivro.

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—Obrigado—disseoestudante.—Dê-moemvezdoqueijo!Possocomersó

pão!Seriapecadorasgartodoesse livroempedaçosepedacinhos.Osenhoréum

excelente homem, um homem prático, mas de poesia não entende mais do que

aquelaselha.

Foi feio dizer aquilo, especialmente para a selha, mas o merceeiro riu e o

estudantetambém.Foiditoassimàlaiadebrincadeira.Porém,oduendeirritou-se

poralguémteraousadiadedizertalcoisaaummerceeiro,queeraproprietárioe

vendiaamelhormanteiga.

Quando se fez noite, a loja fechou e todos foram para a cama, à exceção do

estudante.Oduendeentrouelevoualínguasoltadapatroa,poisestanãoprecisava

delaquandodormia.E fossequal fosse o objetoondeoduendepusesse a língua,

este recebia voz e fala, podendo exprimir os seus pensamentos e sentimentos tão

bemcomoapatroa,cadaumnasuavez.Issoeraumacoisaboa,senãodesatariama

falartodosaomesmotempoeninguémseentendia.

Eoduendepôsalínguasoltanaselha,ondeestavamosjornaisvelhos.

—Érealmenteverdade—perguntouele—quenãosabeisoqueépoesia?

—Claroquesei—disseaselha.—Éalgoqueestánapartedebaixodosjornais

eérecortado!Creioquetenhomaispoesiadentrodemimdoqueoestudanteesou

apenasumasimplesselhanumamercearia.

Depois,oduendepôsalínguasoltanomoinhodecafé.Oh!,comofalava!Epô-

lanacubadamanteigaenacaixadodinheiro…todostinhamaopiniãodaselha.E

quandoasopiniõesestãodeacordocomamaioriatêmdeserrespeitadas.

—Agoravaiveroestudante!

Então, o duende subiu devagarinho as escadas da cozinha que davam para a

água-furtadaondeviviaoestudante.Havialuzládentro,oduendeespreitoupelo

buracoda fechaduraeviuqueesteestavaa lero livrorasgado.Havia tanta luz lá

dentro!Do livro saía um raio luminoso que se transformava num tronco, numa

árvorepossantequeseerguiabemaltoeestendiaamplamenteosseusramossobreo

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estudante.Todasasfolhaseramfrescasecadafloreraumabelacabeçaderapariga.

Umas tinham os olhos escuros e faiscantes e outras azuis e maravilhosamente

claros. Cada fruto era uma estrela brilhante e ouvia-se um canto e umamúsica

extraordinariamentebelos!

Em tal magnificência nunca tinha pensado o duende, muito menos visto e

sentido.Eassimficounaspontasdospés,aespreitar,aespreitar,atéquea luzse

extinguiu. O estudante soprou o candeeiro e foi para a cama. O duendezinho

deixou-se ficar, pois ainda se ouvia aquele canto suave e belo.Era uma deleitosa

cançãoparaembalaroestudante,quesedeitarapararepousar.

—Éincomparável!—disseoduendezinho.—Nãoesperavaisto!…Creioque

vouficarcomoestudante!—Epensou,epensousensatamente,esuspirou:—O

estudantenãotempapas!—Efoi-seembora.Sim!Voltouparaomerceeiro.

Foibomtervoltado,poisaselhatinhagastoalínguasoltadapatroaapronunciar

tudooqueemsicontinhadeumlado.Agorajáestavacomaideiadesevirarpara

reproduziromesmodooutro lado,quandooduendechegouedevolveua língua

soltaàmulherdomerceeiro.Mastodaaloja,desdeacaixadodinheiroatéàlenha

emfeixes,foidaopiniãodaselhaeconsiderou-aemtãoaltograueconfioutanto

nelaque,quandodepoisomerceeiro,ànoite,liaa«CrónicadoTeatroedasArtes»

doseu«jornal»,acreditavaquetalleituravinhadaselha.

Masoduendezinhojánãoficavatranquilamentesentadoaescutarládoaltotoda

asabedoriaecompreensãoquevinhacádebaixo.Não!Logoquesaíaluzdaágua-

furtada, era como se os raios fossem fortes cabos de âncoraque opuxassempara

cimaetinhadepartirparairespreitarpeloburacodafechadura.Aímovia-oentão

agrandeza,quesentimosnomarrevoluteante,quandoDeuspassaemtempestade

sobre ele. E rompia em lágrimas, ele próprio não sabendo porque chorava, mas

havianaquelaslágrimasalgoabençoado!…Comodeviaserincomparavelmentebelo

estar sentado com o estudante sob aquela árvore.Mas isso não podia acontecer.

Contentava-secomoburacodafechadura.Aindaestavanocorredorfrio,quandoo

vento outonal soprou pelas frestas do sótão. Fazia tanto frio!Tanto frio!Mas o

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duendezinhosóosentiaquandoaluzseapagavadentrodaágua-furtadaeossons

morriamperanteovento.Ui!Entãoregelavaearrastava-senovamenteparaoseu

cantinho.Comoeraconfortáveleagradável!…EquandovinhamaspapasdoNatal

comumgrandepedaçodemanteiga…ah!,sim!,entãoomerceeiroeraomelhorde

todos!

Nomeiodeumanoiteoduendeacordoucomumbarulhoterrívelnaspersianas

dasjanelas.Láfora,estavagenteabaterestrondosamentenelas.Oguarda-noturno

apitava porque havia um grande incêndio. Toda a rua estava iluminada pelas

chamas.Era ali em casa ou na do vizinho?Onde?Era um horror! Amulher do

merceeiroficoutãoperturbadaquetirouosbrincosdeourodasorelhasemeteu-os

naalgibeiraparaassimsalvaralgumacoisa.Omerceeirocorreuabuscarospapéis

decréditoeacriadaasuamantilhadeseda,quesetinhadadoaoluxodecomprar.

Todosqueriamsalvaromelhorquepossuíametambémoqueriaoduendezinho.

Empoucospulospôs-senocimodasescadaseentrounoquartodoestudante,que

estava per feitamente tranquilo, com as janelas abertas, a olhar para o fogo

assolando o pátio do vizinho da frente. O duendezinho agarrou no livro

maravilhoso que estava em cima da mesa, meteu-o no seu carapuço vermelho e

segurou-o com ambas asmãos.Omelhor tesouro da casa estava a salvo!Depois

raspou-seefoiparaotelhado,paracimadachaminé,eaísesentou,iluminadopelas

chamasdacasaaardermesmoemfrente,segurandocomambasasmãosocarapuço

vermelho, onde guardava o tesouro.Disse-lhe então o sentimento a quem ele, o

duende,naverdade,pertencia.

Masquandoofogoseextinguiueficoumaiscalmo…sim:

—Vou reparti-lo entre os dois!— exclamou.—Não posso abandonar assim

simplesmente o merceeiro, por causa das papas! E foi perfeitamente humano!…

Nós,osoutros,tambémvamosaomerceeiro.Porcausadaspapas.

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OMontedasSílfides1

De um lado para o outro, nas fendas de uma velha árvore, corriam lagartos.

Entendiam-sebemunsaosoutros,poisfalavamalínguadoslagartos.

—Olha!Comorolaezunenovelhomontedassílfides!—disseum.—Eunão

consigofecharosolhosjáháduasnoitesporcausadobarulho.Bempodiater-me

deitadocomdoresdedentesporqueassimtambémnãodormia.

—Alguma coisa se está a passar lá em cima— disse um segundo lagarto.—

Colocaram o monte sobre quatro estacas vermelhas, para o arejarem

convenientemente,atéaocantodogalo,eassilfidezinhasaprenderamnovasdanças,

emformadesapateado.Algumacoisaseprepara.

— Sim, falei com uma minhoca do meu conhecimento — disse o terceiro

lagarto.—Vinhadiretamentedomonte,onde,noiteedia,tinharemexidonaterra.

Ouviuumagrande parte da azáfama, que ela não pode ver, o pobre animal,mas

colher informações e escutar, disso percebe ela.Esperam-se visitas nomonte das

sílfides, estranhos distintos, mas quem, não quis a minhoca dizer, ou então não

sabia.Atodosos lygtemænd2foiditoparafazeremumcortejodearchotes,comoé

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vulgarmente chamado, e aprata eouro,quehá em farturanomonte, estão a ser

polidoseexpostosaoluar.

—Quemserão,portanto,osestranhos?—disseramtodosos lagartos.—Que

seráqueseestáapreparar?Ouvecomozumbe!Ouvecomozune!

Precisamentenessemomentoabriu-seomontedas sílfideseumavelha sílfide,

que não tinha costas, mas que fora, apesar disso, vestida muito decentemente,

chegou com passinhos pequenos. Era a velha governanta do rei das sílfides. Era

uma parente afastada da família do rei e tinha um coração de âmbar na testa.

Andava tão bem com as pernas! Tripe, tripe! Arre! Como ela sabia andar com

passinhos pequenos. E foi diretamente para baixo, para o pântano, falar com o

Natravn3.

— Está convidado para o monte das sílfides, esta noite— disse ela.—Mas

gostavaquenosfizesseograndeserviçodetomarcontadosconvites!Tornar-se-á

útil, porque não tem casa a convidar! Recebemos visitas altamente distintas,

feiticeirosquesãoimportantese,porisso,ovelhoreidassílfidesquerexibir-se!

—Quemvoueuconvidar?—perguntouoNatravn.

—Paraograndebailepodevir todoomundo,mesmooshumanos,desdeque

saibamfalaralto,emsonhos,oufazerumpoucodaquiloquedizrespeitoànossa

espécie.Masparaoprimeirofestimtemdehaverumaseleçãorigorosa.Queremos

terapenasosmaisdistintosdetodos.Discuticomoreidassílfides,porquesouda

opiniãodequenãodevemospermitirspøgelser4.OHavmand5easfilhastêmdeser

osprimeiros convidados.Nãogostamdevirpara a terra seca,mas cadaumdeles

teráumapedrahúmidaparasesentaroualgomelhore,assim,pensoquedestavez

nãovãodizerquenão.Todososvelhosfeiticeirosdeprimeiraclassecomcaudas,o

Åmand6 e os nisser7, podem ser convidados. Também penso que não podemos

deixarde ladooGravso8,oHelhest9eoKirkegrim10.Pertencem, na verdade, aos

eclesiásticos,quenãosãodonossopovo,massãoosseuscargos.Estãopróximosde

nós,emfamília,efazem-nosvisitasconstantes!

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—Bra!—disseoNatravn,edepoispartiuavoarparairfazerosconvites.

As sílfides já dançavam no monte. Dançavam com véus de longos tecidos de

névoaeluar.Encantador,paraaquelesquegostamdogénero.Nomeiodomonte

dassílfides,asalagrandeestavabrilhantementedecorada.Ochãoforalavadocomo

brilho do luar e as paredes esfregadas com gordura de feiticeira, resplandecendo

comopétalasdetúlipas,emcontraluz.Acozinhaestavarecheadaderãsnoespeto,

peles de cobra com pequenos dedos de criança dentro e saladas de sementes de

cogumelosvenenosos.Focinhosmolhadosderatinhosecicuta,cervejada lavrade

Mosekone11, vinho brilhante de salitre das caves das covas.Tudomuito nutritivo.

Pregosferrugentosevidrosdejanelasdeigrejaspertenciamàsguloseimas.

Ovelhoreidassílfidesmandoupolirasuacoroadeourocomopódogizcom

queseescrevenaardósia,ogizdosalunosmaisespertos,eémuitodifícilparaorei

dassílfidesobteressepó!Noquartodedormirestavamsuspensascortinasfixadas

comvomitadodecobras.Sim,eraverdadeiramenteumzumbidoeumbramido!

—Agoratudovaiserdesinfetadocomfumodecrinadecavaloepelodeporco.

Creioquetenhocumpridobemomeudever—disseavelhasílfide.

—Docepai!—exclamouamaisjovemdasfilhas.—Possoagorasaberquemsão

asvisitasdistintas?

Claro!—disseele.—Bemtaspossorevelar!Duasdevós,minhasfilhas,têmde

sepreparar para o casamento.Duasque, certamente, casarão e partirão.O velho

Trold12, lá de cima, daNoruega, aqueleque vivena velhamontanhadeDovre e

temmuitospaláciosfeitosdeenormespedregulhosdegranitoeumaminadeouro,

que émelhor do que se crê, vai descer com os seus dois rapazes, que procuram

mulher. OTrold é um genuíno, velho e honesto norueguês, divertido e franco.

Conheço-o de tempos passados, quando bebemos juntos a tratar-nos por tu.Ele

esteveaquiembaixoparaarranjarmulher,que,entretanto,jámorreu.Erafilhados

reisdasescarpasdeMøen.Arranjouasuamulherdegiz13,comosecostumadizer!

Oh!ComotenhosaudadesdovelhoTroldnorueguês!Osrapazes,diz-se,devemser

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unsjovensmalcriadoseirreverentes,maspodemosestaraserinjustos.Tornar-se-

ão,certamente,bons,quandoforemmaismaduros.Deveisservós,assimoespero,a

ensinar-lhesasboasmaneiras!

—Equandovêmeles?—perguntouumadasfilhas.

—Depende do vento e do tempo!— respondeu o rei das sílfides.—Viajam

economicamente!Vêmpara aquidenavio.EuqueriaquepassassempelaSuécia,

masovelhonãoseinclinaaindaparaesselado!Nãoacompanhaostempos,edisso

eunãogosto!

Nessemomento,chegaramdoislygtemændaospulos,ummaisdepressadoqueo

outro,que,porisso,chegouprimeiro.

—Vêmaí!Vêmaí!—gritarameles.

—Dai-meaminhacoroaedeixai-meficarnomeiodo luar!—disseoreidas

sílfides.

Asfilhaslevantaramosxaileslongoseinclinaram-se,numavénia,atéaochão.Ali

estavaovelhoTrolddeDovrecomacoroadeestalactitesdegeloepinhaspolidas.

Traziavestidaumapeledeursoecalçavabotasdetrenó.Osfilhos,pelocontrário,

vinham de pescoço descoberto e sem suspensórios, pois erammoços novos e de

força.

—É istoummonte?—perguntouomaisnovo, apontandoparaomontedas

sílfides.—Chama-seaisso,láemcima,naNoruega,umburaco.

—Rapazes!— disse o velho.—O buraco vai para dentro, omonte vai para

cima!Nãotêmolhosnacara?

Aúnicacoisaquenosadmiraaqui—disserameles—é,assimsemmaisnada,

podermoscompreenderalíngua.

—Não se façamde palermas!—disse o velho.—Podia pensar-se que vocês

aindanãoestãoamadurecidos.

E,depois,entraramnomontedassílfides,ondeestava,verdadeiramente,a fina

sociedade,ecomumaprecipitaçãotalquesejulgariaquetinhamsidoempurrados

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pelovento.Equebonitasedelicadaseramas instalaçõesdestinadasa cadaum.A

gente domar estava sentada àmesa em grandes selhas de água.Diziam que era

comoestaremcasa.Todosguardavamosbonscostumesnasrefeições,comexceção

dosdoisjovenstroldenoruegueses.Puseramlogoospésnamesa.Julgavamquetudo

lhesficavabem.

—Ospésparaforadagamela—disseovelhoTrold.Obedeceram,masnãologo.

Antes, ainda fizeramcócegas comaspinhasque tinhamconsigonas algibeiras às

suasdamasdemesa.Depoistiraramasbotasparaficaremàvontadeederam-lhas

paraassegurarem.

Opaideles,ovelhoTrolddeDovre,eraverdadeiramentedeoutraestirpe.Falou

tão bem sobre os orgulhosos rochedos noruegueses e sobre as cascatas que se

precipitavam,brancasdeespumaecomestrondo,comoo trovãoe somdoórgão.

Contoudossalmões,quesaltavamcontraacorrente,enquantoaNøkken14tocava

na suaharpadeouro.Contoudasnoitesde invernobrilhantes,quandoosguizos

dos trenós soavam e os moços cor riam com tochas ardentes, ali, sobre o gelo

reluzente,tãotransparentequeospeixesseatemorizavamporbaixodosseuspés.

Sim!Sabiacontartãobemque,aoouvi-lo,seimaginavatudooqueeledizia.Era

comoseouvissemasserraçõesdemadeiraagirardeformaininterrupta,ouveros

rapazes e as raparigas a cantar canções e a dançar as danças deHallinge.Hurra!

Inesperadamente,ovelhoTrolddeuàvelhasílfideumagrandebeijoca,quefoium

perfeitobeijo,emboraelanãotomassepartenosatosdafamíliadoreidassílfides.

As silfidezinhas tiveram agora de dançar.Tanto demaneira simples como em

formadesapateadoeficava-lhesmuitobem.Depois,veioadançaartísticaoucomo

se diz: «Dar passos fora da dança.» Caramba! Como esticavam a perna! De tal

formaquenãosesabiaondeestavaoprincípioeondeestavaofim.Nãosesabiao

que era braço e o que era perna.Entre eles, era como se fossem aparas a voar, e

rodopiaramdetalmodoqueoHelhestsesentiumaletevedesairdamesa.

—Prrrr!—disse o velhoTrold.— Isto é uma loucura de pernas!Mas, para

alémdedançar,quesabemelasfazersenãoesticarpernasegerarredemoinhosde

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vento?

—Éoquevaissaber!—respondeuoreidassílfides.Echamouamaisnovadas

filhas.Eratãodelgadaeclaracomooluar,amaisdelicadadetodasasirmãs.Meteu

umpauzinhobranconabocaedesapareceusimplesmente.Eraasuaarte.

MasovelhoTrolddissequenãogostariadeveressaartenasuamulheretambém

nãoacreditavaqueosseusrapazesviessemagostardisso.

Aoutrasabiaandaraoladodesiprópria,talcomosetivessesombra,esombraé

coisaqueostroldenãotêm.

A terceira era inteiramente de outro tipo. Tinha aprendido na cervejaria da

mulher do pântano como se faziam espetos nos pauzinhos de amieiro, com os

vermesdeSãoJoão.

— Será uma boa dona de casa!— disse o velhoTrold, saudando-a com uma

piscadeladeolhos,poisnãoqueriabeberdemais.

Veio então a quarta rapariga das sílfides.Tinha uma grande harpa de ouro, e

quandoelatocounaprimeiracorda,levantaramtodosapernaesquerda,porqueos

troldesãocanhotosdaspernas,equandoelatocouaoutracorda,tiveramtodosde

fazeroqueelaqueria.

—Umamulherperigosa!—afirmouovelhoTrold.

Entretanto,osdoisfilhossaíramdomonte,poisjáestavamaficarfartos.

—Quesabeapróximafilha?—perguntoudenovoovelhoTrold.

—Aprendiagostardosnoruegueses!—disseela.—Enuncameheidecasarse

nãopuderirparaaNoruega.

MasamaisnovadasirmãssegredouaovelhoTrold:

—É simplesmente porque ouviu, de uma canção norueguesa, que, quando o

mundo se afundar, apenas restarão os pedregulhos noruegueses, comomarcos e,

portanto,querficarláemcima,poistemmuitomedodeseafogar.

—Oh!Oh!—disseovelhoTrold.—Deixa-tedisso.Masoquesabeasétimae

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última?

—Asextavemantesdasétima!—continuouoreidassílfides,quesabiacontar,

masasexta,emboaverdade,nãoqueriaaparecer.

—Euseiapenasdizeraverdade!—retorquiuela.—Ninguémgostademim.

Portanto,játenhosuficientesafazeresaprepararaminhamortalha.

Depoisveioasétimaeúltima.Equesabiaela?Elasabiacontarcontos.Tantos

quantosqueria.

—Aquiestãotodososmeuscincodedos?—disseovelhoTrold.—Sobrecada

umdeles,conta-meumconto.

Eamoçasílfidetomou-opelopulso.Eleriutanto,quequaseseescangalhava.E,

quandoelachegouaoanelar,rodeadoporumaneldeouro,odedoquaseadivinhou

queaquiloiriaacabaremnoivado.Disse-lheentãoovelhoTrold:

—Segurabemoque tensnamão.Elaé tua!—Atiquero,eupróprio,como

mulher!

E a moça sílfide respondeu que tinham ficado ainda por contar os contos do

Anelar(Guldbrand)edomínimo(PeerSpillemand)!

—Essesvamosouvi-losparaoinverno!—disseovelhoTrold.—Evamosouvir

odopinheiroedabétulaedospresentesdaHuldre15dogelosoante!Bem!Tensde

sertuacontá-los,poisissoninguémofaztãobemcomotu,láemcima!—Eentão

sentar-nos-emos na Sala de Pedra onde ardem aparas de pinheiro. Beberemos

hidromeldos cornosdeourodos velhos reisnoruegueses.ANøkken ofereceu-me

algunse,quandoláestivermos,viráoGarbo16fazerumavisitaecantarparatitodas

ascançõesdamoçadospastos.Vaiserdivertido!Osalmãosaltaráparadentrodas

cascatas e baterá contra as paredes de pedra,masnão conseguirá entrar!—Sim,

podescrer,ébomvivernaqueridaevelhaNoruega!Masondeestãoosrapazes?

Sim!Ondeestavameles?Corriamàvolta,noscampos,esopravamparaapagaras

luzesdoslygtemænd,quevinham,tãohonestamente,fazeroseucortejodetochas.

—Issoévagabundear!—disseovelhoTrold.—Agoraquearranjeiumamãe

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paravocês,podemescolherumatia!

Masosrapazesdisseramquepreferiamcriaramizadesebeber.Decasar-se,não

tinhamvontadenenhuma!Eassimfizeramdiscursos,beberamepassaramatratar-

seportu.Equilibraramocoponasunhas,paramostrarquetinhambebidoatéao

fim. Tiraram depois os casacos e deitaram-se na mesa para dormir, não se

incomodando com isso. Mas o velhoTrold dançava na Sala Grande, com a sua

jovemnoivaetrocouasbotascomela,porqueissoémaisfinodoquetrocaranéis.

—Eisquecantaogalo!—disseavelhasílfide,quecuidavadacasa.—Agora

temosdefecharosferrolhosdasjanelasparaqueoSol,aoentrar,nãonosqueime!

Efechou-seomonte.

Láfora,corriamoslagartosparacimaeparabaixo,nasfendasdavelhaárvore.

Umdisseparaooutro:

—Oh!GosteitantodovelhoTroldnorueguês!

—Eugostomaisdosrapazes!—disseaminhoca.

Masvê-losnãopodia,opobreanimal!

Figurasfantásticasdaantigacrençapopularnórdica

1 - Elver-Sylfide. Seres em forma humana que atraem os homens para os

montes,pântanosebosques,cobiçandoassuasvidas.(Voltar)

2-Lygtemand. Seres luminosos em formahumana, que vivemnos pântanos e

terras húmidas. Fogo fátuo: labareda de hidrogénio fosforado, proveniente de

matériaanimalemdecomposição.(Voltar)

3-Natravn.Demónioesconjuradoepresoàterraporumaestaca.Esteespírito

excomungadoélibertadoàmeia-noitecomogrito«Solta-o»e,quandoretiradaa

estaca, o espírito voa na forma de um corvo, com um buraco na sua asa

esquerda.(Voltar)

4-Spøgelse.Fantasma.(Voltar)

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5 - Havmand; Havfrue. Sereias (masculino e feminino) — seres em forma

humanaepeixe.Soberanosdomarquecobiçamasvidasdoshomens.(Voltar)

6-Åmand.Seresemformahumanaepeixe.Soberanosdosriosquecobiçamas

vidasdoshomens.(Voltar)

7 - Nisse. Duende — seres em forma humana de muito baixa estatura;

sedentáriosnasquintaseigrejasdoshomens—espíritoprotetorcontraodireitoà

alimentação(Dinamarca).(Voltar)

8-Gravso.Espíritodeporco,sepultadovivo,nasfundaçõesdasigrejas;serem

forma de porco, com olhos de fogo e pelos compridos— anuncia a morte dos

homens.(Voltar)

9-Helhest.Espíritodecavalo,sepultadovivo,atrásdasigrejas;sercomforma

de cavalo com três pernas, que, à noite, coxeia para a casa onde alguém vai

morrer.(Voltar)

10 - Kirkegrim. Espírito de animal sacrificado em cerimónia pagã. Ser com

formasfantásticasquediferemconformeaimaginação.(Voltar)

11 -Mosekone. Ser em forma de mulher, que vive no fundo do pântano. As

neblinas que pairam sobre lagos, pântanos e terras húmidas confirmam a sua

presençaeatividade.(Voltar)

12-Trold.Feiticeiro.(Voltar)

13-Mulher de giz. Jogo de palavras; um local:MøensKlint (escarpas de giz

branco)eumamulher:Mø(jovemdetezbranca).(Voltar)

14-Nøkke.Seremformahumanafemininaque,nosrios,atraiecobiçaavida

doshomenscomoseucantoemúsicadeharpa(Noruega).(Voltar)

15 -Huldre. Ser em forma humana feminina, que atrai e cobiça a vida dos

homensemviagem(Noruega).(Voltar)

16-Garbo.Duende— seres em formahumanadebaixa estatura; sedentários

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nasquintaseigrejasdoshomens—espíritoprotetorcontraodireitoàalimentação

(Noruega).(Voltar)

Notasdetraduçãoerevisãoliteráriadotexto.

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OPapílio1

O papílio queria ter uma namorada. Como era natural, queria arranjar uma

pequena e gentil flor. Olhou para elas. Cada uma estava sentada, sossegada e

discretanoseucaule,comoumameninadeveestarquandosenãoénoiva!Masaqui

havia tantas a escolher entre elas, que a escolha, para ele, se tornava uma

dificuldade. Era uma dificuldade que pareceu ao papílio não merecer a pena, e

assimvoouparaamargarida,queaestachamamosfrancesesdeMarguerite.Sabem

quepodeprofetizar,eé issoquefazquandoosnamorados lhecolhempétalapor

pétalae,porcadauma,fazemumaperguntaacercadoseuquerido:

— Do coração?… Com mágoa?… Gosta muito?… Um pouquinho?… Mesmo

nada?—ouqualquercoisaassim.

Cadapétalarespondenasualíngua.Opapíliotambémveioparaperguntar.Não

arrancouaspétalas,masbeijoucadaumadelas,comaideiadequesevaimaislonge

usandodegentileza.

—DoceMarguerite—disseele.—Soisasenhoramais inteligentedetodasas

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flores!Percebeis dessa coisadeprofetizar!Dizei-me, vou ter esta ou aquela!Ou

quemvouter?Seosouber,possoimediatamentevoarparaelaepedir-lheamão!

Mas a Margarida nem lhe respondeu. Não podia admitir que lhe tivesse

chamado senhora, pois era ainda menina e, desta maneira, não se é senhora.

Perguntouumasegundavezeperguntouumaterceira,opapílio.

Comonãoconseguiuarrancarumaúnicapalavradela,achouquenãomereciaa

penavoltarafazerperguntasevoou,semdemora,afazerasuacorte.

Eranoprincípiodaprimavera.Os campos estavamcheiosde campânulas2.—

Sãomuitodelicadas—disseopapílio.—Encantadoras confirmantezinhas!Mas

umtantoverdinhas!—Ele,comotodososjovens,aspiravaamoçasmaismaduras.

Voou depois para as anémonas.Eram demasiado amargas; as violetas, demasiado

exaltadas; as tulipas, demasiado berrantes; as narcíseas, demasiado burguesas; as

flores de tília, demasiado pequenas e, ainda por cima, tinhamuma famíliamuito

grande;asfloresdamacieiraeramcomoasrosasquandoasolhava,masbrotavam

hojeetombavamamanhã, logoqueoventonelassoprava.Seriaumcasamentode

muito pouca dura, parecia-lhe. A flor da ervilha era a que mais lhe agradava,

vermelhaebranca,purae fina.Pertenciaàscaseiras,que têmboaaparênciae são

boasparaacozinha.Estavaquaseapedir-lheamão,masnessemomentoviu,por

ali,suspensa,umavagemdeervilhacomumaflormurchanaponta.

—Queméesta?—perguntouele.

—Aminhairmã—respondeuaflordaervilha.

—Ah!Sim!Éassimquevireisaparecer-vosmaistarde!

—Issoassustouopapílioevooudaliparalonge.Madressilvaspendiamsobreo

muro. Estava cheio destas meninas, de rosto comprido e amarelas de tez. Esse

géneronãolheagradou.Sim,masoquelheagradou,então?

Perguntai-lhe!

A primavera foi-se, o verão foi-se e assim chegou o outono; e ele estava na

mesma.

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Eas flores vieramcomosmaisbonitos vestidos.Masdeque lhes servia?Aqui

nãoseencontravaadisposiçãofrescaeoperfumedajuventude.Aoperfumeaspira

precisamenteocoração,comaidade,eperfumenãohá,especialmentenasdáliase

nasrosasmalvas.Assimprocurouopapílio,embaixo,ahortelã-pimenta.

—Nãotemmesmonenhumaflor,mastodaelaéumaflor,deitacheirodaraiz

aoalto.Temperfumedefloremcadapétala.Éestaquequero!

Masahortelã-pimentaficoutesaequieta.Porfim,disse:

—Apenasamizadeenadamais.Estouvelhaesoisvelho!Podemosmuitobem

viver umpara o outro,mas casar-nos… não!Não sejamos loucos, na nossa idade

avançada!

Eassimopapílionãoencontrounenhumanoiva.Procuroupormuito tempoe

issoécoisaquenãosedevefazer.Opapílioficousolteirão,comosecostumadizer.

Tardeeraagora,outono,comchuvaemautempo.Oventosoprava,frio,sobreas

costasdosvelhossalgueiros,fazendo-osranger.Nãoerabomandaravoarcáfora

com roupa de verão. Ainda se vai ser apanhado pelo amor, como se diz.Mas o

papílionãovoavaaoarlivrepoistinhavindo,poracaso,paradentrodeportas,onde

havia lumeno fogão de azulejos. Sim, estava quente comono verão.Podia viver.

Masvivernãoébastante—disseele.—Sol,liberdadeeumaflorzinhatemquese

ter!

Evoouparaumajanela.Foivisto,admiradoepostonumalfinetenumacaixade

curiosidades.Maisnãosepodiafazerporele.

—Agora estou tambémsentadono caule comoas flores—disseopapílio.—

Contudo,nãoénadaagradável!Écomoestarcasado.Está-sesentadoeamarrado!

—Eassimseconsolou.

—Éumamáconsolação!—disseramasfloresdovasoqueestavanasala.

—Masnasfloresdovasonãosepodeinteiramenteconfiar—foiaopiniãodo

papílio.—Lidamdemasiadocomoshomens!

1 - Espécie de borboleta do género de insetos lepidópteros, Sommerfuglen

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borboleta emdinamarquês, émasculino, dando sentido ao conto.Manteve-se, na

tradução,osubstantivomasculino,deidênticosignificado,paramanteradistinção

doautor,entreosgéneros.(N.doT.)(Voltar)

2-Ecrocosnotexto,queseeliminouporseremmasculinos.(N.doT.)(Voltar)

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AGotadeÁgua

Tu conheces, com certeza, uma lupa de aumentar, assim como uma lente

redondadeóculosquetornatudocemvezesmaiordoqueé?Quandosepeganelae

seapõediantedavistaeseobservaumagotadeáguadolago,veem-semilharesde

animaisestranhos,comonuncaseveemnaágua,masestão láe issoéreal.Parece

quasecomoumpratocheiodecamarões.Saltamunsentreosoutrosesãovorazes,

arrancam braços e pernas, pontas e bicos uns aos outros e assim estão alegres e

contentes,àsuamaneira.

Pois era uma vez um velho homem a quem toda a gente conhecia como

Comichão-Coceira,porqueeraassimquesechamava.Queriasempretiraromaior

proveitodequalquercoisa,equandonãooconseguia,obtinha-oporfeitiço.

Estava um dia sentado, segurando a sua lupa de aumentar diante dos olhos, a

observar umagota de águaque fora tirada de uma valeta.Oh!Que comichões e

coceirasaíhavia!Todososmilharesdeanimaizinhospulavamesaltavam,puxavam

unspelosoutrosecomiam-seunsaosoutros.

—Masistoéhorrível!—disseovelhoComichão-Coceira.—Nãoseconsegue

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levá-losaviveremempazesossegoedeixaracadaumoqueéseu!—Epensou,e

pensou,masnãodavaresultado,eassimtevedefazerumfeitiço.—Tenhodelhes

darcorparaquesetornemmaisdistinguíveis!—disseele.Então,verteucomoque

umagotadevinhotintonagotadeágua,masqueerasanguedebruxa,domaisfino,

adois xelins.Eassim se tornaram todosos estranhos animais, rosados em todoo

corpo.Pareciaumacidadedeselvagensnus.

—Quetenstuaí?—perguntouumoutrofeiticeirovelhoquenãotinhanome,e

eraissoqueotornavafino.

—Seconseguiresadivinharoquê—disseoComichão-Coceira—,dar-to-eide

presente.Masnãoéfácildedescobrir,quandonãosesabe.

Eo feiticeiroquenão tinhanomeolhouatravésda lupadeaumentar.Parecia,

verdadeiramente, como se fosse toda uma cidade, onde os homens andavam sem

roupa!Erahorrívelmas aindamaishorrível, era ver como cadaumempurrava e

impeliaooutro,comosebeliscavameseagarravam,semordiamunsaosoutrosese

arrastavamunsaosoutros.Oqueestavaporbaixodetudotinhadeirparacimade

tudoeoqueestavaacimade tudo tinhade irparabaixode tudo!Vede!Vede!A

pernadeleémaiordoqueaminha!Baf!Foracomela!Estáaliumquetemuma

borbulhinhapordetrásdaorelha,umaborbulhinhainocente,mastortura-oeassim

aborbulhavaiatormentá-lomais!Ecortaramneleearrastaram-noecomeram-no

porcausadaborbulhinha.Estáalium,sentadotãosossegado,comoumadonzela,e

que só desejava paz e tranquilidade, mas a donzela teve de vir cá para fora e

puxaramporelaerasgaram-naecomeram-na!

—Éextraordinariamentedivertido!—disseofeiticeiro.

—Sim,mas que pensas tu que é?— perguntou oComichão-Coceira.—És

capazdedescobrir?

—Ébemdever!—disseooutro.—ÉcomcertezaCopenhagaououtragrande

cidade,sãoparecidastodasumascomasoutras.Éumagrandecidade!

—Éáguadocharco!—respondeuoComichão-Coceira.

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AsVelas

Eraumagrandeveladeceraquesabiaexatamenteoquevalia.

—Nasciemceraevazadaemmolde!—disseela.—Euiluminomelhoreardo

pormais tempodoque todas as outras velas.Omeu lugar énum lustre ounum

candelabro!

—Deveserumalindaexistência!—disseaveladesebo.—Eusousódesebo,só

veladeimersão,masconsolo-mecomofactodequeésempreumpoucomelhordo

que um mero pavio que é mergulhado apenas duas vezes, enquanto eu sou

mergulhada oito vezes para obter aminha espessura decente.Estou satisfeita!É

certamentemaisfinoefica-sefelizporternascidodeceraenãodesebo,mas,neste

mundo,ninguémescolheasuaprópriacondição.Vocêvemparaasalaparaolustre.

Eu ficonacozinha,que tambéméumbom lugar.Daívemacomidapara todaa

casa!

—Mas existe algoque émais importantedoque a comida!—disse a velade

cera:—A sociedade!Brilhampara ver, e elesprópriosbrilham.Hoje ànoite,há

baile,embrevevirãobuscar-nos.Amimetodaaminhafamília.

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Malistofoidito,todasasvelasdeceraforamlevadas,etambémaveladesebofoi

comelas.Adonadacasatomou-anasuamãofinaelevou-aparaacozinha.

Aliestavaumpobrerapazcomumcesto,queseencheudebatatasetambémum

pardemaçãs.Tudoistodeuaboadamaaorapazinho.

—Aítenstambémumavela,meupequenoamigo!—disseela.—Atuamãeestá

sentadapelanoitedentroatrabalhar,podeprecisardela!

Afilhapequenadacasaestavaalipróximo,equandoouviuaspalavras«pelanoite

dentro»,dissecomíntimaalegria:

— Ficarei levantada também pela noite dentro! Teremos um baile e eu irei

receberosgrandeslaçosvermelhos!

Comolhebrilhavaorosto!Eraumaalegria!Nenhumaveladecerapodebrilhar

comodoisolhosdecriança!

«É abençoado ver!», pensou a vela de sebo, «nunca o esquecerei, e isto

certamentequenuncamaisverei!»

Eentãoavelaviuocestotapar-secomatampaeorapazfoi-seemboracomela.

«Para onde vou agora!», pensou a vela, «irei para gente pobre, não terei nem

mesmoumcastiçaldelatão,masaveladeceraécolocadaemprataevêagentemais

fina.Comodeveserbonitoluzirparaagentefina!Éomeudestinoserdeseboe

nãodecera!»

Eavelaveioparaagentepobre.Umaviúvacomtrêsfilhosnumacasabaixinha,

mesmoemfrentedacasarica.

—QueDeus abençoe a boa senhora, por aquilo que nos ofereceu!—disse a

mãe.—Éumavelamaravilhosa!Podebrilharpelanoitefora.

E acendeu-se a vela.—Pff!—Ui!—disse esta.—Mas foi comumpau de

enxofre a cheirarmalque elame acendeu!Tal coisanão se faz comumavelade

cera,nacasarica.

Elá,nacasarica,tambémseacenderamoscandeeirosquebrilhavamparaarua.

Láfora,ascarruagenschegavam,trazendoosvisitantes,aperaltadosparaobaile.A

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músicatocava.

—Agoracomeçamelesdooutrolado!—apercebeu-seaveladesebo.Epensou

norostoradiantedapequenameninarica,maisbrilhantedoquetodasasvelasde

cera.—Estavisãonãoavereinuncamais!

Veio então amais pequena das crianças na casa pobre.Era uma rapariguinha.

Lançou os braços à volta do pescoço do irmão e da irmã. Tinha algo muito

importanteacontar.Tinhadeseremsegredo.

— Vamos ter hoje à noite— imaginem!— Vamos ter hoje à noite, batatas

quentes!

E o seu rosto brilhava de felicidade. A luz brilhava mesmo dentro dela, uma

alegria,umafelicidadetãograndecomonacasarica,ondeameninatinhadito:—

Vamosterbaileestanoiteeeuvoureceberosgrandeslaçosvermelhos.

«Terbatatasquenteséassimtanto?»,pensouavela.«Háumatãograndealegria

nospequenos!»Eespirrou,querdizer, crepitou,porquemaisnão consegueuma

veladesebofazer.

Amesa foi posta e as batatas foram comidas. Oh! Como souberam bem! Foi

realmente uma refeição festiva, e, ainda por cima, cada um teve uma maçã. A

criançamaispequenarecitouumpequenoverso:

TubomDeus,muitotetenhoaagradecer,queumavezmaismetenhasdadodecomer!

Ámen.

—Nãofoibemdito,mãe?—exclamouapequenina.

—Issonãodevesperguntaroudizer!—disseamãe.—Devespensarsónobom

Deus,quetedeudecomer!

Os pequenos foram para a cama, receberam um beijo e adormeceram

imediatamente, Amãe ficou a coser até noite adiante para ganhar a subsistência

paraeleseparasi.Eemfrente,nacasarica,brilhavamluzesesoavaamúsica.As

estrelas brilhavam sobre todas as casas, as dos ricos e as dos pobres, igualmente

claras,igualmenteabençoadas.

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—Foi,nofundo,umanoiteagradável!—segundoaopiniãodaveladesebo.—

Tiveram-namelhorasvelasdeceranoscastiçaisdeprata?Gostariabemdesaber,

antesdeardercompletamente!

Epensounasduascriançasigualmentefelizes,umailuminadapelaveladecerae

aoutraporumaveladesebo!

Sim,étodaahistória!

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OElfodaRosa

Nomeiodeumjardimcresciaumaroseirarecheadaderosasenumadelasvivia

umelfo.Era tão pequeninoquenenhuns olhoshumanos o podiamver.Atrás de

cada pétala tinha um quarto de dormir. Era tão bem constituído e bonito como

qualquercriançaopodeseretinhaasasdosombrosmesmoatéaospés.Oh!Que

perfume havia nos seus aposentos e como as paredes eram claras e bonitas!

Naturalmente,poisasparedeseramfeitasdepétalasfinasdecorvermelho-pálido.

Todoodia,oelfosedivertiunaluzquentedoSol.Vooudefloremflor,dançou

nas asas da borboleta esvoaçante e mediu quantos passos tinha de andar para

percorrertodasasestradaseatalhosquehavianumafolhadetília.Eraaquiloaque

chamamososveiosdafolha,queeleconsideravacomoestradaseatalhos.Sim,era

umcaminhareternoparaele!Aindanãotinhaterminadoasuatarefa,quandooSol

sepôs.Tambémnãohaviacomeçadomuitocedo!

Faziamuitofrio.Tombavaoorvalhoeoventosoprava.Eramelhorvoltarpara

casa. Apressou-se tanto quanto pôde, mas, quando chegou, as rosas tinham-se

fechado.Nãopodiaentrar,poisnemumaúnicaestavaaberta.Nuncaantes ficara

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fora, durante a noite e o pobre elfozinho assustou-se muito. Sempre dormira

docemente,resguardado,atrásdaspétalasderosa.

Oh!Seriacertamenteasuamorte!

No outro extremo do jardim, sabia que havia um caramanchão, com lindas

madressilvas. As flores pareciam grandes cornos pintados. Desceria numa delas,

paradormiratédemanhã.

Voouparalá.Psiu!

Lá dentro, encontravam-se dois seres humanos. Um belo jovem e uma bela

donzelaestavamsentados,muitojuntinhos,formulandodesejosdenunca,portoda

a eternidade, se separarem.Gostavam tanto um do outro,mais do que amelhor

criançapodegostardasuamãeedoseupai!

—Mastemosdenosseparar!—disseojovem!—Oteuirmãonãoébompara

nósepor issovaimandar-meemmissãopara longe,pormontes emares!Adeus,

minhadocenoiva,poisnoivaésparamim!

Beijaram-se e a donzela chorou e ofereceu-lhe uma rosa mas, antes de lha

entregar,deu-lheumbeijo,tãoforteesentidoqueaflorseabriu.Então,vendoa

rosa a abrir-se, o elfozinho voou para dentro dela e encostou a cabeça às finas

paredesodorosas.Masouviubemcomodiziamadeus,adeus!Esentiuquea rosa

tomava lugarnopeitodo jovem…Oh!Comobatiaocoraçãoaí!Oelfozinhomal

conseguiuadormecer,tantobatiaele!

A rosa não ficou muito tempo no peito do jovem. Enquanto ia pelo bosque

escuro,tirou-aparaforaebeijou-a.Oh!Foramtantasvezesetãofortementequeo

elfozinho quase ia morrendo esmagado. Podia sentir como ardiam os lábios do

jovemnaspétalasdarosaeestaabriu-secomosecostumaabrir,nocalordoSoldo

meio-dia.

Chegouentãoumoutrohomem, sombrio e irado.Erao irmãomaudabonita

donzela. Puxoupor uma faca bem afiada e grande e, enquanto o jovembeijava a

rosa, espetou-lha e cortou-lhe a cabeça.Enterrou-a, juntamente como corpona

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terramacia,porbaixodatília.

«Agoraestáesquecidoe longe»,pensouo irmãomau.«Nãovoltamais.Numa

longa viagem,pormontes emares, podeperder-se facilmente a vida, eperdeu-a.

Nãovoltamaiseamimnãoousaaminhairmãperguntarporele.»

Então, comospés, cobriucomfolhas secas a terraescavadae,nanoite escura,

voltouparacasa.

Masnãofoisozinho,comoqueria.

O elfozinho estava com ele, sentado numa folha de tília seca e enrolada, que

tinhacaídonocabelodohomemmau,quandoabriuacova.Ohomemcolocouo

chapéunacabeçaeoelfoficouládentro,noescuro,atremerdemedoedeirapor

causadohorrívelfeitoquetinhapresenciado.

Às primeiras horas damanhã chegou o homemmau a casa.Tirou o chapéu e

entrou no quarto de dormir da irmã. Lá estava a donzela de beleza radiante,

deitada,asonharcomaqueledequemtantogostavaequeacreditavairpormontes

e por lagos. O irmãomau curvou-se sobre ela e riu terrivelmente, como só um

diabosaberir.Então,afolhasecacaiudocabeloparacimadacobertadacama,mas

elenãodeuporissoefoi-seemboraparairaindadormirumpouco,nessamanhã.O

elfosaiudafolhaseca,entrounoouvidodadonzelaadormecidaecontou-lhe,como

num sonho, o assassínio horrível. Descreveu-lhe o lugar onde o irmão o tinha

assassinado e enterrado; falou-lhe da tília em flor e disse-lhe:— Para que não

julguesqueéapenasumsonhoquetecontei,vaisencontrarumafolhasecanatua

cama!Eela,quandoacordou,encontrou-a.

Oh!Comochoroulágrimassalgadas!Aninguémpodiafalardasuador.Ajanela

ficou todoodia abertaeoelfozinhopodia facilmente sairparaas rosas eparaas

outras floresdo jardim,masnão tevecoragemdedeixara jovemaflita.Na janela

haviaumaárvore comrosasdomês.Sentou-senumadelas e ficouaolharpara a

pobre donzela. O seu irmão, que estava tão alegre e mau, veio muitas vezes ao

quarto, mas a jovem donzela não ousou dizer-lhe uma palavra sobre a grande

tristezaquetinhanocoração.

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Assimquese feznoite,escapou-sedecasaedirigiu-seaobosque,parao lugar

ondeestavaatília.Afastouasfolhasdaterra,escavoueencontrouojovemmorto.

Oh!ComochorouepediuaDeusquetambémlhedesseamorte.

Bemqueria levar o cadáverpara casa,masnãoopodia fazer.Assim,pegouna

cabeçapálidacomosseusolhosfechadosebeijou-lheabocafria,tirando-lheaterra

dobelocabelo.—Queroguardá-laparamim!—disseela,edepoisdeterposto,de

novo,aterraeasfolhassobreocorpomorto,pegounacabeçaelevou-a,juntocom

umraminhodejasmim,queflorianobosque,ondeeletinhasidoassassinado.

Assim que entrou nos seus aposentos, pegou no maior vaso de flores que ali

havia,pôsacabeçadomortoládentro,comterraporcimaeplantouoraminhode

jasmim.

— Adeus! Adeus! — sussurrou o elfozinho. Já não podia suportar ver toda

aquela dor e voou para o jardim, para a sua rosa. Mas estava desfolhada,

suspendiam-seapenasalgumaspétalaspálidas,juntodabagaverde.

— Ai! Como é breve tudo o que é belo e bom!— suspirou o elfo. Por fim

encontrouumaoutrarosa,queficouaserasuacasa.Pôdeinstalar-sepordetrásdas

suaspétalasodorosas.

Todasasmanhãsvoavaparaajaneladapobremeninaeláestavaelasemprejunto

dovasode flores, a chorar.As lágrimas salgadas caíamno ramode jasmime,por

cadadiaquepassava,elaficavamaisemaispálidaeoramomaisfrescoeverde.Um

rebentocresciaatrásdooutro.Romperampequenosbotõesdefloreseelabeijou-

os.Maso irmãomauralhou-lheeperguntouseendoidecera.Nãopodiasuportar

nemcompreenderporqueéqueelachoravasempreemcimadovasodeflores.Não

sabia,naverdade,queolhosestavamalifechadosequelábiosrubrosalisetinham

tornadoterra.

Abeladonzelacurvouacabeçasobreovasodeflores,eaoelfozinho,ládarosa,

pareceu-lhe que estava a dormitar. Entrou-lhe no ouvido, falou-lhe da noite no

caramanchão,doperfumedasrosasedoamordoselfos.Elasonhoudocementee,

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enquantosonhava,sumiu-se-lheavida.Estavamorta,deumamortecalma,estava

nocéucomaquelequeamara.

Osjasminsabriramassuasgrandescampânulasbrancas,quedeitavamumodor

tãomaravilhosamentesuave!Choravam,aseumodo,pelamorta.

Oirmãomauolhouparaobeloarbustoflorido.Apoderou-sedelecomoherança

ecolocou-onoseuquarto,juntoàcama,poiserabonitodesevereoperfumeera

muitosuaveedelicioso!Oelfozinhodarosaseguiu-o,voandodefloremflor.Em

cadaumadelasmoravaumapequenaalmaeaestascontou-lheseledojovemmorto,

cujacabeçaeraagoraterrasobreterra.Contou-lhesdoirmãomauedapobreirmã.

—Nóssabemos!—dissecadaumadasalmas,nasflores.

—Nóssabemos!Nãocrescemosnósdosolhosedoslábiosdoassassinado?Nós

sabemos!Nóssabemos!—Eassim,estranhamente,acenaramcomacabeça.

Oelfoda rosanãopodia compreenderporqueéqueas almaseramcapazesde

estartãocalmasevoouàprocuradeconsoloparajuntodasabelhas,quejuntavamo

mel,contando-lhesahistóriadoirmãomau.Asabelhas,porsuavez,contaramàsua

rainha,queordenouque,namanhãseguinte,todasfossemmataroassassino.

Porém, na noite anterior— era a primeira noite depois damorte da irmã—,

quandooirmãodormianasuacama,juntoaojasmimodoroso,abriu-secadacálice

easalmas, invisíveis,armadasde lançasvenenosas, saíramdas flores,entraramno

seu ouvido e contaram-lhe sonhos maus. Depois, voaram sobre os seus lábios e

espetaram-lhealínguacomaslançasvenenosas.

— Agora vingámos o morto!— disseram, e voltaram para trás, para as suas

campânulasbrancasdejasmim.

Quandosefezmanhã,ajaneladoquarto,deummomentoparaooutro,abriu-se

violentamente e, em fúria, o elfo da rosa, a rainha das abelhas e todo o enxame

entraramparaomatar.

Mas jáestavamorto.Haviagenteàvoltadacamaquedizia:—Operfumedo

jasmimmatou-o!

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O elfo da rosa compreendeu a vingança das flores e contou-o à rainha das

abelhas.Nãosedeixandoafugentar,arainhazumbiucomtodooseuenxameem

redor do vaso das flores. Um homem levou o vaso para fora e uma das abelhas

picou-lhenamão.Deixoucairovasoeestequebrou-se.

Viramassimacaveirabrancaesouberamqueomortoqueestavanacamaeraum

assassino.

Arainhadasabelhaszuniunoarecantouavingançadasfloresedoelfodarosa.

Équepordetrásdamaispequenapétalamoraumelfoquepodecontarevingar

omal!

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Éabsolutamentecerto!

Éumahistóriaterrível!—disseumagalinha,etudoissonumpontodacidade

ondeahistórianuncasetinhapassado.—Éumahistóriaterríveldecapoeira!Não

ouso dormir sozinha esta noite! É bom que sejamos muitas, todas, juntas no

poleiro!—Eentãocontou,ede talmodo,queaspenasse levantaramnasoutras

galinhaseogalodeixoucairacrista.Éabsolutamentecerto!

Mas comecemos pelo princípio, e isto deu-se noutro ponto da cidade, numa

capoeira.OSoldesceueasgalinhassubiramparaopoleiro.Umadelastinhapenas

brancas e pernas curtas, punhaos seus ovos regulamentados e era, comogalinha,

respeitáveldetodososmodos.Quandoveioparaopoleiro,afagou-secomobicoe

assimcaiu-lheumapeninha.

—Lávai!—disseela.—Quantomaismeafago,tantomaisbonitafico!—E

issofoiditoentãoemtomjovial,poiseraelaabrincalhonadeentreasgalinhas,se

bem,comosedisse,muitorespeitável.Edepoisdeixou-sedormir.

Àvoltaestavatudoescuro,galinhaaoladodegalinha,masaquelaqueestavamais

perto dela não dormia.Ouviu e fingiu que não ouviu, como se deve fazer neste

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mundoparaseviveremboatranquilidade,masàoutravizinhatevededizê-lo:

—Ouvisteoquesedisse?Nãonomeioninguém,masháumagalinhaquequer

arrancaraspenasparaparecerbem!Seeufosseogalo,desprezava-a!

E diretamente por cima das galinhas estavam a coruja com o corujo e os

corujinhos. Têm ouvidos apurados na família. Ouviram todas as palavras que a

vizinhagalinhadisse.Rebolaramosolhoseacoruja-mãebateuasasas:

—Nãoestejamàescuta!Masouviramcomcertezaoquesedisse!

Ouvi-ocomasminhasprópriasorelhas emuito se temdeouvir antesdeestas

caírem!Háumadasgalinhasque,emtalgrau,esqueceucomosedevecomportar

umagalinha,queestáaarrancartodasaspenasepermitequeogaloavejaassim!

—Prenezgardeauxenfants!—disseocorujo-pai.—Nãoécoisaparacrianças

ouvirem.

— Quero, contudo, contá-lo à coruja vizinha, em frente. É uma coruja tão

estimadanavizinhança!—Elávoouamãe.

—Uh-uh!Uh-uh!—gritaramambasdiretamenteparabaixo,paraaspombas

nopombalvizinho.—Ouviram?Ouviram?Uh-uh!Háumagalinhaquearrancou

todasaspenasporcausadogalo!Estáamorrerdefrio,senãomorreujá,uh-uh!

—Onde?,onde?—arrulharamaspombas.

—Nopátiodovizinho!Vi-acomosmeusprópriosolhos!Équaseumahistória

imprópriaparacontar!Maséabsolutamentecerta!

—Cremos,cremosemcadapalavra!—disseramaspombasearrulharampara

baixo,paraacapoeira:—Háumagalinha,sim,algunsdizemmesmoqueháduas,

que arrancaram todas as penas para não parecerem como as outras, e chamarem

assimaatençãodogalo.Éumjogoarriscado,podeapanhar-seumaconstipaçãoe

morrer-secomfebre,emortasestãoambas!

—Acordem!Acordem!—cantouogaloevoouparaatrave,aindacomosolhos

ensonados,mascantou,mesmoassim:—Hátrêsgalinhasquemorreramdeamores

por um galo que lhes correspondeu! Arrancaram todas as penas!É uma história

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desagradável,masnãoqueroguardá-la,façam-nacorrer!

—Façam-nacorrer!—chiaramosmorcegos,asgalinhascacarejarameosgalos

cantaram: — Façam-na correr! — E assim a história correu de capoeira para

capoeirae,porfim,voltouaolugardondetinhapartido.

— Há cinco galinhas — contava-se — que arrancaram todas as penas para

mostrarqual delas tinha emagrecidomais, porpenasde amorpelogalo, edepois

bicaram-seumasàsoutrasatésangraremecaíremmortas,paravergonhaedesonra

dafamília,egrandeprejuízododono!

Eagalinhaquetinhaperdidoapeninhasoltanãoreconheceu,naturalmente,a

suaprópriahistória.Comoeraumagalinharespeitável,disse:

—Desprezo essasgalinhas!Mashámuitasdessegénero!Dessas coisasnão se

deveguardarsegredoeeuvoufazercomqueahistóriavenhanojornalecorratodo

opaís.Éoqueestasgalinhasmerecemeasuafamíliatambém!

Eveionojornal.Foipublicadoeécerto,absolutamentecerto,queumapeninha

podebemtransformar-seemcincogalinhas.

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IbeCristininha

Perto do rio Guden, dentro do bosque de Silkeborg, erguia-se uma encosta,

comoumagrandebarreira,aquechamavam«acolina»eporbaixodela,paraoeste,

havia— sim!, ainda há—uma casinha de camponeses demagras terras.A areia

mostrava-sebrilhantenoscamposesparsosdecenteioedecevada.Jálávãoalguns

anos. A gente que lámorava fazia a sua pequena lavoura e tinha, para isso, três

carneiros,umporcoedoisbois.

Resumindo,tinhaosuficienteparacomer,senossentimoscontentescomoque

temos. Sim, podiam também conseguir manter um par de cavalos, mas diziam,

como os outros camponeses de lá: «Os cavalos comem-se a si próprios!»— dão

despesapelobemquefazem.

Jeppe-Jænscultivavaasuapequenaquintaduranteoverãoe,noinverno,eraum

habilidoso tamanqueiro. Tinha um colaborador, um homem que sabia talhar os

tamancos de madeira, que eram tão fortes quanto leves e de bonita forma. Eles

talhavamtamancosecolhereseissodava-lhesosxelins.Nãosepodiaconsideraros

Jeppe-Jæns como gente demasiado pobre.O pequeno Ib, um rapazinho de sete

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anos,aúnicacriançadacasa, sentava-seaolhar.Cortavaospedaçosdemadeirae

cortava-se também nos dedos. Um dia cortou dois pedaços de tal modo que

pareciam dois tamanquinhos. Deviam, disse ele, ser dados de presente a

Cristininha, que era a filhinha do barqueiro. Tão fina e tão bonita, como uma

fidalguinha.Tivesseelavestidoscosturadosesecomofidalguinhativessenascido,e

assim fosse educada, ninguém acreditaria que vivia na casa de turfas deurze, em

Seishede.Moravacomopai,queeraviúvoeganhavaavidaatransportarlenhado

bosque,nasuabarca,atéaosviveirosdeenguiasdeSilkeborg.Sim,muitasvezes,

mais longe. Mesmo até Randers. Não tinha ninguém que tomasse conta de

Cristininha, que era um anomais nova do que Ib, e assim o pai levava-a quase

semprecomelenabarca,entreurzesearandosvermelhos.Setinhadefazertodoo

caminhoatéRanders,CristininhaficavacomosJeppe-Jæns.

Ib eCristininha entendiam-sebemnasbrincadeiras e tambémnas travessuras.

Mexiamemtudoeescavavamnaterra.Umdiaaventuraram-seairsozinhosatéao

cimo da «colina» e penetraram no bosque.Uma vez acharam lá ovos de narceja.

Paraeles,foiumgrandeacontecimento.

IbnuncatinhaestadoemSeishede.Nuncahaviaandadodebarcapeloslagosaté

ao rioGuden,mas agora, convidadopelobarqueiro,quena vésperao levoupara

casa,issoiaacontecer.

De manhã cedinho, as duas crianças sentaram-se nos toros com que a barca

estava carregada e aí ficaram a comer pão e framboesas. O barqueiro e o seu

ajudanteimpeliramabarca,comvaras,porentreoslagos,paraacorrenteapressada

dorio.

Pareciam estar cercados pelo bosque e pelos juncos,mas sempre havia alguma

passagem, mesmo quando as árvores velhas se inclinavam completamente e os

carvalhosestendiamparaafrenteramosdescascados,comoseestivessemdemangas

arregaçadasequisessemmostrarosseusbraçosnodososenus.Velhosálamos,quea

corrente desprendera dos declives, seguravam-se pelas raízes ao solo e pareciam

pequenasilhascombosques.Líriosaquáticosembalavam-senaágua.Eraumabela

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viagem!…Eassimchegaramaoviveirodasenguias,ondeaáguarugiaporentreas

comportas.Era,paraIbeCristininha,algoparaver!

Aindanãohavia aí nem fábricanem cidade.Existia apenas a velhaquinta e os

seushabitantesnãoerammuitos.Aquedadaáguaatravésdascomportaseograsnar

dospatosselvagenseram,então,osinaldemaiorvivacidade…Quandoa lenhafoi

descarregada,opaideCristininhacomprouummolhodeenguiaseumporquinho

abatido, que foram colocados num cesto, na popa da barca. Navegavam agora

contraacorrente,mashaviaventoe,aoergueravela,foitãobomdever.Comose

estivessemdoiscavalos,àfrente,apuxarabarca.

Quandochegarampertodeumlocalondehaviaapenasumcurtocaminhoatéà

casadoajudante,opaideCristininhadesembarcou, recomendouàs criançaspara

estaremsossegadaseteremcuidado.Nãodurou,porém,muitotempoessesossego.

Lembraram-sedeirverocestoondeestavamasenguiaseoporquinho.Acharam

engraçadolevantaroporquinho,mascomoambosqueriamagarrá-lo,deixaram-no

cairparadentrodeágua.Levou-oacorrenteefoiumterrívelacontecimento.

Ib saltou para terra e correu um bocado, depois veio tambémCristininha.—

Leva-me contigo!— gritou ela, e logo ficaram cercados pelos arbustos. Nunca

maisviramabarcaouorio.Correramaindaumbocado,depoisCristininhacaiue

começouachorar.Iblevantou-a.

—Vemcomigo!—disseele.—Acasaéaliadiante!—Masnãoera.Andarame

andaram sobre folhas murchas e ramos secos caídos, que estalavam sob os seus

pezinhos. Ouviram então forte gritaria. Ficaram quietos e puseram-se à escuta.

Gritouumaáguia.Eraumgritohorrível.Ficaramcompletamente aterrorizados,

masemfrentedeles,dentrodobosque,cresciamosmaislindosarandosemenormes

quantidades.Era demasiado convidativo para não avançar. Pararam e comeram e

ficaramtodosazuisnabocaenasfaces.Entãoouviu-senovamenteoutragritaria.

—Vamosapanharporcausadoporquinho!—disseCristininha.

—Vamos para aminha casa!— disse Ib.—É aqui no bosque!—E foram.

Chegaram a uma estrada. Mas para casa não os levou aquela. Fez-se escuro e

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ficaram cheios de medo. O estranho silêncio, à volta, foi cortado pelos gritos

terríveisdograndebufooupor sonsdeoutras avesquenão conheciam.Por fim,

ficaram presos num arbusto. Cristininha chorou e Ib chorou e, depois de terem

choradoumtempo,deitaram-senafolhagemeadormeceram.

O Sol ia alto quando acordaram. Sentiam frio,mas ali em cima, por entre as

árvores,brilhavaoSolquepodiaaquecê-los.Dali,pensouIb,podiamveracasados

pais, no entanto, estavam, na verdade, longe dela e numa outra parte do bosque.

Gatinharamatéaoaltoechegaramaumdeclive,juntoaumlagotransparente.Os

peixesnadavamemcardume, iluminadospelos raiosdeSol.Era tão inesperadoo

queviam.Pertohaviaumaaveleiragrande,desetepés,cheiadeavelãs.Colheram,

partirametiraramosmiolosfinosquetinhamcomeçadoaformar-se…eentãoveio

ainda uma surpresa.Um susto.Dos arbustos apareceu umamulher velha e alta,

como rosto tão escuro e o cabelo brilhantementepreto!Obrancodos seu olhos

luziacomoluzemosdeummouro.Traziaumatrouxaàscostaseumpaunodoso

nasmãos.Eraumacigana.Ascriançasnãocompreenderamlogooquedizia.Eela

tirou trêsgrandes avelãsda algibeira edentrode cadaumadelas estavamasmais

belascoisasescondidas.Eramavelãsdedesejos,contouacigana.

Ibolhou-a.Eratãosimpática!Ganhoucoragemeperguntousepodiaficarcom

asavelãs.Amulherdeu-lhas.Depois,colheu,daaveleira,umaalgibeiracheiapara

si.

EIbeCristininhaolharam,comgrandesolhos,paraastrêsavelãsdosdesejos.

—Nestaavelãháumacarruagemcomcavalos?—perguntouIb.

—Háumacarruagemdeourocomcavalosdeouro!—disseamulher.

—Então dá-ma!— pediu Cristininha. E Ib deu-lha. Amulher meteu-lhe a

avelãnonódolençodopescoço.

—Enestanãohaveráumbonitolencinhodepescoço,comooqueaCristininha

tem?—perguntouIb.

—Hádezlenços!—disseamulher.—Hávestidosfinos,meiasechapéus!

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— Então quero também esta! — disse Cristininha, e o pequeno Ib deu-lhe

tambémaquelaavelã.Aterceiraeraumaavelãpequenaepreta.

—Essapodestuter!—disseCristininha.—Étambémbonita.

—Eoquehádentrodela?—perguntouIb.

—Omelhordetudoparati!—respondeuacigana.

EIbagarroubemaavelã.Amulherprometeu levá-losparacasapelocaminho

certo.Masforam,naverdade,emdireçãocompletamenteopostaàquedeviamir.

Não!Nãoseculpeaciganadequererroubarascrianças,porcausadisso.

Nodensobosqueencontraramoguarda-florestalChræn.ConheciaIbe,graças

a ele, Ib e Cristininha puderam voltar para casa, onde estavam todos muito

preocupados.Obtiveramoperdão,sebemqueambosmerecessemumaboatareia,

primeiro porque deixaram cair o porquinho na água e depois porque se tinham

afastadodocaminho.

CristininhavoltouparaacharnecaeIbficounacasinhadobosque.Aprimeira

coisaquefez,ànoite,foitiraraavelãquecontinha«omelhordetudo».Pô-laentre

ovãoeaporta,eapertou-a.Aavelãestalou,masnãohavianenhummioloparaver.

Estavacheiacommorrãoouterraempó.Tinhabicho,comocostumadizer-se.

— Sim, bemme parecia amim!— disse Ib de si para si.—Como podia aí,

dentrodaavelãzinha,haverlugarparaomelhordetudo!Cristininhatambémnão

vaiternemvestidoschiquesnemcarruagemdeourocomassuasduasavelãs!

Eveiooinvernoeveiooanonovo.

Passaram-semuitosanos.IbandavaagoraaaprenderadoutrinacomoPastore

ele morava bem longe. Um dia, o barqueiro apareceu em casa dos pais de Ib e

contou que a Cristininha ia agora para fora ganhar o seu pão e que era uma

verdadeirafelicidadeparaelairparaacasadequemia.Irservirparacasadegente

tãoboa!Imaginem,genterica,dahospedaria,emHerning,paraooeste.Vaiajudar

a mãe e depois, quando for capaz de fazer tudo e tiver recebido a confirmação

cristã,ficarãocomela.

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IbeCristininhadespediram-seumdooutro.Chamavam-lhes«osnamorados».

Eelamostrou-lheàdespedidaqueaindapossuíaasduasavelãsquereceberadele,

quando se perderam no bosque, e disse que no seu baú dos vestidos estavam

guardadosostamanquinhosqueele,quandorapazinho,talharae lheoferecera.E

assimsesepararam.

Ibtambémrecebeuaconfirmaçãocristã,masficouemcasadamãe,poiseraum

tamanqueirohábilecuidavabemdaterra,noverão.Amãesóotinhaaele,poiso

paijámorrera.

Sóraramente—eerapelocorreioouporalgumcamponês—sesabiamnotícias

deCristininha.Passavabememcasadagentericadahospedariaequandorecebeua

sua confirmação escreveu ao pai uma carta com saudações para Ib e para amãe

deste.Na carta falava tambémde seis novas camisas e num lindo vestidoque ela

receberadopatrãoedapatroa.Eramverdadeiramenteboasnotícias.

Na primavera seguinte, num belo dia, bateram à porta de Ib e damãe.Era o

barqueiro,comCristininha.Vinhaemvisitaporumdia.Haviaumaoportunidade

deviajarparaThem.Idaevolta.Elaaproveitara-a.Estavabela,comoumajovem

elegante, e tinha bons vestidos, bem feitos e que lhe ficavam bem. Ela estava

elegante e aperaltada e Ib envergava a velha roupa de todos os dias. Mal podia

articular uma palavra. Pegou-lhe na mão e agarrou-a com força. Sentia-se tão

contente,masnãoconseguiaabriraboca.Cristininhacomeçouafalar,beijandoIb

mesmonoslábios.

—Nãomereconheces?—disseela.Masmesmoquandoestavamsós,osdois,e

eleaindacontinuavaasegurar-lheamão,tudoquantopôdedizerfoiapenasisto:

—Tornaste-te uma senhora fina!E eupareço tão desmazelado!Como tenho

pensadoemti,Cristininha!Enosnossosvelhostempos!

Foramdebraçodadopela colina acima eolharampor cimado rioGuden, até

Seishede,comosseuscamposdeurze.MasIbnãodissenada.Contudo,quandose

separaram, era claro para ele que Cristininha tinha de vir a ser a sua mulher.

Chamavam-lhes,desdepequenos,«osnamorados».Parecia-lheagoraqueeramum

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pardenoivos,sebemquenenhumdelestivessefaladonisso.

Só algumas horas ainda podiam estar juntos, pois ela tinha de voltar aThem,

onde, na manhã seguinte, cedo, a carruagem regressava ao oeste. O pai de

Cristininha e Ib acompanharam-na até Them. Estava um belo luar e, quando

chegaram, Ib ainda segurava a mão de Cristininha— não podia largá-la—, os

olhos dele eram bem claros, mas as palavras saíam-lhe poucas. Contudo, eram

palavrasvindasdocoração:

— Se não te habituares demasiado à boa vida — disse ele— e achares que

poderásvivercomigoemcasademinhamãe,entãoviremosasermaridoemulher!

…Maspodemosesperar!

— Sim, dêmo-nos tempo, Ib!— disse ela. E depois apertou-lhe a mão e ele

beijou-anaboca.—Confioemti,Ib!—disseCristininha.—Ecreioquegostode

ti!Masdeixa-mefalarcomotravesseiro!

Eassimsesepararam.IbdisseaobarqueiroqueeleeCristininhaestavammesmo

noivos e o barqueiro achou que estava a suceder o que sempre havia pensado.E

seguiu para casa com Ib e aí dormiu na cama com ele e não falaram mais do

noivado.

Passouumano.IbeCristininhatrocaramduascartas.«Fiéisatéàmorte»,estava

lá,comaassinatura.UmdiaentrouobarqueiroemcasadeIbe trazia saudações

paraele,deCristininha.Oquetinhamaisacontardisse-oumpoucolentamente,

era que Cristininha passava melhor que bem. Era agora uma bonita rapariga,

estimadaequerida.Ofilhodoestalajadeirotinhaestadoemcasa,devisita.Estava

colocado numa empresa grande em Copenhaga, num escritório. Agradou-se de

Cristininha e ela também o achou a seu gosto. Os pais não eram contra, mas

CristininhatinhalánocoraçãoqueIbpensavamuitonelae,assim,estavadecidida

arejeitarafelicidade,disseobarqueiro.

Ib não proferiu, ao princípio, uma palavra.Mas ficou branco como um pano.

Abanouumpoucoacabeçaedepoisdisse:

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—Cristininhanãodeverejeitarafelicidade!

—Escreve-lheumaspalavras!—disseobarqueiro.

E Ib escreveu. Mas não conseguia verdadeiramente juntar as palavras como

queriaeriscou-as.Rasgouopapel…noentanto,demanhã,estavaumacartapronta

paraaCristininha.

Eaquiestá!

«Acartaqueescrevesteateupai,li-a.Vejoquepassasbemdetodasasformase

que ainda pode sermelhor!Responde ao teu coração,Cristininha!E pensa bem

paraoquevais,semequiseresamim.Ébempoucooquetenho.Nãopensesem

mimenoque sinto,mas pensano teupróprio bem!Amimnão estás ligadapor

qualquer promessa, e se no coração sentes que me prometeste alguma coisa,

liberto-tedela.Quetodaaalegriadomundosejacontigo,Cristininha!Deusterá

consoloparaomeucoração!Sempreteuamigodetodoocoração,Ib.»

AcartafoienviadaeCristininharecebeu-a.

PeloSãoMartinho,nopúlpitodaigrejadeSeishede,foianunciadoocasamento

deCristininhae,emCopenhaga,ondeestavaonoivo, também.Para lápartiuela

comapatroa,poisonoivo,pelassuasmuitasocupações,nãopodiavir,pormuito

tempo,àJutlândia.Cristininhaencontrou-se,conformefoicombinado,comopaie

como Ib,na aldeiadeFunder,porondepassava a estrada eque,para eles, erao

ponto de encontro mais próximo. Aí se despediram. Sobre estes acontecimentos

vieramadizer-sealgumaspalavras,masIbnãodissenenhuma.

Ficoumuitopensativo,disseavelhamãe.

Sim, ficou pensativo porque andavam-lhe na cabeça as três avelãs que ele,

quando criança, recebera da cigana e dera duas aCristininha.Eram as avelãs de

desejos.Nasdela,numahaviaumacarruagemcomcavalos,naoutra,osmaisbelos

vestidos.Batiacerto!TodoesseesplendortinhaelaagoralánaCopenhagadoRei!

Paraela iacumprir-seodesejo…!ParaIbhavianaavelãsópódeterranegro.«O

melhordetudo»paraele,disseraacigana.Sim,tambémiacumprir-se!Opónegro

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deterraeraparaeleomelhor.Agoracompreendiaclaramenteoqueamulhertinha

queridodizer:naterranegra,numasepultura,era,paraele,omelhor!

E passaram anos… nãomuitos,mas parecem longos a Ib.Os velhos donos da

estalagemmorreram,umlogoaseguiraooutro.Todaafortuna,muitosmilhares

de táleres, herdou o filho. Sim, agoraCristininha bempodia ter a carruagem de

ouroevestidosmaravilhosos!

NosdoislongosanosqueseseguiramnãoveiocartadeCristininhaequandoo

pai recebeu uma, não era de nenhum modo escrita em bem-estar e em prazer.

PobreCristininha!Nemelanemomaridotinhamsabidomoderar-senariqueza.

Assim como veio, também foi, não havia bênção nela, pois eles próprios não a

tinhamquerido.

Eaurzefloriueaurzesecou.Anevetinharodopiadomuitosinvernossobrea

charneca de Seishede e sobre a colina onde Ib morava, abrigado. O Sol da

primaverabrilhoue,quandoIblançouoaradoàterra,esteembateunumseixoque

veiocomoumagrandelajenegraaodecima.QuandoIbpegounela,observouque

era ummetal e, onde o arado tinha raspado, ficara brilhante. Era uma pulseira

pesada e grande, de ouro dos tempos pagãos. A campa do gigante dos tempos

passadosforapostaadescobertoeassuaspreciosasjoiasencontradas.Ibmostrou-o

ao Pastor, que lhe disse ser realmente maravilhoso. Então, Ib dirigiu-se ao

governadordaprovíncia,quedeuainformaçãoparaCopenhagaeaconselhouIba

irelepróprioentregaropreciosoachado.

—Achastenaterraomelhorquepodiasachar!—disseogovernador.

—Omelhor!—pensouIb.—Omelhordetudoparamime…naterra!Entãoa

ciganatinharazãoquandodissequeeraomelhor!

IbviajoudevapordeAarhusatéàCopenhagareal.Eracomoumaviagemsobre

ooceanoparaele,quesótinhaandadonorioGuden.EIbchegouaCopenhaga.

Ovalordoouroachadofoi-lhepago.Eraumagrandesoma:seiscentostáleres.

AliandavanagrandeeintricadaCopenhagaoIbdobosquepertodeSeishede!

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Foi precisamente na noite anterior ao dia em que queria voltar de barco para

Aarhusque seperdeunas ruas.Tomouumadireção completamentediferenteda

quequeriaeveiopelapontedeKnippelaChristianshavnemvezdeseguirparaa

muralha, juntoàportadooeste.Dirigiu-sebemparaooeste,masnãoparaonde

queriair.Nãoseviaumsernarua.Entãosurgiuumapequenitadeumacasapobre.

Ibfalou-lhedocaminhoqueprocurava.Elaestranhou,olhouparaeleecomeçoua

chorardesalmadamente.Entãofoiavezdeeleperguntaroqueelatinha.Nãodisse

nada, como se não tivesse percebido, e como estavam ambos debaixo de um

candeeirodarua,ea luzdestebrilhavanorostodela, ficoumuitoadmirado,pois

eraaCristininhavivazqueelevia,absolutamente,comodelaselembravadotempo

emqueamboseramcrianças.

Eentroucomapequenitanacasapobreepelaescadaestreitaegastaatéaocimo,

numpequenoquartodedesvão, sobotelhado.Haviaumarpesadoeopressivo lá

dentro. Nenhuma luz acesa. No canto, alguém suspirava e respirava com

dificuldade.Ibacendeuumfósforo.Eraamãedameninaquejazianacamapobre.

Possoajudá-laemalgumacoisa?—perguntouIb.—Ameninaencontrou-me,

maseu souestranhonacidade.Háalgumvizinhoouqualquerpessoaaquemeu

possachamar?…elevantou-lheacabeça.

EraaCristininhadeSeishede.

Durante anos em casa na Jutlândia o seu nome não fora pronunciado porque

teriaperturbadoospensamentostranquilosdeIbetambémnãoerabomoqueos

rumores e a verdade diziam, que o muito dinheiro que o marido recebera de

herançadospaisofizeraarroganteevil.Abandonaraolugarseguroeviajoumeio

anopor váriospaíses.Voltou a contrairdívidas e fezmuita asneira.A carruagem

ondeseguiainclinou-seatésevirar.Osmuitosalegresamigosdasuamesadiziam

quemereceraoque lhe sucedeu,pois vivera comoum louco!…Oseucadáver foi

encontradonocanaldojardimdopalácio.

Cristininhaandavacomamorteemsi.Oseufilhomaisnovoviveusóalgumas

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semanas.Nascidonaabundânciaecriadonamiséria,jáestavanasepultura.Agoraia

sucederomesmoaCristininha,pois jaziamortalmentedoente, abandonadanum

quartomiserável.Poderiatê-losuportadonosanosdajuventude,emSeishede,mas

agora,acostumadaaomelhor, sentiamaisamiséria.Foiasuapequenita, também

Cristininha,quesofrianecessidadesefomecomoela,quelevouIbláacima.

—Tenhomedodemorreredeixarapobrecriança!—suspirou.—Quevaiser

dela?Emaisnãopôdedizer.

Ib acendeu um novo fósforo e encontrou um coto de vela, que ficou a arder,

iluminandooquartomiserável.

Olhou para a pequenita e pensou em Cristininha nos dias da infância. Por

Cristininha, podia fazer bem àquela criança que não conhecia. A moribunda

olhava-o, os olhos tornaram-se cada vezmaiores…!Reconheceu-o?Não o veio a

saberporquenenhumapalavradelaseouviu.

Eeranobosque,pertodorioGudenepertodeSeishede.Océuestavacinzento.

Asurzessemfloreastempestadesdooeste levaramasfolhasamarelasdobosque

paraorioeparaalémdacharneca,ondeestavaacasadeturfaverdeonde,agora,

gente estranha morava. Mas, abaixo da colina, bem ao abrigo das árvores altas,

estava a casinha caiada epintada.Ládentro,na sala, ardiamna lareira turfas dos

pântanos.EhavialuzdoSolqueirradiavaemdoisolhosdecriança.Otrinadoda

cotovia,naPrimavera,soavanafaladasuabocavermelhaesorridente.Haviavidae

alegria.ACristininhaestava lá.Sentadanos joelhosdeIb,queera,paraela,paie

mãe.Estavalonge,nossonhosdacriança,assimcomonossonhosdeIb.

Ibtinhaumacasaasseadaebonita.Eraumhomemabastado.Amãedapequenita

estavanocemitériodospobresdaCopenhagareal.

Ib tinha dinheiro na arca, diziam.O ouro do pó da terra.E tinha, claro está,

tambémaCristininha.

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OAnjo

«Cadavezqueumacriançamorre,desceumanjodeDeusàTerra,toma-anos

braços, abre as grandes asas brancas, voa sobre todos os lugares de que a criança

gostou, e colhe toda umamão-cheia de flores, que leva aDeus, para aí florirem

aindamaisbonitasdoquenaTerra.ObomDeus apertade encontro ao coração

todasasflores,masàqueladequeElegostamaisdáumbeijo.Entãoestarecebevoz

epodecantarjuntamentenagrandebem-aventurança!»

Poisbem,tudoistocontavaumanjodeDeus,enquantolevavaumacriançapara

oCéu.Acriançaouvia-ocomonumsonho,enquanto iampassando sobre jardins

comlindasflores,elugaresonde,emvida,brincara.

—QuaisasfloresquevamoscolhereplantarnoCéu?—perguntouoanjo.

Aliestavaumaroseiraesguiaemagníficaquemãomalévolalhetinhaquebradoo

tronco, de modo que todos os ramos, cheios de botões grandes e meio abertos,

pendiam,murchosemvolta.

—Pobreplanta!—disseacriança.—Leva-aparaquepossaviraflorir láem

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cima,juntodeDeus!Oanjocolheu-a,beijandoacriança,eestaentreabriuosolhos.

Colheramasadmiráveisfloresricas,mastomaramtambémodesprezadocravode

defuntoeoamor-perfeitoselvagem.

—Agora temos flores!—disse a criança, e o anjo assentiu comumacenode

cabeça,masnãovoaramaindaparaDeus.Eranoite,tudoestavatranquilo,ficaram

nagrande cidade, pairavamnumadas ruasmais estreitas, ondehaviamontões de

palha,cinzasedesperdícios.Tinhasidodiadedespejodelixo.Haviaaípedaçosde

pratos, fragmentos de estuque, trapos e velhas copas de chapéus, tudo oquenão

pareciabonito.

Oanjoapontou,nomeiodetodaestadesordem,paraalgunscacosdeumpotee

paraumtorrãoquetinhacaídodesteesemantinhajuntoàsraízesdeumagrande

flordocampo,murcha,quenãoserviaparanadae,porisso,tinhasidolançadapara

arua.

—Tomamosaquela!—disseoanjo.—Dir-te-eiporquêenquantovoamos.

Eassimvoarameoanjocontou:

«Aliembaixonaruaestreita,numacave,moravaumrapazinhopobreedoente.

Desde pequenino que estava sempre de cama. Quando se sentia melhor, podia

andardeumladoparaooutro,dentrodoquarto,amparadonasmuletas.Nosdias

deVerão, os raios de Sol penetravam, por umameia hora, na entrada da cave e,

quando o rapazinho se sentava aí, deixando que o Sol quente brilhasse em si,

olhando para o sangue rubro através dos dedos das mãos, que punha diante do

rosto,dizia:

—Hojeestiveláfora!

—Conheciaobosquenasuabelaverduraprimaveril,apenasporqueofilhodo

vizinholhetraziaoprimeiroramodefaiaqueeleseguravaporcimadasuacabeça,

sonhandoestarsobasfaias,ondeoSolbrilhavaeospássaroscantavam.Numdiade

Primavera, o rapaz do vizinho trouxe-lhe também flores do campo e entre estas

encontrava-se,poracaso,umacomraiz,quefoiplantadanumpoteecolocadana

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janela,juntoàsuacama.Aflor,quefoiplantadacommãofeliz,cresceu,criounovos

rebentos e todos os anos dava as suas flores. Tornou-se o mais belo jardim do

rapazinhodoente, o seupequeno tesourona terra.Regava-o, tratava-o e cuidava

querecebessetodososraiosdeSol,atéaoúltimo,quepenetravampelajanelabaixa.

E a própria flor crescia nos seus sonhos, pois para ele floria, espalhando o seu

perfumeealegrando-lheavista.Paraelasevolveunamorte,quandoNossoSenhor

ochamou…Fazagoraumanoqueestá juntodeDeus.Tambémumanoestevea

floresquecidanajanela,murchae,portanto,nodiadodespejodolixo,foilançada

paraarua.Éessaflor,apobreflormurcha,quetomámosparaonossoramo,pois

essaflordeumaisalegriadoqueaflormaisrica,numjardimdeumarainha!

—Mascomosabestudoisso?—perguntouacriançaaoanjoquealevavaparao

Céu.

—Sei-o!—disseoanjo.—Eraeupróprioorapazinhodoentequeandavade

muletas!Conheçobemaminhaflor!

Eacriançaabriucompletamenteosolhoseolhouparaorostobeloejubilosodo

anjo. Nesse momento, estavam no Céu de Deus, onde havia júbilo e bem-

aventurança.EDeusapertoua criançadeencontroaocoração,que logo recebeu

asas,comoooutroanjoecomelevoou,demãosdadas.Então,Deusabraçoutodas

as flores contra o coração mas, à pobre flor do campo, murcha, beijou-a e ela

recebeuvozecantoucomtodososanjosquepairavamàvoltadeDeus,algunsbem

perto,outrosàvoltadestes,emgrandescírculos,maisemaislonge,noinfinito,mas

todos igualmente felizes. Todos cantavam, pequenos e grandes, crianças

abençoadas,assimcomoapobreflordocampo,quejazeramurcha,lançadaaolixo,

nadesordemdodiadedespejo,naruaestreitaesombria.

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OsDiasdaSemana

Certavez,osDiasdaSemanadecidiramquetambémtinhamdireitoadivertir-

se.Andavamtãoocupadosdurantetodososdiasdoano,quenãoencontravamum

disponível,parasejuntaremefazeremumafesta.Precisavamdedescobrirumque

fosseextra.Nofimdecadaquatroanoshaviasempreodiaintercalarquesepõeno

fim de fevereiro, para trazer ordem à contagem do tempo. Foi nesse dia que

decidiramfazerasuafesta.

Juntar-se-iamentão,nessadata, e como fevereiroéomêsdoCarnaval, viriam

mascaradossegundoavontadeedisposiçãodecadaum.Comeriambem,beberiam

bem, discursariam e diriam uns aos outros coisas agradáveis e desagradáveis, em

camaradagem e sem cerimónias. Os guerreiros dos velhos tempos, durante as

refeições,tinhamohábitodelançaràcabeçaunsdosoutrososossosroídos,masos

Dias da Semana haviam de fazer o contrário. Cumular-se-iam com petiscos de

trocadilhos e ditos sujos, como os que ocorrem nas inocentes brincadeiras

carnavalescas.

Finalmente,chegouodesejadodiaintercalarefoimascaradosdaseguinteforma

quesereuniram.

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ODiadeDomingo,presidentedosdiasdasemana,apresentou-secomumacapa

desedapreta.AspessoasreligiosasacreditaramqueestavavestidodePastorparair

àigreja.Asgentesdomundoviramquetambémtraziaumdominóparasedivertir

e que o cravo que flamejava na casa do botão da capa era a pequena lanterna

vermelhadoteatroqueanunciava:estátudoesgotado,trataiagoradevosdivertir!

O Dia de Segunda-Feira, um jovem da família do Dia de Domingo e

especialmentedadoaosprazeres, seguiu-o.Tinhaabandonadoaoficinaquandoa

paradadaguardadesfilavapelarua.

—Vinhama tocar amúsicadeOffenbach,quenãome sobeà cabeçanemme

toca o coração, mas faz-me cócegas nos músculos das pernas. Tenho de dançar,

armarsarilhoeficarcomumolhoazul,paradepoisirdormirevoltaraotrabalho

nodiaseguinte.Souo«luanova»dasemana.

ODiadeTerça-Feira:DiadoTouro1,queéodiadaforça.

—Sim,soueu!—disseoDiadeTerça-Feira.—Vouparaotrabalho,abroas

asasdeMercúrionasbotasdomercador e voupelas fábricaspara ver se as rodas

estãountadasegirambem.Façocomqueoalfaiatesesenteàmesaeocalceteiro

nas pedras da calçada.Cada um com a sua tarefa!Deito o olho a tudo. Por isso,

venhoemuniformedepolíciaechamo-meoTerça-FeiraPolícia(politirsdag).Seé

ummautrocadilho,trataidemearranjaroutroquesejamelhor!

— Agora venho eu! — disse o Dia de Quarta-Feira. — Estou no meio da

semana.Osalemães chamam-meoSr.Mittwoch2.Estoucomoocaixeirona sua

loja.Comoumaflor,nomeiodosoutroshonradosDiasdaSemana!Senospomos

emmarcha,tenhoentãotrêsdiasàminhafrenteetrêsdiasatrásdemim.Écomo

umaguardadehonra.EstouemcrerquesouoDiadaSemanamaisconsiderado!

ODiadeQuinta-Feiraveiovestidodecaldeireiro,munidodemarteloecaldeira

decobre.Eramosseusatributosdenobreza.

—Eusoudomaisaltonascimento!—disseele.—Pagão,divino!Nospaísesdo

NortesoudenominadosegundoTor3enospaísesdoSulsegundoJúpiter,porque

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ambosentendemdetrovõeseraios.Ficounafamília!

Ebateunacaldeiradecobre,mostrandooseualtonascimento.

ODiadeSexta-Feira estava vestido comouma rapariga e chamava-seFreia4,

paraserdiferentedeVénus.Dependiadoshábitoslinguísticosdospaísesemquese

apresentava.

Tinha,de resto,umcaráter tranquilo e suave,mashoje estava atrevida e livre.

Eraodiaintercalareessediadáaliberdadeàmulherpara,conformeovelhouso,

serelaapediramãoenãoesperarquelhapeçam.

ODiadeSábadoapresentou-secomoumavelhadonadecasa, comvassourae

outrosartigosdelimpeza.Oseupratofavoritoeraasopadepãocozidoemcerveja.

Nestaocasiãofestiva,asopadeviaserpostanamesaparatodos,contudo,exigiaque

apenaselaativesse.Eteve-a.

AssimsesentaramosDiasdaSemana,reunidosàvoltadamesa.

Eaquiestãodesenhadostodosossetediasdasemana,comosefossemumquadro

vivo, no convívio de família. Podem ser representados tão divertidos como se

desejar.Damo-los aqui apenas como uma brincadeira em fevereiro, o únicomês

quetemumdiaaacrescentar.

1-EmdinamarquêsTirsdag,Tyr—touro.(N.doT.)(Voltar)

2-Mitte—meio.Woche—semana.(N.doT.)(Voltar)

3-EmdinamarquêsTorsdagdodeusTor.(N.doT.)(Voltar)

4-EmdinamarquêsFredagdadeusaFreia.(N.doT.)(Voltar)

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OJardineiroeoSenhor

Aumamilhadedistânciada capitalhaviaumvelho solar comgrossasparedes,

torreseempenasentalhadas.

Nelevivia,apenasnaalturadoverão,umafamílianobreerica.Possuíamuitos

solares.Aquele,porém,eraomaisricoeomaisbonitodetodos.Porforaeracomo

sefossenovoe,pordentro,tinhatodooconfortoetodasascomodidades.Obrasão

dafamíliaexibia-se,esculpido,juntoaoportão.Nobalcãodajaneladesacadaeem

redor das armas do brasão enroscavam-se magníficas rosas. Em frente da casa

estendia-se um grande tapete de relva. Também se podiam ver espinheiros

vermelhosebrancoseoutrasfloresraras,eoutrasqueseencontravamnasestufas.

Oproprietáriodosolartinhaumjardineirotãocompetentequedavaprazerver

ojardim,opomareahorta.Umpoucomaisacimahaviaaindaarbustos,aparadose

combinados de modo a formarem coroas e pirâmides. Eram os restos do antigo

domíniosenhorial.Pordetrásdosarbustoserguiam-seduasgrandesárvores,muito

antigas.Estavamquase sempre sem folhas e, ao vê-las, pensava-sequeumvento

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tempestuosoouumatromba-d’águaashaviacobertodegrandestorrões,mascada

umdessestorrõesera,nemmaisnemmenos,umninho.Nessasárvoresmoravam,

desde tempos imemoriais, um bando de gralhas e corvos ruidosos. Como se elas

fossemumaverdadeiracidadedeaves.Elaseramasdonas,asproprietáriaseamais

antiga família senhorial. As verdadeiras senhoras do solar. Indiferentes aos seres

humanos, cá embaixo, toleravamessas criaturasque andavampelo chão, embora

entreelashouvessealgumasquedisparavamespingardas,quelhesfaziasentirum

arrepionaespinha,obrigando-asafugircommedo,agritar:crá,crá.

O jardineiro pedira muitas vezes ao seu senhor para mandar deitar abaixo as

velhasárvores.Nãodavambomaspetoe, sendoabatidas,provavelmente livrá-lo-

iamdasbarulhentasaves,que iriamprocuraroutropouso.Osenhor,porém,não

queria desfazer-se nem das árvores nem do bando.Era algo que fazia parte dos

domínios do solar, algo que vinha dos velhos tempos e, portanto, não se devia

destruí-lo.

—Asárvoressãoherançadasaves,deixa-asestar,meubomLarsen!

Larseneraonomedojardineiro,masissonadatemquevercomanossahistória.

—Nãotens,amigoLarsen,camposuficienteparati?Todoojardim,asestufas,

opomareahorta?

Naverdade,tudoissopossuía,edetudobemcuidava,comzeloecompetência,o

queerareconhecidopelosenhor,quenãosecoibia,contudo,delhedizerqueem

casadeoutraspessoashaviacomido frutasevisto floresque superavamasdo seu

domínio,afligindoassimojardineiro,poisestesemprequeriafazermelhorqueos

outros;econseguia-o.Eraumhomemtãobomnocoraçãocomonoofício.

Umdia,osenhormandou-ochamaredisse-lhe,comafáveismodossenhoriais,

que,na véspera, em casadeuns ilustres amigos,haviaprovadomaçãs eperas tão

sumarentas e saborosas que ele e todos os convidados não puderam deixar de

expressarasuaadmiração.Osfrutosnãoeramcertamentedopaís,maspodiamser

importadoseaclimatar-seseascondiçõesopermitissem.Sabia-sequetinhamsido

compradosnamelhorfrutariadacidade;ojardineirodeveriairláeprocurarsaber

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dondetinhamvindoaquelasmaçãseperas.Depoismandariavirosenxertos.

O jardineiroconheciabemodonoda frutaria.Eraprecisamenteaeleque,por

contadosenhor,vendiaassobrasdasfrutascultivadasnopomar.

Tomou assim o caminho da cidade para perguntar ao dono da frutaria donde

recebiaaquelasmaçãseperastãoapreciadas.

—Sãodoteuprópriopomar!—declarouodonodafrutaria,quelhasmostrou,

equeelelogoreconheceucomosuas.

Como ficou contente o jardineiro! Correu logo para o solar, para contar ao

senhorquetantoasperascomoasmaçãseramdoseupomar.

Osenhornãoqueriacrer.

—Nãoépossível,Larsen!Poderásarranjarumadeclaraçãoescritadodonoda

frutaria?

Larsenvoltoucomadeclaraçãopedida.

—Éestranho!—exclamouosenhor.

Entãopassaramavirparaamesadosenhor,todososdias,grandesaçafatescom

aquelasbelasperasemaçãs,produtosdoseuprópriopomar,que,àstoneladaseaos

quintais,foramtambémenviadasparaosamigosdacidadeedeforadacidade.Até

mesmoparaoestrangeiro.Eram,narealidade,maravilhosas!Contudo,deveter-se

também em conta que haviam sido dois anos extraordinariamente bons para as

árvoresdefruto.Nãosóalicomonorestodopaís.

Decorreualgumtempo.Umdia,osenhorfoiconvidadoparaumjantarnacorte.

Nodiaseguintechamouo jardineiro.Tinhamservidonacorteunsmelõesmuito

sumarentosesaborosos,dasestufasdeSuaMajestade!

—Tensdeprocurarojardineirodacorte,meubomLarsen,paraquenosarranje

algumassementesdessespreciososmelões!

—Masfoidenósqueeleasrecebeu!—respondeuojardineirotodocontente.

—Então soube tratá-los muito bem para que resultassem assim tão bons—

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retorquiuosenhor.—Sãoexcelentesessesmelões!

— Bem posso sentir-me orgulhoso!— disse Larsen.—Devo esclarecer Sua

Excelênciaque o jardineironão teve sorte comosmelões este ano e, quando viu

comoosnossoserambonitoseosprovou,mandouquelheenviássemostrêsparao

palácio!

—Larsen!Nãovásagora imaginarqueeramprecisamenteosmelõesdanossa

quinta!

— Creio bem que sim! — respondeu Larsen, que foi depois procurar o

jardineirodopalácioedelerecebeuumadeclaraçãoescritadandocontadequeos

melõesservidosnamesarealhaviamvindodopomardoseusenhor.

Foi,naturalmente,umasurpresaparaosenhor,quenãoocultouoquesehavia

passado. Exibiu a quem o quis o atestado do jardineiro a quem o quis e assim

passaram a ser enviadas sementes demelão para toda a parte, bem como, no seu

devidotempo,osenxertos.

Receberam notícias de que tinham sido muito apreciados, que haviam dado

magníficos frutos e que haviam tomado o nome do pomar do senhor, que podia

agoraserlidoeminglês,alemãoefrancês.

Nuncaanteshaviapensadonisso.

— Que não vá agora o jardineiro dar-se ares de importância por isso! —

comentouosenhor.

Mas foi de outro modo que o jardineiro aceitou as coisas. O seu desejo era

esforçar-se por ganhar nome como um dos melhores jardineiros do país,

procurando,todososanos,produziramelhordasespéciescultivadasnopomar.E

sempre o conseguiu. Frequentemente, ouvia dizer que, de todos os frutos de

primeira qualidade que havia cultivado, as maçãs e as peras foram realmente os

melhores; todososoutros lhes eram inferiores.Osmelões tinhamsido realmente

bons, mas eram de uma qualidade à parte; os morangos podiam considerar-se

admiráveis, mas, contudo, não foram melhores do que os das outras quintas e,

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quantoaosrábanos,houveumanoemquenãoresultarambons.Entãosósefalou

daquelesdesafortunadosrábanosenãodetudoomaisqueforabemproduzido.

Eraquasecomoseosenhorsentisseprazeremdizer:

—Esteanovaisermau,amigoLarsen!—Pareciasentirumagrandealegriaem

exclamar:—Não,esteanonãodánada!

Algumasvezesporsemanaojardineirotraziafloresfrescasparaacasadosenhor,

sempre dispostas commuito gosto, e de tal modo as combinava que as cores se

realçavam.

—Tensbomgosto,Larsen!—diziaosenhor.—Éumdomquenãoveiodeti.

FoiNossoSenhorquetodeu!

Umdiao jardineiro trouxenumagrande taçadecristalumapétaladeaçucena

aquáticabrancaesobreela,comolongoegrossocaulemergulhadonaágua,uma

admirávelflorazul,dotamanhodeumgirassol.

—OlótusdeIndostão!—exclamouosenhor,quandoaviu.

Nuncaviraumaflorassim.DuranteodiafoicolocadaaoSoleànoitesobaluz

refletida de uma lâmpada. Todos os que a observaram acharam-na

extraordinariamentebelaerara.Foiissoquedeclarouumadasprimeirasdamasdo

país,umaprincesainteligenteebondosa.

SuaSenhoriaconsiderouumahonrapresentear-lheafloreestafoientãolevada

paraoPalácioReal.

Desceudepoisosenhoraojardimparaelepróprio,seaindahouvesse,colheruma

outra flor igual. Mas nenhuma encontrou. Chamou então pelo jardineiro e

perguntou-lheondehaviacolhidoolótus-azul:

—Procurámosemvão!—disseele.—Fomosàsestufasepercorremostodoo

jardim!

—Poisnãoestápropriamenteali—respondeuojardineiro.—Éumasimplese

vulgarflordahorta.Masnãoéverdadequeémuitobonita?Pareceumcato-azule,

contudo,outracoisanãoéqueaflordaalcachofra!

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—Deviaster-nosditoissologo—retorquiuosenhor.—Pensávamosqueera

umaflorexótica, rara.Obrigaste-nosa fazermá figuradianteda jovemprincesa!

Viuafloremnossacasaeachou-amuitobonita,masnãoareconheceu,emboraseja

excelente embotânica, que é uma ciência, claro está, que nada tem a ver com as

hortaliças.Comoteocorreu,bomLarsen,trazerumaflordessasparaminhacasa?

Obrigaste-nosaserridículos!

Abonita e radiante flor azul apanhadanahorta foi retiradada casado senhor,

onde não era digna. Sua Senhoria apresentou as suas desculpas à princesa,

explicandoqueaflorerasimplesmenteumaplantadahorta,queojardineirohavia

trazidoparamostrarequehaviarecebido,porisso,sériaadmoestação.

—Poisépenaeé injusto!—retorquiuaprincesa.—Abriu-nososolhospara

uma flor magnífica de que não nos tínhamos apercebido.Mostrou-nos a beleza

ondeadevíamosterprocurado!Dareiordemparaqueo jardineirodopaláciome

tragatodososdiasumaflordessasenquantofloriremasalcachofras.

Eassimaconteceu.

Também Sua Senhoria mandou dizer ao jardineiro que lhe podia trazer, de

novo,umaflordealcachofrafresca.

—Nofundo,ébonita!—disseele.—Muitocuriosa!—Efezoseguinteelogio

aojardineiro:

—Larsen ficará contente comisso!— disse Sua Senhoria.—É uma criança

mimalha.

No outono houve uma terrível tempestade. Rebentou de noite e tão

violentamentequemuitasdasgrandesárvores,naorladobosque,foramarrancadas

pelaraiz.ComgrandepesarparaSuaSenhoria (foramassuaspalavras),mascom

alegriaparaojardineiro,poisforamderrubadasasduasgrandesárvorescomtodos

os ninhos. Afirmava a gente da casa que se ouviram, nomeio da tempestade, os

gritos dos corvos e das gralhas, que tinham batido com as asas nas vidraças das

janelas.

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—Estássatisfeitoagora,Larsen?—perguntouSuaSenhoria.—Atempestade

derrubouasárvoreseasavesfugiramparaobosque.Osolarjánãotemoaspetodos

velhos tempos. Tudo que os fazia recordar desapareceu! Tive realmente muita

pena!

O jardineiro nada disse, mas logo pensou no que andava magicando há tanto

tempo:utilizarobelocamposoalheirodequeantesnãopodiadisporetransformá-

loemadornodojardimenumobjetodeprazerparaSuaSenhoria.

Asgrandesárvoresderrubadashaviamdestroçadoedespedaçadoasantiquíssimas

sebesdebuxo,talhadasemfiguras.Aíplantouarbustoseplantasdoscamposedos

bosques da região.O que nenhum outro jardineiro pensara fazer, quanto à rica

variedadedeplantasdojardimdosenhor,fê-loele,dispondo-asnaterraadequada,

aoSolouàsombra,conformeasnecessidadesdecadaespécie.Cuidou-ascomtodo

ocarinhoeelascrescerammagníficas.

Os zimbros da Jutlândia desenvolveram-se em forma e cor como se fossem

ciprestes-italianos.Oazevinho,brilhanteeespinhoso,sempreverdecomofriodo

inverno ou comoSol doVerão, era digno de se ver.À sua frente havia fetos de

diversasespécies,algunspareciamfilhosdaspalmeiraseoutrospaisdabelaefina

planta a que chamamos adianto. Estava ali também a bardana desdenhada, tão

bonitanasuafrescuraquepodiasercolhidaparaumramalhete.Abardanaestava

plantadana terra secamasmais funda.Na terrahúmidacresciamas azedas,uma

planta também desprezada e, contudo, tão pitoresca e bonita na sua altura

imponente e comas suas folhas grandes.Esbelta, comvários troncos, flor contra

flor, como um grande candelabro de muitos braços, erguia-se a candelária,

transplantada para aquele local. Ali se encontravam também as aspérulas, as

primaveraseos lírios-do-bosque,oesparto-silvestreeas finasazedas-do-bosque,

detrêsfolhas.Erarealmentedignodesever.Pordetrásdeumavedaçãodearame

cresciam,alinhadas,pequeníssimaspereirasdeprocedênciafrancesa.CombomSol

ebomtratamento,embrevederamfrutosgrandesesucosos,talcomonaterra,de

ondetinhamprovindo.

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No lugar das duas velhas árvores desfolhadas foi colocado um alto mastro de

bandeiraondeondeavao«Dannebrog»e,próximo,umoutroonde,noverãoeno

outono,seenroscavamasramadasdolúpulo,comassuasfloresodoríferasemcone.

Tambémnoinverno,seguindoumvelhocostume,erasuspensonomesmomastro

um comedouro com aveia, para que as aves tivessem comida na época festiva do

Natal.

— O bom Larsen está a tornar-se sentimental com a idade! — disse Sua

Senhoria.—Masé-nos,naverdade,muitofieleafeiçoado!

No ano seguinte, uma revista ilustrada da capital publicou uma gravura do

antigosolar.Nelaseviaomastrodabandeiraeocomedourodeaveiaparaasaves.

Comentava-setambéma ideiaexcelentedeovelhocostumetersidopreservadoe

honradodeummodotãosignificativo,precisamentenoantigosolar.

—TudooqueLarsenfaz—declarouSuaSenhoria—éapregoadoatodosos

ventos. É um homem com sorte! Quase me sinto orgulhoso de o ter ao meu

serviço!

Masnãoeraorgulhooquesentia!Sabiaqueeraosenhor,queopodiadespedir,

oquenãofazia,éclaro,porserboapessoa;enestaclassehámuitoboaspessoas,o

queétambémumasorteparatodososLarsens.

Éestaahistóriadojardineiroedosenhor!Pensanelaumpouco!

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APastoraeoLimpa-Chaminés

Já viste alguma vez um armário genuinamente antigo, completamente

enegrecido pela antiguidade e trabalhado com floreados e folhagens? Pois era

precisamenteumdessesqueseencontravanumacertasaladeestar.Eraherançada

avó, bem talhadode rosas e tulipasque o cobriamde alto a baixo.Eramosmais

maravilhosos floreados e entre eles emergiam cabeças de pequenos veados com

grandesarmações.Nomeiodoarmárioestavatambémtalhadoumhomem.Seria,

eramuitodivertidovê-loarir,masnãosepodiachamaraissosorrir.Tinhapernas

de bode, uns chifrezinhos na testa e uma longa barba. As crianças da casa

chamavam-lhe o Sargento-general-comandante-chefe-subchefe das pernas de

bode,poiseraumnomedifícildedizerenãohámuitosquetenhamestetítulo.Mas

mandá-lotalhartambémfoicoisacomplicada!Contudo,aliestava!Sempreaolhar

paraamesa,porbaixodoespelho,porquealiseencontravaumalindapastorinhade

porcelana.Ossapatoseramdourados,ovestidolindamentepresoemcimacomuma

rosavermelhaetinhaumchapéudeouroeumbastãodepastor.Eralinda!Mesmo

aoladodelaestavaumpequenolimpa-chaminés,tãopretocomoocarvão,também

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deporcelana.Eratãolimpoebonitocomoqualqueroutro.Ofactodeser limpa-

chaminés era só aparência.O fabricante deporcelanas podiamuitobem ter feito

deleumpríncipe.Darianomesmo!

Eratãolindocomasuaescadaetinhaumrostotãobrancoerosadocomouma

rapariga.Issofoi,narealidade,umerro,poisumpoucodepretonãoteriasidomau.

Estava mesmo junto à pastora. Tinham sido colocados ali e, assim colocados,

ficaram noivos. Passavam o tempo um com o outro. Eram gente nova, eram da

mesmaporcelanaeambosigualmentequebráveis.

Perto deles estava outro boneco que era três vezes maior. Um velho chinês,

tambémdeporcelana,quesabiaacenarcomacabeça.Dizia-seavôdapastorinha,

mas issonão opodia ele confirmar.Afirmavaque tinhapoder sobre ela e, assim,

acenava para oSargento-general-comandante-chefe-subchefe de pernas de bode,

quetambémcortejavaapastorinha.

—Vaisterummarido—disseovelhochinês—,ummaridoqueserádemogno,

senãomeengano.Podefazer-teSenhoradoSargento-general-comandante-chefe-

subchefe das pernas de bode.Tem todoo armário cheio de pratas, não contando

comoquepossuinasgavetassecretas.

—Nãoquero irparadentrodoarmário!—disseapastorinha.—Ouvidizer

queguardaládentroonzemulheresdeporcelana!

—E tu podesmuito bem ser a décima segunda!—disse o chinês.—Hoje à

noite,logoqueovelhoarmáriocomecearanger,hãodedar-seasvossasbodas.Tão

verdadecomoeuserchinês!—Acenoucomacabeçaedeixou-seadormecer.

A pastorinha chorou e olhou para o seu mais querido do coração, o limpa-

chaminésdeporcelana.

—Creio que tenho de pedir-te que vás comigo por essemundo fora, porque

aquinãopodemosficar.

—Querooquetuquiseres!Vamosimediatamente!Achoquepossoalimentar-

tecomaminhaprofissão!

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—Seaomenosestivéssemossãosesalvos, longedamesa!—disseela.—Não

tereialegriaenquantonãopartirmosporessemundofora!

Eleconsolou-aemostrou-lhecomopodiapôropezinhonasbordastalhadasena

folhagemdouradaedescerpelapernadamesaabaixo.Usoutambémasuaescada

paraaajudaradesceredessemodochegaramaochão;masquandoolharamparao

velho armário, era como se ali houvesse um tumulto. Todos os veados talhados

punham as cabeças aindamais para fora, levantavam as armações e estendiam os

pescoços. O sargento-general-comandante-chefe-subchefe das pernas de bode

saltounoaregritouparaovelhochinês:

—Vãofugir!Vãofugir!

Ficaramumpoucoassustadoseesconderam-se,apressadamente,nasgavetasda

plataforma.

Nessas gavetas encontravam-se três ou quatro baralhos de cartas de jogar,

incompletos,eumpequenoteatrodebonecas,nãomuitobemmontado,mas,ainda

assim,bemimprovisado.Representavam-secomédias,etodasasdamas,tantoasde

ouroscomoasdecopas,asdepauscomoasdeespadas,sentavam-senasprimeiras

filas e abanavam-se com tulipas. Logo por trás delas estavam todos os valetes,

mostrando que tinham cabeças, tanto em cima como em baixo, tal como são as

cartas de jogar.A comédia tratava de dois amantes quenão se podiam ter um ao

outroeapastorachorouporisso,porqueeracomosevisseasuaprópriahistória.

—Nãoaguentoisto!—comentouela.—Tenhodesairdagaveta!

Masquandovieramparaochãoeolharamparaamesa,láestavaovelhochinês

acordadoecomtodooseucorpoaabanar.Eracomoumenormemonte,vistode

baixo!

—Vemaíovelhochinês!—gritouapastorinha,ecaiulogosobreosjoelhosde

porcelana,detãoaflitaqueestava.

—Tenhoumaideia!—disseolimpa-chaminés.—Vamosmeter-nosdentroda

jarradepot-pourriqueestáalinocanto?Podemosdeitar-nossobrerosasealfazema

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elançar-lhesalnosolhos,quandoelevier.

— Pode não ser suficiente!— respondeu ela.— Além disso, sei que o velho

chinês e a jarra de pot-pourri estiveram noivos e, quando se têm relações desse

género,restasempreumpoucodesimpatia!Não!Nãohánadaafazersenãopartir

pelomundofora!

— Tens mesmo coragem para ir comigo pelo mundo fora? — perguntou o

limpa-chaminés.— Já pensaste como ele é grande e que nuncamais voltaremos

aqui?

—Tenho!—afirmouapastorinha.

Olimpa-chaminésolhou-afixamenteedisse:

— O caminho faz-se por dentro da chaminé! Tens mesmo coragem para te

arrastares comigo dentro do fogão, tanto pelo tambor como pelo cano? Saímos

depoispelachaminéeaíconheçotudobem!Subiremostãoaltoquenãonospodem

alcançarelábememcimaestáumburacoparaomundo!

Econduziu-aparaaportadofogão.

—Está tudo preto!— disse ela,mas seguiu-o, tanto pelo tambor como pelo

cano,ondeparecianoiteescuracomobreu.

—Estamosagoranachaminé!Vê!Láemcimabrilhaamaislindaestrela!

Eestava,realmente,umaestrelanocéuquebrilhavaparabaixo,paraeles,como

se quisesse mostrar-lhes o caminho. Treparam e rastejaram. Foi uma terrível

caminhada. Tão alto, cada vez mais alto. Ele puxou-a para cima e apoiou-a,

segurou-aemostrou-lheosmelhorespontos,ondepodiapôrosseuspezinhosde

porcelana,atéquealcançaramabordadachaminéenelasesentaram,poisestavam

muitíssimocansadoseboasrazõestinhamparaisso.

Océu,comtodasassuasestrelas,estavaporcimaetodosostelhadosdacidade

porbaixo.Viamatémuitolonge,àsuavolta,mesmoparaalémdomundo.Apobre

pastoranuncao tinha imaginado assim.Pousou a cabecinhanoombrodo limpa-

chaminésechoroutantoqueoourolhesaltoudafitadocorpete.

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—É demais!— disse ela.—Não posso suportá-lo!Omundo é demasiado

grande!Quemmederaestaroutraveznamesinhaporbaixodoespelho!Nãoterei

alegriaenquantonãomeencontrarláoutravez!Segui-tepelomundofora,agora

tupodesseguir-meparavoltaracasa,segostaresumbocadinhodemim!

E o limpa-chaminés falou-lhe sensatamente. Falou-lhe do velho chinês e do

Sargento-general-comandante-chefe-subchefedaspernasdebode,maselachorou

tãodesconsoladaebeijouoseuqueridolimpa-chaminésdetalforma,queestenão

pôdefazeroutracoisasenãocondescender,sebemquefosseumaloucura.

Eassimlásearrastaramoutravez,comgrandedificuldade,pelachaminéabaixo,

rastejandoatravéscanoedotambor—oquenãofoinadaagradável—,penetrando

nofogãoescuro.Escutaram,pordetrásdaporta,parasaberemoquesepassavana

sala.Estava tudo em silêncio.Olharam.Ai!Lá estava o velho chinês nomeio do

chão.Tinhacaídodamesa,quandopretenderapersegui-loseestavapartidoemtrês

partes.Todoodorsosedesprenderanumúnicopedaçoeacabeçatinharoladopara

umcanto.

O Sargento-general-comandante-chefe-subchefe das pernas de bode estava

ondesempreestivera,ameditar.

—Éhorrível!—disseapastorinha.—Ovelhoavôestáfeitoemcacoseaculpa

énossa!Nãoconsigosobreviveraisto!—Etorceuasmãozinhasminúsculas.

—Aindapode sergateado—disseo limpa-chaminés.—Podemuitobemser

gateado,desdequenãosejacommuitaforça!Seocolaremnascostaselhepuserem

umbomgatonanuca, ficaráoutravez tãobomcomonovoepoderá continuara

dizer-nosmuitacoisadesagradável!

— Achas que sim?— perguntou ela. E subiram outra vez para a mesa onde

tinhamestadoantes.

—Estásaver!Fomostãolonge!—disseolimpa-chaminés.—Bempodíamos

ter-nospoupadoatodosessesincómodos!

—Seconseguirmosaomenosgatearovelhoavô!—exclamouapastora.—Será

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caro?

Foi gateado. A família mandou-o colar nas costas, recebeu um bom gato no

pescoçoeficoutãobomqueparecianovo.Masacenarjánãopodia.

— Tornou-se bastante altivo, desde que se partiu em pedaços! — disse o

Sargento-general-comandante-chefe-subchefe das pernas de bode. — Não me

parece,contudo,quesejarazãoparasertãoterrível!Vouterapastorinhaounão?

O limpa-chaminés e a pastorinha olharam ternamente para o velho chinês.

Tinham receio de que pudesse acenar, mas ele não podia. Era-lhe desagradável

contaraumestranhoquetinhaumgatonanuca.Assimficouopardeporcelana

unido,abençoaramogatodoavôeamaram-seatésefazeremempedaços.

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OsSapatosVermelhos

Haviaumarapariguinhatãofinaetãograciosa.Comoerapobre,andavasempre

de pés descalços no verão e de inverno com grandes tamancos de pau. Os

pequeninospeitosdospésficavamtodosvermelhos,oqueerahorroroso.

Nomeiodaaldeiadecamponesesmoravaaidosamãedosapateiro.Sentou-sea

coser, tãobemquanto sabia, umparde sapatinhosdeuns restos velhosde roupa

vermelha, bastante toscos, mas feitos de boa vontade. Foram destinados à

rapariguinha.

Arapariguinhachamava-seKaren.

Foiprecisamentenodiaemqueamãefoiaenterrarqueelarecebeuossapatos

vermelhos,estreando-osnessedia.Nãoerampropriamentealgoausarnoluto,mas

nãotinhaoutroseassim,semmeias,caminhoucomelesatrásdopobrecaixãofeito

depalha.

Nessemomento passou uma carruagem grande e antiga.Nela ia sentada uma

grandedama,tambémdeidade,queviuarapariguinha.Tevepenadelaedisseao

padre:—Oiça,dê-mearapariguinha,quetratareibemdela!Karenjulgouquefoi

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tudoporcausadossapatosvermelhos,masasenhoradisse-lhequeeramhorrorosos

e queimou-os. Porém, vestiuKaren dos pés à cabeça.Teve de aprender a ler e a

cosereasgentescomentavamqueelaeramuitograciosa.

Masoespelhodizia-lhe:

—Ésmaisquegraciosa,éslinda!

Umavezarainhafezumaviagematravésdopaísetrouxeconsigoasuafilha.O

povocorreuparadefrontedopalácioeKarentambém.Aprincesinhaestavadepé,

numavaranda,comumfinovestidobranco,paraqueaadmirassem.Nãotinhanem

caudanemcoroadeouro,mascalçavabelossapatosdemarroquimvermelho.Eram

certamentebemmaisbonitosdoqueaquelesqueamãedosapateirocoseraparaa

Karenzinha.Nadanomundosepodiacompararverdadeiramenteàqueles sapatos

vermelhos!

Karen estava agora na idade de receber a sua confirmação de fé. Teve novos

vestidosenovossapatostambém.Oricosapateirodacidadetomouasmedidasdo

seupezinho.Eraconfortável a sua lojaeaíhaviagrandesarmáriosdevidro, com

lindossapatosebotaslustrosasládentro.Tudotinhaumaspetoencantador,masa

velha senhora, que não via bem, disso não tirou grande proveito. No meio dos

sapatos estava um par vermelho, tal e qual o que a princesa calçara.Como eram

bonitos!Osapateirodissequetinhamsidofeitosparaafilhadeumconde,masque

nãolheserviam.

—Édebompolimento!—disseavelhasenhora.

—Brilham!

— Sim, brilham! — respondeu Karen. Como lhe serviam, a velha senhora

comprou-lhos. Mas não sabia que eram vermelhos. Se soubesse, nunca teria

permitidoaKareniràconfirmaçãocomaquelessapatos.Maselafoi.

Toda a gente olhava para os seus pés e quando subiu da nave da igreja para a

entradadocoro,parecia-lhequeatémesmoasvelhasfigurasnassepulturas,aqueles

retratosdepastoresemulheresdepastorescomrígidasgolaselongasvestesnegras,

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fixavamosolhosnossapatosvermelhos.Sópensavanelesquandoopastorlhepôsa

mãosobreacabeçaefaloudosantobatismo,dopactocomDeusequeelairiaser

agora um ser cristão crescido. O órgão tocava solenemente, as belas vozes das

criançascantavameovelhochantrecantava,masKarenpensavasónosseussapatos

vermelhos.

Àtarde,avelhasenhorasoubeportodaagentequeossapatoseramvermelhos.

Paraela,issoerafeio.Nãoerampróprios.EKarendaípordiante,quandofosseà

igreja,deveriairsemprecomsapatospretos,mesmoquefossemvelhos.

No domingo seguinte foi a comunhão, e Karen olhou para os sapatos pretos,

olhou para os vermelhos… e voltou a olhar para os vermelhos. E calçou os

vermelhos.

Estava um belo tempo de Sol. Karen e a velha senhora foram por um atalho

poeirento,atravésdeumcampodetrigo.

Àportada igrejaencontrava-seumvelhosoldadocomumamuletaecomuma

estranhabarbacompridaqueeramaisruivaquebranca.Foraantescompletamente

ruiva.Elecurvou-seatéaochãoeperguntouàvelhadamasepodialimpar-lheos

sapatos.Karenestendeutambémoseupezinho.

—Olha! Que lindos sapatos de baile!— disse o soldado.— Agarre-os bem

quandodançar!—Ebateucomasmãosnassolas.

AvelhasenhoradeuaosoldadoummoedazinhaeentroucomKarennaigreja.

Toda a gente olhou para os sapatos vermelhos de Karen. Todas as imagens

olharamparaeles.QuandoKarenseajoelhouemfrentedoaltarepôsocálicede

oiro diante da boca, só pensou nos sapatos vermelhos. Era como se os sapatos

flutuassem dentro do cálice. Esqueceu-se de cantar o seu salmo e de recitar o

padre-nosso.

Toda a gente saiu da igreja e a senhora subiu para a sua carruagem. Karen

levantouopéparasubiratrásdela,quandoovelhosoldadoqueestavaporpertolhe

disse:

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—Olhaquelindossapatosdebaile!

E Karen não pôde resistir, teve de fazer alguns passos de dança e, quando

começou,puseram-seaspernasadançar.Eracomoseossapatostivessemtomadoo

podersobreelas.Dançouàvoltadaigreja.Nãopodiadeixardefazê-lo.Ococheiro

tevedecorreratrásdelae agarrá-la, levando-aparadentrodacarruagem,masos

pés,esses,continuavamadançar,dandocruelmentepontapésnaboavelhasenhora.

Porfimossapatossaltaramdospéseaspernasrepousaram.

Emcasa,colocaramossapatosnumarmário,masKarennãoresistiuetevedevê-

los.

Avelhasenhoracaiudoente.Diziamquenãoviveriamuito.Tinhadesertratada

evigiadaeparaissonenhumapessoahaviamaispróximadeladoqueKaren.Lána

cidade ia realizar-se um grande baile eKaren foi convidada.Olhou para a velha

senhora,quecertamentenão iriavivermuito.Olhouparaos sapatosvermelhose

pareceu-lhe que não havia qualquer pecado nisso.Calçou-os, bempodia fazê-lo.

Foiaobaileecomeçouadançar.

Mas, quando queria ir para a direita, os sapatos dançaram para a esquerda,

dançaram chão acima, chão abaixo, escadas abaixo, pela rua e para as portas da

cidade.Ossapatosfizeram-nadançaretevededançaratéaobosquesombrio.

EntãobrilhoualgoporcimadasárvoreseelajulgouqueeraaLua,poisparecia-

lhetervistoumrosto,maseraovelhosoldadocomabarbaruiva.Estavasentado,

acenouedisse-lhe:

—Olha!Quelindossapatosdebaile!

Ficou assustada e quis lançar fora os sapatos. Puxou com força até rasgar as

meias.Mas os sapatos agora eram parte dos seus pezinhos. E dançou e teve de

dançarporcamposeprados,àchuvaeaoSol,denoiteededia,masdenoiteera

maisterrível.

Dançou dentro do cemitério aberto, mas os mortos não dançaram, era bem

melhorparaelesrepousardoquedançar.Queriasentar-sesobreacampadopobre,

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onde a atanásia amarga crescia. Mas para ela não havia descanso nem repouso.

Quandodançavaemdireçãoàportaabertadaigreja,viuumanjocomlongasvestes

brancaseasasquelhechegavamdosombrosaochão.Orostoeraseveroegravee

nasmãosseguravaumaespada,largaebrilhante.

—Dançarás!—disseele.—Dançaráscomosteussapatosvermelhosatéficares

pálidaefria!Atéqueapeleseenruguecomoumamúmia!Dançarásdeportaem

porta e onde vivam crianças orgulhosas e vaidosas, baterás à porta, para que te

oiçametenhammedodeti!Dançarás,dançarás…!

—Misericórdia!—gritouKaren.Masnãoouviuoqueo anjo lhe respondeu,

poisossapatoslevaram-naparaocampo,peloportão,porcaminhoseatalhoseteve

semprededançar.

Umamanhã, passou a dançar por umaporta que conhecia bem.Lá de dentro

vinhaum somde salmos.Traziamumcaixãopara fora, cobertode flores.Soube

queavelhasenhoramorreraepareceu-lhequeestavaagoraabandonadaportodose

amaldiçoadapeloanjodeDeus.

Dançou e teve de dançar, dançar na noite escura. Os sapatos levaram-na por

sobreespinhosesilvas,rasgando-aatésangrar.Continuouadançarnacharnecaaté

uma casinha isolada.Era aí— sabia ela—quemoravao carrasco.Bateu comas

pontasdosdedosnavidraça,dizendo:

—Venhacáfora!Venhacáfora!Nãopossoentrarporqueestouadançar!

Eocarrascorespondeu-lhe:

—Sabesbemquemeusou?Cortoacabeçaaoshomensmauseafirmo-tequeo

meumachadoestábemafiado.

—Nãomecortesacabeça!—disseKaren.—Senão,nãopossoarrepender-me

domeupecado!Corta-meantesosmeuspéscomossapatosvermelhos!

Confessou-lhe o seu pecado e o carrasco cortou-lhe os pés com os sapatos

vermelhos,masossapatoscontinuaramadançarcomospezinhosládentrosobreos

campos,paraaflorestaprofunda.

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Ocarrascofez-lhepésdepauemuleta.Ensinou-lheosalmoqueospecadores

cantamsempre,eelabeijou-lheamãoqueguiaraomachado.Dalifoipelacharneca

fora.

—Sofribastanteporcausadossapatosvermelhos!—disse.—Vouàigrejapara

que possam ver-me!—E foi tão depressa quanto pôde,mas quando lá chegou,

dançavamossapatosvermelhosdiantedela.Ficouassustadaefugiu.

Todaasemanaestevepesarosaechoroumuitaslágrimaspesadas,equandoveio

odomingo,disse:

— Ora bem! Sofri e lutei bastante! Acredito que sou tão boa como muitos

daquelesquesesentamdecabeçalevantada,ládentrodaigreja!

Eassimseencorajou.

Masnãopassoudaruaquedavaparaaigreja.Quandoviuossapatosvermelhosa

dançarem diante dela, teve medo e fugiu, arrependendo-se verdadeiramente no

coraçãodoseupecado.

E dirigiu-se ao presbitério pedindo para aí prestar serviço. Prometeu ser

diligenteefazertudooquepudesse,Nãoqueriasalário.Sóqueriaterumtetopara

seabrigareestarcomgenteboa.Eamulherdopresbíterotevepenadelaedeu-lhe

trabalho. Foi diligente e cheia de pensamentos. Sentava-se sossegada a ouvir,

quando, à noite, o pastor lia em voz alta a Bíblia. Todos os pequenos da casa

gostavam dela, mas quando as meninas falavam de vestidos e de luxo e em ser

bonitascomoumarainha,abanavaacabeça.

Nodomingo seguinte foramtodosà igrejaeperguntaram-lhe senãoqueria ir

também. Mas ela olhou triste, com lágrimas nos olhos, para as muletas. Todos

foramouvirapalavradeDeus.

Elaficousozinhanoseuquartinho.Nãocabianelemaisdoqueacamaeuma

cadeiraeaí se sentoucomoseu livrode salmos.Equando,comdevoção,o lia,o

ventotrouxe-lheossonsdeórgãodaigreja.Ergueuorostobanhadoemlágrimase

disse:

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—Oh!MeuDeus,ajuda-me!

EntãobrilhouoSolluminosoe,mesmodiantedela,apareceuoanjodeDeusem

vestes brancas, que naquela noite vira à porta da igreja.Mas, em vez da espada

aguçada, trazia umbelo ramo verde cheio de rosas.Tocou comele o teto, e este

ergueu--semuitoalto.Ondetinhatocadobrilhouumaestreladeouro.Etocounas

paredese estas alargaram-se, e elaouviuoórgãoque soava.Viuas velhas figuras

dospastoresedasmulheresdospastores.Acongregaçãoestavasentadaemcadeiras,

cantando salmosdo livrode salmos.Aprópria igrejaveioaté àpobre raparigano

quartopequeninoeestreito.OuseriaquetinhasidoelaqueveioàIgreja?Estava

sentadanascadeirasdaspessoasdafamíliadopastorequandoestasterminaramo

salmoeolharamparacima,acenaram-lheedisseram:

—Fizestebememvir,Karen!

—Eraamisericórdia!—respondeuela.

Eoórgãosooueasvozesdascrianças,emcoro,soavamsuavesebelas!Aclara

luzdoSoljorravamuitoquenteatravésdajanelasobreacadeiradaigrejaemque

Karenestavasentada.OcoraçãoficoutãocheiodeluzdeSol,depazedealegria,

querebentou.

Aalmavoouna luzdoSolparaDeuseninguémhouveaíque lheperguntasse

pelossapatosvermelhos.

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ACasaAntiga

Numa rua havia uma casa antiga, muito antiga. Tinha quase trezentos anos,

comosepodialernavigamestra,ondeconstavaoanodasuaconstruçãojuntamente

com tulipas e hastes de lúpulo. Estavam aí também versos completos escritos à

forma antiga e por cima de cada janela, esculpida nas vigas, via-se uma cara que

pareciafazercarantonhas.Umandarsobressaíaumbombocadoparaforadooutro

eprecisamentesobotelhadohaviaumcanodechumbocomumacabeçadedragão.

Aáguadachuvadeviaescorrer-lhepelagoela,masescorriadabarriga,poisocano

tinhagrandesburacos.

Todasasoutrascasasdaruaeramtãonovasetãobonitas,comgrandesvidraçase

paredes lisas,que se viabemquenada tinhamaver coma casa antiga.Pensavam

seguramente: «Quanto tempovai ficar ali aquelamonstruosidade,para escândalo

destarua!Osvãosdasjanelassaemtantoparaforaqueninguémdasnossasjanelas

podeveroquesepassanaquelelado!Aescadaétãolargacomoadeumcasteloe

tãoaltacomoadeumatorrede igreja.Abalaustradadeferroparecemesmouma

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entradaparaumsepulcroantigo,poisatétembotõesdelatão.Éumavergonha!»

Mesmo em frente, na rua, havia também casas novas e bonitas, que pensavam

como as outras, mas à janela de uma delas estava sentado um rapazinho com as

maçãs do rosto frescas e rosadas, olhos claros e brilhantes, que sabia apreciar

verdadeiramenteacasaantiga,tantosobaluzdoSolcomoaoluar.Eseolhavapor

cima domuro, onde se sumira a cal, podia ver e descobrir aí todas asmais belas

imagens, exatamente como era o aspeto da rua com escadas, vãos de janelas e

empenas pontiagudas.Podia ver soldados com alabardas e goteiras que corriam à

volta como dragões e grifos…Era uma casa digna de se ver.Lá dentro vivia um

velho senhor, que vestia calções, tinhauma casaca comgrandes botões de latão e

umaperuca,quesepodiabemverqueeraverdadeira.Todasasmanhãsvinhater

comeleumhomemidosoquearrumavaacasaefaziaosrecados,foradisso,ovelho

doscalçõesestavacompletamentesónacasaantiga.Devezemquandovinhaatéà

janelaeolhavaparafora.Orapazinhoacenava-lheeovelhoacenava-lhetambém;

destemodoseconheceramesetornaramamigos.Sebemquenuncativessemfalado

umcomooutro,eramamigosnamesma.

Umdia,orapazinhoouviuospaisdizerem:

—Aquelevelhosenhortemmuitariqueza,masestáterrivelmentesó!

No domingo seguinte pegou em algo que embrulhou num pedaço de papel,

desceuaoportãoe,quandoohomemqueiaaosrecadospassou,pediu-lhe:

— Ouve! Queres levar isto ao velho senhor, da minha parte? Tenho dois

soldadosdechumbo,esteéumdeles.Podeficarcomele,poisseiqueestámuitosó.

Ovelhocriadomostrou-semuitocontente,fezumavéniae levouosoldadode

chumboparaacasaantiga.Depoisveiooconvite:seorapazinhonãoteriavontade

de ir até lá fazer uma visita ao velho senhor! Recebeu autorização dos pais,

atravessouaruaeentrounacasaantiga.

Osbotõesdelatãonocorrimãodaescadabrilhavammaisdoquenunca,crer-se-

ia que tinham sido polidos por causa da visita e era como se os trombeteiros

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esculpidos—poisnaportaestavamesculpidos trombeteirosdepé,emtulipas—

soprassemcomtodaaforça,comasbochechasinchadascomonunca.Sim,tocavam:

tataratá!Vemaíorapaz!Tataratá!—eabriu-seaporta.Todoocorredorestava

cheioderetratosantigos,cavaleiroscomarmadurasedamascomvestidosdeseda.

Asarmaduras tiniameosvestidosde sedaroçagavam!…Depoisveioaescadaque

subiaumbombocado edesciaumbocadinho…e estava-senumavaranda,que se

encontravanumestadomuito frágil, comgrandesburacose fendasextensasonde

ervas e plantas cresciamem todos eles e por toda a varanda.O chão e as paredes

tinhamtantaverduraquepareciaumjardim,emborafosseapenassóumavaranda.

Haviaaívasosdeflorescomcaraseorelhasdeburroenelesas florescresciamao

deus-dará.Umvasoestavacheiodecravosatéàborda,querdizer,defolhasverdes,

rebentoaoladoderebento,ebemclaramentediziaele:«Oaracariciou-me,oSol

beijou-me e prometeu-me uma florzinha para o domingo, uma florzinha para o

domingo.»

Depoisentrounumasalacujasparedesestavamcobertascompelesdeporcoque

tinhamfloresdeouroestampadas.

Odouradodesaparece

Apeledeporcopermanece

—disseramasparedes.

Nasalahaviacadeirõescomcostasmuitoaltas,muitotrabalhadasecombraços

deambososlados.

— Senta-te! Senta-te!— disseram eles.—Ui!Como range emmim! Agora

tenhotantoreumáticocomoovelhoguarda-louça!Reumáticonascostas,ui!

Orapazinhoentrounasalaquetinhajanelasalienteeondeovelhosenhorestava

sentado.

—Obrigadopelosoldadodechumbo,meuamiguinho!—agradeceu.—Epor

viresvisitar-me.

—Obrigado,obrigado—oumelhor—craque,craque—dizia-seemtodosos

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móveis. Estes eram tantos que estavam quase no caminho uns dos outros para

veremorapazinho.

Nomeiodaparedeestavasuspensoumquadrocomumabeladama,tãojoveme

de aspeto tão jovial, mas trajando ao uso dos velhos tempos, com cabeleiras

empoadas e vestidos caindo tesos.Não disse nem«obrigada» nem«craque»,mas

olhoucomosseusolhosmeigosparaorapaz,quelogoperguntouaovelho:

—Ondeaarranjaste?

—Numantiquário!—respondeu.—Hálámuitosretratos.Ninguémconhece

as pessoas retratadas ou se importa com elas, pois estão já todas enterradas,mas

noutrostemposconheci-aejáhámeioséculoqueestánooutromundo!

Porbaixodapinturaestavasuspenso,cobertoporumvidro,umramodeflores

secas.Tinhacertamentemeioséculo, tãovelhasas florespareciam.Opêndulodo

granderelógioandavaparaafrenteeparatráseosponteirosrodavametudonasala

setornavaaindamaisvelho,masnãoonotavam.

—Emcasa,dizem—continuouorapazinho—quetuestásterrivelmentesó.

—Oh!—disseoancião.—Asrecordaçõesdopassado,comtudooquepodem

trazerconsigo,vêmvisitar-meeagoravenstutambém!…Estoubemassim.

Depoistiroudaestanteumlivrodeestampas.Edesfilouumverdadeirocortejo;

osmaismaravilhososcoches,quejánãoseveemhojeemdia,soldadoscomovaletes

depauseartíficescombandeirasesvoaçando.Osalfaiatestraziamasuacomuma

tesoura,queerasegurapordoisleões,eossapateirosasua,massemsapatos,antes

comumaáguiaquetinhaduascabeças,poisossapateirosdevemtertudodemodoa

quesediga:éumpar…Ah!Sim!Aquiloéqueeraumlivrodeestampas!

Oanciãoentrounaoutradivisãopara irbuscardoces,maçãs enozes…nacasa

antigahaviaverdadeiraabundância.

—Nãoaguentoisto!—disseosoldadodechumbo,queestavadepé,emcimada

cómoda.—Aquiétãosolitárioetriste!Não!Quandosetevefamília,custaagora

acostumar-seaistoaqui!…Nãopossosuportá-lo!

Page 92: Contos de Andersen...se. Estava muito desolado por ter assim um aspeto tão feio e servir de escárnio para todo o pátio dos patos. Assim se passou no primeiro dia e depois tornou-se

—O dia é tão longo e a noite ainda mais longa!— continuou o soldado de

chumbo.—Nadaaquiécomoemtuacasa,ondeoteupaieatuamãefalavamtão

agradavelmente e onde tu e todos vós, doces crianças, fazíeis um tão bonito

alvoroço.Não!Comoovelhoestá isolado!Julgasquerecebebeijos,queháolhos

docesqueocontemplamouquetemárvoredeNatal?Outracoisanãotemsenãoo

enterro!…Nãoaguento!

—Nãodevesverascoisasassimtãotragicamente!—retorquiuorapazinho.—

Aquiparece-metudo tãobelo!Todasas recordaçõesdopassado,comtudooque

podemtrazerconsigo,nãovêmfazer-lhevisitas?

—Claroquevêm,masnãoasvejoenãoasconheço!—replicouo soldadode

chumbo.—Nãoaguentomais!

—Mastensdesuportá-lo!—respondeuorapazinho.

Oanciãovoltou,comprazenteirosemblanteecomdoces,maçãsenozescomum

belíssimoaspeto,peloqueorapazinhonãopensoumaisnosoldadodechumbo.

Feliz e satisfeito, regressou a casa. Passaram-se dias e passaram-se semanas.

Houveacenosparaacasaantigaehouveacenosdacasaantiga,atéqueorapazinho

lávoltoudenovo.

Ostrombeteirosdebochechasinchadastocaram:

—Tataratá!Éorapaz!Tataratá!

Asespadaseasarmadurasdosquadrostinirameosvestidosdesedaroçagaram,

aspelesdeporcofalarameasvelhascadeirastinhamreumáticonascostas—ui!Foi

exatamentecomodaprimeiravez,poisaícadadiaecadahoraeramiguais.

—Nãoaguento!—disseosoldadodechumbo.—Atéjáchoreichumbo!Aquié

tudotãotriste!Deixa-meantesirparaaguerraeperderosbraçoseaspernas!De

qualquermodoéumamudança.Nãoaguentomais!…Seiagoraoqueéteravisita

das recordações do passado, com tudo o que podem trazer! Recebi a visita das

minhas e, podes crer, não é nenhum prazer se vierem continuadamente.

Ultimamenteestivequaseparasaltardacómoda.Lembro-medevosveratodosvós

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láemcasatãodistintamente,comosenarealidadeestivésseisaqui.Eraumdomingo

de manhã, como tu bem sabes! Todos vós, crianças, estáveis diante da mesa

cantando os vossos salmos, como cantais todas as manhãs. Estáveis devotamente

comasmãosjuntaseopaieamãetambémestavamsolenes.Abriu-seentãoaporta

eatuairmãzinhaMaria,queaindanãotemdoisanosequesempresepõeadançar,

quando ouve música ou canto, seja o que for, apareceu… não devia ainda ter

entrado…elogocomeçouadançar,masnãoconseguiaacompanharoritmo,poisos

tons eram demasiado longos. Firmava-se primeiro numa perna, pondo a cabeça

completamenteparaafrente,edepoisnaoutra,comacabeçatambémparaafrente

mas,nemmesmoassim,oconseguia.Vóstodosestáveismuitosérios,emborafosse

bastantedifícilmanter-sesério,maseuriapordentro,porissocaídamesaefiquei

comumamossaqueaindatragocomigo.Naverdade,nãofoibonitodaminhaparte

rir.Mas tudo isso voltou a acontecer naminhamente, bem comoo que naquela

altura vivi.E essas são as recordações do passado, com tudo o que podem trazer

consigo!… Conta-me, ainda cantais aos domingos? Diz-me alguma coisa da

pequenaMaria!Ecomovaiomeucamarada,ooutrosoldadodechumbo!Ah!Ele

équeéverdadeiramentefeliz!Eujánãoconsigosuportaristo.

—Foste dado comopresente!—disse o rapazinho.—Tens de ficar.Não és

capazdecompreenderisso?

Entretanto o ancião voltou comumagaveta, ondehaviamuito para ver, tanto

«casasdegiz»como«caixinhasdebálsamo»,ouvelhascartasdejogar,tãograndese

tão douradas, como já não se veem hoje. Foram abertas mais gavetas e abriu-se

tambémo piano.Tinha uma paisagempintada no interior da tampa e estava tão

roucoquandoovelhotocouneleecantarolouumacanção!

—Cantava-a ela!—disseo ancião, acenandoparao retratoque comprarano

antiquárioeosolhosbrilharam-lhe.

— Quero ir para a guerra! Quero ir para a guerra! — gritou o soldado de

chumbotãoaltoquantopodia,lançando-seaomesmotempoparaochão.

E depois o que foi feito dele? O velho procurou-o, o rapazinho procurou-o.

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Desapareceraedesaparecidoficou.

—Heideencontrá-lo!—disseovelho,masnuncaoencontrou.Ochãotinha

buracose fendaspor todaaparte.Osoldadodechumbocaíraporumagretae lá

ficoucomonumasepulturaaberta.

Odiapassoueorapazinhovoltouparacasa.Passou-seumasemana,passaram-se

muitas semanas. Agora as janelas estavam completamente geladas. O rapazinho

tinha de ficar sentado, bafejando nelas para conseguir um orifício por onde

espreitar a casa antiga. Havia neve em todos os ornamentos e inscrições,

amontoava-senaescada,comosenãohouvesseninguémemcasae,realmente,não

havianinguémnacasaantiga.Naverdade,ovelhosenhormorrera.

Ànoite,parouumacarruagemdiantedacasa,eparaelaotrouxeramnocaixão,

poisiaserenterradonasuaterranocampo.Paraláolevavamagora,masninguémo

acompanhava,porquetodososamigosestavamjámortos.Orapazinhomandouum

beijocomapontadosdedosquandoocaixãopartiu.

Alguns dias depois fez-se o leilão do recheio da casa e o rapazinho viu da sua

janelaoquese levava:osvelhoscavaleiroseasvelhasdamas,osvasosdefloresde

grandesorelhas,asvelhascadeiraseosvelhosarmários.Umascoisasiamparaaqui,

outras para ali. O retrato voltou para o antiquário, onde ficou pendurado para

sempre, pois ninguém conhecia aquela dama e ninguém se interessou pelo velho

quadro.

Naprimaveradeitou-seacasaabaixo,poiseraumamonstruosidade,diziamas

pessoas.Podiaver-sedaruadiretamenteparadentrodasalaondeestavamaspeles

de porco, agora golpeadas e rasgadas. A verdura da varanda pendia enredada nas

tábuas,ameaçandocair…Eassimfoicompletamentearrasada.

—Foiumaboacoisa!—disseramascasaspróximas.

Construiu-seumanovaebelacasacomgrandesjanelaseparedeslisasebrancas.

Nasua frente,ondeestiveraa casaantiga,plantou-seum jardinzinhoeporcima

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dosmurosvizinhoscresceramvideirasbravas.Diantedo jardimfoicolocadauma

grande grade de ferro, com um portão, também de ferro, que dava um aspeto

grandioso ao jardim, e as pessoas paravam e espreitavampara dentro.Os pardais

pousavam às dúzias nas videiras, palravam todos aomesmo tempo omelhor que

sabiam,masnãoerasobreacasaantiga,poisdelanãopodiamlembrar-se,jáhaviam

passadotantosanos…

Tantos anosqueo rapazinho crescera até tornar-seumhomemperfeito.Sim!

Umhomemperfeitoediligentequemuitaalegriaderaaos seuspais.Casara-see

foravivercomasuamulherzinhaparaacasanovacomoseujardimemfrente.Eali

estava ao seu lado enquanto ela plantava uma flor do campo que achara muito

bonita.Plantava-acomamãopequeninaebatiaaterracomosdedos.

—Ai!Querido!Quefoiisto?

Tinha-sepicado.Algopontiagudoapareceraemcimadaterramole.

Era…oraimaginai!

Era o soldadode chumboperdidona casa do ancião e que rolara e andara aos

tombosentrevigasecascalho,paraporfimjazermuitosanosdentrodaterra.

A jovemesposa limpouo soldadodechumbo,primeirocomuma folhaverdee

depoiscomoseufinolençodealgibeira,quetãobemcheirava!Paraosoldadode

chumbofoicomosedespertassedeumtorpor.

—Deixa-mever!—disseomarido,sorrindoeabanandoacabeça.—Sim,não

pode ser ele,mas faz-me lembrar uma história comum soldado de chumbo que

tive,quandoerarapazinho.

Depois contou à mulher a história da casa antiga, do ancião e do soldado de

chumbo que lhe mandou, pois estava muito só. Contou-a exatamente como

aconteceu.Ajovemesposaemocionou-setantoquelhevieramaslágrimasaosolhos

aopensarnacasaantigaenoancião.

—Podepoissucederquesejaomesmosoldadodechumbo!—disseela.—Vou

guardá-lo e lembrar-me de tudo o que me contaste, mas tens de mostrar-me a

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sepulturadovelhosenhor.

—Sim,masnãoseiondeestá—declarouele—,eninguémsabe!Todososseus

amigostinhammorrido,ninguémcuidoudissoeeueraaindaumrapazinho!

—Comodeveter-sesentidoterrivelmentesó!—retorquiuela.

—Terrivelmentesó!—confirmouosoldadodechumbo.—Mas,quandonão

seéesquecido,émuitobelo!

—Belo!—gritoualgomuitoperto,masninguémsenãoosoldadodechumbo

viuqueeraumpedaçodapeledeporco.Todoodouradodesaparecera,pareciaterra

húmida,masmantinhaumaopinião.Emantendo-adizia:

Odouradodesaparece

Masapeledeporcopermanece.

Nisso,porém,nãoacreditavaosoldadodechumbo.107

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OAbeto

Dentro do bosque erguia-se um bonito abeto. Tinha um bom lugar, podia

apanharSol,haviaaíbastanteareàsuavoltacresciammuitoscamaradasmaiores,

tanto abetos como pinheiros-bravos.Mas o pequeno abeto tinha tanta pressa de

crescer!NãopensavanoSolquenteenoarfresco,nãoprestavaatençãoaosfilhos

doscamponesesquepassavama tagarelarquandoandavamaapanharmorangose

framboesas. Muitas vezes vinham com uma vasilha cheia ou haviam enfiado

morangosempalhas,sentavam-sejuntodapequenaárvoreediziam:

—Oh!Comoétãobonitaassimpequena!—Issonãogostavanadaaárvorede

ouvir.

Umanodepoishaviaumtroncomaiorenoanoaseguirmaiorainda,poisnum

abetopode-sesemprever,pelosmuitosnósquetem,quantosanoscresceu.

— Oh! Se fosse assim uma árvore grande como as outras! — suspirou a

arvorezinha.—Então podia estender os ramos àminha volta e na copa ver até

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longenovastomundo!Asavesconstruiriamninhosentreosmeusramosequando

fizesseventopodiainclinaracabeçaelegantemente,comoasoutrasali!

NãosentianenhumprazernaluzdoSol,nemnasavesounasnuvensrubrasque

demanhãeànoitenavegavamporcimadela.

Seerainvernoehavianeveàvolta,debrancobrilhante,vinhamuitasvezesuma

lebre saltitando e punha-se precisamente em cima da arvorezinha…Oh!Era tão

afrontoso!…Maspassaramdoisinvernosenoterceiroeraaárvoretãograndequea

lebretinhadepassaràsuavolta.«Oh!Crescer,tornar-segrandeevelho,éaúnica

coisabelanestemundo»,pensavaaárvore.

Nooutonovinhamsempreos lenhadoresecaíamalgumasdasárvoresmaiores.

Isso acontecia todos os anos, e o jovem abeto, que estava agora perfeitamente

crescido, tremia, pois as grandes e belas árvores tombavam rangendo e com

estrondoemterra.Osramoseramcortados,ficavamcompletamentenuas,longase

magras.Quasenãosereconheciam.Eramentãocarregadasemcarroçaseoscavalos

levavam-nasparaforadobosque.

Paraondeiriam?Quefariamdelas?

Na primavera, quando chegavam as andorinhas e as cegonhas, a árvore

perguntava-lhes:

—Paraondeiam?Qualeraoseudestino?

As andorinhas não sabiam nada, mas as cegonhas quedaram-se pensativas,

acenaramcomacabeçaedisseram:

—Sim, creioque sim!Encontreimuitosbarcosnovos,quandovoeidoEgito.

Nos navios havia belos mastros. Atrevo-me a dizer que eram elas, cheiravam a

abeto.Dou-vososmeusparabéns,mantinham-sedireitas,direitinhas!

—Oh!Seeufossetambémbastantegrandeparaflutuarnomar!Comoéesse

marecomqueseparece?

— Bem, é tão complicado de explicar! — disseram as cegonhas e foram-se

embora.—Alegra-tecomatuajuventude!—aconselhavamosraiosdeSol.

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—Alegra-tecomoteufrescocrescer,comavidajovemquetensemti!

Oventobeijavaaárvoreeoorvalhochoravalágrimassobreela,masoabetonão

osentendia.

QuandochegouotempodoNatal,foramabatidasárvoresnovas,detenraidade

quemuitasvezesnãoerammaioresounãotinhammaisidadedoqueaqueleabeto,

quenãotinhadescanso,equequeriasempreirparalonge.Essasárvoresjovens,que

eram as mais bonitas de todas, ficavam sempre com todos os seus ramos, eram

postasemcarroçaseoscavaloslevavam-nasparaforadobosque.

—Paraonde irãoelas?—perguntavaoabeto.—Nãosãomaioresdoqueeu,

haviamesmoumaqueeramuitomaispequena.Porqueficamcomtodososramos?

Paraondeaslevam?

—Nóssabemos!Nóssabemos!—chilreavamospardais.—Espreitámosláem

baixonacidadeparadentrodasjanelas!Sabemosparaondeaslevam!Oh!Vãopara

omaiorbrilhoeglóriaquesepodeimaginar!Espreitámosparadentrodasjanelase

vimosqueficamplantadasnomeiodasalaaquecidaesãoenfeitadascomascoisas

maisbelas,maçãsdouradas,bolosdemel,brinquedosecentenasdevelas!

—Edepois?—perguntouoabeto,abanandocomânsiatodososseusramos.—

Edepois?Oquesucede?

—Bem,nãovimosmais!Masoquevimoseramaravilhoso!

—Vireiaseguiressebrilhantecaminho?—perguntouaárvorecomjúbilo.—É

bemmelhordoqueandarnomar!Comosofrocomesteanseio!SejáfosseNatal!

Agoraestoualtaecrescidacomoasoutrasqueforamlevadasdaquinoanopassado!

…Oh!Estivesseeujánacarroça!Estivesseeunasalaaquecidacomtodoessebrilho

e glória! E depois…? Bem, depois terão de vir coisas aindamelhores, aindamais

belas, senão para que me enfeitariam assim! Deve acontecer algo ainda mais

grandioso,aindamaisesplendoroso…Masoquê?Oh!Sofro!Anseio!Nãoseioque

sepassacomigo!

—Alegra-tecomigo!—aconselharamoarea luzdoSol.—Alegra-tecoma

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tuafrescajuventudecáfora,aoarlivre!

Masnãosealegravanada.Cresciaecrescia,invernoeverãomantendo-severde.

Estavaverde-escura.Aspessoasqueaviamdiziam:

—Éumalindaárvore!

AtéquepeloNatalfoiaprimeiraaserabatida.Omachadocortoufundoatravés

da seiva, a árvore caiu com um gemido em terra. Sentia uma dor e um

desfalecimento,quenãotraziamnenhumafelicidade.Sentiapenaemseparar-seda

casa, do lugar onde tinha rebentado. Sabia bem que nunca mais veria os velhos

camaradasqueridos,ospequenosarbustoseasfloresàsuavolta,sim,talveznemos

pássaros.Aviagemtambémnãofoinadaagradável.

Aárvorevoltoua si,quandonopátio,demisturacomasoutrasárvores,ouviu

umhomemdizer:

—Aquelaaliébonita!Estaserve-nos!

Então vieramdois criados emproados e levaramo abetoparaumbelo salão.À

volta, nas paredes, suspendiam-se retratos e junto ao fogão grande de azulejos

estavam grandes vasos chineses com leões nas tampas.Havia cadeiras de baloiço,

sofás forrados de seda, grandes mesas cobertas com livros de estampas e com

brinquedos que tinham custado cem vezes cem táleres— pelomenos foi o que

disseram as crianças. O abeto foi colocado de pé numa barrica grande, cheia de

areia,masninguémdiriaqueeraumabarrica,poisforarevestidatodaàvoltacom

panoverdeeestavaemcimadeumtapetegrandedecoresvariegadas.Oh!Como

tremiaaárvore!Queiriaacontecer?Criadosemoçascomeçaramaenfeitá-la.Nuns

ramos penduraram redes pequenas de papel colorido. Cada rede estava cheia de

doces.Tambémtinhamaçãsenozesdouradasquesesuspendiam,comosetivessem

crescido aí, emais de uma centena de velinhas vermelhas, azuis e brancas foram

fixadas nos ramos.Bonecos que pareciam vivos como seres humanos— a árvore

nuncaantesvirataiscoisas—voavamnomeiodafolhagemeporcimadetudo,no

topo,foicolocadaumaestrelagrandedeouropel.Erabelo,maravilhosamentebelo!

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—Estanoite—disseramtodos—,estanoitevaibrilhar.

«Oh!»,pensavaaárvore,«tomaraque seja jánoite!Tomaraqueasvelas sejam

acesas!Equeiráacontecer!Virãoasárvoresdobosquever-me?Voarãoospardais

juntodasjanelas?Crescereieuaqui,assimornamentada,invernoeverão?»

Sim, sabia bem, mas tinha verdadeiramente dores na casca de pura ânsia e as

doresnacascasãotãoterríveisparaumaárvorecomoasdoresdecabeçasãopara

nós.

Acenderam-se as velas.Que brilho!Que esplendor!A árvore tremia tanto em

todososramos,queumadasvelaspegoufogoàssuasagulhas.Doíarealmente.

—Deusnosacuda!—gritaramasmoças,queapagaramofogoatodaapressa.

Entãoaárvorenãoousoutremermais.Oh!Eraumhorror!Tinhatantomedo

deperderalgodasuapompa.Estavacompletamentedesorientadacomtodooseu

brilho…eentãoabriram-seambasasportasdedoisbatenteseumbandodecrianças

entrou de repelão, como se quisessem deitar a árvore abaixo.Os adultos vinham

discretamente atrás.Ospequenos ficaramcompletamente silenciosos,mas apenas

por um momento. Depois manifestaram a sua alegria de forma retumbante.

Dançaramemvoltadaárvoreecolherampresenteatrásdepresente.

«Que estão a fazer?», pensou a árvore. «Que vai acontecer?»As velas arderam

inteiramente até aos ramose apagaram-se.Entãoas crianças tiveramautorização

paradespojaraárvore.Oh!Assaltaram-nadetalmodoqueosramosestalaram.Se

nãoestivessepresacomapontaeaestreladeouroaoteto,teriacaído.

As crianças dançaram à volta com os seusmaravilhosos brinquedos.Ninguém

olhava agora para a árvore senão a velha criada dos meninos, que começou a

observá-laporentreosramos,massóparaversetinhaficadoesquecidoalgumfigo

oualgumamaçã.

— Uma história! Uma história! — gritaram as crianças, puxando um

homenzinhogordopara opéda árvore,que se sentoumesmoporbaixodela.—

Pois ficamos assimnomeio do verde—disse ele.—E a árvore pode beneficiar

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extraordinariamenteseouvirtambém!Massócontoumahistória.Quereisouvira

do«Ivede-Avede»ouado«BolaQueRebola»,quecaiupelasescadasabaixomas

quechegouaotronoecasoucomaprincesa?

—«Ivede-Avede»—gritaramuns—,«BolaQueRebola»—gritaramoutros.

Eraumabarulheiraeumagritaria,sóoabetosemantinhacaladoepensava:«Devo

fazercomoeles,ounãofazernada?»Tinha-osacompanhadoefeitooquedevia.

Ohomemcontouahistóriado«BolaQueRebola»,quecaiupelasescadasabaixo

masquechegouaotronoecasoucomaprincesa.Eascriançasbaterampalmase

gritaram:— Conta! Conta!—Queriam também ouvir «Ivede-Avede», mas só

tiveramado«BolaQueRebola».Oabetoestava sossegadoepensativo,nuncaos

pássarosláforanobosquehaviamcontadocoisasdestegénero.«BolaQueRebola»

caiupelas escadas abaixomas casoucomaprincesa!Sim, sim, assimsepassamas

coisas no mundo!, pensou o abeto, acreditando que era verdade, pois fora um

senhor tãogentilqueo contara. «Sim!Sim!Quemsabe!Talvez eu tambémcaia

pelasescadasabaixoevenhaacasarcomumaprincesa!»Ealegrou-secomaideia

de,nodiaseguinte,serenfeitadocomvelasebrinquedos,ouroefrutas.

«Amanhãnãovoutremer!»,pensou,«querosimplesmentetodoomeuesplendor.

Amanhãvououviroutravezahistóriado“BolaQueRebola”etalvezado“lvede-

Avede”.»Aárvoreficousossegadaepensativatodaanoite.

Demanhãvieramocriadoeacriada.

«Agoravairecomeçarapompa!»,pensouaárvore,masarrastaram-naparafora

dasala,pelasescadasacima,atéaosótão,paraumcantoescuroondenuncaentrava

aluzdoSol,edeixaram-naaí.«Quesignificaisto?»,«Quevoufazeraqui?Quevou

poderouviraqui?»Encostou-seàparedeeficouapensar,apensar…Etinhatempo

suficienteparaisso,poispassaram-sediasenoites.Ninguémialáacimaequando

finalmenteapareceualguém, foiparapôrumascaixasgrandesnocanto.Aárvore

ficoucompletamenteescondida.Pensar-se-iaqueforatotalmenteesquecida.

«Agoraéinvernoláfora!»,pensouaárvore.«Aterraestáduraecobertadeneve,

os homens não me podem plantar. Por isso tenho de ficar aqui abrigada até à

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primavera!É uma coisa bem pensada!Como realmente os homens são bons! Só

queriaqueaquinãofossetãoescuroetãoterrivelmente isolado…Nemaomenos

uma lebrezinha!…Era tãobom lá fora,nobosque,quandohavianeve e as lebres

saltitavam,sim,mesmoquandosaltavamporcimademim,doque,nessaaltura,não

gostavanada.Aquiemcimaestá-seterrivelmentesó!»

—Ih!Ih!—disseumratinhonomesmomomento,correndoparaasuafrentee

veiooutrotambém.Cheiraramoabetoemeteram-seporentreosseusramos.

—Fazumfrio terrível!—disseramos ratinhos.—Éumabênçãoestaraqui!

Nãoéverdade,velhoabeto?

—Nãosouvelhonenhum—respondeuoabeto.—Hámuitosquesãomuito

maisvelhosdoqueeu.

— Donde vens? — perguntaram os ratos. — E que sabes? — Eram

terrivelmentecuriosos.—Conta-nosalgodolugarmaisbelodaterra!Estivestelá?

Estivestenadespensa,ondeestãoosqueijosnasprateleirasesuspensosospresuntos

doteto,ondesedançaporcimadasvelasdeseboeseentramagroesesaigordo?

—Issonãoconheço!—disseaárvore.—Masobosqueconheço.Éláquebrilha

oSolecantamospássaros!—Depoiscontoutodaasuajuventude,eosratinhos,

quenuncatinhamouvidotaiscoisas,escutaram-noatentamenteedisseram:

—Realmente,comovistetanto!Comofostefeliz!

—Sim!—disseoabeto,pensandonoqueacabaradecontar.—Sim,foram,no

fundo,temposmuitodivertidos!—AseguircontousobreanoitedeNatal,quando

foienfeitadocombolosevelas.

—Oh!—disseramosratinhos.—Comofostefeliz,velhoabeto.

—Nãosounenhumvelho!—respondeuaárvore.—Foisónesteinvernoque

vimdobosque!Estounaminhamelhoridade,apenaspareinomeucrescimento.

—Como falas bem!— disseram os ratinhos, e na noite seguinte vieram com

quatrooutrosratinhosquequeriamouviraárvorecontar,equantomaiscontava,

maisdistintamenteselembravadetudoemaislheparecia:«Erampoistemposbem

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divertidos!Maspodemviroutravez,podemvir!O“BolaQueRebola”caiupelas

escadasabaixoecasoucomaprincesa.Talvezeutambémvenhaacasarcomuma

princesa.»—Eoabetopensouentãonumalindabetulazinhaquecrescialáforano

bosque.Eraparaoabetoumaprincesaverdadeiramentelinda.

—Queméo«BolaQueRebola?»—perguntaramosratinhos.Entãooabeto

contou toda a história, lembrava-se de cada uma das palavras. E os ratinhos

estiveramquase a saltarparao topoda árvoredepura alegria.Nanoite seguinte

vierammuitosoutrosratose,nodomingo,duasratazanas.Masestasdisseramquea

histórianãoeradivertida,e issoentristeceuosratinhos,poisagoratambémnãoa

achavamtãobonita.

—Sósabeessahistória?—perguntaramasratazanas.

—Só esta!— respondeu a árvore.—Ouvi-a naminha noitemais feliz,mas

entãonãosabiaquãofelizera.

—É uma história extremamentemá!Não conhece nenhuma com presunto e

velasdesebo?Nenhumahistóriadadespensa?

—Não—disseaárvore.

—Bem,entãomuitoobrigada!—responderamasratazanas,queforamparaos

seusburacos.Osratinhosnãoaparecerammaiseaárvoremurmurou:—Era,na

verdade,bemagradável,quandoosratinhosespertinhossesentavamàminhavolta

eouviamoqueeucontava!Agoratambémissopassou!…maslembrar-me-eicom

prazer,quandoforlevadadaqui.

—Masquandoserá?…—Bem,foinumamanhã,bemcedo,emqueveiogente

que revolveu o sótão. As caixas foram removidas e a árvore arrastada para fora.

Lançaram-naumpoucobruscamenteparaochão,mas logoumcriadoaarrastou

paraaescada,ondebrilhavaaluzdodia.

«Agoracomeçadenovoavida!»,pensouaárvore.Sentiuoarfresco,osprimeiros

raiosdeSol…estavacáforanopátio.Tudosepassoutãodepressaqueaárvorese

esqueceu de olhar simplesmente para si porquemuito havia a ver à sua volta.O

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pátio dava para um jardim e aí tudo floria. As rosas suspendiam-se frescas e

odorosas sobre a pequena balaustrada, as tílias estavam em flor e os pardais

esvoaçavamàvoltaediziam:

—Quirre-virre-vit, chegou o meu homem!—Mas não era ao abeto que se

referiam.

—Agoravouviver!—disse,alegrando-seeestendendoosramosbemparafora.

Ai! Estavam todos murchos e amarelos! Era num canto entre ervas daninhas e

ortigasque jazia.Aestreladepapeldouradoestavaaindanotopoebrilhavaà luz

claradoSol.

Nopátiobrincavam,alegres,algumasdascriançasquenoNatalhaviamdançado

à volta da árvore e que tão contentes ficaram com ela. Uma das mais pequenas

correuaarrancar-lheaestreladourada.

—Vejam,oqueaindaestánavelhaefeiaárvoredoNatal!—disseela,pisando

osramos,queestalaramsobassuasbotas.

Eaárvoreolhouparatodaaquelapompafloridaefrescuranojardim,olhoupara

siprópriaedesejouterficadonocantoescurodosótão.Pensounafrescajuventude

nobosque,nabelanoitedeNatalenosratinhostãoalegresquetinhamouvidoa

históriado«BolaQueRebola».

—Passado!Passado!—disseapobreárvore.—Semetivessealegradoquando

podia!Passado!Passado!

Porfim,vieramoscriadosecortaramaárvoreempequenospedaços.Ficouali

emmonte.Ardialindamentesobagrandevasilhaparafazercervejaquelhetinham

posto em cima, e suspirava profundamente.Cada suspiro era como um pequeno

disparo.Porisso,ascrianças,quebrincavam,correramepuseram-sediantedofogo

aolharparaeleeagritar:pif,paf!Masacadaestalo,queeraumprofundosuspiro,

pensava a árvore num dia de verão no bosque, numa noite de inverno, quando

brilhavamasestrelas.PensavananoitedeNataleno«BolaQueRebola»,aúnica

históriaqueouviraesabiacontar…eassimardeuatéaofim.

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Osrapazesbrincavamnopátioeomaispequenotinhanopeitoaestreladourada

queaárvoreexibirana suanoitemais feliz.Agoraestaera jápassadoeahistória

também.Passado,passado,sãotodasashistórias!

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AFamíliaFeliz

Amaiorfolhaverdequeexisteaquinopaísé,certamente,afolhadabardana.Se

alguémpequeninoapuserdiantedabarriguinha,écomoumaventalperfeitoe,sea

pusersobreacabeça,emtempodechuva,équasetãoboacomoumguarda-chuva,

porqueétremendamentegrande.Umabardananuncacrescesó.Não!Ondenasce

uma,nascemmuitas,sãodeumagrandebelezaetodaessabelezaservedecomida

aoscaracóis.

Os grandes caracóis brancos — que as pessoas finas, em tempos antigos,

mandavam preparar de fricassé — comiam as folhas e diziam «hum!, sabe tão

bem!», pois acreditavam que as bardanas tinham um gosto delicioso porque eles

viviamnassuasfolhasefoiparaserasuacomidaqueestastinhamsidosemeadas.

Havia então um velho solar onde já hámuito não se comiam caracóis porque

estavam completamente extintos. Mas as bardanas, essas, não estavam extintas,

Cresciamecresciamsobretodososcaminhosecanteiros.Jánadapodiasustê-las.

Era um imenso campo de bardanas. Aqui e acolá havia uma macieira e uma

ameixieirae,senãofossemelas,nuncasepensariaquehaviaaliumpomar.Tudo

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erabardanasealiviviamosdoisúltimosevelhíssimoscaracóis.

Nemelesprópriossabiamquãovelhoseram,maslembravam-sedequehaviam

sidomuitos,queeramdeumafamíliaprovindadeumpaísestrangeiroeque,para

eleseparaosseus,foraplantadotodoocampodebardanas.Nuncatinhamestado

foradele,massabiamquehaviaalgonomundoquesechamavasolar.Aí,depoisde

cozinhadoatéficarpretoera-sepostoemtravessasdeprata,masoqueaconteciaa

seguirnãosesabia.Nãoeramcapazesde imaginarcomoseriaser-secozinhadoe

posto em bandeja de prata, mas devia ser algo belo e especialmente distinto.

Nenhum escaravelho, sapo ouminhoca a quem tinham perguntado, podia dar a

resposta.Nuncanenhumdelesforacozinhadooupostoemtravessasdeprata.

Os velhos caracóis brancos eram os mais distintos do mundo. O campo de

bardanas estava ali por amor a eles e o solar existia para que pudessem ser

cozinhadosepostosemtravessasdeprata.Eradissoqueestavamconvencidos.

Viviam muito sós, mas felizes. Como não tinham filhos, adotaram um

caracolzinho vulgar que educaram como se fosse o seu próprio filho. Porém, o

pequenonãocrescia,poiseraumcaracolvulgar.Aosvelhos,especialmenteàmãe-

caracol,parecia-lhequeelesetornavamaiorepediuaopai,quejánãotinhaolhos

queopudessemver,quepelomenosapalpasseacasinhadofilho.Foioquefeze

achouqueamãetinharazão.

Numdiacaiuumagrandechuvada.

—Ouvecomotamborila…rumpumpum,rumpumpum,nasbardanas—disseo

pai-caracol.

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—Tambémestãoacairpingos!—afirmouamãe-caracol.—Atéescorrempelo

caule!Vaisver,vaificartudoencharcado!Estoucontentequetenhamosasnossas

boascasasequeopequenotambémtenhaasua!Emboaverdade,fez-semaispor

nósdoqueportodososoutrosserescriados.Podeassimver-secomosomosdealta

estirpe nomundo!Temos casa desde o nascimento e os campos de bardanas são

semeadosporamordenós!Gostariadesaberatéondeestemundoseestendeeo

queháparaalémdele!

—Nãohánadaparaalém!—proferiuopai-caracol.—Melhordoqueonosso

nãopodesernenhumoutrolugar,lánadaháqueeudeseje!

— Sim — concordou a mãe —, mas eu gostava muito de ir ao solar, ser

cozinhadaepostanumatravessadeprata.Todososnossosantepassadoso foram.

Acreditaqueháalgodedistintonisso!

— O solar está possivelmente desmoronado — disse o pai-caracol — ou as

bardanascresceramporcimadele,demodoqueossereshumanosnãopodemsair

de lá. De resto, não há pressa, mas tu andas sempre numa correria terrível e o

pequenocomeçaafazeromesmo.Nãosubiuocauleatéláacimaemtrêsdias?Até

mesintomaldacabeçaquandoovejolánoalto!

—Não deves ralhar-lhe— aconselhou amãe-caracol.—Ele arrasta-se com

tanta compostura… temos tanto prazer nele e para outra coisa não vivemos nós,

velhotes!Mas já pensaste como vamos arranjar-lhe uma esposa?Não crês que lá

paralonge,nocampodasbardanas,hajaalguémdanossaraça?—Caracóispretos

creioquehábastantes—disseovelho.

—Caracóis pretos sem casa,mas são tão vulgares e têm tanta presunção!De

restopodemosencarregardissoasformigas.Passamavidaacorrerparatráseparaa

frente,comosetivessemsemprequefazer.Sabem,comcerteza,deumaboaesposa

paraonossocaracolzinho!

—Sei,deverdade,damaisbonitadetodas!—disseumadasformigas.—Mas

receioquenãodêresultadoporqueérainha.

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—Equetemisso!—redarguiramosvelhos.

—Ela temcasa?—Temumpalácio!—responderamas formigas.—Omais

belopaláciodeformigacomsetecentasentradas.

— Obrigada — disse a mãe-caracol. — O nosso filho não vai entrar num

formigueiro! Se não sabemde coisamelhor, vamos pedir aosmosquitos brancos.

Voamà roda à chuva e aoSol, conhecemo campode bardanas por dentro e por

fora.

—Temosumaesposaparaele!—informaramosmosquitos.Aunscempassos

de homem há, num groselheiro, uma menina-caracol com casa, que está

completamentesóecomidadeparasecasar.

—Sim,elaquevenhatercomele!—disseramosvelhos.—Eletemumcampo

debardanas,elatemsóumgroselheiro!

Eassimmandarambuscaramenina-caracol.Levouoitodias a chegar,mas foi

muitoapreciada,poispodiaver-sequeeraderaça.

Realizaram-seentãoasbodas.Seispirilampos luziramomelhorquepuderam;

para além disso, tudo se passou calmamente, pois os caracóis velhos não podem

suportaralvoroçosemanifestaçõesruidosas.Amãe-caracol,contudo,fezumbelo

discurso.Opai, comovido,não conseguiu.Ambosderamaosnoivos, emherança,

todo o campo de bardanas e disseram o que sempre tinham dito: os campos de

bardanaseramomelhordomundoeseelesvivessemhonestaehonradamenteese

semultiplicassem,umdiatodoshaveriamdeentrarnosolarparaseremcozinhados

atéficarempretoseserempostosemtravessasdeprata.

Edepoisdodiscursofeito,osvelhosarrastaram-separadentrodassuascasase

nuncamaissaíram;ficaramadormir.Ojovemcasaldecaracóisreinounocampode

bardanas e teve uma grande prole, mas nunca foram cozinhados e nunca foram

postosemtravessasdeprata,peloqueconcluíramqueosolarsehaviadesmoronado

equetodosossereshumanosestavamextintos.Comoninguémlhesdizianadaem

contrário,eraessa,portanto,averdade.

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Eachuvabatianasfolhasdebardanaparafazermúsicadetamboresporamor

deles, eoSolbrilhavaparadarcoloridoaocampodebardanasporamoraeles, e

erammuitofelizes,etodaafamíliaerafeliz.

Porqueoera.

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AVestimentaNovadoImperador

Hámuitos anos, viviaum imperadorquegostava tantode vestimentasnovas e

bonitas,quegastoutodooseudinheiroavestir-sebem.Nãosepreocupavacomos

seussoldadosnemcomcomédiasouempasseardecarruagempelobosque,apenas

queriaexibirassuasvestimentasnovas.Tinhaumacasacaparacadahoradodia,e

talcomosecostumadizerqueumreiestáemconselho,nestecasodizia-se:—O

imperadorestánoguarda-roupa.

Nagrandecidadeondevivia,otempodecorriamuitoagradável.Estavamsempre

a chegar forasteiros. Mas um dia vieram dois aldrabões. Disseram-se tecelões e

afirmaramquesabiamteceramaisbonitafazendaquesepodiaimaginar.Nãosóas

cores e o padrão eram invulgarmente bonitos,mas também as vestimentas feitas

com essa fazenda. Tinham a maravilhosa propriedade de ficar invisíveis para

qualquer pessoa que não fosse boa no seu ofício ou então inadmissivelmente

estúpida.

«Seria uma vestimenta bem bonita para vestir», pensou o imperador. «Podia

depoisvirasaberquepessoasnomeuimpérionãoprestamnoofícioquetêm.Podia

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distinguir os espertos dos estúpidos! Sim, a fazenda tem de ser tecida

imediatamenteparamim!»Epôsnasmãosdosdoisaldrabõesmuitodinheiropara

quecomeçassemotrabalho.

Montaram dois teares, como se trabalhassem,mas não tinham amínima coisa

paratecer.Semhesitação,pediramasedamaisfinaeoouromaisbonito.Meteram-

nosnosseussacosetrabalharamcomostearesvazios,atéaomeiodanoite.

«Gostava agorade saberoque sepassa coma fazenda!»,pensouo imperador,

mas, no fundo, estava bastante embaraçado, por saber que todo aquele que fosse

estúpidoouquenãoprestassenoofícionãoconseguiriavê-la.Acreditavaquenão

precisavaderecearporsipróprio.Emtodoocaso,mandariaalguém,emprimeiro

lugar, para ver o que se passava. Todas as pessoas da cidade sabiam que poder

maravilhosotinhaotecidoetodosestavamdesejososdeveratéquepontoovizinho

nãovalianadaoueraestúpido.

«Vou mandar o meu velho e honrado ministro aos tecelões», pensou o

imperador. «Pode ver melhor como se apresenta o tecido, pois é inteligente e

ninguémémelhordoqueelenoseutrabalho.»

O velho e honrado ministro dirigiu-se então à sala onde os dois aldrabões

estavam sentados a trabalhar com os teares vazios. «Deus nos valha!», pensou o

velhoministro,arregalandoosolhos.«Nãoconsigovernada!»Masnadadisse.

Osaldrabõespediram-lheparateragentilezadeseaproximareperguntaram-

lhesenãoerabonitoopadrãoelindasascores.Apontaramparaostearesvazioseo

pobrevelhoministroescancarouosolhos,masnãoconseguiavernada,poisnada

havia para ver. «MeuDeus!», pensou ele. «Serei estúpido?Nunca tinha pensado

nisso.Masninguémdevesabê-lo.Nãoprestoparaomeutrabalho?Não,nãopode

ser,nãovoudizerquenãoconsigoverotecido.»

—EntãoV.Ex.anãodiznada?—perguntouaquelequeestavaatecer.

—Oh!Élindo!Primoroso!—respondeuovelhoministro,olhandoatravésdos

óculos.—Estepadrãoeestascores!Sim,voudizerao imperadorquemeagrada

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extraordinariamente!

—Oh!Muitonosalegrasabê-lo!—disseramostecelões,queindicaramdepois

osnomesdascoresedescreveramopadrãoespecial.Ovelhoministroouviutudo

muitobem,parapoderrepeti-loaoimperador,quandoregressasse.Eassimofez.

Entãoosaldrabõespedirammaisdinheiro,maissedaeouro,queseriamprecisos

paraafeituradotecido.Meteramtudonosseussacos.Paraosteares,nemumfio!

Mascontinuaram,comoantes,atecernotearvazio.

Oimperadorenviou,novamente,umoutrohonradofuncionárioparavercomo

estavaotecidoesaberseestariaprontoembreve.Passou-seomesmoquesetinha

passado como velho e honradoministro.Olhou e voltou a olhar,mas comonão

haviaoutracoisaalémdostearesvazios,nadaconseguiuver.

—Nãoéverdadequeéumabelapeça?—perguntaramosaldrabões,exibindo-a

edandoesclarecimentossobreobelopadrãoque,evidentemente,nãoexistia.

«Estúpido não sou!», pensou o homem. «Será que não presto para o meu

trabalho?Haviadeserbonito!Masnãovoudaroprazeraalguémdeonotar.»E

assimlouvouotecido,quenãovia,eassegurou-lhescomogostavadeveraslindas

coreseobonitopadrão.

—Sim,éprimoroso!—disseeleaoimperador.

Todasaspessoasdacidadefalavamdolindotecido.

Entãoo imperadorquis,elepróprio,veroqueforafeitonosteares.Comuma

destacada comitiva, que incluía os velhos e honrados funcionários que antes já lá

haviam estado, dirigiu-se para os dois astutos aldrabões, que agora teciam com

todasasforças,massemfionemfibra.

— Não é magnifique? — perguntaram ambos os honrados funcionários. —

QueiraVossaMajestadeverquepadrão,quecores!—Eapontaramparaosteares

vazios,poisacreditavamqueosoutrospodiamcertamenteverafazenda.

«Que é isto?», pensou o imperador. «Não vejo nada! Oh, é terrível! Sou

estúpido?Nãoprestoparaserimperador?Eraacoisamaishorrívelquemepodia

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acontecer!»

—Oh!Émuitobonito!—exclamou.—Temaminhasupremaaprovação!—

Eacenou coma cabeça, satisfeito, observandoos teares vazios.Nãoqueria dizer

quenãoconseguiavernada.Todaa comitivaqueviera comeleolhoue tornoua

olhar, mas não encontrou mais do que todos os outros. Tal como o imperador,

tambémafirmaram:

— Oh! É muito bonito! — E aconselharam-no a vestir esta nova e bonita

vestimenta,pelaprimeiravez,nagrandeprocissãoqueiriarealizar-se.

— É magnifique! Lindo! Excelente! — andava de boca em boca e todos se

sentiamintimamentecontentescomisso.Oimperadordeuacadaumdosaldrabões

umacruzdecavaleiroparapendurarnabotoeiraeotítulodecavaleirodetear.

Toda a noite, antes da manhã em que a procissão se realizaria, estiveram os

aldrabões de pé, commais de dezasseis velas acesas.Toda a gente podia ver que

estavamocupadosaacabaranovavestimenta.Fingiramquetiravamafazendado

tear,acortavamnoarcomgrandestesouras,acosiamcomagulhaelinhae,porfim,

disseram:

—Vede,agoraavestimentadoimperadorestápronta!

O imperador, com os seus cavaleiros mais distintos, foi ao encontro dos

aldrabões, que levantavam um braço no ar, como se segurassem alguma coisa.E

disseram:

—Aquiestãoascalças!Eisacasaca!Aquiomanto!—Eassimpordiante.—É

tãolevecomoteiadearanha!Parecequenãosetemnadavestidosobreocorpo,mas

éprecisamenteessaasuavirtude!

—Poisclaro!—afirmaramtodososcavaleiros,masnãoconseguiramvercoisa

alguma,poisnadahaviaparaver.

—Se agoraVossaMajestade Imperial tivesse a bondade de comprazer-se em

tirar as roupas— disseram os aldrabões—, vestir-lhe-íamos a nova vestimenta,

aqui,diantedograndeespelho.

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O imperador despiu todas as roupas e os aldrabões agiram como se lhe

entregassempeçaporpeçadanovavestimenta,supostamenteacabada.Pegaram-lhe

pelacinturae fingiramacertaralgoqueestavapuxado,eo imperadorvirava-see

voltava-sediantedoespelho.

—Deus!Comovestembem!Comoassentamlindamente!—disseramtodosem

coro.—Quepadrão!Quecores!Éumtrajeprecioso!

—LáforaestãojácomopáliosoboqualiráVossaMajestadenaprocissão—

disseomestre-de-cerimóniasprincipal.

—Estábem,jáestoupronto—respondeuoimperador.—Nãoassentabem?—

Virou-seaindaumavezmaisdiantedoespelho,poisdeviaparecercomoseestivesse

aadmirarverdadeiramenteasuaelegância.

Osfuncionáriosdacorte,quetinhamdesegurarnacauda,tatearamcomasmãos

o chão, como se a levantassem. Saíram segurando-a no ar, não deviam deixar

transparecerquenadaconseguiamver.

Eassimseguiuoimperadoremprocissãosobopálioetodasaspessoasnarua,e

nasjanelas,diziam:

—MeuDeus!Como é impecável a nova vestimenta do imperador!Que bela

caudatemnacasaca!Comoassentatãobem!—Ninguémqueriaquenotassemque

nãoaviam,poisdestemodoeraconsideradomaunotrabalhooumuitoestúpido.

Nenhumaoutravestimentadoimperadorproduziratantafelicidade!

—Masnãolevanadavestido!—disseumacriancinha.

—LouvadosejaDeus!Ouçamavozdainocência!—retorquiuopai.Ecadaum

segredouaooutrooqueafirmaraacriança.

—Não levanadavestido!—gritoupor fim todoopovo. Isto impressionouo

imperador,poisparecia-lhequeopovotinharazão.Maspensou:«Agoratenhode

continuar com a procissão.» E assim continuou, ainda mais orgulhoso, e os

funcionáriosdacorteatrás,segurandonacaudaquenãoexistia.

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HistóriasdoBrilhodoSol

—Agoravoueucontar!—disseoTempoVentoso.

—Não,comsualicença!—disseoTempodeChuva.—Agoraéaminhavez!

Hámuitoqueestáauivarnaesquinadarua,seéquetantoassimsepodeuivar!

— É o agradecimento — disse o Tempo Ventoso — por ter virado muitos

chapéusde chuva em suahonra.Sim, tê-losquebradomesmo,quandoaspessoas

nãoqueremnadaconsigo!

—Silêncio!Euconto!—falouoBrilhodoSol.—Eistofoiditocomlustroe

majestade.De talmodoque oTempoVentoso se deitou a todo o comprimento,

masoTempodeChuvasacudiu-oeproferiu:

—Temosdesuportaristo!Entraderompante,essesenhorBrilhodoSol!Não

vamosouvi-lo!Nãovaleapena!

MasoBrilhodoSolcontou:

—Voava um cisne sobre omar ondulante.Cada uma das suas penas brilhava

comoouro.Umadelas caiu lá embaixo,nograndenaviomercanteque vogava a

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todo o pano. Poisou no cabelo encaracolado de um jovem, o superintendente da

mercadoria.Ouosobrecarga,comoeradenominado.Apenadaavedasorteroçou-

lheatestaetornou-seumapenadeescrevernasuamão.Ojovemfez-setãorico

mercadorquebempodiacomprarparasiesporasdeouroetransformartravessasde

ouronumbrasãodenobreza.

—Brilheinele!—disseoBrilhodoSol.

—Ocisnevoousobreopradoverdeondeopastorinho,umrapazinhodesete

anos,sedeitaraàsombradavelhaeúnicaárvorealiexistente.Eocisne,noseuvoo,

beijouumadas folhasdaárvore,quevoouparaamãodorapaz.Deumafolha se

fizeramtrês,dequesefizeramdez,dequesefeztodoumlivroeeleleunesteas

maravilhas da natureza, sobre a língua materna, sobre a fé e o saber. Quando

chegavaahoradeirparaacama,punhaolivrodebaixodacabeçaparanãoesquecer

oquelera,eolivrolevou-oaosbancosdaescola,àmesadaerudição.

—Lioseunomeentreosdossábios!—disseoBrilhodoSol.

— De novo o cisne voou. Dirigiu-se para dentro da solidão do bosque e

repousou nos lagos calmos e sombrios, onde crescem as açucenas brancas, onde

crescemasmaçãsbravaseondeoscucoseaspombasbravastêmpouso.

Umapobremulherandavaajuntarlenha.Ramoscaídos.Pô-losàscostase,com

ofilhinhoaopeito,foiparacasa.Viuocisnedourado,ocisnedafelicidade,elevar-

se da margem onde cresciam os juncos. Que brilhava ali? Um ovo de ouro que

estavaaindaquente.Pô-lojuntoaopeitoequenteficou.Haviacertamentevidano

ovo. Sim, algo picava dentro da casca.Apercebeu-se disso e julgouque era o seu

própriocoraçãoquebatia.

Emcasa,napobrecabana,tirouoovodeouroparafora.Tique,tique!—soava

ele, como se fosse um relógio de ouro precioso.Mas era um ovo cheio de vida.

Eclodiu.Umcisnezinho,complumagemcomosefossedeouropuro,pôsacabeça

de fora. Tinha quatro anéis à volta do pescoço e, como a pobre mulher tinha,

precisamente, quatro rapazes, três em casa e o quarto que trouxera consigo da

solidão do bosque, compreendeu que era um anel para cada uma das crianças e,

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nesseprecisomomento,aavezinhadeouropartiuavoar.

Beijou cada anel e fez comque cadaumdos filhos os beijasse também.Pô-los

juntodocoraçãodascriançase,depois,colocou-osnosseusdedos.

—Euvi-o!—disseoBrilhodoSol.—Evioqueseseguiu!

Um dos rapazes sentou-se numa poça de barro, formou um torrão na mão,

moldou-ocomosdedoseestetornou-senafiguradeJosão,quefoibuscarotosão

deouro.

Osegundodosrapazescorreuparaoprado,ondehaviaflorescomtodasascores

imagináveis. Colheu uma mão-cheia delas e apertou-as com tanta força que os

sucos lhe salpicaram os olhos e molharam o anel que a mãe lhe dera. Excitado,

despertou-se-lhedetalformaaimaginaçãoque,diaseanosdepois,aindasefalava,

nacidade,dograndepintor.

O terceiro rapaz agarrou o anel tão fortemente na boca que soou um eco do

fundodocoração.Sentimentoseideiasascenderam-seemsonsquesubiramcomo

cisnescantantesemergulharamcomocisnesnaprofundezadolago.

Olagofundodopensamento.Tornou-seomestredasnotasedostons.Todosos

países podem agora pensar: «Ele pertence a todos nós!» O quarto era o bode

expiatório.Tinha gosma, falava-se. Precisava de pimenta e demanteiga como os

pintainhos doentes.Diziam estas palavras com a entoação que lhes apetecia dar:

«Pimentaemanteiga.»Eelerecebia-asatésefartar.

—MasdemimrecebeuumbeijodeSol—disseoBrilhodoSol.—Recebeu

dez beijos como se fossem um. Tinha a natureza dos poetas. Bateram-lhe e

beijaram-no,maseletinhaconsigooaneldasortedocisnedouradodafelicidade.

Os seus pensamentos pairavam como borboletas cantantes. O símbolo da

imortalidade!

—Foiumahistóriabemlonga!—disseoTempoVentoso.

—Eaborrecida!—disseoTempodeChuva.—Sopra-meparavoltaramim!

EenquantooTempoVentososoprou,oBrilhodoSolcontou:

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—Ocisneda felicidadevoouentãosobreomarprofundo,ondeospescadores

tinhamdeitadoasredes.Omaispobredelespensavaemcasar-se.Ecasou-se.

Casou-seporque,paraele,ocisnetrouxeumpedaçodeâmbar.Oâmbaratrai.

Atraicoraçõesparacasa.Oâmbaréomaisbeloincenso.Vemdeleumodor,como

daigrejavemoodordanaturezadeDeus.Sentiram,verdadeiramente,afelicidade

deumabela vida em casa, a satisfaçãonas pequenas coisas e assim foi a sua vida.

Tornou-seumaverdadeirahistóriadoBrilhodoSol.

— Vamos interrompê-lo!— disse o Tempo Ventoso.— Já falou de mais o

BrilhodoSol.Paramimfoiumaborrecimento!

—Paramimtambém!—disseoTempodeChuva.

—Equedizemosentãonós,queouvimosashistórias?

—Dizemos:acabaram-seagora!

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OsCisnesSelvagens

Muitolongedaqui,láparaondeasandorinhasvoamquandonóstemosinverno,

viviaumreicomonzefilhoseumafilha,Elisa.Osonzeirmãos—ospríncipes—

iam à escola com estrelas ao peito e sabre à ilharga.Escreviam em «ardósias» de

ourocom«penas»dediamanteesabiamtãobemrecitarcomoler.Ouvindo-os,via-

se logo que eram príncipes. A irmã Elisa sentava-se num pequeno escabelo de

cristaletinhaumlivrodeestampasqueforacompradopelovalordemeioreino.

Oh!Ascriançasviviammuitobem!Masnãoviriaasersempreassim!

Opai,queeraoreidetodoopaís,casoucomumarainhamá,nadagentilpara

comaspobrescrianças.Puderamnotá-lologonoprimeirodia.

Emtodoopaláciohaviagrandeostentaçãoeascriançasbrincavam«àsvisitas»,

masemvezdereceberembolosemaçãsassadas,queeraoquehaviaparaoferecer,a

rainhadeu-lhesapenasareianumachávenadechá,dizendoquepodiamfingirque

eraoutracoisa.

Logo na semana seguinte pôs a irmãzinha Elisa no campo, em casa de

camponeses,enãoduroumuitoatéquedissessetantacoisaaoreisobreospobres

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príncipes,queestenuncamaisseimportoucomeles.

—Voemporessemundoforaetratemdevósmesmos—dissearainhamá.—

Voemcomograndesavessemvoz!—Nãolhespôde,porém,fazertantomalcomo

queria.Transformaram-seemonzebeloscisnesselvagens.Comumgritoestranho,

partiramavoardasjanelasdopaláciosobreoparqueeobosque.

Eraaindamanhãcedo,quandopassarampelacasadoscamponesesondeairmã

Elisa estava a dormir. Aqui pairaram sobre o telhado, estenderam os longos

pescoçosebateramcomasasas,masninguémosouviunemviu.Tiveramdevoltara

partir,noalto,entreasnuvens,pelomundofora.Voaramparaumgrandebosque

sombrioqueseestendiaatéàpraia.

ApobreElisinhaestavanacabanadocamponêsabrincarcomumafolhaverde,

poisoutrobrinquedonãotinha.Fezumburaconafolha,olhouatravésdeleparao

Solefoicomosevisseosclarosolhosdosirmãos,e,decadavezqueosraiosquentes

doSollhebrilhavamnasfaces,pensavanosbeijosdetodoseles.

Os dias decorriam iguais uns aos outros. Se o vento sopravana grande roseira

diante de casa, esta sussurrava às rosas:—Quem pode ser mais bonita do que

vocês?—Asrosasabanavamacabeçaediziam:—Elisa.—Eseavelhasesentava

aodomingoàportaaleroseulivrodesalmos,oventoviravaasfolhasediziaparao

livro:—Quem pode ser mais piedoso do que tu?— Elisa— dizia o livro de

salmos,eeraapuraverdadeoqueasrosaseolivrodesalmosdiziam.

Quandofezquinzeanos,mandaram-naregressar.Assimquearainhaviucomo

elaerabonita,encheu-sederaivaedeódio.Bema teria transformadonumcisne

selvagemcomoosirmãos,masnãoopodiafazerjá,poisoreiqueriaverafilha.

Demanhãcedo,arainhafoiàsaladebanho,construídaemmármoreedecorada

comalmofadasfofaseosmaisbelostapetes.Pegouemtrêssapos,beijou-osedisse

paraum:—Põe-tenacabeçadeElisa,quandoelaentrarnobanho,paraquefique

tãoestúpidacomotu.—Põe-tenasuatesta—ordenouaosegundo—paraque

fiquefeiacomotu,demodoaqueopainãoareconheça.—Pousanoseucoração

—segredouaoterceiro—paraquevenhaatermauspensamentoseasofrercom

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isso.—Colocouentãoossaposnaáguaclara,quelogotomouumacoresverdeada.

Chamou por Elisa, despiu-a e mandou-a entrar na água e, quando ela aí

mergulhou,pôs-se-lheumsaponocabelo,osegundonatestaeoterceironopeito,

masElisapareceunemdarporisso.Logoqueselevantou,flutuaramtrêspapoilas

vermelhasna água.Seos animaisnão fossemvenenososnembeijadospela rainha

bruxa,ter-se-iamtransformadoemrosasvermelhas,masfloressetornarammesmo

assim,aotocaremacabeçaeocoraçãodeElisa.Erademasiadopiedosaeinocente

paraqueofeitiçotivessepodersobreela!

Quandoarainhamáviuisto,esfregou-acomsucodenozes,demodoqueficou

toda castanha-escura, untou o belo rosto com um unguento malcheiroso e

emaranhou-lheobelocabelo.EraimpossívelreconheceralindaElisa.

O pai, quando a viu, ficou todo horrorizado, dizendo que não era filha dele.

Ninguémmais a reconheceria senão o cão de guarda e as andorinhas,mas eram

pobresanimaisenadapodiamdizer.

Então a pobre Elisa chorou, pensando nos onze irmãos, que estavam longe.

Aflita, saiu furtivamente do palácio, andou todo o dia por campos e pauis,

embrenhando-se na grande floresta. Nem sequer sabia para onde devia ir, mas

sentia-setãotristeecomtantassaudadesdosirmãos,que,comoela,deviamtersido

tambématiradosparaomundo!Iriaprocurá-loseachá-los-ia.

Mal penetrou no bosque, logo anoiteceu. Afastou-se de caminhos e atalhos.

Deitou-sesobreomusgomacio,rezouasuaoraçãodanoiteeencostouacabeçaa

umcepo.Estavatudocalmo,oartãosuaveeàvolta,naervaenomusgo,brilhavam,

como fogo verde,mais de cem pirilampos.Quando tocou com amão levemente

numdosramos,tombaramosinsetosluzentes,comoestrelascadentes,sobreela.

Toda a noite sonhou com os irmãos. Brincavam, como quando eram crianças,

escreviamcom«penas»dediamantesobre«ardósias»deouroeviamobelolivrode

estampas que custara meio reino. Mas nas ardósias não escreviam, como antes,

apenaszerosetraços,não,masasaçõesmaisousadasquehaviampraticado,tudoo

quetinhamvividoevisto.Nolivrodeestampas,tudoeravivo,ospássaroscantavam

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e os homens saíam do livro e falavam para Elisa e para os irmãos, mas quando

voltava a folha, logo saltavam novamente para dentro, para que não houvesse

confusãonasestampas.

Quando acordou, já o Sol ia alto. Não podia vê-lo bem, porque as grandes

árvoresestendiamosramosespessosefirmes,masosraiosbrincavamporforacomo

uma teia de oiro oscilante. Havia um perfume de verdura e os pássaros quase

vinham pousar-lhe nos ombros. Ouvia a água murmurar. Havia muitas fontes

grandes e todas escorriampara um lago comomais belo fundo de areia.À volta

cresciam espessos arbustos, mas num sítio os veados haviam feito uma grande

abertura e por aí se dirigiu Elisa até à água. Era tão clara que, se o vento não

agitasseosramoseosarbustos,demodoamoverem-se,podiabemteracreditado

que estavam pintados no fundo, tão distintamente se refletia aí cada folha, tanto

aquelas através das quais o Sol brilhava como as que se encontravam

completamentenasombra.

Assimqueviuo seurosto, ficou todahorrorizada, tãocastanhoe feioqueera!

Masquandomolhouamãozinhaeesfregouosolhoseatesta,luziuapelebranca

outravez.Então,tiroutodaaroupaeentrounaáguafresca.Umafilhadereimais

bonitaqueelanãoseencontrarianestemundo!

Quando voltou a vestir-se e entrançou o longo cabelo, encaminhou-se para a

fonteborbulhante,bebeudamãoemconchaecontinuouavaguearnobosque,sem

saberparaondeir.Pensounosirmãos,pensounobomDeus,quecertamentenãoa

abandonaria.ElefaziacrescerasmaçãsbravasparasaciarosfamintosefoiEleque

lhe mostrou uma tal árvore, com os ramos dobrados pelo peso dos frutos. Aqui

colheuoalmoço,colocousuportessobosramoseentrounapartemaissombriado

bosque.Estavatudotãosilenciosoqueouviaosprópriospassos,ouviacadafolhinha

amurcharquesecurvavasobosseuspés.Nãoseviaumpássaro.Nenhumraiode

Solconseguiapenetrarporentreosgrandeseespessosramosdasárvores.Osaltos

troncosestavamtãopertounsdosoutrosque,quandoolhavaemfrente,eracomo

seumagradedetravesbemjuntasumasàsoutrasarodeasse.Oh!Haviaaquiuma

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solidãocomonuncaantesconhecera!

Fez-seentãomuitoescuraanoite!Nemumúnicopirilampozinhobrilhavano

musgo.Aflita,deitou-senochãoparadormir.Pareceu-lhequeosramosdasárvores

porcimaseabriamparaoladoequeoSenhor,comdocesolhos,olhavaparaelaem

baixoequeanjinhosespreitavamsobreasuacabeçaesobosseusbraços.

Quandodespertoudemanhã,nãosabiasesonharaouseforarealmenteassim.

Caminhoualgunspassosemfrenteeencontrouumavelhacombagasnumcesto.

Avelhadeu-lhealgumas.Elisaperguntou se viraonzepríncipes cavalgandopelo

bosque.

—Não—respondeuavelha—,masviontemonzecisnescomcoroasdeouro

nacabeça,nadandopeloregatoabaixo,aquimesmoaolado.

Depois conduziu Elisa um pouco mais à frente até um declive. Em baixo

torneavaumregato.Asárvoresnasmargensestendiamumasparaasoutraslongos

ramoscheiosdefolhaseonde,peloseucrescimentonatural,nãopodiamalcançar-

se. Tinham desprendido as raízes da terra, pendendo para a água com os ramos

entrelaçados.

Elisadisseadeusàvelhaedirigiu-seaolongodoregatoatéondeestefluíapara

umagrandepraiaaberta.

Todoobelomarestavadiantedarapariga,masnemumavelasemostrava,nem

umbarcosepodiaver.Paraondedeviaseguir?Observouasinumeráveispedrinhas

namargem.Aáguatinha-asarredondadotodas.Vidro,ferro,pedra,tudooqueali

jazia,lançadoàpraia,tomaraformapelaágua,que,contudo,eramuitomaismacia

doqueassuasfinasmãos.«Estásempreinfatigávelarolareassimsenivelaoqueé

duro.Tambémqueroserinfatigável.Obrigadapelavossalição,vóslímpidasondas

rolantes. Algum dia — diz-me o coração — ireis levar-me aos meus queridos

irmãos.

Nasalgaslançadasàpraiaestavamonzepenasbrancasdecisnes.Juntou-ascomo

que a fazer um ramo. Havia nelas gotas de água. Se era orvalho ou lágrimas,

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ninguémopoderiadizer.Estavasozinhanapraia,masnãosesentiasó,poisomar

apresentavaumaeternatransformação,sim,emalgumaspoucashorasmaisdoque

os frescos lagos interiores poderiam mostrar em todo um ano. Se aparecia uma

grande nuvem negra, era como se o mar dissesse «eu também sei mostrar-me

sombrio»eentãosopravaoventoeasondasvoltavamobrancoparafora.Masseas

nuvensbrilhavamvermelhaseosventosdormiam,ficavaomarcomoumafolhade

rosa. Estava agora ora verde, ora branco, mas como repousava calmo! Havia,

contudo,nasmargensumsuavemovimento,aáguaelevava-sedocemente,comoo

peitodeumacriançaquandodorme.

QuandooSolestavaquaseapôr-se,Elisaviuonzecisnesselvagenscomcoroas

deouronacabeça,voandoparaterra.Pairavamunsatrásdosoutrosepareciamuma

longa fita branca. Então Elisa subiu o declive e escondeu-se por detrás de um

arbusto.Oscisnespousarampertodela,batendoasgrandesasasbrancas.

Quando o Sol se sumiu sob a água, caiu-lhes subitamente a plumagem e ali

estavamosonzebelospríncipes,osirmãosdeElisa.Lançouumgrandegrito,pois,

apesar de teremmudadomuito, sabia que eram eles, sentiu que deviam ser eles.

Saltou para os seus braços, chamou-os pelos nomes e eles ficaram tão contentes

quandoviramereconheceramairmãzinha,queagoraestavatãocrescidaebonita!

Riramechoraramelogolhecontaramcomoamadrastaforamáparacomeles.

—Nós,irmã—disseomaisvelho—,voamoscomocisnesselvagens,enquanto

oSolestánocéu.Quandodesce,tomamosanossaformahumana.Porisso,aopôr

doSol,temossempredeterocuidadodeencontrarumpousoparaospés,poisse

voássemos lá alto, na direção das nuvens, tombaríamos como seres humanos no

abismo.Nãoéaquiquemoramos.Háumaterratãobonitacomoestadooutrolado

domar,mas é longo o caminho para lá, temos de atravessar o grandemar e, no

trajeto, não há nenhuma ilha onde possamos pernoitar. Só um rochedozinho

isoladoseergueaí.Maisespaçonãotemdoqueaqueleemquepodemosrepousar

juntos uns aos outros. Se o mar está bravo, salpica a água sobre nós, mas

agradecemosaDeusporele.Alipernoitamosemnossaformadehomens;semele

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nuncapoderíamosvisitaranossaqueridapátria,poisdoisdosmais longosdiasdo

anoprecisamosparaonossovoo.Sóumaveznoanonosépermitidovisitaraterra

dosnossospais.Podemosficaraíonzedias,voarsobreograndebosqueedaívero

palácioondenascemoseondemoraonossopai,veraaltatorredaigreja,ondeestá

enterrada a nossa mãe. Aqui parece-nos que as árvores e os arbustos são nossos

parentes,aquicorremoscavalosselvagenssobreaplanície,comoosvíamosnanossa

infância.Aquicantamoscarvoeirosasvelhascançõesaosomdasquaisdançávamos,

ainda crianças. Aqui é a nossa pátria, para aqui somos atraídos e aqui te

encontrámos,queridairmãzinha!Aindapodemosficardoisdias,masdepoistemos

departirsobreomarparaumabelaterra,masquenãoéanossa!Comopodemos

levar-te?Nãotemosnavionemsequerumpequenobarco!

—Comopodereisalvar-vos?—disseairmã.

Falaramquasetodaanoite.Apenasdormitaramalgumashoras.

Elisa acordou com o som das asas dos cisnes, sussurrando por cima dela. Os

irmãosestavamoutraveztransformados,voandoemgrandescírculoseporfimlá

paralonge,masumdeles,omaisnovo,ficouparatrás.Ocisnepôsacabeçanoseu

regaçoeelaacariciou-lheaspenasbrancas.Estiveramtodoodiajuntos.Ànoitinha

voltaramosoutrose,quandooSolsepôs,tomaramasuaformanatural.

—Amanhã vamos voar daqui.Não podemos regressar antes de todo um ano.

Masnãopodemosdeixar-teassim.Tenscoragemparanosseguir?Omeubraçoé

forteobastantepara te transportaratravésda floresta.Não teremos todos juntos

asassuficientementefortesparavoarcontigosobreomar?

—Sim,levai-meconvosco!—respondeuElisa.

Passaramanoitetodaatecerumarededecascadesalgueiroflexíveledejuncos

rijos,queficougrandeeforte.NelasedeitouElisaequandooSolseergueueos

irmãos se transformaram em cisnes selvagens, pegaram na rede com os bicos e

voaramaltoparaasnuvenscomairmãquerida,queaindadormia.OsraiosdoSol

incidiam-lhediretamentenorosto.Porisso,umdoscisnesvoavasobreasuacabeça

paraqueasasaslargaspudessemfazer-lhesombra.

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Estava longe a terra, quando Elisa acordou. Julgou que ainda sonhava, tão

maravilhoso lhe pareceu ser transportada sobre omar alto, através do ar!Ao seu

ladohaviaumramodebelasbagasmaduraseummolhoderaízessaborosas.Tinha-

oscolhidooirmãomaisnovo,quealiospuseraparaela.Sorriu-lheagradecida,pois

sabiaque fora ele, oque voavapor cimada sua cabeça e lhedava sombra comas

asas.

Estavam tão alto que o primeiro navio que viram pareceu-lhes uma gaivota

brancapousadana água.Umagrandenuvemencontrava-sepordetrásdeles.Era

todaumamontanhaenelaviuElisaasombradesiprópriaedosonzecisnes, tão

gigantescosvoavamali!Eraomaisbeloquadroqueviraatéentão!Maslogoqueo

Sol subiumais alto e a nuvem ficou para trás, desapareceu a imagem da sombra

flutuante.

Continuaramtodoodiaavoar,comoumaflechasussurranteatravésdoar,mas

mais lentamente do que nunca, pois tinham de transportar a irmã. Pôs-se mau

tempo,anoiteaproximava-se.Receosa,ElisaviuoSolbaixareaindanãoseavistava

orochedoisoladonomar.Pareceu-lhequeoscisnesbatiammaisfortecomasasas.

Ai!Eraculpasuasenãochegassematempo.QuandooSolsepusesse,tornar-se-

iamsereshumanos,cairiamnomareafogar-se-iam.Entãorezoudomaisfundodo

coraçãoumaoração aDeus.Mas aindanão avistavanenhum rochedo.Asnuvens

pretasaproximavam-secadavezmais.Asfortesrajadasdeventoanunciavamuma

tempestade. As nuvens formavam uma única e grande onda ameaçadora, que

pareciachumboeavançava.Luziamrelâmpagosunsatrásdosoutros.

OSol estava agorana bordadomar.O coraçãodeElisa batia fortemente.Os

cisnesdesceramtãorapidamente,quejulgouqueiacair,masaindacontinuavama

pairar.OSolestavameiomergulhadonaágua.Avistouentãoopequenorochedo

embaixo,quenãopareciamaiordoqueumafoca,comacabeçaforadaágua.OSol

baixavarapidamente.Eraagoracomoumaestrela.Entretantoosseuspéstocaram

o chão firme.OSol extinguiu-se como aúltima chispa deumpapel a arder.De

braçosdados,viuos irmãosàsuavolta,masmais lugardoqueparaeleseelanão

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havia ali em baixo.Omar batia contra o rochedo e tombava com fortes bátegas

sobre eles. O céu brilhava num fogo sempre constante e a trovoada ribombava,

trovãoatrásdetrovão,masElisaeosirmãosderamasmãosecantaramumsalmo,

comquereceberamconsoloecoragem.

Ao romper do dia o ar estava puro e calmo. Logo que o Sol subiu, os cisnes

partiramdailhaelevaramcomelesElisa.Omaraindaestavaagitado.Parecia-lhes,

quandoestavamnoar,queaespumabrancanomarverde-escuroerammilhõesde

cisnesvogandonasondas.

QuandooSolficouaindamaisalto,Elisaviudiantedesi,meioflutuandonoar,

uma terra montanhosa com massas de gelo brilhantes nas rochas e no meio

estendia-se um palácio com uma boa milha de comprido com arrojadas arcadas

umas sobre as outras. Por baixo abanavam palmeirais e flores maravilhosas, tão

grandes como rodas demoinho. Perguntou se era a terra para onde iam,mas os

cisnesabanaramacabeça,poisaquiloqueelaviaeraobelopalácionasnuvens,em

constante transformação, da FadaMorgana. Nele não podia entrar nenhum ser

humano. Elisa olhou-o fixamente. Então desmoronaram-se montes, bosques e

palácioeapareceramdozesoberbas igrejas, todas iguaisumasàsoutras,comaltas

torresejanelaspontiagudas.Pareceu-lheouvirórgão,masfoiomarqueelaouviu.

Agora estavam as igrejas bem perto, transformando-se numa frota que navegava

debaixodela.Olhouparabaixoeeraapenasumaneblinaquepassavasobreaágua.

Sim, uma transformação constante tinha ela diante dos olhos. Viu, então, a

verdadeiraterraparaondeia.Eerguiam-seaíbelasmontanhasazuis,combosques

decedros,cidadesepalácios.MuitoantesdeoSolsepôr,jáestavasentadanarocha

diante de uma grande gruta, coberta com verdes e finas plantas trepadeiras que

pareciamtapetesbordados.

—Agoravamosvercomoquevaissonharestanoiteaqui!—disseoirmãomais

novo,mostrando-lheoquartodedormir.

— Oxalá sonhe como poderei salvar-vos! — respondeu. E este pensamento

ocupou-a vivamente.Pediu fervorosamente aDeusque a ajudasse, sim,mesmo a

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dormircontinuouaorar.Entãopareceu-lhequevoavaaltonoarparaopalácionas

nuvensdaFadaMorganaequeestaveioaoseuencontro,tãobelaeesplendorosa,

contudo,parecendo-secomavelhaque lhederabagasnobosquee lhe falarados

cisnescomcoroasdeoiro.

— Teus irmãos podem ser salvos — disse ela —, mas tens coragem e

perseverança? É certo que o mar é mais macio do que as tuas finas mãos. No

entanto,dáformaàspedrasduras,masnãosenteasdoresqueosteusdedoshãode

sentir.Não temcoração,não sofre a angústia eo tormentoque tensde suportar.

Vêsestaurtigaquetenhonamão?Destaespéciecrescemmuitasàvoltadagruta

ondedormes.Tomanota,sóessaseasquebrotamnassepulturasdocemitériosão

boas. São essas que tens de apanhar,mesmo que te façam arder a pele e deixem

bolhas.Seesmagaresasurtigascomospés,obteráslinho.Comeleterásdetecere

enlaçaronzecotasdemalha,demangascompridas.Lança-assobreosonzecisnes

selvagens e o encanto fica quebrado.Mas lembra-te bem!Desde omomento em

quecomeçaresoteutrabalhoeatéestarcompletamenteacabado,mesmoquedure

anos,nãopodes falar.Aprimeirapalavraquedisserespenetrarácomoumpunhal

mortíferonocoraçãodosteusirmãos.Datualínguadependeavidadeles.Temem

atençãotudoisto!

Nomesmomomento,tocou-lhenamãocomaurtiga.Sentiucomoqueumfogo

ardente.AssimacordouElisa.Erajádiaclaroepertodosítioondedormiraestava

uma urtiga como aquela que vira em sonho. Então caiu de joelhos, agradeceu a

Deusesaiudagrutaafimdedarinícioàsuatarefa.

Comasmãosdelicadasapanhouasfeiasurtigas,queeramcomofogo.Grandes

bolhas ardiam-lhe nas mãos e nos braços, mas de bom grado sofria, pudesse ela

salvarosqueridosirmãos.Esmagouasurtigas,umaporuma,comospésdescalçose

entrançouolinhoverde.

QuandooSolsepôs,vieramosirmãoseficaramassustadosaoencontrá-laassim

muda.Julgaramqueeraumnovoencantamentodamadrastamá,masquandolhe

viramasmãos,compreenderamoquefaziaporeles;o irmãomaisnovochoroue

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onde as suas lágrimas caíam não sentia nenhumas dores, já que desapareciam as

bolhasardentes.

Passoutodaanoiteatrabalhar,poisnãodescansariaenquantonãotivessesalvo

osirmãosqueridos.Permaneceutodoodiaseguinte,enquantooscisnesestiveram

fora,sentadanoseuisolamento,masnuncaotempocorreratãodepressa.Umacota

demalhaficoucompletamentepronta.Começoulogoaseguinte.

Soou então a trompa de caça nos montes. Ficou cheia de medo. Os sons

aproximavam-se,podiaouviroscãesaladrar.Assustada,entrounagruta,atouum

molhoasurtigasquejuntaraecardaraesentou-seemcima.

Nesse mesmomomento veio um cão grande saltando do barranco e logo um

outroeaindaoutro.Ladraramalto,correramparatrásevoltaramoutravez.Não

demoroumuitoqueestivessemtodososcaçadoresdiantedagrutaeomaisbelode

todoseraoreidopaís.Dirigiu-separaElisa.Nuncaviraumaraparigatãobonita!

—Como vieste parar aqui, lindamenina?—perguntou o rei.Elisa abanou a

cabeça, não devia falar, tratava-se da salvação e da vida dos irmãos.Escondeu as

mãossoboaventalparaqueoreinãovisseoquetinhadesofrer.

—Vemcomigo!—disseele.—Nãopodesficaraqui!Seforestãoboacomoés

bonita,vestir-te-eidesedaeveludo,pôr-te-eiacoroadeouronacabeçaeresidirás

nomeupaláciomaisrico.Depois,pegounelaesentou-anocavalo.Elisachorava,

torciaasmãos,masoreidisse:

—Sóqueroatuafelicidade!Umdiaagradecer-me-ás!—Eassimpartiupelos

montes,segurando-aàfrentenocavaloeoscaçadoresatrásdele.

QuandooSolsepôs,estavaabelacidaderealcomigrejasecúpulasdiantedelese

o rei conduziu-a ao palácio, onde grandes repuxos saltavam nas altas salas de

mármoreeparedesetetosostentavampinturas.Maselanãotinhaolhosparaisso,

choravaeafligia-se.Dócil,deixouqueasdamaslhevestíssemosvestidosreais, lhe

entrançassempérolas no cabelo e lhe calçassem finas luvas nos dedos a arder por

causa das urtigas. Quando ficou em todo o seu esplendor, estava tão

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deslumbrantementebelaqueacorteseinclinouaindamaisprofundamenteperante

elaeoreiproclamouElisacomosuanoiva.Aindaqueoarcebispoabanasseacabeça

emurmurassequeabelaraparigadobosqueeracertamenteumaheregequecegara

osolhoseseduziraocoraçãodorei!Masoreinãooouviu,mandoutocaramúsica,

queviessemosmaisdeliciososmanjaresequeasmaisgentismeninasdançassemà

voltadela.Foi levadaatravésdos jardinsodorosospara salasmagníficas,masnem

umsorrisolheassomouaoslábiosoutranspareceunosseusolhos.Atristezaestava

alicomoherançaeposseeternas.

Entãooreiabriuumpequenoaposentojuntoàqueleemqueiriadormir.Estava

decoradocompreciosastapeçariasverdesepareciamesmoagrutaondeelaestivera.

Nochãoencontrava-seomolhodelinhoqueteceracomasurtigasenotetoestava

suspensaacotademalhaqueficarapronta.Tudo isso trouxeraumdoscaçadores

consigo,comocuriosidade.

—Podes sonhar aqui com o antigo lugar onde vivias— disse o rei.—Eis o

trabalhoemqueteocupavas.Agora,nomeiode todooesplendor,divertir-te-áa

recordaressetempo!

QuandoElisaviutudoaquilo,quetãopertolheestavadocoração,esboçouum

sorriso e o sangue assomou-lhe às faces. Pensou na salvação dos irmãos, beijou a

mãodorei,queaestreitoudeencontroaocoraçãoemandouquetodosossinosdas

igrejastocassemaanunciarasbodas.Abelaraparigamudadobosqueveioasera

rainhadopaís.

Entãomurmurouoarcebispopalavrasmásaoouvidodorei,masnãolhecaíram

no fundo do coração. Realizou-se o casamento. O próprio arcebispo teve de

colocar-lheacoroanacabeçaecomtãomávontadeecomtantaforçalhepremiuo

estreito anel da coroa na testa, que lhe fez doer.Ummais pesado anel, contudo,

circundavaoseucoração—ocuidadopelosirmãos.Nãosentiaasdorescorporais.

Aboca estavamuda—umaúnicapalavra custaria aos irmãos a vida—,masnos

olhoshaviaumprofundoamorpeloreibomebelo,quetudofaziaparaaalegrar.

Detodoocoração,dediaparadia,lhequeriamais.Oh!Sepudessesimplesmente

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confiar-seaele,contar-lheassuasmágoas!Masmudatinhadeser,mudatinhade

completar a sua tarefa. Por isso escapava-se de noite do lado dele, entrava no

quartinho que estava decorado como a gruta e acabou uma cota de malha após

outra,mas,quandocomeçouasétima,nãotinhamaislinho.

Sabia que no cemitério cresciam as urtigas de que precisava, mas tinha ela

própriadeirapanhá-las.Comoconseguiriaisso?«

Oh!Quesãoasdoresnosdedoscomparadascomatorturaquesofreocoração?»,

pensou. «Tenho de tentá-lo! O Senhor não me retirará a Sua proteção!» Com

angústianocoração,comoseestivesseperanteumamáação,desceunanoiteclara

de luar ao jardim, atravessou as longas áleas, saiu para as ruas solitárias e

encaminhou-se para o cemitério. Aí viu sentado numa das maiores pedras

tumularesumcírculodevelhasbruxashorríveisquedespiramosandrajos,comose

quisessembanhar-se,ecomeçaramaesgaravatarcomos longosdedosmagrosnas

covas frescas, retirandoos cadáveres e comendo-lhes a carne.Elisa tevedepassar

pertodelas,quelhelançaramolharesmaus,maselarecitouasuaoração,juntouas

urtigasardentosaselevou-asparaopalácio.

Sóumaúnicapessoaaviu,oarcebispo,queestava levantadoquandoosoutros

dormiam. Tinha, pois, razão quando dissera que havia algo na rainha que não

estavabem.

Eraumabruxa,assimtranstornandoacabeçaaoreieatodoopovo.

Noconfessionário,contouaoreioqueviraeoquereceava.Quandoaspalavras

duras lhe saíam da língua, as imagens dos santos abanavam a cabeça, como se

quisessemdizer:—Nãoéassim!AElisaestáinocente!Masoarcebispoexplicou-o

de outromodo, que testemunhavam contra ela, que abanavam a cabeça pelo seu

pecado.Rolaramentãoduaspesadas lágrimaspelas facesdo rei.Regressou a casa

comadúvidanocoraçãoeànoitefingiuquedormia,masnenhumsonotranquilo

lhecobriuosolhos.ObservoucomoElisaselevantavaequeassimsucediatodasas

noites.E de todas as vezes a seguiu demansinho, vendo que desaparecia no seu

aposentoprivado.

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Dediaparadiatornou-se-lheosemblantemaissombrio.Elisanotou-o,masnão

compreendeu. Inquietou-se com isso, mas o que não sofria o seu coração pelos

irmãos!No veludo e púrpura reais corriam as lágrimas salgadas, aí se quedavam

comodiamantescintilantese todososqueviamessericoesplendordesejavamser

comoarainha.Estava,entretanto,quasenofimdotrabalho,faltava-lheaindauma

cotademalha.Masnãotinhamaislinho,nemumaúnicaurtiga.Maisumavez,a

última, tinha de ir ao cemitério apanhar umamão-cheia de urtigas. Pensou com

angústianocaminhosolitárioenasbruxashorríveis,masasuavontadeerafirme,

comoeraaconfiançaemDeus.

Assim lá foi, mas o rei e o arcebispo seguiram-na, viram-na desaparecer pelo

portão de grades do cemitério e, quando se aproximaram, depararam-se-lhe nas

pedras tumulares as bruxas queElisa encontrara.O rei virou o rosto, pois entre

estasjulgouveraquelacujacabeçaaindananoiteanteriorrepousaranoseupeito.

—Opovoqueajulgue!—disseorei.Eopovocondenou-a:seriaqueimadanas

chamasrubras.

Dasbelassalasreaisfoilevadaparaumamasmorraescuraehúmida,ondeovento

assobiavapela janelacomgrades.Emvezdeveludoesedaderam-lheomolhode

urtigas que colhera, podia aí repousar a cabeça. As cotas de malha duras e

ardentosasquetecerapodiamservir-lhedeenxergãoedecoberta.Masnadamais

caro podiam ter-lhe oferecido. Voltou ao trabalho e rezou a Deus. Lá fora

cantavam os rapazes da rua canções de escárnio sobre ela. Nenhuma alma a

consoloucomumapalavraquerida.

Ànoite, algo sussurrou juntoàsgrades, eramasasasdeumcisne.Erao irmão

maisnovo,quevoltaraaencontrarairmã.Elisasoluçoualtodealegria,sebemque

soubesse que a noite que chegava era talvez a última que tinha para viver.Mas

agoraotrabalhoencontrava-sequaseacabadoeoirmãoestavaali.

Oarcebispoveioparapassaraúltimahora juntodela,prometera-oaorei.Mas

ela abanou a cabeça, pediu-lhe como olhar e gestos paraque a deixasse sozinha.

Nessanoitetinhadeacabarotrabalho,ouseriatudoinútil,tudo,dores,lágrimase

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noitesemclaro.Oarcebispofoi-seemboracommáspalavrasparaela,masapobre

Elisasabiaqueestavainocenteecontinuouatrabalhar.

Osratinhoscorriamnochão,arrastavamasurtigasparadiantedospésdela,pois

queriamajudá-laumpouco,eotordopousounasgradesdajanelaecantoutodaa

noite,tãoalegrementequantopodia,paraqueelanãoperdesseacoragem.

Aindaeramadrugada,sódentrodeumahoraselevantariaoSol.Aliestavamos

onzeirmãosaoportãodopalácio,pedindoparaseremlevadosaorei.Quenãopodia

ser foi a resposta, ainda era bem de noite, o rei dormia e não seria acordado.

Pediram,ameaçaram,veioaguarda,desceumesmoorei,queperguntouoquese

passava. Levantou-se então o Sol nomesmomomento e nenhum irmão havia à

vista,maslánoaltosobreopaláciovoavamonzecisnesselvagens.

Paraforadasportasdacidadeacorriaemmassaopovo,quequeriaverafeiticeira

aserqueimada.Ummiserávelcavalopuxavaacarroçaondeelaiasentada.Tinham-

lhedadoumvestidodeserapilheiragrosseira.Olindocabelocompridopendiasolto

à volta da esbelta cabeça.As faces estavampálidas demorte, os lábiosmoviam-se

lentamente, mas os dedos entrançavam o fio verde. Nem mesmo a caminho da

morte abandonava o trabalho começado.As dez cotas demalha estavam aos seus

pés,adécimaprimeiraacabavaelaagora.Apopulaçainsultava-a.

—Vede a feiticeira comomurmura!Nem um livro de salmos leva nasmãos!

Pelocontrário,oseuhorrívelfeitiçoleva-oelaconsigo.Tirai-lhoerasgai-oemmil

pedaços!

Correramparaelaequeriamrasgarascotas.Vieramentãoonzecisnesbrancos

voando, que se puseram à volta dela na carroça, batendo comas grandes asas. A

multidão,assustada,afastou-se.

—Éumsinaldocéu!Estácertamenteinocente!—murmurarammuitos,mas

nãoousaramdizê-loalto.

Depoisocarrascoagarrou-apelamão.Entãolançounumgestorápidoasonze

cotassobreosonzecisneselogoalificaramonzebelospríncipes,masomaisnovo

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tinhaumaasadecisnenolugardeumbraço,poisfaltavaumamanganasuacota,

queelanãoconseguiraaprontar.

—Agorapossofalar!—disseela.—Estouinocente!

Opovo,queviuoqueacontecera,curvou-sediantedeElisacomoperanteuma

santa,maselatomboudesmaiadanosbraçosdosirmãos.Tantacomoção,angústiae

dorestiveramoseuefeito.

—Sim,estáinocente!—disseoirmãomaisvelho,edepoiscontoutudooque

acontecera e, enquanto ele falava, espalhou-se um perfume, como demilhões de

rosas,poiscadaumdospedaçosde lenhada fogueiracriararaízesedesabrochara

em ramos.Estava ali uma sebe odorosa, alta e grande com rosas vermelhas e em

cimaumaflorbrancaebrilhante,quereluziacomoumaestrela.Apanhou-aorei,

queapôssobreopeitodeElisaeentãoelaacordoucompazejúbilonocoração.

Todos os sinos tocaram por si próprios e vieram pássaros em grandes bandos.

Formou-se um cortejo de noivado de regresso ao palácio, comonunca rei algum

vira.

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AArcaVoadora

Eraumavezummercadortãoricoqueatépodiacalcetararuatodacommoedas

de prata e quase uma ruelazinha ainda. Mas não o fez, sabia empregar o seu

dinheirodeoutromodoesedespendiaumxelim,recebiaumtáleremtroca.Assim

eraomercador…eassimmorreu.

Ofilhoficouentãocomtodoessedinheiroelevouavidaadivertir-se.Foitodas

asnoitesamascaradas,armoupapagaioscomasnotasdetáleresefezsaltitarsobrea

superfície do mar moedas de ouro em vez de pedrinhas. Bem podia o dinheiro

sumir-seeassimsucedeu.Porfimnãopossuíamaisdoquequatroxelinsenãotinha

outra vestimenta senão um velho roupão e um par de pantufas. A partir daí os

amigosnão se importarammais comele,pois jánãopodiam ir juntospara a rua,

masumdeles,queerabom,mandou-lheumavelhaarcaedisse:

—Fazamala!—Sim,estavatudomuitobem,maselenãotinhanadacomquea

enchereassimsentou-seelepróprionaarca.

Eraumaarcapitoresca.Logoquesepremiaa fechadura,punha-seavoar.Foi

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issoquefez,bumba!,vooucomeleporaíacima,atravésdachaminé,alto,porsobre

asnuvens,cadavezmais longe.Rangianofundoeeleestavacommuitomedode

que se fizesse em pedaços, pois se assim fosse vinha a dar um bem bonito salto.

Deus nos livre disso!Chegou à terra dos turcos.Escondeu a arca no bosque sob

folhasmurchasedirigiu-seàcidade.Bemopodiafazer,poisosturcosandamtodos

comoele,emroupãoepantufas.Encontrouassimumaamacomumacriancinha.

— Ouve, ama de turcos! — disse ele. — Que grande palácio é este junto à

cidade?Asjanelassãotãoaltas!

—Mora láa filhadorei!—disseela.—Foi-lheprofetizadoqueseria infeliz

porcausadeumnamoradoeporissoninguémpodeaproximar-sedelasemoreiea

rainhaestaremnasuacompanhia!

—Obrigado!—disseofilhodomercador,depoisfoiparaobosque,sentou-se

na arca, voou para o telhado e deslizando entrou pela janela do aposento da

princesa.

Estavadeitadanosofáadormir.Eratãobelaqueofilhodomercadortevedea

beijar.Aprincesaacordoueficoumuitoassustada,maseledissequeeraodeusdos

turcosquetinhadescidopeloaratéela,eissosoou-lhebem.

Sentaram-seao ladoumdooutro,elecontou-lhehistórias sobreosolhosdela,

que eram osmais lindos lagos de tons escuros e que os pensamentos nadavam aí

comosereias.Falou-lhedasuatesta,queeraumamontanhadenevecomasmais

belassalaseimagens,econtou-lhedacegonhaquetrazasmaisdocescriancinhas.

Oh!Eramhistóriasbembonitas!Foidessemodoquesedeclarouàprincesaeela

disselogoquesim.

—Mastemdeviraquinosábado—disseela.—Oreiearainhaestãocomigo

paraumchá!Ficarãomuitoorgulhososdeeureceberodeusdosturcos,masvejase

sabe um conto bem bonito, pois os meus pais gostammuito de ouvir contar. A

minhamãegostaqueelessejammoraisedistintoseomeupaidivertidos,parase

rir!

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—Sim,nãotragooutropresentedenoivadosenãoumahistória!—afirmouele.

Separaram-se,masaprincesadeu-lheumsabre,incrustadocommoedasdeouro,e

estasbemsabiaelecomoutilizá-las.

Voouparafora.Comprouumroupãonovoesentou-senobosqueacomporuma

história,queteriadeficarprontaatésábadoeistonãoerafácil.

Finalmentedeuocontoporterminado.Etinhachegadoosábado.

Oreiearainhabemcomotodaacorteesperavam,comoconvidados,paraochá

daprincesa.Eofilhodomercadorfoiadmiravelmentebemrecebido!

—Querentãocontar-nosumahistória?—perguntouarainha.—Umaqueseja

desentidoprofundoeinstrutivo!

—Masquefaçatambémrir!—acrescentouorei.

—Certamente!—disseeleecomeçouacontar.Temosdeouvi-labem!

Eraumavezummolhodefósforos,extraordinariamenteorgulhosopelofactode

ser de alta estirpe. A sua árvore genealógica, quer dizer, o grande abeto, de que

eramumpedacinho, tinha sidoumagrandeárvoreantigadobosque.Os fósforos

estavamagoranaprateleira,entreumisqueiroeumavelhapaneladeferro,epara

elescontavamhistóriasdasuajuventude.

— Sim, quando estávamos no ramo verde! — diziam eles. — Estávamos

realmente bem!Todas asmanhãs e todas as noiteshavia cháde diamantes: era o

orvalho. Todos os dias tínhamos luz do Sol, quando este brilhava, e todos os

passarinhos tinhamde contar-noshistórias.Bempodíamos aperceber-nosdeque

tambéméramosricos,poisasárvoresdefolhasóestavamvestidasnoVerão,masa

nossa família possuía meios para ter vestuário verde tanto no verão como no

inverno. Mas vieram os lenhadores, foi a grande revolução, e a nossa família

dispersou-se.Otronco,queeraochefedafamília,obteveumlugardemastroreal

numbelonavioquepodianavegaràvoltadomundo,sequisesse.Osoutrosramos

foramparaoutroslugaresenóstemosagoraatarefadeacenderaluzparaaarraia-

miúda.Porissosomosgentedistintaqueveioaquiparaacozinha.

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—Comigopassa-sedeoutromodo!—disseapaneladeferro,aoladodaqual

estavamosfósforos.—Desdequevimaomundoquesouesfregadaepostaaolume

continuamente!Cuidodoqueésólidoesou,naverdade,aprimeiracoisaaquina

casa.Aminhaúnicaalegriaé,depoisdamesa,ficaraquilimpaebonitanaprateleira

e terumaconversaajuizadacomoscamaradas.Mas, seexcetuarobaldedeágua,

que,umavezporoutra,desceaojardim,vivemossempredentrodeportas.Ocesto

decompraséoúnicoquenostrazasnovidades,maselefalatãoviolentamentedo

governoedopovo!Sim,outrodiafoiumvelhopotequecaiuládecima,demedo,e

desfez-seempedaços!Temumasideiasfrescas!Tenhodevosdizer!

—Agoraestásafalardemais!—disseoisqueiro,eoaçobateunapederneira,

atéfazerfaísca.—Nãoeraumanoiteagradávelquequeríamos?

—Sim,falemossobrequaldenóséomaisdistinto!—disseramosfósforos.

—Não, não gosto de falar demim própria— afirmou a panela de barro.—

Façamos um serão! Vou começar, vou contar-vos algo que cada um já viveu.

Compreende-semelhor a situação e émuito agradável.Estamos nomarBáltico,

comasfaiasdinamarquesas!

—É um lindo começo!— afirmaram todos os pratos.—Vai ser certamente

umahistóriadequetodosiremosgostar!

—Sim,aípasseiaminhajuventude,emcasadeumafamíliatranquila.Osmóveis

erampolidos,ochãoesfregado.Haviacortinaslavadastodososquinzedias!

—Comocontaissodemodotãointeressante!—referiuoespanador.—Pode-

se logo perceber que é uma mulher, pelo modo como conta. Há nisto algo de

asseado!

—Sim,sente-seisso!—disseobaldedeágua,edeuumsaltinhodealegriaea

águafezclatchnochão.

Apanelacontinuouacontar,eofimfoitãobomcomooprincípio.

Todosospratosmatraquearamalegremente,oespanadorfoibuscarsalsaverde

doburacodeareiaecoroouapanela,poissabiaqueissoaborreceriaosoutros,mas

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pensou«Seacoroohoje,vaicoroar-meelaamanhã.»

—Agora vou dançar!—disse a tenaz, e dançou.Deusmeu!Como sabia pôr

umapernanoar!Ovelhopanoquecobriaacadeiraaocantorasgou-seaovê-la.—

Possosercoroada?—perguntouatenaz,efoi.

«Épurapopulaça!»,pensaramosfósforos.

Agoradeviacantarosamovar,masestavaresfriado,disseele,nãoopodiafazer

semestara ferver.Sentia-sedeoutraestirpe.Nãoqueriacantar senãoquandose

encontrasseàmesadosenhorio.

Na janelaestavaumavelhapena,comaqualacriadacostumavaescrever.Não

havianadadenotávelnelasenãoqueforamergulhadademasiadofundanotinteiro,

mas por isso fazia-se grande.— Se o samovar não quer cantar— disse ela—,

deixá-lo! Lá fora está um rouxinol numa gaiola que sabe cantar.Não aprendeu

nada,masnãoqueremosfalarmalestanoite!

—Achomuito impróprio—referiuachaleira,queeraacantoradacozinhae

meia-irmã do samovar — que se tenha de ouvir um pássaro estranho! É isso

patriótico? Quero ouvir a opinião do cesto de compras.— Estou simplesmente

desgostoso!—disseocestodecompras.

—Estouinteriormentetãodesgostoso,comoninguémpodeimaginar!Éestaa

maneira própria de passar a noite?Não seriamais acertado dar uma boa volta à

casa?Cadaumiriaparaoseulugareeudirigiriatodoocodilho.Seriabemoutra

coisa!

— Sim, façamos algazarra! — acrescentaram todos. No mesmo momento a

porta abriu-se.Era a criada, e ficaramquietos.Nenhum tugiunemmugiu.Mas

nãohaviapanelaalgumaquenãosoubesseoquepodiafazerecomoeradistinta.

«Sim,seeutivessequerido»,pensavamelas,«teriasidoumanoitedivertida!»

A criada pegounos fósforos, fez fogo com eles.Deusmeu!Como faiscaram e

flamejaram!

«Agoratodospodemver»,pensarameles,«quesomososprimeiros!Quebrilho

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temos!Queluz!»Eassimarderamcompletamente.

— Foi uma bela história! — disse a rainha. — Senti-me perfeitamente na

cozinhacomosfósforos.Sim,vaisteranossafılha!

—Certamente!—confirmouorei.—Vaisteranossafilhanasegunda-feira!

—Agoratratavam-noportu,poisiapertenceràfamília.

Adatadabodafoifixadaenanoiteanteriortodaacidadefoiiluminada.Bolose

biscoitos voaram ao desbarato. Os rapazes da rua punham-se nos bicos dos pés,

davamhurraseassobiavamcomosdedos.Foiumamaravilha.

«Tenho de ver se faço também alguma coisa!», pensou o filho domercador, e

comprou foguetes, estalinhos e todo o fogo-de-artifício que se podia imaginar.

Carregou-onasuaarcaevooucomeleparaoar.

Rutch!Comosaltava!Ecomoflamejava!

Todososturcosderampulosdecontentes,detalformaqueaspantufasvoaram-

lhes à volta das orelhas.Um espetáculo do céu assim nunca tinham visto. Agora

podiamcompreenderqueeraoprópriodeusdosturcosqueiacasarcomaprincesa.

Logoqueofilhodomercadordesceudenovocomasuaarcaaobosque,pensou:

«Quero ir agora à cidade para ouvir contar como viram o espetáculo!» E era

aceitávelquetivessevontadedisso.

Oh!Oquecontavam!Cadaumadaspessoasaquemperguntoutinha-ovistoa

seumodo,masbonitotinhasidoparatodas.

—Euvioprópriodeusdosturcos—disseuma.—Tinhaosolhoscomoestrelas

brilhantesebarbacomoáguaespumante!

— Voava com uma capa de fogo — acrescentou outra. — Os mais lindos

anjinhosespreitavamdedentrodaspregas.

Sim,foramcoisasbonitasqueouviuenodiaseguinteseriamasbodas.

Entãovoltouaobosqueparasesentarnasuaarca…masondeestavaela?Aarca

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ardera completamente.Uma fagulhado fogode artifício tinha lá ficado, atearao

fogoeaarcaeraagoracinza.Nãopodiavoarmais,nemvoltarparaasuanoiva.

Aprincesaficoutodoodianotelhadoàespera,aindaestáàespera.Maselecorre

mundoecontahistórias.Nãosão já,contudo, tãodivertidascomoadomolhode

fósforos.

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OlavinhoFecha-os-Olhos

Em todo omundo não há ninguém que saiba tantas histórias comoOlavinho

Fecha-os-Olhos…Ecomosabecontá-las!

É à noitinha, quando as crianças estão sentadas, tão boazinhas, àmesa ou nos

seus banquinhos, que chega Olavinho Fecha-os-Olhos. Sobe de mansinho as

escadas, pois anda emmeias, abre aportadevagarinho epuf!, esguicha leitedoce

nos olhos, suavemente, suavemente,mas sempre o bastante para que não possam

mantê-los abertos e, portanto, vê-lo. Passa sorrateiro por detrás, sopra-lhes

levementenanucatornando-lhesacabeçapesada.Oh!Sim!Masnãolhesfazmal,

poisOlavinho Fecha-os-Olhos quer o bem das crianças. Só quer que venham a

estarquietaseassimoestãoquasesempre,quandoas levamparaacama.Têmde

ficarsossegadasparaqueelepossacontar-lheshistórias…

Quandoascriançasjádormem,OlavinhoFecha-os-Olhossenta-senacama.Ele

veste-sebem.Acasacaédeseda,masnãoépossíveldizerquecortem,poisbrilha

comtonsverdes,vermelhoseazuis,conformesemexe.Porbaixodecadabraçotraz

umchapéude chuva:um tem imagens, e essepõe-no sobre as criançasboas,que

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assimsonhamtodaanoitecomasmaislindashistórias,eooutro,noqualnadahá,

põe-nopor cima das criançasmalcriadas, que assimdormem estupidamente e de

manhã,quandoacordam,nemamínimacoisasonharam.

Vamos agora ouvir como Olavinho Fecha-os-Olhos, durante uma semana

inteira, veio todas as noites visitar um rapazinho chamadoHialmar e o que lhe

contou!Aotodosãosetehistórias,poissetesãoosdiasdasemana.

Segunda-feira

—Ouve!—disseOlavinhoFecha-os-OlhosquandoapanhouHialmarnacama.

—Vou fazer agoraumadecoração!—As flores dos vasos transformaram-se em

árvoresgrandes,queestendiamoslongosramosatéaotetoeaolongodasparedes,

demodoquetodooaposentoformavaomaisbonitocaramanchão,etodososramos

estavam cheios de flores e cada flor era mais bonita do que a própria rosa.

Cheiravam tão bem e, quando as comia, eram mais doces do que compota! Os

frutos brilhavam como ouro e havia bolos que transbordavam com passas. Era

incomparável!Masnomesmomomento começouaouvir-seum lamento terrível

nagavetaondeHialmarpuseraoslivrosdaescola.

—Queéisto?—disseOlavinhoFecha-os-Olhos,edirigiu-seàmesa,abrindoa

gaveta.Eraalousa,quesesentiabeliscadaeapertada,poisvieraumnúmeroerrado

paraaconta,demodoqueestavaquaseadesconjuntar-se.Apenapulavaesaltava

naguita,comosefosseumcãozinhoquequeriaajudarnascontas,masnãopodia…

AseguirfoiocadernodeescritadeHialmar,queládentrocomeçoualamentar-se.

Oh!Erahorrívelouvi-lo!Aoalto,decimaabaixo,emcadafolhaestavamtodasas

letras grandes, cada uma com uma pequena ao lado, toda numa fila para baixo.

Eram modelos e ao lado delas estavam também algumas letras que julgavam

parecer-secomelas,escritasporHialmar.Estavamcomosetivessemcaídosobreo

traçodolápis,quandoeranelequedeviamestardepé.

—Vejam, é assimque têmde ficar!—disseramosmodelos.—Vejam, assim

paraolado,comumimpulso,decidido!

— Oh! Bem o queremos! — disseram as letras de Hialmar. — Mas não

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podemos,estamostãomal!

— Então vou ter de sacudir-vos «o pó das bochechas»!— referiu Olavinho

Fecha-os-Olhos.

—Oh!Não!—gritaramelas,elogosepuseramtãodireitasqueeraumgosto

vê-las.

—Bem,agoranãoháhistóriasparacontar!—disseOlavinhoFecha-os-Olhos.

—Tenhodeexercitá-las!Um,dois!Um,dois!—Eexercitouassimasletras,até

que ficaram tãodireitas e tão sãs, como só osmodelos podem ficar.Masquando

OlavinhoFecha-os-OlhossefoiemboraeHialmardemanhãasviu,elasestavam

exatamentetãomiseráveiscomoantes.

Terça-feira

LogoqueHialmarfoiparaacama,tocouOlavinhoFecha-os-Olhoscomasua

seringuinha de duende em todos os móveis do aposento, que imediatamente

começarama tagarelare todos tagarelavamsobresipróprios,excetooescarrador,

que estava calado e resmungavaporque todos eram tão vaidosos, só falandode si

próprios, só pensando em si próprios e não tendo o mínimo pensamento sobre

aquelequealiestavatãomodesto,aocanto,edeixavaquelhecuspissememcima.

Sobreacómodaestavasuspensoumgrandequadronumamolduradourada.Era

umapaisagem.Viam-seárvoresaltasevelhas,floresentreaervaemuitaágua,um

rioquecorriapordetrásdobosque,passandopormuitoscastelos,atélonge,parao

altomar.

OlavinhoFecha-os-Olhostocoucomasuaseringadeduendenoquadroelogo

começaram os pássaros a cantar, os ramos das árvores a mover-se e as nuvens

puseram-seemfuga.Podiamver-seassuassombrassobreapaisagem.

EntãoOlavinhoFecha-os-Olhos levantouopequenoHialmaratéàmoldurae

este meteu as pernas dentro do quadro, no meio da erva alta e lá ficou. O Sol

brilhava por entre os ramos das árvores, descendo sobre ele.Correu para a água,

sentou-se numbarquinho que lá havia.Estava pintado de vermelho e branco, as

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velasbrilhavamcomoprata, e seis cisnes, todos comcoroasdeouronopescoçoe

uma estrela azul cintilante na cabeça, puxaram o barco, passando pelos bosques

verdes, onde as árvores contavam histórias de salteadores e bruxas e as flores

históriasdeadoráveisduendezinhosedoqueasborboletaslhestinhamcontado.

Osmaislindospeixes,comescamascomosefossemprataeouro,nadavamatrás

do barco.De vez emquando davamum salto, depois voltavam a fazer platch na

água.Ospássaros,vermelhoseazuis,pequenosegrandes,voavamemduaslongas

filasportrás.Osmosquitosdançavameosbesourosfaziamzum!,zum!Todoseles

queriamseguirHialmar,etodostinhamumahistóriaparacontar.

Eraumpasseioàvela!Oraeramosbosquesespessoseescuros,oraomaisbelo

jardimcomSolefloreseláhaviagrandescastelosdevidroedemármore.Àvaranda

estavamasprincesasetodaseramasmeninasqueHialmarbemconhecia,poiscom

elas brincara antes. Estendiam as mãos e tinham o mais delicioso porquinho de

açúcar que uma vendedeira de bolos podia vender. Hialmar pegava numa das

extremidades do porquinho de açúcar, enquanto passava de barco, e a princesa

segurava-o bem, de modo que cada um ficava com a sua parte, ela, com a mais

pequena,Hialmar,comamaior.Emcadacastelohaviaprincipezinhosdesentinela

que punham ao ombro os sabres de ouro e faziam chover passas e soldados de

chumbo.Eramverdadeirospríncipes!

OranavegavaHialmarpelosbosques,oraporgrandessalasoupelomeiodeuma

cidade.Chegouassimaatravessaraquelaemquemoravaasuaama,aquelaqueo

trouxeranosbraços,quandoerabempequeninoequetantolhetinhaquerido.Ela

fez-lhe sinal com a cabeça e acenou-lhe, cantando a linda cançãozinha que ela

própriacompuseraelheenviara:

Emtipensoemmuitahora,

meuHialmar,tãocaromeu!

Aboquinhabeijei-teoutrora,

asbochechascoradas,orostoteu.

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Aspalavrasprimeirasouvi-tedizer,

tivedeseparar-medeti,dizer-teadeus.

AbênçãodoSenhorvenhassempreater,

naTerra,anjoqueédoReinodeDeus!

Todosospássaroscantavam.Asfloresdançavamnosseuspéseasvelhasárvores

acenavam,comoseOlavinhoFecha-os-Olhoslhescontassetambémhistórias.

Quarta-feira

Oh!Comochovialáfora!Hialmarpodiaouvi-laemsonho.EquandoOlavinho

Fecha-os-Olhosabriuumajanela,chegavaaáguaatéaopeitoril.Eratodoummar,

masomaisbonitonavioestavajuntoàcasa.

—Queres viajar também, Hialmarzinho?— perguntou Olavinho Fecha-os-

Olhos.—Durante a noite podes alcançar terra estranha e estar aqui de manhã

outravez!

Hialmar ficou logo com a roupa de domingo no meio do belo navio e

imediatamente o tempo se pôs maravilhoso, começaram a navegar pelas ruas,

cruzaramaigrejaeagoraeratudoumgrandemarbravo.Viajaramtantoquenão

haviamais terra para ver e deparou-se-lhes umbando de cegonhas que vinha da

pátria e queria ir para as terras quentes. Cada uma das cegonhas voava atrás da

outra e já tinham voadomuito,muito.Uma delas estava tão cansada que as asas

quaseanãoaguentavammais.Eraaúltimadafilaeembreveficoumuitoparatrás.

Porfim,desceucomasasasabertas,cadavezmaisparabaixo.Adejouaindaumpar

devezes,masnãoserviudenada.Depoistocoucomaspatasnocordamedonavio,

escorregoupelavela,epumba!,poisounacoberta.

Entãoomoçodebordopegounelaepô-lanacapoeira,comasgalinhas,ospatos

eosperus.Apobrecegonhaficoutodadesanimadanomeiodeles.

—Hácadauma!—disseramasgalinhastodas.

Operuinchoutantoquantopôdeeperguntouquemera.Eospatosrecuarame

empurraram-seunsaosoutros:vá!,vá!,vá!

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Acegonha falou-lhesdaÁfricaquente, daspirâmides e da avestruzque corria

comoumcavalo selvagempelosdesertos,masospatosnão entenderamoque ela

contava,assimempurraram-seunsaosoutros,perguntando:

—Nãoconcordamqueelaéestúpida?

— Sim, é certamente estúpida! — retorquiu o peru, gorgolejando. Então a

cegonhacalou-seepôs-seapensarnasuaÁfrica.

—Sãobonitasefinasaspernasquevocêtem!—disseoperu.—Quantocustao

alen1?

—Crá!Crá!Crá!—arreganharamtodosospatos,masacegonhafezcomose

nãotivesseouvidonada.

—Poderirtambém!—disseoperu.—Aquiloqueeudissefoiditocommuita

graça! Ou foi talvez demasiado vulgar! Ah! Ah! Não compreende o espírito!

Permita-nos que continuemos a ser interessantes para nós próprios!—E assim

gorgolejoueospatosgrasnaram:qui,cá!,qui,cá!Eraterrível,pormuitodivertido

queoachassem.

MasHialmarfoiàcapoeira,abriuaporta,chamouacegonha,quesaltouparaele

na coberta. Estava agora repousada e foi como se acenasse a Hialmar para lhe

agradecer. Depois abriu as asas e voou para os países quentes, mas as galinhas

cacarejaram,ospatosgrasnarameoperuficoutodorubronacabeça.

— Amanhã vamos comer sopa de vocês! — disse Hialmar mas, entretanto,

acordoueestavanacaminha.FoiumaviagemmaravilhosaaqueOlavinhoFecha-

os-Olhoslheproporcionounaquelanoite.

Quinta-feira

—Sabesumacoisa?—disseOlavinhoFecha-os-Olhos.—Nãotenhasmedo!

Vais ver um ratinho! — E estendeu a mão para ele, com o leve e encantador

bichinho.—Veioconvidar-teparaocasamento.Háaquidoisratinhosquequerem

contrairmatrimóniohojeànoite.Moramporbaixodadespensadatuamãe.Devem

terassimumabonitacasa!

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— Mas como posso entrar no buraquinho dos ratos no chão? — perguntou

Hialmar.

—Deixa isso porminha conta!— disseOlavinho Fecha-os -Olhos.—Vou

fazer-tepequenino!—Eassim tocoucoma sua seringadeduendeemHialmar,

quelogosefoitornandocadavezmaispequenoatéficardotamanhodeumdedo.

—Agorapodespediremprestadasasroupasdosoldadodechumbo.Pensoquete

servirãoeésemprechiqueaparecerdeuniforme,quandoseestáemsociedade.

—Estábem!—respondeuHialmar.Numinstante,ficouvestidocomoomais

bonitosoldadodechumbo.

—Quereisterabondadedesentar-vosnodedaldevossamãe!—disseoratinho.

—Tereiassimahonradevospuxar!

— Valha-me Deus! Ides dar-vos vós próprio a esse incómodo!— retorquiu

Hialmar.Eassimpartiramparaabodadosratinhos.

Primeiroentraramporbaixodochão,paraumlongocorredorquemaisaltonão

eradoquesepermitiaaíandarnumdedaletodoocorredorestavabemiluminado

commadeiraapodrecida.

—Nãocheiraaquibem?—perguntouoratoqueopuxava.—Todoocorredor

estáuntadocompeledetoucinho.Nãopodesermaisbonito!

Entraram depois na sala da boda. À direita estavam todas as ratinhas, que

murmuravam,comosefizessempoucoumasdasoutras.Àesquerdaencontravam-

setodososratinhos,queacariciavamosbigodescomassuaspatas.Nocentrovia-se

o par de noivos, que estava numa casca de queijo esburacado e se beijocava

escandalosamenteperanteos olhosde todos, pois já eramnoivos e iamcelebrar a

boda.

Chegavam constantemente mais e mais convidados. Cada rato estava quase a

pisarmortalmenteooutroeopardenoivoscolocara-seameiodaporta,demodo

quenemsepodiasairnementrar.Paraobanquete,todaasala,talcomoocorredor,

foiuntadacompeledetoucinho.Paraasobremesafoiexibidaumaervilhaqueum

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ratinho da família tinhamordiscado, gravando os nomes do par de noivos, quer

dizer,asprimeirasletras.Eraalgobastanteextraordinário!

Osratosafirmaramqueforaumabelabodaequeasconversastinhamsidomuito

agradáveis.

Hialmar voltou de carruagem para casa. Estivera realmente numa sociedade

distinta,mastiveratambémdeseencolhertodo,desefazerpequeninoparapoder

entrarnouniformedosoldadinhodechumbo.

Sexta-feira

—É incrível comomuitas pessoas velhas gostariam de me apanhar!— disse

OlavinhoFecha-os-Olhos.—Sãoprecisamenteaquelasquefizeramalgodemal.

— Bom Olavinho! — dizem-me. — Não conseguimos pregar olho e por isso

estamos deitadas toda a noite a ver as nossas ações más que, como pequenos

feiticeirosfeios,sesentamnabordadacamaenossalpicamcomáguaquente.Não

queresvirexpulsá-losparaquepossamosterumbomsono?—Eassimsuspiram

profundamente:

—Queremospagar-te!Boanoite,Olavinho!Odinheiroestánajanela!

—Maseunãofaçonadapordinheiro—disseOlavinhoFecha-os-Olhos.

—Quevamosfazerestanoite?—perguntouHialmar.

—Bem,não sei se tensvontadede ir aumaboda.Édiferentedadeontem.A

bonecagrandedatuairmã,quepareceumbonecoesechamaHermano,vaicasar-

se com a boneca Berta. Além disso é o dia de anos da boneca e por isso vão ser

oferecidosmuitospresentes.

—Sim,conheçoissobem!—disseHialmar.—Semprequeasbonecasprecisam

denovosvestidos,fá-lasminhairmãfestejaroaniversárioouaboda!Jásucedeuisso

umascemvezes!

—Sim,mashojeéabodacentoeumequandosefazacentoeum,estátudo

acabado!Porissoétambémincomparável!Oravê!

Hialmarolhouparaamesa.Láestavaacasinhadecartãocomluznas janelase

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todosossoldadinhosdechumboapresentavamarmascáfora.Opardenoivosestava

sentadonochão, inclinadoparaopédamesa,bastantepensativoebempodia ter

razõespara isso.MasOlavinhoFecha-os-Olhos, vestidocoma saiapretadaavó,

casava-os.Quando a cerimónia terminou, começaram a cantar em coro todos os

móveisdasalaalindacançãoseguinte:Oautoreraolápiseamúsicasoavacomoa

dotoquederecolher.

Anossacançãocomobrisavaichegar

nasalaaosnoivosprontosacasar;

direitinhocomoumpauestáopar

empeledeluvaformaveioatomar!

Hurra!Hurra!Vimospauepelesaudar;

alto,paraoareventoestamosacantar!

Receberamentãoospresentes,mastinhamdeclinadotodasascoisascomestíveis,

poischegava-lhesoseuamor.

—Vamosficarnocampoouviajarparaoestrangeiro?—perguntouonoivo.Por

issofoipedidoconselhoàandorinha,quetinhaviajadomuito,eàvelhagalinhado

pátio,que tinha chocadopintos cincovezes.A andorinha contou coisasdosbelos

paísesquentes,ondeháuvasgrandesepesadassuspensas,ondeoarétãosuaveeas

montanhastêmcoresqueaquimalseconhecem.

—Masnãotêmanossacouve!—disseagalinha.—PasseiumVerãocomtodos

osmeuspintosnocampo.Haviaumasaibreira,ondepodíamosiresgravatareassim

tínhamos admissão a uma horta com couve. Oh! Como era verde! Não posso

imaginarcoisamaisbela!

—Mascadatalodecouveéigualaooutro!—afirmouaandorinha.—Eaqui

fazmuitasvezestãomautempo!

—Sim,masestá-seacostumado!—confirmouagalinha.

—Eaquifazfrio,gela-se!

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— Isso faz bem à couve! — retorquiu a galinha. — Além disso, também

podemos ter calor! Não tivemos há quatro anos um Verão que durou cinco

semanas? Fez tanto calor que não se podia respirar! E não temos aqui todos os

animais venenosos que têm lá?E estamos nós livres de salteadores?É um patife

aquele que não acha que a nossa terra é amais bonita!Nãomerece, na verdade,

viver aqui!— A galinha chorou:—Eu também viajei! Andei numa selha doze

milhas!Nãoénenhumprazerviajar!

—Sim,agalinhaéumacriaturasensata!—disseabonecaBerta.—Também

nãogostodeviajarnamontanha,poissóseandaparacimae,depois,sóparabaixo!

Não,vamo-nosemboraparaasaibreiraepassearnahorta!

Eassimfoi.

Sábado

—Vououviragorahistórias?—perguntouHialmarzinho, logoqueOlavinho

Fecha-os-Olhosoconseguiupôradormir.

—Hoje à noite não temos tempo para isso!—disseOlavinho, abrindo o seu

chapéudechuvamaisbonitoporcimadele—Olhaparaesteschineses!—Etodo

o chapéude chuvapareciaumagrande tigela chinesa comárvores azuis e pontes

agudascomchinezinhosacenandocomacabeça.—Vamoslimpartodoomundoe

pô-lobonitinhoatéamanhã!—disseOlavinho.—Poiséumdiasanto.Édomingo.

Vouaocampanárioverseosduendezinhosdaigrejaestãopolindoossinosparaque

soembem.Vouaocampoverseosventossopram,varrendoervasefolhas,eoqueé

omaiortrabalho,tenhodetrazertodasasestrelasparabaixoparaaspolir.Ponho-

asnomeuavental,masprimeirocadaumatemdesernumerada,eosburacosonde

elasseencontram,láemcima,tambémtêmdesernumerados,paraquevoltemaos

osseuslugares,senãonãosefixametemosdemasiadasestrelascadentes,poiscaem

umasporcimadasoutras.

— Oiça, sabe uma coisa, Sr. Fecha-os-Olhos? — disse um velho retrato

pendurado na parede do quarto em que Hialmar dormia —, sou o bisavô de

Hialmar.Devoagradecer-lheporcontarhistóriasaorapaz,masnãodevebaralhar-

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lheasideias.Asestrelasnãopodemserretiradasafimdeserempolidas.Asestrelas

sãogloboscomoanossaTerraeéprecisamenteoquehádebomnelas!

—Muito obrigado, velho avô!— disseOlavinho Fecha-os-Olhos.—Muito

obrigado!Ésacabeçadafamília,ésa«velha»cabeça!Maseusoumaisvelhodoque

tu! Sou um velho pagão. Os Romanos e os Gregos denominavam-me deus dos

sonhos!Entreinascasasmaisdistintaseaindaentro!Sei lidartantocomgrandes

comocompequenos.Contatuagorahistórias!—EassimpartiuOlavinhoFecha-

os-Olhos,levandoochapéudechuvaconsigo.

—Jánãosepoderealmentedarumaopinião!—observouovelhoretrato.

EentãoacordouHialmar.

Domingo

— Boa noite! — disse Olavinho Fecha-os-Olhos e Hialmar acenou com a

cabeça, mas logo saltou e virou o retrato do bisavô para a parede, para que não

pudessemeter-senaconversacomonanoiteanterior.

—Agoravais-mecontarhistóriassobreascincoervilhasverdesqueviviamnuma

vagemesobre«apernadegaloquefaziaacorteàpernadegalinhaesobreaagulha

depassajarqueeratãofinaquesejulgavaumaagulhadecoser!».

— Pode-se também ter demais do que é bom!— disseOlavinho Fecha-os-

Olhos.—Queroantesmostrar-tealgodiferente,sabes!Queromostrar-teomeu

irmão. Chama-se tambémOlavinho Fecha-os-Olhos,mas nunca visita ninguém

maisdeumaveze,quandovem,leva-onoseucavaloeconta-lhehistórias.Elesó

sabe duas, uma é tão extraordinariamente bonita, que ninguém nomundo pode

imaginá-la, e a outra é tão feia e cruel, que não se pode descrever! — Depois

OlavinhoFecha-os-OlhoslevantouoHialmarzinhoatéàjanelaedisse:

— Vais ver o meu irmão, o outro Olavinho Fecha-os-Olhos! Chamam-no

tambémMorte!Estásaver,nãoparecetãofeiocomonoslivrosdeestampas,ondeé

um esqueleto! Não, há bordados de prata no casaco que traz! É o mais belo

uniformedehussardo!Uma capade veludopreto adeja sobre o cavalo!Vê como

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cavalgaagalope!

Hialmar viu como aqueleOlavinhoFecha-os-Olhospartia a cavalgar, levando

tantogentenovacomovelhanocavalo.Aalgunspunha-osàfrenteeaoutrosatrás,

massemprelhesperguntavaprimeiro:

—Comoestáacadernetadasnotas?

—Boa—respondiamtodos.—Bem,deixa-mevereupróprio!—diziaele.E

assimtinhamdemostrar-lheacaderneta.Osquetinham«muitobom»e«distinto»

vinhamparaa frentedocavaloeeram-lhescontadasasmais lindashistórias,mas

aquelesque tinham«bom» e «sofrível» tinhamde ir para trás e ouviamhistórias

feias.Tremiamechoravam,queriamsaltardocavalo,masnãoconseguiam,poisera

comoseestivessemligadosaelecarnecomcarne.

— Mas a Morte é assim o Olavinho Fecha-os-Olhos mais belo! — disse

Hialmar.—Delenãotenhomedo!

— Não deves ter! — confirmou Olavinho Fecha-os-Olhos. — Procura

simplesmenteterumaboacadernetadenotas!

—Sim, isso é instrutivo!—murmurou o retrato do bisavô.—Sempre ajuda

algumacoisadarumaopinião!—Eficousatisfeito.

PoiséestaahistóriadeOlavinhoFecha-os-Olhos!Eleprópriopodecontar-teà

noitealgomais!

1-Alen=0,627metros.(N.doT.)(Voltar)

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ASereiazinha

Lálonge,nomaralto,aáguaédeumazultãobelocomoasfolhasdamaislinda

centáureaetãoclaracomoovidromaispuro;masétambémmuitofunda,tãofunda

que nenhuma âncora consegue atingir o extremo da sua profundidade. Seriam

precisos muitos e muitos campanários de igrejas, uns por cima dos outros, para

alcançarasuperfíciedaságuas,cáemcima.Alivivemosseresmarinhos.

Nãosedeve,contudo,julgarque,porisso,ofundoéplanoeapenascobertode

areia branca. Não senhor, há árvores e plantas estranhas, de caules e folhas tão

flexíveisqueàmaispequenaondulaçãoseagitam,comoseestivessemvivas.Entre

osramosnadampeixesgrandesepequenos,talcomovoamasaves,cáemcima,ao

arlivre.Éaí,numdoslocaismaisprofundos,queseencontraocastelodoReido

Mar com as suas paredes de coral, as janelas altas em flecha domais translúcido

âmbareotelhadodeconchas,queseabremefechamcomofluxoeorefluxodas

águas.Oseuaspetoémajestoso,cadaconchacontémpérolasbrilhantes,umasódas

quaispoderiaconstituiroornamentomaispreciosodeumacoroaderainha.

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OReidoMarhámuitosanosjáqueenviuvara,masasuavelhamãecuidava-lhe

dogovernodacasa.Eraumasereiabastanteinteligente,mastambémorgulhosada

suanobreza,eporessarazãoandavacomdozeostrasnacauda,enquantoasoutras

damas nobres só podiam ostentar seis. Em tudo o mais era digna dos maiores

elogios, especialmente pelos cuidados que tinha com as netinhas, as Princesas do

Mar.Eram seis sereiazinhasmuito lindas,mas amais nova era amais bonita de

todas.Asuapeleeraclarae finacomoumapétaladerosa,osolhosazuiscomoo

lagomais profundo,mas, como as irmãs, não tinha pés e o corpo terminava em

caudadepeixe.

Podiamentreter-setodoodiaabrincarnagrandesaladopalácio,cujasparedes

eram inteiramente decoradas com flores.Quando as grandes janelas de âmbar se

abriamdeparempar,ospeixesentravam,talcomosucedecomasandorinhas, se

deixamosabertasas janelasdasnossascasas,dirigiam-se logoparaasprincesinhas

comiamdassuasmãosedeixavam-seacariciar.

Emfrentedopaláciohaviaumgrande jardimcomárvorescorde fogoeazul-

escuras,cujosfrutosbrilhavamcomosefossemdeouroeasflorespareciamchamas

tremeluzindo,poisestavamsempreaagitaroscauleseasfolhas.Oprópriochãoera

deareiafiníssima,mascomumacorazuladasemelhanteàdaluzdoenxofrequando

arde.Tudoirradiavaumadmirávelresplendorazul.Dava-nosquaseasensaçãode

estarmosa flutuarnoaredevermosocéuporcimaeporbaixo,mesmosabendo

que era o fundo do mar. Com tempo calmo podia ver-se o Sol como uma flor

purpurinacujocáliceeraocentroirradiadordetodaaluz.

Cadaprincesinhatinhaoseupedacinhode jardimondepodiacavareplantaro

que quisesse. Uma dera ao seu canteiro de flores a forma de uma baleia, outra

preferiraqueoseuseparecessecomumapequenasereia,masamaisnovafizera-o

perfeitamentecircularcomooSoleenchera-oapenascomfloresvermelhasquese

lheassemelhavamnobrilho.Erauma sereiazinhaum tantoestranha, silenciosa e

triste, e enquanto as irmãs se adornavam com as coisas raras que apanhavamdos

barcos naufragados, ela só queria para brincar, além das flores vermelhas que se

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pareciamcomoSol,umabelaestátuademármorequerepresentavaumformoso

jovem,esculpidaempedrabrancaepolida,que,comoutrosdestroços,vieraparar

aofundodomar.Plantaraaopédaestátuaumchorãocor-de-rosa,quecrescerade

modoextraordinário,deixandopenderasbraçadasfrondosassobreaestátuaparao

fundodeareiaazul,ondesombrasdevioletasseagitavamconstantementecomos

próprios ramos. Dava a impressão de que a copa e as raízes brincavam e se

beijavam.

Nadaeramaisgratoàprincesadoqueouvirfalardomundodoshomensláem

cima;eavelhaavótiveradecontar-lhetudooquesabiasobreosnavioseascidades,

oshomenseos animais,parecendo-lhe sobretudodignodeadmiraçãoque, lá em

cima,naterra,asflorestivessemaroma—oquenãosucedianofundodomar—,

que os bosques fossem verdes e que os peixes, movendo-se de ramo em ramo,

possuíssemumavozsonoraebela,sendoumprazerouvi-los.Eram,claroestá,os

passarinhos,aqueaavóchamavapeixes,porquesóassimpodiamcompreendê-la,

poisjamaistinhamvistoumaave.

—Quandocompletardesquinzeanos—disseaavó—,recebereisautorização

parasairdomaresentar-vosnosrochedos,aoluar,averpassarosgrandesnavios.

Tereisentãoaoportunidadedevertambémosbosqueseascidades!

No ano seguinte uma das irmãs completou quinze anos, mas a mais nova—

faziamdiferençadeumanoumasdasoutras—tinhadeesperaraindacincoanos

parapodersubirevercomoeramascoisasdonossomundo.Amaisvelha,porém,

prometeucontaràsoutrasoqueviesseaobservareachassemaisbelonoprimeiro

diaquesaíssedomar,poisaavónãolhesdisseraosuficienteehaviatantacoisaque

elasqueriamsaber.

Nenhumamanifestava,porém,tantaimpaciênciacomoamaisnova,justamente

a que tinha de esperarmais tempo e semostrava tão calma e pensativa. Passava

muitasnoitesàjanelaaolharparacima,atravésdaáguaazul-escura,ondeospeixes

semoviamagitandoasbarbatanaseascaudas.ÀLuaeàsestrelasconseguiavê-las,

maispálidasno seubrilho,mas também,vistas assimatravésda água,maioresdo

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queaparecemaosnossosolhos.Sepassavaumagrandenuvemláemcima,sabiaque

se tratava de uma baleia que nadava por cima dela ou de um navio commuitos

homensabordo,quenãopodiampensarcertamentequeumalindasereiazinhase

encontravalánofundo,estendendoosalvosbraçosnadireçãodaquilhadobarco.

Chegou, pois, a altura emque a princesamais velha completouquinze anos e

obteveautorizaçãoparasubiràsuperfíciedomar.

Quandovoltou,traziacentenasdecoisasparacontar,masamaisbela,disse,fora

deitar-senumbancodeareia,aoluar,comomarcalmo,aobservardeperto,juntoà

costa,umagrandecidade,cujasluzescintilavamcomocentenasdeestrelas,ouvira

música, os ruídos e os rumores das carruagens e dos homens, ver os muitos

campanárioseasflechasagudasdastorreseescutarossinosatocar.

Oh,comqueavidezaouviraairmãmaisnova!Precisamenteporquenãopodialá

ir,ficaracommaisvontadedevertudoaquilo.Logoqueanoiteceu,foipostar-seà

janela a olhar para cima, através da água azul-escura, a pensar naquela grande

cidadecomtodososseusruídosebulício,parecendo-lheatéqueouviaosomdos

sinosdasigrejas.

Umanodepoisrecebeuaoutrairmãautorizaçãoparaviràsuperfícieenadarpor

ondequisesse.EmergiuprecisamenteaopôrdoSol,eesseespetáculoconsiderou-o

como a coisa mais bonita que vira. O céu parecia de ouro— declarou— e as

nuvens, ai!, as nuvens, era impossível descrever toda a sua beleza! Com tons

vermelhosevioláceos,haviamnavegadoporcimadela,masmuitomaisvelozforao

voo de um bando de cisnes, parecendo um longo véu branco, sobre a água, em

direçãoaoSol.Tentaratambémnadardireitoaele,masafundou-sedeprontoeo

clarãoróseoextinguiu-seaoníveldaáguaeporentreasnuvens.

Decorridomais um ano, coube a vez à terceira irmã de vir à superfície.Era a

maisaudaciosae,portanto,foinadandoatéaumriolargoquedesembocavanomar.

Pôde,então,verasbelasencostasverdescomosseusvinhedos,castelosepomares

entrebosquesmaravilhosos.Tevetambémoportunidadedeouvircantarospássaros

eoSoleratãofortequeseviuobrigadaasubmergirváriasvezespararefrescaro

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rostoafogueado.Numapequenabaíaencontrouumgrupodeserezinhoshumanos,

completamentenus, a correremea chapinharemnaágua.Quisbrincarcomeles,

mas logo fugiram assustados, e veio depois um animalzinho preto, um cão, que

nunca vira antes.Ladrou-lhe de ummodo tão assustador que tevemedo e fugiu

para o alto mar.Não podia, porém, esquecer os bosques magníficos, os montes

verdejantes e as encantadoras crianças, que também sabiam nadar, apesar de não

teremcaudasdepeixe.

Aquartairmãnãoforatãoaudaciosa:quedara-senomaraltoedissequeforaisso

exatamenteoquevirademaisbelo.Oolharestendia-semuitasemuitasmilhasao

redoreocéuláemcimapareciaumaenormecampânuladevidro.Avistaratambém

algunsnavios,masaolonge,quaisgaivotas,observaragraciososgolfinhosfazendo

piruetas e enormes baleias que lançavam jatos de água das narinas, dando a

impressãodecentenasdefontes,àsuavolta…

Chegou então a vez da quinta irmã, cujo aniversário ocorreu precisamente no

invernoeque,portanto,teveaoportunidadedever,pelaprimeiravez,coisasqueas

outras não tinham visto. O mar apresentava uma cor verde e por toda a parte

flutuavamgrandes iceberguesquepareciampérolas—contouela—,masmuito

maioresqueoscampanáriosconstruídospeloshomens.Tinhamformaslindíssimas

e brilhavam como diamantes. Sentou-se num dos maiores e todos os veleiros se

desviavamcommedo,paralongedosítioondeelaestava,comoscabelosaovento.

Denoite,océucobriu-sedenuvens,começouarelampejareatrovejar,enquantoo

marimensofaziabalançarosgrandesblocosdegelo,brilhandocomaluzfortedos

raios.Nosbarcosarriavam-seasvelasehaviaconfusãoeterror,maselacontinuara

tranquilamente no balançante icebergue, vendo tombar as faíscas com a sua luz

azul,emziguezague,nomarchamejante.

Daprimeiravezemquecadaumadasirmãsvieraàsuperfície,asoutrashaviam

ficadofascinadascomasnovidadeseabelezaquediziamtervisto;masagora,quejá

eramcrescidasetinhamautorizaçãoparasubirsemprequequisessem,ointeresseia

diminuindo, começavam a sentir saudades do seu mundo e, após um mês,

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declararamquelánofundo,nofimdecontas,eratudomuitomaisbonito.Eraem

casaquesesentiambem.

Algumasvezes,aoentardecer,ascincoirmãsdavamosbraçosesubiamemfilaà

superfície; possuíambelas vozes,mais belas do que a de qualquer ser humano, e

quando rebentava uma forte tempestade que as levava a supor que os navios

corriamoperigodenaufragar,balouçavam-sediantedelesecantavam-lhes lindas

canções,enaltecendoabelezadofundodomar,assimexortandoosmarinheirosa

nãoteremmedodedesceràssuasprofundezas.Estes,porém,nãoentendiamnem

aquelescânticosnemaquelaspalavras, julgavamtratar-sederuídosdatempestade

e,alémdisso,nuncatinhamapossibilidadedeadmirarasbelezassubmarinas,pois,

quandoonavioiaaofundo,morriamafogadoseapenascomocadávereschegavam

aopaláciodoReidoMar.

Quando à tardinha, as irmãs subiam de braço dado, a mais nova ficava

completamente só a olhá-las e dir-se-ia que chorava, mas as sereias não deitam

lágrimasesofrem,destemodo,muitomais.

—Ai!Quemmedera já terquinze anos!—dizia.—Como sintoquevirei a

gostardomundoláemcimaedoshomensqueohabitam!

Atéque,finalmente,chegouodiaemquecompletouquinzeanos.

—Bem,éatuavezagora—disseaavó,avelharainhaviúva.—Vem,quevou

enfeitar-te,comofizàstuasirmãs!

Colocou-lheumacoroadelíriosbrancosnacabeça,cujaspétalaseramcompostas

pormeiaspérolas emandouaderiroitograndesostras à caudadaprincesa, como

distintivodasuaaltaestirpe.

—Ai,quefazdoertanto!—disseasereiazinha.

—Claro,paraseserbelatemdesesofrer!—retorquiuaanciã.Oh!Comolhe

apetecia sacudir para fora de si todos aqueles atavios e arremessar para longe a

pesada coroa! Ficaria muito melhor com as flores vermelhas do mar, mas não

ousavaircontraatradição.

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—Adeus—dissedepois,ecomeçouasubirtãoligeiraediáfanaqualbolhadear,

atravésdaáguadomar.

OSolacabaradepôr-sequandoemergiuacabeçadaágua,mastodasasnuvens

brilhavamaindacomtonsderosaeouroenomeiodocéuróseoluziaaestrelada

tardecomtodaasuacintilantebeleza.Aaragemerasuaveefrescaeomarestava

absolutamentecalmo.Apequenadistânciaencontrava-seumgrandenaviodetrês

mastros,apenascomumavelaiçada,poisnãocorriaamenorbrisaeportodaaparte

se suspendiam os marinheiros no cordame e nas enxárcias. Ouvia-se tocar

instrumentosecantare,assimquesefeznoite,acenderam-secentenasdelanternas

de várias cores; era como se ao vento ondulassembandeiras de todos os países.A

sereiazinha aproximou-se um pouco das vigias dos camarotes e quando a

ondulação a levantou pôde ver, lá dentro, através dos vidros límpidos como

espelhos, um grupo de homens ricamente vestidos. O mais belo de todos era,

porém,umjovempríncipedegrandesolhosnegros.Nãodeviatermaisdedezasseis

anos e naquele dia festejava-se, com toda a pompa, o seu aniversário. Os

marinheirosdançavamalegrementenacobertaequandoopríncipesaiuestalaram

nocéucentenasdefoguetesqueiluminaramtudoàvoltacomosefossediaclaro,de

tal modo que a sereiazinha se assustou terrivelmente, logo mergulhando a

esconder-seno fundodomar.Quandovoltouapôr a cabeçade forapareceu-lhe

que as estrelas tombavam sobre ela.Nunca antes vira um fogo de artifício. Era

como se rodopiassem grandes sóis, maravilhosos peixes de fogo sulcassem o ar,

refletindo-senomarespelhanteecalmo.Opróprionavioficoutãoiluminadoque

sepodiadistinguiramaispequenacorda,nãofalando jádoshomens.Ecomoera

bonito o jovem príncipe, que apertava as mãos aos marinheiros, sorrindo e

gracejando,enquantosoavaamúsicananoiteesplendorosa!

Era já tarde, mas a sereiazinha não conseguia desviar os olhos do navio e do

encantadorpríncipe.As lanternasmulticolores foram-se extinguindo,os foguetes

deixaram de estalar, emudeceram os canhões, mas nas profundezas do mar

começaram a ouvir-se ruídos surdos e estranhos. Continuava ao sabor do mar,

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balouçando-se para cima e para baixo a fim de poder observar o que se passava

dentrodoscamarotesatéqueonavio tomouumandamentomaior, foi içadavela

após vela, a ondulação aumentou, correram grandes nuvens no céu e lá longe

começou a relampejar. Ai! Ia desencadear-se uma terrível tempestade! Por isso

voltavam os marinheiros a arriar as velas. O grande navio balouçava, navegando

vertiginosamente no mar bravo, que se elevava cada vez mais, como grandes

montanhasnegrasque ameaçavamderrubarosmastros.Flutuava, contudo, como

umcisne,oraafundando-seentreasaltasondas,oravoltandoaerguer-senomar

revolto.Para a sereiazinha tudo isto eramuitodivertido,masosmarinheirosnão

tinhamamesmaopinião.Onaviorangia,estalavaeasgrossaspranchastorciam-se

comosembatesfortesquerecebiam.Começouameterágua,partiu-seomastroao

meiocomosefosseumasimplescanaefoiadornandolentamenteàmedidaquese

inundava.Sóquandoreparouque tinhade seacautelarcomas tábuase restosdo

navioqueflutuavamnomar,équeasereiazinhaseapercebeudoperigoqueonavio

corria.Porummomentofoitãograndeaescuridãoquenadaconseguiadistinguir,

maslogoquevoltouarelampejarfez-setudoclaroàsuavoltaepôdereconheceros

homens a bordo. Cada um tentava salvar-se conforme podia. Procurou com

ansiedade o jovem príncipe e descobriu-o precisamente quando o navio se

desmantelavaeiaafundar-se.Asuaprimeirareaçãofoideintensaalegria,poisiria

assim tê-lo inteiramente para si, mas logo se lembrou de que os homens não

conseguemvivernaáguaequesómortopodiadesceraopaláciodeseupai.Ai!

Não! Morrer, isso não! Começou a nadar entre as vigas e as pranchas que

flutuavam, sem se lembrar dequepodiam esmagá-la,mergulhouprofundamente

na água e voltou a subir por entre as altas ondas, alcançando por fim o

principezinho, que já não tinha forças para se manter por mais tempo no mar

tempestuoso.Estava exausto, os braços e aspernas entorpecidos, os belos olhos a

cerrarem-se-lhe e teria sucumbido, sem dúvida, se a sereiazinha o não tivesse

alcançado.Segurou-lheentãoacabeça,mantendo-aaodecimadaáguaedeixou-se

levaraosabordasondas.

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Quandoamanhãchegou,a tempestade já tinhapassado.Donavionãoseviao

mínimopedaço,oSolcomeçouaaparecer,rubro,brilhandosobreasuperfíciedas

águas, e era como seo rostodopríncipe fosse tomandovida, emboracontinuasse

comosolhosfechados.Asereiabeijou-lheatestaaltaebelaepuxou-lheoscabelos

molhados para trás. Achava-o muito parecido com a estátua de mármore que

guardavaláembaixo,noseupequenojardime,então,voltouabeijá-lo,desejando

detodoocoraçãoquevolvesseàvida.

Poucodepois avistou terra firme:umasmontanhas altas e azuladas,nos cumes

dasquaisluziaanevebranca,comosefossemcisnesqueaíestivessempousados.Cá

em baixo, junto à costa, havia belos bosques verdes e em frente uma igreja ou

mosteiro, não sabia bem,mas eraumedifício, comcerteza.Nopomar vicejavam

limoeiros e laranjeiras e diante dos portões erguiam-se altas palmeiras. Aí omar

formavaumabaiazinha,calmamasbastantefunda,ealongava-seatéaosrochedos,

onde se recortava uma pequena praia de areia branca. Nadou para a praia

arrastandoopríncipe,pousou-odepoissobreaareiaeteveocuidadodelheerguer

acabeça,sobosraiosquentesdoSol.

Soaram sinetas no grande edifício branco e logo depois começaram a sair

donzelasparaopomar.Então,asereiazinhalançou-seaomar,afastou-separatrás

deumas rochasque sobressaíamda água, colocouespumadomarno cabelo eno

peito para que não pudessem ver o seu pequeno rosto, e ficou à espera de que

alguémencontrasseopobrepríncipe.

Não levoumuito tempo até que uma das jovens se encaminhasse para a praia.

Pareceuficarmuitoassustada,masapenasporummomento,porquelogocorreua

buscarajudaeasereiapôdevercomoopríncipesereanimavaesorriaatodosàsua

volta.Sónãosorriaparaela, ignorandonaturalmentequemotinhasalvo.Sentiu,

então, uma dor tão profunda que, quando ele se dirigiu para o grande edifício,

mergulhoue,cheiadetristeza,regressouaopaláciodopai.

Forasemprecaladaetaciturna,masagoraaindaeramais.Asirmãspediram-lhe

quelhescontasseoquetinhavisto,naprimeiravezquesubiraàsuperfíciedomar,

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maselanadalhesquisdizer.

Vinhamuitasvezes,aoentardeceredemanhãzinha,aolocalondehaviadeixado

opríncipe.Observou,assim,comoiamamadurecendoosfrutosdopomarecomo

vieram a ser colhidos; viu a neve derreter-se no alto das montanhas, mas nunca

conseguiuveropríncipe;e,portanto,voltavaparacasacadavezmaistriste.Oúnico

consoloeraficarsentadanoseujardinzinhoeenlaçarcomosbracitosabelaestátua

demármoreque se lhe assemelhava.As flores, porém, jánão lhe agradavamnem

cuidavadelas e assim foramcrescendo comoummatagal, cobrindoos carreiros e

entrelaçandooscauleslongoseasfolhasporentrearamagemdasárvores,demodo

quetudopareciamergulhadoemtrevas.

Porfimnãoconseguiuguardarmaisoseusegredo;contou-oaumadasirmãse

logo as outras vieram a sabê-lo, mas só elas e algumas amigas íntimas tomaram

conhecimentodocaso.Umadestasamigas,queassistiratambémàfestanonavio,

sabiaquemeraopríncipeeondeficavaoseureino.

—Vem, irmãzinha!—disseram as princesinhas e, enlaçadas umasnas outras,

subiram em longa fila à superfície domar, onde sabiam que ficava o palácio do

príncipe.

O palácio era feito de uma espécie de pedra brilhante, amarela-clara, com

grandes escadariasdemármorequedesciamsobreomar.Erguiam-semagníficas

cúpulas douradas sobre os telhados e entre as colunas que circundavam todo o

edifício havia estátuas de mármore que pareciam ter vida. Por detrás dos vidros

claros das altas janelas podiam ver-se belos salões, onde se suspendiam ricas

tapeçariasecortinadosdeseda,etodasasparedesadornadascomgrandesquadros,

o que era verdadeiramente um prazer contemplar. A meio da sala maior estava

colocadaumagrande fonte cujos repuxos se elevavamaté à cúpulade cristal, por

ondeentravaoSol,fazendobrilharosjatosdeáguaeasbelasplantasquecresciam

nataçamonumental.

Agoraquesabiaondeviviaopríncipe,vinhapassarmuitastardesenoitesjunto

ao palácio. Aproximava-semuitomais de terra do que qualquer uma das irmãs;

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subira mesmo o estreito canal por debaixo do belo terraço que projetava uma

espessasombranaágua.Aíseescondiaeficavaaolharojovempríncipe,quejulgava

estarcompletamentesósobaluzclaradoluar.

Via-o, também, muitas vezes a passear na sua bela barca, com ondeantes

bandeiraseaosomdemúsicamaravilhosa.Espreitava-oatravésdosjuncosverdes,e

seovento lheagitavao longovéuprateadoeadescobria, julgavamosqueaviam

queeraumcisnequeabriaasasas.

Denoiteouvira,algumasvezes,ospescadores,quepescavamcomtochasnomar.

Referiam-seaopríncipeemtermoselogiososeapequenasereiaalegrou-seporlhe

tersalvoavidaquando,meiomorto,vogavaaosabordasondas,recordandocomo

repousaraacabeçanoseuseioeternamenteohaviabeijado.Ele,contudo,denada

sabiaenemporsombrasopodiasuspeitar.

Cadavezgostavamaisdoshomens,cadavezgostavamaisdeestarpróximodeles.

O seumundo parecia-lhe sermuitomaior do que aquele em que vivia! Iam até

muito longe nos seus barcos, subiam aos altos cumes das montanhas acima das

nuvens,easterras,comosseusbosqueseprados,estendiam-semuitoparaalémdo

alcance da sua vista.Haviamuitas outras coisas que gostava de conhecer,mas as

irmãsnãosabiamresponder-lheatodasasperguntas.Dirigiu-se,portanto,àvelha

avó,queconheciabemaquelemundosuperioraquemuitojustamentedenominava

«ospaísessobreomar».

—Quandooshomensnãomorremafogados—perguntouasereiazinha—,é

verdadequevivemeternamente,quenãoprovamamorte,comonósaquinomar?

—Não—respondeuaanciã—,elestambémtêmdemorrereasuavidaéainda

mais curta do que a nossa. Nós podemos viver trezentos anos, mas quando

deixamosdeexistirtransformamo-nossimplesmenteemespumadomarenuncahá

campaoutúmulo,cáembaixo,quenosrecordeaosentesqueridos.Nãotemosuma

almaimortal, jamaisrenascemos,somoscomoacanaverde,que,umavezcortada,

nãovoltaacrescer!Oshomens,emcontraposição,possuemalma,quetemsempre

vida,mesmodepoisdocorposedesfazerempó,ascendendoentãonoardiáfanoaté

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ondeestãoasestrelasrutilantes!Assimcomonósemergimosdomarepodemosver

a terra dos homens, também eles se desprendem da terra para subirem a lugares

maravilhosos,desconhecidos,quenuncanosserádadover.

— E porque não temos nós também uma alma imortal? — perguntou a

sereiazinhamuitotriste.—Daria,debomgrado,ostrezentosanosquetenhopara

viver, para ser, por um dia apenas, um ser humano e poder partilhar, depois, do

mundocelestial!

—Não penses nisso!— retorquiu a anciã.— Somosmelhores emuitomais

felizesdoqueoshomensláemcima!

—Masmorrerassim,ficandoaflutuarcomoespumadomar,nãoouvirmaisa

músicadasondas,nãopodermaiscontemplarabelezadasfloresnemobrilhorubro

doSol!Nãoexiste,assim,nenhummeiodealcançarumaalmaimortal?

—Não—respondeuaavó—,sóseumhomemviesseagostartantodetique

fossesparaelemaisdoqueumpaiouumamãe,queeleseprendessedetalmodoa

ti,empensamentoecoração,quefossepediraumsacerdoteparavosunirasmãos

comapromessadefidelidadenestemundoeportodaaeternidade.Então,aalma

deleentrarianoteucorpoeparticiparias,assim,dabem-aventurançahumana.Dar-

te-iaaalma,semperderasuaprópria.Masissonuncaserápossível!Oqueaqui,no

mar,étãobonito—atuacaudadepeixe—,éconsideradoláemcimaumacoisa

feia;sãoincapazesdecompreendê-la.Sãonecessáriosdoissuportesmaciços,aque

chamampernas,paraseserbonito!

A sereiazinha suspirou profundamente e olhou com tristeza para a cauda de

peixe.

—Masalegremo-nos—continuouaanciã—,folguemosedivertamo-nosnos

trezentosanosqueteremosdeviver.É,naverdade,umperíododetempobastante

longo,masdepoismaisvontadeteremosdedescansar.Estanoitehaveráumbailede

gala!

Afestafoideumamagnificênciaimpossíveldeimaginarnaterra.Asparedeseo

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tetodograndesalãodebaileeramdecristalespessomastranslúcido.

Centenasdeconchascolossais,cor-de-rosaeverdes,enfileiravam-sedecadaum

dos lados, irradiando uma forte luz azul, que iluminava todo o salão e que,

atravessando as paredes de cristal, vinha refletir-se claramente cá fora, no mar.

Podia ver-se uma imensidade de peixes, grandes e pequenos, nadando junto às

paredes de cristal e cujas escamas brilhavam com tons de púrpura, de ouro e de

prata. Ao meio, atravessando a sala, fluía uma larga corrente onde dançavam os

cavalheiros edamasdomundo submarino, ao somdas suasprópriasmaravilhosas

canções.Vozesassimtãobelasnãoaspossuemosseresterrestres.Asereiazinhafoi

quem cantoumelhor.Por isso foimuito aplaudida e, porummomento, sentiu o

coraçãozinhoinundar-se-lhedealegriaporsaberquetinhaavozmaisbeladaterra

e do mar. Mas logo voltou a pensar no mundo dos homens lá em cima. Não

conseguiaesquecerobelopríncipenemamágoaquesentiapornãopossuir,como

ele,umaalmaimortal.Saiudespercebidamentedopalácioreale,enquantoportoda

aparte seouviamcanções e a alegria erageral, foi sentar-se,muito triste,no seu

jardinzinho.Ouviu,então,atravésdaágua,umatrompasoarláemcimaepensou:

«Nestemomentopasseiadebarco,certamente,aqueleaquemqueromaisdoquea

minhamãe e ameupai, aquele que é omeuúnico pensamento e em cujasmãos

deporiaodestinodaminhavida.Tudoheidefazerparaalcançarumaalmaimortal!

Enquantoasminhas irmãsdançam ládentro,noPalácio, irei àbruxadomar,de

quem sempre tive tanto medo, mas que pode, talvez, aconselhar-me e auxiliar-

me!»

Então, a sereiazinhapartiudo seu jardimemdireção ao sorvedouro espumoso

pordetrásdoqual vivia abruxa.Nuncaantespercorrera aqueles caminhos,onde

não havia nem flores nem algas, apenas um fundo arenoso, pardo e deserto se

estendianadireçãodosorvedouroefervescente,ondeaágua,comorodaespumante

demoinho, remoinhava continuamente, arrastandoparao fundo tudooquenela

tombava. Era pelo meio daqueles furiosos remoinhos que teria de seguir para

penetrarnosdomíniosdabruxadomarenãohavia,namaiorpartedotrajeto,outro

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caminho senão um lamaçal quente e borbulhoso a que a bruxa chamava a sua

turfeira.Pordetrás,nomeiodeumbosqueestranho,ficavaacasaondevivia.Todas

asárvorese arbustoserampólipos,metadeanimaismetadeplantas,quepareciam

serpentescomcentenasdecabeças, saindodochão.Osramoseram longosbraços

viscososcomdedosqueseassemelhavamavermesflexíveis,movendo-se,emtodas

asarticulações,daraizàpontamaisextrema.Tudooquepodiamapanharnomar

eraenlaçadoporelesenuncamaisolargavam.Asereiazinhaestacou,terrivelmente

assustada. Cheia de medo, com o coração aos pulos, esteve quase a regressar,

desistindo do seu empreendimento, mas voltou a pensar no príncipe e na alma

humanaerecobrouoânimo.Atouolongocabeloondulanteàvoltadacabeça,para

queospóliposonãopudessemagarrar,cruzouosbraçossobreopeitoelançou-se

emfrente,deslizandocomoumpeixe,porentreoshorríveispólipos,queestendiam

os membros e os dedos flexíveis para ela. Pôde assim ver como cada um deles

segurava alguma coisa que havia agarrado e que centenas de pequenos braços a

prendiam como com fortes aros de ferro.Náufragos que tinham vindo parar ao

fundo do mar eram agora brancos esqueletos nos braços dos pólipos. Prendiam

também, fortemente, remos, caixas, carcaças de animais terrestres emesmo uma

sereiazinhaquetinhamapanhadoeestrangulado.E,naturalmente,foiessaavisão

quemaisaimpressionou.

Chegou depois a umgrande largo viscoso, na floresta da bruxa, onde rolavam

enormes e bojudas serpentes aquáticas, mostrando os ventres repelentes de cor

amarela-clara.Erguia-se aí, ameio,uma casa edificada comosossosbrancosdos

náufragos.Ládentroestavaabruxadomardeixandoumsapocomerdasuaboca,

tal como os homensmimoseiam um canariozinho com pedacinhos de açúcar. Às

gordas e nojentas serpentes aquáticas chamava ela «pintainhos» e deixava-as

revolverem-sesobreoseuenormepeitoesponjoso.

—Já sei a que vens—disse a bruxa domar.—Éumagrande asneira oque

pretendes!Dequalquermodo,seráfeitaatuavontade,massótetraráinfelicidade,

minha linda princesinha.Queres libertar-te da cauda de peixe e substituí-la por

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doisapêndicesparaandarescomooshomensetudoissoparaqueoprincipezinho

seenamoredeti,opossastersóparatievenhasaindaaalcançarumaalmaimortal!

—A bruxa deu depois uma gargalhada tão ruidosa e repulsiva que os sapos e as

serpentes tombaram no chão, onde ficaram a revolver-se. — Chegas mesmo a

tempo—continuouabruxa.—Amanhã,depoisdeoSolnascer, já seria tarde e

antesdeumanodecorridonãotepoderiaajudar.Voupreparar-teumapoção,que

levarásparaterraantesdonascerdoSoleque,sentadanumapraia,deverásbeber.A

tuacaudaseparar-se-ádocorpoecontrair-se-ánaquiloqueoshomensdenominam

umas pernas encantadoras, mas isso produzir-te-á dores horríveis, como se te

trespassasseumaespadaaguçada.Todososquetecontemplaremdirãoquejamais

viramum ser humano tão belo como tu.Conservarás o teu andar ondulante que

nenhuma bailarina saberá igualar, mas por cada passo que deres será como se

pisasses uma faca afiada que te fizesse sangrar. Se és capaz de sofrer tudo isto,

ajudar-te-ei.

—Sim—respondeuasereiazinhacomvoztremente,pensandonopríncipeena

almaimortalaquetantoaspirava.

— Mas deves lembrar-te — continuou a bruxa — de que, quando tiveres

recebidoaformahumana,nãopoderásvoltarasersereia!Jamaisdescerásatéonde

estãoastuasirmãseopaláciodeteupai.Senãoconseguiresoamordopríncipe,de

modoque,porti,elepossaesquecerpaiemãeetusejasoseuúnicopensamentoe

umsacerdotevenhaunirasvossasmãos,tambémnãoalcançarásumaalmaimortal!

Na manhã seguinte a ter-se casado com outra, o teu coração quebrar-se-á e

transformar-te-ásemespumadomar.

—Aceito—disseaprincesinha,tornando-sepálidacomoumdefunto.

—Mastambémamimterásdepagar-meporesteserviço—prosseguiuabruxa

—,enãoépoucooquetepeço.Possuisavozmaisbeladetodasnósaquinofundo

domar;epensasviraencantaropríncipecomela,masessa lindavozterás tude

dar-me.O que demelhor possuis quero-o pelaminha poção preciosa. Também

tereideoferecer-teomeuprópriosangueparaqueapoçãosejacortantecomouma

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espadadedoisgumes.

—Massemetirasavoz—perguntouasereiazinha—,oquemerestaentão?

—A tuabela figura—retorquiu abruxa—,o teu andarondulante e os teus

belos olhos expressivos, comque poderásmuito bem perturbar o coração de um

homem.Então,jáperdesteacoragem?Anda,põealínguadeforaparaqueapossa

cortar,empagadamilagrosapoçãoquetevoupreparar!

—Assimseja!—respondeuasereiazinha,eabruxafoibuscarocaldeirãopara

cozinharapoçãomiraculosa.

—Alimpezaéumacoisamuitobonita!—disseabruxa,esfregandoocaldeirão

com as serpentes enrodilhadas e atadas com nós. Arranhou depois, com força, o

peitoedeixoucairládentroalgumasgotasdoseusanguenegro.Ovaporformava

estranhas e horrorosas figuras, de meter medo. A bruxa continuava a deitar

ingredientesemais ingredientesnocaldeirão,equandoapoçãocomeçouaferver

era como se um crocodilo chorasse. Por fim, ficou pronta, tomando o aspeto da

águamaiscristalina.

—Aquiatens—disseabruxa,elogoemseguidacortoualínguaàsereiazinha,

queficou,assim,completamentemuda,sempodercantarnemfalar.

— Se os pólipos te agarrarem quando fores a atravessar o meu bosque —

continuouabruxa—,atira-lhesumasgotinhas,quelogoficarãocomosbraçoseos

dedosfeitosemmilpedaços.

Não foi, porém, preciso que a sereiazinha se defendesse deste modo, pois os

póliposafastavam-seaterrorizados logoqueviamabrilhantepoçãoque lhe luzia

nasmãos, como se fosse uma estrela cintilante.Atravessou, assim, rapidamente o

bosque,opântanoeosorvedourorugiente.

Avistouopaláciodopai,ondeas luzes estavam já apagadasnogrande salãode

baile.Dormiamjátodos,certamente,enãoousouaproximar-se;agoraeramudae

ansiava sair dali para todo o sempre. Parecia que o coração lhe saltava do peito.

Entrou silenciosamenteno jardim, colheuuma florde cadaumdos canteirosdas

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irmãs,lançoumilbeijosnaspontasdosdedosnadireçãodopalácioesubiuatravés

domarazul-escuro.

OSolaindanãohaviarompidoquandodescobriuopaláciodopríncipeesefoi

sentar nos degraus da bela escadaria de mármore. A Lua brilhava com uma

claridademaravilhosa.A sereiazinha ingeriu então abebida ardente e acre e logo

sentiu uma dor profunda, como se uma espada de dois gumes lhe atravessasse o

lindo corpo. Desmaiou, depois, e ficou como morta. Quando o Sol começou a

brilharsobreomar,acordou,voltoudenovoasentirumadoraguda,masemfrente

delaestavaobeloprincipezinho,queaobservavacomosolhosnegrosdeazeviche.

Volvendooolharparabaixo, verificouquea caudadepeixehaviadesaparecidoe

quepossuíaagoraaspernasmaisbrancaseencantadorasqueumaraparigapodeter.

Estava,porém,completamentenua,peloqueseenvolveunacabeleiralongaefarta.

Opríncipeperguntou-lhequemeraecomovieraaliparar,eela,voltandoparaele

osolhosazul-escuros,lançou-lheumolhardoceeaomesmotempotriste,poisnão

podia falar. Então, o príncipe tomou-a pela mão e conduziu-a para dentro do

palácio.Cadapassoquedava,comohaviapreditoabruxa,eracomosepisassefinas

agulhasefacasafiadas,masnadadeixoutransparecer.Pelamãodojovempríncipe,

subiu, leve como uma bolha de ar; e tanto ele como todos os circunstantes não

puderamesconderaadmiraçãopeloseuandarondulanteegracioso.

Deram-lhelindosvestidosdesedaedemusselinaetodosaconsideraramajovem

mais bela do palácio.Mas eramuda, não podia nem falar nem cantar.Uma vez,

vestidasdesedaedeouro,vierambelasescravascantardiantedopríncipeedeseus

augustospais.

Uma cantoumelhor do que as outras e o príncipe aplaudiu-a e sorriu-lhe. A

sereiazinha ficou, então, muito triste, pois sabia que teria sido capaz de cantar

muitomelhorepensou:«Oh!Seelesoubessequeparaestaraseuladomedesfiz

parasempredaminhabelavoz!»

Depoisasescravasdançaram,descrevendograciosasfigurasondeantesaosomde

música maravilhosa; e então a sereiazinha levantou os lindos braços brancos,

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ergueu-senaspontasdospésecomeçouarodopiar,bailandocomonuncaninguém

antesofizera.Cadamovimentorealçavamaisasuabelezaeosolhosfalavammais

profundamenteaocoraçãodoqueaprópriacançãodasescravas.

Ficaram todos encantados, principalmente o príncipe, que lhe deu o nome de

«Enjeitadazinha».Eelacontinuouadançar,mesmosentindoque,decadavezque

ospéstocavamosolo,eracomosepisassecutelosafiados.Opríncipedeclarou-lhe,

então,queaqueriasempreaopédesi,permitindo-lhequedormissejuntoàporta

doseuquarto,sobregrandesalmofadõesdeveludo.

Ordenoutambémquelhefizessemumfatodehomem,parapoderacompanhá-

lonosseuspasseiosacavalo.Cavalgavamassimpelosbosquesfragrantes,ostroncos

verdes roçavam-lhes os ombros enquanto os passarinhos cantavam na folhagem

verde.Subiaaindacomopríncipeaaltasmontanhas,esebemquelhesangrassem

os pés delicados, demodo a ser notado por todos, ela continuava a sorrir-lhe e a

segui-loatéverasnuvensdeslocarem-seporbaixodelescomosefossemumbando

deavesacaminhodeterrasdistantes.

No palácio, à noite, quando todos dormiam, descia ela a larga escadaria de

mármorepara ir aliviarospés ardentesna água friadomare ficava apensarnos

seus,tãolonge,lánofundo.

Umanoite, vieramas irmãsdebraçodado, cantando tristementeevogandoao

sabordasondas.Asereiazinhaacenou-lhes,eelas, reconhecendo-a,contaram-lhe

comotinhamtodosficadomuitotristescomasuapartida.Passaramavisitá-latodas

asnoiteseumavezviumesmo,aolonge,avelhaavó,quejáhámuitoanosnãosubia

à superfície das águas, bem como oRei doMar, com a coroa na cabeça. Ambos

estenderam-lhe os braços,mas não ousaram, porém, aproximar-se tanto da costa

comoasirmãs.

Cada dia que passava ia aumentando o afeto do príncipe pela sereiazinha, de

quemgostavacomosegostadeumacriançaboaecarinhosa;masfazê-laesposae

rainhanãolhepassavasequerpelacabeça,noentantosuaesposatinhadeviraser,

senãonãoalcançariaumaalmaimortaletransformar-se-ia,namanhãseguinteàdo

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casamentodopríncipe,emespumadomar.

—Nãogostasdemimmaisdoquedetodasasoutras?—pareciamperguntaros

olhos da sereiazinha quando o príncipe a tomava nos braços e lhe beijava a bela

fronte.

—Sim,quero-temaisdoqueatodasasoutras—diziaele—,poistensmelhor

coração,és-memaisdedicadaepareces-tecomumajovemqueviequecertamente

jamaisvireiaencontrar.Ia,então,numnavioquenaufragou,asondaslevaram-me

paraterra,juntoaumsantuáriocujocultoeramantidopordonzelas.Amaisnova

de todas descobriu-me na praia e salvou-me. Vi-a apenas duas vezes, mas era a

únicaquepodiaamarnestemundo.Pareces-tecomela,quaseofuscasasuaimagem

naminhaalma.Alémdisso,consagrou-seinteiramenteaotemploeporissoaminha

boasortemeconduziuparati.Jamaisnossepararemos.

«Ai!Nãosabequefuieuquelhesalveiavida»,pensouasereiazinha,«euqueme

oculteina espumaepor eleolhei até vir alguém.Euprópria vi a lindadonzela a

quemamamais doque amim!»E a sereia suspirouprofundamente, pois chorar

nãopodia.«Adonzelapertenceaosantuário,disse-oele,nãoviráparaestemundo,

nãomais seencontrarãoeeuestou juntodele,vejo-o todososdias, cuidareidele,

amá-lo-ei,dareiavidaporele!»

Eraagoraaalturadeopríncipesecasarcomabelafilhadoreivizinho,dizia-se.

Porissopreparavamcomtantoaparatoumnavio.Constavaqueopríncipeiapartir

para ver o país do rei vizinho, mas era realmente para ver a filha que ia assim

acompanhadodeumtãograndeséquito.Asereiazinhameneouacabeçae sorriu;

conheciamelhordoquequalqueroutrapessoaopensamentodopríncipe.

—Tenhodepartir—dissera-lheele.—Tenhodeirveressabonitaprincesade

quetantofalam;meuspaisassimoquerem,masnãomeobrigamatrazê-lacomo

noiva.Nãopossoamá-la,nãoseparececomabeladonzeladotemplo,comotute

pareces. Se pudesse alguma vez escolher noiva, seria, sem dúvida, a ti quem

escolheria,minhaEnjeitadazinhamuda, de olhos tão expressivos!—O príncipe

beijou-a na boca vermelha, brincando com os longos cabelos e pousando-lhe a

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cabeça sobre o peito, que sonhava com a felicidade dos homens e com a alma

imortal.

—Não tensmedo domar, minhamudazinha querida?— perguntou-lhe ele

quandoseencontravamjánomagníficonavioquehaviadeconduzi-losaopaísdo

rei vizinho.Depois o príncipe falou-lhe das tempestades e do tempo calmo, dos

peixes estranhos do fundo do mar que os mergulhadores haviam visto, e a

sereiazinhasorriadassuasdescrições,poisninguémmelhordoqueelasabiatodas

aquelascoisas.

Nasnoitesclarasde luar,quando játodosdormiam,comexceçãodotimoneiro

queiaaoleme,vinhaparajuntodaamuradadonavioeficavaaolharaáguaclara.

Pareceu-lhe então ver o palácio do pai, no alto do qual estava a avozinha com a

coroadepratanacabeça,olhandoporentreasfortescorrentesnadireçãodaquilha

donavio.Umavezapareceramasirmãsàtonadaágua,olharam-nacomprofunda

tristeza e acenaram-lhe comasbrancasmãozinhas.A sereiazinha respondeu-lhes

agitandotambémasmãos;esorrindoiadizer-lhesqueestavabemefelizquando

ummoçodebordoseaproximou,obrigando-asamergulharrapidamente.

O moço ficou com a impressão de que a mancha branca que havia visto era

espumadomar.

Namanhãseguinteonavioentrounoportodabelacapitaldoreinovizinho.Os

sinos começaram a repicar e nas altas torres soaram as trombetas enquanto

formavam, em parada, as tropas com os estandartes ao vento e as reluzentes

baionetas.Todososdiashaviaumafesta.Osbaileseossarausseguiam-seunsaos

outros,masaprincesaaindanãofizeraasuaaparição.Estavaasereducadalálonge,

nummosteiro,ondeaprendiaasvirtudesreais.

Chegou,porfim,àcidade.Asereiazinhaestavaimpacienteporverasuabelezae

quando issoaconteceu tevede reconhecerquenuncaantes lhe foradadoadmirar

um ser tão gracioso. A tez era fina e macia e por detrás das longas pestanas

sombreadassorriamdoisdocesolhosazul-escuros.

—Tu!Fostetuquemesalvastequandojaziacomoumcadáverdadoàcosta!—

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gritouopríncipe,abraçandoanoivaruborizada.—Oh!Comosoufeliz!—disseà

sereiazinha.—Cumpriu-seomeumaiordesejo.Tensdealegrar-tecomaminha

felicidade,poisqueres-memaisdoquequalqueroutrapessoa.

Asereiazinhabeijou-lheamão,sentindoqueocoraçãoselhequebrava.Amanhã

seguinteàssuasnúpciastrar-lhe-iaamorte,desfazendo-seemespumadomar.

Os sinos repicavam e os arautos percorriam as ruas anunciando o próximo

noivado.Nos altares ardiamóleosperfumados emricos lampadáriosdeprata.Os

sacerdotesagitaramosincensórios,eosnoivos,demãosdadas,receberamabênção

dobispo.Asereiazinha,todavestidadeouroeprata,seguravaacaudadanoiva,mas

os seus ouvidos não ouviam a música festiva, os olhos não viam a cerimónia

religiosa:pensavaapenasnanoitedasuamorteeemtudooquehaviaperdidoneste

mundo.

Finalmente,nessamesmatarde,embarcaramosnoivosparaoregresso,entreo

troar dos canhões e as bandeiras ondeando ao vento. A meio do navio estava

montadaumaricatendadepúrpuraeouro,tendoládentrolindoscochinsondeo

príncipeeaprincesadormiriamnanoitefrescaecalma.

Oventoenfunouasvelaseonaviodeslizouligeironomarcalmo.

Quandoescureceu,acenderam-selanternasdecoresvariegadaseamarinhagem

começou a dançar alegremente no tombadilho. A sereiazinha lembrou-se da

primeiravezquesubiraàsuperfíciedaságuasetiveraaoportunidadedeobservar

igualmagnificência e alegria. Lançou-se então, a dançar, rodopiando como uma

andorinhaperseguida e todos a aplaudiram, expressando a suagrande admiração.

Nunca bailara tão bem. Assim bailando, era como se navalhas afiadas lhe

dilacerassemos lindospés,mas elanemos sentia;muitomais agudaera adorno

coração.Sabiaqueeraaúltimanoiteemqueviaaqueleporquemtinhaabandonado

famíliaelar,perdidoabelavozesofridotodososdiastormentosinfindos,semque

elefizesseamenorideia.Eraaúltimanoiteemquerespiravaomesmoarqueele,

emquepodiaveromarprofundoeocéucheiodeestrelas.Esperava-aumanoite

eternasempensamentosnemsonhos,poisnãopossuíaalmanempodiaalcançá-la.

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Nonavio tudo foi alegria e regozijo atémuito alémdameia-noite, e ela sempre

dançoueriucomopensamentodamortenocoração.Depois,opríncipebeijoua

bela noiva, esta acariciou-lhe os cabelos negros, e, de braço dado, entraram na

magníficatendapararepousar.

Fez-sesilêncioevoltouacalmaaonavio;sóotimoneiroficoujuntodoleme.A

sereiazinha colocou os alvos braços na borda da amurada e pôs-se a olhar para

oriente,àesperadaaurora,sabendoqueoprimeiroraiodeSollhetrariaamorte.

Viu, então, as irmãs subirem à superfície domar.Estavampálidas como ela e os

seuslongoscabelosjánãoflutuavamaovento:tinhamsidocortados.

—Demo-los à bruxa para que nos auxiliasse a salvar-te damorte esta noite!

Entregou-nosestafaca.Toma-a!Vêcomoestáafiada!AntesdonascerdoSol,terás

decravá-lanocoraçãodopríncipeequandooseusanguequentetesalpicarospés,

elestransformar-se-ãoemcaudadepeixe.Voltarásasersereia,poderásmergulhar

na água e regressar para junto de nós, onde viverás trezentos anos até te

transmutares na espuma salgada domar. Apressa-te!Um de vós terá demorrer

antesdeoSoldespontar!Anossaavozinhaestátãotristequelhecaíramtodosos

cabelosbrancos,enósperdemososnossossobatesouradabruxa.Mataopríncipee

volta!Apressa-te,estásaveraquelas faixasvermelhasnocéu?Dentrodeminutos

nascerá o Sol e irás morrer. — E, lançando profundos suspiros, voltaram a

mergulhar.

Asereiazinhaafastouacortinadepúrpuradatendaeviuabelanoivaadormir

comacabeçasobreopeitodopríncipe.Curvou-seebeijou-onatesta,olhouparao

céu para ver como a aurora se ia tornando mais luminosa, quedou-se por um

momento a olhar a faca afiada e voltou a mirar o príncipe, que em sonhos

murmurava o nome da noiva. Continuava a ser o seu único pensamento. A faca

vacilouporummomentonasmãosdasereia…maslogoaarremessouparalonge,no

mar,tingindo-seasondasdevermelho,comosegotasdesangueborbulhassemna

água.Finalmentevoltouafixarosolhosturvadosnopríncipee lançou-seaomar,

ondesentiuocorpoadesfazer-seemespuma.

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Logodepois,rompeuoSol,projetandosuavementeosraiosquentesnaespuma

friademorte.Asereiazinhanãosentiuquemorria,viaoSolbrilhantee,porcima

dela,flutuando,centenasdeseresdeumatransparênciamaravilhosa.Conseguiaver

atravésdelesasvelasbrancasdonavioeasnuvensavermelhadasdocéu.Asvozes

eramdeumamelodiatãoespiritualquenenhunsouvidoshumanosapodiamouvir,

talcomonãopodiamvê-lososolhosterrestres.Semasas,flutuavamnoardevidoà

suapróprialeveza.Asereiazinhareparou,então,quetomaraamesmaformadesses

seresequeestavaaelevar-segradualmentedaespuma.

—Para onde vou?— inquiriu, e a sua voz soou como a dos outros seres, tão

espiritualmentecomonenhumamúsicaterrestreapoderiareproduzir.

—ParajuntodasFilhasdoAr!—responderam-lhe.—Assereiasnãotêmuma

alma imortal, nem nunca a poderão alcançar se não conseguirem o amor de um

homem!Oseudestinoeternodependedeumoutropoder.AsFilhasdoArtambém

nãotêmalmaimortalmaspodemviraobtê-lacomboasações.Deslocamo-nospara

ospaísesquentes,ondeoarmornoepestilentomataoshomens,eaíproduzimos

frescura. Espalhamos o perfume das flores no ar e trazemos alívio e cura. Se

durante trezentos anos praticarmos o bem, poderemos depois obter uma alma

imortal eparticiparda felicidadeeternadoshomens.Pobre sereiazinha, também,

comonós,teesforçaste,detodoocoração!Sofrestepacientemente,elevando-teao

mundodosEspíritosdoAr.Podesagoraviraalcançar,emtrezentosanos,comboas

ações,umaalmaimortal.

AsereiazinhaergueuobraçotranslúcidoparaoSol,radiosacriaçãodeDeus,e,

pelaprimeiravez,sentiucorreraslágrimas.Aonaviovoltaranovamenteavidaeo

bulício.Viuqueopríncipeealindanoivaaprocuravam,olhandotristementeparaa

espumaborbulhante,comoseadivinhassemquesetinhaatiradoàsondas.Invisível,

beijouatestadanoiva,sorriuparaopríncipeesubiucomasoutrasFilhasdoArnas

nuvensróseasquepairavamnocéu.

—Daquiatrezentosanos,assimascenderemostambémaoReinodeDeus!—

Poderemosalcançá-lomaiscedo!—sussurrouuma.

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—Entramosinvisíveisnascasasdoshomensondehácriançaseporcadadiaque

encontrarmos um menino ou menina bonzinho, fazendo a alegria dos pais e,

merecendo o seu amor,Deus encurta-nos o nosso tempo de prova.Osmeninos

nunca sabem quando nos introduzimos nos quartos,mas se nos fazem sorrir de

alegria é-nos tirado um ano dos trezentos que teremos de viver assim. Pelo

contrário, se se nos depara uma criança malcriada e má, vertemos lágrimas de

tristezaeporcadalágrimavertidaéaumentadoemumdiaonossotempodeprova.

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APolegarzinha

Eraumavezumamulherquesuspirava,ansiosamente,porterumacriancinha,

masquenãosabiaoquefazerparasatisfazeroseudesejo.Foiassimprocuraruma

velhafeiticeiraepediu-lhe:

—Gostariadetodoocoraçãodeterumacriancinha,nãoqueresdizer-meonde

podereiencontraruma?

—Sim,vamosresolverisso!—disseafeiticeira.—Eisaquiumgrãodecevada,

quenãoéigualàespéciequecrescenoscamposdoslavradores,nemàquesedáàs

galinhasparacomerem.Põe-nonumvasodeflores,depoisvaisver!

—Agradeço-temuito!—disseamulheredeuà feiticeiradozexelins.Depois

foiparacasa,plantouogrãodecevadaelogocresceuumalindaegrandeflor,que

pareciatalequalumatúlipa,masaspétalasestavamcompletamentefechadas,como

seestivesseaindaembotão.

—Éumalindaflor!—disseamulherebeijou-anasbonitaspétalasvermelhase

amarelas,masnomomentoemqueabeijavaaflordeuumgrandeestaloeabriu-se.

Eraumaverdadeiratúlipa,via-sebem!Masnomeiodaflor,numacadeiraverde,

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estavasentadaumapequeninamenina,muitofinaegraciosa!Nãoeramaiordoque

umapolegadaeporissorecebeuonomedePolegadazinha.

Uma casca de noz lindamente envernizada foi o seu berço, pétalas de violeta

azuisforamosenxergõeseumapétaladerosaoseuedredãodepenas.Aídormiade

noite,masduranteodiabrincavaemcimadamesa,ondeamulhertinhacolocado

umprato,emvoltadoqualpuseraumacoroadeflorescomoscaulesespetadosna

água,ondeflutuavaumagrandepétaladetúlipaesobreestadeviaaPolegadazinha

sentar-se e vogardeum ladoparaooutrodoprato.Tinhadoispelosbrancosde

cavalopararemar.Erabembonitodesever!Tambémsabiacantar.Oh!Tãobelae

lindamente,comonuncaantessetinhaouvido…

Uma noite em que estava na sua linda cama, entrou um sapo feio aos pulos

através do vidro quebrado da janela. O sapo era tão horrível, grande e húmido!

Saltou logo para baixo para amesa, onde a Polegadazinha estava a dormir sob a

pétaladerosavermelha.

—Eraumabonitaesposaparaomeufilho!—disseosapo,peloqueagarrouna

cascadenozondedormiaaPolegadazinhaesaltouparaojardimcomelaatravésdo

vidropartidodajanela.

No jardim corria um regato grande e largo,mas nasmargens era pantanoso e

lamacento.Aímoravaosapocomofilho.Ui!Eratãofeioehorrendo,eraparecido

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com a mãe! — Coax, coax, breque-que-quex! — foi tudo o que soube dizer,

quandoviualindamenininhanacascadenoz.

—Não fales tão alto, senão acorda!—disse o velho sapo.—Ela ainda pode

fugir-nos, pois é tão leve como uma penugem de cisne. Vamos pô-la no regato

sobre uma das folhas largas de lírio aquático, que é para ela, tão leve e pequena,

comoumailha.Daínãopodefugir,enquantonósmontamososaposentosdegala

porbaixodalama,ondeireisresidir!

Lá fora, no regato, cresciam muitos lírios aquáticos com folhas verdes e tão

largas que pareciam vogar na água. A folha que estavamais longe era também a

maior de todas. Para aí nadou o sapo velho e aí pôs a casca de noz com a

Polegadazinha.

Apobrepequeninaacordoucedodemanhã.Quandoviuondeestava,começoua

choraramargamente,poisagrandefolhaverdeencontrava-serodeadadeáguapor

todososlados,nãopodiadenenhummodovirparaterra.

Osapovelhoinstalou-seembaixo,nalama,edecorouosaposentoscomjuncoe

líriosaquáticosamarelos—seriaverdadeiramentebonitoparaanovanora!Nadou

depoiscomofilhorepelenteparaafolhaondeestavaaPolegadazinha.Queriamir

buscar a sua bonita cama, que devia ser posta no quarto de noivado, antes de a

trazerem.Ovelhofezumaprofundareverêncianaáguadiantedelaedisse:

—Aqui tens omeu filho, que será teumarido e ireis viver lindamente lá em

baixo,nalama!

—Coax,coax!Breque-que-quex!—foitudooqueofilhosoubedizer.

Pegaram na linda caminha e foram-se a nadar com ela, mas a Polegadazinha

sentou-secompletamentesóachorarnafolhaverde,poisnãoqueriamoraremcasa

dosapofeio,nemterofilhohorrendopormarido.Ospeixinhosquenadavamem

baixonaáguabemtinhamvistoosapoeouvidooquedissera,porissopuseramas

cabeçasdefora,queriamverapequenina.Logoqueaviram,acharam-natãobonita

efez-lhestantapenaquetivessedeirparabaixo,paraosaponojento!Não,issonão

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devia acontecer! Juntaram-se em baixo, na água, à volta do caule verde, que

sustinha a folha onde ela estava, roeramo caule comos dentes e assim flutuou a

folha, regato abaixo, com a Polegadazinha, para longe, onde o sapo não podia

chegar.

APolegadazinhapassouanavegarpormuitoslugareseospassarinhospousados

nosarbustosviram-naecantaram:«Quelindamenininha!»Afolhavogoucomela

maisemaisparalonge.AssimviajouaPolegadazinhaparaforadopaís.

Umalindaborboletazinhabrancaficouapairaràvoltadelaepousouporfimna

folha, pois parecia gostar muito da Polegadazinha e ela estava tão contente por

agoraosaponãoapoderalcançar,eeratãobonitoporondevogava!OSolbrilhava

naágua,Eracomosefossedomaisbeloouro.Entãopegounasuafaixa,atouuma

pontaàborboletaeaoutrapontaprendeu-aàfolha.Assim,deslizavammuitomais

depressa,elaeafolha.

Nessemomento,umgrandebesouroveioavoare,assimqueaviu,numinstante,

prendeu-acomasgarrasàvoltadacinturadelgadaevooucomelaparaumaárvore.

Mas a folha verde vogou para baixo no regato e a borboleta voou com ela, pois

estavaligadaàfolhaenãoconseguialibertar-se.

BomDeus,comoapobrePolegadazinhaficouassustadaquandoobesourovoou

para cima da árvore com ela! Mas ficou muito mais preocupada com a bonita

borboleta brancaque atara à folha.No caso denãopoder libertar-se,morreria à

fome.Masobesouronão sepreocupoucom isso.Pousoucomelanamaior folha

verdedaárvore,deu-lhedocedefloresparacomeredisse-lhequeeramuitobonita,

sebemquenãoseparecessenadacomumbesouro.Depoisvieramtodososoutros

besouros que moravam na árvore fazer-lhes uma visita. Olharam para a

Polegadazinha,asmeninas-besourosestenderamostentáculoseumadelasdisse:

—Elanãotem,pois,maisdoqueduaspernas,temumaspetomiserável!

—Nãotemnenhunstentáculos!—acrescentououtra.

—Étãomagranacintura,puh!Parecemesmoumserhumano!Comoéfeia!—

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referiram todas as fêmeas-besouros. Contudo, a Polegadazinha era tão bonita!

Também lhe parecia isso, ao besouro que a tinha apresado, mas como todos os

outrosdiziamqueera feia, acabou tambémporacreditarnissoenãoaquismais.

Podia irparaondequisesse.Voaramdaárvoreepuseram-nanumamargarida.Aí

chorou,porqueeratãofeiaquenemosbesourosaqueriam.E,contudo,eraamais

bonitaquesepodiaimaginar,tãodelicadaebrancacomoamaisbelapétaladerosa!

TodooverãoviveuapobrePolegadazinhacompletamentesónograndebosque.

Comtalosdeervaentrançadosfezumacamaesuspendeu-asobumagrandefolha

debardanaparaseprotegerdachuva.Colhiaosucodasflores,comia-oebebiado

orvalho que todas as manhãs estava nas folhas. Assim se passaram o verão e o

outono,masdepoisveiooinverno,ofrioelongoinverno.Ospássarosquetinham

cantadotãolindamenteparaela,voaramparaosseusdestinos.Asárvoreseasfolhas

murcharam.Agrandefolhadebardana,sobaqualtinhamorado,enrolou-seeficou

apenasumcauleamareloemurcho.Elaregelavaterrivelmente,poisoseuvestuário

estava em pedaços e a tão bonita e pequenina Polegadazinha, ia morrer gelada.

Começouanevarecadaflocodenevequecaíasobreelaeracomoselançassemum

cestocheiosobrenós,poissomosgrandeseelatinhaapenasumapolegadadealtura.

Assim embrulhou-se numa folha murcha, mas que não era suficiente para a

aquecer.Tremiadefrio.

Perto,foradobosque,paraoqualtinhavindo,haviaumgrandecampodetrigo,

masotrigoforaceifadohámuito,apenasficouorestolhosecodepénaterragelada.

Eracomovaguearnumpequenobosque.Tremiadefrio.

Oh!Chegouassimàportadoratodocampo.Haviaumpequenoburacosobo

restolho.Aquimoravaoratodocampobemaconchegado,tinhaoaposentocheio

detrigo,umalindacozinhaesaladejantar.ApobrePolegadazinhaparoudolado

dedentrodaporta,talcomoumapobrecriançapedinte,epediuumbocadinhode

umgrãodecevada,poishádoisdiasquenãocomianada.

—Pobrezinha!—disseoratodocampo,poiseranofundoumbomratovelho.

—Entranomeuaposentoquenteevemcomercomigo!

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ComogostoudaPolegadazinha,disse-lhe:

—Podes ficar, debomgrado, emminha casa, duranteo Inverno,mas tensde

manteromeuaposentobemlimpinhoecontar-mehistórias,poisgostomuitode

histórias!

A Polegadazinha fez o que o bom rato do campo exigia e ali sentiu-se

verdadeiramentebem.

—Em breve vamos ter visitas!— disse o rato do campo.—Omeu vizinho

costuma visitar-me todas as semanas. Ele está ainda melhor do que eu. Tem

grandessalaseandacomumatãolindapeledeveludopreta!Pudessestutê-locomo

marido,que estarias bemgovernada.Mas é cego.Tensde contar-lhe ashistórias

maisbonitasquesabes!

Mas a Polegadazinha não se interessou, não quis o vizinho, pois era uma

toupeira.Chegou e fez a visita com a sua pele de veludo preta, eramuito rico e

muitoculto,disseoratodocampo.Osseusalojamentoseramtambémmaisdevinte

vezesmaiores do que os dele e tinha instrução,mas não suportava o Sol nem as

floresbonitas,falavamaldeles,porquenuncaostinhavisto.APolegadazinhateve

decantarecantoutanto«Besourinho,avoa,avoa»como«Vaiofradeparaoprado».

Assimficouatoupeiraapaixonada,porcausadalindavoz,masnãodissenada.Era

ummachomuitodiscreto!

Recentemente,tinhaescavadoumlongocaminho,atravésdaterra,desdeacasa

delesatéàsua,noqualtiveramoratodocampoeaPolegadazinhaautorizaçãopara

passearem,quandoquisessem.Maspediu-lhesquenão tivessemmedodopássaro

morto que estava no caminho. Era um pássaro inteiro, com penas e bico, que

certamente teria morrido há bem pouco, quando o inverno começou e estava

enterradoprecisamenteondeelefizeraocaminho.

Atoupeirapegounumpedaçodemadeirapodrenaboca,quebrilhacomolume

na escuridão. Foi à frente iluminando-lhes o longo caminho escuro. Quando

chegaramaolugarondeestavaopássaromorto,atoupeirapôsoseulargofocinho

contrao teto e empurrou a terrapara cima, demodoque ficouumburaco largo

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pelo qual a luz, ao penetrar nele, podia brilhar. No meio do chão jazia uma

andorinhamorta,comasbonitasasasrecolhidas,aspernaseacabeçametidasentre

aspenas.Opobrepássaromorreracertamentedefrio.APolegadazinhatevemuita

pena dele porque gostava muito de todos os passarinhos. Tinham todo o verão

cantado e gorjeado tão lindamente para ela!Mas a toupeira empurrou-a com as

pernascurtasedisse:

— Agora não pia mais! Deve ser lastimável nascer-se passarinho! Deus seja

louvado,quenenhumdosmeusfilhososerá.Umtalpássaronadamaistemdoque

oseu«quevivi»etemdemorreràfomenoinverno!

—Sim,bemopodedizer,comomachosensatoqueé—disseoratodocampo.

—Quetêmospássarosportodooseu«quevivi»,quandovemoinverno?Têmde

passarfomeeregelar.Masparaelestudotemdeseremgrande!

A Polegadazinha não disse nada,mas quando os dois viraram as costas para o

pássaro, curvou-se, afastou as penas para o lado, que estavam sobre a cabeça e

beijou-onosolhosfechados.«Talvezfosseaquelequecantoutãolindamentepara

mimnoverão!»,pensouela.«Quantaalegriamedeuoqueridoelindopássaro!»

A toupeira fechou depois o buraco por onde penetrava a luz do dia e

acompanhou-osacasa.MasdenoiteaPolegadazinhamalpodiadormir.Levantou-

sedacamaeentrançoucomfenoumacobertagrandeebonita,levou-aparabaixoe

envolveu nela o pássaro morto, pôs algodão macio que tinha encontrado nos

aposentosdoratodocampoàsuavolta,paraquepudessesentir-sequentenaterra

fria.

— Adeus, lindo passarinho!— disse ela.— Adeus e obrigada pelo teu lindo

cantonoverão,quandotodasasárvoresestavamverdeseoSolbrilhavatãoquente

sobre nós! — Depois colocou a cabeça sobre o peito do pássaro, mas ficou no

mesmomomento toda assustada, pois era como se algo batesse lá dentro. Era o

coraçãodopássaroquenãoestavamorto.Jaziaemtorporeagoraestavaaquecidoe,

porisso,tomouvidanovamente.

Nooutono,asandorinhasvoamparalonge,paraospaísesquentes,masháuma

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ou outra que se retarda, regela de tal modo que cai completamentemorta. Fica

ondecaieanevefriaamontoa-se-lheemcima.

A Polegadazinha tremeu, tão assustada estava, pois o pássaro era bem grande,

grande perante ela, que tinha apenas uma polegada de altura,mas encheu-se de

coragem,aconchegouoalgodãoàvoltadapobreandorinhaefoibuscarumafolha

dehortelãquetiveracomocobertaepô-lasobreacabeçadopássaro.

Nanoiteseguinterastejououtravezparabaixoatéaopássaro,queestavavivo,

mas tão esgotado quemal podia, por ummomentinho, abrir os olhos para ver a

Polegadazinhacomumpedacinhodelenhanamão,poisoutralanternanãotinha.

—Muito te agradeço, linda criancinha!— disse-lhe a andorinha doente. —

Fiqueitãobemaquecida!Embrevevouterforçasepodervoardenovo,parafora,

paraaluzdoSolquente!

—Oh!—disseaPolegadazinha.—Estátantofrioláfora,nevaegela!Ficana

camaquentequeeutratareideti!

Trouxeáguaàandorinhanumapétalaeestabebeu,depoiscontou-lhecomose

tinhaferidonumaasa,numarbustocompicos,porissonãopodiavoartãorápido

comoasoutrasandorinhas,quevoavampara longe,paraospaísesquentes.Tinha

caídoparaaterra,emaisnãoselembravanemsabiacomovieraaliparar.

Todooinvernoficoudebaixodaterra,aPolegadazinhafoiboaparaelaegostava

muitodela.Nematoupeiranemoratodocampovieramasaberamínimacoisa,

poisnãopodiamtolerarapobreemiserávelandorinha.

LogoqueaprimaverachegoueoSolaqueceuaterra,aandorinhadisseadeusà

Polegadazinha,queabriuoburacoquea toupeira fizeraporcima.OSolbrilhou

lindamente lá dentro e a andorinha perguntou se não queria vir com ela. Podia

sentar-se nas suas costas, voariam para longe, para os bosques verdes. Mas a

Polegadazinhasabiaqueafligiriaovelhoratodocamposeoabandonasseassim.

—Não,nãoposso!—disseaPolegadazinha.

—Então,adeus,adeus!Boa, lindamenina!—despediu-seaandorinhaevoou

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para o brilho doSol.APolegadazinha ficou a vê-la e vieram-lhe as lágrimas aos

olhos,poisgostavamuitodapobreandorinha.

—«Quevivi!»,vivi!—cantouopássaroevoouparaosbosquesverdes…

APolegadazinhaestava tãoaflita!Nempodiapermitir-sevirpara fora,parao

Solquente.O trigoque fora semeadono terrenoalipor cimada casado ratodo

campocresciatambém,eraumbosqueespessoparaapobrezinha,quesótinhauma

polegadadecomprido.

—Agoranoverãoterásdeprepararoteuenxoval!—disse-lheoratodocampo,

poisoenfadonhovizinho,atoupeiranapeledeveludopreta,tinha-lhefeitouma

propostadecasamento.—Tensdetertantodelãcomodelinho!Tensdeteronde

sentar-teedeitar-te,quandoforesesposadatoupeira!

APolegadazinhatevedefiarnofuso,àmão,eoratodocampocontratouquatro

aranhaspara fiare tecernoiteedia.Todasasnoitesa toupeira faziaumavisitae

falava sempre de que, quando o verão tivesse fim, então não brilharia o Sol, tão

pertoetãoquente.Agoraqueimavaaterraquasecomoumapedra.Sim,quandoo

verãoestivesseacabado,então seriamasbodascomaPolegadazinha.Maselanão

estavanadacontente,poisnãogostavanemumbocadinhodaenfadonhatoupeira.

Todas asmanhãs, quando o Sol se levantava e todas as noites quando se punha,

escapava-separaaportaequandooventoseparavaaspontasdotrigo,demodoque

pudesse ver o céu azul, pensava em como era luminoso e bonito lá em cima e

desejavatantopoderverdenovoaqueridaandorinha.Masestanãovoltariamais.

Voaracertamenteparalonge,nobelobosqueverde.

Quandochegouooutono,aPolegadazinhatinhaoenxovaltodopronto.

— Em quatro semanas terás as bodas!— disse-lhe o rato do campo. Mas a

Polegadazinhachorouedissequenãoqueriaaenfadonhatoupeira.

—Snique,snaque!—retorquiuoratodocampo!—Nãotefaçasrecalcitrante,

senãomordo-tecomomeudentebranco!Émuitobonitoomachoquevaister!A

suapeledeveludopretonãotemarainhaumaigual!Temmuito,tantonacozinha

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comonadespensa.AgradeceaDeusporele!

Assimtiveramdefazerasbodas.AtoupeirachegaraparalevaraPolegadazinha.

Iriamorarcomela,nofundo,porbaixodaterra, jamaisvindoparaoSolquente,

porquecomissonãosofriaoratocego.Apobrecriançaestavatãoaflita,teriaagora

dedizeradeusaobeloSol,que,contudo,emcasadoratodocampoforaautorizada

aver,àporta.

—Adeus,claroSol!—disseela,eestendeuosbraçosparaoarefoitambémum

bocadinhoparaforadacasadoratodocampo.Poisotrigoforaceifadoealiestavam

apenasos restolhos secos.—Adeus, adeus!—repetiu enroscandoosbracinhos à

voltadeumaflorzinhavermelhaquealiestava.

—Saúdaaandorinhapormim,sealgumdiavieresavê-la!«Quevivi!»—ouviu

nomesmomomento sobre a sua cabeça.Olhou para cima. Era a andorinha que

passava naquelemomento.Logoque viu aPolegadazinha, ficoumuito contente.

Estacontou-lhecomquerelutânciaiaterafeiatoupeiracomomaridoequetinha

demorarnofundo,porbaixodaterra,ondeoSolnuncabrilhava.Nãopodiadeixar

dechorarporcausadisso.

—Agoravemoinvernofrio—disseaandorinha.—Euvooparalonge,paraas

terrasquentes, queres vir comigo?Podes sentar-tenasminhas costas!Só tens de

amarrar-tebemcomatuafaixa,voamosassimparalongedafeiatoupeiraedosseus

aposentossombrios,paralonge,sobreasmontanhas,paraospaísesquentes,ondeo

Solbrilhamaisbonitodoqueaqui,ondeésempreverãoeháflores.Voacomigo,

docePolegadazinha, queme salvaste a vida quando jazia regelada na cave escura

debaixodaterra!

—Sim,queroircontigo!—respondeuaPolegadazinha,esentou-senascostas

dopássaro,comospésnasasasabertas,amarroubemocintonumadaspenasmais

forteseaandorinhavoouparaoalto,sobreosbosquesesobreomar,altoporcima

dasgrandesmontanhas,ondehásempreneve.APolegadazinharegelounoarfrio,

masarrastou-separadentro,sobaspenasquentesepôsacabecinhadeforaparaver

todaaquelabelezaporbaixodela.

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Chegaramassimàsterrasquentes.BrilhavaoSolmuitomaisclarodoqueaqui,

océueraduasvezesmaisaltoenasvalasenassebescresciamasmaisbonitasuvas

verdeseazuis.Nosbosquessuspendiam-selimõeselaranjas,aquicheiravaamirto

e hortelã e nos caminhos corriam as crianças mais lindas, que brincavam com

grandes borboletas multicolores.Mas a andorinha voou ainda paramais longe e

tornou-setudocadavezmaisbonito.Sobasárvoresmaisbelas,juntoaolagoazul,

estava um castelo de mármore branco brilhante dos velhos tempos. As vinhas

retorciam-separacimaàvoltadascolunasaltas.Aí,mesmoemcimadetudo,havia

muitosninhosdeandorinhasenumdessesmoravaaandorinhaquetransportavaa

Polegadazinha.

—Aquiestáaminhacasa!—disseaandorinha.—Mas,sequiseres,tuprópria

podesescolherumadasfloresmaisbonitasquecrescemláembaixo.Levar-te-eilá

eterástudotãobonitoquantodesejares!

—Seriamaravilhoso!—disseela,batendopalmascomasmãozinhas.

Haviaumagrandecolunademármorebranco,quetinhatombadonochãoese

partira em três pedaços e entre estes cresciam as flores mais lindas, grandes e

brancas.AandorinhavoouparalácomaPolegadazinhaecolocou-asobreumadas

folhas largas. Mas como ficou admirada! Aí estava sentado um homenzinho no

meioda flor, tãobrancoe translúcido, comose fossedevidro.Tinhanacabeçaa

coroadeouromaislindaenosombrosasasasmaislindaseclaras.Elepróprionão

eramaiordoqueaPolegadazinha.Eraoanjodaflor.Emcadaflormoravaassim

umhomenzinhooumulherzinha,masaqueleeraoreidetodos.

—Meu Deus, como é bonito!— segredou a Polegadazinha à andorinha. O

principezinho ficou tão assustado diante da andorinha, pois esta era uma ave

giganteperanteele,queeratãopequenoefino.QuandoviuaPolegadazinhaficou

muitocontente.Eraameninamaisbonitaqueatéentãotinhavisto.Porissotiroua

coroadeourodacabeçaecolocou-anacabeçadela,perguntoucomosechamavae

se queria ser sua mulher, seria rainha de todas as flores! Sim, era um homem

verdadeiro,bemdiferentedofilhodosapoedatoupeiracomapeledeveludopreta.

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Disse,portanto,que simaobonitopríncipeedecada florveioumadamaouum

cavalheiro,tãobelos,quedavagostovê-los!CadaumtraziaparaaPolegadazinha

umpresente,masomelhordetodosfoiumpardelindasasasdeumagrandemosca

branca.ForamfixadasàscostasdaPolegadazinhaparapodertambémvoardeflor

para flor. Era tal a alegria que a andorinha sentou-se em cima, no seu ninho, e

cantouparaeles,tãobemquantopodia,masocoraçãoestava,contudo,triste,pois

gostavamuitodaPolegadazinhaenãoqueriaseparar-sedela.

—Nãodeves teronomePolegadazinha!—disse-lheoanjoda flor.—Éum

nomefeioetuésbonita.Vamoschamar-teMaia!

— Adeus! Adeus! — despediu-se a andorinha, e partiu. Deixou os países

quentes,evooulápara longe,deregressoàDinamarca.Ali tinhaumninhozinho

sobrea janelaondemoraohomemque sabecontar contos.Paraele, a andorinha

cantouo«quevivi»,dequetemostodaahistória.

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AsFloresdeIdinha

—Asminhas pobres flores estão completamente mortas!— disse Idinha.—

Estavam tão bonitas ontem à noite e agora todas as pétalas estão pendentes e

murchas!Porque fizeram isso?—perguntouela aoestudantequeestava sentado

no sofá. Gostava muito dele, sabia as mais lindas histórias e recortava no papel

figurasmuitoengraçadas!Coraçõescomdamazinhasdentro,quedançavam,flores

e grandes castelos, cujas portas se podiam abrir!Era um estudante divertido!—

Porquetêmasflores,hoje,umaspetotãotriste?—perguntoudenovoemostrou-

lheumramocompletamentemurcho.

—Olha, sabes o que têm?— perguntou o estudante.— As flores estiveram

ontemnumbaileeporissopendem-lhesascabeças.

—Masasfloresnãosabemdançar!—disseaIdinha.

— Sabem— respondeu o estudante.—Quando faz escuro e nós estamos a

dormir,saltamalegrementecáparafora.Quasetodasasnoitestêmumbaile!

—Osfilhinhospodemacompanhá-lasaobaile?

—Naturalmente!—disseoestudante.—Aspequeninasmargaridaseoslírios

dovale.

—Ondedançamasfloresmaisbonitas?—perguntouaIdinha.

—Nãoestivestealgumasvezesforadeportas,pertodograndepalácio,ondeo

reivive,noverão,nobelo jardimcheiode flores?Vistecertamenteoscisnes,que

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nadamparati,quandoqueresdar-lhesmigalhasdepão.Aíháverdadeiramenteum

baile,podescrer!

—Estive ontemno jardim com aminhamãe—disse Ida.—Mas não havia

nenhuma folha nas árvores e nem uma única flor!Onde estão elas?No verão vi

tantas!

—Estãodentrodopalácio!—disseoestudante.—Tensdesaberque,logoque

oreietodaagentedacortesevãoemboraparaacidade,asfloresdojardimcorrem

paraopalácioedivertem-se.Deviasver!Asduasrosasmaisbonitassentam-seno

tronoe sãoassimreierainha.Todasascristas-de-galovermelhascolocam-seaos

ladosefazemvénias, sãooscamaristasdacorte…Vêmdepoistodasasfloresmais

bonitaseéentãoograndebaile.Osamores-perfeitos1azuissãooscadetezinhosda

Marinha,dançamcomhortênsiaseaçucenas,aquechamamsenhorinhas.Astúlipas

easgrandesdáliasamarelassãoasvelhasdamas.Cuidamdequesedancebemeque

tudocorracomodeveser.

—Mas—perguntou a Idinha—não há ninguémque castigue as flores por

dançaremnopalácioreal?

—Nãoháninguémquevenhaasabê-lo—respondeuoestudante.—Algumas

vezes, de noite, pode vir o velho intendente, que temde tomar conta do palácio.

Trazumgrandemolhodechavesconsigo.Maslogoqueasfloresouvemaschavesa

tilintar,ficammuitoquietas,escondem-sepordetrásdasgrandescortinasedeitam

acabeçadefora.—Cheira-meafloresaquidentro!—dizovelhointendente,mas

nãoconseguevê-las.

—Queengraçado!—disseaIdinha,batendopalmas.—Masnãopossotambém

verasflores?

— Podes — disse o estudante. — Quando lá fores outra vez, lembra-te de

espreitar pela janela, vê-las-ás certamente.Fiz isso hoje.Havia uma grande dália

amarelaestendidanosofá.Eraumadamadacorte.

—AsfloresdoJardimBotânicotambémpodemir?Sãocapazesdefazerolongo

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caminho?

—Sim,podescrer!—disseoestudante.—Pois,quandoquerem,sabemvoar.

Não tens visto as bonitas borboletas, vermelhas, amarelas e brancas? Quase

parecem flores. Foram-no, saltaram do caule para o ar, bateram com as pétalas,

como se fossem asinhas e assim voaram. E como se portaram bem, tiveram a

recompensa de voar de dia, não precisando de regressar e ficar quietas no caule.

Assim as pétalas transformam-se por fim em asas verdadeiras. Isso já tu própria

viste! Pode tambémmuito bem suceder que as flores do JardimBotânico nunca

tenhamestadonopaláciorealnemsaibamqueláétãodivertidodenoite.Agoravou

dizer-te uma coisa:muito espantado vai ficar o professor de Botânica quemora

aquiaoladoequeconhecesbem!Quandoforesaoseujardim,vaisdizeraumadas

floresqueháumgrandebailenopalácio.Esta,porsuavez,diráatodasasoutrase

assim todas se escaparão. Quando o professor voltar ao jardim, não haverá uma

únicafloreelenãoconseguirácompreendercomoseforamembora.

—Mas comopodem as flores dizer essas coisas umas às outras?As flores não

sabemfalar!

— Não, na verdade, não sabem! — respondeu o estudante. — Mas fazem

pantomima.Nuncavisteque,quandoháumbocadinhodevento,asfloresacename

mexemtodasasfolhasverdes?Étãoclarocomosefalassem!

—Oprofessorcompreendeapantomima?—perguntouIda.

—Sim,bempodescrer!Umamanhãdesceuaojardimeviuumagrandeurtigaa

fazer pantomima com as folhas a um lindo cravo vermelho.Dizia:—Tu és tão

bonitoeeugostotantodeti!—Mastaiscoisasnãopodeoprofessortolerar,elogo

bateu na urtiga, nas folhas, que são os dedos dela,mas sentiu um ardor e desde

entãonuncamaisseatreveuatocaremnenhuma.

—Queengraçado!—exclamouaIdinha,rindo.

—Paraque servemeter tais coisasnacabeçadacriança!—disseoenfadonho

conselheiro de chancelaria, que chegara de visita e estava sentado no sofá. Não

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podiademaneiranenhuma suportar o estudante e censurava-o semprequandoo

via recortar as figuras divertidas e engraçadas: ora um homem que estava

pendurado numa forca e segurava um coração na mão, pois era um «ladrão de

corações»,oraumavelhabruxaquecavalgavanumavassouraetinhaomaridono

nariz.Istonãopodiaoconselheirodechancelaria suportaredestemodovoltoua

dizer:

—Paraqueservemetertaiscoisasnacabeçadacriança!Éestúpidafantasia!

Mas à Idinha parecia-lhe que era muito engraçado o que o estudante tinha

contado sobre as suas flores e pensou muito nisso. As flores deixavam pender a

cabeça porque estavam cansadas de dançar durante toda a noite, estavam

certamentedoentes.Levou-as,pois,parajuntodetodososseusoutrosbrinquedos

emcimadeumamesinha,cujagavetaseencontravatambémcheiadebrinquedos.

NacaminhadebonecasestavadeitadaasuabonecaSofia,quedormia,masaIdinha

disse-lhe:

—Temde ser, tens de levantar-te,Sofia, e contentar-te empassar a noite na

gaveta.Aspobresfloresestãodoenteseprecisamdedeitar-senatuacama.Talvez

assimfiquemboas!—Pegounaboneca,masestaolhoudetravésenãodisseuma

palavra.Estavazangadapornãopoderficarnasuacama.

Idadeitouasfloresnacamadasbonecasepuxouacobertazinhaparacimadelas.

Tinhamdeficarbemquietinhas,poisiafazercháparaasflores,afimdeficarem

boasepoderemlevantar-senodiaseguinte.Fechouascortinasàvoltadacaminha

paraqueoSolnãolhesbatessenosolhos.

Durantetodaanoitenãopôdedeixardepensarnoqueoestudantelhecontara,e

quandochegouahoradeirparaacama,tevedeirprimeiroatrásdascortinas,que

sesuspendiamdiantedasjanelas,ondeestavamaslindasfloresdamãe—jacintose

túlipas—esussurroubaixinho:

—Seimuitobemquevãoaobaileestanoite!—Masasfloresfizeramcomose

nãotivessementendidoenãomexeramumafolha.MasaIdabemsabiaoquesabia.

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Quandofoiparaacama,ficoumuitotempoapensarcomoseriabompoderver

asbonitas floresadançar lánopalácioreal.«Irãoasminhas flores realmente lá?»

Mas adormeceu. Alta noite, acordou. Tinha sonhado com as flores e com o

estudante e como o conselheiro de chancelaria resmungava e dizia que queriam

meter-lhe coisas na cabeça. Era total o silêncio no quarto de dormir onde se

encontravaIda.Alamparinaardiaemcimadamesaeopaieamãedormiam.

—AindaestarãoasminhasfloresdeitadasnacamadeSofia?—interrogou-se.

—Comogostariatantodesabê-lo!—Ergueu-seumpoucoeolhouparaaporta,

queestavameioaberta.Láestavamasfloresetodososbrinquedos.Escutouefoi

como se ouvisse tocar piano na sala, masmuito suave e tão distintamente como

nuncaoouviraantes.

—Agoraestãocertamente todasas floresadançar láembaixo—disseela.—

MeuDeus!Comogostariadevê-las!—masnãoousoulevantar-se,poisacordaria

o pai e amãe.— Se viessem até aqui!— pensou.Mas as flores não vieram e a

músicacontinuouasoardeliciosamene.Entãonãopôdeaguentarmais,poisestaera

demasiado bela. Arrastou-se para fora da caminha, foi muito de mansinho até à

portaeespreitouparaasala.Oh!Comoeramaravilhosooqueselhedeparou!

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Não havia nenhuma lamparina, mas estava mesmo assimmuito claro. O luar

entravapelajanela,refletindo-senomeiodochão.Eraquasecomosefossededia.

Todosos jacintose túlipasestavamemduas longas filasnochão.Nãohaviauma

únicaflornajanela.Osvasosestavamvazios.Embaixonosoalhodançavamtodasas

flores graciosamente à volta umas das outras, formando verdadeiros cordões e

agarrando-seumasàsoutraspelaslongasfolhasverdes,quandoandavamàroda.Ao

pianoestavaumgrandelírioamarelo,queaIdinhaviraseguramentenoVerão,pois

lembrava-sebemdeoestudantelheterdito:

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—Oh!ComoseparececomaMeninaLina!—Nessaaltura todos se tinham

ridodele.MasagoratambémpareciarealmenteaIdaqueacompridafloramarela

se assemelhava àMenina e faziaosmesmosgestosquando tocava.Ora colocavao

oblongo rosto amarelo de um lado, ora do outro, marcando com a cabeça o

compassodabelamúsica.NinguémdeupelaIdinha.Viuentãoumgrandeaçafrão

azul saltarpara omeiodamesa, onde se encontravamosbrinquedos, ir direito à

camadasbonecasepuxarascortinasparaolado.Láestavamasfloresdoentes,mas

levantaram-se logo e acenaram às outras que também queriam dançar. O velho

Fumador2, que perdera o lábio inferior, levantou-se e inclinou-se perante as

bonitas flores, que não pareciam de modo nenhum doentes. Saltavam entre as

outraseestavammuitoalegres.

Pareceu que algo tombara da mesa. Ida olhou para lá. Fora o açoite do

Entrudo3quesaltaraquepareciatambémfazerpartedasflores.Eramuitobonitoe

emcima tinhaumabonequinhadecera comumchapéu largonacabeça igual ao

queoconselheirodechancelariausava.OaçoitedoEntrudosaltavanas suas três

pernas de pau vermelhas nomeio das flores e batia fortemente com os pés, pois

dançavam amazurca,mas esta dança não a sabiam as outras flores, porque eram

muitolevesenãopodiambatercomospés.

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AbonecadeceranoaçoitedoEntrudofez-segrandeecomprida, torneoupor

cimadasfloresdepapelegritoubemalto:

—Paraqueservemetertaiscoisasnacabeçadacriança!Éestúpidafantasia!—

Eassimabonecadecerapareciaperfeitamenteoconselheirodechancelariacomo

chapéu largo, tão amarelo e rabugento.Mas as flores de papel bateram-lhe nas

pernas finas e assim se encolheu, tornando-se denovoumapequeninaboneca de

cera.FoitãoengraçadoqueaIdinhanãopôdedeixarderir.OaçoitedoEntrudo

continuouadançareo«conselheirodechancelaria» tevededançarcomele.Não

lhevaliadenadafazer-segrandeecompridoouvoltaraserabonequinhadecera

amarela com o grande chapéu preto. As outras flores pediram por ele,

especialmente aquelas que tinham estado deitadas na camade bonecas, e então o

açoite do Entrudo cedeu. Nesse momento ouviu-se bater com força dentro da

gaveta, onde estava a boneca Sofia, de Ida, com muitos outros brinquedos. O

Fumadorcorreuparaocantodamesa,deitou-seaocompridodebarrigaparabaixo

econseguiuabrirumbocadinhodagaveta.Sofialevantou-seeolhoutodaadmirada

àsuavolta.

—Masháaquibaile!—disseela.—Porqueéqueninguémmodisse?

—Queresdançarcomigo?—perguntouoFumador.

—Claro,éstãobonitoparaalguémdançarcontigo!—disseela,voltando-lheas

costas. Assim se sentou na gaveta, pensando que seguramente alguma das flores

viria convidá-la,masnãoveionenhuma.Tossiuhum!,hum!,hum!,mas também

nenhumaveio.OFumadordançousozinhoenadamal!

Comonenhuma das flores parecia dar porSofia, deixou-se esta cair da gaveta

para o chão, demodo que produziu umgrande alarido.Vieram todas as flores a

correrparaela,rodeando-aaperguntarsesetinhaquebrado.Mostraram-setodas

muitoamáveis,especialmenteaquelasquetinhamestadodeitadasnasuacama.Mas

elanãose tinhaquebradoeas floresdeIdaagradeceram-lheabelacamaeforam

muito gentis com ela.Trouxeram-na para omeio do chão, onde brilhava o luar,

dançaramcomela e todas asoutras flores fizeramumcírculo à volta.Sofia ficou

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muito contente e disse que podiam ficar com a sua cama. Não estava nada

aborrecidapordormirnagaveta.

Masasfloresresponderam:

— Muito te agradecemos, mas não podemos viver tanto tempo. Amanhã

estaremoscompletamentemortas.MasdizàIdinhaquedeveenterrar-nos láfora

no jardim, onde está o canário. Vamos assim crescer outra vez para o verão e

ficaremosaindamaisbonitas!

—Não,nãovãomorrer!—disseSofia,beijandoasflores.Nomesmomomento

abriram-seasportasdasalaetodaumamultidãodebelasfloresentrouadançar.Ida

nãoconseguiacompreenderdondetinhamvindo.Eramcertamentetodasasflores

dopalácioreal.Àfrentevinhamduaslindasrosascomcoroazinhas.Eramumreie

umarainha.Entraramentãoosmaisbelosgoivosecravos,saudandoparaambosos

lados.Traziammúsicaconsigo,grandespapoilasepeóniassopravamemvagensde

ervilha,tantoqueficavamcomacabeçacompletamenterubra.Ascampânulasazuis

e as campainhas brancas soavam, como se tivessem guizos. Era uma música

admirável. Vieram depois muitas outras flores, que dançaram juntas, as violetas

azuiseasmargaridasvermelhas,narcisoselíriosdovale.

Asfloresbeijavam-seumasàsoutras.Erabelodesever!

Por fim as flores disseram boa noite umas às outras. Então a Idinha deslizou

tambémparaacama,ondesonhoucomtudooquevira.

Quandonamanhãdodiaseguinteselevantou,foidireitaàmesinhaparaverseas

flores ainda lá estavam.Puxou a cortinapara o ladoda caminha.Sim, lá estavam

todas, mas completamente murchas, muito mais do que na véspera. Sofia

continuavanagavetaondeapusera.Pareciaestarcommuitosono.

— Lembras-te do que tens a dizer-me? — perguntou a Idinha, mas Sofia

olhavacomumolharbemestúpidoenãopronunciouumaúnicapalavra.

—Nãoésnadaboa!—disse Ida.—E, contudo,dançaram todas contigo!—

Então pegou numa caixinha de cartão, combelos pássaros desenhados, abriu-a e

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pôsnelaas floresmortas.—Seráovosso lindocaixão!—disseela.—Equando

vieremosprimosnoruegueses,acompanhar-me-ãoaenterrar-vosnojardim,para

quenoverãopossamcresceretornar-seaindamaisbonitas!

Os primos noruegueses eram dois rapazinhos espertos. Chamavam-se Jonas e

Adolfo.Opaitinha-lhesdadodepresenteduasnovasbestasetraziam-nasparaas

mostraraIda.Elacontou-lhesahistóriadaspobresflores,queestavammortas,e

assimforamconvidadosaenterrá-las.Osrapazinhosforamàfrentecomasbestas

aosombroseaIdinhaatráscomasfloresmortasnabonitacaixa.Nojardimabriu-

seumapequenasepultura. Idabeijouprimeiroas flores, colocou-asdepoiscoma

caixadentrodaterraeAdolfoeJonasdispararamasbestasporcimadasepultura,

poisnãotinhamespingardasoucanhões.

1-Emvirtudedogénero,emcorrespondênciacomotextodesignam-seoutros

nomes de plantas. Em dinamarquês propriamente: violetas, jacintos, açafrões,

tulipaselilases.(N.doT.)(Voltar)

2 -Trata-se de um quebra-nozes ou boneco figurando um homem a fumar,

certamentecachimbo.(N.doT.)(Voltar)

3 - Açoite do Entrudo: molho de ramos de bétula enfeitado, com o qual as

pessoas se açoitavam, de brincadeira, umas às outras no Entrudo. (N. do

T.)(Voltar)

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OHomemdosFantoches

Estavanonavioumhomemdeaspetoidosocomumacaratãoalegreque,senão

mentia, devia serohomemmais felizdomundo.Era-o,disse ele.Ouvi-oda sua

própria boca. Era dinamarquês, meu compatriota e diretor teatral em viagem.

Trazia todoopessoal consigo e estavanuma caixa grande.Ele era ohomemdos

fantoches. O seu bom humor nato, disse ele, foi apurado por um bacharel da

politécnicaecomaexperiênciatornou-secompletamentefeliz.Nãoocompreendi

imediatamente,masentãoexplicou-metodaahistória.Ei-la.

—EraemSlagelse—disseele.—DavaumespetáculonacavalariçadoCorreio.

Tinhaumacasabrilhanteeumpúblicobrilhante,todoelesemterrecebidoaindaa

confirmaçãoreligiosa,excetoumpardevelhas.Veioentãoumapessoavestidade

preto de aspeto estudantil. Sentou-se e riu exatamente nas passagens certas,

aplaudindoperfeitamentebem.Eraumespectadorinvulgar!Tinhadesaberquem

era. Ouvi dizer que era bacharel da escola politécnica, enviado para ensinar na

província. Às oito estava terminado omeu espetáculo, pois as crianças têm de ir

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cedoparaacamaedeve-sepensarnacomodidadedopúblico.Àsnovecomeçavao

bacharelassuasliçõeseexperiênciaseagoraeraeuoseuouvinte.Eraestranhode

ouvirever.Amaiorpartedascoisaspassouporcimadaminhacabeçaeentrouna

doPadre,comosediz.Mastivedepensar:sepodemosdescobrircoisasassim,então

devemospodertambémresistirmaistempo,antesdesermoslançadosparadentro

da terra.Tudooque fazia erampequenosmilagres e, contudo,no seu conjunto,

com amaior simplicidade, diretamente da natureza.No tempo deMoisés e dos

profetas, umbacharel depolitécnica podia ter sidoum sábio dopaís, e, na Idade

Média,teriasidoqueimado.Nãodormitodaanoite,equandonanoiteseguintedei

umespetáculo,obacharel estava láoutravez.Fiqueimesmocomboadisposição.

Ouvi dizer a um ator que ele nos papéis de amoroso só pensava numa única

espectadoraeesquecia todaarestantesala.Obachareldapolitécnicaeraaminha

«ela», o meu único espectador para quem representava. Quando o espetáculo

terminou, foram chamados ao palco todos os fantoches e eu fui convidado pelo

bacharel da politécnica a ir a casa dele para tomar um copo de vinho. Falou das

minhas comédias e eu falei da sua ciência e creioque tivemos igualmentegrande

prazeremparticipardeambas.Maseunãodeixeidefalar,poishaviamuitacoisa

nassuaspalavrasdequeelepróprionãosabiadarconta.Comoadeumpedaçode

ferro, quando cai através de uma espiral, fica magnético. Sim, o que é isso? O

espíritotombasobreele,masdondevem?Étalcomocomossereshumanosdeste

mundo,pensoeu.Deusdeixa-oscairatravésdaespiraldotempoeoespíritotomba

sobreeles,eaíestáumNapoleão,umLuteroouumapessoasemelhante.—Todo

o mundo é uma série de milagres — disse o bacharel —, mas estamos tão

acostumados a eles, que lhes chamamos coisas de todos os dias. — Falou e

esclareceu, era por fim como se me puxasse para cima o crânio e confesso

honestamente que, se não fosse já velho, iria imediatamente para a escola

politécnicaaprenderaveromundoafundoesemconsiderarqueeraumdosseres

humanos mais felizes. — Um dos mais felizes! — disse ele, e era como se o

saboreasse.—É feliz?— perguntou.— Sim— respondi.— Sou feliz e bem-

vindoatodasascidadesaondechegocomaminhacompanhia.Há,semdúvida,um

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desejoquemeassalta comose fosseumduende,um incubocavalgandocombom

humor, isto é, ser diretor teatral de uma companhia viva, uma verdadeira

companhiadesereshumanos.—Desejaverosseusfantochesvivos,desejaquese

tornemverdadeiros atores?—perguntouele.—E se fosseodiretor, seria então

completamente feliz, o senhor crê nisso? — Ele não acreditava, mas eu cria e

continuámosafalarparaafrenteeparatráseassimficámoscomodantesnasnossas

opiniões,mascomoscoposbrindávamoseovinhoerabom.Havianele,porém,um

elixir, pois caso contrário toda a história ficaria a contar que apanhei uma

bebedeira.Enãosucedeuisso,Tinhaacabeçafresca.EracomoaluzdoSolnasala

irradiandodorostodobachareldapolitécnicaetivedepensarnosvelhosdeusesem

eternajuventude,quandoerrampelomundo.Issodisse-lhoeelesorriu,eeuteria

podidojurarqueeraumdeusdisfarçadoouumdafamília—era-o.Omeudesejo

seria satisfeito, os fantoches tornar-se-iam vivos e eu seria diretor de seres

humanos.Bebemosa isso.Elemeteutodososmeusbonecosnacaixademadeira,

atou-maàscostaseassimdeixou-mecairatravésdeumaespiraleaindahojeoiço

comocaí.Fiqueitombadonochão—ésabidoeéverdade—etodaacompanhia

saltouparaforadacaixa,Oespíritotombousobretodoseles,todososfantochesse

transformaramemartistasnotáveis,diziamelespróprios,eeueraodiretor.Estava

tudo preparado para a primeira representação. Toda a companhia queria falar

comigoeopúblicotambém.Adançarinadisseque,senãoficavasobreumaperna,

caíaacasa,eramestraeassimqueriasertratada.Abonecaquefaziadeimperatriz

queriatambémsertratada,foradecena,comoimperatriz,poissenãosaíadoensaio.

Aquelequeerautilizadoparaentraremcenacomumacarta,fez-setãoimportante

como o primeiro amante, pois os pequenos eram como os grandes, de igual

importância no conjunto artístico, disse ele.Então exigiu oherói que todo o seu

papelconstasseapenasderéplicasdesaída,porqueeramaplaudidas.Aprima-dona

sóqueriarepresentarcomluzvermelha,poisficava-lhebem—nãoqueriaestarem

azul.Eramcomomoscasnumfrascoeeuestavanomeiodofrasco.Eraodiretor.

Faltava-meoar,acabeçaandava-meàroda, senti-metão infelizcomosóumser

humanoopodeser.Eraumnovogénerohumanoemqueentrara.Queria-ostodos

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juntosnovamentenacaixaenuncatersidodiretor.Disse-lhescomfranquezaque,

nofundo,nãopassavamdefantocheseentãomataram-meàpancada.Foiaminha

salvação!Estavadeitadonacama,nomeuquarto.Comofuidacasadobacharelda

politécnicapara lá, talvezele saiba, eunão.A luabrilhavano chão,ondeestava a

caixa dos bonecos virada do avesso e todos os bonecos espalhados, pequenos e

grandes, todaa companhia.Masnão fuipreguiçoso, salteida camaeparaa caixa

vieramtodos,unsdecabeçaparabaixo,outrosdepernas.Fecheiatampaesentei-

mesobreacaixa.Eradignodeumapintura!Pode imaginá-la,eupossovê-la!—

Ficamagoraaí—disseeu—enuncamaisqueroquevenhamaserdecarneeosso!

—Sentia-metãoaliviado,eraohomemmaisfeliz.Obachareldapolitécnicatinha-

mepurificado.Fiqueialisentadoagozarapurafelicidadeedeixei-medormirem

cimadacaixa.Erana realidademeio-dia,maseudormimaravilhosamente todaa

manhã— ainda estava sentado, feliz, pois tinha aprendido que o meu antigo e

únicodesejoeraestúpido.Pergunteipelobachareldapolitécnica,mastinha-seido

embora,comoosdeusesgregoseromanos.Desdeessetempotenhosidoohomem

maisfeliz.Souumdiretorfeliz,omeupessoalnãoraciocina,opúblicodiverte-se

detodoocoração.Possolivrementeeuprópriorecomporasminhaspeças.Tomode

todasascomédiasomelhor,comoquero,eninguémseirritacomisso.Peçasque

agora são desprezadas nos grandes teatros,mas para as quais o público corria há

trinta anos e com elas soluçava, tomo-as eu agora, dou-as aos pequenos e estes

soluçamcomoospaiseasmãessoluçaram.Dou-lhesJoanaMontfauconeDyveke,

mas encurtadas, pois os pequenos não gostam de longas palermices amorosas,

quereminfeliz,masrápido.JávisiteiaDinamarcaemtodosos sentidos, conheço

todas as pessoas e sou reconhecido.Fui agora àSuécia e tive êxito e ganhei bom

dinheiro. Sou assim escandinavo — como não? —, digo-lhe a si, que é meu

compatriota.

E eu, como compatriota, voltei naturalmente a contar logo a história,

simplesmentepeloprazerdecontar.

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OSino

Ao entardecer, nas ruas estreitas da grande cidade, quando o Sol começava a

descer no horizonte e as nuvens brilhavam como se fossem de oiro, por entre as

chaminés, sucedia a uma ou outra pessoa ouvir, frequentemente, um som

maravilhoso,comosefosseosinodeumaigreja;massóporcurtosmomentos,pois

ascarruagensfaziamumruídoensurdecedoreeramuitoobarulhoeadesordem.

—Estáasoarosinodatardinha—diziam.—Vaipôr-seoSol!

Aqueles que saíam da cidade, onde as casas, com jardins e pequenas hortas,

estavammaisafastadasumasdasoutras,viamocéucrepuscularaindamaisbonitoe

ouviamtambémmaisdistintamenteosomdosino.Eracomoseviessedeumaigreja

bemdentrodobosquefragranteecalmo.Asgentesvolviamosolhosparalá,comar

grave.

Muitasvezes,diziamunsparaosoutros:

—Parece-mequeháumaigrejaalinobosque!Osinotemumsommaravilhoso.

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Vamosatéláparaovermaisdeperto.

Osricosiamdecarruagemeospobresapé;masachavamsempreadistânciatão

grandeque,quandochegavamàorladobosque,ondehaviaunstantossalgueiros,

deixavam-seficarsentadosaolharparacima,paraaramagemdasárvores,pensando

quejáestavamnobosque.Veioumpasteleirodacidadeeabriuaíasuatenda,veio

outropasteleiroeabriuoutra,pendurandoumsinoporcima,massembadalo.As

tendaseramfeitasdelonaebetumadascomalcatrão,pararesistiràchuva.Quando

regressavama casa, aspessoasdiziamque tinha sidomuito romântico e com isto

queriamdizerqueforaalgodiferentedoqueumsimplescháemcasa.Trêspessoas

afirmaramque tinhampenetrado no bosque até ao limite extremo e que haviam

ouvido o sommaravilhoso do sino,mas sempre como se o som viesse da cidade.

Umaoutrapessoafezumlongopoemasobreosino,noqualdiziaquesoavacomoa

vozdeumamãeparaumfilhoqueridoeinteligenteequenenhumaoutramúsicase

lhepodiacomparar.

Oimperadordopaísficoutambémintrigadocomoacontecimentoeprometeu

àquelequefossecapazdedescobrirdondevinhaosomquelheoutorgariaotítulo

desineirouniversal,mesmonocasodenãosetratardeumsino.

Assimpartirammuitaspessoasparaobosque,embuscadosustentoprometido

peloimperador,poisasituaçãoqueselhesofereciaeraextremamenteboa.Apenas

umavoltoucomumaespéciedeexplicação.Ninguémseaventurouapenetrartão

profundamente no bosque, nem tão-pouco ele, mas afirmou que o som do sino

provinhadeummochomuitograndequeseencontravadentrodeumaárvoreoca.

Era um mocho sábio, que estava continuamente a bater com a cabeça contra a

árvore.Seosomvinhadacabeçadomochooudotroncooco,nãopodiaafirmá-lo

comsegurança.Foinomeadosineirouniversaleescreviatodososanosumpequeno

tratadosobreosmochos,quepoucoounadaadiantava.

Ora,sucedeuistoquevamoscontar,precisamentenodiasolenedaconfirmação

cristã.Osacerdotehaviapreparadouma lindaprédica, tendo faladosentidamente

ao coração. Os meninos e as meninas que haviam recebido o sacramento da

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confirmaçãoficarammuitoimpressionados,poiseraumdiamuitoimportantepara

eles.Transformavam-se,deummomentoparaooutro,empessoascrescidas.Era

comoseaalmainfantilvoasseepassasseaseradepessoasadultas,dotadasderazão.

EraumbelodiadeSol.Osmeninoseasmeninasconfirmadossaíramdacidadee

forampassearnobosque,ondeouviram,deummodomaravilhosamentedistinto,o

somdogrande sinodesconhecido.Sentiram logovontadede ir atéao sítiodonde

partia o som e foram todos, com exceção de três.Destes três, umamenina quis

voltarparacasaparaprovarovestidodebaile,poisforapelovestidoepelobaileque

se havia confirmado. Outro era um rapaz pobre a quem o seu senhor havia

emprestado o fato e os sapatos para a confirmação e tinha de devolvê-los à hora

certa.Oterceirodeclarouquenuncaiaaqualquerlugardesconhecidosemospaiso

acompanharem, que sempre tinha sido um rapaz bem-comportado e queria

continuarasê-lo,mesmodepoisdeconfirmado,equeporissonãodeviamosoutros

rir-sedele,oquenaturalmentefizeram.

Semestestrês,puseram-seacaminho.OSolbrilhava,ospássaroscantavameas

meninaseosmeninosimitavam-noscantandotambém,caminhandodemãosdadas,

pois aindanão tinham conseguido emprego,mas, como confirmados, eram todos

iguaisperanteNossoSenhor.

Embreve,doisdosmaispequenossentiram-secansadosedecidiramregressarà

cidade.Duas raparigas deixaram-se ficar no caminho a fazer grinaldas de flores.

Então, quando os outros chegaram ao ponto onde havia muitos salgueiros e os

pasteleirosseinstalaram,disseramunsparaosoutros:

—Reparemquejáestamoslonge.Nãoexiste,narealidade,qualquersino,étudo

imaginação!

Nessemomentosoouosino,bemnaprofundezadobosque,etãosuaveesereno

quequatrooucincodecidiramavançar.Ocaminhoeratãocerradoefrondosoque

se tornava verdadeiramente difícil avançar. As aspérulas e as anémonas cresciam

muitoaltas,ascorriolasfloridaseasamoreirassilvestressuspendiam-seemlongas

grinaldas de árvore para árvore, onde os rouxinóis cantavam e os raios de Sol

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brincavam.Era uma bênção,mas,mesmo assim, não era caminho parameninas,

queficariamcomosvestidosemfarrapos.Haviatambémgrandesblocosderocha

totalmente cobertos de musgo de variegadas cores, e a água fresca corrente

borbulhavasaltitante,soandoestranhamentecomoseuglu-glu.

— Não será isto o sino? — perguntou um dos rapazes confirmados, que se

deitounochãoparaouvirmelhor.—Merece serbemestudado—declaroueali

ficounochão,enquantoosoutroscontinuaramocaminho.

Chegaram, então, a um local onde havia uma cabana construída com grandes

ramosecascasdeárvores.Sobreelapendiaumagrandemacieirasilvestrecomose

estivesse disposta a deixar tombar a sua bênção de frutos sobre o telhado florido

com rosas. Os grandes ramos apoiavam-se um pouco sobre a viga mestra, onde

estava suspenso um pequeno sino. Seria aquele o sino que se ouvia? Era, pois.

Todosestavamdeacordo,excetoumquedeclarouserosinodemasiadopequenoe

delicadoparapoderserouvidotãolonge,alémdequenãopodiaseraqueleosom

que tãoprofundamentepenetravanocoraçãodoshomens.Quemassim falouera

umfilhodereie,então,disseramosoutros:

—Estesqueremsempresermaisespertosdoquenós.

Deixaram-no partir sozinho, mas, à medida que ia avançando, a solidão

penetravacadavezmaisnoseucoração.Ouvia,contudo,aindaopequenosino,que

haviacontentadoosoutros,e,detemposa tempos,quandooventovinhado lado

dasinstalaçõesdopasteleiro,chegavam-lhetambémcançõesaoouvido.Masosom

profundo do outro sino fazia-se ouvir cada vez com mais força. Era como se

tocassemumórgão.Osomvinhadoladoesquerdo,doladodocoração.

Desúbito,ouviuumruídoesurgiunasuafrenteumrapazinhocomtamancosde

pau e uma jaqueta tão curta que as mangas lhe ficavam a meio do braço.

Reconheceram-se logo, pois o rapaz era o menino confirmado que não tinha

podidoacompanharosoutrosporterderegressaracasaparadevolverajaquetaeos

sapatos do filho do seu senhor. Fora isto realmente que fizera e depois, com

tamancoseummíserofato,vierasozinhoparaobosque,atraídopelosomfortee

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profundodosino.

—Podemos ir juntos—disseo filhode rei.Masopobreconfirmado, comos

seus tamancos, sentiu-se tão envergonhado que puxou pelas curtas mangas da

jaqueta.Respondeu-lheque receavanãopoder acompanhar os seus passos e que,

alémdisso, o sinodevia ficar à direitaporque era este o ladode tudoquanto era

grandiosoemagnífico.

—Bem,entãojánãovoltamosaencontrar-nos—retorquiuopríncipe,fazendo

umacenodedespedidaaomoçopobre,queentrounapartemaisescuraeespessado

bosque,ondeosespinhoscomeçaramarasgar-lheofato,orosto,asmãoseospés,

que sangravam abundantemente. O príncipe também recebeu alguns bons

arranhões,mashaviasempreSolnoseucaminho.Éelequevamosseguir,poisera

ummoçodetratoagradável.—«Tenhodeencontrarosino,dêláporondeder»,

disseparaconsigopróprio.«Ireiatéaofimdomundo,seforpreciso.»

Osfeiosmacacosqueestavamsentadosemcimadasárvoresarreganharam-lheos

dentes.

—Vamosmalharnele—disseram.—Vamosmalharnele.Éfilhoderei!

Masele,infatigável,penetravacadavezmaisprofundamentenobosque,deonde

surgiam floresmaravilhosas: lírios brancos estrelados com filamentos sanguíneos,

túlipas azul-celestes que cintilavam ao vento e macieiras cujos frutos pareciam

grandes bolas luminosas de sabão. Imaginem, pois, como seriam as árvores e as

flores à luz do Sol! À volta dos belos prados verdes, onde o veado e a corça

brincavamnarelva,cresciambeloscarvalhosefaias,esealgumadasárvoreshavia

perdido a casca, medravam nas suas gretas ervas e rebentos. Também havia no

bosque lagos tranquilos, onde os cisnes brancos flutuavam, batendo as asas. O

príncipe,devezemquando,paravaparaescutar,crendo,muitasvezes,queerade

umdesseslagosprofundosqueosomdosinovinhaatéele;logoverificavaquenão,

massimdofundodobosque.

EntãosobreveioopôrdoSol,océuruboresceucomoseardesseetudopareceu

calmonobosque,tãocalmoqueelesedeixoucairdejoelhos,cantandoosalmoda

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noiteedizendo:

—Jamaisencontrareioqueprocuro!OSolvaipôr-seagora,vemaíanoite,a

noitetenebrosa.Talvezpossaver,porém,umavezmais,abolarubradoSolantes

quedesapareçacompletamentepordetrásdaterra.Vousubiràquelesrochedos,que

sãotãoaltoscomoasmaisaltasárvores.

Agarrando-se aos ramos e às raízes, trepou sobre as pedras húmidas, onde se

enroscavamascobras-d’águaecoaxavamossapos.ChegouláacimaantesdeoSol

seterpostocompletamente.Quemagnificência!Omar,omajestosomar,lançando

as grandes ondas contra a costa, estendia-se na sua frente e o Sol era como um

grandealtar luminoso,ondeaáguaeocéuseuniam.Tudosemesclavaemcores

radiantes,obosquecantava,cantavaomar,eocoracãodopríncipeacompanhava-

os.Toda a naturezaparecia umgrandioso templo emque as árvores e as nuvens

flutuanteseramascolunas, as florese aerva,osparamentosdeveludo,opróprio

céu,acúpula.Porfim,quandooSoldesapareceu,sumiu-setambémacorrósea,e

milhõesdeestrelasacenderam-se.Brilhavammilhõesdelâmpadasdediamante.O

príncipeabriuosbraçosparaocéu,paraomareparaobosque.Entãoapareceu,à

suadireita,opobreconfirmado,dasmangascurtasedostamancosdepau.Também

alihaviachegadopeloseucaminho.Correramumparaooutroederamasmãos,no

grandetemplodaNaturezaedaBeleza.

Sobreelessoouosagradosinoinvisível,enquantoosespíritosbem-aventurados

pairavamàsuavolta,cantandojubilosaaleluia.

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OLivroMudo

Juntoàestrada,nomeiodobosque,haviaumaquintasolitária.Entrava-sepelo

portão,atéaoterreirobanhadopeloSolecomtodasasjanelasabertas.Haviavidae

movimentoládentro,masnopátio,numaramadadelilasesflorescentes,estavaum

caixão aberto.Omorto fora colocado aliporquenaquelamanhã ia ser enterrado.

Ninguém o olhava com lamentações, ninguém o chorava. O seu rosto estava

coberto comumpanobrancoe soba sua cabeça fora colocadoum livrograndee

espesso,cujasfolhas,soltas,eramdepapelcinzentoeentrecadaumadelasestavam,

guardadas e esquecidas, flores fanadas, todo um herbário colhido em lugares

diferentes. Devia ir para a sepultura também, porque o tinha pedido o próprio

falecido.Acadaflorestavaligadoumcapítulodasuavida.

—Queméomorto?—perguntámosnós,earespostafoi:ovelhoestudantede

Uppsala! Tinha sido diligente. Tinha conhecido a linguagem dos sábios, tinha

sabidocantar,sim,etambémescrevercanções,disse-se,masalgoselheatravessou

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nocaminho.Lançou-seasimesmoeaosseuspensamentosàaguardente,equando

a saúde disso se ressentiu, veio para aqui, para o campo, onde lhe pagaram as

despesas.Eradevotocomoumacriança,mas,quandooespíritonegroodominava,

corriacomoumanimalacossadopelafloresta.Seconseguíamoslevá-loparacasae

pô-loaverolivrocomasplantassecas,ficavasentado,todoodia,aolharparauma

planta e para outra.Muitas vezes corriam-lhe lágrimas pelas faces abaixo. Sabe

Deusoquepensava!Maselepediuo livroparaoacompanharnocaixãoeeleali

estava.Dentrodepoucotempoatampaseriapregadaereceberia,finalmente,asua

docepaznasepultura.

Levantaramamortalha.NorostodomortohaviapazeumraiodeSoltombou

sobre ele. Uma andorinha disparou, no seu voo veloz de flecha, para dentro da

ramadaedeuumavolta,chilreando,sobreacabeçadomorto.

Como émaravilhoso— conhecemo-lo certamente todos—, quando pegamos

emvelhas cartas donosso tempode juventude e as lemos, emerge todauma vida

comtodasassuasesperançasetodasassuasmágoas.Quantosdosserescomquem

vivemos tão intimamente estão agora como mortos para nós e, contudo, vivem

ainda, mas não pensámos por longo tempo neles, naqueles a quem outrora

supusemosestarsempreligados,participandoreciprocamentededoresealegrias.

Afolhafanadadocarvalho,no livro,recordaaquiamigos,amigosdotempoda

escola,amigosparatodaavida.Nobosqueverde,eleprendeuestafolhanobarrete

deestudante,quandoopactoficoufirmadoparatodaavida.—Ondeviveagora?

Folha guardada, amizade olvidada! Aqui está uma estranha planta de estufa,

demasiado fina para os bosques doNorte— é como se houvesse ainda alguma

humidadenesta folha!Foiadonzelaque lhadeu, aquelaestranhaplanta, colhida

em jardim da nobreza. Aqui está o nenúfar, ele próprio o colheu e regou com

lágrimassalgadas,nenúfardeáguadoce.Eaquiestáumaortiga.Quedizemassuas

folhas?Quepensouaocolhê-la,aoguardá-la?Aquiestáumlírio-do-valedasolidão

dobosque,aquiestáumamadressilvadopotedeplantasdasaladoalbergueeaquia

folhaderelva,cortanteenua!

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Os lilases florescentes inclinam cachos frescos e perfumados sobre a cabeça do

morto—a andorinhapassa a voaroutra vez: «Quevivi!Quevivi!»Agora vêmos

homenscompregosecommartelo,colocamatampasobreomorto,onderepousaa

cabeçasobreolivromudo.

Guardado—esquecido!

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ASombra

Nos países quentes, bem pode dizer-se que o Sol queima! As pessoas ficam

completamentemorenas,dacordomogno.Nospaísesmaisquentes,queimam-se

mesmoatésetornaremnegras.Foi,porém,paraospaísesapenasquentesqueum

letradoveiodos frios. Julgou, então,quepodia andar comona sua terra;mas em

brevesedeixoudisso.Ele,comotodasaspessoassensatas,tinhadeficaremcasa.As

portas das janelas e as portadas para a rua permaneciam cerradas o dia inteiro,

parecendo toda a casa adormecidaouquenãoestavaninguém.Apequena ruade

casasaltas,ondemorava,estava,alémdisso,situadademodoqueoSolbatiaaíde

manhãànoite.

Eraverdadeiramente insuportável!Ao letradodospaíses frios,queera joveme

umhomeminteligente,parecia-lhequeseencontravanumafornalhaardente.Isto

afetou-o, emagreceu muito, a sua própria sombra estreitou-se, tornou-se mais

pequena do que era na terra dele. O Sol também a afetou. Só viviam ambos de

noite,quandooSolsepunha.Eraverdadeiramenteumprazerverasombra.Logo

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queocandeeiroeratrazidoparaoquarto,estendia-secompletamenteatéàparede,

atémesmoaoteto,tãocompridasefazia.Tinhadeestender-separaganharforças.

O letrado ia para a varanda tambémpara se estender, e àmedida que as estrelas

surgiam no céumaravilhosamente claro, ele sentia-se voltar à vida. Em todas as

varandas da rua—enos países quentes todas as janelas têmvaranda—aparecia

gente,poisprecisa-sedoar,mesmoseseestáacostumadoaserde«mogno»!Todaa

gente se animava. Sapateiros e alfaiates, iam todos para a rua, traziam mesas e

cadeiras,acendiam-seluzes—bemmaisdeummilhardelas—,umfalava,outro

cantava e a gente andava a passear. Rodavam carruagens, passavam burros,

tlintintim—traziamguizos—,osmortosiamaenterrarcomcantosdesalmos,os

rapazesdarualançavampetardos,ossinosdasigrejasrepicavam,haviaumagrande

animaçãoláembaixo,nasruas.

Só numa casa, que ficava precisamente em frente daquela em que morava o

letradoestrangeiro,reinavacompletosilêncio.Vivia,contudo,láalguém,poishavia

na varanda floresquedesabrochavamadmiravelmente ao calordoSol, oquenão

podiaacontecersenãofossemregadas,e,portanto,alguémhaviaqueasdeviaregar.

Vivialáalguém,comcerteza.Aportadajanelaentreabria-setambémànoite,mas

por dentro permanecia escuro, pelo menos na divisão em frente, da qual vinha

música. Ao letrado estrangeiro parecia-lhe que a música era incomparável, mas

podia muito bem ser que a imaginasse assim, pois achava todas as coisas

incomparáveisnospaísesquentes,sóquenãodeviahavertantoSol.Odonodacasa

emquemoravadisse-lhequenãosabiaquemalugaraacasaemfrente,nuncasevia

lá gente e quanto à música, parecia-lhe terrivelmente aborrecida. Era como se

alguém se exercitasse na mesma peça, não pudesse ver-se livre dela, sempre a

mesma…Bempodia dizer: «hei de consegui-lo!»,mas nunca viria a consegui-lo,

pormaisquetocasse.

Certanoiteoestrangeirodespertou.Dormiacomajaneladavarandaabertaea

cortina esvoaçava ao vento. Pareceu-lhe, então, que vinha um esplendor

maravilhosodavarandadacasaemfrente.Todasasfloresluziamcomochamasnas

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coresmaislindas.Entreasfloresestavaumajovemesbeltaegraciosaeeracomose

elatambémbrilhasse.Esteesplendorferiu-lheosolhos.Abriu-ostãoterrivelmente

que logosaiudosono.Numsaltoestavanochão,ecomtodaacautela foipôr-se

pordetrás da cortina,mas a jovem sumira-se.Sumira-se tambémo esplendor, as

floresnãoluziamdemodoalgumeláestavamcomosempre.Aportaparaavaranda

mostrava-seentreabertaedofundovinhaosomdamúsicatãosuaveemaravilhosa

quepodialiteralmentedizer-sequeseeraarrebatadoporelaequesetombavaem

docespensamentos.Pareciaum feitiço,masquemviveria ali?Ondeera a entrada

para lá? Todo o rés-do -chão era loja com loja e por aí as pessoas não podiam

passar.

Umanoiteestavaoestrangeirosentadoàvaranda.Dentro,noquarto,pordetrás

dele,aluzestavaacesaeassimeraperfeitamentenaturalqueasuasombraincidisse

naparededacasaemfrente.Defacto,estasobrepunha-seentreasfloresdavaranda

e,quandooestrangeirosemexia,mexia-seelatambém,poisassimcostumafazer…

—Creiobemqueaminhasombraéaúnicacoisavivaqueali sevê—disseo

letrado.—Vê comopousas esplêndida entre as flores!A porta estámeio aberta,

bempodiasserengenhosaeentrar,davasumaolhadelaàtuavoltaevoltavaspara

mecontaroqueviste!Fariasassimalgoútil!—disseeleabrincar.—Fazesofavor

deentrar?Vá!Entrasounão?—Eacenouàsombra,queporsuavezlheacenou.

—Anda,masnão fiques lá!—Oestrangeiro levantou-se, então, e a sua sombra

sobreavarandadoprédioemfrentelevantou-setambém,eoestrangeirovoltou-se

easombraimitou-se.Esealguémtivesseestadorealmenteaobservá-los,podiater

visto distintamente que a sombra entrou pela porta da varanda meio aberta

exatamente quando o estrangeiro entrou no quarto, deixando tombar a grande

cortinaatrásdesi.

Namanhãseguintesaiuoletradoparatomarcaféelerosjornais.

—Queéisto?—exclamouele,quandoveioparaoSol.—Nãotenhonenhuma

sombra!Entãosempreláentrouontemànoiteenãovoltou!Éumacoisabastante

aborrecida!

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Eficouzangado,nãotantoporasombraestarfora,masporquesabiaquehavia

umahistóriadeumhomemsemsombraquetodaagenteconhecianospaísesfrios.

Voltasse o letrado à terra agora e contasse a sua história, diriam que a havia

plagiado,enãotinhanecessidadedisso.Nãoqueria,pois,demodoalgum,falardo

caso,eassimpensoubemsensatamente.

Ànoitevoltouàvaranda.Colocaraaluz,muitoacertadamente,pordetrásdele,

poissabiaqueasombrasemprequerterodonocomoanteparo,masnãoconseguiu

atraí-la. Fez-se pequeno, fez-se grande, mas não apareceu sombra nenhuma,

nenhumavoltou.Disseentão«hum!,hum!»,masissonadaoajudou.

Era aborrecido, mas nos países quentes bem crescem as coisas depressa e

decorridos oito dias observou, com grande satisfação sua, que lhe crescia uma

sombranovaapartirdaspernas,quandoveioparaoSol.Deviaterficadoláaraiz.

Passadastrêssemanastinhaumasombrabastantesatisfatória,que,noseuregresso

aos países nórdicos, foi crescendo mais e mais até que ficou tão comprida e tão

grandequemetadedelateriasidojásuficiente.

O letradovoltou àpátria e escreveu livros sobreoque era verdadenomundo,

sobreoqueerabomesobreoqueerabelo.Passaram-sediasepassaram-seanos,

muitosanossepassaram.

Estava, então, uma noite sentado no seu quarto e eis que batem à porta de

mansinho.

—Entre!—disseele,masninguémentrou.

Foi abrir e diante dele apareceu um homem extraordinariamente magro, que

muito o fez admirar. De resto, estava vestido de forma extremamente elegante,

deviaserumapessoadistinta.

—Aquemtenhoahonradefalar?—perguntouoletrado.

—Bempenseieu—disseohomemelegante—quenãomeconheceria!Tomei

muitocorpo,ganheirealmentecarneevestuário.Comcertezanuncapensouver-

meassimtãopróspero.Nãoreconheceasuaantigasombra?Certamentenãojulgou

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quenãovoltassemais.Amimascoisascorreram-meespecialmentebem,depoisda

última vez que estive consigo. Prospereimuito em todos os aspetos! Se tiver de

pagaralgumserviço,bempossofazê-lo!—Fezressoartodoumfeixedecustosos

berloquesquesesuspendiamcomorelógioelevouamãoàpesadacorrentedeouro

que trazia ao pescoço. Oh! Como todos os dedos brilhavam com anéis de

diamantes!Etudoaquiloerareal.

—Não!Nãoconsigovoltaramim!—disseo letrado.—Quevemasertudo

isto?

—Sim,bastantenormalnãoé—disseaSombra—,mastambémosenhornão

pertenceaonúmerodosseresnormais,eeu,bemosabe,seguidesdecriançaassuas

pisadas.Logo que achei que estavamadura para ir sozinha pelomundo, segui o

meucaminho.Estounumasituaçãobrilhantíssima,masapoderou-sedemimuma

espéciedeanseiodevê-loumavezmaisantesdemorrer,jáquealgumavezháde

morrer! Gostava também de ver de novo esta terra, pois sempre se fica preso à

pátria!Euseiqueconseguiuarranjaroutrasombra.Tenhoalgumacoisaapagara

elaouaosenhor?Queirasófazerofavordedizer.

—Não?És realmente tu?— exclamou o letrado.—É, contudo,muitíssimo

estranho!Nuncajulgueiqueasombradealguémpudessevoltarcomoserhumano!

—Diga-meoque tenhoapagar!—disseaSombra.—Poisnãogostode ter

dívidasdeespéciealguma!

— Como podes falar assim? — retorquiu o letrado. — Quem fala aqui de

dívidas? Considera-te perfeitamente quite! Muito me alegro com a tua sorte.

Senta-te,velhoamigo,econta-meumpoucocomosepassoutudoeoquevistena

casaemfrentelánopaísquente.

— Sim, vou contar-lho — disse a Sombra, sentando-se —, mas tem de

prometer-me que nunca dirá a ninguém aqui na cidade, onde casualmente me

encontrar,quefuiasuasombra!Pretendocasar-me,poispossosustentarbemmais

deumafamília!

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— Fica absolutamente tranquilo — tornou-lhe o letrado. — Não direi a

ninguémquemés.Aquitensaminhamão!Prometo-oeépalavradehomem!

—Palavradesombra!—retorquiuaSombra,poisassimtinhadeseexpressar.

Erarealmentemuitoestranhocomosetornaratãohumana.Estavatodavestida

depreto, comumadasmais finas fazendas, combotasenvernizadaseumchapéu

que podia ser comprimido de modo a ficar só copa e aba, sem falar, como já

sabemos,quetraziaberloques,correntedeouroeanéisdediamantes.Naverdade,a

Sombra apresentava-se extraordinariamente bem vestida e era precisamente isso

queafaziaparecertãohumana.

—Pois vou contar-lhe!— disse a Sombra, colocando as pernas com as botas

envernizadastãofirmementequantopodiasobreas«mangas»danovasombrado

letrado, a qual ficou como um cãozinho caniche aos seus pés e não foi por

arrogânciamastalvezparaobrigá-laaaderir.Asombrajacenteficoucaladaequieta

para tudo ouvir convenientemente, pois queria saber como se poderia soltar e

tornar-sesenhoradesiprópria.

— Sabe quemmorava na casa em frente?— perguntou a Sombra.—Era a

beleza suprema, era aPoesia!Estive lá três semanas eo seuefeito foi tãogrande

como se tivesse vivido aí trêsmil anos e tivesse lido tudo o que foi imaginado e

escrito.Poisdigo-lhe,eéverdade,vitudoeseitudo!

—Poesia!—exclamouoletrado.—Ah!Sim,sim…émuitasvezeseremitanas

grandescidades!Poesia!Éverdade,vi-aumcurtoinstante,masosonopesou-me

nos olhos!Estava na varanda e brilhava como brilha a aurora boreal.Mas conta,

conta!Estivestenavaranda,entrastepelaportaeviste…!

— Pois estive na antecâmara!— disse a Sombra.—O senhor estava sempre

sentadoaolharparaaantecâmara.Aímalhavialuz,eraumaespéciedecrepúsculo,

mas todas as portas estavam abertas umas diante das outras numa longa fila de

aposentosesalas.Salasondehavia luzetantaqueteriaalicaídomorto,setivesse

entradologoparaondeestavaajovem.Masfuiprudente,dei-metempo,eéassim

quesedevefazer.

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Equevisteentão?—perguntouoletrado.

—Vitudoevoucontar-lhe,mas…masnãoépororgulhodaminhaparte,mas…

comohomemlivreecomosconhecimentosquetenho,paranãofalardaminhaboa

posição,daminhaexcelentesituação…muitodesejariaquemetratasseporsenhor!

—Desculpe!—disseo letrado.—Éumvelho costumeque está arreigado!…

Temabsolutamenterazão!Nãooesquecerei!Masagoraconte-metudooqueviu!

—Tudo!—disseaSombra.—Poistudovieseitudo.

—Como era nas salas interiores?— perguntou o letrado.—Era como num

bosqueviçoso?Era comonuma igreja sagrada?Eramas salas comoumcéu claro

comestrelas,quandoocontemplamapartirdasaltasmontanhas?

—Tudoláestava!—disseaSombra.—Nãoentreicompletamente,fiqueino

quarto em frente,napenumbra,mas estava aíperfeitamentebem, vi tudoe tudo

sei!EstivenacortedaPoesia,naantecâmara.

—Masoqueviu?AtravessavamasgrandessalastodososdeusesdaAntiguidade?

Osheróisantigoslutavamaí?Brincavamdocescrianças,contandoosseussonhos?

—Digo-lhequeestiveaíe,comodevecompreender,vi tudooquehaviapara

ver! Se o senhor lá tivesse estado, não se teria convertido em homem, mas eu

converti-me! E além disso aprendi a conhecer a minha natureza íntima, o meu

«congénito», a familiaridade que tinha com aPoesia.Na verdade, quando estava

consigo, nãopensavanisso,mas sempre, como sabe, que oSol se levantava ou se

punha, eu tornava-me estranhamente grande. Com o luar quase conseguia

distinguir-memais do que o senhor.Não compreendia então aminha natureza,

masna antecâmara tudo se tornouclaroparamim!Tornei-mehomem!…Saídaí

amadurecida, mas o senhor já não estava nos países quentes. Envergonhei-me,

comohomem,deandarcomoandava,queriaatodoocustobotas,fatos,todoaquele

vernizhumanoquetornaumhomemreconhecível…Tomeiocaminho,digo-lhe…o

senhornãovaipôrissoemnenhumlivro…,tomeiocaminhodasaiadapasteleira,

sobaqualmeescondi.Amulhermalpodiapensarquantoocultava.Sósaíaànoite.

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Percorri a rua ao luar, encostando-me às paredes, o que faz umas cócegas tão

agradáveisnascostas!Andeiparacimaeparabaixo,espieiparadentrodas janelas

mais altas, para dentro de salas e nos telhados espreitei por onde ninguémpodia

espreitarevioquenenhumaoutrapessoavia,oqueninguémpodiaver!Nofundo,

éummundobastantegrosseiro!Nãoquereria tornar-mehomem, se algumavez

não se tivesse suposto que isso é ser algo! Vi as coisas mais inconcebíveis nas

mulheres,noshomens,nospaisenasdoceseincomparáveiscrianças.Vi—dissea

Sombra—oquenenhum ser deve saber, omal dopróximo.Se tivesse feito um

jornal,quelidoseria!Masescrevidiretamenteàsprópriaspessoaseespalhava-seo

terroremtodasascidadesaquechegava.Tinhamtantomedodemimeamavam-

me tão extraordinariamente! Os professores fizeram-me professor, os alfaiates

ofereceram-menovosfatos—estoubemfornecidodeles!—,osmestresmoedeiros

fizerammoedas paramim e asmulheres diziamque era belo!Foi assimqueme

torneinohomemquesou.Eagoradespeço-me.Eisomeucartão,morodoladodo

Soleestousempreemcasaemtempodechuva.—EditoistoaSombrapartiu.

—Foi,narealidade,notável!—exclamouoletrado.

PassaramanosediaseaSombravoltou.

—Comoestá?—perguntou.

—Oh!—respondeuoletrado.—Escrevosobreaverdade,abondadeeabeleza,

mas ninguém se preocupa em saber de tais coisas. Estou desesperado porque as

tomomuitoasério.

—Issonãofaçoeu!—disseaSombra.—Estouaengordareéissoquesedeve

tentar fazer! Na realidade, o senhor não sabe viver neste mundo. Está por isso

doente.Temdeviajar!Vouviajaresteverão,quervircomigo?

Gostariamuitodeterumcompanheirodeviagem!Queracompanhar-me,como

sombra?Seriaumgrandeprazerparamimtê-locomigo.Pagoaviagem!

—Vaibemlonge!—disseoletrado.

—Éconformesetomamascoisas!—retorquiuaSombra.—Osenhortirará

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grandebenefíciodaviagem!Sequiserseraminhasombra,tudoterágratuito!

—Éloucura!—disseoletrado.

—Masomundoéassim!—respondeuaSombra.—Eserásempreassim!—

Logoemseguidapartiu.

Oletradonãoandavanadabem.Perseguiam-nopreocupaçõesecuidadoseoque

elediziadaverdade,dabondadeedabelezaeraparaamaiorpartedaspessoascomo

deitarrosasaumavacaoupérolasaporcos.Ficouporfimbastantedoente.

— Parece realmente uma sombra! — diziam-lhe as pessoas, e o letrado

estremeciaaopensarnisso.

—Deveirabanhos!—proferiuaSombra,queveiovisitá-lo.—Nãoháoutra

coisaafazer!Irácomigo,porsermosvelhosconhecidos.Pagoaviagemeosenhor

faz as descrições e entretém-me um pouco no caminho.Quero ir a uma estação

termal,abarbanãomeestáacrescerbem.É,portanto,qualquerdoença,ebarba

tem um homem de ter! Seja pois razoável e aceite o convite. Vamos viajar, com

certeza,comobonscamaradas.

Partiram pois em viagem. A Sombra era o senhor e o senhor era a Sombra.

Andaram de carruagem, a cavalo e a pé, juntos, lado a lado, à frente ou atrás,

conforme estava o Sol. A Sombra sabia sempre pôr-se no lugar de senhor e o

letradonãosepreocupavacomisso.

Tinhamuitobomcoraçãoeeraparticularmenteplácidoegentil.Umdiadisseà

Sombra:

—Agoraquesomosbonscamaradasdeviagem,comorealmentesomos,e,além

disso,considerandoquecrescemosjuntosdesdeainfância,nãodevíamosfazeruma

saúdeecomeçarmosatratar-nosportu?Émaisíntimo!

—Dizbem—respondeuaSombra,queeraagoraoverdadeiro senhor.—É

muitosinceroehonestooquedizevousertambémhonestaesincera.Osenhor,

queéumletrado,sabemuitobemcomoanaturezaéestranha.Hápessoasquenão

podem suportar tocar em papel pardo que logo se sentemmal, outras há que se

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arrepiamtodasquandoseesfregaumpregonumavidraça.Eusintoumasensação

idênticaquandoooiçotratar-meportu,sinto-mepremidacontraochão,comona

minhaprimeiraposturaconsigo.Comovê,éumasensação,nãoumorgulho.Não

possopermitir-lhetratar-meportu,mastratá-lo-eicomgostoportu.Ficaassim

meiosatisfeitooseudesejo!

AssimcomeçouaSombraatratarportuoseuantigosenhor.

«Ébemdedoidos»,pensoueste,«queeudevatratá-laporsenhoreelatratar-me

portu!»,masnãohaviaoutroremédio.

Chegaramentretantoaumaestância termal,ondehaviamuitosestrangeiros, e

entreelesabelafilhadeumreiquetinhaadoençadeverdemasiadobem,oqueera

muitodesagradável.

Elanotouimediatamentequequemacabavadechegareraumapessoadiferente

detodasasoutras.«Veioparafazercrescerabarba,dizele,masvejomuitobema

verdadeirarazão,nãoconsegueproduzirsombra.»

Ficouassimcheiadecuriosidadee logonasvoltasdopasseiopúblicoprocurou

conversa com aquele senhor estrangeiro.Como filha de um rei, não precisou de

fazermuitascerimóniasparalhedizer:

—Asuadoençaénãoproduzirsombra.

—VossaAltezaRealdevesentirconsideráveismelhoras!—retorquiuaSombra.

—Seiqueovossomaléverdemasiadobem,mas jápassou,estaiscurada.Tenho

realmenteumasombrapoucovulgar.Nãovêapessoaqueandasemprecomigo?As

outraspessoastêmumasombravulgar,maseunãogostodavulgaridade.Podedar-

seaoslacaiostecidosmaisfinosparaaslibrésdoqueaquelesqueseusa,efoiassim

quepermitiàminhasombraarranjar-separaseapresentarcomohomem.Comovê,

dei-lhemesmouma sombra.Éumprazermuito caro,masgostodepossuiruma

coisasóparamimpróprio.

«O quê!», pensou a princesa. «Estarei realmente curada? Estes banhos são os

melhoresqueexistem!Aáguatemnonossotempoumefeitoenorme.Masnãome

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vou embora, pois agora é que começa a ser divertido aqui. Gosto

extraordinariamentedesteestrangeiro.Oxaláqueabarbanãolhecresça,senãovai-

seembora!»

Nessanoite,nagrandesaladebaile,afilhadoreieaSombradançaram.Elaera

leve,masaSombraaindamais.Nuncativeraumparceiroassim.Disse-lhedeque

país vinha, e a Sombra conhecia-o. Fora lá, mas nessa altura ela estava ausente.

Deraumaolhadeladas janelaspara cimaeparabaixo, tinha visto isto e aquilo, e

soubeassimresponderàsperguntasdafilhadoreiedarindicaçõesdetalmodoque

elaficoumaravilhada.Deviaserohomemmaissábiodetodoomundo!Tomou-se,

pois, de grande respeito pelo que ele sabia e, quando voltaram a dançar, estava

enamorada e a Sombra bem o notou, pois quase a trespassava com o olhar.

Dançaramaindamaisumavezeelaestevequaseadeclarar-se-lhe,mas,comoera

discreta, pensou no seu país e no reino e nasmuitas pessoas sobre quem viria a

reinar.«Homeminstruídoéele»,disseparasiprópria,«oqueébom.Dançabem,o

que também é bom. Mas terá conhecimentos sólidos? É coisa igualmente

importante!Temde ser examinado.»Começou assimpouco a pouco a fazer-lhe

perguntasmaisdifíceis,aqueelapróprianãosabiaresponder.EaSombrafezuma

grandecaradeestranheza.

—Nãosabeentãoresponder!—disseafilhadorei.

— São coisas que aprendi em criança — respondeu a Sombra. — Creio,

contudo,queaminhasombra,quealiestáaopédaporta,saberáresponder-lhe.

—Asuasombra!—exclamouafilhadorei.—Seriamuitocurioso!

—Poisé,nãodigodecididamentequesabe—disseaSombra—,mascreiobem

que sim. Seguiu-me e escutou-me tantos anos… sim, creio-o bem! Mas Vossa

AltezaRealpermita-mequelhechameaatençãoparaofactodequeelatemtanto

orgulhoempassarporumapessoa,que,seestiverdebomhumor…edeveestarpara

responderbem…temdesertratadacomotal.

—Possobemtolerarisso—respondeuafilhadorei.

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Assimsedirigiuaoletrado,queestavaaopédaporta,efaloucomelesobreoSol,

aLuaesobreaspessoas,tantoporforacomopordentro,eelerespondeu-lhebeme

inteligentemente.

«Que homem este, que tem uma sombra tão instruída!», pensou. «Seria uma

verdadeira bênção para o meu povo e para o reino se o escolhesse para meu

consorte.Voumesmoescolhê-lo!»

E logo acordaram casar-se, tanto a filha do rei como a Sombra. Ninguém,

porém,deviasabê-loantesdeelavoltaraoreino.

—Ninguém,nemmesmoaminhasombra!—disseaSombra,elátinhaassuas

razões.

Foramdepoisparaopaísondeafilhadoreireinava,quandoláestava.

—Ouve,meubomamigo!—disseaSombraaoletrado.—Souagoratãofelize

poderosa como ninguém e quero fazer algo especial por ti! Habitarás sempre

comigo no palácio, andarás comigo naminha carruagem real e terás centenas de

milhares de táleres por ano, mas tens de deixar-te chamar sombra por toda e

qualquerpessoa.Nãopodesdizerquefostealgumavezumapessoa,eumavezpor

ano,quandomesentarnavarandaaoSolparaquemevejam,deverásdeitar-teaos

meuspés,comofazumasombra.Possodizer-te,vou-mecasarcomafilhadoreie

hojeànoiteserãocelebradasasbodas.

—Não!Éloucurademasiada!—disseoletrado.—Nãoquero,nemfaçoisso!

É enganar todo o país e a filha do rei também! Vou dizer tudo!Que sou eu o

homemequetuésasombra,queapenasandasvestidacomohomem!

—Ninguém acreditará em ti!— afirmou a Sombra.— Sê, pois, sensato ou

chamoaguarda!

—Voujáàfilhadorei—disseoletrado.

—Maseuvouprimeiro!—redarguiuaSombra.—Etuvaisparaaprisão!

Tevemesmodeir,poisassentinelasobedeceramàquelequesabiamqueafilha

doreiqueriaparaconsorte.

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—Estásatremer!—exclamouafilhadorei,quandoaSombraentrounosseus

aposentos. — Aconteceu alguma coisa? Não podes estar doente hoje à noite,

quandovãocelebrar-seasbodas.

—Acabodeviveracoisamaiscruelque sepodeviver!—disseaSombra.—

Imagina… realmente um pobre cérebro de sombra não pode suportar muito…

imagina,aminhasombraenlouqueceu,crêqueépessoaequeeu…imaginabem…

eusouasuasombra.

Éhorrível!—exclamouaprincesa.—Estácomcertezaencarcerada?

—Está,pois.Estouconvencidodequenãoserestabelecerámais.

— Pobre sombra!— exclamou a princesa.— É muito infeliz. É verdadeira

caridade libertá-ladopoucode vidaque teme, sepensobem, creioque se torna

necessárioacabar-secomelasecretamente.

—Érealmentebastanteduro—disseaSombra—,poiseraumaservidorafiel.

—Edeixouescaparalgoparecidocomumsoluço.

—Tendesumcaráternobre!—exclamouafilhadorei.

Ànoitetodaacidadeestavailuminadaeoscanhõesdispararam—pum!—Eos

soldadosapresentaramarmas.

Aquilo éque forambodas!A filhado rei e aSombravieramàvarandapara se

mostraremeforamacolhidascommuitosvivas.

Oletradonadaouviu,poisjálhehaviamtiradoavida…

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Saltadores

Umavez,opulgão,ogafanhotoeogansosaltador1quiseramverqualdelesera

capazdesaltarmaisaltoeassimconvidaramtodoomundoequemdemaisquisesse

assistiràexibição.Eramtrêsvalentesquandoentraramnasala.

—Sim,douaminhafilhaàquelequesaltarmaisalto!—disseorei.—Poisé

mesquinhodeixaraspessoassaltarpornada!

Opulgãofoioprimeiroaavançar.Tinhamaneirasdelicadasefezsaudaçõespara

todososlados,poishaviasanguededonzelaneleeestáacostumadoasóterrelações

comossereshumanos.Eissotemmuitaimportância.

Veiodepoisogafanhoto.Eraconsideravelmentemaispesado,mastinha,mesmo

assim, muito boas maneiras e apresentou-se no seu uniforme verde herdado à

nascença.Alémdisso,diziamaspessoasquevinhadeumafamíliamuitoantiga,na

terradoEgitoequeaqui,noreino,eraaltamenteconsiderado.Tinham-notrazido

diretamentedocampoepostonumacasadecartas,comtrêsandares,construídos

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com figuras com o lado colorido para dentro.Havia tanto portas como janelas e

tudorecortadonocorpodadamadecopas.—Eucantodetalmodo—afirmou—

quedezasseisgrilosnativosque, embora, cantassemdesdepequenos,não tiveram

direitoanenhumacasadecartas.Aoouvirem-me,zangaram-setantoqueficaram

aindamaismagrosdoqueeram!

Tanto o pulgão como o gafanhoto deram assim boas contas de quem eram,

acreditandoquebempodiamvirapossuirumaprincesa.

O ganso saltador não disse nada, mas falaram por ele e disseram que assim

pensavamais,eocãodacorte,malofarejou,afiançouqueogansosaltadorerade

boafamília.Ovelhoconselheiro,quetinharecebidotrêsordensparaestarcalado,

assegurou que sabia que o ganso saltador era dotado da capacidade de profecia.

Podiaver-senassuascostassesetinhauminvernosuaveourigorosoeissonuncase

podiavernascostasdequemescreviaoalmanaque.

—Sim,poragoranãodigonada!—afirmouovelhorei.—Masvouocupar-me

dissoepensarnaminhaopinião!

Haviaentãoquedarosalto.Opulgãosaltoutãoaltoqueninguémoconseguiu

ver, e então foram de opinião de que não tinha mesmo saltado, e isso foi

mesquinho!

Ogafanhotosaltousómetadedaaltura,massaltoumesmoparaacaradorei,que

sentenciouqueeranojento.

Oganso saltador ficoumuito tempoquieto a pensar, julgando-sepor fimque

nãoeramesmocapazdesaltar.

—Oxalánãosesintamal!—disseocãodacorte,quevoltouafarejá-lo.Rutch!

Eogansosaltadordeuumpequenosaltodeesguelhaparaocolodaprincesa,que

estavasentadanumbanquinhodeouro.

Entãooreiproferiu:

—Osaltomaisaltoéparaaminhafilha,poiselaédomaisfinoquehá.Paratal

coisaháque teruma cabeçaparapensar e o ganso saltadormostrouque a tinha.

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Temossonatesta,querdizer,temmiolo!

Eassimrecebeuaprincesa.

—Fuieuquesalteimaisalto!—afirmouopulgão.—Masé-meindiferente!

Queaprincesafiquecomogansodepauepez!Fuieuquesalteimaisalto,masé

precisotercorponestemundoparaqueovejam!

Eassimopulgãoalistou-secomocombatentenoestrangeiro,ondesedizquefoi

abatido.

O gafanhoto sentou-se lá fora na valeta a pensar, como são propriamente as

coisasnestemundo,dizendo:

—Temdesetercorpoparaisso!Temdesetercorpoparaisso!Eassimcantoua

suacançãotristeefoidelaquetomámosahistória,quebempodiaserfalsa,ainda

queimpressa.

1-Velhobrinquedofeitodeumossodepeitodegansoquedavasaltos. (N.do

T.)(Voltar)

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ARapariguinhadosFósforos

Estavaterrivelmentefrio.Nevavaetinhacomeçadoaanoitecer.Eratambéma

última noite do ano, a véspera do ano novo. Naquele frio e naquela escuridão,

caminhavapela ruauma rapariguinhapobre, com a cabeça descoberta e descalça.

Tinha,oumaisjustamentetiveracalçadochinelas,quandosaiudecasa.Masdeque

lheservira isso!Eramtãograndes—ultimamenteamãeandaracomelas—que

lhe caíram dos pés quando teve de atravessar a rua a correr, para fugir de duas

carruagensemloucacorreria.Umachinela,nãofoipossívelencontrá-laeaoutra

levou-aumrapazinhoquelhedissequepoderiavirautilizá-lacomoberço,quando

tivessefilhos.

Agora ia pela rua a rapariguinha de pezinhos descalços, que estavam roxos de

frio.Novelhoegastoaventallevavaumaquantidadedefósforosenamãosegurava

ummolhodeles.Durantetodoodia,ninguémlhetinhacompradoum.Ninguém

lhe dera um pequeno xelim. Com fome e enregelada, a pobrezinha caminhava

muito infeliz!Os flocos deneve caíam-lhe sobre os longos cabelos loiros, que se

encaracolavamgraciosamente em volta do pescoço,mas nesta beleza não pensava

ela.Asluzesbrilhavamemtodasasjanelasecheiravamuitobemaoassadodeganso,

naquelarua.Eraanoitedapassagemdoano.

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Eeranissoqueelapensava.

Numrecantoafastado,entreduascasas—umaavançavaumpoucomaisdoque

aoutra—,sentou-se,encolhida.Puxaraasperninhasparadebaixodesi,mascada

vez tinhamais frio e para casa não ousava ir.Não vendera, na verdade, nenhuns

fósforos.Nãoconseguiraumúnicoxelim.Opaibater-lhe-ia.Alémdisso,também

estavafrioemcasa.Tinhamotelhadomesmoporcimadeleseoventoassobiavapor

aí,sebemquetivessemtapadocompalhaetraposasfendasmaiores.Asmãozinhas

estavamquasemortasdefrio.Ai!Umfosforozinhofar-lhe-iabem.Setirasseumsó

domolhoeoriscassenaparedeeaquecesseosdedos!Tirouume«ritch»!Como

esguichou, como ardeu! Era uma chama clara, quente, como uma velazinha,

quandopôsamãoàvoltadele.Eraumaluzestranha!Àrapariguinha,pareceu-lhe

que estava sentada diante deumgrande fogãode ferro, comesferas e tamborde

latãodourado.Ofogoardiatãoabençoadoeaqueciatãobem!Oh!Quefoiisto?A

pequenaestendiajáospésparatambémosaquecer,quandoachamaseapagoueo

fogãodesapareceu.Continuousentadacomumtocozinhodefósforoqueimadona

mão.

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Riscou outro, que ardeu e luziu. E, quando o clarão incidiu na parede, esta

tornou-se transparente como um tule. Olhou para dentro da casa onde a mesa

estava posta com loiça de porcelana fina sobre uma brilhante toalha branca.

Maravilhosamente, exalava um ganso assado, recheado com passas de ameixas e

maçãs!Ogansosaltoudatravessa,saracoteando-sepelochão,comogarfoeafaca

espetadosnolombo,quefoiaindamaismaravilhoso.Dirigiu-sediretamenteparaa

rapariguinha.Masquandoofósforoseapagou,elasóviuaespessaparedefria.

Acendeuoutro.FicouentãosentadasobamaisbelaárvoredeNatal.Eraainda

maioremaisornamentadadoqueaquelaquevirapelaportaenvidraçada,emcasa

do comerciante rico, no último Natal. Milhares de velas brilhavam nos ramos

verdesefigurasmuitocoloridas,comoaquelasquedecoravamasmontrasdaslojas,

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olhavam,ládecima,paraela.Apequenaestendeuambasasmãosnoare…logose

apagouofósforo.AsmuitasluzesdoNatalsubiramcadavezmaisalto.Viuentão

que eram as estrelas brilhantes.Umadelas caiu e fez um longo risco de fogono

céu.

—Estáamorreralguém!—disseapequena,porqueavelhaavó,quefoiaúnica

pessoaquetinhasidoboaparaela,masqueagoraestavamorta,dissera:—Quando

caiumaestrela,sobeumaalmaparaDeus!

Riscoudenovoumfósforonaparede,queiluminoutudoàvoltae,noseufulgor,

estavaavelhaavó,tãoclara,tãoluminosa,tãodoceefeliz.

—Avó!—gritouapequena—Oh!Leva-mecontigo!Seiqueteirásquandoo

fósforoseapagar.Queteiráscomoofogãoquente,comoobeloassadodegansoea

grande e abençoada árvore de Natal! — E riscou apressadamente o resto dos

fósforosqueestavamnomolho.Queriaconservaraavó.Eosfósforosarderamcom

talbrilhoquesefezmaisclaroquealuzdodia.Aavónuncatinhasidotãobelae

tão grande. Levantou a rapariguinha para os seus braços e voaram ambas em

esplendor e júbilo. Tão alto, tão alto! Naquele lugar não havia nenhum frio,

nenhumafome,nenhummedo…estavamcomDeus!

Mas naquele recanto da rua, na madrugada fria, jazia morta pelo frio a

rapariguinha com as faces vermelhas e comum sorriso na boca… enregelada.Na

última noite do velho ano. A manhã do novo ano ergueu-se sobre o pequeno

cadáver,sentadocomoseupunhadodefósforos,quasetodosqueimados.—Quis

aquecer-se!—disseram.

Ninguémsoubequecoisasbelasameninaviu,nememqueesplendorelacoma

velhaavótinhamentradonojúbilodoanonovo!

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ORouxinol

NaChina, como bem sabes, o imperador é chinês, e todos quantos tem à sua

voltasãochineses.Jálávãomuitosanos,masprecisamenteporissomereceapena

ouvirestahistória,antesquesejaesquecida!

Opaláciodoimperadoreraomaisfaustosodomundo,inteiraecompletamente

deporcelanafina,tãovalorosa,mastãofrágil.Tãosensívelaqualquertoque,que

havia verdadeiramente que tomar-se atenção. No jardim viam-se as flores mais

estranhasenasmaisesplendorosasestavamatadascampainhasdeprataquetiniam

paraquenãosepassasseporelassemasnotar.Sim,nojardimdoimperadortudo

estavaperfeitamenteplaneadoeestendia-seatétãolongequeoprópriojardineiro

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nãosabiaondeterminava.Sesecontinuavaaandar,entrava-senomaisesplêndido

bosquecomárvoresaltaselagosfundos.Obosqueestendia-seatéaomar,queera

azuleprofundo.Grandesbarcospodiamnavegarepenetrarsobasramagensdestas

árvores e nelas vivia um rouxinol que cantava de forma tão abençoada que até

mesmoopescadorpobre,quetinhatantasoutrascoisascomquesepreocupar,se

quedava a escutá-lo, quando de noite saía para lançar a rede e calhava ouvi-lo.

«SantoDeus, como este canto é belo!», dizia,mas tinha de pensar na sua vida e

esqueciaopássaro.Contudo,nanoiteseguinte,quandoorouxinolvoltavaacantar

eopescadorandavaporali,exclamavaomesmo:«SantoDeus,comoestecantoé

belo!»

De todos os países domundo vinhamviajantes admirar a cidade imperial bem

comoopalácio eo jardim.Masquandoouviamo rouxinol, afirmavam:«Isto éo

melhordetudo!»

Os viajantes falavamdisso quando regressavam e os letrados escreviammuitos

livrossobreacidade,opalácioeo jardim,masnãoseesqueciamdorouxinol,que

erapostoacimade tudo.Eosque sabiampoetarescreviamasmaisbelaspoesias,

todassobreorouxinoldobosque,juntoaomar.

Os livroscircularampelomundoealgunsdeles chegaramumavezàsmãosdo

imperador.Este sentou-sena sua cadeiradeouro,pôs-se a ler, a ler, e foi lendo.

Acenava a todo omomento com a cabeça, pois agradava-lhe ler as maravilhosas

descriçõesda cidade,dopalácioedo jardim.«Maso rouxinol ébemomelhorde

tudo»,tambémestavaláescrito.

—Oque é isto?— exclamou o imperador.—Um rouxinol?Nada sei disso!

Existetalpássaronomeuimpério,precisamentenomeujardim?Nuncaouvifalar

detalcoisa!Edistotenhodesaberatravésdaleitura?

Chamoupeloseucavaleiro-às-ordens,queeratãodistintoque,quandoalguém

quelheerainferiorseatreviaadirigir-lheafalaouaperguntar-lhealgumacoisa,

nãolherespondiasenãocomum«pe!»,quenadasignificava.

— Deve haver aqui um pássaro extraordinariamente notável que se chama

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rouxinol!—disseoimperador.—Dizemqueéomelhordetudonomeugrande

império!Porquenãomefalaramdele?

— Nunca ouvi mencioná-lo! — disse o cavaleiro-às-ordens. — Não foi

apresentadonacorte!

—Queroquevenhaaquihojeànoiteecanteparamim!—disseoimperador.—

Todoomundosabeoquetenhoeeunãosei!

— Nunca ouvi mencioná-lo! — respondeu o cavaleiro-às-ordens. — Vou

procurá-loeheideencontrá-lo!

Masondeiriaprocurar?Ocavaleiro-às-ordenssubiuedesceu,acorrer,todasas

escadas,percorreusalasecorredores,Nenhumadaspessoasqueencontrououvira

falardo rouxinol.Ocavaleiro-às-ordens voltou a correrparao imperador edisse

quedeviasercertamenteumahistóriainventadaporessagentequeescrevelivros.

— Vossa Majestade Imperial não deve crer em tudo o que se escreve! São

invenções.Éoquesechamamagianegra!

—Masolivroondeli isso—disseoimperador—foi-meenviadopelomuito

poderoso imperador do Japão e, portanto, não pode ser falso. Quero ouvir o

rouxinol!Temde estar aqui hoje à noite!Concedo-lhe a supremagraça de vir à

minha presença! Se não vier, toda a corte levará açoites na barriga depois de ter

ceado.

—Tsing-pe!—disseocavaleiro-às-ordens,evoltouacorrer,asubireadescer

todasasescadas,apercorrertodasassalasecorredores,emeiacortecorriacomele,

poisnão tinhamnenhumavontadede levar açoitesnabarriga.Eraumperguntar

portodaapartepelorouxinolqueomundointeiroconhecia,masnãoacorte.

Porfimencontraramumapobrerapariguinhanacozinha.Disseela:

— Oh! Deus, o rouxinol! Conheço-o bem! Sim, como sabe cantar! Tenho

autorizaçãoparalevartodasasnoitesumpoucodosrestosdamesaparacasa,paraa

minha pobre mãe doente. Vive lá em baixo na praia e, quando regresso, estou

cansada e repouso no bosque, oiço então o rouxinol a cantar! Fico com os olhos

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húmidos.Écomoseaminhamãemebeijasse!

—Cozinheirazinha!—disseocavaleiro-às-ordens.—Arranjar-lhe-eiumlugar

certonacozinhaepermitir-lhe-eivero imperadorcomer, senos souber levarao

rouxinol,poisasuapresençafoianunciadaparahojeànoite!

Precipitaram-se todos para o bosque, onde o rouxinol costumava cantar.

Acompanhava-osmeiacorte.Enquantocaminhavam,ouviramumavacaamugir.

—Oh!— disseram os pajens da corte.—Temo-lo agora!Há realmente um

vigorextraordinárionumanimaltãopequeno!Jáoouvicomtodaacerteza!

—Não!Sãoasvacasquemugem!—disseacozinheirazinha.—Estamosainda

longedolugar.

Coaxaramdepoisasrãsnocharco.

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—Maravilhoso!—disseodeãodopalácio.—Oiço-oagora,écomosinozinhos

deigreja!

—Não!Sãoas rãs!—dissea cozinheirazinha.—Maspensoqueembreveo

vamosouvir.

Entãocomeçouorouxinolacantar.

—Éele—dissearapariguinha.—Oiçam!Oiçam!Estáali!—Eapontoupara

umpassarinhocinzentopousadonosramos.

— É possível? — disse o cavaleiro-às-ordens. — Nunca o tinha imaginado

assim!Comopareceinsignificante!Certamenteperdeuascoresaovertantagente

distintaàsuavolta!

— Rouxinolzinho! — gritou a cozinheirazinha bemalto. — O nosso

magnânimoimperadorgostariamuitoquecantassesparaele!

—Com o maior gosto— respondeu o rouxinol, e logo cantou que era uma

maravilha.

—É como as campainhas de vidro!—disse o cavaleiro-às-ordens.—Vede a

gargantazinha, como se esforça!É estranhoque nunca o tenhamos ouvido!Fará

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grandesucessonacorte!

—Devocantarmaisumavezparaoimperador?—perguntouorouxinol,que

julgavaqueoimperadorestavaali.

—Meu excelente rouxinolzinho!— disse o cavaleiro-às-ordens.—Tenho a

grandealegriadevosconvidarparaumafestanacorte,estanoite,naqualdeliciareis

SuaAltaGraçaImperialcomovossocantofascinante!

—Émaisbonitono campo!—disseo rouxinol,mas acompanhou-osdebom

grado,quandoouviudizerqueoimperadorassimoqueria.

Nopaláciofoipostotudoconvenientementealuzir.Paredesepavimentos,que

eramdeporcelana,brilhavamcoma luzdemilharesde lamparinasdeouro.Nos

corredoresforamcolocadasasfloresmaisbelas,quepodiamverdadeiramentetinir.

Eraummovimentoeumaaragemtaisque faziamsoar todasas campainhas,que

ninguémconseguiuouvirumapalavra.

No meio da grande sala onde o imperador estava sentado fora colocado um

poleiro de ouro e nele devia pousar o rouxinol. Toda a corte estava aí e a

cozinheirazinha recebeu autorização para ficar de pé, por detrás da porta, pois

tinhaagoraotítulodecozinheiraabsoluta.Trajavamtodosassuasmelhoresgalase

olhavamparaopassarinhocinzento,aoqualoimperadoracenou.

O rouxinol cantou tão bem que vieram as lágrimas aos olhos do imperador.

Correram-lhepelorosto.Quandoorouxinolcantouaindamelhor,oseucantofoi

direito ao coração. O imperador ficou tão contente que disse que o rouxinol

receberia as suas chinelasdeouropara trazer à voltadopescoço.Maso rouxinol

agradeceudizendoquejáreceberarecompensasuficiente.

—Veras lágrimasnosolhosdoimperadoréparamimomaisricotesouro!As

lágrimasdeum imperador têmumpodermaravilhoso!Deusbemsabequeestou

suficientemente recompensado. — E voltou a cantar com a sua voz maviosa e

abençoada.

—Éomaisamávelgalanteioqueconheço—disseramasdamasemredor,que

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começaram a pôr água na boca para gorgolejar, quando alguém falava com elas.

Imaginavamque,destemodo,tambémpareciamrouxinóis.Atémesmooslacaiose

ascriadasdequartodeixaramsaberqueelestambémestavamsatisfeitos.Issotinha

muitaimportância,poissãoaspessoasmaisdifíceisdecontentar.Nãohaviadúvida,

orouxinolfizerabastantesucesso!

Ficaria agora na corte e teria a sua própria gaiola, bem como a liberdade de

passearnanaturezaduasvezespordiaeumavezdenoite.Recebeutambémdoze

criados.Tinhamtodosumafitadesedaligadaàpernadorouxinoleseguravam-na

firmemente.Orouxinolsentia-sepreso.Paraelenãohavianenhumprazernesses

passeios.

Todaacidadefalavadonotávelpássaroeseduaspessoasseencontravam,umasó

dizia«rouxi!»,eaoutrarespondia«nol!»,edepoissuspiravameentendiam-seuma

comaoutra.Atéonzefilhosdeummerceeiroreceberamoseunome,masnenhum

delesdeutomqueseouvisseemvida…

Um dia chegou uma grande encomenda para o imperador. Por fora estava

escrito:Rouxinol.

—Temosaíumlivronovosobreonossopássarocélebre!—disseoimperador.

Nãoera,porém,nenhumlivro,masumapequenaobradeartedentrodeumacaixa,

Um rouxinol artificial, que devia imitar o vivo, e que estava completamente

guarnecido com diamantes, rubis e safiras. Logo que se dava corda ao pássaro

artificial,estepunha-seacantarumadaspeçasqueoverdadeirocantavaeacauda

movia-se para cima e para baixo, brilhando como prata e ouro. No pescoço

suspendia-seumapequenafita,ondeestavaescrito:«Orouxinoldoimperadordo

JapãoépobreperanteodoimperadordaChina.»

—Émaravilhoso!—disseramtodos,eapessoaquetrouxeopássaroartificial

recebeulogootítulode«portador-mordorouxinolimperial».

—Agoratêmdecantar juntos!Equetalumdueto!Eassimtiveramdecantar

juntos,masnãodeuresultado,poisorouxinolverdadeirocantavaàsuamaneiraeo

pássaroartificialfuncionavacomrolos.

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—Não tem culpa—disse omestre demúsica.—Respeita os compassos e é

inteiramentedaminhaescola!

O pássaro artificial teve então de cantar sozinho. Fez tanto sucesso como o

verdadeiroeeramuitomaisengraçadovê-lo,brilhavacomobraceletesoualfinetes

depeito.

Cantou trinta e três vezes a mesma peça musical e nunca ficou cansado. As

pessoastê-lo-iamouvidoaindamais,masoimperadorfoideopiniãodequeagora

tambémdevia cantar umpouco o rouxinol vivo…mas onde estava ele?Ninguém

dera por isso, mas ele voara pela janela aberta lá para longe, para o seu bosque

verde.

—Mas que vem a ser isto?— perguntou o imperador, e todos os cortesãos

descompuseramorouxinoledeclararamqueeraumanimalaltamenteingrato.—

Temos,contudo,opássaromelhor!—disseram,eassimopássaroartificialtevede

voltaracantarepelatrigésimaquartavezouviramamesmapeçamusical.Masnem

mesmo assim ficaram a conhecê-la, pois era muito difícil, e o mestre demúsica

elogiouextraordinariamenteopássaro,asseguroumesmoqueeramelhordoqueo

verdadeiro,nãosónoquerespeitavaaovestuárioeaosmuitosbelosdiamantes,mas

tambéminteriormente.

— Pois vejam bem,minhas senhoras e meus senhores, o imperador acima de

todos!Comorouxinolverdadeironuncasepodecontarcomoquevaivir,mascom

opássaroartificialtudoestáfixado!Éassimenãodeoutromodo!Podeexplicar-se,

podeabrir-seemostraraobradopensamentohumano,ondeestãoosrolos,como

funcionamecomoumsesegueaooutro…

—Éexatamenteoquepensamos!—exclamaramtodos.Eomestredemúsica

recebeuautorizaçãode,nodomingoseguinte,mostraropássaroaopovo.Também

deviaouvi-lo,disseo imperador.Ouviu-oe ficou tãocontentecomose se tivesse

alegradocomumsimpleschá,oqueébemchinês.Disseramtodos«oh!»epuseram

o dedo no ar, o que chamam lambedor, e acenaram com a cabeça.Mas o pobre

pescadorquetinhaouvidoorouxinolverdadeirodisse:

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—Soabastantebem,étambémparecido,masfalta-lhealgo,nãoseioquê!

Orouxinolverdadeirofoibanidodopaísedoimpério.

Opássaroartificialteveoseulugarnumaalmofadadesedabemjuntodoleitodo

imperador.Todas as ofertas que recebeu, ouro e pedras preciosas, estavam à sua

volta e em título ascendeu a «cantor-mordemesinhade cabeceiradeSuaAlteza

Imperial», em categoria númeroumdo lado esquerdo, pois o imperador contava

esse ladocomosendoomaisdistinto,noqualestavaocoração,eocoração ficaà

esquerda,mesmonumimperador.Entretantoomestredemúsicaescreveuvintee

cincovolumes sobreopássaro artificial.Eram tãoeruditos e tão longos e comas

palavras chinesasmais difíceis, que todas as pessoas diziamque os tinham lido e

compreendido, pois senão teriam sido consideradas estúpidas e levado açoites na

barriga.

Assim passou todo um ano. O imperador, a corte e todos os outros chineses

conheciamdecoromaispequenogorjeiodocantodopássaroartificial,e,poressa

razão, lhes parecia ser isso omelhor de tudo. Podiam cantar aomesmo tempo e

assim faziam. Os rapazes da rua cantavam «zizizi— clucluclu» e o imperador

também.Sim,eraverdadeiramentebelo!

Mas uma noite em que o pássaro artificial estava nomelhor do seu canto e o

imperadordeitadonacamaaouvi-lo,sooudentrodopássaroum«tze»,saltoualgo,

«tre»,todasasrodasandaramàvoltaeamúsicaparou.

Oimperadorsaltoulogodacamaemandouchamaromédicodacorte,masque

podiaelefazer!Mandouentãochamarorelojoeiro,que,depoisdemuitofalarede

muitomirar, conseguiupôropássarominimamenteemcondições,masdisseque

deviaserpoupado,poisestavabastantegastonosdentesdasrodasenãoerapossível

substituí-las, de modo a que funcionasse certo com a música. Foi um grande

desgosto!Sóumavezporano sepodiadeixaropássaroartificial cantaremesmo

assimcombastantedificuldade.

Então o mestre de música fez um pequeno discurso com palavras difíceis,

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afirmandocomautoridadequeficaratãobomcomoantes.

Passaram cinco anos, quando todo o país sofreu umdesgosto verdadeiramente

grande,pois,no fundo, todosgostavammuitodo seu imperador.Estavadoentee

nãoviveriamuitotempo,dizia-se.Umnovoimperadorfora jáescolhidoeopovo

paravanaruaeperguntavaaocavaleiro-às-ordenscomoestavaoimperador.

—Pe!—diziaele,sacudindoacabeça.

Frioepálido,o imperador jazianoseuleitograndeesumptuoso.Todaacorte

acreditavaque estavamorto e todosos cortesãoso abandonarampara correrema

saudar o novo imperador. Os camareiros saíram para tagarelar sobre o

acontecimentoeascriadasdopaláciojuntaram-seemgrandesociedadeparatomar

café e tagarelar também. À volta, em todas as salas e corredores, tinham sido

estendidospanosparaquenãoseouvissemaspessoasaandare,portanto,erapor

todaaparteumgrandesilêncio!Masoimperadoraindanãoestavamorto.Rígidoe

pálidojazianoleitosumptuosocomgrandescortinadosdeveludoeborlaspesadas

deouro.Láemcima,bemalto,estavaumajanelaabertaeoluarentravabrilhando

sobreoimperadoreopássaroartificial.

Opobreimperadorquasenãopodiarespirar,eracomosealgolhepesassesobreo

peito.Abriuosolhos e viuentãoqueera aMortequeestava sentada sobreo seu

peito, tendonacabeçaasuacoroadeouro,segurandonumamãoosabredeouro

imperialenaoutraoseubeloestandarte.Àvoltadaspregasdosgrandescortinados

develudodoleitoespreitavamcabeçasestranhas,umasbemfeias,outrasdetraços

admiravelmente suaves. Eram todas as ações boas e más do imperador, que o

olhavam,agoraqueaMorteestavasentadasobreoseucoração.

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—Lembras-tedisto?—murmuravaumaapósoutra.—Lembras-tedisto?—E

tantascoisaslhecontavamqueosuorlhecorriadatesta.

—Nuncaosoube—diziaoimperador.—Música,música!Ograndetambor

chinês!—gritou.—Paranãoouviroquedizem!

Noentanto elas continuavama contar e aMorte inclinava a cabeça, comoum

bomchinês,atudooquediziam.

—Música,música!—gritavao imperador.—Tu,maravilhosopassarinhode

ouro!Canta, anda, canta!Dei-te ouro e preciosidades, eu próprio te pendurei as

minhaschinelasdeouroaopescoço.Canta,vá,canta!

Masopássaroficouimóvel,nãohavianinguémaliquelhedessecorda,peloque

nãopodiacantar.AMorte,porém,continuavaaolharparaoimperadorcomassuas

grandesórbitasvaziasetudoerasilêncio,umsilêncioterrível.

Então sooude repente, junto à janela, omais belo canto.Era o rouxinolzinho

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vivo que pousara num ramo lá fora.Tinha sabido da agonia do seu imperador e

vierapara lhe cantar consolação e esperança.E àmedidaque cantava esvaneciam

maisemaisasfiguras,osanguecorriamaisemaisrápidonosfracosmembrosdo

imperadoreaprópriaMorteescutavaedizia:

—Continua,rouxinolzinho,continua!

— Quero que me dês o belo sabre de ouro! Sim, queres dar-me o rico

estandarte?Queresdar-meacoroaimperial?

AMorte dava cada um destes tesouros por um canto e o rouxinol continuava

sempre a cantar. Cantou sobre o cemitério tranquilo, onde crescem as rosas

brancas, onde o sabugueiro perfuma o ar e onde a erva fresca é regada pelas

lágrimasdossobreviventes.EntãoaMortesentiusaudadesdoseujardimedeslizou

comoumanévoafriaebrancapelajanelafora.

— Obrigado, obrigado! — disse o imperador. — Tu, passarinho celestial,

conheço-tebem!Bani-tedomeupaíseimpério!Contudo,viestecantarparaqueas

visões terríveis desaparecessem domeu leito.Conseguiste que aMorte saísse do

meucoração!Comopossorecompensar-te?

—Jámerecompensaste!—disseorouxinol.—Recebilágrimasdosteusolhos,

naprimeira vezque cantei, nuncame esqueço!São as joiasque verdadeiramente

alegram o coração de um cantor!Mas agora dorme, recompõe-te e fortalece-te!

Voucantarparati.

Cantou depois… e o imperador caiu num doce sono. Ai! Como era suave e

benfazejoessesono!

OSolentravapelasjanelasquandoacordoufortalecidoesão.Nenhumdosseus

servidorestinhavoltado,poispensavamqueestavamorto,masorouxinolláestava

ainda.Ecantava.

— Tens de ficar sempre comigo!— disse o imperador.— Cantarás quando

quisereseaopássaroartificialvouparti-loemmilpedaços.

—Nãofaçasisso!—pediuorouxinol.—Elefezomelhorquepôde!Guarda-o

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comoaté aqui!Nãopossomorarnopalácio,maspermitequevenha,quandome

apetecer.Pousareiànoitenaqueleramojuntoàjanelaecantareiparati,paraquete

alegresemeditesigualmente.Cantareiagentefelizeagentequesofre.Cantareio

maleobem,queàtuavoltasemantémoculto.Opassarinhocantorvoaatélonge

aquiàvolta,atéaopobrepescador,atéaotelhadodacabanadocamponês,atodoo

lugarqueestálongedetiedatuacorte.Gostomaisdoteucoraçãodoquedatua

coroa e, contudo, a coroa tem um esplendor algo sagrado à sua volta. Voltarei e

cantareiparati…masumacoisatensdeprometer-me!

—Tudo!—disseoimperador,queagoraseapresentavanoseutrajeimperial,

que ele próprio vestira, e sustendo o sabre, de ouro maciço, erguido contra o

coração.

—Umacoisatepeço:nãocontesaninguémquetensumpassarinhoquetediz

tudo.Seráassimmelhor.

Eorouxinolvoouparalonge.

Osservidoresentraramparaveremoseu imperadormorto…poisbem,quando

alichegaram,estedisse-lhes:

—Bomdia!

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OFuzil

Vinha um soldado amarchar pela estrada fora.Um, dois!Um, dois!Trazia a

mochilaàscostaseumsabreàilharga,poisestiveranaguerraeregressavaagoraa

casa.Encontrouentãoumavelhafeiticeiranaestrada.Eranojenta.Olábioinferior

pendia-lhequaseatéaopeito.

— Boa noite, soldado! — exclamou ela — Que bonito sabre e que grande

mochila tens! És um verdadeiro soldado! Agora, vais ter tanto dinheiro quanto

quiseres!

—Muitoobrigado,velhafeiticeira!—disseosoldado.

—Vêsestaárvoregrande?—perguntouafeiticeiraapontandoparaumaárvore

queestavaaoladodeles.—Écompletamenteoca.Setreparesatéaotopo,verásum

buracopeloqual podes deixar-te escorregar e ir ao fundoda árvore.Vou atar-te

umacordaàcinturaparapoderiçar-teoutravez,quandomechamares.

—Eoquevoueufazeraofundodaárvore?—perguntouosoldado.

—Buscar dinheiro!— respondeu a feiticeira.—Quando chegares ao fundo,

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vaisencontrarumgrandecorredorcompletamente iluminado,poisaíestãoacesas

mais de cem lâmpadas. Verás então três portas. Podes abri-las porque as chaves

estão nas fechaduras. Entra na primeira câmara, e nomeio verás, no chão, uma

grandearca e sobre elaumcão sentado comolhos tãograndes comochávenasde

chá,masnãoteimportescomele!Dar-te-eiomeuaventaldequadradinhosazuis,

quepoderásestendernochão.Vaidireitoaocãoepõe-nosobreoavental,abrea

arcaetiradelátantosxelinsquantosquiseres.Sãotodosdecobre,massequerestê-

los de prata, entrarás no compartimento seguinte. Aí estará um cão que tem os

olhostãograndescomomósdemoinho.Masnãoteimportescomele,põe-noem

cima domeu avental e pega no dinheiro. Se quiseres ter ouro, também o podes

obter,etantoquantopuderestransportar,seentraresnaterceiracâmara.Masocão

que está sentado na arca do dinheiro tem olhos tão grandes como a Torre

Redonda1.Acreditaqueéumcãodeverdade.Masnãoteimportescomele.Põe-no

simplesmenteemcimadoavental,queelenão te faránenhummal,e tiradaarca

tantoouroquantoquiseres.

—Não é nadamau!—disse o soldado.—Mas o que tenhode dar-te, velha

feiticeira?Euimaginoquealgumacoisavaisquereremtroca!

—Não—disseafeiticeira.—Nemumúnicoxelimqueroparamim.Apenas

me trarásumvelho fuzilqueaminhaavóesqueceuquando lá estevepelaúltima

vez.

—Estoudeacordo!Põe-meentãoacordaàcintura!—pediuosoldado.

— Aqui está ela! — disse a feiticeira. — E aqui tens o meu avental de

quadradinhosazuis!

Entãoo soldado trepouàárvore,deixou-seescorregarpeloburacoeachou-se,

como dissera a feiticeira, no grande corredor, onde estavam acesas centenas de

lâmpadas.

Abriu a primeira porta. Ui! Lá estava o cão com os olhos tão grandes como

chávenasdecháafitá-lo.

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—Ésumtipojeitoso!—disseosoldado,pondo-osobreoaventaldafeiticeirae

tiroutantosxelinsdecobrequantopodiameternosbolsos.Fechoudepoisaarca,

pôsocãooutravezemcimadelaedirigiu-separaasegundacâmara.Ena!Láestava

ocãocomolhostãograndescomomósdemoinho!

—Nãodevesolhartantoparamim!—disseosoldado.—Podesficarmaldos

olhos.—Epôsocãonoaventalda feiticeira.Mas,quandoviu tantodinheirode

pratanaarca,deitouforatodoodinheirodecobrequetinhaeencheuosbolsosea

mochilasócomodeprata.Depoisentrounaterceiracâmara.Oh!Erahorrível!O

cãotinharealmentedoisolhostãograndescomoaTorreRedonda.Egiravam-lhe

nacabeça,comorodas.

—Boanoite!—disseosoldadoelevouamãoàbarretina2,poisumcãodestes

nuncaviraantes.Masdepoisdeotermiradoumpouco,pensou:«Chegadeolhar.»

Pegounele, pô-lo no chão e abriu a arca.Oh!SantoDeus!Quanto ouro!Podia

comprarCopenhagainteiraetodososporquinhosdeaçúcardasdoceiras,todosos

soldadosdechumbo,chicotesecavalosdebaloiçoquehouvessenomundo.Sim,na

verdade,havia lá imensodinheiro!—Entãoosoldadolançouforatodososxelins

depratacomqueencheraosbolsoseamochilaesubstituiu-ospelosdeouro.Sim!

Todososbolsos,amochila,abarretinaeasbotas ficaramcheiasde talmodoque

malpodiaandar!

Agora,sim,tinhadinheiro!Levantouocãoepô-losobreaarca,fechouaportae

gritou:

—Iça-me,velhafeiticeira!

—Játensofuzil?—perguntou-lheesta.

—Éverdade!—disseosoldado.—Tinha-meesquecido.

—Evoltouatrásparaoirbuscar.Afeiticeiraiçou-oeláestavaeleoutravezna

estradacomosbolsos,botas,mochilaebarretinacheiosdedinheiro.

—Quevaisfazeragoracomofuzil?—perguntouosoldado.

—Não te interessa!— respondeu a feiticeira.— Já tens o dinheiro!Dá-me

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simplesmenteofuzil!

—Parvoíce!—retorquiuosoldado.—Oumedizesimediatamenteoquevais

fazercomeleoupuxodosabreecorto-teacabeça!

—Não!—disseafeiticeira.

Entãoosoldadocortou-lheacabeça.Ali ficou.Pôstodoodinheironoavental,

atou-o,colocou-oàscostasàlaiadetrouxa,meteuofuzilnobolsoedirigiu-separa

acidade.

Eraumalindacidadeeentrounamaisbonitahospedaria,pediuomelhorquarto

ecomeudoquemaisgostava,poisagoraerarico,tinhamuitodinheiro.

Ao criado, que deveria limpar-lhe as botas, pareceu-lhe que estas eram

estranhamentevelhasparapertenceremaumsenhortãorico.Masosoldadoainda

não tivera tempo de comprar outras.No dia seguinte, arranjou botas novas para

calçar e roupa que era uma beleza! O soldado era agora um senhor elegante.

Contaram-lheentãotudosobreacidadeeoqueláhaviaefalaram-lhedorei.Eque

lindaprincesaeraafilhadele!

—Ondesepodevê-la?—perguntouosoldado.

—É impossível vê-la!— responderam todos em coro.—Mora num grande

castelode cobre, commuitosmuros e torres à volta!Ninguémsenãoo rei tema

coragemdeentrarousair,poisestáprofetizadoqueaprincesaviráacasarcomum

simplessoldadoeissonãoagradaaorei!

«Bemgostariadevê-la!»,pensouosoldado,masnuncaobterialicençaparaisso.

Viviaagoradivertindo-se.Iaàscomédias,andavadecarruagemnoJardimdoRei

edavaaospobresmuitodinheiro,oqueerabembonito!Lembrava-semuitobem

dosvelhostemposecomoeramaunãopossuirumxelim!Estavaagorarico,vestia

belasroupasetinhamuitosamigosquediziamqueeleeraumapessoamuitoboa,

umverdadeirocavalheiro,eissoagradava-lhe!

Mascomotodososdiasgastavadinheiroenãorecebianadaemtroca,apenaslhe

restavam dois xelins, pelo que teve de sair do belo aposento onde morava,

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mudando-se para um quartinho estreito, mesmo debaixo do telhado. Tinha de

escovarelepróprioasbotaseconsertá-lascomumaagulhadepassajarejánenhum

dosseusamigosovisitava,poiserammuitososdegrausatéláacima.

Eraumanoitebemescura.Jánãotinhadinheiroparacomprarumavela.Então

lembrou-sedequehaviaumcotonofuzilqueencontraranaárvoreoca,emquea

velhaotinhaajudadoadescer.Agarrounofuzilenocotodevela,masprecisamente

nomomentoemquefezfogoeasfaíscassaltaramdapederneiraabriu-seaportade

parempareocãoquetinhaolhoscomograndeschávenasdecháequeosoldado

viralánofundodaárvoreestavadiantedele.

—Queordenaomeusenhor?—perguntouocão.

—Que é isto?— interrogou-se o soldado.— É, na verdade, um fuzil bem

engraçado! Posso assim obter o que quero! — Arranja-me algum dinheiro! —

pediueleaocão.Zaque!,elogoestedesapareceue,zaque!,logovoltou,trazendona

bocaumgrandesacocheiodexelins.

Agora,osoldadosabiaqueofuziltinhaalgodemaravilhoso.Sefizessefogouma

vez, vinha o cão que estava sobre a arca com dinheiro de cobre; se fizesse duas

vezes,vinhaoquetinhadinheirodeprata,esefizessetrêsvezes,vinhaoquetinha

ouro. Voltou a correr para o belo aposento, vestiu-se com boas roupas e, de

imediato,oreconheceramtodososamigosquetantogostavamdele.

Entãopensou:«Écoisabastanteestranhaquenãosepossaveraprincesa!Deve

sermuitobonita.Todosmodizem!Masparaque serveabeleza, se temdeestar

sempremetida numgrande castelo de cobre com tantas torres?Não conseguirei

mesmovê-la?Ondeestáomeufuzil?»Fezfogoumaveze,zaque!,logoapareceu

ocãocomosolhostãograndescomochávenasdechá.

—Jávaialtaanoite—disseosoldado—,masgostariatantodeveraprincesa,

sóporummomento!

Ocãodesapareceupelaporta e antesqueo soldado tivesse tempodepensar já

estavadevoltacomaprincesa sentadaadormirnoseu lombo.Erarealmente tão

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bonita que todos podiam ver que era deveras uma princesa.O soldado não pôde

conter-se,tevedebeijá-la,comofazemtodososverdadeirossoldados.

O cão regressou a correr com a princesa.Demanhã, quando o rei e a rainha

tomavamchá,aprincesadissequetiveraumsonhoestranhonanoiteanterior,com

umcãoecomumsoldado.Cavalgaranocãoeosoldadobeijara-a.

—Semdúvidaqueéumalindahistória!—dissearainha.

Então,nanoiteseguinte,umadasvelhasdamasdacorteficoudevigiajuntoao

leitodaprincesa,paraverseerarealmenteumsonhoououtracoisaqualquer.

Osoldadoansiavatantoveroutravezabelaprincesa,quechamouocão,como

seufuzil.Estefoibuscá-laecorreutantoquantopôde.Masavelhadamadacorte

calçoubotasdechuvaecorreucomigualrapidezatrásdeles.Quandoosviuentrar

numacasagrande,pensou«agora sei onde é!», e fez comumpedaçodegizuma

grandecruznaportaondeo soldadomorava.Depois foiparacasaedeitou-se.E

tambémocãodevolveuaprincesa.Quandoregressou,eviuquehaviaumacruzna

portaondeosoldadomorava,ocãopegoutambémnumpedaçodegizefezcruzes

emtodasasportasdacidade.Foicoisafeitacommuitaesperteza,poisagoraadama

da corte não saberia encontrar a porta certa, visto que havia cruzes em todas as

portas.

Demanhãcedovieramoreiearainha,avelhadamadacorteetodososoficiais

paraveremosítioondeestiveraaprincesa.

—Éaqui—disseorei,quandoviuaprimeiraportacomumacruz.

—Não!Éali,queridomarido!—afirmouarainha,queviuumasegundaporta

comumacruz.

—Mas é aqui e é ali!—exclamaram todos.Paraqualquer ladoqueolhassem

haviacruzesnasportas.Verificaramentãoquenãovaliaapenaprocurarmais.

Arainhaeraumamulherbastanteesperta,quesabiamuitomaisdoqueandarde

carruagem.Pegounasuagrandetesouradeouro,cortouumgrandepedaçodeseda

em bocados e fez destes um saquinho bonito. Encheu-o com sêmola de trigo

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mourisco, pequena e fina, atou-o às costas da princesa e, feito isto, fez um

buraquinho no saco, de modo que a sêmola pudesse derramar-se por todo o

caminhoondeaprincesaandasse.

À noite veio de novo o cão, pôs a princesa às costas e correu com ela para o

soldado.Estegostavatantodelaquegostariadeserumpríncipeparaatomarcomo

esposa.

O cão, correndo com a princesa, não notou como a sêmola se foi derramando

pelocaminhodesdeocastelo,pelomuroacima,atéàjaneladosoldado.Demanhã,

oreiearainhaviramondeafilhatinhaestado.Prenderamosoldadoepuseram-no

nocalabouço.

Estavapreso.Ui!Comoera escuro e triste!Edisseram-lhe: «Amanhãvais ser

enforcado!» Não era nada divertido ouvir uma coisa destas e, ainda por cima,

esquecera-sedofuzilnaestalagem.Demanhãpôdeobservar,atravésdasgradesde

ferro da pequena janela, a gente que se apressava a sair da cidade para o ver ser

enforcado.Ouviuostamboreseviuossoldadosamarcharem.Todaagentecorria.

Umaprendizde sapateiro comavental de coiro e pantufas tanto correu a galope

queumadaspantufasvoou-lhedospésefoibaterprecisamentecontraaparedepor

detrásdaqualestavaosoldadosentadoaolharparaarua.

— Eh! Aprendiz de sapateiro! Não precisas de ter tanta pressa! — disse o

soldado.—Nadavaiacontecerantesdeeuláchegar!Sequiseres,porém,correraté

ondemorei e trazer-meomeu fuzil, receberásquatroxelins!Mas tensdedar às

pernas!

Oaprendizde sapateiroqueriaganharosquatroxelins,peloquecorreucomo

umasetaabuscarofuzil,queentregouaosoldadoe…agoravamosterdeouvir!

Foradacidadetinhamlevantadoumagrandeforca.Àsuavoltahaviasoldadose

muitascentenasdemilharesdepessoas.Oreiearainhaestavamsentadosnumbelo

tronomesmoemfrentedosjuízesedetodooconselho.

O soldado estava já no cimo da escada, mas, quando iam pôr-lhe a corda no

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pescoço, disse que sempre haviam concedido a um pecador, antes de sofrer o

castigo, a possibilidade de satisfazer um desejo inocente. Ele gostaria tanto de

fumarumacachimbada,jáqueseriaaúltimaquefumarianestemundo!

Taldesejonãoquisoreinegar-lhe,eassimosoldadopegounofuzilefezfogo

uma, duas, três vezes. Lá estavam todos os cães, o dos olhos tão grandes como

chávenas de chá, o dos olhos como mós de moinho e o que tinha os olhos tão

grandescomoaTorreRedonda.

— Ajudem-me para que não seja enforcado! — pediu o soldado, e logo se

atiraramoscãesaosjuízeseatodooconselho.Pegaramnunspelaspernasenoutros

pelonarizelançaram-nosmuitasbraçadasparaoar,demodoque,quandocaíam,

logoficavamempedaços.

—Eunãoquero—disseorei,masocãomaiorpegouneleenarainhaelançou-

os para o ar, como aos outros. Então os soldados ficaram assustados e a gente

gritou:

—Soldadinho,serásonossoreieterásalindaprincesa!

Sentaramassimosoldadonacarruagemrealeos trêscãesdançavamàfrentee

gritavam «hurra»!Osmoços aprendizes assobiavam com os dedos e os soldados

apresentavam armas. A princesa saiu do castelo de cobre, foi feita rainha e bem

podiasentir-secontenteporisso!

Abodadurouoitodias,oscãessentaram-seàmesaefizeramgrandesolhos.

1-ObservatóriodocélebreastrónomoTygeBrahe,emCopenhaga.(N.doT.)

(Voltar)

2-Barretinaalta.Antigobarretealto,compala,feitodefeltrooudecouro.(N.

doT.)(Voltar)

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OColarinhoPostiço

Eraumavezumcavalheirofinocujosartigosdetoiletteeramumacalçadeirae

umpente.Mas tinhaosmaisbonitoscolarinhospostiçosdomundoeé sobreum

colarinhoquevamosouvirumahistória.

Certocolarinhopensavaqueestavanaidadedecasar.Eaconteceuquefoipara

lavarjuntamentecomumaliga.

—Oh!Não!—disseocolarinho,olhandoparaaliga.—Nuncavi,naverdade,

algotãoeleganteefino,tãodoceetãobonito.Possoperguntar-lheonome?

—Nãodigo—respondeualiga.—Ondereside?—insistiuocolarinho.

Masàliga,queeramuitotímida,pareceu-lhenãoserdebomtomresponderao

colarinho.

—Écertamenteumatira!—continuouocolarinho.—Assimumatirainterior.

Vejobemqueétãoútilcomodecorativa,minhamenina.

—Nãodevefalar-me!—respondeu-lhealiga.—Parece-mequenãolhedeio

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mínimopretextoparaisso!

— Sim, quando se é tão bonita como você! — retorquiu o colarinho. — É

pretextosuficiente.

—Não se cheguemais!— disse a liga.—Tem um ar tãomásculo!— Sou

tambémumfinocavalheiro!Tenhocalçadeiraepente!

E não era verdade.Quem os tinha era o dono do colarinho, mas ele estava a

fanfarronar.

—Nãoseaproxime!—dissealiga.—Nãoestouhabituadaaisso!

— Pretensiosa! — afirmou o colarinho, e foram retirados da bacia de lavar.

Levougoma,foipenduradonumacadeiraaoSoleestendidonatábuadeengomar.

Veiooferrocomasolaquente.

—Senhora!—disseocolarinho.—Viuvinha!Estouaaquecercompletamente!

Estouaficaroutro,estouaficarsemrugas.Estáaqueimar-me,afazerburacosem

mim!Ui!…Proponho-lhecasamento!

—Farrapo!—disseasoladoferrodeengomar,passandoorgulhosaporcimado

colarinho.Achava-separtedeumacaldeiraavapor.Deviamaserairparaocaminho

deferropuxarvagões.

—Farrapo!—ouviu-se.

O colarinho estava umpouco poídonas pontas.Veio então a tesoura de papel

paraasaparar.

—Oh!—disseocolarinho.—Écomcertezaprimeira-bailarina!Comosabe

estenderaspernas!Édomaisbonitoquevi!Nenhumserhumanopodeimitá-la!

—Issoseieu!—disseatesoura.

—Mereciasercondessa!—comentouocolarinho.—Tudoquantotenhoéum

finocavalheiro,umacalçadeiraeumpente!Tivesseeuumcondado!

—Está a declarar-se, este!— disse a tesoura.Zangada, deu-lhe uma valente

tesourada.

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Estavaarrumado.

—Sómerestaproporcasamentoaopente!—pensouocolarinho.—Énotável

comoconservatodososdentes,meucaro!Nuncapensouemnoivado?

—Sim,podesabê-lo!—disseopente.Estoucomprometidocomacalçadeira!

Comprometido!

Agoranãohaviamaisninguémparaproporcasamento.Decidiuentãopôressa

ideiadelado.

Muito tempo depois, o colarinho foi parar a uma caixa, nomoinho de papel.

Haviaumagrande sociedade de farrapos.Os finos deum lado e os grosseiros do

outro.Arrumadoscomodeveser.Todostinhammuitoquecontar,masocolarinho

postiçotinhaaindamais.Eraumverdadeirogabarola.

— Tive tantas namoradas! Não podia andar sossegado. Era também um

cavalheiro fino, com goma! Tinha uma calçadeira e um pente que nunca usava!

Deviam ter-me visto, quando estava deitado de lado!Não esqueço nunca omeu

primeiro namoro, era uma tira, tão fina, tão doce e tão encantadora. Afogou-se

numaselhadeáguapormim!Haviatambémumaviúvaqueficouembrasa,maseu

deixei-a até ela ficar preta! Houve a primeira-bailarina, deu-me a cutilada que

aindatragocomigo.Eratãoraivosa!Omeuprópriopenteenamorou-sedemim,

perdeu todos os dentes por mal de amor. Sim, tive muitas experiências deste

género!Masdoquesintomaispenaédaliga…querodizer,datiraqueseafogouna

selhadeágua.Tenhomuitoapesar-menaconsciência.Bempossonecessitarfazer-

mepapelbranco!

E assim foi, todos os farrapos se tornaram papel branco, mas o colarinho

transformou-se precisamente neste pedaço de papel, que aqui vemos, onde a

história está impressa, e isso porque fanfarronou tanto sobre o que nunca lhe

acontecera.

Énissoquedevemospensarparanãofazermosomesmo,poisnuncahavemosde

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saber,naverdade,senãoviremosalgumaveztambémparaacaixadefarrapospara

sertransformadosempapelbrancoetertodaanossahistórianeleimpressa.Mesmo

amaissecreta.Eterassimdecorrermundoecontá-la.

Comoocolarinhopostiço.

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OValenteSoldadinhodeChumbo

Eraumavezvinteecincosoldadosdechumbo.Eramtodosirmãos,poistinham

nascidodeumavelha colher.Traziamespingardas aoombro, e olhavambemem

frente.Vermelhoseazuis,quebonitoseramosuniformes!Oqueprimeirodetudo

ouviram nestemundo, quando foi tirada a tampa da caixa onde se encontravam,

foramaspalavras:—Soldadosdechumbo!—Gritou-asumrapazinho,batendo

palmas.Recebera-osporqueeraoseuaniversárioecolocou-osempésobreamesa.

Cadasoldadoassemelhava-seexatamenteaosoutros,sóumeraumpoucodiferente.

Tinhaapenasumaperna,poisforaoúltimoaserfundidoeochumbonãochegara.

Contudo,estavadepétãofirmementesobreumapernacomoosoutrosnasduaseé

precisamenteestesoldadoquevaisernotável.

Namesa onde foram colocados estavammuitos outros brinquedos,mas o que

davamaisnas vistas eraumbelopaláciode cartão.Atravésdas janelinhaspodiam

ver-seassalas.Doladodeforahaviaarvorezinhasemvoltadeumpequenoespelho

parafazerdecontaqueeraumlago.Cisnesdeceravogavamaí,refletindo-se.Todo

o conjunto era bonito, mas o mais bonito, contudo, era umamenina que estava

entreasportasabertasdopalácio.Tambémerarecortadaemcartão,mastinhauma

saiadomaisclarolinhoeumaestreitafitinhaazulsobreosombroscomoumxaile.

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No meio deste estava uma palheta brilhante, tão grande como o rosto dela. A

meninaestendiaambososbraços,poiseraumabailarina,elevantavaumapernatão

altonoarqueosoldadodechumbomalpodiavê-la,peloquejulgouquetinhasó

umapernacomoele.

—Era mulher para mim!— pensou.—Mas é bastante distinta, mora num

palácio.Eu tenhoapenasumacaixae somosaí vintee cinco,nãoé lugarque lhe

convenha!Contudo,vouversetravoconhecimentocomela!—Eassimdeitou-se

por detrás de uma caixa de rapé que estava na mesa. Dali podia ver

convenientementeadamazinha,quecontinuavadepésobreumaperna,semperder

oequilíbrio.

Quandoerajánoitefechada,vieramtodososoutrossoldadosdechumboparaa

caixaeagentedacasafoiparaacama.Entãocomeçaramosbrinquedosabrincar,

àsvisitas,afazerguerrasouaosbailes.Ossoldadosdechumboagitaram-sefazendo

barulhodentrodacaixa,poistambémqueriamparticiparnasbrincadeiras,masnão

conseguiram abrir a tampa. O quebra-nozes deu cambalhotas e a pena fez

travessurasnaardósia.Eraumespetáculo,detalmodoalegrequeocanárioacordou

ecomeçoutambémameter-senaconversa.Osúnicosquenãosemexeramforamo

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soldadodechumboeabailarinazinha.Elacontinuavatodadireitanapontadopée

comambososbraçosestendidos.Eleestavabemfirmenasuaperna,nãodesviando

osolhosdelanemporummomento.

Então soouameia-noite e, taque!, saltoua tampada caixade rapé.Nãohavia

nenhum tabaco lá dentro, mas sim um gnomozinho preto, pois a caixa era um

truque.

—Soldadodechumbo!—disseognomo.—Vejaláondepõeosseusolhos!

Masosoldadodechumbofingiuquenãoouviu.

—Estábem,esperaporamanhã!—disseognomo.

Quando amanheceu e as crianças se levantaram, o soldado de chumbo foi

colocado junto da janela e quer fosse então o gnomoouumgolpe de vento, esta

abriu-sesubitamenteeosoldadocaiudoterceiroandar,decabeçaparabaixo.Foi

umaviagemterrível,apernavirou-secompletamenteparaoareficoucaídosobreo

capacete,comabaionetaparabaixo,entreaspedrasdarua.

A criada e o rapazinho desceram imediatamente a procurá-lo, mas embora

estivessem quase a pisá-lo, não conseguiram vê-lo. Se o soldado tivesse gritado:

estouaqui!,bem,tê-lo-iamencontrado,maselenãoachouconvenientegritar,pois

estavadeuniforme.

Começouentãoachover,cadagotamaisespessadoqueaoutra.Tornou-seum

aguaceiroperfeito.Quandopassou,vieramdoisrapazesdarua.

—Olha!—disseum.—Estáaliumsoldadodechumbo!Vaipartirdebarco!

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Fizeramumbotedeumjornal,puseramosoldadodechumboládentro,no

meio,eei-loanavegarvaletaabaixo.Ambososrapazescorriamaolado,batendo

palmas.Deusnoslivredisso!Queondashavianavaletaequecorrente!Tinha

chovidotorrencialmente.Obarcodepapelbalouçavaparacimaeparabaixoenos

intervalosviravacomtantarapidezqueosoldadodechumboestremecia.Mas

mantinha-sefirme,nãomexiaummúsculo,olhavabememfrenteeseguravaa

espingardaaoombro.

De repente o barco entrou numa longa sarjeta. Ficou tão às escuras, como se

estivessedentrodacaixa.

—Paraondeireiagora?—pensou.—Ah!Sim,sim,istoécoisadognomo!Ai!

Estivesseajovemaquinobarco,bempodiafazerodobrodoescuro!

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Nesse momento apareceu um grande rato dos canos que vivia por baixo da

sarjeta.

—Tenspassaporte?—perguntouorato.—Passa-oparacá!

Masosoldadodechumboficoucaladoesegurouaarmaaindacommaisfirmeza.

Obarcopassoueoratofoiatrásdele.Ui!Comorangiaosdentesegritavaparaos

pauzinhosepalhinhas:

—Façam-noparar!Façam-noparar!Nãopagouaportagem!Nãomostrouo

passaporte!

Acorrentetornou-secadavezmaisforte.Osoldadodechumbojápodiaveraluz

dodianasuafrente,ondeterminavaasarjeta.Masouviutambémumrugidoque

bem podia assustar um homem corajoso. Vejam bem; a sarjeta tombava a pique,

onde terminava o cano, para fora, para um grande canal, que seria para ele tão

perigosocomoparanósdescerdebarcoumagrandequeda-d’água.

Agoraestava tãopertoquenãopodiaparar.Obarcoavançou,opobre soldado

agarrou-se tão firme quanto pôde. Ninguém lhe podia dizer que tivesse

pestanejado.Obarcorodopioutrês,quatrovezeseencheu-sedeáguaatéàborda,

iaafundar-se.Osoldadodechumboestavacomáguaatéaopescoçoecadavezmais

seafundavaobarcoecadavezmaissedissolviaopapel.Aáguajáestavaporcimada

cabeçado soldado…Entãopensounapequeninae lindabailarinaquenuncamais

iriaveresoaram-lheaoouvidoaspalavrasdacanção:

Perigo,perigo,guerreiro!

Amortevaisofrer!

Depoisdesfez-seopapeleosoldadodechumbocaiuporentreeste…masfoino

mesmomomentoengolidoporumgrandepeixe.

Oh!Comoeraescuroládentro!Aindaerapiordoquenasarjetaetãoapertado!

Masosoldadodechumboerafirmeeficouondeestava,comaarmanobraço…

O peixe andou às voltas, fazia os mais terríveis movimentos. Por fim ficou

completamentequietoeentrounelecomoqueumrelâmpago.Aluzbrilhoubem

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claraealguémgritou:

—O soldadode chumbo!—Opeixe fora apanhado, trazidopara omercado,

vendidoelevadoparaacozinha,ondeacriadaoabriucomumagrandefaca.Pegou

depoiscomdoisdedosnosoldadoelevou-oparaasala,ondetodosqueriamvero

homemtãonotávelqueviajaranabarrigadeumpeixe.Masosoldadodechumbo

nãoestavanadaorgulhosodisso.Puseram-noemcimadamesa e aí… comoneste

mundopodemacontecercoisasmaravilhosas!Osoldadodechumboencontrava-se

namesmasalaemqueestiveraantes.Viuasmesmascriançaseosbrinquedosque

estavamemcimadamesa.Obelopalácio coma lindaepequeninabailarina,que

aindasesustinhanumaperna,comaoutra levantada.Tambémelaerafirme.Isso

comoveuosoldadodechumbo.Estevequaseaverterlágrimasdechumbo,masnão

era coisa que lhe ficasse bem. Ele olhou para ela e ela olhou para ele, mas não

disseramnada.

Nessemesmomomento umdos rapazinhos pegouno soldado e deitou-o para

dentrodo fogão semdarqualquer explicação.Foi comcertezaognomoda caixa

queteveaculpa.

O soldado de chumbo ficou iluminado e sentiu umgrande calor.Era terrível,

masseerarealmentedofogooudoamor,nãosabia.Desapareceram-lheascores,e

se foidaviagemoudamágoa,ninguémopodiadizer.Olhavaparaamenina, ela

olhavaparaeleesentiuquesederretia,masficoufirmecomaespingardaaoombro.

Abriu-seentãoumaporta,oventopegounabailarina,quevooucomoumasílfide

paradentrodofogão,paraosoldadodechumbo.Ardeunaschamasedesapareceu.

Assimsederreteuosoldadodechumbo,ficandoapenasumpedacinhodechumbo,

e quando a criada tirou as cinzas no dia seguinte, encontrou-o na forma de um

coraçãozinho.Dabailarina,aocontrário,restavaapenasapalheta,queestavapreta

comocarvão.

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OPequenoClauseoGrandeClaus

Havia numa cidade dois homens que tinham o mesmo nome, ambos se

chamavamClaus,masumpossuíaquatrocavaloseooutroapenasum.Então,para

sepoderemdistinguirumdooutro,chamava-seàquelequetinhaquatrocavaloso

GrandeClauseaoquesótinhaumoPequenoClaus.Agoravamosouviroquese

passoucomeles,poiséumahistóriaverídica.

Durante todaa longa semana,oPequenoClaus tinhade lavrarparaoGrande

Clauseemprestar-lheoseuúnicocavalo.OGrandeClausretribuía-lhe,ajudando-

ocomosquatrocavalos,masapenasumavezporsemana,aodomingo.

—Arre!,cavalos!—ComooPequenoClausfaziaestalarochicotesobretodos

oscincocavalos!Eracomosefossemdelenaqueledia.OSolbrilhavamagníficoe

todosossinosdocampanáriotocavamachamaraspessoasparaamissa.Asgentes

aperaltavam-seedirigiam-separaaigrejacomolivrodesalmosdebaixodobraço,a

fimdeouviremoPastorpregar.EntretantoolhavamoPequenoClaus,quelavrava

com cinco cavalos e estava tão contente que voltava a fazer estalar o chicote,

gritando:arre!,todosmeuscavalos!

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—Nãopodesdizerisso—avisouoGrandeClaus.—Ésóumcavaloqueéteu.

Masquandovoltavaapassaralguémparaaigreja,oPequenoClausesquecia-se

dequenãoodeviadizeregritava,novamente:arre!,todosmeuscavalos!

—Bem,peço-tepara tedeixaresdisso!—repetiuoGrandeClaus.—Pois se

voltasadizê-lomaisumavez,douumapancadanacabeçadoteucavalo,queelecai

logomorto,e,pronto,acabou-secomele.

—Nãotornoadizê-lo—prometeuoPequenoClaus,masquandopassougente

e o saudou com um aceno de cabeça dando-lhe os bons-dias, ficou contente.

Parecia-lhe tão bem ter cinco cavalos para lavrar o seu campo, que fez estalar o

chicoteegritou:arre!,todosmeuscavalos!

—Vou pôr a andar os teus cavalos!— disse oGrande Claus, que pegou na

marreta e deu uma pancada na cabeça do único cavalo doPequenoClaus, de tal

modoqueestecaiuparaolado,completamentemorto.

— Ai! Agora não tenho mais nenhum cavalo— exclamou o Pequeno Claus,

desatandoachorar.Depoisesfolouocavalo,pegounapeleepô-laasecaraovento,

meteu-anumsaco,quelançouaosombros,epartiuparaacidadeafimdeavender.

Havia um longo caminho a percorrer. Tinha de atravessar um grande bosque

escuro e pôs-se um tempo terrível. Perdeu-se completamente e, sem que

conseguisseencontrarocaminhocerto,entardeceu,estandodemasiadolongequer

parachegaràcidadequerparavoltarparacasaantesdeanoitecer.

Juntoaocaminhohaviaumagrandecasadelavoura.Asportadasdas janelasdo

lado exterior estavam fechadas sobre as vidraças,mas deixavam transparecer luz.

«Bempodiampermitir-mepassaranoiteali»,pensouoPequenoClaus,efoibater

àporta.

Amulherdo lavradorabriu,masquandoouviuoqueelequeria,disse-lheque

seguisse caminho, que o seu homem não estava em casa e, por isso, não recebia

qualquerestranho.

—Bem,entãotenhode ficarcá fora—disseoPequenoClaus,eamulherdo

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lavradorfechou-lheaportanacara.

Pertohaviaumagrandemedadefenoeentreelaeacasaestavaconstruídoum

pequenoalpendrecomumtelhadodireitodepalha.

—Possodormiraliemcima—pensouoPequenoClaus,quandoviuotelhado.

—Éumaboacama.Acegonhanãovirácáabaixomorder-menaspernas.—Pois

haviaumacegonhavivanocimodotelhado,ondetinhaoninho.

Então o Pequeno Claus trepou para o alpendre para se deitar comodamente.

Comoasportadasdemadeiradasjanelasnãoestavamfechadasemcima,podiaver

paradentrodecasa.

Avistava uma grande mesa posta com vinho, assado e ainda um belo peixe. A

mulher do lavrador e o sacristão estavam sentados à mesa e mais ninguém. Ela

servia-oeeleespetavaogarfonopeixe,poiseraalgodequegostavamuito.

—Quemmederapoderapanharalgumacoisadali!—disseoPequenoClaus,

estendendoa cabeçapara a janela.Oh!Deus!Quebelobolopodia ver ládentro!

Sim,eraumfestim.

Nessemomentoouviuquealguémvinhaacavalopelaestradafora,nadireçãoda

casa.Eraomaridodalavradeiraqueregressava.

Esteeraumbomhomem,mas tinhaadoençaestranhadenãopodervernem

suportar sacristães. Se lhe aparecia um diante dos olhos ficava completamente

enraivecido. Foi por isso que o sacristão entrara para dar os bons-dias àmulher,

pois sabia que o homem não estava em casa, e a boa mulher lhe apresentou,

portanto, amelhorcomidaque tinha.Quandoouviramchegaromarido, ficaram

tãoassustadosqueamulherpediuaosacristãoparaseescondernumagrandearca

vaziaqueestavaaumcanto,oqueelefezporquesabiabemqueopobrehomem

não suportava sacristães. A mulher escondeu rapidamente toda a boa comida e

vinhono forno, pois, se omaridoos visse, perguntaria comcertezaoquequeria

aquilodizer.

—Oh!—suspirouoPequenoClausemcimadoalpendre,quandoviuamulher

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retirartodaacomida.

—Estáalguémaíemcima?—perguntouolavrador,olhandoparaoPequeno

Claus,lánoalto.—Porqueestásaí?Andacomigoparadentrodecasa.

EntãooPequenoClauscontoucomosetinhaperdidoeperguntousepodiaali

passaranoite.

—Certamente!—disseolavrador.—Masprimeirotemosdetratardavida!

Amulhermostrou-semuitogentilparaambos,pôsamesa,uma longamesa,e

trouxe-lhesumatravessagrandecompapasdeaveia.Olavradorestavacomfomee

comeucomgrandeapetite.MasoPequenoClausnãodeixavadepensarnoassado,

nopeixeenobolodebeloaspetoquesabiaestaremnoforno.

Sobamesa,juntoaospés,colocaraosacocomapeledocavalo,poissabemosque

foraparaavendernacidadequesaíradecasa.Aspapasnão lhesabiambem,pelo

quepisouosacoe,ládentro,apelesecarangeufortemente.

—Queéisso?—perguntouolavrador,espreitandoparabaixodamesa.

—Chiu!—disseoPequenoClausparaosaco,masvoltouapisá-loaomesmo

tempo,demodoqueesterangeuaindacommaisforça.

—Não!Quetensaínosaco?

— Oh! É um feiticeiro! — respondeu o Pequeno Claus. — Diz que não

devemoscomeraspapas,eleencantoutodooforno,queestácheiodeassado,peixe

ebolo.

—Oquê—exclamouolavrador,efoiabriroforno,ondeviutodaaboacomida

queamulherescondera,masqueelejulgavaagoratersidoofeiticeirodosacoquea

haviaencantadoparaeles.Amulhernãoousoudizernada,antespôslogoacomida

na mesa e assim ambos comeram peixe, assado e bolo. Então o Pequeno Claus

voltouapisarosaco,demodoqueapelerangeu.

—Quedizeleagora?—perguntouolavrador.

—Diz—retorquiuoPequenoClaus—quetambémencantoutrêsgarrafasde

vinho para nós. Também estão dentro do forno!— Então a mulher teve de ir

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buscar o vinho que escondera e o lavrador bebeu, ficando muito alegre. Um

feiticeirocomooqueoPequenoClaustinhanosaco,muitogostariadepossuir!

—EletambémpodefazerapareceroDiabo?—perguntouolavrador.—Bem

gostariadeover,poisagoraestoualegre.

—Sim—disseoPequenoClaus.—Omeufeiticeiropodetudooqueeu lhe

pedir.Nãoéverdade?—perguntouelepisandoosaco,demodoqueesterangeu

novamente.—Conseguesouvi-lodizerquesim?MasoDiabotemumaspetotão

feioquenãomereceapenavê-lo.

—Oh!Nãotenhomedonenhum.Comopodeeleparecer-se?

—Bem,vaimostrar-secompletamentenapessoadeumsacristão.

— Ui!— exclamou o lavrador—, que feio! Vossemecê deve saber que não

suporto sacristães.Mas não faz mal, sei que é o Diabo, aguentarei isso melhor.

Agoratenhocoragem.Maselenãodeveaproximar-semuitodemim.

—Vouperguntarentãoaomeufeiticeiro—disseoPequenoClaus,pisandoo

sacoeapurandooouvido.

—Quedizele?

—Que vossemecê pode ir abrir a arca que está ali ao canto e verá o Diabo

acocorado,mastemdesegurarbematampaparanãoseescapar.

—Quer ajudar-me a segurá-la?— perguntou o lavrador, dirigindo-se para a

arca,ondeamulhertinhaescondidoosacristão,queestavacheiodemedo.

Olavradorlevantouatampaumpoucoeespreitouparadentrodaarca.

—Ui!—gritouele,saltandoparatrás.—Sim,vi-oagora!Étalequalonosso

sacristão!Oh!Foiterrível!

Eraprecisobeberqualquercoisaeassimbeberamatéaltanoite.

—Tensdevender-meofeiticeiro!—disseolavrador.—Pedeoquequiseres.

Sim,dou-teparajáumalqueirecheiodedinheiro.

—Não,nãoposso—afirmouoPequenoClaus.—Pensabemquelucroposso

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tirardestefeiticeiro.

—Oh!Gostavatantodetê-lo!—disseolavrador,quecontinuouapedir.

—Bem—respondeuoPequenoClausporfim.—Fostetãobomemdar-me

acolhimento de noite, está bem, podes ficar com o feiticeiro por um alqueire de

dinheiro,masquero-obemcheioatécima.

—Tê-lo-ás—disseolavrador.—Masaquelaarcatensdelevá-lacontigo,não

quero tê-la nemmais umahora em casa.Nunca se pode saber se ele continua lá

dentro.

OPequenoClausdeuao lavradorosacocomapelesecaerecebeuporeleum

alqueirededinheiro,bemmedidoatécima.Olavradorpresenteou-oaindacomum

grandecarrodemãoparatransportarodinheiroeaarca.

—Adeus!—disseoPequenoClaus, epartiu comodinheiro e agrandearca,

ondeestavaaindaosacristão.

Nooutroladodobosquehaviaumaribeiragrandeefunda.Aíaáguacorriatão

fortequemalsepodianadarcontraacorrente.Foraconstruídaumapontegrandee

novasobreela.OPequenoClausparouameiodaponteedissebemaltoparaqueo

sacristãoopudesseouvir:

—Ora,quevoufazercomaestúpidaarca?Étãopesadacomosetivessepedras

lá dentro. Vou ficar completamente esgotado se continuar a empurrá-la, vou,

portanto, lançá-laàribeira.Seforpararàminhacasa,muitobem,senãofor,éo

mesmo.

Depoispegounaarcacomumamãoe levantou-aumpouco, comosequisesse

lançá-laàágua.

—Não,para!—gritouosacristãodentrodaarca.Deixa-mesair.

—Ui!—disseoPequenoClaus,fingindoqueestavacommedo.—Eleaindalá

estádentro!Entãotenhodedeitá-loàribeiradepressa,paraqueseafogue.

—Oh!Não!Não!—gritounovamenteosacristão—Dar-te-eiumalqueirede

dinheirosenãoofizeres.

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— Bem, isso já é outra coisa! — disse o Pequeno Claus, e abriu a arca. O

sacristão saiu logo e empurrou a arca vaziapara a água, dirigindo-sedepois para

casa, ondeoPequenoClaus recebeuumalqueirededinheiro. Já receberaumdo

lavradorecommaisesteagoratinhaocarrodemãocheiodedinheiro.

—Estásaver,conseguiqueocavalofossemuitobempago—dissedesiparasi

quandovoltouparacasaedespejavatodoodinheironumgrandemonte,nomeiodo

chão. — Bem arreliado vai ficar o Grande Claus, quando vier a saber como

enriquecicomomeuúnicocavalo,masnãovoudizer-lhoassimsimplesmente.

Então mandou um rapaz pedir ao Grande Claus que lhe emprestasse uma

medidadealqueire.

—Paraquequereráeleisso?—pensouoGrandeClaus.Besuntouofundocom

alcatrão para que lhe ficasse agarrado alguma coisa do que fossemedido e assim

sucedeu,poisquandorecebeudevoltaoalqueire,estavamcoladostrêsoito-xelins

depratanovos.

—Que é isto?— exclamou oGrande Claus, e correu imediatamente para o

PequenoClaus:—Ondearranjastetantodinheiro?

—Oh!Édaminhapeledecavalo,vendi-aontemànoite.

—Foibastantebempaga!—disseoGrandeClaus,quelogocorreuparacasa,

pegounummachadoeabateuosseusquatrocavaloscomumapancadanacabeça.

Depoistirou-lhesaspelesepartiucomelasparaacidade.

—Peles!Peles!Quemmercapeles?—gritavapelasruas.

Todos os sapateiros e curtidores vieram a correr e perguntaram-lhe quanto

queriaporelas.

—Umalqueirededinheiroporcada—disseoGrandeClaus.

—Estásmaluco?—perguntaramtodos.—Achasquetemosassimdinheiroaos

alqueires?

—Peles!Peles!Quemquercomprarpeles?—voltouagritar,masatodosque

perguntavamquantocustavamaspeles,respondia:—Umalqueirededinheiro.

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— Quer fazer pouco de nós — disseram todos. Os sapateiros pegaram nos

tirapéseoscurtidoresnosaventaisdecouroecomeçaramasovaroGrandeClaus.

—Peles,peles!—gritavam,escarnecendodele.—Poisbem,vamosdar-teuma

pele que vai espirrar porcaria vermelha! Fora da cidade com ele!—OGrande

Claustevedeescapar-se,comopôde,poisnuncatinhalevadotantapancada.

—Bem!—disseelequandoregressouacasa.—OPequenoClausvaipagá-las.

Voumatá-lo!

EmcasadoPequenoClaus,avelhaavómorrera.Tivera,naverdade,sempremau

génioe foramápara ele,masoPequenoClaus estavamuito comovido,peloque

pegounaavóedeitou-anasuaprópriacamaquenteparaverseelaconseguiavoltar

àvida.Aídevia jazer todaanoite,ele iria ficaraumcantosentadonumacadeira,

comojáantesohaviafeito.

Estandoelealisentadodenoite,abriu-seaportaeoGrandeClausentroucomo

seu machado. Sabia bem onde era a cama do Pequeno Claus, dirigiu-se

imediatamenteparaelaedeuumamachadadanacabeçadaavó,crendoqueerao

PequenoClaus.

—Viste?—disseele.—Agoranãomeenganasmais.Edepoisvoltouparacasa.

—Maséumhomemmau,mesmomau!—disseoPequenoClaus.—Queria

matar-me. Foi bom que a avozinha já estivesse morta, senão tinha-lhe tirado a

vida!

Depoisvestiuàvelhaavóasroupasdomingueiras,pediuemprestadoumcavalo

aovizinho,atrelou-oàcarroçaesentouaavónolugartraseiro,demodoaquenão

pudessecair,quandoandasse,epartiramrolandoatravésdobosque.QuandooSol

selevantou,estavamdiantedeumagrandeestalagem,ondeoPequenoClausparou

parairládentrobuscaralgumacoisaparacomer.

O estalajadeiro tinha muito, muito dinheiro, era também bom homem, mas

arrebatado,comosetivessepimentaetabacodentrodele.

— Bom dia! — disse ao Pequeno Claus. — Vieste tão cedo e com fato

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domingueiro,hoje!

—Sim—disseoPequenoClaus.—Tenhode iràcidadecomaminhavelha

avó.Está sentada lá forana carroça,não consigoque entre aquipara a sala.Não

querlevar-lheumcopodehidromel?Mastemdefalar-lhealto,poiselanãoouve

bem.

—Estábem,levá-lo-ei—respondeuoestalajadeiroeencheuumgrandecopo

dehidromelquelevouàavómorta,queestavacolocadadireitanacarroça.

—Está aquiumcopodehidromel do seuneto—disse o estalajadeiro,mas a

velhanãoproferiupalavra.Ficousentadasemsemexer.

—Nãoouve?—gritouoestalajadeirotãoaltoquantopodia.—Estáaquium

copodehidromeldoseuneto!

Maisumavez lhegritouemaisumavezainda,mas,comoelanãosemexiade

modoalgumdo lugar, encolerizou-see lançou-lheo copoà cara,demodoqueo

hidromel lhe ficou a escorrerparaonariz e ela caiupara trásna carroça,pois só

estavacolocadadireitaenãoatada.

— Eh! — gritou o Pequeno Claus da porta da estalagem, agarrando o

estalajadeiropelopescoço.—Matasteaminhaavó!Bastaolhares,temumagrande

brechanatesta!

—Oh!Foiumacidente!—gritouoestalajadeiro, torcendoasmãos.—Tudo

por causa domeu temperamento arrebatado!BomPequenoClaus, dar-te-ei um

alqueirededinheiroemandareienterraratuaavó,comosefosseaminha,masnão

digasnada,senãocortam-meacabeçaeétãodesagradável!

AssimrecebeuoPequenoClausumalqueireinteirodedinheiroeoestalajadeiro

enterrouavelhaavó,comosefosseasua.

Quando o Pequeno Claus voltou outra vez para casa com muito dinheiro,

mandou imediatamente o mesmo rapaz ao Grande Claus pedir-lhe emprestada

umamedidadealqueire.

—Oqueéisto?—disseoGrandeClaus—Entãonãoomatei?Tenhodeirver

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eupróprio.—EfoiassimcomoalqueireaoPequenoClaus.

—Não pode ser!Onde arranjaste todo este dinheiro?— perguntou, abrindo

muitoosolhosaoveraquelapequenafortuna.

— Foi a minha avó e não a mim que mataste— disse o Pequeno Claus.—

Vendi-adepoiserecebiumalqueireporela.

—Foinaverdadebempaga!—observouoGrandeClaus,eapressou-seavoltar

acasa.Pegounummachadoelogomatouasuavelhaavó,pô-lanacarroça,partiu

para a cidade, onde morava o boticário e perguntou-lhe se queria comprar um

morto.

—Queméedondeotraz?—perguntouoboticário.

—Éaminhaavó—respondeuoGrandeClaus.—Matei-aporumalqueirede

dinheiro.

—Deusnosguarde!—exclamouoboticário.—Faladetalmododesipróprio!

Nãodigatalcoisa,poispodeperderacabeça!—Depoisdisse-lhequecoisaterrível

tinhafeitoequemauhomemeraequedeviasercastigado.OGrandeClausficou

tão assustado que saltou imediatamente da botica para a carroça, chicoteou os

cavalos e virou para casa. O boticário e toda a gente julgaram que era doido e

deixaram-nopartir.

—Vaispagar-meisso!—disseoGrandeClaus,quandojáestavanaestrada.—

Sim,vaispagar-mo,PequenoClaus!—E logoquechegouacasapegounosaco

maiorqueencontrou,foiaoPequenoClauseameaçou-o:

—Voltasteaenganar-me!Primeiromateiosmeuscavalos,agoraaminhavelha

avó! É tudo culpa tua, mas não me enganarás mais. — Deste modo agarrou o

PequenoClaus pela cintura emeteu-o no saco, pô-lo às costas e gritou-lhe:—

Agoravouafogar-te.

Era um bom pedaço a pé até chegar à ribeira e o PequenoClaus não parecia

assimtãoleveparatransportar.Ocaminhopassavapelaigreja,ondetocavamórgão

easpessoasentoavambeloscantos,ládentro.EntãooGrandeClauspôsosacocom

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oPequenoClaus junto à porta da igreja e pensou que seriamuito bom entrar e

ouvirumsalmoantesdeprosseguircaminho.OPequenoClausnãopodiademodo

algumescapar-seetodaagenteestavanaigreja.Entrou,pois.

—Ai!Ai!—suspiravaoPequenoClausdentrodosaco.Voltava-seetornavaa

voltar-se,masnãolheerapossíveldesfazeronóemcima.Nessemomentochegou

um vaqueiro muito, muito velho que tinha o cabelo branco como a neve e um

grandebordãonamão.Tocavaumagrandemanadadevacaseboisadiantedeleque

embateunosacoondeestavaoPequenoClaus,demodoquesevirou.

—Ai!— suspirou oPequenoClaus.—Sou tão novo e tenho de ir já para o

ReinodosCéus.

—E eu, pobre demim!—disse o vaqueiro.—Sou tão velho e não posso ir

ainda!

—Abreosaco!—gritouoPequenoClaus.—Mete-tenomeulugar,quevais

imediatamenteparaoReinodosCéus.

— Sim, é isso o que eumais quero— disse o vaqueiro, desatando o saco do

PequenoClaus,quelogosaltouparafora.

—Queres tomarcontadogado?—perguntouovelho,metendo-sedentrodo

saco,queoPequenoClauslogoatou.Seguiucaminhocomtodasasvacasebois.

PoucodepoissaiuoGrandeClausdaigreja,pegououtraveznosacoàscostase

pareceu-lhe,comrazão,quesetinhatornadomaisleve,poisovaqueironãopesava

metade do PequenoClaus.—Como estámais leve de transportar! Bem, é com

certezaporquefuiouvirumsalmo!—Assimsedirigiuparaaribeira,queerafunda

egrande,lançouosacocomovelhovaqueiroàáguaegritou-lhe,porquepensava

queeraoPequenoClaus:

—Viste?Nãomeenganarásmais!

Foi depois para casa, mas quando chegou ao sítio em que os caminhos se

cruzavam,encontrouoPequenoClaus,queconduziatodooseugado.

—Queéisto?—interrogouoGrandeClaus.—Nãoteafoguei?

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—Sim—disseoPequenoClaus.—Lançaste-meà ribeirahápoucomaisde

meiahora.

—Masondearranjastetodoestebelogado?—perguntouoGrandeClaus.

—Égadomarinho!—respondeuoPequenoClaus.—Vou contar-te toda a

históriaetambémteagradeçopormeteresafogado,poisestouagoracáemcimae

verdadeiramenterico,podescrer!…Tivetantomedo,quandoestavadentrodosaco

eoventomeassobiavanosouvidosemelançastedaponteparadentrodaáguafria!

Fuilogoparaofundo,masnãomemagoei,poisláembaixocresceamaisbelaerva

tenra. Caí sobre ela e logo o saco se abriu e uma donzela lindíssima com vestes

brancascomoaneveecomumacoroaverdeemvoltadocabelohúmidopegou-me

pelamãoedisse:«ÉsoPequenoClaus?Alitens,primeiro,algumgado!Umamilha

mais acimaestá tambémumamanada completaque tequerooferecer!»Vi então

quea ribeira eraumagrandeestradapara agentemarinha.Embaixo,no fundo,

estaandavaapéedecarruagemvindadomarebemparadentrodaterraatéondea

ribeiratermina.Eratãobelocomfloreseaervamuitofrescaepeixesquenadavam

naáguadeslizandoàvoltadasorelhas,comoospássarosnoar.Quegentebonitaaí

haviaetantogadoqueandavapelosfossosevalados!

—Masporquevoltastelogoparacima,paranós?—perguntouoGrandeClaus.

—Eunãoteriafeitoisso,sevissequeeratãoagradávelláembaixo!

— Sim— afirmou o Pequeno Claus.— Foi uma esperteza daminha parte!

Ouve bem o que te digo! A donzela marinha disse que a uma milha acima do

caminho—ecomocaminhoqueriadizeraribeira,poisaoutrolugarnãopodeela

chegar—estáaindatodaumamanadaparamim.Masseicomoaribeiradávoltas,

oraaquioraacolá,éumbomdesvio.Poisbem,ficamaiscurtoquandosesabevir

aqui à terra e se atravessa os campos para voltar à ribeira.Com isso poupo bem

quasemeiamilhaechegomaisdepressaaomeugadomarinho.

—Oh!Ésumhomemfeliz!—disseoGrandeClaus.—Crêsquetambémvou

conseguirgadomarinhosechegaraofundodaribeira?

—Sim,achoquesim!—afirmouoPequenoClaus.—Masnãopossolevar-te

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no saco para a ribeira, és demasiado pesado para mim. Se quiseres ir até lá e

meteres-tenosaco,comomaiorprazerteempurrareiparaofundo.

—Muitoteagradeço—disseoGrandeClaus—,massenãoconseguirnenhum

gadomarinho,quandochegaraofundo,dar-te-eiumaboatareia,podescrer!

—Oh!Não!Nãosejastãomau!—Epartiramparaaribeira.Quandoogado,

queestavacomsede,viuágua,correuomaisquepôde,parachegarabaixoebeber.

—Vêscomotêmpressa?—perguntouoPequenoClaus.—Queremvoltarde

novoparaofundo.

— Sim, ajuda-me agora primeiro! — respondeu o Grande Claus. — Senão

apanhaspancada.—Eassimsemeteunosacograndequepuseradetravéssobreo

lombodeumdosbois.—Põeumapedra,poissenãoreceionãochegaraofundo—

pediuoGrandeClaus.

—Vaijá!—retorquiuoPequenoClaus.Pôs,então,umapedragrandedentro

dosaco,apertoubemolaçodesteeempurrou-o.Plum!LáfoioGrandeClauspara

aribeiraelogodireitoaofundo!

—Receioquenãovenhaaencontrarogado!—exclamouoPequenoClaus,e

partiuparacasacomoquetinha.

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SoboSalgueiro

Paraos ladosdeKøgea regiãoémuitoescalvada.Acidade ficamesmo juntoà

praia,e issoésemprebonito,maspodiaaindasermaisbonito.Àvolta,oscampos

sãoplanoseobosqueficalonge.Masquandoseéverdadeiramentenaturaldeum

lugar,encontra-sesemprealgobonito,dequenolugarmaisbelodomundosepode

tersaudades!TambémdevemosdizerquenascercaniasdeKøge,ondeumparde

pobres jardinzinhos se estende para baixo até à ribeira que corre a desaguar na

praia,podiasermuitobonitonotempodoverãoeassimoachavamespecialmente

asduascriançasvizinhasKnudeJoana,queaíbrincavameseprocuravamumao

outro, rastejando sob os arbustos de uva-espim. Num jardim erguia-se um

sabugueiro,nooutro,umvelhosalgueiroesobestegostavamascriançasdebrincar

e para isso tinham autorização, se bem que a árvore ficasse bem junto à ribeira,

ondepodiamfacilmentecairàágua.MasNossoSenhortemosolhosnascrianças,

senão seria muito mau. Eram também muito cuidadosos, sim, o rapaz era tão

receosodaágua,quenãoerapossível,notempodeverão,levá-loparaapraia,onde,

contudo, as outras crianças gostavam tanto de patinhar. Faziam-no envergonhar

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por isso e tinha de suportá-lo.Mas, então, sonhou a pequena Joana vizinho que

navegavanumbarconabaíadeKøgeequeKnudcorriaparaela,aáguaalcançava-o

primeiroatéaopescoçoedepoisporcimadacabeça.Edesdeomomentoemque

Knud ouviu este sonho, não suportou mais que lhe chamassem medroso, fazia

simplesmentereferênciaaosonhodeJoana.Eraoseuorgulho,masparaaáguanão

iaele.

Os pais pobres juntavam-se frequentemente, e Knud e Joana brincavam nos

jardinsenaestrada,queaolongodasvaletastinhaumafilacompletadesalgueiros,

estes não eram bonitos— estavam tão podados nas copas!—,mas também não

estavamaliparaenfeite,antesparaseremúteis.Maisbonitoeraovelhosalgueiro

nojardimeporbaixodelesesentavammuitasvezes,comojásedisse.

EmKøgehaviaumgrandemercado.Nessaalturaerguiam-seruascompletasde

tendas com fitas de seda, botas e tudo o que era possível. Acorria umamultidão,

geralmente no tempo de chuva, e então notava-se o cheiro dos jaquetões dos

camponeses, mas também o belo perfume dos bolos de mel. Havia uma barraca

cheiadeles.Masformidáveleraohomemqueosvendiaalojar-sesempre,notempo

domercado,emcasadospaisdeKnudpeloquesobejavaassim,naturalmente,um

pequenobolodemel,dequeJoanatambémrecebiaasuaparte.Aindamelhor,erao

mercadordebolosdemelsabercontarmuitobemhistórias,sobretodasascoisas,

mesmo sobre os seus bolos demel. Pois sobre estes contou ele, uma noite, uma

história que impressionou profundamente as duas crianças, que nunca mais a

esquecerameomelhoréquetambémaouçamos,tantomaisqueécurta.

—Estavamnobalcãodoisbolosdemel—disseele.—Umtinhaaformadeum

cavalheirocomchapéu,ooutro,deumadonzelasemchapéu,mascomumpedaço

deouropelnacabeça!Tinhamorostodeladoeviradoparacima,poisassimdeviam

ser vistos, e não de costas, que deste modo nenhuma pessoa os devia ver. O

cavalheiro tinha uma amêndoa amarga à esquerda, era o coração, a donzela, ao

contrário, era simplesmente bolo de mel. Estavam para prova no balcão,

encontravam-se aí há bastante tempo e assim se enamoraram um do outro, mas

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nenhum se tinhadeclarado.No entanto erapreciso fazê-lo se sequeria chegar a

algumacoisa.

«Eleéhomem,deveproferiraprimeirapalavra»,pensavaela,masagradar-lhe-

iasaberqueoseuamoreracorrespondido.

Eleera,contudo,maisglutãonosseuspensamentoseoshomenssão-nosempre.

Sonhavaqueeraumrapazdarua,quepossuíaquatroxelinsequeassimcompravaa

donzelaecomia-a.

Permaneceram dias e semanas no balcão, ficaram secos e os pensamentos dela

tornaram-semaisdelicadosemaisfemininos:«Chega-meterficadonobalcãocom

ele»,pensou,equebrou-sepelocorpo.

«Setivessesabidodomeuamor,tinhacomcertezaduradomaistempo»,pensou

ele.

—Éesta ahistória e aqui estão ambos!—disse omercadordebolos.—São

notáveispelasuacarreiraepeloamormudo,quenuncalevouanada.Vede,aquios

tendes!—EassimdeuaJoanaocavalheiro,queestavainteiro,eKnudrecebeua

donzelaquebrada.Masestavamtãoimpressionadoscomahistóriaquenãotiveram

coragemdecomeropardeamorosos.

Nodia seguinte foramcomelesaocemitériodeKøge,ondeaparededa igreja

estácobertacomamaisbelahera, seja invernoouverão,aí se suspendendocomo

umaricatapeçaria.PuseramosbolosdemelnaverduraaoSolecontaram,perante

um bando de outras crianças, a história sobre o amormudo que não servia para

nada, quer dizer, o amor, pois a história era bonita — assim a acharam todos.

Quandoolharamparaopardebolosdemel,bem,houvealiumrapazgrandote—

efoipormaldade—quecomeuadonzelaquebrada.Ascriançaschoraramedepois

— foi sem dúvida para que o pobre cavalheiro não ficasse só no mundo —

comeram-notambém,masnuncaesqueceramahistória.

As crianças juntavam-se sempre perto do sabugueiro e sob o salgueiro e a

rapariguinhacantavacomvozclaradesinosdeprataasmaisbonitascanções.Knud

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nãosabiaentoarumúnicotom,massabiaaletra,oqueéjáalgumacoisa…Agente

deKøge, atémesmo amulher doquinquilheiro, quedava-se a ouvir Joana.—É

umavozdocequeameninatem!—diziaela.

Eramdiasabençoados,masnãoduraramparasempre.Osvizinhossepararam-se.

Amãedameninamorrera,opaiiacasar-seemCopenhaga,ondepodiaencontrar

outromododevida. Ia sermensageiroemqualquerparte,oqueparecia seruma

posiçãomuitolucrativa.Osvizinhosdespediram-secomlágrimas,especialmenteas

crianças. Mas os adultos prometeram escrever-se pelo menos uma vez por ano.

Knud entrou para aprendiz de sapateiro, pois não podiam deixar um rapaz tão

crescidoandarporaliapassear.Eassimrecebeuaconfirmaçãocristã!

Oh!Comogostaria,naquelediadefesta,deteridoaCopenhagaedeverJoana,

masnãofoienuncaláhaviaestado,sebemqueficasseacincomilhasdeKøge.Mas

Knud tinha visto as duas torres para além da baía, em tempo claro, e no dia da

confirmaçãoviu,distintamente,brilharacruzdouradanaFrueKirke1.

Ai!Comopensava emJoana!Lembrar-se-ia dele?Sim!…NoNatal veio carta

dos pais dela para os pais de Knud: passavam bem emCopenhaga e um grande

acontecimentofelizsederaparaJoanadevidoàsualindavoz.Entraraparaoteatro,

pois aí também cantavam. Já recebia algum dinheiro por isso e desse dinheiro

mandavaparaosqueridosvizinhosemKøgeumtálerinteiroparaalgodivertidona

noitedeNatal.Deviambeberàsuasaúdeeacrescentaracomasuaprópriamãoum

pós-escrito,ondeselia:«SaudaçõesamigáveisparaKnud!»

Choraram todos de alegria porque as notícias eram agradáveis. Todos os dias

JoanatinhaestadonospensamentosdeKnudeagoraviaqueelatambémpensava

nele, equantomais se aproximava a data emque viria a ser oficial,mais claro se

tornavaqueamavamuitoJoanaequeelaviriaaserasuamulherzinha.Assimselhe

abriuumsorrisoepuxoucommaisforçaofio,enquantofincavaapernacontraa

trave.Espetou a sovela numdedo,mas não se importou.Não ficaria certamente

mudocomoosdoisbonecosdemel.Essahistóriatinha-oensinadomuito.

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Veio a seroficial de sapateiro e amochila foi logo afivelada2.Finalmente, ia a

Copenhaga pela primeira vezna vida e já tinha lá ummestre.Ora!Como Joana

ficariasurpreendidaecontente!Elaagoratinhadezasseteeeledezanove.

Quiscomprar,aindaemKøge,umaneldeouroparaela,maspensouentãoque

certamente conseguiria ummuito mais bonito em Copenhaga. Despediu-se dos

velhos e partiu logo no Outono, a pé, à chuva e ao vento. As folhas caíam das

árvores.Molhadoatéaosossos,chegouàgrandeCopenhagaeacasadoseunovo

mestre.

NodomingoseguinteresolveufazerumavisitaaopaideJoana.Vestiuonovo

trajedeoficialeochapéunovodeKøgeficava-lhetãobem!Antesandarasemprede

barrete… Encontrou a casa que procurava e subiu as muitas escadas. Era de ter

vertigens. Como as pessoas estavam amontoadas umas sobre as outras, aqui, na

cidadeintricada!

Dentro da casa, tudo parecia indicar prosperidade, e o pai de Joana acolheu-o

amigavelmente.Paraamulher,eramaisumestranho,masdeu-lheamãoecafé.

—Joanavaialegrar-semuitoemver-te!—disseopai.—Tornaste-teumbelo

rapaz!…Bem,agoravaisvê-la!Sim,éumaraparigaquemedámuitaalegriaeainda

tereimais,seDeusquiser!Temosseusaposentospróprioseesteépagoporela!—

O próprio pai bateu suavemente à porta, como se fosse um estranho. Depois

entraram.Oh!Comoerabonito!Nãohavia seguramenteumaposento assimem

toda a Køge. Talvez nem a rainha tivesse um tão bonito! Havia alcatifa, havia

cortinasatéaochão,umacadeiradeveludoverdadeiroeàvolta flores,quadrose

um espelho no qual se podia quase entrar, pois era tão grande como uma porta.

Knudviutudoistoderelance;contudo,sóviuJoana.Estavaumaraparigacrescida,

completamente diferente do queKnud tinha imaginado,masmuitomais bonita!

NãohaviaemKøgeumadonzelacomoela,ecomoerafina!Olhouestranhamente

paraKnud,sebemqueapenasporumsómomento.Depoiscorreuparaele,como

se quisesse beijá-lo. Não o fez, mas esteve quase a fazê-lo. Sim, estava

verdadeiramentecontenteporveroseuamigodeinfância!Nãohavialágrimasnos

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olhos?Edepoistinhamuitoqueperguntaredequefalar,desdeospaisdeKnudao

sabugueiroeaosalgueiro,eaesteschamavaaMãeSabugueiraeoPaiSalgueiro,

como se também fossempessoas, pois por estas podiammuito bempassar, como

podiam os bolos de mel. Destes falou ela também e do seu amor mudo, como

estiveramnobalcãoesedesfizeramempedaços,eentãoriucordialmente…maso

sangueardeunasfacesdeKnudeocoraçãobateu-lhemaisfortedoquenunca!…

Não, não tinha sido de modo algum arrogante!… Também fora por ela, bem o

notou,queospaislhepediramparaficartodaanoite,ofereceu-lhechá,elaprópria

lhedeuumachávena,depoispegounumlivroeleualtoparaelesefoiparaKnud

comosetudooquelessefossesobreoseuamor,correspondiatãobematodosos

seuspensamentos!Aseguircantouumacancãosimples,masveiocomelatodauma

história, eracomoseoprópriocoraçãobatessenesta.Sim,gostavacertamentede

Knud. Corriam-lhe lágrimas pelas faces, nada podia fazer contra isso, e não era

capaz de dizer uma única palavra. Parecia-lhe que era estúpido e, contudo, ela

tocou-lhenamãoedisse:

— Tens um bom coração, Knud! Sê sempre como és! Foi uma noite

incomparável,por issonãosepodiadormir,eKnudnãodormiu.Nadespedida,o

paideJoanadissera:

—Bem, agora não vais esquecer-nos! Vamos ver se não deixas passar todo o

invernoatévoltaresaver-nos!—Assimpodiavirnopróximodomingo!Ebemo

queriaele.Mastodasasnoites,quandoestavaterminadootrabalho,etrabalhavam

comluzacesa, iaKnudparaacidade.PassavapelaruaondeJoanamorava.Havia

quasesempreluz,eumanoiteviudistintamenteasombradoseurostonacortina.

Foi uma bela noite! Àmulher domestre não lhe parecia bem que à noite fosse

semprevadiar,comodizia,eabanavaacabeça,masomestresorria:

—Éjovem!—diziaele.

«Nodomingovamosver-nosedigo-lhecomoestánosmeuspensamentoseque

temdeviraserminhamulher!Sounarealidadeapenasumpobreoficialsapateiro,

maspossovirasermestre,pelomenosmestreporcontaprópria,heidetrabalhare

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esforçar-me por isso…! Sim, digo-lhe isso, nada se ganha com o amor mudo,

aprendi-ocomosbolosdemel!

Chegouodomingo,eKnudveio,masquepoucasorte!Iamtodossair,tinhamde

dizer-lho.Joanatocou-lhenamãoeperguntou:

—Estiveste jáalgumaveznoteatro?Tensde lá irumavez!Cantonaquarta-

feirae, se tens tempo,voumandar-teumbilhete.Meupai sabeondemorao teu

mestre!

Como era amoroso da parte dela! Na quarta-feira pelo meio-dia chegou um

papelcomselosempalavras,masobilheteláestavaeànoiteKnudfoipelaprimeira

veznavidaaoteatroeoqueviu?…Sim,viuJoana,tãobela,tãoencantadora!Estava

verdadeiramente casada com um homem estranho, mas era teatro, algo que

representavam, sabiaKnud, senãonão tinha tomado a iniciativademandar-lheo

bilheteparaaver.Todaagentebatiapalmasegritava,eKnudgritouhurra!

OpróprioreisorriuparabaixoparaJoana,comosetambémsealegrassecomela.

Deus, como Knud se sentiu pequenino!Mas ele amava-a tão dentro de si e ela

também gostava dele, mas o homem tem de dizer sempre as primeiras palavras,

comopensavaadonzeladosbolosdemel.Nessahistóriamuitosecontinha!

Assimquechegouodomingo,Knuddirigiu-separalá!Tinhaumadisposiçãode

espírito comopara a comunhão. Joanaestava sóe recebeu-o.Nãopodia sermais

propício.

—Foibomquetivessesvindo!—disseela.—Estivequaseparamandar-temeu

pai,mastiveumpressentimentodequevinhascomcertezaestanoite.Poistenhoa

dizer-tequepartonasexta-feiraparaFrança.Tenhodeirparaquesepossafazer

algovaliosodemim!

ParaKnudfoicomoseasalaandasseàroda,comoseocoraçãoselhequebrasse,

masnãolhevieramlágrimasaosolhos.Contudo,foibemvisívelquãotristeficou.

Joanaviu-oeestevequaseachorar.

—Quehonestoelealés!—disseela…Entãosoltou-sealínguaaKnud,disse-

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lhe quanto gostava dela e que tinha de vir a ser suamulherzinha.Enquanto lho

dizia,viuqueJoanaficavapálidacomoumcadáver.Soltou-lheamãoedissegravee

triste:

—Nãotefaçasatieamiminfelizes,Knud!Sereiparatisempreumaboairmã

comquempodes contar…!Masmais não!—E afagou-lhe a testa quente com a

mãosuave.—Deusdá-nosforçasparamuito,quandonósprópriosqueremos!

Entrou,então,nessemomentoamadrasta.

—Knudestácompletamenteforadesi,porquevoupartir!—disseela.—Sê,

pois, um homem!— E bateu-lhe nos ombros. Era como se tivessem falado da

viagemenãodeoutracoisa.—Criança!—acrescentou.—Eagoravaisserbome

razoável,comosobosalgueiro,quandoamboséramoscrianças!

Para Knud foi como se tivesse desaparecido um pedaço do mundo, os seus

pensamentoseramcomoumfio solto, semvontade, aovento.Ficou,não sabia se

lho tinham pedido,mas foram amáveis e bons, Joana ofereceu-lhe chá e cantou.

Não era o tom antigo e, contudo, tão maravilhosamente belo! Era de partir o

coração,depoisdespediram-se.Knudnão lhe estendeuamão,mas ela tomou-a e

disse:

— Dás com certeza a mão à tua irmã para despedida, meu velho irmão de

brinquedos!

—Esorriucomlágrimasquelhecorriampelasfaces,repetindo:

—Irmão.

—Estábem,deveservirdemuito!—disseele.Foiassimadespedida.

ElapartiudebarcoparaFrança,Knudandoupelas ruas sujasdeCopenhaga…

Os outros oficiais da oficina perguntaram-lhe porque estava assim e o que

ruminava.Deviaircomelesdivertir-se,eraumrapaznovo.

Foram juntos a um baile onde havia muitas raparigas bonitas mas nenhuma

verdadeiramentecomoJoana,eondeelecriaesquecê-la,aliestavaelaemcorpoe

almanosseuspensamentos.—Deusdá-nosforçasparamuito,quandoqueremos

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—tinha dito ela. Sentiu-se invadido por devoção, juntou a smãos… e os violinos

tocavameas raparigasdançavamàvolta.Ficoumuitoassustado,pareceu-lheque

estavanumlugarondenãopodialevarJoana,maselaestavacomelenocoração…e

assimsaiu,correupelasruas,passoupelacasaondeelatinhamorado,estavaescuro,

portodaaparteestavaescuro,vazioesolitário.Omundoseguiaoseucaminhoe

Knudoseu.

Veio o inverno e as águas congelaram, como se tudo se preparasse para um

enterro.

Masquandoaprimaverachegoueoprimeirobarcoavaporpartiu,entãosentiu

umagrandeânsiadeirparafora, longenovastomundo,masnãoparademasiado

pertodaFrança.

Assimafivelouamochilaevagueouatélonge,naAlemanha,decidadeemcidade,

sem um momento de descanso. Quando chegou à velha e bela cidade de

Nuremberga,foicomoseafúriadeandarselhedespegassedossapatos,sentiu-se

capazdeficar.

É uma velha cidade maravilhosa, como que recortada de uma crónica com

iluminuras.As ruasestãocomo lhesapetece, as casasnãogostamde ficaremfila.

Vãosdejanelacomtorrinhas,volutaseestátuassaltamparaopasseioe,doaltodos

telhados maravilhosamente combinados, correm a meio sobre as ruas goteiras

formadascomodragõesecãescorpulentos.

Knudparounapraçadomercado,comamochilaàscostas.Paroujuntodavelha

fonte,ondeestãoasmaravilhosas figurasdebronze,bíblicasehistóricas,entreos

jatos de água saltitantes…Uma criada bonita, que tirava então água, deu aKnud

algumaparaserefrescar;comotinhaumagrandemão-cheiaderosas,ofereceu-lhe

tambémumaeissopareceu-lheumbompresságio…

Aopédaigrejaveioosomdoórgãoatéele,soavacomosefossenapátria,como

seviessedaigrejadeKøge,eentrounagrandecatedral.Ládentro,oSolbrilhava

através dos vitrais, entre as colunas altas e elegantes. Houve devoção nos seus

pensamentos,desceutranquilidadeaoseuespírito.

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Procurou e encontrou um bommestre emNuremberga, ficou em casa dele e

aprendeualíngua.

Osvelhosfossosàvoltadacidadeestãotransformadosemhortaspequenas,mas

asaltasmuralhasaindaláestão,comtorrespesadas.Oscordoeirostorcemascordas

nagaleria construídapor vigas foradasmuralhasparadentroda cidade, e aqui à

voltadasfendaseburacoscrescemsabugueiros,quedeixampenderosramossobre

ascasinhasbaixasenumadelasmoravaomestreemcasadequemKnudtrabalhava.

Sobreapequenajaneladotelhadosoboqualdormiadeixavaosabugueirocairos

ramos.

Aquimoroueleumverãoeuminverno,masquandoaprimaverachegounada

houveque o sustivesse.Os sabugueiros estavam em flor e lançavamumperfume

comonapátria,eracomoseestivessenojardimemKøge…Abandonouomestree

foiparaoutrolugar,maislonge,nacidade,ondenãohaviasabugueiros.

Foi junto de uma das antigas pontes muradas, precisamente por cima de um

moinhode água, baixo, sempre a rugir,que ficou a trabalharnumaoficina.Fora

havia apenas uma ribeira que ficava encerrada por casas, todas guarnecidas com

velhasvarandas frágeis.Pareciamquererabalá-laspara tombaremnaágua…Aqui

nãocrescianenhumsabugueiro,nãohaviamesmonenhumvasocomumpoucode

verdura,masprecisamenteemfrenteestavaumgrandesalgueirovelhoqueparecia

agarrar-seàcasaafimdenãoserarrastadopelacorrente.Lançavaosramossobrea

ribeira,exatamentecomoosalgueironojardimjuntoaoriodeKøge.

Sim, tinha verdadeiramente fugido daMãe Sabugueira para o Pai Salgueiro.

Aquelaárvore,especialmentenasnoitesdeluar,tinhaalgo,comquesesentiu:

«…emespíritotãodinamarquêsaoluar!»

Masnãoerademodoalgumoluarqueassimofazia,não,eraovelhosalgueiro.

Não podia suportá-lo, e porque não? Pergunta ao salgueiro, pergunta ao

sabugueiroflorido!…eassimdisseadeusaomestreeaNurembergaepartiupara

maislonge.

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AninguémfalavadeJoana.Dentrodesiescondiaasuadorepunhaumsentido

especial na história sobre os bolos de mel. Agora compreendia porque o bolo-

cavalheiro tinha uma amêndoa amarga à esquerda, ele próprio sentia um gosto

amargo, e Joana, que era sempre tão doce e sorridente, era só bolo demel. Era

comoseascorreiasdamochilaoapertassemdetalmodoquelheeradifícilrespirar,

soltou-as,masnão serviudenada.Domundo sómetadeestava foradele, aoutra

metadetraziaeledentrodesi.Assimera!

Só quando viu as altas montanhas, o mundo se lhe tornou maior. Os seus

pensamentos voltaram-se para fora, saltaram-lhe lágrimas dos olhos. Os Alpes

pareceram-lhe as asas fechadas domundo.Onde as erguia, estendiam-se grandes

penascomcoresvariegadasdebosquesnegros,águasimpetuosas,nuvensemassas

deneve!«NodiadoJuízoFinal, aTerraergueasgrandesasas, voaparaDeuse

rebentacomoumabolhanosSeusclarosraios!—Oh!Quemmederaquefossejáo

diadoJuízoFinal!»,suspirou…Tranquilo,vagueoupelopaís,quelhepareceuum

pomar verdejante. Das varandas de madeira das casas, raparigas, fazendo renda,

acenavam-lhe;oscumesdasmontanhasbrilhavamaoSolrubrodatarde,equando

viuoslagosverdesentreárvoressombrias…pensou,então,napraiadabaíadeKøge.

Ehouvetristeza,masnenhumadornoseupeito.

Ali,ondeoReno,comoumaúnicalongaondarolaemfrente,tomba,rebentaese

transformaemmassasdenuvens claras, brancasdeneve, como se fosse aprópria

criaçãodasnuvens…oarco-írisflutuacomoumafitasolta…pensounosmoinhosde

águaemKøge,ondeaáguasussurravaesaltitava.

Gostaria de ter ficado na tranquila cidade do Reno, mas havia muitos

sabugueiros e muitos salgueiros… e assim continuou caminho. Sobre as altas

montanhasimponentes,atravésdaspedreirasepeloscaminhosque,comoninhosde

andorinhas, estavam colados às paredes de pedra. A água espumava no fundo, as

nuvensficavamporbaixodele.Sobrecardosbrilhantes,rosasalpinaseneve,entrou

no Sol quente de verão… disse assim adeus às terras doNorte e desceu para os

castanheiros, entre vinhedos e campos de milho. As montanhas eram um muro

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entreeleetodasasrecordações,eassimtinhadeser.

Na sua frente estava uma cidade grande e bonita que se chamavaMilão, aqui

encontrou ummestre alemão, que lhe deu trabalho.Era um velho casal honesto

para cuja oficina entrou. Ganhou afeto o oficial calmo, que falava pouco,

trabalhava,portanto,maisesemostravacristãopio.EracomoseDeuslhetivesse

tiradoopesadofardodocoração.

O seumaior prazer era subir à imponente igreja demármore, que lhe parecia

construídacomnevedasuaterraeformadaporfiguras,torresaltaseátriosabertos

decoradoscomflores.Decadacanto,decadapontaearco,sorriam-lheasestátuas

brancas… Por cima, ele tinha o céu azul, por baixo, a cidade e a verde planície

lombarda estendendo-se até longe, e para o norte as altas montanhas com neve

eterna…assimpensounaigrejadeKøgecomrebentosdeheraemvoltadasparedes

vermelhas, mas não sentia nenhum anseio. Era por detrás das montanhas que

queriaviraserenterrado.

Tinhavividoaquiumano,masjáfaziatrêsanosquepartiradapátria.Entãoo

mestrelevou-oàcidade,nãoàarenaparaveroscavaleirosartistas,massimàgrande

ópera,queeraumasaladignadesever…Emseisandaressuspendiam-secortinasde

seda.Dochãoatéaoteto,numaalturavertiginosa,estavamsentadasasmaisfinas

damascomramosdefloresnasmãos,comoseestivessemnumbaile,eoscavalheiros

mostravam--se nos seus fatos de gala,muitos comprata e ouro.Estava tão claro

comoaluzdoSolmaisclara,quandoirrompeuamúsica,tãoforteetãobela!

EramaisfaustosodoqueoteatroemCopenhaga,masláestavaaJoana.Aqui…

Sim,aquifoicomoqueumencanto.Ascortinascorreramparaosladosealiestava

ela,vestidadeouroeseda,comumacoroadouradanacabeça.Cantoucomosóum

anjodeDeuspodecantar.Veioàfrente,sorriu,comosóJoanaosabiafazer.Olhou

diretamenteparaKnud.

OpobreKnudagarrouamãodomestreegritou:«Joana»,masninguémoouviu,

osmúsicostocavamtãoforte!Omestreacenou-lhe:

— Sim, chama-se realmente Joana!—Depois pegou numa folha impressa e

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mostrou-lhequeestavaalioseunome,onomecompleto.

Não,nãoeranenhumsonho!Todasaspessoasexultavamdiantedela,atiravam-

lhefloreseramosedecadavezqueseiaembora,iaevinhaevoltavaair.

Cáfora,narua, juntou-segenteàvoltadacarruagem,puxaram-na.Knud,que

estava à frente de todos, era o que mais entusiasmado se mostrava, e, quando

chegouàbela casa iluminadaonde Joanamorava,Knudestavamesmoàportada

carruagem,queseabriu,elasaiu,ealuzbrilhoudiretamentenoseurostoamoroso,

esorriu,agradeceutãodocementepoisestavatãocomovida!Knudolhou-abemno

rostoeelaolhouKnudbemnorosto,masnãooreconheceu.Umsenhorcomuma

estrelaaopeitoestendeu-lheobraço…estavamnoivos,dizia-se.

AssimKnudfoiparacasaeapertouasfivelasdamochila.Queriaetinhadevoltar

paraosabugueiroeosalgueiro…Ai!Sobosalgueiro!Numahorapodeviver-setoda

umaexistência!

Pediram-lheparaficar.Nenhumaspalavraspuderamretê-lo.Disseram-lheque

estavaaviroinverno,quejácaíanevenasmontanhas.Masnorastodacarruagem

deandamentolento…quedeviaabrir-lheocaminho…podiair,comosacoàscostas,

apoiadonobastão…

Foi para asmontanhas, por elas acima, por elas abaixo.Enfraquecido, não via

aindaqualquercidadeoucasa.IaparaoNorte.Asestrelasacenderam-seporcima

dele,ospésvacilavam,acabeçasentiavertigens.Lánofundo,novale,acenderam-

se também as estrelas, era como se o céu se estendesse por baixo dele. Sentiu-se

doente.Asestrelasláembaixoeramcadavezmaisesempremaisclaras,moviam-se

aquieacolá.Haviaumacidadezinhaondepiscavamasluzes.Quandodeuporisso,

esforçou-see,comasúltimasforças,alcançouumpequenoalbergue.

Ficou aí instalado todoumdia e umanoite, pois osmembros necessitavamde

repousoetratamento.Novaleaneveestavameioderretida.Umamanhãcedoveio

umtocadorderealejo,tocavaumacançãodapátria,daDinamarca,e,então,Knud

não pôde aguentarmais… andou dias,muitos dias, commuita pressa, como se se

tratassederegressaràterra,antesquelátodosmorressem…Masaninguémfalou

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dasuasaudade,ninguémpodiacrerquesofriaumadordecoração,amaisprofunda

quesepodesofrer.Nãoécoisaparaomundo,nãoédivertido,nãoétambémpara

amigoseelenãotinhaamigos!Estranho,iaemterraestranha,paraapátria,parao

Norte.Naúnicacartadecasaqueospaishámuitotempolhetinhamescritoestava:

«Tu não és verdadeiramente dinamarquês, como nós aqui! Nós somo-lo

enormemente!Tusógostasdasterrasestrangeiras!»Ospaispodiamescreverisso…

sim,conheciam-nobem!

Eranoite,iapelocaminhoaberto,começavaafazerfrio.Aterraiaficandocada

vezmaisplanacomcamposeprados.Juntoaocaminhoestavaumsalgueirogrande.

Tudopareciacomonapátria,tãodinamarquês!Sentou-sesobosalgueiro,sentia-

setãocansado,acabeçapendia-lhe,osolhosfechavam-se-lheparadescansar.Mas

elesentiaepressentiacomoosalgueiroabaixavaosramosparaele,aárvoreparecia

um velho robusto, era o próprio Pai Salgueiro que o levantava nos braços e

transportavaofilhocansadoparaapátria,paraaterradinamarquesa,juntodapraia

branca, para a cidade deKøge, para o jardimda sua infância. Sim, era o próprio

salgueirodeKøge,quetinhaidopelomundoàsuaprocuraeagoraencontrava-oe

trazia-oparaapátria,paraojardinzinhojuntoàribeiraeaquiestavaJoanaemtodo

o seu esplendor coma coroadeourona cabeça, comoa tinha vistoultimamente,

queexclamava:—Bem-vindo!

Diretamente diante dele estavam duas figuras estranhas, mas pareciammuito

maishumanasdoquenotempodainfância,tambémtinhammudado.Eramosdois

bolosdemel,ocavalheiroeadonzela.Estavamvoltadosdefrenteparaeleetinham

bomaspeto.

—Obrigado!—disseramambosaKnud.—Soltaste-nosa língua!Ensinaste-

nos que se deve confiantemente expressar o pensamento, senão nada resulta! E

agoraresultoualgo!…Estamosnoivos.

Foram demãos dadas pelas ruas deKøge emostravam-semuito decentes por

detrás. Nada havia a dizer! Foram logo na direção da igreja, e Knud e Joana

seguiram-nos. Também iam de mãos dadas e a igreja estava como antes, com

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paredesvermelhaseabelaverduradehera,aportagrandedaigrejaabriu-separa

ambososlados,oórgãosooueocavalheiroeadonzeladirigiram-separaanave.

—A senhora eo senhorprimeiro!—disserameles, «osnoivosbolosdemel»,

depois desviaram-se cada um para seu lado, para dar lugar a Knud e Joana, eles

ajoelharam-se,elabaixouacabeçasobreorostodele,erolaram-lhe lágrimasfrias

degelo,quederretiamemvoltadocoraçãocomoforteamordeKnud,ecaíamnas

suasfacesafogueadas…acordouassim,masestavasentadosobovelhosalgueiroem

terraestranhananoitefriadeinverno.Dasnuvenstombavagranizoregelanteque

lhechicoteavaorosto.

—Foio tempomaisbelodaminhavida!—disse.—Efoiumsonho…Deus,

deixa-mesonhá-looutravez!—Fechouosolhos,adormeceu,sonhou.

Demanhãcedocaiuneve,amontoou-sesobreosseuspés,eledormia.Agenteda

terradirigia-seàigreja.Estavaalisentadoumoficialartífice,mortoregelado…sob

osalgueiro.

1-VorFrueKirke—IgrejadeNossaSenhora.(N.doT.)(Voltar)

2 -Nos países doNorte e na Alemanha, certos artífices, como os sapateiros,

usavam,quandooficiais, um traje comque se distinguiam.Era também costume

nos sapateiros, após a aprendizagem, fazer uma viagem demorada por outras

regiões.(N.doT.)(Voltar)

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JoãoPateta

Lá para o campo havia um solar antigo e nele habitava um velho senhor que

tinhadois filhos,queeramtãoespirituososquemetade seria suficiente.Queriam

pedirafilhadoreiemcasamentoepodiamfazê-lo,porqueelamandaraanunciar

quetomariacomomaridoaquelequeelaachassequemelhorpodiafalarporsi.

Osdoisprepararam-seemoitodias—eraoprazomáximoquetinhamparaisso

—,e eraobastante,pois tinhamconhecimentosprévios e estes são sempreúteis.

Umsabiade cor todoo léxicode latimeo jornalda cidadedesdehá três anos, e

ambosdefrenteparatrásedetrásparaafrente.Ooutrofamiliarizou-secomtodos

osartigosdascorporaçõesdeartesãoseoquecadamestredeviasaber.Podiaassim

discutirsobreoEstado,pensavaele.Alémdissosabiatambémbordarsuspensórios,

poiserafinoehabilidosodemãos.

—Voubuscarafilhadorei!—disseramambos,peloqueopaideuacadaum

um belo cavalo.O que sabia o léxico e os jornais recebeu um negro de carvão e

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aquelequeerasabedordascoisasdosmestresequebordavarecebeuumbrancode

leite, e depois untaram os cantos da boca com óleo de fígado de bacalhau para

ficaremmais flexíveis.Estava todaa criadagemembaixo,nopátio, avê-los subir

paraoscavalos.Nessemomentochegouoterceiroirmão,poiseramtrês,masnão

havia ninguém que o considerasse como irmão, porque não tinha tanta erudição

comoosoutrosdoise,porcausadisso,chamavam-lhesimplesmenteJoãoPateta.

—Ondevão,assimtãoaperaltados?—perguntou.

— À corte para falarmos e ganharmos a filha do rei! Não ouviste o que os

tamboresanunciaramportodoopaís?—Econtaram-lho.

—Comabreca,tambémtenhodeir!—disseJoãoPateta,masosirmãosriram

deleepartiram.

— Pai, dá-me um cavalo também! — exclamou o João Pateta. — Sinto tal

vontade de casar-me!Se a princesamequiser, quer-me!E se nãomequiser, eu

quero-anamesma!

—É disparate!— disse o pai.—Não te dou nenhum cavalo.Não sabes, na

verdade,falar!Não,osteusirmãossãorapazesmaisapresentáveis!

—Senãopossoterumcavalo—afirmouJoãoPateta—,levoobode,queémeu

epodebemcomigo!

Pôs-sea cavalonobode,espetouoscalcanharesnas ilhargasdoanimaleestee

partiuàdesfiladapelaestradafora.Ui!Comoandava!—Aquivenhoeu!—dizia

JoãoPatetaecantavaqueatéressoava.

Mas os irmãos cavalgavam calmamente à sua frente.Nãodiziamumapalavra,

tinhamdepensar em todas as boas ideiasquequeriam levar consigo,pois seriam

necessáriasmuitasagacidadeeesperteza!

—Olá!— gritou João Pateta.—Aqui venho eu! Vejam o que encontrei na

estrada!—Emostrou-lhesumagralhamortaqueencontrara.

—Pateta!—afirmarameles.—Quequeresfazercomisso?

—Querodá-ladepresenteàfilhadorei!

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—Estábem,dá-lha!—disserameles,rindo,econtinuaramacavalgar.

—Olá!Aquivenhoeu!Vejamoqueencontreiagora.Nãoseencontradestas

coisastodososdiasnaestrada!

Osirmãosviraram-seoutravezparaveroqueera.—Pateta!—disseram.—É

umvelhotamancodepau,cujapartesuperiorsedesprendeu!Tambémvaisdarisso

àfilhadorei?

—Vou,pois!—retorquiuJoãoPateta,osirmãosriram,continuaramacavalgar

edistanciaram-semuito.

—Olá!Aquiestoueu!—gritoudenovoJoãoPateta.—Não,agoravaisercada

vezpior!Olá!Éextraordinário!

—Queencontrasteagora?—perguntaramosirmãos.—Oh!—exclamouJoão

Pateta.—Nãoécoisaparasedizer!Comovaificarcontente,afilhadorei!

—Ui!—disseramosirmãos.—Élamaqueavaletalançouparaaestrada.

— Sim, é isso!— confirmou João Pateta.— É da mais fina espécie, não se

consegueagarrar!—Eencheuasalgibeiras.

Mas os irmãos cavalgaram tanto quanto as roupas podiam aguentar, e assim

chegaram uma hora antes e pararam à porta da cidade. Aí, os pretendentes,

conformeiamchegando,recebiamumnúmeroeerampostosemfilas,seisemcada

fileira,mas tão juntosquenãopodiammexer os braços.Assimestavamuitobem

pensado, senão ter-se-iamrasgadoas costasdos fatos, simplesmentepara ficarem

unsàfrentedosoutros.

Todososoutroshabitantesdopaísseamontoavamàvoltadocastelo,espreitando

atépelas janelas,paraverema filhadorei receberospretendentes.Logoqueum

delesentravanasala,faltava-lheodomdafala.

—Nãopresta!—diziaafilhadorei.—Fora!

Entãoveioaqueledosirmãosquesabiaoléxicodecor,masesqueceu-seporque

esteveemfila.Ochãorangeueotetoeradeespelho,demodoqueseviudecabeça

parabaixo.Emcada janela estavamtrês escribas eummestre, cadaumdosquais

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escrevia tudo o que se dizia para que pudesse vir rapidamente no jornal e ser

vendido, à esquina, por dois xelins.Era terrível,mas também tinham acendido o

fogãodeaquecimentodetalmodoqueotamborestavaaorubro.

—Estáumgrandecaloraquidentro!—disseopretendente.

—Éporqueomeupaiestáhojeaassarfrangos!—afirmouafilhadorei.

—Bé!—Alificou.Aquelaconversanãoesperavaele.Nemumasópalavrafoi

capazdedizer,poisqueriaterditoalgodivertido.

—Nãopresta!—disseafilhadorei.—Fora!—Eassimtevedeseirembora.

Veioentãoooutroirmão.

—Estáaquiumcalorterrível!—começouele.

—Sim,estamosaassarfrangoshoje!—disseafilhadorei.

—Oquêbê…oquê?—perguntouele,etodososescribasescreveramoquêbê…

oquê.

—Nãopresta!—exclamouafilhadorei.—Fora!

VeioentãoJoãoPateta,quelogoentrouparaasalaemcimadobode.—Estáum

caloresbraseante!—disseele.

—Éporqueestouaassarfrangos!—respondeuafilhadorei.

—Apraz-meisso!—acrescentouJoãoPateta.—Possoassimassarumagralha?

—Podemuitobem!—retorquiuafilhadorei.—Mastemalgumacoisaonde

possafazeroassado?Équeeunãotenhonempanelanemfrigideira!

—Mastenhoeu!—disseJoãoPateta.—Aquiestáoutensíliodecozinhacom

rebordoeestanho!—Puxoupelovelhotamancoepôsagralhaemcima.

—Chega para toda uma refeição!—disse a filha do rei.—Mas onde vamos

arranjaromolho?

—Tenho-oaquinasalgibeiras!—respondeuJoãoPateta.—Tenhotantoque

possoderramá-lo!—Eassimesvaziouumpoucodelamadosbolsos.

—Distogostoeu!—disseafilhadorei.—Sabesrealmenteresponder!Sabes

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falar e a ti te quero comomarido!Mas sabes que toda a palavra que dizemos e

dissemoséescritaevemamanhãno jornal! Juntoacada janelavêsqueestão três

escribaseumvelhomestremasomestreéopior,poisnãoconsegueentender!—

Istodisseelasóparalhemetermedo.Todososescribasrincharamedeitaramum

borrãodetintanochão.

—Jáchega,meussenhores!—disseJoãoPateta.—Tenhodedarumpresente

aomestre!—Virouasalgibeiraselançou-lhelamaàcara.

—Foimuitobemfeito!—disseafilhadorei.—Issonãoeraeucapazdeter

feito!Masvouaprender!

AssimJoãoPatetaveioaserrei,tevemulhereumacoroaesentou-senotrono.

Istosabemosdiretamentepelojornaldomestre.Eistoéparanãoacreditar.

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OSapo

O poço era fundo, por isso a corda era comprida. A roldana rodava com

dificuldadequandosepuxavaobaldecomáguaparaabordadopoço.OSolnunca

conseguiadescerparaseespelharnaágua,pormuitoclaraquefosse,masatéonde

chegavaoseubrilho,cresciaaervaentreaspedras.

Viviaaíuma famíliada raçados saposque imigraraequecaíradecabeçapara

baixo, com a velha sapa-mãe ainda viva. As rãs verdes, que há muito tempo ali

estavam instaladas e nadavam na água, reconheceram-nos como primos e

chamaram-lhes«hóspedesdopoço».Estestraziamopropósitodeaíficar.Viviam

alimuitoagradavelmentenoseco,comoeleschamavamàspedrashúmidas.

Arã-mãe jáanteshaviaviajado.Estiveranobaldedeágua,quandoeste iapara

cima,mashaviamuitaluz,ficoucomimpressõesnosolhos.Tevesorteaoescapar-

sedobalde,caiucomumaterrívelchapinhadanaáguaeaíficoutrêsdiascomdores

nascostas.Nãopodiacontarmuitodomundoqueviuláemcima,maselasabiae

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sabiamtodosqueopoçonãoeratodoomundo.Asapa-mãebempodiatercontado

algumacoisa,masnuncarespondiaquandolheperguntavam,eassimninguémlhe

perguntavanada.

—Forte e feia, disforme e gorda é ela!—diziam as jovens rãs verdes.—Os

filhotessãoigualmentedisformes!

—Atépodeser!—disseasapa-mãe.—Masumdelestemumapedrapreciosa

nacabeça,ouentãotenho-aeu!

As rãs verdes ouviram e olharam pasmadas, como não gostaram disso fizeram

caretaseforamparaofundo.Masossapinhosbateramcomaspernastraseirascom

puro orgulho. Cada um deles acreditava que tinha a pedra preciosa, pelo que

ficaramcompletamentequietoscomascabeçasmas,porfim,perguntaramporque

sesentiamorgulhososeoqueera,naverdade,umapedrapreciosa.

— É algo tão magnífico e precioso — disse a sapa-mãe — que não posso

descrevê-lo.Éalgocomqueandamosparanossopróprioprazereque,porisso,aos

outrosarrelia.Masnãoperguntesmais,queeunãorespondo!

—Sim,nãotenhonenhumapedrapreciosa!—disseosapomaispequeno.Era

tãofeio,quemaisnãopodiaser.—Porquedeveriadetercoisatãomagnífica?E,se

a outros arrelia, tambémnão posso ter prazer nisso!Não!Só desejo poder subir

umavezatéàbordadopoçoeolharparafora.Devesermaravilhoso!

—Ficaantesondeestás!—avisouavelha.—Jáconhecesesabesoqueé!Toma

atenção ao balde, faz-te em papas. Se vais nele, podes cair para fora, nem todos

caemassimcomsorte,comoeu,quefiqueicomosmembrostodoseosovostodos!

—Quá!—disseopequeno,talcomonós,oshomens,quandodizemos«ai!».

Sentia um grande desejo de vir acima, até à borda do poço, e olhar para

fora!Sentiaumtãograndeanseiopelomundoverdeláemcima!

Quandonamanhã seguinte,poracaso,obaldecheiodeágua foipuxadoepor

ummomento ficouparadodiantedapedraondeestavao sapo, lápalpitouaquilo

dentrodoanimalzinho,quesaltouparaobaldecheio,foiaofundodobaldeedepois

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veioàtona,saltandoparafora.

—Raios te partam. Fora daqui!— disse o homem que o viu.—É domais

nojentoquetenhovisto!—Edeuumpontapécomotamanconosapo,quequase

ficoumutilado,masconseguiusafar-separadentrodasaltasortigas.Viaaícauleao

lado de caule, via também para cima! O Sol brilhava nas folhas. Eram

completamente transparentes. Para ele, era como para nós, homens, quando, de

súbito, entramos num grande bosque onde o Sol brilha por entre os ramos e as

folhas.

—Aquiémuitomaisbonitodoqueláembaixonopoço!Aquitem-sevontade

deficartodaavida!—disseosapinho.Ficouláumahora,ficouláduas!—Como

serálámaisparacima?Jáquevimtãolonge,vouaindamais longe!—Saltoutão

rapidamentequantopodiaeatravessouocaminho,comoSolabrilharsobreelee

comopóapolvilhá-lo.

—Aqui está-se verdadeiramenteno seco!—exclamouo sapo.—Estou a ter

tantoetãodemasiadodaquiloqueébom,queatémeaflige!

Atingiuentãoavala.Cresciamaímiosótiseulmárias,haviasebesespessasjuntoa

salgueiros e espinheiros alvares. Cresciam mangas-de-camisa-branca-de-maria

comotrepadeiras.Alihavia coresparaapreciar.Voava tambémumaborboleta.O

sapo julgou que era uma flor que se voltara paramelhor ver omundo.Era bem

verosímil.

—Se sepudesse viajar assimcomoaquela…—disseo sapo.—Quá!Ai!Que

beleza!

Ficouoitonoiteseoitodias juntodavalaenãolhefaltoucomida.Aononodia

pensou: «Avante!» Mas que mais maravilhas se podiam encontrar? Talvez um

sapinho ou algumas rãs verdes.Tinha-lhe soado na noite passada, no vento, que

havia«primos»navizinhança.

—Étãobomviver!Subirparaforadopoço,deitar-senasortigas,saltarparao

caminhopoeirentoerepousarnavalahúmida!Masavante!Vejamosseencontrorãs

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ouumsapinho.Issonãopossodispensar.Paramim,anaturezajánãoésuficiente!

—Evoltouapôr-seaocaminho.

Entrou num campo que dava para um charco grande com caniços em redor.

Tentousaltarparaocharco.

—Aquiédemasiadohúmidoparaosenhor?—perguntaramasrãs.—Masseja

muito bem-vindo! Diga-nos: é um ou uma? É o mesmo. De qualquer modo, é

bem-vindonamesma!

E foi convidado para o concerto à noite, um concerto familiar. Grande

entusiasmo e vozes finas! Conhecemo-los. Não havia banquete, apenas bebidas

grátis.Todoocharco,sesequiser.

—Voltoaocaminho!—disseosapinho.Sentiasempreodesejodealgomelhor.

Viuasestrelasbrilharem,tãograndesetãoclaras,viualuanovaluzir,viuoSol

levantar-se,maisaltoemaisalto.

— Ainda estou no poço, num poço maior, tenho de ir mais alto! Sinto

inquietação e anseio!—Quando a Lua ficou cheia e redonda, pensou o pobre

animal: «Gostariade saber se éumbaldequevaidescer e se eupodia saltarpara

dentropara subirmais alto?OuéoSolograndebalde?Comoégrande, comoé

brilhante, podia conter-nos a nós todos juntos! Tenho de adaptar-me às

circunstâncias!Oh!,comobrilhanaminhacabeça!Nãocreioqueapedrapreciosa

possabrilharmais!Masnãoatenhoenãochoroporela,não,oSolémaisaltoem

esplendoreprazer!Tenhoacertezae,contudo,medo…éumpassodifícildedar!

Mastemdeserdado!Avante!Jáparaaestrada!

Deuopasso,comoumbatráquioopodedareestavaagoranaestradaprincipal,

ondeviviamoshomens.Haviatantosjardinsdefloresehortas.Repousoujuntode

uma.

—Queenormevariedadehánacriação!Nãosabia!Ecomoomundoégrandee

maravilhoso!Deve-seirvê-loenãoficarparadonumúnicolugar.—Saltoupara

dentrodahorta.—Comoétudoverdeaqui!Comoébonitoaqui!

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—Bemosei!—dissealagartanafolhadecouve.—Aminhafolhaéamaior!

Ocultameiomundo,masnãopossodispensá-la!

Cluque! Cluque! Ouviu-se. Aproximavam-se as galinhas que passeavam na

horta.Agalinhaquevinhaàfrenteviabemaolonge.Lobrigoua lagartanafolha

onduladaelançou-seacorrerparaela,detalmodoquealagartacaiu,enroscando-

seevirando-sedebarrigaparaoar.Agalinhaolhouprimeirocomumolho,depois

comooutro,poisnãosabiaoquepoderiaviradaraquelebichinhoterficadoassim

enroscado.

«Estevermenãofazistovoluntariamente!»,pensouagalinhaelevantouacabeça

paraatacaralagarta.Osapoficoutãoaflitoquesaltounadireçãodagalinha.

—Tementãotropasdesocorro!—disseela.—Olha-meparaaquelebicho!—

Depois virou-lhe as costas.—Nãome interessa aquela coisinha verde que nem

chegaafazercócegasnagarganta.—Asoutrasgalinhasforamdamesmaopiniãoe

afastaram-se.

— Escapei-lhe, enrolando-me!— disse a lagarta.— É bom ter presença de

espírito,masrestaomaisdifícil,voltarasubirparaaminhafolhadecouve.Onde

estáela?

O sapinho quis expressar a sua simpatia. Foi divertido que ele, com a sua

fealdade,tivesseassustadoasgalinhas.

—Quequer dizer com isso?—perguntou a lagarta.—Escapei-medela por

méritomeu.Émuitodesagradável olharpara si!Posso estarnaquiloque émeu?

Cheira-meà couve!Estou agoranaminha folha!Nãohánadamaisbelodoque

aquiloqueédenóspróprios.Mastenhodesubirmaisalto!

—Sim,maisalto!—disseosapinho.—Maisalto!Issosintoeutambém!Mas

nãoestábem-dispostahoje.Foidomedo.Todosqueremos subirmaisalto!—E

olhouparaoaltotantoquantopodia.

Acegonhaestavanoninhonotelhadodacasadocamponês.Acegonha-paifalava

eacegonha-mãefalava.

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«Comovivemtãoalto!»,pensouosapo.«Quempudessesubirláacima!»

Na casa do camponês viviam dois jovens estudantes. Um era poeta e o outro

cientista.Um cantava e escrevia na alegria de queDeus criara tudo e que se lhe

refletiano coração.Cantava-ode forma curta, clara e rica, emversos sonoros.O

outrotomavaascoisasporsipróprias,sim,dissecava-asquandoassimtinhadeser.

TomavaaobradeNossoSenhorcomoumgrandeproblemaaritmético,subtraía,

multiplicava,queriasabertudoporforaepordentroefalarcomconhecimento—e

com todo o entendimento— e falava da obra com alegria e inteligência. Eram

ambospessoasboasealegres.

— Está ali um belo exemplar de sapo! — disse o cientista. — Tenho de o

apanharparaoconservaremálcool!

—Játensdois!—observouopoeta.—Deixa-oestaremsossegoeadivertir-se!

—Masétãomaravilhosamentefeio!—referiuooutro.

—Sim,sepudéssemosencontrarapedrapreciosanasuacabeça!—exclamouo

poeta.—Entãoseriaeupróprioadissecá-lo.

— Pedras preciosas! — exclamou o outro. — Conheces bem a história da

natureza!

—Masnãoéalgomuitobelonacrençadopovodequeosapo,oanimalmais

feio, ocultamuitas vezesna cabeça a tãodesejadapedrapreciosa?Não sepassao

mesmo com os seres humanos?Que pedras preciosas não teveEsopo, e também

Sócrates?…

Maisnãoouviuosapo,enãocompreendeunemmetade.Osdoisamigosforam-

seemboraeeleescapou-sedeserpostoemálcool.

—Falavam,portanto,dapedrapreciosa!—disseo sapo.—Ébomqueanão

tenha,senãoestavaagorametidoemsarilhos!

Ouviram-se, então, vozes no telhado da casa do camponês.Era a cegonha-pai

quefaziaumdiscursoàfamíliaeestaolhavadeladoparabaixo,paraosdoisjovens

estudantesqueaindaseencontravamnahorta.

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—Os homens são as criaturas mais presunçosas!— disse a cegonha-pai.—

Oiçam como são as conversas deles!Não sabemdar um verdadeiro estalo como

bico. Enchem o papo com os seus dons de fala, a sua língua! É uma língua

agradável.Masmuda em cada local que encontramos nas nossas viagens diárias.

Unsnãoentendemosoutros.Anossa língua,pelo contrário,podemo-la falar em

todaaterra,tantonaDinamarcacomonoEgito.Voartambémnãosabem!Fazem

viagensnumacoisadescobertaaquechamam«caminhodeferro»epartemacabeça

muitas vezes por causa disso. Fico com calafrios no bico quando penso nisso!O

mundopodeexistirsemhomens.Podemosdispensá-los.Quenosdeixemapenasrãs

eminhocas!

«Foiumdiscursoformidável!»,pensouosapinho.«Comoéumgrandehomem!

Eestátãoaltocomonuncavininguémestar!Ecomosabenadar!»,exclamouele,

quandoacegonhaabriuasasasepartiupeloar.

Acegonha-mãefalounoninho,contousobreaterradoEgito,sobreaáguado

Niloesobreosatoleirosincomparáveisquehaviaemterrasestrangeiras.

Issosooucomoalgonovoebeloparaosapinho.

—TenhodeiraoEgito!—disseele.—Seacegonhamelevasseoualgumdos

seusfilhos!Pagar-lhe-iaoserviçonodiadonoivado.Sim,vouaoEgito,porqueme

sintofeliz!Todooanseioevontadequesintoérealmentemelhordoqueteruma

pedrapreciosanacabeça!

Eeletinhaexatamenteapedrapreciosa.Eraoeternoanseioevontadedesubir,

para cima, sempre para cima! Brilhava lá dentro, luzia de alegria e irradiava na

vontade.

Nesse momento veio a cegonha. Vira o sapo na erva. Baixou e pegou no

animalzinhode formapoucogentil.Obico apertava, o vento sussurrava,não era

agradável,maseleiaparacima,paracima,paraoEgito,sabia-oele.Eporissoos

olhosbrilhavam.Eracomosedelessaíssemcentelhas.

—Quá!Ai!

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Ocorpoestavamortoemortoosapo.Masascentelhasdosolhos,quesepassou

comelas?

OsraiosdeSolpegaramnelasecomelaslevaramapedrapreciosadacabeçado

sapo.Paraonde?

Não perguntes ao cientista, pergunta antes ao poeta. Ele conta-te como num

conto.Easlagartasláestãoeafamíliadecegonhasláestátambém.Pensa!Alagarta

transforma-se numa linda borboleta.A família de cegonhas voa para longe sobre

montes e mares para a longínqua África, mas volta a encontrar o caminhomais

curtoparacasa,paraaterradinamarquesa,paraomesmolugar,omesmotelhado!

Sim, é tudo demasiado maravilhoso e, no entanto, é verdadeiro. Podes bem

perguntaraocientista,temdeoadmitir.Tuprópriosabesissotambém,porqueo

viste.

—Masapedrapreciosanacabeçadosapo?—Busca-anoSol!Vê-a,sepuderes!

O brilho é demasiado forte. Não temos olhos ainda para ver dentro de toda a

magnificênciaqueDeus criou,mas temo-los, e isso vema sero contomaisbelo,

poisnósprópriosestamoslá!

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NoPátiodosPatos

Veio uma pata dePortugal.Disseram algumas pessoas que podia ter vindo de

Espanha.Éindiferente.Chamaram-naaportuguesa,pôsovos,foimortaeservidaà

mesa. Foi a sua carreira. Todos os que saíram dos ovos dela foram chamados

portugueseseistotinhaasuaimportância.Detodaafamíliaapenasrestaraumano

pátio.Umpátioaque tinhamtambémacessogalinhaseondeogalo se conduzia

cominfindávelaltivez.

—Fere-mecomoseucantoviolento!—diziaaportuguesa.—Masébonito,

não sepodenegar, aindaquenão sejapato.Deviamoderar-se,masmoderar-seé

umaartequerevelacultura superior.Têm-naospassarinhoscantores, lánoalto,

nas tílias do jardim vizinho. Como cantam maravilhosamente! Há algo tão

comovedornoseucanto!ChamoaissoPortugal!Tivesseeuumpassarinhocantor

assim e seria uma mãe extremosa e boa para ele. Está no meu sangue, no meu

caráterportuguês!

Efoiprecisamentequandoassimfalavaquealiveiopararumpassarinhocantor.

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Caiu do telhado, de cabeça para baixo. O gato andara atrás dele, mas o pássaro

escapara-se-lhecomumaasaquebrada,caindonopátiodospatos.

—Devesercoisadogato,aquelebruto!—disseaportuguesa.—Conheço-odo

tempo que tive patinhos! Permitir-se que uma criatura assim viva e ande pelos

telhados!IssocreioeuquenãosepassaemPortugal!

E compadeceu-se do passarinho, e as outras patas, que não eramportuguesas,

compadeceram-sedeletambém.

—Pobrezinho!—disseramelas,echegou-seumaechegaram-seasoutras.—É

certo que não somos cantoras—disseram elas—,mas temos dentro de nós um

someirodeórgãooualgoparecido.Sentimo-lo,aindaquenãofalemosdisso!

—Poiseuquerofalardisso!—disseaportuguesa.—Equerofazeralgoporele,

porqueéonossodever!—Esubiuassimparadentrodaselhadeáguaepatinhou

nelade talmodoquequaseafogavaopassarinhocomamolhaqueesteapanhou,

masfoicomboaintenção.—Éumaboaação—disseela.—Bempodemosoutros

vereseguiroexemplo!

— Piu! — disse o passarinho. Uma das asas estava quebrada, era-lhe difícil

sacudir-se, compreendeu,porém,queachapinhadela foibem-intencionada.—É

muitoboadecoração,minhasenhora!—disseele,masnãopediumais.

—Nuncapenseina inclinaçãodomeucoração!—disse aportuguesa.—Sei,

porém, que amo todos osmeus semelhantes, exceto o gato, mas quem poderia

esperaroutracoisademim!Comeudoisdosmeus.Estejaaquiagoracomoemsua

casa.Podearranjar-se.Euprópriasoudeumaterraestrangeira,comobempodever

pelomeuaprumoevestidodepenas.Omeupatoénativo,nãotemomeusangue,

masnãomefaçoaltivaporisso!…Asercompreendidoporalguémdaqui,seéque

possoafirmá-lo,serápormim.

—Elatembeldroegasnamoela!—disseumpatinhovulgarqueeraespirituoso,

eosoutros,quetambémeramvulgares,acharamadmirável issodeportulak1 soar

com «Portugal». Empurrando-se uns aos outros, diziam: — Ouviram? Foi

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incomparavelmenteespirituoso!

Emeteram-secomopassarinho.

—Aportuguesafalaverdadeiramentebem!—disserameles.—Nósnãosomos

de grandes palavras no bico, mas temos igualmente grande simpatia. Se não

fazemos nada por si, também não levantamos questões. Achamos que é mais

bonito!

—Temuma bonita voz!— disse um dosmais velhos.—Deve ser uma bela

sensaçãodarprazera tantagente,comovocêfaz!Nãoentendo,naverdade,nada

disso!Porissocaloobico,oqueésempremelhordoquedizerqualquerparvoíce,

comomuitosoutroslhasdizem.

— Não o incomodem — disse a portuguesa. — Ele necessita de repouso e

tratamento.Passarinho,querqueeuomolheoutravez?

—Oh!Não,deixe-meficarseco!—pediuele.

— A cura pela água é a única coisa que me ajuda— disse a portuguesa.—

Divertimentotambémécoisaboa!Daquiapoucovãovirasgalinhasvizinhaspara

nos visitar. São duas galinhas chinesas, andam com calças à mameluco, possuem

muitaeducaçãoesãoimportadas.Têmelevadolugarnaminhaconsideração.

Easgalinhasvierameveioogalo.Esteestavatãogentilquenemfoigrosseiro.

—Vocêéumverdadeiropássarocantor!—disseele.—Efazdasuavozinhao

quesepodefazercomumatalvozinha.Masdevecantarcomaforçadalocomotiva

paraquesepossasaberqueéumverdadeiromacho.

Asduaschinesasficaramencantadasaoveremopássaro.Estavatãoencharcado

da molha que recebera que parecia um pintainho chinês. — Bonito! — E

começaramafalarcomelecomvozsussurranteesonsdePemchinêselegante.

— Somos do seu género. As patas, mesmo a portuguesa, pertencem às aves

aquáticas, como bem notou. A nós ainda você não conhece, mas quantos nos

conhecemousedãoaotrabalhodenosconhecer?Ninguém!Nemmesmoentreas

galinhas, sebemquenasçamosparapousarnumpoleiromais altodoquemuitos

Page 310: Contos de Andersen...se. Estava muito desolado por ter assim um aspeto tão feio e servir de escárnio para todo o pátio dos patos. Assim se passou no primeiro dia e depois tornou-se

outros…Maséomesmo, seguimosonosso tranquilo caminhonomeiode todos,

cujosprincípiosnãosãoosnossos,masnóssóolhamososladosbonsesófalamosdo

bem,aindaquesejadifícildeoencontrarondenãoexiste.Comexceçãodenósedo

galo,nãoháninguémnacapoeiraquesejainteligenteeaomesmotempohonesto!

O mesmo se pode dizer dos habitantes do pátio. Avisamo-lo, passarinho! Não

acreditenaque tema cauda cortada, é falsa!Aquelamanchada ali como espelho

tortonasasasémalucapordisputasenuncadeixaninguémteraúltimapalavra,e,

aindapor cima,nunca tem razão!…Aquelapatagorda falamalde todos, e isso é

contraanossanatureza.Senãosepodefalarbem,cala-seobico.Aportuguesaéa

única que tem um pouco de educação e com quem se pode conviver, mas é

impetuosaefalademasiadodePortugal!

—Comotêmasduaschinesastantoamurmurar!—disseramalgumaspatas.—

Aborrecem-me,nuncafaleicomelas!

Veio então o pato. Julgou que o pássaro era um pardal. — Sim, não vejo

diferença! — disse ele. — Mas não tem importância! Pertence aos brinquedos

musicaisque,quandoostemos,temos!

— Não te importes com o que ele diz! — sussurrou a portuguesa. — É

respeitávelnosnegócioseosnegóciosestãoparaeleacimadetudo.Masagoravou

deitar-meedescansar!Éumdeverparacomigoprópriafazeropossívelporestar

bemgordinha,paraviraserembalsamadacommaçãseameixas.

ElogosedeitouaoSol,pestanejandocomumolho.Estavatãobemdeitadaetão

bemconsigoprópria,quedormiumuitoconvencida.Opassarinhopuxoupelaasa

quebradaedeitou-setambém,encostadoàsuaprotetora.OSolbrilhavaquentee

belo,eraumbomlugarparaseestar.

Asgalinhasvizinhasandavamàvoltaaesgravatar.Tinhamvindosobretudopor

causadacomida.Aschinesasforamasprimeirasaafastar-seedepoisasoutras.O

patinhoespirituosodisse,referindo-seàportuguesa,queavelhaestavaaentrarna

«segundapatinhice»,eriram,comardetroça,asoutraspatas.

— Segunda patinhice! É incomparavelmente espirituoso! — E repetiram o

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antigoditodeespírito:beldroegas!Foimuitoengraçado.—Depoisdeitaram-se.

Estavamjáháalgumtempodeitadasquandolançaramcomidanopátio.Estalou

deencontroaochão,demodoque todaacriaçãoquedormia se levantouebateu

com as asas. A portuguesa acordou também, virou-se e esmagou terrivelmente o

passarinho.

—Piu!—disseele.—Pisou-metanto,minhasenhora!

—Porque sepôsno caminho?—retorquiu ela.—Nãodeve ser tão sensível!

Tambémtenhonervos,masnuncadissepio!

—Nãoestejazangada!—disseopassarinho.—Opiosaiu-medobico!

A portuguesa nem o ouviu.Correu para a comida e colheu uma boa refeição.

Quandoterminouesedeitou,chegou-seopassarinho,quequeriaseramável:

TilelelilTilelelil!,obomcoraçãoqueencontreiemti

vaisermuitasvezescantadopormim

quandovoarporaí,poraí,poraí!

—Agora vou repousar depois da comida—disse ela.—Temde aprender os

costumesdacasa!Agoravoudormir!

O passarinho ficoumuito desconcertado, pois fizera aquilo com boa intenção.

Quando a dama acordou, estava ele diante dela com um grãozinho no bico, que

tinha encontrado. Pusera-lho à frente, mas ela não tinha dormido bem e assim

estava,naturalmente,rabugenta.

—Podedá-loaumpintainho!—disseapata.—Nãoestejasempreemcimade

mim!

—Masestázangadacomigo!—disseele.—Quefizeu?

— Fiz? — disse a portuguesa. — A expressão não é das mais finas. Quero

chamar-lheaatençãoparaisso!

— Ontem havia Sol!— disse o passarinho.— Hoje está escuro e cinzento!

Sinto-metãotristedentrodemim!

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—Nãosabeaindabastantedocálculodotempo!—disseaportuguesa.—Odia

aindanãoacabou.Nãofiqueaíafazercaradeparvo.

—Olha para mim tão zangada, tal como esses dois olhos maus me olharam,

quandoaquicaínopátio.

—Desavergonhado!—disseaportuguesa.—Compara-mecomogato,aquela

fera!Nenhumagotadesanguemauháemmim.Tomeicontadesievouensinar-

lheboasmaneiras!

Ecomumabicadaarrancouacabeçaaopassarinho,quelogoalicaiumorto.

—Queéissoagora!—disseela—Nãofoicapazdesuportarabicada!Então

nãoerarealmenteparaestemundo!Fuicomoumamãeparaele,bemsei!Porque

coraçãotenhoeu!

E o galo do vizinho meteu a cabeça no pátio e cantou com a força de uma

locomotiva.

—Vocêdácabodeumacriaturacomessecanto!—gritouela.—Étudoculpa

sua!Eleperdeuacabeçaeeuestouaperderaminha!

—Nãoocupamuitolugarondeestá!—disseogalo.

— Fale com respeito acerca dele!— disse a portuguesa.— Tinha distinção,

tinhavozegrandeeducação.Eraamorosoemeigo,comoconvémaosanimaiseaos

denominadossereshumanos.

Etodasaspatasse juntaramàvoltadopassarinhomorto.Aspatastêmpaixões

fortes,quernainvejaquernacompaixão,ecomoalinadahaviaainvejar,estavam,

portanto,compadecidasetambémoestavamasduasgalinhaschinesas.

—Um pássaro cantor como este nuncamais teremos!Era quase chinês— e

choraramtanto,etodasasgalinhaseasoutrasavespresentesnopátiocacarejaram,

masaspataseramasquetinhamosolhosmaisvermelhosdetodas.

—Coraçãotemosnós!—diziamelas.—Ninguémno-lopodenegar!

—Coração!—disseaportuguesa.—Sim,temo-lonós…quasetantocomoem

Portugal!

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—Pensemosagoraemencontraralgumacoisaparaopapo!—chamouopato.

—Queéomaisimportante!Sesequebraumbrinquedomusicalempedaços,ainda

nosrestambastantes!

1-Portulak,emdinamarquês;Portulaca,emlatim.Plantasdefolhascarnudase

alimentares,vulgarmentechamadasbeldroegas(N.doT.)(Voltar)

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ARainhadasNeves

Umcontocomsetehistórias

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Primeirahistória—quetratadoespelhoedos

seusfragmentos

Vejamentão!Agoravamoscomeçar.Quandotivermoschegadoaofimdonosso

conto, saberemos mais do que agora, pois fala de um feiticeiro mau! O pior de

todos.Odævel1.

Umdia,estavaeledebomhumor,porquetinhaacabadodeconstruirumespelho

que possuía uma propriedade: a beleza e a bondade que nele se refletissem

reduziam-se a quase nada.Tudo o que eramau ou desagradável, pelo contrário,

aumentava,tornando-seaindapior.

Quando as mais admiráveis paisagens se refletiam no espelho pareciam

esparregadodeespinafres.Asmelhorespessoastornavam-serepelentesouficavam

com a cabeça para baixo, sem barriga e com as caras tão disformes que ficavam

irreconhecíveis.Se alguém tivesseumapequena sarda,podia ter a certezadeque

estasetornavaenorme,cobrindo-lheonarizeaboca.

— Como isto é divertido! — dizia o diabo do feiticeiro. Logo que um

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pensamentosensatooupiedosoatravessavaoespíritodeumhomemrefletia-seno

espelhoumsorrisodeescárnio.Estefeiticeirodosdiabosria-se,encantadocoma

suainvenção.Todososqueandavamnasuaescoladefeiticeiro,poiseletinhauma

escoladefeitiços,contavamportodaapartequehouveraummilagre.Sóagorase

podiaver,opinavameles,comoomundoeoshomenseramnarealidade.Corriam

portodoomundocomoespelhoe,nofim,nãohaviapaísoupessoaquenelenão

visserefletidaasuaimagemdistorcida.

Agoraelesqueriamvoarparaoprópriocéuafimdefazerempoucodosanjose

deNossoSenhor.Quantomaissubiamcomoespelhomaisesteseriadeescárnio.

Malopodiamsegurar.Continuaramavoarcadavezmaisaltoemaisalto,cadavez

mais próximos de Deus e dos anjos. De repente o espelho estremeceu tão

terrivelmentecomoseumalvadosorrisoqueseescapoudasmãosdosdiabinhosese

precipitouparaaTerra,desfazendo-seemcemmilhõesdebiliõeseaindaemmais

fragmentos.

Efoiassim,despedaçado,quecausoumaisdanosdoqueantes.Algunspedaços

que não eram maiores que grãos de areia voaram pela vastidão do mundo e as

pessoas apanharam com essa funesta poeira nos olhos. Essas pessoas viam tudo

errado,esótinhamolhosparaoqueestavamal,poiscadapequenogrãodeespelho

mantinha asmesmas forças como se de todo o espelho se tratasse.Houve quem

chegasseaterumpequenogrãodoespelhonocoração,eentãoerapavoroso,poiso

coraçãodessaspessoastransformava-senumpedaçodegelo.

Existiampedaçostãograndesquechegaramaserusadoscomovidraçasparaas

janelas. Não era nada aconselhável ver os amigos através deles. Outros foram

utilizados como lentesparaóculos e então,quando alguémospunha,para se ver

comclarezaejustiça,tudocorriamal.

Ofeiticeirosorriadetalformaqueatéabarrigalherebentava.Orisofazia-lhe

cócegas deliciosas. Lá fora, voavam ainda pequenos pedaços de vidro. Agora,

escutemcomatenção.

1 - Dævel (djævel). Expressão infantil que designa diabo, em dinamarquês.

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Andersen utiliza o termo para amenizar a figura no imaginário das crianças.

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Segundahistória—Umrapazinhoeumamenina

Nagrandecidadehátantascasasetantaspessoas,quenãoexistelugarparatodos

poderem ter o seu jardim. Por isso, a maioria contenta-se com alguns vasos de

flores.Haviaduascriançaspobresquetinhamumjardimumpoucomaiordoque

um vaso de flores.Não eram irmãos,mas gostavam tanto um do outro como se

realmenteofossem.Osseuspaisviviamemduaságuas-furtadastãopróximasuma

daoutraqueostelhadosquasesetocavam.Cadacasatinhaumajanelaviradapara

outraebastavaesticaraspernasparasepassarparaqualquerumdoslados.

Cadafamíliapossuíaumgrandecaixotedemadeiracheiodeterra,foradajanela

e nele cultivava hortaliças para governo da sua casa, e uma pequena roseira que

cresciaqueeraumabênção.Ospaistiveramaideiadecolocarascaixasatravessadas

demaneiraquechegavamdeumajanelaàoutra.Pareciaumverdadeirocanteirode

flores. Os ramos das ervilheiras suspendiam-se e as roseiras lançavam ramos

compridos que se enroscavam em volta das janelas, curvando-se uns contra os

outros.Eraquaseumarcodetriunfodeverduraseflores.

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Oscaixoteseramaltoseascriançassabiamquenãopodiamtreparporeles,mas

os pais autorizaram que se sentassem nos seus banquinhos e ali brincavam

maravilhosamente.

Noinverno,estedivertimentonãopodiaexistir.Muitasvezesasjanelasficavam

totalmentecobertasdegelo.Então,osmeninosaqueciamumapequenamoedade

cobre na braseira e colocavam-na sobre a vidraça, formando assim um pequeno

postigo redondo, tão redondo, que atrás dele espreitava um olhito de expressão

abençoadaeterna,istoemcadaumadasjanelas.Eramorapazinhoeamenina.Ele

chamava-seKayeelaGerda.

Noverão,podiam,comojásedisse,chegarumaooutrocomumsimplessalto.

Noinverno,paraseencontrarem,era-lhesnecessáriodescernumerososdegrause,

emseguida,subiroutrostantos.

Láfora,aneverodopiavaemmilharesdeflocos.

—Sãoasabelhasbrancasqueesvoaçam—disseavelhaavó.

Elas também têm uma rainha? — perguntou o menino, pois sabia que as

verdadeirasabelhastêmsempreumarainha.

—Certamente—respondeuaavó.—Láestáelaavoar,ali,ondeestãomuitos

flocos juntos.Éamaiorde todas.Nuncaestánomesmosítio, rodopia, rodopiae

nunca fica quieta sobre a terra.Voa sempre para o céu escuro.Muitas noites de

inverno,voapelasruasdacidadeeespreitaatravésdasjanelas,que,porcausadoseu

olhar,gelamdeformatãoestranha,formandodesenhosdeflores.

—Já vimos isso—exclamaramas crianças.E ficaramconvencidasdeque era

verdade.

—ARainhadasNevespodeentraraqui?—perguntouarapariguinha.

—Elaquevenhaentão!—disseKay.—Pô-la-eiemcimadabraseira,quese

derretelogo.

Masaavóacariciou-lheoscabelosecontou-lhesoutrashistórias.

À noite, o pequeno Kay estava na sua casa, já meio despido e pronto para se

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deitar.Mas, antes, trepou para uma cadeira junto à janela e espreitou através do

pequenoburacoredondo,feitocomamoedaaquecida.Algunsflocosdenevecaíam

lentamente.Omaior de todos veio pousar na beira de umdos caixotes de flores.

Cresceucadavezmaiseacaboupor se tornarnumamulher,vestidadomais fino

tulebrancocomose fosse feitodemilhõesde flocoscintilantes.Eramuitobelae

graciosa,mastodafeitadegelo.Gelobrilhanteeresplandecente.Apesardeserde

gelo,mesmoassim,estavaviva.Osseusolhosbrilhavamcomoduasestrelasclaras,

mas não tinham calma nem descanso. Acenou para a janela e fez adeus com um

gesto.Orapazinho,assustado,saltoudacadeiraenessemomentopareceu-lheque

umgrandepássarovoavadiantedajanela.

Nodiaseguintetudoestavageladoelimpo.Depois,aneveeogelocomeçarama

derreter-se.Veio então a primavera.OSol resplandeceu e os primeiros rebentos

começaram a verdejar. As andorinhas construíram os seus ninhos, as janelas

abriram-seeasduascriançasencontraram-senovamentenoseujardinzinho,láem

cima,noalgeroz,juntodotelhado.

Quando as rosas floresceram em toda a sua magnificência, era o verão! Ah!

Comoo jardim lhesdavaprazer!Arapariguinhaaprenderadecorumsalmoque

falavaderosas.Quandoocantava,pensavanasquetinhanoseujardim.Ecantou-o

diante do rapaz, e ele aprendeu-o também. Rapidamente, ambos uniram as suas

vozesparacantar:

Asrosascrescemnosvales.

LácomungamoscomoMeninoJesus!

Osdois,comasmãosdadas,beijavamasfloresecontemplavamobrilhodoSole

falavam para ele como se oMenino Jesus lá estivesse.Que diasmaravilhosos de

verão.Eraumabênçãoestarjuntodasroseiras,quepareciamnuncaparardeflorir!

Certo dia, Kay e Gerda sentaram-se a olhar para um livro de imagens, que

representava animais e aves. Foi então que, no precisomomento em que o sino

bateuascincobadaladasnatorredaigreja,Kayexclamou:

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—Ai,quealgumacoisamepicounocoraçãoeagorasintoquemeentrououtra

coisanoolho.

A menina tomou-lhe o rosto entre as mãos e olhou-o nos olhos, que

pestanejavam;masnãoviuabsolutamentenadadeanormal.

—Parece-mequejápassou—disseele.Masnãopassou.Aquiloeraexatamente

umpedaçodevidroquesaltoudoespelho.Oespelhodo feitiço,conformemuito

bemnos lembramos.O terrível espelhoque faziaparecerpequenoe feiooqueé

grandeebeloequepunhaemdestaqueoladomauerelesdosseresedascoisas.O

infeliz Kay recebeu no coração um desses inúmeros fragmentos. Em breve iria

tornar-secomoumpedaçodegelo.Kaynãosentiumaisdornenhuma,masaquilo

estavalá.

—Porquechoras?—perguntouele.—Parecestãofeia!Eunãotenhonada!Ai!

Cala-telácomisso!—gritou,olhandoemredor.—Estarosafoitodacomidapor

um verme e esta está torta. Na realidade, são vulgares e sem graça, tal como o

horrívelcaixoteondecrescem!

Deuumdesdenhosopontapénocaixoteearrancouasduasfloresquelhehaviam

desagradado.

—Kay!Oqueestásafazer?—gritouamenina.

Vendo-a tão horrorizada, Kay arrancou mais uma rosa, depois correu para

dentroatravésdasuajanela,paralongedapequenaeabençoadaGerda.

Quando, mais tarde, ela apareceu com o livro das imagens, ele disse-lhe que

aquele era um livro para crianças pequenas.Quando a avó contava histórias, ele

vinha sempre estragar tudo com um «mas», ou então, se via uma oportunidade,

colocava-se por detrás dela, punha os seus óculos e imitava-a. Toda a gente o

aplaudia.Embreve,seriacapazdeimitarquempassavapelarua.Kaysabiaimitar

tudooqueeraestranhoenadabonitonaspessoas.

—Temumaboacabeça,esterapaz!—dizia-se.

Narealidade,tudoistosedeviaaosgrãosdevidroquelheentraramparaoolhoe

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paraocoração.EestaeraarazãoporqueeleatéaborreciaapequenaGerda,que

gostavadelecomtodaasuaalma.

Asuamaneiradebrincartornou-setotalmentediferente.Agorafaziaascoisasde

formafriaecalculista.

Umdiaemquenevava,apareceucomumagrandelupaeestendeuumapontado

seucasacoazul,paraapanharalgunsflocosdeneve.

—Olha agora os flocos na lupa,Gerda. Cada floco de neve tornou-semuito

maioreesplendoroso.Pareciaumaestreladedezpontas.Foimaravilhosodever.

—Estásavercomoéartificial?—disseKay—,émuitomais interessantedo

queasfloresreais.Sãotãoperfeitosquenãotêmumúnicoerro.Sãotodosiguais.

Desdequenãoderretam.

Pouco depois, apareceu comgrandes luvas e o seu trenó às costas e gritou aos

ouvidosdeGerda:

—Tenhoautorizaçãoparaandarnagrandepraçaondeosoutrosbrincam.

Edesapareceuacorrer.

Lá,napraçapública,osrapazesmaisatrevidosatavam,àsvezes,osseustrenósàs

carroças dos camponeses e faziam-se arrastar durante um bocado. Era muito

divertido.

Enquanto brincavam, chegou um grande trenó. Estava pintado de branco e

dentrodelevinhasentadoalguémvestidocomumapeliçabrancaeumgorrobranco

nacabeça.

Otrenódeuduasvoltasàpraça.Kayaproveitoueprendeu-lheoseueassimse

fezdeslocar.

Ograndetrenódeslocava-sedepressa,cadavezmaisdepressa.Deixouapraçae

meteupelaruaaolado.Quemoconduziavoltou-seefezaKayumamistosoaceno

comacabeça,comosejáfossemconhecidos.SemprequeKayprocuravadesataro

seu trenó, a personagem olhava-o, dirigindo-lhe um aceno com a cabeça, eKay,

subjugado,ficavaquieto.

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Ei-los que saem pelas portas da cidade. A neve começou a cair com força. O

pobrerapazinhonãoviadoispassosdiantedesieoandamentoeracadavezmais

veloz.

Queria largar rapidamente a corda para se livrar do grande trenó. Mas não

conseguiu. O seu pequeno veículo continuava preso ao grande trenó, que

prosseguia,rápidocomoovento.Kaycomeçouagritarporsocorro;masninguémo

ouvia e a neve caía cada vez commais força.E o trenó continuava a voar, numa

vertiginosacorrida.Porvezes,sentia-seumsolavancocomosesaltasseporcimade

um valado ou transpusesse uma sebe. Kay estava apavorado. Queria rezar o seu

padre-nosso,massóselembravadagrandetabuada.

Osflocosdenevetornavam-secadavezmaioresatésepareceremcomgrandes

galinhasbrancas.Derepente,estasdesaparecerameograndetrenóparou.Quemo

conduzia,ergueu-se.Asespessaspelesqueacobriameramtodasdeneve.Tratava-

sedeumadamaalta,cheiadedignidadeedeumabrancuraresplandecente.

EraaRainhadasNeves.

—Viemosaandarbem—disseela.—Apesardisso,vejoqueestásquasegelado.

Vemabrigar-tedebaixodaminhapeliçadepeledeurso.

Ela agarrou-o, e colocou-o no seu trenó, envolvendo-o com a sua pele. Kay

julgoutermergulhadonumamassadeneve.

—Aindatensfrio?—perguntouela,beijando-onatesta.Obeijoerafriocomoo

gelo e penetrou-lhe até ao coração, que já estavameio gelado. Sentiu-se quase a

morrer.Mas essa sensação durou apenas um instante.Achou-se logo em seguida

muitoreconfortadoejánãotevemaisnenhumcalafrio.

—Omeutrenó!Nãoseesqueçadomeutrenó!—Kaylembrou-sedele.

Então,otrenófoiatadoàscostasdeumadasgalinhasbrancasquevoavamatrás

deles.

ARainhadasNevesbeijouKaymaisumavez,eelenãosentiuqualquersaudade

dapequenaGerda,nemdaavó,nemdenenhumdosseus.

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—Agoranãovoltareiabeijar-te,poisumnovobeijoseriaatuamorte.

Kayolhouparaela.Eratãobela.Rostomaisinteligenteemaravilhosonãopodia

imaginar.Não lhe parecia já feita de gelo, como da primeira vez em que a vira

dianteda sua janela e emqueela lhe fizeraumgesto amistoso!Aos seusolhos, a

RainhadasNeveseraaperfeição.Não sentiamedoecontou-lheque sabia fazer

contasdecabeça,mesmofrações,equesabiaonúmeroderecenseadosedasléguas

quadradasquetinhaopaís.

ARainhasorriasemprequeelefalava.Kaysentiuentãoquenãoerasuficienteo

quesabia.Olhouparaograndeenegroespaçovazio.ARainhasubiu,voandocom

ele,paraládagrandenuvemnegra.

Como o vento uivava. Parecia que cantava as velhas canções. Voaram sobre

florestas e lagos, sobre mares e terras. Por baixo, o vento frio soprava, os lobos

uivavam e a neve cintilava com os corvos negros a voar e a gritar.Mais acima,

brilhavaaLua,tãograndeeclara.FoientãoqueKayviunelaalonga,longa,noite

deinverno.

Quandoodianasceu,adormeceuaospésdaRainhadasNeves.

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Terceirahistória—Ojardimdamulherque

sabiafazerfeitiços

Como se sentia a pequenaGerda, agora que Kay nuncamais chegava?Onde

estavaele?

Ninguémsabianadadele;ninguémviraporondepassara.Sóumrapazcontou

queoviraprenderoseupequenotrenóaoutro,grandeeesplendoroso,queentrara

na rua e saíra pela porta da cidade. Ninguém sabia onde ele estava. Bastantes

lágrimas correrampor causa deKay, e a pequenaGerda chorouprofundamente,

durantemuitotempo.

— Ele morreu— diziam—, deve ter-se afogado no rio que passa perto da

cidade.

Oh!Forammuitoselongosossombriosdiasdeinverno!

Finalmentevoltouaprimavera,trazendoconsigooSoleocalor.

—Kaymorreu!—diziaapequenaGerda—,partiuparasempre.

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—Eucánãoacreditonisso!—respondeuoraiodeSol.

—Elemorreu,nãovoltareiavê-lo!—diziaelaàsandorinhas.

—Nãoacreditamosqueissosejaverdade—responderam-lheestas.

Porfim,aprópriaGerdajánãoacreditavanamortedeKay.

—Voucalçarosmeusnovossapatosvermelhos—disseelanumamanhã—,uns

queKaynuncaviu,eireiaorioperguntar-lheseelesabeoqueaconteceu.

Eramuito cedo.Deuumbeijo à sua velha avó, que dormia ainda, e calçou os

sapatosvermelhos.Depois,saiusozinha.Passoupelasportasdacidadeechegouà

beiradorio.

—Éverdadequemetirasteomeupequenoirmão?—perguntouela.—Estou

dispostaadar-teosmeussapatosvermelhossemodevolveres.

Pareceu-lhequeaságuaslheacenaramcomumestranhomovimento.Pegounos

seusbonitossapatos,queeramomaispreciosobemquetinha,elançou-osàságuas.

Mas os sapatos foram cair tão perto da beira do rio que as pequenas ondas os

devolveramàmargem.Era como seo rionão lhosquisesse tirar,porquenão lhe

podia devolver o pequeno Kay. Mas Gerda julgou que não lançara os sapatos

suficientemente para longe da margem. Decidiu, portanto, meter-se num barco

queseencontravanomeiodos juncos.Foiatéàproaedelá lançounovamenteos

sapatosàágua.

O barco não estava preso àmargem.Com o impulso começou a afastar-se. A

menina,apercebendo-sedisso,tentousaltarparafora,masquandochegouàpopa

havia jámaisdeumalen1dedistânciadaterra.Eobarcocomeçouadeslizarpelo

rio,cadavezmaisdepressa.

Então,apequenaGerdaficouapavoradaecomeçouachorar.Ninguémaouvia,

anão serospardais,maselesnãoapodiam levarpara terra.Noentanto, voavam

junto damargem e cantavampara a confortar: «Nós estamos aqui!Nós estamos

aqui!»

Obarcodeslizoucomacorrente.Gerdadeixou-se ficar sentada,muitoquieta,

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apenascalçadacomassuasmeias.Ossapatinhosvermelhosflutuavamtambémnas

águas do rio, mas não conseguiam alcançar o barco, que deslizava com maior

velocidade.

Aolongodasmargensalinhavam-sevelhasárvores,desabrochavambelasflorese

brotavaumespessotapetederelvaondepastavamoscarneiroseasvacas,masnão

havianinguémàvista.

—TalvezoriomeleveatéjuntodopequenoKay—pensouGerda.

E com este pensamento sentiu-se melhor. Ergueu-se e contemplou

demoradamenteasbelas everdejantesmargens.Chegou finalmentediantedeum

cerejalondehaviaumapequenacasacomestranhasjanelasvermelhaseazuisecom

telhado de colmo. Na soleira perfilavam-se dois soldados de madeira, que

apresentavamarmasaquempassava.

Gerdachamou-osemseuauxílioporqueosjulgavavivos.Naturalmentequeeles

nãosemoveram.

Entretanto, obarco aproximou-sedamargemeGerdagritou commais força.

Então,dacasinha,saiuumaanciã.Umamulhervelha,muitovelha,queseapoiava

numbastãomuitotorto;trazianacabeçaumgrandechapéudepalha,pintadocom

asmaisbelasflores.

—Pobremenina—disseela—,comovieste,destemodo,trazidapelaságuasdo

granderio?Comofostearrastadaatétãolonge,atravésdomundo?

Avelhamulherentrounaágua,puxouobarcocomoseubastãoparaamargeme

retirouapequenaGerda.Ameninaficoucontentelogoquechegouaterrafirmee

seca.Todavia,tevealgumreceiodaestranhaevelhamulher.

—Conta-me—disse-lheesta—quemésecomochegasteaqui?

Gerdanarrou-lhetudooquesucedera.Avelhasacudiuacabeçaedisse:«Hum!

Hum!»Quandoameninaterminouoseurelato,perguntouàanciãsetinhavistoo

pequenoKay.Respondeu-lhequeelenãopassaradiantedasuacasa,masquenão

tardariaavir.Gerdanãodeviadesanimarefê-laprovarassuascerejaseadmiraras

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suas flores, que eram mais bonitas do que as que estão em qualquer livro de

imagens,poisassuasflorespodiamcontarhistórias.

Tomou a menina pela mão e foram para dentro da pequena casa. E a velha

senhorafechouaporta.

Asjanelaserammuitoaltas;asvidraçaseramvermelhas,azuiseamarelas.Aluz

dodia,quandopassavaatravésdosvidros,brilhavaestranhamente,refletindoestas

cores.Emcimadamesaencontravam-semagníficascerejaseGerdacomeuasque

lheapeteceu,poisforaautorizadaafazê-lo.

Enquanto comia as cerejas, a anciã penteou-lhe os cabelos com um pente de

ouro, fazendo-lhe bonitos caracóis, que emolduravam comouma auréola o lindo

rostodamenina,facefrescaeredonda,semelhanteaumbotãoderosa.

—Desejeidurantemuito tempo—disseavelhinha—ter juntodemimuma

doceepequenameninacomotu!Vaisvercomonosvamosdarbem!

EnquantopenteavaocabelodeGerda,esta ia-seesquecendocadavezmaisdo

seuamiguinhoKay.Averdadeéqueavelhaeraumafeiticeira,emboranão fosse

umafeiticeiramalvada;apenasfaziafeitiçosparasedistrairumpouco.Gostavada

pequenaGerdaedesejavaconservá-lajuntodesi.

Foi por isso que se dirigiu ao jardim e tocou com o seu bastão em todas as

roseiras,atémesmonasmaisviçosas.Estassumiram-senaterra,nãoficandodelas

qualquer vestígio. A velha temia que, seGerda as visse, estas lhe recordassem as

rosasdasuacasaeselembrasseentãodeKay,epartisseàsuaprocura.

Levou a menina ao jardim, que era esplêndido. Que deliciosos aromas ali se

respiravam!Floresdetodasasestaçõesdesabrochavamcomtodaapujança.Nunca,

com efeito, algum livro de imagens pudera ostentar semelhante beleza. Gerda

saltoudealegriaebrincouatéoSolseocultaratrásdascerejeiras.Aanciãlevou-a

então para casa, deitando-a numa linda cama coberta com edredões de seda

vermelha e almofadados com violetas azuis. Gerda adormeceu e teve tão belos

sonhoscomosefosseumarainhanodiadoseunoivado.

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Nodiaseguinte,voltouabrincarnomeiodasflores,beijadapelosraiosquentes

doSol.Assimpassarammuitosdias.Gerdaconheciaagoratodasasfloresdojardim.

Havia-as às centenas.Contudo,parecia-lhe,porvezes,que faltavauma.Masnão

sabiaqual.

Umdiaolhouparaograndechapéudasenhora,comasflorespintadas.Amais

bonitadetodaseraumarosa.Avelhaesquecera-sedeatirar.Nãosepodepensar

emtudo.

—Oquê?—exclamouimediatamenteGerda.—Aquinãohánenhumarosa?

Saltouporentreoscanteiroseprocurou,procurou.Pormaisqueprocurasse,não

encontrounenhuma.

Sentou-seecomeçouachorar.Assuas lágrimasquentescaíramexatamenteno

sítioondeumadasroseirastinhadesaparecido.Logoqueaterrafoiregadacomas

lágrimas da menina, uma delas irrompeu imediatamente, tão magnificamente

floridacomoquandodesaparecera.

Gerdaabraçouaroseira,beijouasrosasepensounasmaravilhosasfloresdasua

casaelembrou-sedopequenoKayjuntodelas.

—MeuDeus!Quantotempoperdiaqui!EuquepartiparaprocurarKay!Não

sabemondeelepoderáestar?—perguntouelaàsrosas.—Parece-vosqueeleesteja

morto?

—Não!Nãomorreu— responderam—, acabamos de chegar de debaixo da

terra.Éaliqueestãotodososmortoseelenãoestavalá.

— Obrigado! Muito obrigado! — respondeu Gerda. Correu para as outras

flores;detendo-se juntode cadauma, tomandonas suasmãospequeninasos seus

cáliceseperguntou-lhes:

—SabemoqueaconteceuaopequenoKay?

Mascadaflor,sobobrilhodoSol,sonhavaoseuprópriocontoouasuaprópria

história.ApequenaGerdaouviumuitos,muitoscontos.Masninguémsabianada

doKay.

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Quediziaentãoabrændlilje?3

—Ouvesotambor?Bum,bum!Sótemdoistons.Semprebum,bum!Ouveso

canto demorte dasmulheres e ouves o grito dos padres?Envolta no seu grande

mantovermelho,aviúvadohinduestánapira.Aschamascomeçamaerguer-seà

suavoltaeàvoltadocorpodomarido.Masaviúvaapenaspensanomaridovivoe

nosseusolhos,que lançavamuma luzmais fortedoqueaquelaschamas,naquele

olharquehaviaacendidonoseucoraçãoumincêndiomaisviolentoqueaqueleque

vaireduziracinzasoseucorpo.Acreditasqueachamadocoraçãopossaardernas

chamasdafogueira?

—Issoeunãoentendo—disseapequenaGerda.

Esteéomeuconto—disseabrændlilje.

Quecontouagærdesnerle?4

—Na encosta damontanha está alcandoradoumvelho castelo; a espessahera

trepapelos velhosmuros vermelhos, folha a folha, até ao varandim.Ali está uma

belajovem.Debruça-sesobreoparapeitoeolhaoestreitocaminho.Nenhumarosa

no seu ramo se reclina com tanta graciosidade, nem a flor damacieira quando o

ventoalevadaárvoreémaisairosadoqueodoceroçagardoseuvestidodeseda!

—Masentão,elenuncamaischegará?—murmuraela.

—ÉdeKayquefalas?—perguntaapequenaGerda.

—Eusófalodomeuconto,domeusonho—respondeuagærdesnerle.

—Quedizapequenasommerhvidblomme?5

—Entre os ramos, suspensa por cordas, está uma tábua.Éumbalouço.Duas

lindas rapariguinhasbalouçam-senele; os seus vestidos sãobrancos como aneve;

nosseuschapéusflutuamlongasfitasverdes.Oirmãomaisvelho,queémaiordo

queelas,empurraobalouço.Elas têmumbraçometidoporentreascordas,para

não se desequilibrarem.Com uma pequena tigela numamão e uma palhinha na

outra, o irmão faz bolas de sabão; e, enquanto o balouço vai e vem, as bolas

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multicoloreselevam-senoar.Eisqueuma,napontadapalha,seagitaaosabordo

vento. O cãozinho negro acorre e ergue-se sobre as patas traseiras; quereria

também ir para o balouço, mas este não se detém; e o cão zanga-se e ladra. As

criançasatiçam-noe,entretanto,asmagníficasbolasrebentamedissipam-se.

—Ébonitooque acabasde contar—disseGerda à sommerhvidblomme—,

masfalascomtantatristezaenãomencionasopequenoKay.

Oquecontamoshyacint?6

—Havia trêsbelas irmãs,vestidasde tule,umadevermelho,outradeazulea

terceira todadebranco.Demãosdadas,dançavamao luar,àbeiradocalmo lago.

Não eram sílfides2, eram filhas de seres humanos. O ar estava inundado de

embriagadoresaromas.As jovensdesapareceramnobosque.Operfumetornou-se

mais forte. Três caixões. Dentro deles estavam as maravilhosas raparigas,

deslizandodaflorestaparaolago.Pirilamposesvoaçavam,luzindo,comosefossem

pequenas velas a tremulezir. Asmeninas que dançavam, estão a dormir ou estão

mortas?Oaromadasfloresdiz-nosquesãocadáveres.Ossinosdobramafinados

aoanoitecer.

—Vóscausais-metristezacomavossahistória—disseapequenaGerda—,o

vossoaromaétãofortequemelevaapensarnasraparigasmortas!Ai!Opequeno

Kayestárealmentemorto?Asrosasqueforamparadentrodaterradizemquenão.

—Kling,klang—responderamoshyacint—,o sinonãodobrapelopequeno

Kay.Nãooconhecemos.Cantamosanossacanção,nãosabemosoutra.

Gerda interrogou o smørblomst7, que via desabrochar sobre o tapete verde da

relva.

—Tu brilhas como um pequeno Sol— disse-lhe ela.—Sabes onde poderei

encontraromeupequenoirmão,comquemtantobrinquei?

O smørblomst que brilhava, com efeito, sobre a relva entoou uma canção, mas

nestanãosefalavadeKay.

—Numapequenaquinta,numdosprimeirosdiasdaPrimavera,oSoldeNosso

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Senhor fazia incidir os seus raios quentes, deixando-os escorrer sobre as paredes

brancas da casa vizinha; perto daí cresceram as primeiras flores amarelas, eram

comoouroreluzindosobosraiosquentesdoSol.Cáfora,avelhaavóestavasentada

na sua cadeira. A sua neta, uma pobre e bonita criada, veio fazer-lhe uma curta

visita e beijou-a.Foi ouro, ouro do coração no beijo abençoado, ouro nos lábios,

ouronosolo,ouroláemcima,naalvoradadamanhã!

—Olha,estaéaminhapequenahistória—disseosmørblomst.

—Minhavelhaepobreavozinha!—suspirouGerda.—Sim!Ela,certamente,

sente saudades.Está triste por causademim, tal como estavapelopequenoKay,

masembreveestareideregressoelevá-lo-eicomigo.Nãoajudanadaperguntaràs

flores!Elasapenassabemoseuprópriocontoeamimnãomeinformamdenada.

Arregaçou o seu vestidinho para poder corrermais depressa,mas, ao saltar, o

pinselilje8 bateu-lhe na perna; ela parou, olhou para a alta e amarela flor e

perguntou-lhe:

—Tutalvezsaibasalgumacoisa.—Einclinou-seatéficarjuntodopinselilje.E

quedisseele?

—Consigover-meamimpróprio.Consigover-meamimpróprio.Oh!Como

cheirotãobem!

—Láemcima,numpequenoquartodeáguas-furtadas,meiodespida,estáuma

pequena bailarina.Umas vezes eleva-se num só pé e outras nos dois. Parece dar

pontapésatodoomundo,maselaéapenasumailusãoparaoolhar.Deitaáguado

buledechásobreumpanoquetemnamãoelava-o.Éumafaixa.Asseioéumaboa

coisa!Ovestidobrancoestápenduradonocabide.Tambémfoilavadocomaágua

do bule de chá e foi posto a secar no telhado. Veste o vestido e põe um lenço

amarelo-açafrão no pescoço.Destemodo o vestido parecemais branco. Como é

corajosa,comasuapernanoar!

Veja-secomoopinseliljeesticaacabeçadocaule!

—Consigover-meamimpróprio.Consigover-meamimpróprio!

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—Distonãogostonada—disseGerda.—Nãoénadaqueeuqueirasaber!

Ecorreuparasairdojardim.

Oportão estava fechado,mas empurrandoo ferrolho, cheiode ferrugem, com

todasassuasforças,fê-losairdogancho.Oportãoabriu-seeameninaprecipitou-

separafora,comospésdescalços,atravésdovastomundo.

Por três vezes sedeteveparaolharpara trás;ninguémaperseguia.Quando se

sentiumuitofatigada,sentou-seemcimadeumagrandepedra;olhouàsuavoltae

apercebeu-sedequeoVerãopassaraequeseestavaagoranofimdooutono.No

belojardim,nãosederacontadapassagemdotempo;haviasempreSoletodasas

floresdasquatroestaçõesnelesemisturavam.

—Deus! Como me atrasei!— disse para consigo.— Eis-nos já no outono!

Tenhodeirdepressa,nãotenhotempopararepousar!

Levantou-separaretomaroseucaminho;masosseuspezinhosestavamdoridos

e cansados. O tempo estava frio e agreste. As longas folhas dos salgueiros

amarelecerameahumidadepingavadelas.As folhascaíamumasatrásdasoutras.

Apenasosabrunhos-bravostinhamfrutosmascomardeseremazedoseamargos.

Comoeracinzentoepesadooaspetodomundo!

1-Alen=0,627metros.(Voltar)

2 - Elver-Sylfides. Seres em forma humana que atraem os homens para os

montes,pântanosebosques,cobiçandoassuasvidas.(Voltar)

3-Brændlilje.Latim:Liliumbulbiferum.(Voltar)

4-Gærdesnerle.Latim:Convulvolussepium.(Voltar)

5-Sommerhvidblomme.Latim:Leucojumaestivum(narcissus).(Voltar)

6-Hyacint.Latim:Hyacintusorientalis.(Voltar)

7-Smørblomst.Latim:Ranunculus.(Voltar)

8-Pinselilje.Latim:Narcissuspoeticus.(Voltar)

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Quartahistória—Príncipeeprincesa

Gerda teve novamente de parar para descansar.Naneve,mesmo à sua frente,

saltavaumagralhaqueestavaháalgumtempoaolharparaela:«crah,crah,b’dia,

b’dia!».Agralhanãosabiafalarmelhor,masestavacheiadeboasintençõescoma

menina.Eperguntou-lheondeiaela,assimsozinha,atravésdomundoimenso.

Gerda só compreendeu a palavra «sozinha», e bem que lhe sentiu o peso.

Contou-lheasuavidaeassuasaventuraseperguntou-lhesenãoviraKay.

Aaveabanouacabeçacomumargrave,erespondeu:

—Ébempossívelquesim,ébempossívelquesim.

—Como?Acreditas tê-lovisto?—gritouGerda,equasematouagralhacom

tantosabraçosebeijos.

—Juízo!Juízo!—exclamouagralha—,eupensoquepodeseropequenoKay;

nãodigomaisdoque isso.Mas, se forele,deve ter-seesquecidode ti,porquesó

pensanasuaprincesa.

—Umaprincesa?—insistiuGerda.—Elevivecomumaprincesa?

—Sim!Ouve!—respondeuagralha.—Eu tenhodificuldadeem falar a tua

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língua;tunãoésumafala-baratocomonós,asgralhas?Podiacontar-teoquesei,

muitomelhor.

—Não,nãoseiserumagralhaafalar—disseGerda.—Aminhaavósabia.Que

penaelanãomeaterensinado…

—Nãofazmal—retorquiuagralha—,voucontarcomosei,emboranãosoe

muitobem.

Ecomeçouacontaroquesesegue:

—Nestereinoondenosencontramosviveumaprincesatãointeligentequeleu

todosos jornaisdomundoeesqueceu-osdenovo.Portanto, estámesmoaver-se

queémuitointeligente.Umdia,quandoestavasentadanotrono—eissonãoétão

engraçadocomosejulga—,deu-lheparacantarolarumacantigapopular:

Porquenãoheidecasar-me?

«Olha! A cantiga faz sentido», pensou ela. Então decidiu casar-se. Mas não

queriaumdaqueleshomensquesabemtodasasrespostasquandosefalacomeles.

Nem um que apenas sabe parecer nobre, pois isso é muito aborrecido. Assim,

mandou rufar os tambores para chamar todas as suas cortesãs. Quando estas

ouviramoqueelaqueria,ficarammuitocontentes.«Gostodesaberisso.Também

penseinissonumoutrodia»,dissecadaumadelas.

—Podes crer que é verdadeira cada palavra que eu digo—disse a gralha—,

tenhoumanoivadomesticadaqueandalivrementeportodoopalácioefoielaque

mocontou.

(Naturalmente que a noiva da gralha também é gralha, pois gralha procura

gralha,oqueésempreumagrandegralha.)

— Portanto — continuou a gralha —, os jornais saíram imediatamente,

ornamentadoscomcoraçõeseomonogramadaprincesa,anunciandoquequalquer

jovemcombomaspetopodiairlivrementeaopalácioefalarcomela.Aquelequese

apresentasseefalassemelhor,elaotomariacomomarido.

—Sim!Sim!—afirmouagralha—,istoétãocertocomoeuestaraquisentada.

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As pessoas afluíram. Era um aperto e uma correria e, mesmo assim, não

conseguiramláchegarnemnoprimeironemnosegundodia.Todossabiamfalar

quandoestavamnarua,masassimquepassavamaportadopalácioeviamaguarda

vestidadeprataepelasescadasacimaoslacaiosornamentadosdeouroeentravam

nasgrandessalas iluminadasficavamsemvoz.Quando,finalmente,chegavamem

frentedotrono,ondeaprincesaestavasentada,nãosabiamsenãorepetiraúltima

palavraqueela tinhadito.E istonãogostavaaprincesadeouvir.Eracomoseas

pessoastivessemengolidorapéecaídoemsonolência.Quandovoltavamparaarua,

nessaaltura,sim,jásabiamfalar.Haviaumalongafiladesdeaportadacidadeatéao

palácio.

—Eupróprio fui lá ver— continuou a gralha—, eles ficaram esfomeados e

cheiosdesedemasdopalácionãoreceberamnemumcopodeáguamorna.Alguns,

maisprecavidos,trouxerampãocomalgumacoisaládentro,masnãoopartilharam

comosseusvizinhosdefila,poispensavam:«Deixá-losterumarfaminto.Assima

princesanãoosescolhe.»

—Mas,Kay?O pequenoKay!— perguntouGerda.—Quando chegou ele?

Estavaentreosoutros?

— Dá tempo ao tempo que agora vamos falar dele. Foi no terceiro dia que

chegouumapequenapessoa sem cavalo e sem carruagem.Dirigiu-se comumar

decidido para o palácio. Os seus olhos brilhavam como os teus. Tinha cabelos

longosemaravilhosos,masestavapobrementevestido.

— É o Kay — rejubilou Gerda, batendo as palmas. — Oh! Então agora

encontrei-o.

—Eletraziaumapequenatrouxaàscostas—disseagralha.

— Não! Creio que era o seu trenó porque, quando se foi embora, levou-o

consigo—respondeuGerda.

—Podeserqueseja—continuouagralha—,nãoolheicomatenção.Oqueeu

seipelaminhanoivadomesticadafoique,quandoeleentroupelaportanopalácioe

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viu aguarda vestidadeprata e subiu a escadaria comos lacaiosornamentadosde

ouro, não se intimidou. Acenou-lhes e disse: «Deve ser maçador ficar de pé, na

escada,prefiroirparadentro.»Quandoentrou,asalacintilava.Viuosministrose

todasasexcelências,queandavamdescalçostransportandotravessasdeouro.Uma

pessoa bem podia ficar impressionada. A cada passo, as botas rangiam-lhe

pavorosamente,maselenãoseamedrontou.

—ÉdecertezaoKay—disseGerda.—Seiqueeletinhabotasnovas.Ouvi-as

rangernasaladaavó!

—Sim,certamentequeelasbemrangeram—prosseguiuagralha.—Segurode

si,caminhouatéàprincesa,queestavasentadaemcimadeumapérolatãogrande

comoarodadadobadoura.Todasascortesãscomassuascriadasecriadasdecriadas

etodososcavaleiroscomosseusaioseaiosdosaios,queporsuavezaindatinham

umrapaz,estavamcolocadosemredor.Quantomaispertodaportaestavammais

orgulhosos se sentiam.O rapaz dos aios dos aios, que anda sempre de pantufas,

apresentava-setãovaidosoqueatécustavaolharparaele.

—Devesertãofinoqueéumhorrorver—interrompeuapequenaGerda—,e

mesmoassimoKayficoucomaprincesa!

— Não fora eu uma gralha, e teria ficado com a princesa, mesmo sendo

comprometido.Omoçodeveterfaladotãobemcomoeuquandofaloalínguadas

gralhas e estas são palavras da minha noiva domesticada. Ele foi franco e

apresentou-se bem, apesar de não ter vindo com a intenção de pedir a mão da

princesa.Vieraapenasparatomarconhecimentodainteligênciadela.Eleachou-a

bemeelatambém.

—Nãohádúvida—disseGerda—,éKay.Elesabiatantascoisas,atémesmo

resolverdecabeçacontascomfrações.Oh!Bempodiasintroduzir-menopalácio!

—Issoéfácildedizer—respondeuagralha.—Mascomoovoufazer?Talvez

falarcomaminhanoivadomesticada.Elavaiaconselhar-nos.Équeumamenina

assimdescalçanuncaterálicençaparaentrarnopalácio.

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—Euvouentrar!—disseGerda.—QuandooKaysouberqueeuestoucá,virá

imediatamentebuscar-me!

—Esperapormimjuntoaestemurodepedra.

Agralhaacenoucomacabeçaedepoisvoou.

Jáanoiteestavaescuraquandoagralhavoltou.

— Crah, crah! Trago muitos cumprimentos da minha noiva e também um

pãozinho para ti.Ela apanhou-o na cozinha.Há lámuito pão e certamente que

terásfome!Nãoépossívelentraresnopalácioassimcomospésdescalços.Aguarda

vestidadeprataeoslacaiosornamentadosdeouronãoopermitem.Masnãochores.

Vais lá chegar. A minha noiva domesticada sabe de uma pequena escada nas

traseirasquevaidaraoquartodedormiretambémsabeondeestáachave.

Agralhaconduziuameninapelagrandealamedadoparquee,domesmomodo

queasfolhasdasárvorescaíamumasapósasoutras,tambémnafachadadopalácio

asluzesseapagavamumasapósasoutras.AgralhalevouGerdaatéàportatraseira,

queestavaentreaberta.

Eracomoseestivessemafazeralgumacoisamá.Noentanto,elaqueriaapenas

saberseeraopequenoKay.«Sim,deveserele.»Epensoumuitovivamentenosseus

olhos inteligentes e no seu cabelo comprido. Podia imaginar como ele sorria tal

comoquandoestavamsentadosemcasaporbaixodasroseiras.Certamenteeleiria

ficar contente ao vê-la, ouvir o longo caminhoque ela fizerapor ele, saberquão

tristestodosficaramemcasaquandoelenãovoltou.Oh!Sentiureceioealegriaao

mesmotempo.

Subiramaescada.Haviaumapequenacandeiaacesa,porcimadeumarmário.A

gralha domesticada estava sobre o soalho, rodando a cabeça de um lado para o

outro,observandoGerda,quelhefezumavénia,comoaavólhetinhaensinado.

— O meu noivo falou muito bem de si, minha menina — disse a gralha

domesticada.—A suavita, como tambémse chama, émuito tocante.Agora,por

favor,peguenacandeia,queeuensino-lheocaminho.Nãotenhamedo,poisnão

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encontraremosninguém.

—Parece-me—dissenoentantoGerda—quevemalguématrásdenós.

Com efeito, ouviu-se um sibilar como se passassem sombras pelas paredes.

Sombras de cavalos com crinas flutuantes e pernas esbeltas. Sombras de pajens,

cavaleirosesenhorasmontadosemcavalos.

— São apenas os sonhos — disse a gralha domesticada. — Vêm buscar os

pensamentosdecaçadeSuasAltezas.Eébomqueassimseja.Destamaneirapode

vê-losdeitadosna cama.Terãomaisdificuldade emacordar epoderáobservá-los

maisàvontade.Nãomeparecenecessáriodizer-lhe,minhamenina,que,seganhar

posiçãoehonrarias,sedevemostrargrataparaconnosco.

—Issonãosediz—corrigiuonoivo,agralhadafloresta.

Chegaramaumaprimeirasala,cujasparedesestavamforradasdecetimcor-de-

rosacomfloresbordadas.Ossonhospassaramtambémporali,tãorapidamenteque

Gerda nem teve tempo de ver os pensamentos de Suas Altezas. Uma sala após

outra, cadaumamaismagnificentedoque a anterior.Sim,por certo, eranatural

ficarespantado.

Finalmente chegamaoquartodedormir.O tetopareciaumagrandepalmeira

com folhas de cristal.Nomeio elevava-seumgrosso caule de ouromaciço, onde

estavam pendurados dois leitos que pareciam flores-de-lis: um era branco, onde

repousavaaprincesa,eoutroeravermelho.EranessequeGerdadeviaprocuraro

pequenoKay.Dobrouumadasfolhasvermelhaseviuumanucamorena.

—Oh!ÉoKay.—Gerdagritoupeloseunome,segurandoacandeiaàfrentede

siparaqueeleapudesseverquandoabrisseosolhos.

Ossonhosvoltaramnumgrandegalope,trazendooespíritodojovempríncipe.

Eledespertouevoltouacabeça.

NãoeraopequenoKay!

Aúnicasemelhançaresidiananuca.Opríncipenãodeixavadeser,noentanto,

jovem e belo.Mas eis que a princesa espreita com o seu lindo rosto, através das

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flores-de-lis brancas, e pergunta quem está ali. A pequena Gerda começou a

chorar, contou toda a suahistória enão se esqueceude salientar comoasgralhas

haviamsidobondosasparacomela.

—Pobremenina!—disseramopríncipeeaprincesa,comternura.Eelogiaram

asduasgralhas,assegurando-lhesquenãoestavamzangadospeloqueelashaviam

feito, mas dizendo-lhes que não o deveriam repetir. Prometeram-lhes até uma

recompensa:

—Querem voar livremente ou preferem ser elevadas à dignidade de gralhas-

camareiras,oquevosdaráodireitosobretodososrestosdacozinha?

As gralhas inclinaram-se numa vénia e pediram para ficar como gralhas-

camareiras efetivas, pois pensaram na sua velhice e como «era tão bom haver

algumacoisaparaovelhohomem»,comocostumadizer-se.

OpríncipesaiudoseuleitoedeixouqueGerdarepousassenele.Eraoquepodia

fazerporela.Ameninajuntouasmãozinhas:

— Meu Deus ! — murmurou —, como as pessoas e os animais têm sido

bondosos comigo!—Depois fechou os olhos e adormeceu abençoadamente.Os

sonhos correrampara ela com rostos de anjos deDeus empurrandoumpequeno

trenó onde estava sentado Kay, que a olhava sorrindo. Mas isso era apenas um

sonhoe,quandoacordou,tudodesapareceu.

Nodiaseguintevestiram-naprimorosamentedeveludoedesedadacabeçaaos

pés.Aprincesapropôs-lhequeficassenopalácio,paranelepassaravidaeterbons

dias.Mas ela pediu apenas umapequena carruagem comum cavalo e umpar de

botas,pararetomarasuaviagematravésdograndemundo,embuscadeKay.

Recebeuumasbotaseumregaloparaasmãos.Quandochegouomomentode

partir,encontrounopátiodopalácioumacarruagemnova,todadeouro,brasonada

comoescudodopríncipeedaprincesaequeluziacomoumaestrela.

Nointerior,acarruagemestavaforradacombiscoitospolvilhadoscomaçúcar;a

arca da bagagem ia cheia de frutas e de broas de mel. O cocheiro, o criado e o

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trintanário1,poiselalevavatambémumtrintanário,tinhamuniformesbordadosa

ouroecoroasnacabeça,tambémdeouro.

O príncipe e a princesa vieram eles próprios ajudar Gerda a subir para a

carruagemedesejaram-lhetodaafelicidadepossível.Agralhadafloresta,queagora

estavacasadacomagralhadomesticada,acompanhou-ae instalou-senofundoda

carruagem, pois incomodava-o ir de costas.A gralha domesticada pediu desculpa

pornãopoderacompanharGerda,poisnãoseencontravabem-disposta.Desdeque

tinhadireitoa todasasmigalhasdacozinha,andava indispostadoestômago.Mas

veioatéàportinholaebateuasasasatéqueacarruagempartiu.

—Adeus,adeus!—disseramopríncipeeaprincesa.EapequenaGerdachorou

e a gralha chorou. Depressa andaram três léguas. Então a gralha da floresta

despediu-se.Foi umadespedidamuito sofrida.Vooupara cimade uma árvore e,

dali, bateu as asas negras enquanto pôde divisar a carruagem, que resplandecia

comoumverdadeiroSol.

1-Trintanário.Lacaioque vai ao ladodo cocheirona almofada da carruagem.

Monta,porvezes,oprimeirocavalo.(Voltar)

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Quintahistória—Apequenasalteadora

Passaramporumaflorestaescura,masacarruagemluziaeasualuzencandeou

ossalteadores,quenãoaguentaramvertantobrilho.

—Éouro, é ouro!—gritaram.Detiveramos cavalos,mataramo cocheiro, o

criadoeotrintanárioetiraramapequenaGerdadacarruagem.

—Comoégordinhaebonitaestamenina.Foiengordadacomavelãs—dissea

velha e feia salteadora, que tinha uma grande barba espetada e sobrancelhas

penduradasemfrentedosolhos.—Asuacarnedevesertãotenrinhacomoadeum

gordocordeirinho.Oh,comonosiremosregalar!

Ao mesmo tempo que dizia estas palavras, puxou por uma grande faca, cujo

brilhoerasuficienteparaprovocarcalafrios.

—Ai!Ai!—gritouavelha.A sua filha,queestavapenduradanas suascostas,

acabaradelhemorderaorelha.Eratãobravaemalcriadaquedavagostover.

—Grandevelhaca!—disseamãe,semtempoparamatarGerda.

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—Elatemdebrincarcomigo!—disseapequenasalteadora.—Eladar-me-áo

seu regalo e o seu belo vestido e dormirá comigo naminha cama.—Emordeu

novamenteamãe,que,comador,deuumgrandesalto.

Osbandidosriamedisseram:

—Olhacomoeladançacomasuafilhota.

—Queroentrarnacarruagem—disseafilhadossalteadores.

Tiveramde lhe satisfazer este capricho,pois ela eramimalhaediabolicamente

teimosa.PuseramGerdaaoseuladoeinternaram-senafloresta,pulandoporcima

domato.ApequenasalteadoranãoeramaiorqueGerda,masmaisforteemorenae

osseusolhosnegroseramtristes.AgarrouGerdacomforça,aoredordacintura,e

disse-lhe:

—Elesnãovãodegolar-teenquantoeunãomezangarcontigo.Seráqueésuma

princesa?

—Não— respondeuGerda.E contou tudo por que tinha passado e quanto

gostavadopequenoKay.

A filha dos salteadores olhou muito séria para ela. Acenou com a cabeça,

exclamando:

—Elesnãotematarão,mesmoqueeumezanguecontigo.Nessecaso,sereieu

própria amatar-te!—Enxugou as lágrimas que corriam dos olhos deGerda e,

depois,envolveuassuasmãosnobeloregalo,queeramuitoquenteemacio.

Finalmenteacarruagemdeteve-se:haviamchegadoaopátiodeumvelhocastelo,

que servia de refúgio aos salteadores. Estava rachado de alto a baixo. Bandos de

corvos e gralhas voavam por entre as frestas. Enormes buldogues acorreram

saltando.Tinhamumarferozetodoselespareciamcapazesdedevorarumhomem.

Nãoladravamporquelheseraproibido.

Nagrandeevelha sala, cheiade fuligem,ardia,emcimadas lajes,umagrande

fogueira;ofumoelevava-seatéaotetoeescapava-seporondepodia.Emcimada

fogueira fervia um grande caldeirão cheio de sopa; lebres e coelhos assavam no

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espeto.

— Tu dormirás comigo e com todos os meus pequenos animais — disse a

pequenasalteadora.

Comeramebeberameforamparaumcantodasalaondehaviapalhaemantas.

Por cima, empoleirados nas traves, quase uma centena de pombos parecia que

dormia. Alguns tiraram a cabeça de baixo da asa quando as raparigas se

aproximaram.

—São todosmeus—disse a pequena salteadora e, agarrandoumpelas patas,

abanou-o, fazendo-o bater as asas.—Dá-lhe um beijo!—E atirou-o contra o

rostodeGerda.

— Todos estes pombos— acrescentou ela— são mansos e aqueles dois são

pombos-torcazes.Écostumetê-losfechadosparanãofugirem,masnãoháperigo

emdeixá-lossairpeloburacoquevês,além,namuralha.Eaquiestáomeufavorito,

omeuqueridoBeh!—Etiroudeumcanto,ondeestavapresa,umarenaquetinha

em torno do pescoço uma coleira de cobre muito polida.— A esta não a posso

perderdevista,senãofogeparaoscampos.Todasasnoitesmedivirtoacoçar-lheo

pescoço com a minha faca bem afiada; parece que ela não gosta muito desta

brincadeira.

Então, tirou uma comprida faca de uma fenda da muralha e passou-a pelo

pescoçodarena.Opobreanimal,loucodeterror,puxavapelacorda,escouceavae

debatia-se, para grande regozijo da pequena salteadora.Quando se fartou de rir,

deitou-seepuxouGerdaparajuntodesi.

—Vais ficarcoma facaenquantodormes?—perguntouGerda,olhandocom

receioparaalongalâmina.

—Sim—respondeuela—,durmosemprecomaminhafaca.Nuncasesabeo

quepoderásuceder.Masconta-menovamenteoquemedissestesobreopequeno

Kay e as tuas aventuras desde que começaste a procurá-lo através do grande

mundo.

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Gerdarecomeçouasuahistória.Ospombos-torcazescomeçaramaarrulharnas

suasgaiolasenquantooutrospombosdormiamtranquilamente.

Apequenasalteadoraadormeceu,comumbraçoemtornodopescoçodeGerda,

segurandoasuafacacomamãolivre.Depressacomeçouaressonar.Gerda,porém,

não conseguiapregarolho.Via-se entre a vida e amorte.Os salteadores estavam

sentadosàvoltadafogueira,bebendoecantando.Avelhafaziacabriolas.

QuepavorosoespetáculoparaapequenaGerda!

Eisque,subitamente,ospombos-torcazesdesataramaarrulhar:

—Crrup!Crrup!VimosopequenoKay.Umagalinhabrancalevavaoseutrenó

àscostaseele iasentadonotrenódaRainhadasNeves.Voaramrasantes,sobrea

floresta onde nos encontrávamos, muito pequeninos, ainda no nosso ninho. A

RainhadasNevessoprousobrenósoseuhálitoglaciale todosmorreram,exceto

nósosdois.Crrup!Crrup!

—Oqueestaisadizeraíemcima?—exclamouGerda.—Paraondeiaessatal

RainhadasNeves?Sabemalgumacoisaaesserespeito?

Eladirigia-se,semdúvida,paraaLapónia;láhásempregeloeneve.Perguntaà

renaqueestápresaacolá.

—Sim—respondeuarena—,naLapóniahágeloenevequeéumabênção.

Como é bom viver lá! Pode saltar-se e correr livremente nos grandes vales

reluzentes!ÉaliqueaRainhadasNevestemasuacasadeverão.Oseuverdadeiro

palácio,situa-sepróximodoPóloNorte,numailhaquesechamaSpitzbergen.

—Oh!Kay,meupequenoKay!—suspirouGerda.

—Estáquieta—resmungouafilhadossalteadores—,porquesenãoenterro-te

aminhafacanabarriga.

Quando amanheceu, Gerda contou à pequena salteadora o que os pombos-

torcazes lhe tinham dito. A pequena salteadora assumiu o seu ar mais sério e,

abanandoacabeça,disse:

—Ora,querolásaberdisso,querolásaberdisso.SabesondeficaaLapónia?—

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perguntou,virando-separaarena.

—Quemmelhor do que eu o poderia saber?— respondeu o animal, com os

olhosabrilhar.—Foiláquenasciefuicriada;foialiquesalteifelizpeloscampos

cobertosdeneve.

—Escuta— disse a filha dos salteadores paraGerda—, como vês, todos os

nossoshomensseforamembora.Apenasficouaminhavelhamãe,poiselanuncasai

daqui.Mal amanhece,bebeoqueestádentrodagarrafagrandee,depois,dorme

umbombocado.Nessaalturafareiqualquercoisaporti.

Apequenasalteadorasaltoudacamaependurou-seaopescoçodamãepuxando-

lhepelobigode.

Eamãesaudou-a.

—Bonsdias,minhadocecabrita.Bonsdias.—Ebeliscoucomtalforçaonariz

dapetizaqueesteficouvermelhoeazulado.Eraamorpuro.

Maistarde,comefeito,avelhabebeudagrandegarrafaedepoisadormeceu.A

pequenasalteadorafoitercomarenaedisse-lhe:

—Eugostariadeteconservarcomigo,paratecoçaropescoçocomaminhafaca,

poisnessasalturasficasmuitoengraçada.Agoraé-meindiferente.Vousoltar-tee

deixar-tepartir,afimdequepossasregressaràLapónia.Éprecisoquemexasbem

as pernas e que leves esta menina até ao palácio da Rainha das Neves, onde se

encontrao seuamigo.Sabesbemoqueela contouestanoite,pois faloubastante

altoetuésumagrandebisbilhoteira.

A rena pulou de alegria. A pequena salteadora montou Gerda no lombo do

animal,teveocuidadodeaatarsolidamenteeatélhedeuumaalmofadaparaelase

sentar.

—Ésempreamesmacoisa,voltamosaoprincípio—disseela—,devolvo-teas

tuasbotasfelpudas,poisestámuitofrito,masoregalo,esse,ficoeucomele,porque

émuitobonito.Porém,nãoqueroquefiquescomasmãosgeladas;levasasgrandes

luvas forradas da minha mãe, que te chegam até aos cotovelos. Vá! Calça-as!

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Olhandoparaastuasmãos,atéteparecescomaminhahorrorosamãe.

Gerdachoravadealegria.

—Nãogostoquechoramingues—disse-lheapequenasalteadora—,agoraé

quedevesterumacaracontente.Tomaládoispãeseumpresunto.Assimnãoterás

fome.

Atouambasasprovisõesà rena, abriuaportae chamouosgrandescãesparaa

sala.Finalmentecortouacordacomasuafacaeordenouaoanimal:

—Correagora,mascuidabemdapequenamenina.

Gerdaestendeuasmãoscomasgrandesluvasdepeleparaapequenasalteadorae

disse-lheadeus.Arenapartiucomoumaflecha, saltandoomelhorquepodiapor

cimadomatoatravésdagrandefloresta,sobrepântanoseestepes.Oslobosuivavam

e os corvos grasnavam. Fht! Fht!, ouviu-se. Era como se o céu soltasse espirros

vermelhos.

—Sãoasminhasvelhasaurorasboreais!—exclamouarena.—Olhacomoelas

brilham!

Galopouaindamaisemais,noiteedia.Comeramospãeseopresunto.Eentão

chegaramàLapónia.

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Sextahistória—AmulherdaLapóniaea

mulherdaFinlândia

Detiveram-se junto de umapequena cabana.Eramesmomiserável.O telhado

quasetocavanaterraeaportaeratãobaixaqueafamíliaprecisavadeentrarede

sairdegatas.NãohavianinguémsenãoumavelhamulherdaLapóniaqueestavaa

cozerpeixejuntoaumacandeiadetran1.

A rena contou toda a história de Gerda, mas, primeiro, começou pela sua

própria,pensandoqueeramaisimportante.Gerdaestavadetalmodoentorpecida

pelofrioquenemconseguiufalar.

—Pobres criaturas, que infelizes vocês são—disse amulher—, e ainda têm

tanto para percorrer; pelomenos cem léguas no interior doFinnmark.É aí que

habitaaRainhadasNeves.Éaíqueelalançatodasasnoitesaurorasboreaisazuis.

Vouescreveralgumaspalavrasnumbacalhausecoporquenãotenhopapelparavos

recomendaràmulherfinlandesaquemoraacolá;elainformar-vos-ámelhordoque

eu.

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Agora queGerda já aquecera e tinha comido e bebido, a mulher da Lapónia

escreveu um par de palavras sobre um bacalhau seco e recomendou que Gerda

cuidassebemdele.

Atou-a de novo à rena, que voltou a partir veloz comouma flecha.Fth!Fth!,

ouviu-senoar.Durantetodaanoite,arderamaurorasboreaisazuismaravilhosas.

ChegaramfinalmenteaoFinnmark,ebateramnachaminédamulherdaFinlândia,

poiselanemumaportatinhanacasa.

Havia tanto calor na sua casa que amulher andava quase nua.Era pequena e

muito suja. Tirou imediatamente as roupas de Gerda, descalçou-lhe as grandes

luvas e as botas, senão amenina teria ficado sufocada com o calor. Colocou um

pedaço de gelo em cima da cabeça da rena, e depois leu o que estava escrito no

bacalhau seco. Leu-o por três vezes para decorar as palavras; depois meteu o

bacalhau na panela que estava ao lume, pois podia servir para comer. A mulher

finlandesasabiaquedeviaaproveitartudo.

A rena contouprimeiro a suahistória edepois adapequenaGerda.Amulher

pestanejouosseusolhinhosinteligentes,masnãodissenada.

—Tuéstãointeligente—dissearena—,podes,comumsimplescordel,atar

todos os ventos do mundo. Se o skipper2 desata o primeiro nó, terá bom vento;

desatando o segundo, o navio fende as vagas com rapidez; mas se se desatam o

terceiro e o quarto, então desencadeia-se uma tempestade que deita por terra as

florestas.Sabestambémfazerumapoçãocapazdedarforçaadozehomens.Não

quererás dá-la a beber a estamenina, para que ela possa lutar com aRainha das

Neves?

A força de doze homens?— perguntou amulher finlandesa.— Sim, talvez,

talvezissolhepudesseservir.

Tiroudeumaprateleiraumagrandepeleenrolada.Desenrolou-aecomeçoua

lerletrasestranhasquenelaseencontravamescritas.Eranecessáriaumatalatenção

paraasinterpretarqueamulhersuavaportodososporos.Masarenaencorajou-a

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pedindo-lhe insistentemente que auxiliasse a menina e que não a abandonasse.

Gerda olhava a também com os olhos suplicantes e rasos de lágrimas. Amulher

piscouosolhose levouarenaparaumcantoe,depoisde lhevoltarapôrgelona

cabeça,disse-lheaoouvido:

—ÉverdadequeopequenoKayestácomaRainhadasNeves.Elesente-seali

muito feliz, acha tudo a seu gosto. É, na sua opinião, o mais agradável sítio do

mundo. Isso émotivado pelo facto de ele ter no coração um estilhaço de vidro e

dentrodavistaumgrãodessemesmovidro,quelhedeformamossentimentoseas

ideias.Épreciso tirar-lhos, senãonuncamaisvoltará a serumserhumanodigno

dessenomeeaRainhadasNevesconservarátodooseudomíniosobreele.

—NãopoderásdarabeberàpequenaGerdaumapoçãoquelhedêopoderde

romperesseencantamento?

—Eunãoseriacapazdeadotardeumpodermaisfortequeaquelequeela já

possui.Nãoestásavertãograndiosaqueelaé?Nãovêsqueosanimaiseaspessoas

sãoforçadosaservi-laeque,tendopartidodescalça,atravessouventurosamenteo

grande mundo? Não é de nós que poderá receber o seu poder; ele está no seu

coraçãoevem-lhedofactodeserumacriançainocente.Senãoforcapazdechegar

atéaopaláciodaRainhadasNevesedetirardeKayosdoisfragmentosdevidro,

nãoserádenósquelhepoderávirauxílio.Devesconduzi-laatéàentradadojardim

daRainhadasNeves,queficaaduasléguasdaqui.Deixa-ajuntodoarbustocom

bagasvermelhasqueestánomeiodaneve.Nãotedemorescommuitasconversase

voltarapidamenteparacá.

E amulher finlandesa voltou a colocarGerda em cima do animal, que partiu

comoumaflecha.

—Oh!— disse amenina, sentindo o cortante frio glacial.—Não trouxe as

minhasbotasnemasminhasluvasdepele.

Masarenanãoseatreveuavoltaratrás;galopoudeumsófôlegoatéaogrande

arbusto com bagas vermelhas. Ali deixouGerda, beijando-lhe a boca. E grossas

lágrimascorreramdosolhosdovalenteanimal.Regressourápidocomoovento.

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AlificouapobreGerda,semsapatosesemassuas luvas,nomeiodoterrívele

geladoFinnmark.

Começouacorrertãodepressaquantolheerapossível.Viadiantedosseusolhos

umamultidãode flocosdeneve.Nãocaíamdocéu,queestava claroe iluminado

pelaauroraboreal.Corriam,issosim,emlinharetasobreosoloequantomaisse

aproximavammaioresficavam.

Gerdalembrou-sedosflocosqueemsuacasaexaminaraatravésdalupa.Como

eram grandes e formados com simetria! Estes eram bastantemaiores e terríveis;

estavam dotados de vida. Eram as guardas avançadas do exército da Rainha das

Neves.

Tinham as figuras mais estranhas. Uns pareciam grandes e feios porcos-

espinhos, outros estavam feitos em nós que pareciam serpentes entrelaçadas,

dardejandoas suascabeçasemtodosos sentidos,outrosainda tinhamoaspetode

pequenos ursos atarracados, com os pelos em pé. Eram todos de uma ofuscante

brancura.Eramtodosflocosdenevevivos.

Então,Gerdarezouo seupadre-nosso.Ofrioera tão intensoquepodiavero

seuhálito,que,enquantoorava,lhesaíadabocacomoumabaforadadevapor.Este

vaporfoi-setornandocadavezmaisespessoedeleseformarampequenoseclaros

anjos,que,maltocavamaterra,cresciamcadavezmais.Traziamtodoscapacetesna

cabeça e estavamarmadosde lanças e de escudos.Assimque amenina acaboude

rezaropadre-nosso,osanjosformaramumaverdadeiralegiãoemdefesadela.

Investiram contra os terríveis flocos com as suas lanças e retalharam-nos

desfazendo-os em mil pedaços. A pequena Gerda caminhou para a frente, com

convicção. Os anjos acariciaram-lhe os pés e as mãos, para que o frio os não

entorpecesse.Aproximou-serapidamentedopaláciodaRainhadasNeves.

MaséprecisoquesaibamosagoraoquefaziaKay.Naverdade,elenãopensava

sequeremGerdanemsonhavaqueelaestivessealitãoperto.

1-Tran.Óleoextraídodagorduradasbaleias,focasepeixes.(Voltar)

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2 - Skipper. Palavra nórdica que titula o comandante de uma

embarcação.(Voltar)

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Sétimahistória—Oqueaconteceunopalácioda

RainhadasNeveseoquesepassoudepois

Asparedesdopalácioeramfeitascomanevequeesvoaçavaeasportasejanelas

eramosventoscortantes.Haviamaisdecemsalas.Tudoseordenavaedesordenava

comanevequeesvoaçavasopradapelovento.Amaiorsalaestendia-sepormuitas

milhaseeramtodasiluminadaspelosclarõesdasaurorasboreais.Tudoalibrilhava

ecintilava.Tudotãogrande,tãovazio,tãofrioetãobrilhante!

Nuncahaviadivertimentosnopalácio.Nemumpequenobailedeursos-brancos,

que o som da tempestade pudesse animar e onde eles dançassem com as patas

traseirasemostrassemosseusmodoselegantes.Nuncaaliseorganizavamjogosde

salãoquepermitissemapostasseladascomvigorososapertosdemão,nemasjovens

raposasbrancassereuniamatomarcháebolinhos,comoépermitidoàsdonzelas

dascortesquetagarelamedizemmalumasdasoutras,comosucedeembastantes

reinosdesoberanos.TudoeravastoevazionograndeefriopaláciodaRainhadas

Neves.A luzdas auroras boreais flamejava com tal exatidão, que se podiaprever

quandoaumentavaediminuía.

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Nomeiodasaladeneve,vaziaeinfinita,haviaumlagogelado,cujogeloestava

cortado emmilhares de pedaços. Cada pedaço era tão semelhante ao outro que,

quandounidos,noseuconjunto,pareciamumapeçadearte.QuandoaRainhadas

Neves habitava no palácio, tinha o trono no meio do lago, que ela chamava o

espelhodainteligênciaequeeraúnicoeomelhordestemundo.

OpequenoKayestavaazuldefrio.Sim,quasenegro.Masnãoseapercebiadisso.

Comumbeijo,aRainhadasNevesarrebatara-lheapropriedadedesentirarrepios

eocoraçãodeleestavatranformadoemgelo.

Tinha nas mãos alguns desses pedaços de gelo, lisos e regulares, de que era

compostaa superfíciedo lago.Colocava-osunsao ladodosoutros, comoquando

fazemos paciências. Estava absorvido nestas combinações e procurava obter as

figurasmaisestranhasemais invulgares.Este jogochamava-seograndejogofrio

dainteligênciaeeramuitomaisdifícildoqueumquebra-cabeçaschinês.

Friamente, construía figuras surreais. Aos seus olhos, as figuras pareciam-lhe

corretasedamaiorimportância,maseraporcausadogrãodevidroquetinhano

olho.

Compunha figuras que formavam palavras escritas mas nunca conseguia

inventar a palavra que realmente queria encontrar: aEternidade. A Rainha das

Nevestinha-lhedito:

—Seconseguiresencontraressafigura,serásoteupróprioamo;dar-te-eitodo

omundoeumpardepatinsnovos.

Maselenãoeracapaz.

—Agoravouvoarparaospaísesquentes—disseaRainhadasNeves.—Tenho

deirverosgrandescaldeirões(eramasgrandescraterasdosvulcõesEtnaeVesúvio,

comosãochamados),tenhodeircaiá-loscomumpoucodeneve.Obrancoficabem

comoslimõeseasuvas,napartemaisquente,láembaixo.

EaRainhadasNevesvooupelosares.Kayficousónagrandesaladegelocom

várias milhas quadradas, olhando para os pedaços, imaginando, combinando,

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congeminandocomoospoderiadisporparaatingiroseuobjetivo.Estavaaliparado

eabsorto;pareciapetrificadopelogelo.

FoinessaalturaqueapequenaGerdaentrounopaláciopelograndeportão.Os

ventos cortantes impediam-lhe a entrada.Gerda rezou o seu padre-nosso e eles

acalmaram e desvaneceram-se. A menina entrou nas grandes e frias salas vazias.

EntãoviuKay,reconheceu-oecorreunasuadireção,saltando-lheparaopescoço.

Mantendo-obemapertado,exclamou:

—Kay!QueridopequenoKay,finalmente,encontro-te!

Elecontinuousentado,rígidoegelado.EntãoapequenaGerdachoroulágrimas

quentesquecaíramsobreopeitodeKay,penetrandonoseucoraçãoefundindoo

gelo,demodoqueocruelestilhaçodevidrofoilevadopelogeloderretido.

Kay ergueu a cabeça e olhou para ela. Gerda cantou, como outrora no seu

jardinzinho,oestribilhodacanção:

Asrosascrescemnosvales.

LácomungamoscomoMeninoJesus!

Kayrompeuemsoluços.Aslágrimasjorraram-lhedosolhoseopedaçodevidro

saiuarrastadoporelas.ReconheceuGerdae,cheiodealegria,exclamou:

—Querida,pequenaGerda,ondeficastedurantetantotempo,eeu,ondetenho

estado?

Olhouàsuavolta:

—MeuDeus,comofazfrioaqui!Equepavorosovazio!

Apertou-secomtodasassuasforçascontraGerda,queriaechoravadealegria.

Era tudo tão abençoadoque até os fragmentos de gelo dançavamà volta deles e,

quandosecansaram,colocaram-seexatamentenaformadasletrasqueaRainhadas

NevestinhaditoparaKaydescobrir,compondoapalavraEternidade,queiriadara

Kayaliberdade,omundointeiroeopardepatinsnovos.

GerdabeijouasfacesdeKayeelasvoltaramatercor.Beijou-lheosolhos,que

retomaramo seu brilho cintilante, e asmãos e os pés, onde a vida renasceu.Kay

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voltouaserumbonitorapazcheiodesaúdeedealegria.ARainhadasNevespodia

agora voltar, pois a carta de liberdade estava escrita compeças de gelo brilhante.

Deramasmãosesaíramdopalácio.

Falaramdaavó,dasuainfância,dasrosasedojardinzinhosobreostelhados.À

suaaproximação,osventosacalmarameoSolsurgiu.Tendochegadoaoarbustode

bagasvermelhas,encontraramarena,queosesperava,acompanhadaporumaoutra

jovemrena e cujas tetas estavamcheias: deramo seu leitequente aospequenos e

beijaram-nosnaboca.EntãolevaramKayeGerdaatéàcasadamulherfinlandesa,

onde se aqueceram, e, em seguida, à casa damulher daLapónia, que lhes coseu

novasroupasearranjouparaelesoseutrenó.

Asduasrenasacompanharam-nos,saltitando,atéàfronteiradoseupaís,láonde

brotava a primeira verdura. Kay e Gerda despediram-se da bondosa mulher da

Lapóniaedasduasrenasqueoshaviamconduzidoatéali.Asárvorescomeçavama

vestir-sedeverdeeasavesacantar.

De repente, viram sairda floresta,montadanummagnífico cavalo,queGerda

reconheceu(poiseraoqueestiveraatreladoàcarruagemdeouro),umajovemque

usava um gorro vermelho. Ao lado da sela pendiam pistolas. Era a pequena

salteadora. Fartara-se da vida em casa e partia para oNorte e, em seguida, para

outraqualquerdireção,casolánãoencontrassedivertimento.

ReconheceuimediatamenteGerda,quetambémareconheceulogo.Aquiloéque

foiumaalegria!

—Tuésmesmoumgrandepalerma, vadiandodeum ladoparaooutro, sem

pensar nas tuas obrigações — disse para Kay a pequena salteadora. — Só me

perguntosemerecesquehajaalguémquecorraatéaofimdomundoportuacausa.

Gerda acariciou-lhe as faces e, para desviar a conversa, perguntou-lhe o que

sucederaaopríncipeeàprincesa.

—Viajampeloestrangeiro—respondeuafilhadossalteadores.

—Easgralhas?

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—Adosbosquesmorreueadomesticadaéviúvaeandacomumpedaçodefio

delãpretaàvoltadaperna.Elalamenta-sequeéumatristeza,mastudonãopassa

de uma farsa!Mas conta-me as tuas aventuras e como conseguiste apanhar este

fugitivo.

GerdaeKaynarraram,cadaumporsuavez,assuasaventuras.

—Snip-snap-snurre-basselurre!—disseapequenasalteadoraeestendeu-lhesa

mão. Prometeu visitá-los se passasse pela cidade onde viviam. E retomou a sua

viagempelograndemundo.

Kay e Gerda continuaram a caminhar de mãos dadas; a primavera nascia,

magnífica, trazendo consigo a verdura e as flores.Umdia ouviramo repicar dos

sinos e reconheceram as altas torres da grande cidade ondemoravam. Entraram

nela, subiramasescadasdacasa,para iremtercomaavó.Noquarto, tudoestava

nos mesmos lugares, como outrora. O relógio de parede fazia tiquetaque e os

ponteirosrodavam;mas,aotransporemaporta,descobriramquehaviamcrescido,

quesetinhamtornadopessoasadultas.

As rosas do algerozhaviamdesabrochadopara dentro das janelas abertas.E lá

estavam os dois pequenos banquinhos. Kay eGerda sentaram-se neles, de mãos

dadas, como nos outros tempos. Tinham esquecido, como se de um pesadelo se

tratasse,osfriosesplendoresdaRainhadasNeves.Aavóestavasentadasobobrilho

doSol deDeus e lia aBíblia: «Se não fordes como as crianças, não entrareis no

ReinodosCéus.»

Kay e Gerda olharam-se e compreenderam melhor do que nunca o velho

estribilho:

Asrosascrescemnosvales.

LácomungamoscomoMeninoJesus!

Permaneceramdurantemuitotemposentados,dandoasmãos.Tinhamcrescido

e,apesardisso,continuavamasercrianças,criançasnosseuscorações.

Eraverão.

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Overãoquenteeabençoado.

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AHistóriadeUmaMãe

Estavaumamãesentadajuntodasuapequenacriança,tãoaflitaereceosadeque

elaviesseamorrer.Omeninomostrava-setãopálido,ospequenosolhostinham-se

fechado,respiravalentamenteedevezemquandocomumaaspiraçãofunda,como

quesuspirava,eamãeolhavacadavezmaisangustiadaparaapequenaalma.

Bateram então à porta e entrou um pobre velho envolvido como que numa

grandemantadecavalo,poisestaaquece,ebemprecisavaeledela,jáqueestavaum

inverno frio.Lá fora estava tudo coberto de gelo e neve e o vento soprava de tal

modoquecortavaorosto.

Como o velho tremia de frio e o menino dormia por um momento, a mãe

afastou-se,deitoucervejanumpúcaroepô-lanofogãoaaquecerparaovelho.Este

sentou-seecomeçouaembalaroberço,entretantoamãepuxouumacadeirapara

junto dele e ficou sentada a olhar para o filho doente, que respirava tão fundo,

levantando-lheapequenamão.

—Nãocrêsbemqueficareicomele?—perguntouela.—Deusnãoirátirar-

mo!

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Ovelho,queeraaprópriaMorte,acenoucomacabeçatãoestranhamente,que

tantopodiaquererdizer sim comonão.E amãepousouos olhosno regaço e as

lágrimascorreram-lhepelaface.Acabeçapesava-lhe.Durantetrêsnoitesetrêsdias

nãofecharaosolhos,entãodeixou-sedormir,massóummomento,poislogodeu

umpulo,levantando-seatremerdefrio.

—Queé isto?—disse,olhandopara todosos lados.Ovelhodesapareceraeo

meninotambém.Levara-oconsigo.Lánocanto,orelógioantigozuniuezuniu,o

pesograndedechumbofoiescorregandoatéaochão,Pum!Eassimficoutambém

silencioso.

Apobremãesaiudecasaacorrer,chamandopelofilho.

Cá fora, no meio da neve, estava sentada uma mulher com um vestido preto

compridoquedisse:

—AMorteestevenatuacasa,bemavi.Saiuatodaapressacomatuacriança.

Corremaisvelozdoqueoventoenuncadevolveoqueleva!

—Diz-mesóquecaminhotomou!—retorquiuamãe.—Diz-meocaminho,

queeuaacharei!

—Seiquecaminhotomou!—respondeuamulherquevestiadepreto.—Mas

antes de dizer-to tens de cantar-me todas as canções que cantaste ao teu filho!

Gostodelas,jáasouvi.SouaNoite,viastuaslágrimasquandoascantavas!

—Cantá-las-eitodas,todas!—respondeuamãe.—Masnãomeretenhas,para

quepossaacharomeufilho!

No entanto, aNoite ficoumuda e queda. Amãe, torcendo asmãos, cantou e

chorou;erammuitasascanções,masaindamaisaslágrimas.EaNoitedisseentão:

—Meteàdireitaeentranoescurobosquedeabetos,foiaíqueviaMortetomar

caminhocomatuacriança!

No fundo do bosque os caminhos cruzavam-se e ela já não sabia por onde ir.

Haviaaíumespinheiro,semfolhasnemflores—estava-senoinverno—eageada

caía-lhedosramos.

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—NãovistepassaraMorteporaquicomomeufilho?

—Claro que vi!— observou o espinheiro.—Mas não te digo que caminho

tomousemprimeiromeaqueceresnoteucoração!Tenhoumfriodemorte,estoua

ficarcompletamentegelado!

Ela apertou o espinheiro contra o peito, bem apertado, para poder aquecê-lo

bem,eosespinhosentraram-lhenacarneeosanguecorreu-lheemgrandesgotas.

Doespinheiro,porém,rebentaramfrescasfolhasverdesebrotaramfloresnaquela

noitefriadeinverno,tantocalorhavianocoraçãodeumamãeaflita.Eoespinheiro

indicou-lheocaminhoquedeviaseguir.

Chegouentãoaumgrandelago,ondenãohavianembarconembarcaçaparao

atravessar. Não estava suficientemente gelado para que pudesse aguentar-lhe o

peso,nemabertoebaixoosuficienteparapassaravau,mastinhadeatravessá-lo,se

queriaencontrarasuacriança.Deitou-se,então,naterra,parabeberolago,oque

eranaturalmente impossívelparaum serhumano,mas amãe, aflita,pensavaque

podiadar-seummilagre.

—Não,assimnuncaconseguirásnada!—disseo lago.—Vamosverantes se

chegamosaacordo!Gostodecolecionarpérolaseosteusolhossãoosmaisclaros

que já vi. Se chorares até osperderesparamim, levar-te-ei à grande estufa onde

viveaMorte,cultivandofloreseárvores.Cadaumadelaséavidadeumhumano.

—Oh!Oquenãodoueuparachegaraomeufilho!—exclamouamãe,exausta

de chorar; mas chorou ainda mais e os olhos caíram no fundo do lago,

transformando-seemduaspérolaspreciosas.

O lago, então, levantou-a comonumbaloiço e num só impulso ela voou até à

outramargem.Haviaaíumacasaestranhacomaextensãodemilhas.Nãosesabia

seeraummontecombosqueecavernas,ouseassimforaconstruída,masapobre

mãenãoapodiaver,tinhaperdidoosolhosachorar.

—OndeachareiaMortequelevouomeufilho?—perguntouela.

—Aindacánãochegou!—respondeuaVelhaMulherqueguardaasCampas,

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que tomava conta da grande estufa daMorte.—Como achaste o caminho para

aquiequemteajudou?

—FoiNossoSenhorquemmeajudou!Eleémisericordiosoetutambémserás!

Ondeachareiomeufilho?

—Não sei como ele é—disse a velha—e tunãopodes ver.Muitas flores e

árvoresmurcharam esta noite.AMorte deve estar a chegar para transplantá-las!

Tubemsabesquecadaserhumanotemasuaárvoreouasuaflordavida,conforme

estádestinado a cadaum.Assim, como se veem, são iguais às outrasplantas,mas

têm bater de coração. Os corações das crianças também batem! Procura, talvez

reconheçasodatuacriança.Masoquemedássetedisseroquetensdefazer?

—Nada tenho para dar— respondeu a mãe—, mas irei por ti ao fim do

mundo!

—Bem,nofimdomundonadatenhoafazer—disseavelha.—Maspodesdar-

meo teu longocabelonegro.Tubemsabes,ébonitoegostodele!Receberásem

trocaomeucabelobranco,sempreéalgumacoisa!

—Senãoqueresmaisnadadoque isso—pronunciouamãe—,dou-to com

prazer!

Eassimlhedeuoseubelocabelo,recebendoemtrocaobrancodenevedavelha.

Entraram depois na estufa grande da Morte, onde flores e árvores cresciam

estranhamente umas entre as outras.Havia jacintos delicados sob campânulas de

vidro e lá estavam peónias grandes e vigorosas. Cresciam aí plantas aquáticas,

algumasmuitofrescas,outrasmeiodoentes.Nelasestavampousadascobras-d’água

e caranguejos pretos apertavam-lhe os pés.Havia palmeiras, carvalhos e plátanos

magníficos, salsa e tomilho florescente. Cada árvore e cada flor tinha um nome,

cadaumaeraumavidahumana.Aspessoasviviamainda,tantonaChinacomona

Gronelândia, emqualquerpontodomundo.Haviaárvoresgrandesempequenos

vasos, tãooprimidasque estavamprestes a rebentá-los,havia tambémemmuitos

lugaresumaflorzinhainsignificanteemterragorda,commusgoàvolta,cobertae

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tratadacomcuidado.Amãe,aflita,contudo,curvava-sesobretodasasplantasmais

pequenas e escutava comobatia o coraçãohumanodentrodelas e, entremilhões,

reconheceuodoseufilho.

—Éeste!—gritou,estendendoamãosobreumaçafrãozinhoazulquependia

paraumlado,bastantedoente.

—Nãotoquesnaflor!—disseavelha.—MasficaaquiequandoaMortevier…

Esperoporelaatodoomomento…Nãoadeixesarrancaraplantaeameaça-aaté

defazeresomesmoàsoutrasflores,queelaficaráreceosa!Temderesponderpor

elasaDeus,nenhumapodeserarrancadasemEleprimeirodarautorização.

De súbito perpassou uma aragem gelada pela estufa e amãe cega pôde assim

aperceber-sedequeeraaMorteachegar.

— Como encontraste o caminho para aqui? — perguntou esta. — E como

conseguistechegarmaisdepressadoqueeu?

—Soumãe—respondeu.

AMorteestendeualongamãoparaaflorzinhadelicada,masamãemanteveas

mãos firmes à volta desta, bem de perto, receosa, contudo, de tocar na mínima

pétala.EntãoaMortesoprou-lhenasmãoseelasentiuqueessesoproeramaisfrio

doqueofriodovento,easmãoscaíram-lhedesfalecidas.

—Comovês,nadapodescontramim!—disseaMorte.

—MasDeuspode!—redarguiuamãe.

—EusófaçooqueElequer!—sentenciouaMorte.—SouoSeujardineiro!

Pego em todas asSuas flores e árvores e transplanto-aspara ogrande Jardimdo

Paraísonopaísdesconhecido,mascomoaícrescemecomoéaí,nãoousodizer-te!

—Devolve-meomeufilho!—pediuamãe,chorandoeimplorando.Desúbito

estendeuambasasmãossobreduasbelasfloresegritouparaaMorte:

—Arrancotodasastuasflores,poisestoudesesperada.

—Nãolhestoques!—exclamouaMorte.—Dizesqueésmuitoinfelizeagora

querestornaroutramãeigualmenteinfeliz!…

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—Outramãe?—inquiriuapobremulher,logoretirandoasmãosdasflores.

—Aquiestãoosteusolhos—disseaMorte.—Pesquei-osnolago.Brilhavam

tanto!Nãosabiaqueeramteus,toma-os,agorasãomaisclarosdoqueantes.Olha

agoraparaofundodessepoçoaí.Voudizer-teosnomesdasduasfloresquequerias

arrancareverástodooseufuturo,todaasuavidahumana.Observaoquequerias

perturbaredestruir!

Amãeolhouentãoparaofundodopoço.Viucomoumasetornavaumabênção

paraomundo,quantafelicidadeealegriaespalhavaàsuavolta.Depoisviuavidada

outra,etudoeratristezaemiséria,horroredesgraça.

—AmbassãoavontadedeDeus—disseaMorte.

—Qualéaflordadesventuraequaladaventura?—perguntouamãe.

— Isso não te digo— respondeu aMorte—,mas saberás demim que uma

dessasfloreseraadoteufilho.Foiodestinodelequeviste,ofuturodatuaprópria

criança!

Entãoamãegritouaterrorizada:

—Qualdelaseraomeufilho?Diz-mo!Salvao inocente!Salva-odetodaessa

desgraça!Leva-oantes!Leva-oparaoreinodeDeus!Esqueceasminhaslágrimas,

esqueceasminhassúplicasetudooquedisseefiz!

—Nãotecompreendo!—observouaMorte.—Queresquetedevolvao teu

filhooudevolevá-loparalá,paraesselugarquenãoconheces?

Entãoamãe,torcendoasmãos,deixou-secairdejoelhoserogouaDeus:

—Nãomeoiças, sesuplicocontraaTuaVontade,queé justa!Nãomeoiças!

Nãomeoiças!

E inclinouacabeçaparao regaço.EaMortepartiucomacriançaparaopaís

desconhecido.

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APrincesaeaErvilha

Era uma vez um príncipe que queria casar com uma princesa, mas com uma

princesaque fosse verdadeira.Viajoupor todoomundo àprocuradeumaqueo

fosserealmente,masemtodasasqueencontroudescobriusemprealgoquenãolhe

agradava.Princesashaviamuitas;mas,quantoaconsiderá-lasverdadeiras,nãofora

capazdedecidir.Haviasemprealgumacoisaquenãoeradeumaprincesagenuína.

Regressou à pátria, muito triste, pois desejava, deveras, casar com uma princesa

verdadeira.

Uma noite estalou uma tremenda tempestade. Relampejava e trovejava, e caía

chuvaqueDeus adava!Erahorrível!Então, alguémbateuàportada cidadeeo

velhoreiveioabri-la.

Eraumaprincesaqueestavaláfora.Mas,SantoDeus,emqueestadoatinham

posto a chuva e o mau tempo! A água escorria-lhe dos cabelos, sobre a roupa,

entrando pela biqueira e saindo pelo calcanhar. Era uma verdadeira princesa,

declarouela.

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—Está bem, em breve o saberemos!—pensou a rainha velha, que, contudo,

nada disse. Dirigiu-se ao quarto de hóspedes, tirou a roupa da cama, pôs uma

ervilhasobreastábuasdoleito,edepois,colocouvintecolchõesporcimadaervilha

esobreestesaindamaisvinteedredões.

Eraaíquenessanoiteaprincesairiadormir.

No outro dia de manhã perguntaram-lhe se havia dormido bem. — Oh,

terrivelmente mal!— respondeu a princesa.—Quase não preguei olho toda a

noite!SabeDeusoquetinhaacama!Estivedeitadasobrequalquercoisaduraque

meencheuocorpodenódoasnegras!Foiumanoitehorrível!

Orei,arainhaeoprópriopríncipepuderamdestemodoverificarquesetratava

deumaverdadeiraprincesa.Naverdade,sóumagenuínaprincesapodiaserassim

tãosensível.

O príncipe tomou-a, então, por esposa, pois tinha agora a certeza de ter

encontrado uma princesa de verdade, e a ervilha foi colocada nummuseu, onde

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aindapodeservista,seninguématiroudelá.

Poisestaétambémumahistóriaverdadeira!

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ABorboleta

A borboleta queria uma noiva e, naturalmente, pretendia a mais bonita das

florzinhas.Olhouparacadaumadelas.Estavamsilenciosasemuitodiscretasnoseu

caule,conformeconvémajovensdonzelascasadoiras.Mas,comoerammuitas,era

muitodifícilescolher.

Então a borboleta voou para junto da menina malmequer. Os franceses

descobriramqueestaflorpossuiodomdaprofecia.Osnamoradosarrancam-lheas

pétalas uma a uma, fazendo perguntas sobre o parceiro: «Gosta de mim?»,

«Pouco?»,«Muito?»,«Nada?».Cadapessoafazasperguntasnasuapróprialíngua.

Aborboletatambémainterrogou,masemvezdelhearrancaraspétalas,beijou-as

umaauma,poisacreditavaqueagentilezadámelhoresresultados:

—Docemalmequer!Ésamulhermais inteligentede todasas flores.Diz-me,

devoescolherestaouaquelaflor?Qualdelasdevoescolherparanoiva?Assimque

meresponderes,voareinasuadireçãoepedi-la-eiemcasamento.

Masameninamalmequernãodisseumapalavra.Ficouaborrecidaporquelhe

tinham chamado «mulher», sendo ela solteira e, ainda por cima,muito jovem. A

borboleta fezaperguntaumaeoutravezmas,comonãoobteveresposta,acabou

por desistir e voou para longe disposta a encontrar uma noiva sem a ajuda de

ninguém.

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Estava-se no começo da primavera; as campainhas brancas e os açafrões

floresciamportodoolado.

—Sãomuitobonitas—disseaborboleta—masmuitojovens.

Preferiameninasmais velhas, como acontece com amaioria dos rapazesmais

novos.Voou para junto das anémonas,mas achou-as um pouco secas demais. As

violetaseramdemasiadoromânticaseastúlipasdemasiadoalegres.Oslírioseram

muitoplebeus,asfloresdetíliaerammuitopequenase,alémdisso,tinhammuitas

irmãs.Écertoqueasfloresdemacieirapareciamrosas,masfloresciamnumdiae

caíamnoseguinte,levadaspelovento.Seriaumcasamentodemasiadobreve.

A florquemais lhe agradou foi ada ervilhade cheiro.Eravermelhaebranca,

fina e delicada; pertencia à categoria das raparigas caseiras que são bonitas e, ao

mesmotempo,sabemcozinhar.

Iapedi-laemcasamentoquandoviuaseuladoumavagemdeervilhacomuma

flormurchanaponta.

—Queméesta?—perguntou.

—Éminhairmã—respondeuaervilhadecheiro.

—Oh!Énissoquetetransformarás!

Assustadacomaideia,aborboletavoouparalonge.

Amadressilva floresciapelasencostas.Haviamuitas,comfacesredondasepele

amarela. Não gostou da espécie. Sim, mas afinal de contas, de quem é que ela

gostava?

Boapergunta!

A primavera passou e o verão também.Chegou o outono e a borboleta estava

longe de se decidir. As flores estavam agora mais bonitas, usando roupagens

coloridas,masdequelhesserviam?Faltava-lhesafrescuraeoaromadajuventudee

é precisamente por essa fragrância que o coração anseia quando se envelhece.As

dáliasnãopossuemqualqueraromaemparticulare,porisso,aborboletafoivera

hortelã.

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—Na verdade não tem flores,mas toda ela é uma flor, perfumada dos pés à

cabeça,comumdocearomaemcadafolha.Sim,éelaquedesejo.

E,finalmenteaborboletapediu-aemcasamento.

Porém,ahortelãficourígidaecalada.Porfim,respondeu:

— Seremos amigos, se quiseres,mas nadamais. Sou velha e tu também o és.

Podemos viver umpara o outro,mas casar, não.Não façamos figura de tolos na

nossaidade.

E foi assimqueaborboleta ficou solteira.Tinhahesitadodemais,oquenãoé

sensato.Aborboleta«ficouparatia»,comosecostumadizer.

Ooutono ia jáavançadoeovento friovergavaos troncos trémulosdospobres

salgueiros, fazendo-os estalar.Quando o tempo está assim, não é nada agradável

voaremtrajedepasseio.Masaborboletanãovoavapeloscampos.Pormeroacaso

tinha entrado numa sala que tinha a lareira acesa. O ar estava tão quente que

pareciaverão.Porisso,conseguiumanter-seviva.

—Manter-mevivaapenas,nãochega—pensavaaborboleta.—Faz-mefaltao

brilhodoSol,aliberdadeeumaflorzinhaparaamar.

Então voou contra o vidro da janela. As pessoas viram-na, admiraram-na,

espetaram-lheumaagulhae juntaram-naàcoleçãodeborboletas.Foi tudooque

puderamfazerporela.

—Agora estou assente num caule, tal como as flores— disse a borboleta.—

Não é muito agradável. É tal e qual como o casamento: está-se firmemente

agarrado.

Aborboletaconsolava-secomestepensamento.

—Pobreconsoloodela!—murmuraramasfloresdosvasosdasala.

—Nãomepossofiarnaopiniãodasfloresdosvasos—pensouaborboleta.—

Convivemdemasiadocomossereshumanos.

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OBule

Era uma vez um Bule muito orgulhoso. Orgulhoso por ser de porcelana,

orgulhoso do seu longo bico e orgulhoso da sua asa bojuda. Tinha o bico à sua

frenteeaasaatrásdesi.Eraacercadosdoisquefalavasemparar.

Nuncafalavada tampaqueestavapartidaecolada,ouseja,queeradefeituosa.

Ninguémgostadefalardosseusdefeitos,bastaqueosoutrosofaçampornós.

Aschávenas,aleiteiraeoaçucareiro—numapalavra,todooserviçodechá—

pensavammuitomaisnosdefeitosda tampa e falavammuitomais acercadelado

queacercadaasarobustaedobicotãodistinto.

OBulesabiaqueassimera.

«Conheço bem osmeus defeitos— disse o Bule para com os seus botões.—

Reconheço-os e admito-os. Penso que é nisso que reside aminha humildade e a

minhamodéstia.Todostemosmuitosdefeitos,mastambémtemosvirtudes.

Aschávenastêmasas,oaçucareirotemumatampa.Maseutenhoasduascoisas

e,alémdisso,possuoaquiloquenenhumdelesjamaisterá—umbico—eéporsua

causaquesouoreidamesadechá.

A função do açucareiro e da leiteira é servir iguarias,mas sou eu que impero.

Repartobênçãospelahumanidadesedenta.Nomeuinterior,asfolhaschinesasdão

saboràáguaquenteeinsípida.»

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EraassimqueoBule falavanos temposdasua juventude.Estavasobreamesa

posta para o chá e foi levantado por mãos delicadas. Mas as mãos delicadas

revelaram-se muito desajeitadas. O Bule caiu no chão, o bico quebrou-se, a asa

partiu-seedatampanemsefalaporquejásedissetudooquehaviaadizersobre

esseassunto.

O Bule jazia desmaiado no chão, deixando escorrer do seu interior a água a

ferver. Foi um rude golpe. O pior foi que toda a gente se riu dele e da mão

desajeitadaqueodeixaracair.

«Nuncameesquecereidessedia!—diziaoBulequando,maistarde,falavacom

osseusbotõesacercadopassado.—Chamaram-me inválidoepuseram-meaum

canto.Nodiaseguintederam-meaumamulherqueveiomendigarumpoucode

comida.Caínamiséria,tãoinútilpordentrocomoporfora.

Foientãoquecomeçouparamimumavidamelhor.Começa-seavidasendouma

coisaederepentepassa-seaseroutrabemdiferente.

Encheram-medeterra,oqueparaumBuleéomesmoqueserenterrado,ena

terraplantaramumbolbodeflor.Quemopôsláemoofereceu,nãoseidizer.Foiaí

plantado,substituindoasfolhaschinesas,aáguaaferver,aasaeobico.

O bolbo ficou na terra, dentro de mim, tornando-se o meu coração, o meu

coração cheio de vida, coisa que nunca tinha possuído antes.Havia vida nomeu

interior,haviaenergiaepoder.Palpitava.Obolbogerminou,libertoupensamentos

e sentimentos que brotaram numa flor. Vi-a, sustentei-a e esqueci-me de mim

próprioperanteasuabeleza.

Éumabênçãoesquecermo-nosdenósprópriosevivermosparaosoutros.Não

me vangloriei, nem sequer pensei em mim. Todos a admiravam e eu sentia-me

honrado.

Umdiadisseramqueaflormereciaumvasomelhor.Partiram-meemdois,—

que dor! — plantaram-na noutro vaso e atiraram-me para o pátio onde me

encontroquebradoemmilbocados.Masconservoestarecordação,eninguémma

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podetirar!»

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OCaracoleaRoseira

Emredordojardimcresciaumaneldeaveleiras.Paraalémdelasestendiam-seos

camposeospradosondepastavamovelhasevacas.Nocentrodojardimcresciauma

roseiracarregadaderosase,àsuasombra,viviaumcaracolquetinhamuitodentro

desi—nomeadamente,tinha-seasipróprio.

—Paciência!—diziaocaracol.—Hádechegaraminhahora.Fareimuitomais

doquedarrosasouavelãs,muitíssimomaisdoquedarleitecomofazemasvacase

asovelhas.

— Espero muito de ti — disse a roseira. — Posso perguntar-te quando me

mostrarásoqueéscapazdefazer?

—Calma!—respondeuocaracol.—Andassempreapressada.Nãoéassimque

sepreparamasboassurpresas.

Um anomais tarde, o caracol estendia-se ao sol quase no mesmo lugar onde

estiverano ano anterior, enquanto a roseira se afadigava a criar novos botões e a

mantertodasasrosasfrescaseluzidias.Ocaracolpôsmeiocorpoforadacarapaça,

estendeuospauzinhosevoltouarecolhê-los.

—Nada de novo— disse. —Não se vislumbra progresso algum. A roseira

continuaatratardassuasrosaseissoétudooquefaznavida.

Passou o verão e chegou o outono. A roseira continuou a dar novos botões e

novasrosas.Porfim,anevecomeçouacaireotempoficouhúmidoefrio.Aroseira

dobrou-sesobreaterraeocaracolescondeu-senosolo.

Começouumnovoanoeasrosasvoltaramaflorireocaracolvoltouasair.

— Já és uma velha roseira— disse o caracol.—Deves apressar-te emorrer,

porquejádesteaomundotudooquepodiasdar.Seissotevealgumvalorécoisaem

queaindanãotivetempodepensar.Masoqueécertoéquenãofizestenadapara

progredirespessoalmente.Caso contrário, terias feitonasceroutras flores.Oque

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tensadizersobreisto?Embreveserásapenasumtroncoseco.Compreendesoque

teestouadizer?

—Estásaassustar-me!—respondeuaroseira.—Nuncapenseinisso.

—Não,nunca te deste ao trabalhodepensar.Alguma vez te interrogastepor

que razão florescias e como florescias? E porque o fazias dessa forma e não de

outra?

—Não—respondeuaroseira.—Ficavafelizaofazê-loenãoopodiaevitar.O

sol era tão quente e o ar tão refrescante!... Bebia o límpido orvalho e a chuva

generosa.Respirava,vivia.Aminhaforçaprovinhadointeriordaterraetambémdo

ar.Sentia uma felicidade sempre renovada, intensa e, por isso, tinhade florescer.

Eraessaaminhavida.Nãopodiafazeroutracoisa.

—Tivesteumavidademasiadofácil—disseocaracol.

—Éverdade—concordouaroseira.—Davam-metudo.Mastutivesteainda

maissortedoqueeu.Fosteumadessascriaturasquepensammuito,umdessesseres

tremendamenteinteligentesquesepropõemdeslumbraromundo.

—Não,não,demodonenhum—negouocaracol.—Omundonãoexistepara

mim. Que tenho eu a ver com ele? Já é suficiente que me ocupe comigo e só

comigo.

—Mas não devíamos todos nós dar aos outros o melhor de nós próprios? É

verdadequesótedeirosas;mastu,queéstãodotado,oquedesteaomundo?Oque

podesdar-lhe?

—Dar-lhe?Daraomundo?Cusponomundo!Paraque serveomundo?Não

significanadaparamim.Anda,continuaacultivarastuasrosas.Sóservesparaisso.

Deixaqueoscastanheirosproduzamosseusfrutos,queasvacaseasovelhasdeem

oseuleite.Cadaumtemoseupúblicoeeutenhotambémomeudentrodemim

mesmo.Recolho-menomeuinterioreaíficarei!Omundonãomeinteressa.

Dizendoisto,ocaracolmeteu-sedentrodasuacarapaçaeporláficou.

—Quepena!— lamentou-se a roseira.—Não tenho formademeesconder,

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pormaisque tente.Heide regressarumaeoutra vez,mostrando-meatravésdas

minhasrosas.Assuaspétalascaemeoventoarrasta-as.Certodiaviumamãeque

guardouumadasminhasfloresentreasfolhasdolivrodeorações;outravez,uma

rapariga bonita prendeu ao peito uma das minhas rosas e houve também um

meninoquebeijououtrarosa,cheiodealegria.Todosessesmomentosfizeramcom

queme sentisse bem, foram uma verdadeira bênção. São essas as recordações da

minhavida.

E a roseira continuou a florescer na sua inocência, enquanto o caracol dormia

dentrodasuacasa.Omundonadasignificavaparaele.

Passaramosanos.

Ocaracolvoltouàterra,oroseiraltambém,eacélebrerosadolivrodeorações

desapareceu. Mas, no jardim, brotavam novas roseiras e os novos caracóis

arrastavam-sedentrodassuascasas,pensandonomundoquenadasignificavapara

eles.

Voltamos a ler a nossa história desde o princípio?Não, não vale a pena: seria

sempreigual.

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OHomemdeNeve

—Estáumfriomaravilhoso—murmurava,ohomemdeneve.—Equedelícia

sentiroventocortantepenetrar-menocorpo!Láestáaqueleaolhar-me,comos

seusolhosfixos...Poisnãoconseguefazer-mepestanejar...Seimuitobemcomohei

demanter-meinteiro!

Referia-seaosolquedesaparecianohorizonte.Eraumbonecoqueassimfalava,

umbonecodeolhostriangulares,feitosdedoisbocadosdetelha,ecomumancinho

atravessadonaboca,afazerdedentadura.Vieraaomundonomeiodosaplausosda

criançada,saudadopelascampainhasdostrenósepeloschicotesdoscondutores.

DesapareceuoSolesurgiuaLua,grandeeredondanocéuazul,cheiadeluze

demajestade.

—Lávemeledooutrolado—disseohomemdeneve,supondoquesetratava

aindadoSol.—Jánãolançaraiospelosolhos.Erabomqueficasseali,paraqueeu

mevejaamimmesmo.Seeusoubessecomosairdaqui…Gostavatantodeandar!Se

pudesse,patinavanogelocomoascriançasfazem.Opioréquenãoseicorrer...

—Au! Au!— ladrou o cão de guarda. Estava um tanto rouco, coisa que lhe

aconteciadesdeotempoemquedeixaraoconfortodolarparaviveraoarlivre.—

OSolteensinaráacorrer.Assimaconteceuaoteuantecessordoanopassado,eao

outro,anterioraesse.Au!Au!Todosdesapareceram.

—Nãocompreendooquedizes,amigo—respondeuohomemdeneve.—O

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queestáláemcimavaiensinar-meacorrer?(Agorareferia-seàLua).Sim,nãohá

dúvidadequeébomcorredor...Estáadeslizarmuitodepressa.

—Comopodessaberqualquercoisa—atalhouocãodeguarda—seacabasde

sermodelado?Oqueestásaverchama-seLua,oquedesapareceueraoSol.OSol

voltaráamanhãeesseéquetevaiensinaracorrerparaoaterro.Teremosmudança

detempomuitoembreve,éoquemedizapataesquerdadastraseiras,comassuas

picadinhas.Sim,senhor,otempovaimudar.

— Não percebo o que ele quer dizer, mas desconfio que fala de coisas

desagradáveis.Palpita-mequeesseaquechamamSolnãoémeuamigo.Écáuma

suspeita…—murmurouohomemdeneve.

— Au! Au! — repetiu o cão, dando três voltas antes de se deitar na casota,

dispostoadormir.

Otempomudou,efetivamente.Demanhã,caiuumacortinadenevoeiroespesso

e húmido sobre toda aquela região. Soprava um vento glacial, mas que lindo

espetáculoaonascerdoSol!Asárvores,osarbustosestavamcobertosdegeada:dir-

se-ia uma floresta de coral branco, com os galhos carregados de flores brancas e

reluzentes.Surgiamagoranítidastodasashastezinhasqueafolhagemestivalnão

Page 379: Contos de Andersen...se. Estava muito desolado por ter assim um aspeto tão feio e servir de escárnio para todo o pátio dos patos. Assim se passou no primeiro dia e depois tornou-se

deixavaver.Eraumarendaedetalbrancuraquesetinhaaimpressãodesairluzde

cada ramo.O chorão ondulava ao vento, cheio de vida.E, quando o Sol nasceu,

tudocintilavacomoseapaisagemfossepolvilhadadediamantes!

— Que vista maravilhosa! — disse uma rapariga que passava no jardim na

companhia de um rapaz. Parara justamente ao lado do homem de neve, a

contemplarasárvoresreluzentes.—Overãonãonosoferecepaisagenstãobelas.

—Eumjovemcomoaqueletambémnãoéfácildeconseguir—acrescentouo

rapaz,designandooboneco.

Araparigariu,cumprimentouohomemdeneveepuseram-seosdoisadançarà

suavolta.

—Quemsão?—perguntouobonecoaocãodeguarda,quandooparsehavia

retirado.

—Conheço-osbem—respondeuocão.—Elafaz-mefestaseeledeu-meum

ossoumavez.Aesses,nãomordo.

—Masquemsão?

—Estãonoivos.Vãohabitaramesmacasotaeroeroseuossodesociedade.

—Têmmaisimportânciadoqueeuoutu?

—Pertencemàcategoriadosdonos.Bemsevêqueésrecém-nascido.Eu,que

não sou novato, percebo alguma coisa da vida.Conheço todos os de casa.Houve

tempoemquenãoestavacáforaamarradoaumacorrenteeaapanharfrio.

—O frio é delicioso— afirmou o homemde neve.—Conta lá o que sabes,

conta,masnãoarrastesacorrente,quemedásarrepios.

—Au!Au!Fuicachorromimado,dormianapoltronadeveludo,saltavaparao

colo dos donos. Beijavam-me o focinho, limpavam-me as patas com lenços

bordados. Tratavam-me por diminutivos graciosos. No entanto, fui crescendo,

tornei-me grande de mais, e nessa altura mandaram-me para o quarto da

governanta.Foiassimquepasseiavivernacave.Daí,podesveroquartocomoseu

fogão. Era lugar ameno, apesar de modesto. Vivia aí com maior conforto e as

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criançasdacasanãoestavamconstantementeapuxar-mepelacaudaepelasorelhas,

comoacontecianasala.Averdadeéquenãomefaltavaalimento,possuíaalmofada

paradormir...Equantoaofogão...quefaltamefazagora!Au!Au!

—Ofogãoécoisabonita?Éparecidocomigo?

—Exatamenteocontráriodatuapessoa.Negrocomocarvão,comumpescoço

comprido e fornode cobre.Come lenha e cospe fogopela boca.Não imaginas o

prazerqueéestarpertodele.Podesvê-lodaí.Repara.

Ohomemdeneveolhouparadentrodecasaeviuumobjetopretobembrunido,

comoseufornodecobre.Porbaixoluziaolume.Eohomemdenevesentiuuma

sensaçãodifícildeexplicar.

—Porquesaístedelá?Comopudesteabandonarumsítiotãobom?

—Fuiobrigado.Puseram-menaruaeamarraram-meaestacorrente.Tudopor

termordidoapernadeummiúdoquemetiraraoossoqueeuroía!Levaramaquilo

amal,evimparaaqui,ondeavozmeenrouqueceu.Istoéofim.

Ooutrojánãoescutava.Tinhaosolhosfitosnacavedagovernantaeemespecial

nofogão.

—Que sensação, na verdade... Quem me dera entrar naquele quarto! É um

desejoinocente,e,comotal,deviarealizar-se.

—Nunca!—declarouocão.—Seteaproximasses,aideti!Estavaspronto.

—Dánomesmo.Parecequemequebroemdois,semsequerentrarnoquarto

dofogão.

Todoodiaficouohomemdeneveaolhar,atravésdajanela,paraointeriordo

aposento.Este,aocrepúsculo, tornou-seaindamaissedutor.Olumeiluminava-o

comumasuavidadequeaLuanãotem.Sóumfogãoseriacapazdedaraquelaluz:

selheabriamaporta,saíaumachamarubra,queseiarefletirnacaradoboneco.

—Estáadeitaralínguadefora—diziaohomemdeneve,embevecido.

Anoitefoicomprida,masnãoparaohomemdeneve,quesemanteveentregue

aosseuspensamentos.Pelamanhã,asjanelasdacave,cobertasdegelo,formavamas

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mais lindas flores de uma brancura ideal. Mas, ao mesmo tempo, escondiam o

quarto.Ohomemdenevedeviasentir-sefeliz,econtudonãooestava.Faltava-lhe

avistadofogão.

—Seioqueteaflige—observouocão.—Éasaudade...Tambémsofridessa

doença,mascurei-me.Au!Au!Otempovaimudar.

Mudou, realmente.Eraodegelo.Esteaumentou,ohomemdenevediminuiu.

Nãodissenada,nãosequeixou.Tinhadeserassim.

Certo dia, esbarrondou-se. No lugar onde ele estivera, ficou um atiçador do

lume,emvoltadoqualosgarotosohaviammodelado.

—Agora compreendo—disse o cão.—O sujeito, afinal, tinha o atiçadorno

corpo,nãoadmiraquesentisseanostalgiadofogão.Foiissoqueomatou.

Entretanto,acabavaoinverno.

—Au!Au!—ladravaocãodeguarda.

Asmeninasdacasapulavam,cantandoebrincandonomeiodasuaalegria.

Jáninguémselembravadohomemdeneve.

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OsVerdinhos

Havia uma roseira perto da janela. Até há bem pouco tempo estava verde e

florida,masagoratinhaumaspetodoentio—algumacoisacorriamal.

Um regimento de invasores estava a comê-la; e, diga-se de passagem, era um

regimentomuitodecenteerespeitável,deuniformeverde.

Faleicomumdosinvasores.Sabesoquemedisse?Bem,tudooquemedisseé

verdade—falouporeleeportodososoutros.

Ouvebem!

«Somos omais refinado de todos os regimentos domundo!Os nossos jovens

nascemnoverão,quandofazbomtempo.Ficamosnoivosecasamoslogoaseguir.

Quandootempoarrefece,pomosovoseaquecemo-los.Aformiga,amaissábiadas

criaturas (respeitamo-lamuito!),estuda-noseaprecia-nos.Nãonoscomea todos

de uma só vez; transporta os nossos ovos e coloca-os na cave do formigueiro,

camada sobre camada, todos etiquetados e numerados, lado a lado, demodo que

cadadiapossasairumdoovo, semdificuldade.Leva-nosparaamesa, imobiliza-

nosaspatasposterioresesuga-nosatéàmorte.Éumasensaçãoagradabilíssima.As

formigaschamam-nosomaislindodosnomes:vaquinhasleiteiras!

Éassimquenoschamamtodasascriaturascombomsenso;oshumanossãoos

únicosquenãoofazem.Aofensaétãograndequevivemosamargurados.Seráque

podesescrever, emnossonome,umprotesto contra esta situação?Podespôressa

genteno seudevido lugar?Olhamparanós comumar tão estúpido e ciumento!

Apenas porque comemos folhas de rosas.Mas eles comem toda a criação, tudo o

queéverdeouquecresce.

Oh,chamam-nosonomemaisdesprezíveledetestáveldetodos!Nemsequero

voupronunciar!Ugh!Dá-mevoltaaoestômago;não,nãoovoudizer,pelomenos

enquantousaruniformeeeuuso-osempre!

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Nascinuma folhade rosa.Todoomeu regimento vive à custada roseira.Em

compensação, é graças a nós que muitos dos seres colocados num ponto mais

elevado da escala da Criação subsistem. Os humanos detestam-nos!Matam-nos

com água de sabão, uma bebida horrorosa! Parece-me que estou a sentir o seu

cheiro. É pavoroso ser-se lavado quando não se nasceu para tomar banho. Ó

homem!Tuquenosvêscomolhosestupidamenteenevoados,tememcontaonosso

lugarnanatureza.Pensanaformaartísticacomopomosovosecriamososnossos

filhos!«Cresceiemultiplicai-vos»tambémseaplicaànossaespécie!Nascemosnas

rosaseénelasquemorremos.Anossaexistênciaéumpoemamaravilhoso.Nãonos

chamempelonomeque consideram tãodepreciativo ehorroroso—onomeque

nãoousopronunciar!Emvezdele, chamem-nosvaquinhas leiteiras,o regimento

daroseira,osverdinhos!»

Eu,ohomem,fiqueiaolharparaaroseiraeparaosverdinhos—cujoverdadeiro

nomenãome atrevo a pronunciar porque não quero ferir os sentimentos de um

cidadãodaroseira,umagrandefamíliacomovosemuitascrianças.Equantoàágua

desabãoqueiausarparaoslavar—porquemetinhaaproximadocomsabãoeágua

eintençõesperversas—vouagitá-laatéfazerbolasdesabão.Ficareiacontemplar

todaasuabeleza.Talvezexistaumcontodefadasemcadaumadelas.

Abolacresceu,ficouenormeebrilhoucomtodasascoresdoarco-íris.Nocentro

parecia flutuar uma pérola de prata.Oscilou, desprendeu-se, voou para junto da

portaeesbarrounela.Aportaabriu-seesurgiuaFadadosContosemcarneeosso!

Sim,agoraéelaquetevaicontarmelhordoqueeuofinaldahistóriados...—não,

nãodigooseunomeverdadeiro—dosverdinhos.

—Dospiolhos!—corrigiu-meaFadadosContos.—Deveschamarascoisas

pelos seusnomes.Senemsempreteatrevesa fazê-lonavidareal,nosContosde

Fadasdevessercapazdeofazer.