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O MELHOR DAS PALAVRAS Crônicas e Contos Escolhidos VOL. 01 Seleção e organização de Júlio Cesar Oliveira 1 ª Edição São Luís, 2011

Contos Escolhidos Por Julio Cesar VOL 01

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O MELHOR DAS PALAVRAS

Crônicas e Contos Escolhidos

VOL. 01

Seleção e organização de Júlio Cesar Oliveira 1 ª Edição

São Luís, 2011

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Copyright © 2011, Julio Cesar Oliveira Direitos desta edição reservados aos

escritores e editores. Printed in Brazil / Impresso no Brasil

Este livro não será comercializado

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Julio Cesar Oliveira

PREFÁCIO Esse pequeno grande livro não foi concebido como livro didático, foi pensado como uma coletânea de textos literários de diversos tipos e estilos, escritos por alguns dos melhores escritores brasileiros para que eu pudesse, a qualquer momento, Tê-los à mão para sempre me deliciar com as palavras que tanto me divertem.

Julio Cesar

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Julio Cesar Oliveira

“Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem”

Mário Quintana

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Julio Cesar Oliveira

SUMÁRIO

HISTÓRIA DO PASSARINHO / Stanislaw Ponte Preta

O HOMEM DO FURO NA MÃO / Ignácio de Loyola Brandão

NÃO SEI SE VOCÊ SE LEMBRA / Stanislaw Ponte Preta

ELOQUÊNCIA SINGULAR / Fernando Sabino

NO RESTAURANTE / Carlos Drummond de Andrade

O LIXO / Luis Fernando Veríssimo

O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS / Lima Barreto

O SONHO DO FEIJÃO / Carlos Eduardo Novaes

”CÃOMÍCIO” NO CALÇADÃO / José Carlos Oliveira

JÁ NÃO SE FAZEM PAIS COMO ANTIGAMENTE / Lourenço Diaféria

CONFUSO / Luis Fernando Veríssimo

FELICIDADE CLANDESTINA / Clarice Lispector

ASSALTO / Carlos Drummond de Andrade

SEMPRE HAVERÁ A COMIDA - OU UMA BARATA... / Stella Florence

RETRIBUIÇÃO / Luis Fernando Veríssimo

TENTAÇÃO / Clarice Lispector

A MÁSCARA DA CONVIVÊNCIA / Stella Florence

GALHARDO / Luis Fernando Veríssimo

O GRANDE MISTÉRIO / Stanislaw Ponte Preta

O HOMEM DAS NÁDEGAS FRIAS / Stanislaw Ponte Preta

BOTECOS / Luis Fernando Veríssimo

O MEDO DO VENTO / Stella Florence

HISTÓRIA DE UM NOME / Stanislaw Ponte Preta

CONVERSA DE BOTEQUIM / Fernando Sabino

OS BONS LADRÕES / Paulo Mendes Campos

O DAY AFTER DO CARIOCA (OU: O DIA EM QUE O RIO DE JANEIRO DERRETEU) / Carlos Eduardo Novaes

A CESTA / Paulo Mendes Campos

O HOMEM TROCADO / Luís Fernando Veríssimo

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MENINA NO JARDIM / Mendes Campos

MIOPIA PROGRESSIVA / Clarice Lispector

PESCARIA / Stanislaw Ponte Preta

LÍGIA, POR UM MOMENTO! / Ignácio de Loyola Brandão

AMOR / Clarice Lispector

A MÁQUINA EXTRAVIADA / José J. Veiga

O HOMEM NU / Fernando Sabino

A MULHER DO VIZINHO / Fernando Sabino

UMA GALINHA / Clarice Lispector

O BURGUÊS E O CRIME / Carlos Heitor Cony

UMA VELA PARA DARIO / Dalton Trevisan

VOCAÇÕES / Luís Fernando Veríssimo

O PADEIRO / Rubem Braga

KNI E GIV / Carlos Eduardo Novaes

RELATO DE OCORRÊNCIA EM QUE QUALQUER SEMELHANÇA NÃO É MERA COINCIDÊNCIA. / Rubem Fonseca

UM BRAÇO DE MULHER / Rubem Braga

O AGRÔNOMO SUÍÇO /Fernando Sabino

O ASSALTO / Luís Fernando Veríssimo

VIAGEM DE BONDE / Rachel de Queiroz

UM MÚSICO EXTRAORDINÁRIO / Lima Barreto

O MILAGRE / Stanislaw Ponte Preta

PORQUE NÃO SE MATAVA / Lima Barreto

O HOMEM DA PASTA PRETA / Stanislaw Ponte Preta

CEM ANOS DE PERDÃO / Clarice Lispector

O CEMITÉRIO / Lima Barreto

VALENTIA / Fernando Sabino

O HOMEM QUE ESPALHOU O DESERTO / Ignácio de Loyola Brandão

O PERU DE NATAL / Mário de Andrade

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9999 O Melhor das Palavras

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PENÉLOPE / Dalton Trevisan

COMO NASCEU, VIVEU E MORREU A MINHA INSPIRAÇÃO / Raul Pompéia

O HOMEM QUE QUERIA ELIMINAR A MEMÓRIA / Ignácio de Loyola Brandão

PREOCUPAÇÕES DE UMA VELHINHA / Luiz Vilela

LADRÃO!… / Humberto de Campos

A DOENÇA DO ANTUNES / Lima Barreto

O CRIME DO PROFESSOR DE MATEMÁTICA / Clarice Lispector

O PECADO / Lima Barreto

BOAS MANEIRAS / Paul Karrer

UM MENDIGO ORIGINAL / João do Rio

DR. POR CORRESPONDÊNCIA / Marcos Ray

O CAVALO IMAGINÁRIO / Moacyr Scliar

VISTA CANSADA / Otto Lara Resende

TRISTE MOÇA HELIODORA / Helena Silveira

FUJIE / João Antonio

AUTO DA BARCA / Leonardo Arroyo

NATAL NA BARCA / Lygia Fagundes Telles

MORFINA / Humberto de Campos

ROMANCE DA MOÇA / Carlos Heitor

O SOFÁ DE CETIM VERMELHO / Maria de Lourdes Teixeira

O BLOCO DAS MIMOSAS BORBOLETAS / Rui Ribeiro Couto

MENTIRA! / Maria Angélica Alves

CASO DO MARIDO DOIDO / Stanislaw Ponte Preta

CONSPIRAÇÃO / Moacyr Scliar

A ESTRANHA PASSAGEIRA / Stanislaw Ponte Preta

O ATEU E O LEÃO / Paulo Coelho

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HISTÓRIA DO PASSARINHO Stanislaw Ponte Preta

O que vocês passarão a ler é um lindo conto escrito por

Tia Zulmira, nossa veneranda parenta e conselheira. Trata-se de obra para a literatura infantil, à qual a sábia e experiente senhora vem se dedicando agora, após o convite para participar de um concurso de histórias infantis promovido por um programa de televisão. Cremos que não é necessário acrescentar que a boa senhora tirou o primeiro lugar. Mas, passemos ao conto:

"Era uma vez uma mocinha muito bonita, que morava num lugar chamado Copacabana. Era uma mocinha muito prendada e com muito jeito para as coisas. Estudiosa e obediente, freqüentava sempre o programa de César de Alencar, ia ao Bobs e adorava cuba-libre. Lia muito e gostava, principalmente, da Revista do Rádio e da Luta Democrática.

Todos elogiavam a beleza da mocinha. Ela tinha cara bonita, olhos bonitos, pele bonita, corpo bonito, pernas bonitas, figura bonita. Era toda bonita. Apesar disso, não era feliz, a mocinha. Ela sonhava com uma coisa, desde pequena — queria entrar para o teatro. Sua mãe sempre dizia que não valia a pena, que ela podia ser feliz de outra maneira, mas não adiantava. O sonho da mocinha bonita era entrar para o teatro. Só pensava nisso e colecionava fotografias de Virgínia Lane, Sofia Loren, Nelia Paula e Marilyn Monroe.

Um dia, a mocinha estava muito triste, porque não conseguia ver realizado o seu ideal, quando um passarinho chegou perto dela e perguntou:

-Por que é que você está triste, mocinha? Você é tão bonita. Não devia ser triste.

-Eu estou triste porque quero entrar para o teatro e não consigo — respondeu a mocinha.

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O passarinho riu muito e disse que, se fosse só por isso, não precisava ficar triste. Ele havia de dar um jeito. E de fato, no dia seguinte, passou voando pela janela do quarto da mocinha e deixou cair um bilhetinho que trazia no bico. Era um bilhetinho que dizia: Fila 4, Poltrona 16.

A mocinha foi e num instante conheceu o empresário do teatro que, ao vê-la, se entusiasmou com sua beleza. Foi logo contratada, e já nos primeiros ensaios, todos elogiavam seu desembaraço. Ela ensaiou muito, mas não contou nada pra mãe dela. Somente na noite de estréia é que, antes de sair, chegou perto da mãe e contou tudo. A mãe ficou triste ao ver a filha partir para o estrelato, mas ela estava tão feliz que não a quis contrariar.

E foi bom porque a sua filha fez sucesso. Foi muito ovacionada; todo mundo aplaudiu. Ela voltou para casa contentíssima e, quando ia metendo a chave no portão, ouviu uma voz dizer:

-Meus parabéns. Você é um sucesso. Aí ela olhou pro lado, espantada e viu o passarinho que

a ajudara, pousado numa grade. Ela notou que o passarinho dissera aquilo em tom amargo e quis saber:

Foi aí que o passarinho explicou que não era passarinho não. Era um príncipe encantado, que uma fada má transformara em passarinho.

-Oh, coitadinho! — exclamou a mocinha que acabara de estrear com tanto sucesso.

- O que é que eu posso fazer por você? O passarinho então contou o resto do encantamento. A

fada má fizera aquilo com ele só de maldade. Para ele voltar a ser príncipe outra vez, era preciso que uma mocinha bonita e feliz o levasse para sua casa e o colocasse debaixo do travesseiro. No dia seguinte o encanto findava.

-Mas eu sou uma mocinha feliz. E foi você mesmo, passarinho, que disse que eu era bonita. Você e todo mundo.

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E dizendo isso, apanhou o passarinho e entrou em casa com ele. Ajeitou-o bem, debaixo do travesseiro e, cansada que estava das emoções do dia, adormeceu.

No outro dia de manhã aconteceu tal e qual o passarinho dissera. Quando a mocinha acordou havia um lindo rapaz deitado a seu lado. Era o príncipe.

Esta, pelo menos, foi a história que a mocinha contou pra mãe dela, quando a velha a encontrou de manhã, dormindo com um fuzileiro naval. Que, aliás, só não casou com a mocinha, porque já tinha um compromisso em Botafogo.

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O HOMEM DO FURO NA MÃO Ignácio de Loyola Brandão

Há doze anos tomavam café juntos a ela o acompanhava

até a porta. “Você está com um fio de cabelo branco. Ou tinge ou tira.” Ele sorriu, apanhou a maleta a saiu para tomar o ônibus. Faltavam doze para as oito, em três minutos estaria no ponto. O barbeiro estava abrindo, a vizinha lavava a calçada, o médico tirava o carro da garagem, o caminhão descarregava cervejas a refrigerantes no bar. Estava no horário, podia caminhar tranqüilo. Coçou a mão, descobriu uma leve mancha avermelhada de uns dois centímetros de diâmetro. Quando o ônibus chegou, a mão coçou de novo. Agora ardia um pouco a ele teve a impressão de que no lugar da mancha havia uma leve depressão. Como se tivesse apertado uma bolinha muito tempo, com a mão fechada.

Não tinha lugar sentado, cruzou a borboleta, foi até a frente, cumprimentando pessoas que não sabia o nome, mas que tomavam o elétrico na mesma hora que ele. Segurava a maleta com a mão direita, com a esquerda apoiava-se no varão do teto. Três pontos antes do final, o ônibus superlotado, ele sentiu uma comichão violenta. Não podia olhar, nem levantar a mão. Estava chegando, dava para esperar. Foi empurrado para a saída, despediu-se das pessoas, olhou a mão. No lugar da mancha tinha um buraco. De uns dois centímetros de diâmetro. Um orifício perfeito. Perfeito, como se tivesse sempre estado ali. Nascido. Passou os dedos pelas bordas, por dentro, sentindo cócegas. Assoprou por dentro. Olhou através dele, acompanhando uma aleijada que caminhava na outra calçada. Afastava a mão dos olhos, focalizava um objeto, aproximava a mão. Ficou algum tempo distraído com isso. Quando chegou no escritório, o chefe perguntou o porquê do atraso.

− Foi por causa do furo na mão. − Ah, é? Pois vai ter um furo de meio dia no salário

deste mês. Está bem?

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Não fazia mal, há quinze anos ele não tinha uma falta, um minuto descontado. Foi para a mesa, um pouco perturbado com o furo. Não triste, mas querendo saber o que podia fazer com aquilo. Passou o dia disfarçando a mão entre os papéis. Não queria que os colegas vissem. Eles não tinham furo na mão. De vez em quando soprava através do buraco, fazia barulhos estranhos com a boca. Na hora do lanche, focalizou um colega, colocando a mão sobre o olho. Na hora de bater ponto de saída, enfiou a alavanca no buraco a empurrou. Contente, sentia-se mais que os outros. A sensação começara no meio da manhã, depois que a primeira depressão desaparecera. Tinha pensado em ir ao médico, explicar o caso. Desistiu.

A mulher esperava na porta, tomando a fresca da tarde. Entraram, ele tomou banho, descansou dez minutos, como todos os dias. Foram até a sala, ele desligou a TV, a mulher ficou olhando algum tempo para a tela cinza, como se esperasse ainda ver a novela interrompida. Então, ele mostrou a mão e a mulher começou a chorar. Ela chorou a soluçou por dez minutos. Depois perguntou:

− Dói muito? − Não dói nada. − Foi um acidente? − Não, apareceu no ônibus. − Como apareceu? − Apareceu. Não sei como. − E se a gente reclamar da companhia de ônibus? − Ela não tem nada com isso. A mulher foi ao banheiro, trouxe o estojo de

emergência, apanhou gaze, esparadrapo, mercúrio cromo. Ele não deixou fazer a atadura.

− Não precisa, está cicatrizado, olhe aí. − Não vai me andar com esse buraco por aí. O que as

vizinhas vão dizer? Que não cuido de você? − Mas eu quero que vejam. Só eu tenho esse buraco.

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− É tão feio. À noite, ele se levantou para observar o furo na mão.

Deixou embaixo da torneira, com água correndo pelo meio. No dia seguinte, a mulher tentou de novo enfaixar a mão, ele não deixou. Estava orgulhoso do furo. Foi trabalhar a no fim da tarde estava um pouco decepcionado. Ninguém no escritório tinha ligado para a mão dele. Fizera de tudo em frente aos colegas. Assoara o nariz, passara o dia com a mão na testa. Ao voltar para casa, não encontrou a mulher na porta. Na mesa havia um bilhete. “Não posso viver com você enquanto esse buraco existir.” A casa vazia, ele abriu a geladeira a só encontrou manteiga, comeu com pão. Foi comprar revistas, jornais, ficou lendo, com o rádio ligado. Não ouvia o rádio, só gostava do barulho. Todas as manhãs, quando acordava, deixava o rádio aberto, ouvindo ruídos, sem estar em estação alguma. Depois, viu televisão até cair de cansaço. Dormiu na poltrona.

Do escritório telefonou para o emprego do sogro. A mulher não tinha aparecido na casa dos pais. Na hora do almoço saiu de táxi, rodando pela casa de amigos a amigas. E parentes. Nada. À noite, foi à igreja. Ela costumava ir. Passou na polícia a deu queixa. Comeu sanduíche num bar, ficou vendo televisão até cair de cansaço. Foi acordado pela empregada que vinha às quintas-feiras.

− O senhor está com um buraco na mão, vou colocar bandaide.

− Não precisa, não. Pode deixar. − Como pode? O senhor não vai sair assim. − Vou, não quero bandaide. Cinco minutos depois a empregada saiu, com a bolsa,

dizendo até logo, não volto mais. Ele dormiu mais um pouco. Acordou com o silêncio da casa, os cômodos na penumbra, tudo desarrumado. Gostou da desarrumação. Fez café, jogou pó no chão, molhou tudo que pôde, derrubou o lixo. Tomou banho, jogou as toalhas, molhou o chão, largou o sabonete dentro da

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privada. Saiu. Pela segunda vez em doze anos saía sozinho sem ninguém para acompanhá-lo até a porta, sem a sensação de estar vigiado, de ter que it a voltar ao mesmo lugar, ter que justificar as coisas, o dia, os movimentos.

Chegou atrasado ao ponto. Quando subiu no ônibus, não conhecia ninguém. O cobrador se levantou.

− O senhor pode tomar outro carro, por favor, − Outro carro, por que? − Ordem da companhia, não sei de nada. − Que coisa ridícula. Ordem da companhia. Não vou

tomar outro. Vou nesse mesmo. − Por favor, não me arrume complicação. Desça. Os

passageiros estão esperando. Todo o ônibus olhava para ele. Sentou-se, segurando

firme a maleta. Os outros pasasgeiros começaram a descer. O cobrador foi buscar um PM. O motorista chegou até ele, olhando o furo na mão, bem visível, por cima da maleta.

− Por que o senhor não vai por bem? − Pago minha passagem, tenho direito de andar no carro

que quiser. − Não tem nada. O senhor é que pensa. O PM entrou, apanhou o homem com furo na mão pela

gola, jogou-o fora, na calçada. A maleta abriu, os papéis espalharam. Ajoelhado, ele começou a catá-los. O povo olhando. O PM disse:

− Quando mandarem o senhor tomar outro carro, o senhor toma.

Ele pensou: estão todos combinados, não é possível, é uma brincadeira da turma, comigo. Depois, ele se lembrou que não tinha turma, vivia só, ele e a mulher, às vezes ela até reclamava. Os passageiros voltaram ao ônibus. Ele se levantou, ficou encostado no ponto. Minutos depois chegou outro ônibus. Só abriu a porta da frente, alguns passageiros desceram. Bateu na porta de entrada, chutou, o cobrador colocou a cabeça para fora.

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− Ei, companheiro, o que é isso. Espere chegar o outro carro.

Decidiu ir a pé. Tinha anotado os números dos ônibus, iria à companhia fazer uma reclamação. O pior é que chegaria atrasado. Quando entrou no escritório, passou rápido pelo chefe, mas este não se incomodou. Foi direto para a mesa. Havia um paletó na cadeira. Ele colocou a maleta na mesa, sentou-se. Abriu a gaveta, não a encontrou arrumada, como deixava todos os dias, no fim da tarde, os lápis selecionados por cores, os clips, borracha, papéis ordenados. Estava tudo remexido. Ouviu um “com licença”, levantou os olhos, encontrou um homem de uns trinta anos, gordo.

− O que é? − Desculpe, esta mesa é minha. − Sua? Desde quando? − Me deram hoje de manhã. Era sua? − É minha. Onde estão as minhas coisas? − Num pacote com o chefe. Foi até o chefe. − O que está acontecendo? − Nada. Por quê? − Tem outro na minha mesa. − A mesa é da companhia. Não é sua. − Bom, eu ocupava aquela mesa da companhia. E

agora? − Não ocupa mais. Você não trabalha aqui. − Por quê? − Foi sua mão. Esse buraco é inconveniente. A mulher tinha razão, seria preciso colocar um bandaide

para esconder o furo. Mas se escondesse, ficaria sem ele. E gostava daquele buraco perfeito, um círculo exato. Talvez até inventasse um jogo qualquer, com bolas de gude atravessando a

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palma da mão. Era uma boa idéia, podia se apresentar na televisão.

− E o meu dinheiro? A indenização? − Indenização? Você foi demitido por justa causa. − Justa causa? − É proibido ter buraco na mão. Você não sabia? − Nunca existiu isso nos regulamentos. − Existe. Está no Decreto Inexistente. , − Quero ver. − É inexistente. O senhor não pode ver. Passar bem. Pensou em procurar um advogado, correr à justiça

trabalhista. Não podiam fazer aquilo, daquele jeito. Amanhã ou depois cuidaria disso. Tinha tempo. Resolveu it ao cinema. Fazia vinte a dois anos que não is ao cinema num dia de semana, à tarde. Comprou o bilhete no primeiro que encontrou. Nem olhou que filme era, nem os cartazes. Quando entregou ao porteiro, este perguntou:

− O senhor tem certeza de que é este o filme que quer ver?

Como ele não tinha, ficou indeciso, surpreso. O porteiro aproveitou.

− Está vendo? O senhor se enganou de filme. Se quiser, a bilheteira devolve o dinheiro.

Ele se recuperou, protestou. Era esse filme mesmo, que negócio é esse, também aqui essa brincadeira?

− Por favor, meu senhor, vá a outro cinema. Senão, perco o emprego.

− E se quero ir neste? − Melhor não entrar. Ou sou obrigado a chamar o

gerente. − Pode chamar. O gerente veio, acompanhado de um PM de cara

amarrada.

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− Por que não posso entrar no cinema? − O senhor pode, cavalheiro. Qual é o problema? − O porteiro disse que não posso. − Eu não disse. Só pedi ao senhor para ir a outro

cinema. − Quero este. (Deixa ele entrar, murmurou o gerente ao porteiro). Ele sentou-se numa fila do meio, vazia. Atrás dele,

pessoas cochicharam, se levantaram, saíram. De instante em instante, uma pessoa saía da sala. Ele não prestava atenção, apenas achava muito barulho a movimentação. Devia ser sempre assim nas sessões da tarde. Quando a fita terminou só tinha ele na sala. Resolveu fumar um cigarro. Na sala de espera, quatro PMs se dirigiram a ele.

− Quer nos acompanhar? − Onde? − Não tem que perguntar nada. Quando chegaram na calçada, os PMs disseram: − Agora, vai andando quieto, sempre em frente, sem

falar com ninguém, sem olhar para os lados. Vai. Ficou pela rua. Estranho, estar no meio daquela gente

toda que se cruzava. Será que não estavam fazendo nada? Olhava vitrinas, livrarias, agências de viagens, via homens de maleta preta. A maleta? Tinha deixado no escritório. Era disso que sentia falta. A maleta na mão. Mesmo quando não precisava dela, carregava. Fazia pane dele. Agora, os braços ficavam soltos, desamparados. Sentia uma tensão, ao se ver na rua, àquela hora no meio da gente toda. Duas vezes se surpreendeu caminhando em direção ao escritório. De repente, entendeu de vez que não precisava voltar lá. O alívio foi tão grande que ele começou a suar. E se assustou um pouco. Era como se tivesse sarado de uma doença terrível, depois de ter estado à beira da morte. Ou sair de dentro da água, quando já estava se afogando. Sentia-se amedrontado, uma sensação esquisita por dentro. Culpado de

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estar sem o que fazer, livre, andando para onde queria. Tudo por causa do buraco. Olhou as pessoas através dele. O gesto de levar a palma da mão à frente do olho estava se tornando um tique.

Andou, descontraído. Sentindo-se mais leve a cada hora

que passava. Muito tarde da noitee (não precisava voltar para casa; atravessara como que flutuando as seis, sete, oito horas; quase pegou o ônibus, lembrou-se a tempo, ficou vagando pela cidade, vendo a noite cair, o movimento diminuir, as pessoas mudarem nas ruas). Sentou-se num banco da praça, olhando a mão. Gostava ainda mais do furo.

− O senhor quer sair deste banco? Era um homem de farda abóbora, distintivo no peito:

Fiscalização de Parques a Jardins. − O que tem este banco? − Não pode sentar nele. Ele mudou para o banco ao lado, o homem seguiu − Nem neste. − Em qual então? − Em nenhum. − Olhe quanta gente sentada. − Eles não têm buraco na mão. − Daqui não saio. O homem enfiou a mão embaixo da túnica, tirou um

cacetete, deu uma pancada na cabeça dele. As pessoas se aproximaram, enquanto ele cambaleava.

− Socorro, disse, com a voz fraca, amparando-se num velhote. O velhote se afastou, ele caiu no chão, a cabeça latejando terrivelmente.

− Por que fez isso? − Pedi para não sentar, o senhor teimou. Agora, saia da

praça. − Saia, saia, gritavam as pessoas em volta.

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Andou, sem se incomodar com o povo, o fiscal. Passou a mão na cabeça, sangrava. Num bar, pediu um copo de água gelada, jogou na cabeça. Decidiu que não iria para casa. Talvez passasse por uma delegacia para dar queixa, abrir um Processo contra o fiscal. Embaixo de um viaduto, sentou-se. Vagabundos (seriam vagabundos?) tinham acendido uma fogueira. Acordou, o sol nascendo, levantou-se rápido. De pé, lembrou-se que não precisava ir ao emprego, ir a lugar nenhum. Sentou-se de novo, vendo os vagabundos (seriam vagabundos?) tomarem o que parecia café. Aproximou-se. Um deles estendeu uma lata. Quando olhou a mão do homem, viu nela um orifício de uns dois centímetros de diâmetro que atravessava da palma às costas. Então, ele também mostrou a mão. O homem não disse nada. Ele tomou o café. Ralo, de pó catado nos lixos dos bares, já tinha passado uma ou duas vezes pelo coador. Serviu para assentar o estômago.

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NÃO SEI SE VOCÊ SE LEMBRA Stanislaw Ponte Preta

Então, não sei se você se lembra, nos veio aquela vontade súbita de comer siris. Havia anos que nós não comíamos siris e a vontade surgiu de uma conversa sobre os almoços de antigamente. Lembro-me bem — e não sei se você se lembra — que o primeiro a ter vontade de comer siris fui eu, mas que você aderiu logo a ela, com aquele entusiasmo que lhe é peculiar, sempre que se trata de comida ou de mulher. Então, não sei se você se lembra, começamos a rememorar os lugares onde se poderia encontrar uma boa batelada de siris, para se comprar, cozinhar num panelão e ficar comendo de mãos meladas, chão cheio de cascas do delicioso crustáceo e mais uma para rebater de vez em quando. E só de pensar nisso a gente deixou pra lá a vontade pura e simples e passou a ter necessidade premente de comer siris.

Então, não sei se você se lembra, telefonamos para o Raimundo, que era o campeão brasileiro de siris e, noutros tempos, dava famosos festivais do apetitoso bicho em sua casa. Ele disse que, aos domingos, perto do Maracanã, havia um botequim que servia siris maravilhosos, ao cair da tarde. Não sei se você se lembra que ele frisou serem aqueles os melhores siris do Rio, como também os únicos em disponibilidade, numa época em que o siri anda vasqueiro e só é vendido naquelas insípidas casquinhas. Ah... foi uma alegria saber que era domingo e havia siris comíveis e, então, nos dois — não sei se você se lembra — apesar da fome que o uisquinho estava nos dando — resolvemos não almoçar para ficar com mais vontade ainda de comer siris. Passamos incólumes pela refeição, enquanto o resto do pessoal entrava firme num feijão que cheirava a coisa divina do céu dos glutões. O pessoal — aliás — achava que era um exagero nosso, guardar boca para um siri que só comeríamos à tarde, porque

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Julio Cesar Oliveira

podíamos perfeitamente ter preparo estomacal para eles, após o almoço.

Mas — não sei se você se lembra — fomos de uma fidelidade espartana aos siris. Saímos para o futebol com uma fome impressionante e passamos o jogo todo a pensar nos siris que comeríamos ao sair do Maracanã.

Então — não sei se você se lembra — saímos dali como dois monges tibetanos a caminho da redenção e chegamos ao tal botequim. Então — não sei se você se lembra — que a gente chegou e o homem do botequim disse que o siri já tinha acabado.

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Julio Cesar Oliveira

ELOQUÊNCIA SINGULAR Fernando Sabino

Mal iniciara seu discurso, o deputado embatucou: – Senhor Presidente: não sou daqueles que... O verbo ia para o singular ou para o plural? Tudo

indicava o plural. No entanto, podia perfeitamente ser o singular:

– Não sou daquele que... – Não sou daqueles que recusam... No plural soava

melhor. Mas era preciso precaver-se contra essas armadilhas da linguagem – que recusa? – ele que tão facilmente caía nelas, e era logo massacrado com um aparte. Não sou daqueles que... Resolveu ganhar tempo:

– ...embora perfeitamente cônscio das minhas altas responsabilidades, como representante do povo nesta Casa, não sou...

– Daqueles que recusa, evidentemente. Como é que podia ter pensado em plural? Era um desses casos que os gramáticos registram nas suas questiúnculas de português: ia para o singular, não tinha dúvida. Idiotismo de linguagem, devia ser.

– ...daqueles que, em momentos de extrema gravidade, como este que o Brasil atravessa...

Safara-se porque nem se lembrava do verbo que pretendia usar:

– Não sou daqueles que... Daqueles que o quê? Qualquer coisa, contanto que

atravessasse de uma vez essa traiçoeira pinguela gramatical em que sua oratória lamentavelmente se havia metido logo de saída. Mas a concordância? Qualquer verbo servia, desde que conjugado corretamente, no singular. Ou no plural:

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Julio Cesar Oliveira

– Não sou daqueles que, dizia eu – e é bom que se repita sempre, senhor Presidente, para que possamos ser dignos da confiança em nós depositada...

Intercalava orações e mais orações, voltando sempre ao

ponto de partida, incapaz de se definir por esta ou aquela

concordância. Ambas com aparência castiça. Ambas legítimas.

Ambas gramaticalmente lídimas, segundo o vernáculo: – Neste momento tão grave para o destino de nossa

nacionalidade... Ambas legítimas? Não, não podia ser. Sabia bem que a

expressão “daqueles que” era coisa já estudada e decidida por tudo quanto é gramaticóide por aí, qualquer um sabia que levava sempre o verbo ao plural:

– ... não sou daqueles que, conforme afirmava... Ou ao singular? Há exceções, e aquela bem podia ser uma

delas. Daqueles que. Não sou UM daqueles que. Um que recusa, daqueles que recusam. Ah! O verbo era recusar:

– Senhor Presidente. Meus nobres colegas. A concordância que fosse para o diabo. Intercalou mais

uma oração e foi em frente com bravura, disposto a tudo, afirmando não ser daqueles que...

– Como? Acolheu a interrupção com um suspiro de alívio: – Não ouvi bem o aparte do nobre deputado. Silêncio. Ninguém dera aparte nenhum. – Vossa Excelência, por obséquio, queira falar mais alto,

que não ouvi bem – e apontava agoniado, um dos deputados mais próximos.

– Eu? Mas eu não disse nada... – Terei o maior prazer em responder ao aparte do nobre

colega. Qualquer aparte. O silêncio continuava. Interessados, os demais deputados

se agrupavam em torno do orador, aguardando o desfecho

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daquela agonia, que agora já era como no verso de Bilac, a agonia do herói e a agonia da tarde.

– Que é que você acha? – cochichou um. – Acho que vai para o singular. – Pois eu não: para o plural, é lógico. O orador prosseguia na sua luta: – Como afirmava no começo de meu discurso, senhor

Presidente... Tirou o lenço do bolso e enxugou o suor da testa.

Vontade de aproveitar-se do gesto e pedir ajuda ao próximo Presidente da mesa: por favor, apura aí pra mim como é que é, me tira desta...

– Quero comunicar ao nobre orador que seu tempo está esgotado.

– Apenas algumas palavras, senhor Presidente, para terminar o meu discurso: e antes de terminar, quero deixar bem claro que, a esta altura de minha existência, depois de mais de vinte anos de vida pública...

E entrava por novos desvios: – Muito embora... sabendo perfeitamente...os imperativos

de minha consciência cívica... senhor Presidente...e o declaro peremptoriamente... não sou daqueles que...

O Presidente voltou a adverti-lo de que seu tempo se esgotara. Não havia mais por onde fugir:

– Senhor Presidente, meus nobres colegas! Resolveu arrematar de qualquer maneira. Encheu o peito

e desfechou: – Em suma: não sou daqueles. Tenho dito. Houve um suspiro de alívio em todo o plenário, as palmas

romperam. Muito bem! O orador foi vivamente cumprimentado.

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NO RESTAURANTE Carlos Drummond de Andrade

- Quero lasanha. Aquele anteprojeto de mulher - quatro anos, no máximo,

desabrochando na ultraminissaia - entrou decidido no restaurante. Não precisava de menu, não precisava de mesa, não precisava de nada. Sabia perfeitamente o que queria. Queria lasanha.

O pai, que mal acabara de estacionar o carro em uma vaga de milagre, apareceu para dirigir a operação-jantar, que é, ou era, da competência dos senhores pais.

- Meu bem, venha cá. - Quero lasanha. - Escute aqui, querida. Primeiro, escolhe-se a mesa. - Não, já escolhi. Lasanha. Que parada - lia-se na cara do pai. Relutante, a

garotinha condescendeu em sentar-se primeiro, e depois encomendar o prato:

- Vou querer lasanha. - Filhinha, por que não pedimos camarão? Você gosta

tanto de camarão. - Gosto, mas quero lasanha. - Eu sei, eu sei que você adora camarão. A gente pede

uma fritada bem bacana de camarão. Tá? - Quero lasanha, papai. Não quero camarão. - Vamos fazer uma coisa. Depois do camarão a gente

traça uma lasanha. Que tal? - Você come camarão e eu como lasanha. O garçom aproximou-se, e ela foi logo instruindo: - Quero uma lasanha. O pai corrigiu: - Traga uma fritada de camarão pra dois. Caprichada.

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A coisinha amuou. Então não podia querer? Queriam querer em nome dela? Por que é proibido comer lasanha? Essas interrogações também se liam no seu rosto, pois os lábios mantinham reserva. Quando o garçom voltou com os pratos e o serviço, ela atacou:

- Moço, tem lasanha? - Perfeitamente, senhorita. O pai, no contra-ataque: - O senhor providenciou a fritada? - Já, sim, doutor. - De camarões bem grandes? - Daqueles legais, doutor. - Bem, então me vê um chinite, e pra ela... O que é que

você quer, meu anjo? - Uma lasanha. - Traz um suco de laranja pra ela. Com o chopinho e o suco de laranja, veio a famosa

fritada de camarão, que, para surpresa do restaurante inteiro, interessado no desenrolar dos acontecimentos, não foi recusada pela senhorita. Ao contrário, papou-a, e bem. A silenciosa manducação atestava, ainda uma vez, no mundo, a vitória do mais forte.

- Estava uma coisa, hem? - comentou o pai, com um sorriso bem alimentado. - Sábado que vem, a gente repete... Combinado?

- Agora a lasanha, não é, papai? - Eu estou satisfeito. Uns camarões tão geniais! Mas

você vai comer mesmo? - Eu e você, tá? - Meu amor, eu... - Tem de me acompanhar, ouviu? Pede a lasanha. O pai baixou a cabeça, chamou o garçom, pediu. Aí, um

casal, na mesa vizinha, bateu palmas. O resto da sala acompanhou. O pai não sabia onde se meter. A garotinha,

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impassível. Se, na conjuntura, o poder jovem cambaleia, vem aí, com força total, o poder ultrajovem.

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O LIXO Luis Fernando Verissimo

Encontram-se na área de serviço. Cada um com o seu

pacote de lixo. É a primeira vez que se falam. — Bom dia. — Bom dia. — A senhora é do 610. — E o senhor do 612. — Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente... — Pois é ... — Desculpe a minha indiscrição, mas tenho

visto o seu lixo ... — O meu quê? — O seu lixo. — Ah... — Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser

pequena. — Na verdade sou só eu. — Humm. Notei também que o senhor usa muito

comida em lata. — É que eu tenho que fazer minha própria comida. E

como não sei cozinhar. — Entendo. — A senhora também. — Me chama de você. — Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho

visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim.

— É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas como moro sozinha, às vezes sobra.

— A senhora... Você não tem família? — Tenho, mas não aqui. — No Espírito Santo. — Como é que você sabe?

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— Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo. — É. Mamãe escreve todas as semanas. — Ela é professora? — Isso é incrível! Como você adivinhou? — Pela letra no envelope. Achei que era letra de

professora. — O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu

lixo. — Pois é ... — No outro dia, tinha um envelope de telegrama

amassado. — É. — Más notícias? — Meu pai. Morreu. — Sinto muito. — Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos

não nos víamos. — Foi por isso que você recomeçou a fumar? — Como é que você sabe? — De um dia para o outro começaram a aparecer

carteiras de cigarro amassadas no seu lixo. — É verdade. Mas consegui parar outra vez. — Eu, graças a Deus, nunca fumei. — Eu sei, mas tenho visto uns vidrinhos de

comprimidos no seu lixo... — Tranquilizantes. Foi uma fase. Já passou. — Você brigou com o namorado, certo? — Isso você também descobriu no lixo? — Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho,

jogado fora. Depois, muito lenço de papel. — É, chorei bastante, mas já passou. — Mas hoje ainda tem uns lencinhos. — É que estou com um pouco de coriza. — Ah.

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— Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo. — É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito.

Sabe como é. — Namorada? — Não. — Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no

seu lixo. Até bonitinha. — Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga. — Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no

fundo, você quer que ela volte. — Você está analisando o meu lixo! — Não posso negar que o seu lixo me interessou. — Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que

gostaria de conhecê-la . Acho que foi a poesia. — Não! Você viu meus poemas? — Vi e gostei muito. — Mas são muito ruins! — Se você achasse eles ruins mesmos, teria rasgado.

Eles só estavam dobrados. — Se eu soubesse que você ia ler ... — Só não fiquei com ele porque, afinal, estaria

roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?

— Acho que não. Lixo é domínio público. — Você tem razão. Através dos lixo, o particular se

torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?

— Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...

— Ontem, no seu lixo. — O quê? — Me enganei, ou eram cascas de camarão?

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— Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.

— Eu adoro camarão. — Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente

pode... Jantar juntos? — É. Não quero dar trabalho. — Trabalho nenhum. — Vai sujar a sua cozinha. — Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos

fora. — No seu lixo ou no meu?

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O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS Lima Barreto

Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro contava eu as partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades, para poder viver. Houve mesmo uma dada ocasião, quando estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel, para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de feiticeiro e adivinho. Contava eu isso.

O meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil Blas vivido, até que, em uma pausa da conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo:

— Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo! — Só assim se pode viver... Isto de uma ocupação

única: sair de casa a certas horas, voltar a outras, aborrece, não achas? Não sei como me tenho agüentado lá, no consulado!

— Cansa-se; mas não é isso que me admiro. O que me admira é que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste Brasil imbecil e burocrático.

— Qual! Aqui mesmo, meu Castro, se podem arranjar belas páginas de vida. Imagina tu que eu já fui professor de javanês?

— Quando? Aqui, depois que voltaste do consulado? — Não; antes. E, por sinal, fui nomeado cônsul por isso. — Conta lá como foi. Bebes mais cerveja? — Bebo. Mandamos buscar mais outra garrafa, enchemos os

copos, e continuei: — Eu tinha chegado havia pouco ao Rio e estava

literalmente na miséria. Vivia fugido de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no Jornal do Comércio o anúncio seguinte:

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"Precisa-se de um professor de língua javanesa. Cartas etc".

Ora, disse cá comigo, está ali uma colocação que não terá muitos concorrentes; se eu capiscasse quatro palavras, ia apresentar-me. Saí do café e andei pelas ruas, sempre imaginar-me professor de javanês, ganhando dinheiro, andando de bonde e sem encontros desagradáveis com os "cadáveres". Insensivelmente dirigi-me à Biblioteca Nacional. Não sabia bem que livro iria pedir, mas entrei, entreguei o chapéu ao porteiro, recebi a senha e subi.

Na escada, acudiu-me pedir a Grande Encyclopédie, letra J, a fim de consultar o artigo relativo a Java e à língua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que Java era uma grande ilha do arquipélago de Sonda, colônia holandesa, e o javanês, língua aglutinante do grupo malaio-polinésio, possuía uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu.

A Enciclopédia dava-me indicação de trabalhos sobre a tal língua malaia e não tive dúvidas em consultar um deles. Copiei o alfabeto, a sua pronunciação figurada e saí. Andei pelas ruas, perambulando e mastigando letras.

Na minha cabeça dançavam hieróglifos; de quando em quando consultava as minhas notas; entrava nos jardins e escrevia estes calungas na areia para guardá-los bem na memória e habituar a mão a escrevê-los.

À noite, quando pude entrar em casa sem ser visto, para evitar indiscretas perguntas do encarregado, ainda continuei no quarto a engolir o meu "a-b-c" malaio, e, com tanto afinco levei o propósito que, de manhã, o sabia perfeitamente. Convenci-me de que aquela era a língua mais fácil do mundo e saí; mas não tão cedo que não me encontrasse com o encarregado dos aluguéis dos cômodos:

— Senhor Castelo, quando salda a sua conta? Respondi-lhe então eu, com a mais encantadora esperança:

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— Breve... Espere um pouco... Tenha paciência... Vou ser nomeado professor de javanês, e... Por aí o homem interrompeu-me:

— Que diabo vem a ser isso, Senhor Castelo? Gostei da diversão e ataquei o patriotismo do homem.

— É uma língua que se fala lá pelas bandas do Timor. Sabe onde é?

Oh! alma ingênua! O homem esqueceu-se da minha dívida e disse-me com aquele falar forte dos portugueses:

— Eu cá por mim, não sei bem; mas ouvi dizer que são umas terras que temos lá para os lados de Macau. E o senhor sabe disso, Senhor Castelo? Animado com esta saída feliz que me deu o javanês, voltei a procurar o anúncio. Lá estava ele. Resolvi animosamente propor-me ao professorado do idioma oceânico. Redigi a resposta, passei pelo Jornal e lá deixei a carta. Em seguida, voltei à biblioteca e continuei os meus estudos de javanês. Não fiz grandes progressos nesse dia, não sei se por julgar o alfabeto javanês o único saber necessário a um professor de língua malaia ou se por ter me empenhado mais na bibliografia e história literária do idioma que ia ensinar. Ao cabo de dois dias, recebia eu uma carta para ir falar ao Doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz, Barão de Jacuecanga, à rua Conde de Bonfim, não me recordo bem que número. É preciso não te esqueceres de que entrementes continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal javanês. Além do alfabeto, fiquei sabendo o nome de alguns autores, também perguntar responder "como está o senhor"? e duas ou três regras de gramática, lastrado todo esse saber com vinte palavras do léxico.

Não imaginas as grandes dificuldades com que lutei para arranjar os quatrocentos réis da viagem! É mais fácil — pode ficar certo — aprender o javanês... Fui à pé. Cheguei suadíssimo; e, com maternal carinho, as anosas mangueiras, que se perfilavam em alameda diante da casa do titular, me

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receberam, me acolheram e me reconfortaram. Em toda minha vida, foi o único momento em que cheguei a sentir simpatia pela natureza...

Era uma casa enorme que parecia estar deserta; estava maltratada, mas não sei por que me veio pensar que nesse mau tratamento havia mais desleixo e cansaço de viver que mesmo pobreza. Devia haver anos que não era pintada. As paredes descascavam e os beirais do telhado, daquelas telhas vidradas de outros tempos, estavam desguarnecidos aqui e ali, como dentaduras decadentes ou malcuidadas.

Olhei um pouco o jardim e vi a pujança vingativa com que a tiririca e o carrapicho tinham expulsado os tinhorões e as begônias. Os crótons continuavam, porém, a viver com a sua folhagem de cores mortiças. Bati. Custaram-me a abrir. Veio, por fim, um antigo preto africano, cujas barbas e cabelos de algodão davam à sua fisionomia uma aguda impressão de velhice, doçura e sofrimento.

Na sala, havia uma galeria de retratos: arrogantes senhores de barba em colar se perfilavam enquadrados em imensas molduras douradas, e doces perfis de senhoras, em bandós, com grandes leques, pareciam querer subir aos ares, enfunadas pelos redondos vestidos à balão; mas, daquelas velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais antigüidade e respeito, a que gostei mais de ver foi um belo jarrão de porcelana da China ou da Índia, como se diz. Aquela pureza da louça, a sua fragilidade, a ingenuidade do desenho e aquele fosco brilho de luar, diziam-me a mim que aquele objeto tinha sido feito por mãos de criança, a sonhar, para encanto dos olhos fatigados dos velhos desiludidos...

Esperei um instante o dono da casa. Tardou um pouco. Um tanto trôpego, com o lenço de alcobaça na mão, tomando venerável-mente o simonte de antanho, foi cheio de respeito que o vi chegar. Tive vontade de ir-me embora. Mesmo se não fosse ele o discípulo, era sempre um crime mistificar aquele ancião,

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cuja velhice trazia à tona do meu pensamento alguma coisa de augusto, de sagrado. Hesitei, mas fiquei.

— Eu sou — avancei — o professor de javanês, de que o senhor disse precisar.

— Sente-se — respondeu-me o velho. — O senhor é daqui, do Rio?

— Não, sou de Canavieiras. — Como? — fez ele. — Fale um pouco alto, que sou

surdo. — Sou de Canavieiras, na Bahia — insisti eu.

— Onde fez os seus estudos? — Em São Salvador. — Em onde aprendeu o javanês? — indagou ele, com

aquela teimosia peculiar aos velhos. Não contava com essa pergunta, mas imediatamente

arquitetei uma mentira. Contei-lhe que meu pai era javanês. Tripulante de uma navio mercante, viera ter à Bahia, estabelecera-se nas proximidades de Canavieiras como pescador, casara, prosperara e fora com ele que aprendi javanês.

— E ele acreditou? E o físico? — perguntou meu amigo, que até então me ouvira calado.

— Não sou — objetei — lá muito diferente de um javanês. Estes meu cabelos corridos, duros e grossos e a minha pele basané podem dar-me muito bem o aspecto de um mestiço malaio... Tu sabes bem que, entre nós, há de tudo: índios, malaios, taitianos, malgaches, guanches, até godos. É uma comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro.

— Bem — fez o meu amigo —, continua. — O velho — emendei eu — ouviu-me atentamente,

considerou demoradamente o meu físico, e pareceu que me julgava de fato filho de malaio, e perguntou-me com doçura:

— Então está disposto a ensinar-me javanês? — A resposta saiu-me sem querer. Pois não.

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— O senhor há de ficar admirado — aduziu o Barão de Jacuecanga — que eu, nesta idade, ainda queira aprender qualquer coisa, mas...

— Não tenho que admirar. Têm-se visto exemplos e exemplos muito fecundos...

— O que eu quero, meu caro senhor...? — Castelo — adiantei eu. — O que eu quero, meu caro Senhor Castelo, é cumprir

um juramento de família. Não sei se o senhor sabe que eu sou neto do Conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou Pedro I, quando abdicou. Voltando de Londres, trouxe para aqui um livro em língua esquisita, a que tinha grande estimação. Fora um hindu ou siamês que lho dera em Londres, em agradecimento a não sei que serviço prestado por meu avô. Ao morrer meu avô, chamou meu pai e lhe disse: "Filho, tenho este livro aqui, escrito em javanês. Disse-me que mo deu que ele evita desgraças e traz felicidades para quem o tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo caso, guarda-o; mas, se queres que o fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze com que teu filho o entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz." Meu pai — continuou o velho barão — não acreditou muito na história; contudo guardou o livro. Às portas da morte, ele mo deu e disse-me o que prometera ao pai. Em começo, pouco caso fiz da história do livro. Deitei-o a um canto e fabriquei minha vida.

Cheguei até esquecer-me dele; mas, de uns tempos a esta parte, tenho passado por tanto desgosto, tantas desgraças têm caído sobre a minha velhice que me lembrei do talismã da família. Tenho que o ler, que o compreender, e não quero que os meus últimos dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para entendê-lo, é claro que preciso entender o javanês. Eis aí.

Calou-se e notei que os olhos do velho se tinham orvalhado. Enxugou discretamente os olhos e perguntou-me se queria ver o livro. Respondi-lhe que sim. Chamou o criado, deu-lhe as instruções e explicou-me que perdera todos os filhos,

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sobrinhos, só lhe restando uma filha casada, cuja prole, porém, estava reduzida a um filho, débil de corpo e de saúde frágil e oscilante.

Veio o livro. Era um velho calhamaço, um inquarto antigo, encadernado em couro, impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha do rosto e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito.

Logo informei disso o velho barão que, não percebendo que eu tinha chegado aí pelo inglês, ficou tendo em alta consideração o meu saber malaio. Estive ainda folheando o cartapácio, à laia de quem sabe magistralmente aquela espécie de vasconço, até que afinal contratamos as condições de preço e de hora, comprometendo-me a fazer com que ele lesse o tal alfarrábio antes de um ano.

Dentro em pouco, dava a minha primeira lição, mas o velho não foi tão diligente quanto eu. Não conseguia aprender a distinguir e a escrever nem sequer quatro letras. Enfim, com metade do alfabeto levamos um mês e o Senhor Barão de Jacuecanga não ficou lá muito senhor da matéria: aprendia e desaprendia.

A filha e o genro ( penso que até aí nada sabiam da história do livro) vieram a ter notícias do estudo do velho; não se incomodaram. Acharam graça e julgaram coisa boa para distraí-lo. Mas com que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro, é com a admiração que o genro ficou tendo pelo professor de javanês. Que coisa única! Ele não se cansava de repetir: "É um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso, ah! onde estava!"

O marido de Dona Maria da Glória ( assim se chamava a filha do barão), era desembargador, homem relacionado e poderoso; mas não se pejava em mostrar diante de todo o mundo a sua admiração pelo meu javanês. Por outro lado, o barão estava contentíssimo. Ao fim de dois meses, desistira da aprendizagem

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e pedira-me que lhe traduzisse, um dia sim outro não, um trecho do livro encantado. Bastava entendê-lo, disse-me ele; nada se opunha que outrem o traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo e cumpria o encargo.

Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e impingi-as ao velhote como sendo do crônicon. Como ele ouvia aquelas bobagens!... Ficava extático, como se estivesse a ouvir palavras de um anjo. E eu crescia a seus olhos! Fez-me morar em sua casa, enchia-me de presentes, aumentava-me o ordenado. Passava, enfim, uma vida regalada.

Contribuiu muito para isso o fato de vir ele a receber uma herança de um seu parente esquecido que vivia em Portugal. O bom velho atribuiu a coisa ao meu javanês; e eu estive quase a crê-lo também.

Fui perdendo os remorsos; mas, em todo o caso, sempre tive medo de que me aparecesse pela frente alguém que soubesse o tal patuá malaio. E esse meu temor foi grande, quando o doce barão me mandou com uma carta ao Visconde de Caruru, para que me fizesse entrar na diplomacia. Fiz-lhe todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância, o meu aspecto tagalo. — "Qual! retrucava ele. Vá, menino; você sabe javanês!" Fui. Mandou-me o visconde para a Secretaria dos Estrangeiros com diversas recomendações. Foi um sucesso. O diretor chamou os chefes de seção: "Vejam só, um homem que sabe javanês — que portento!"

Os chefes da seção levaram-me aos oficiais e amanuenses e houve um destes que me olhou mais com ódio do que com inveja ou admiração. E todos diziam: "Então sabe javanês? É difícil? Não há quem o saiba aqui!" O tal amanuense, que me olhou com ódio, acudiu então: "É verdade, mas eu sei canaque. O senhor sabe?" Disse-lhe que não e fui à presença do ministro.

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A alta autoridade levantou-se, pôs as mãos às cadeiras, consertou o pince-nez no nariz e perguntou: " Então, sabe javanês?" Respondi-lhe que sim; e, à sua pergunta onde o tinha aprendido, contei-lhe a história do tal pai javanês. "Bem, disse-me o ministro o senhor não deve ir para a diplomacia; o seu físico não se presta... O bom seria um consulado na Àsia ou Oceania. Por ora, não há vaga, mas vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fica adido ao meu ministério e quero que, para o ano, parta para Bâle, onde vai representar o Brasil no congresso de Lingüística. Estude, leia o Hove-Iacque, o Max Müller, e outros!"

Imagina tu que eu até aí nada sabia de javanês, mas estava empregado e iria representar o Brasil em um congresso de sábios. O velho barão veio a morrer, passou o livro ao genro para que o fizesse chegar ao neto, quando tivesse a idade conveniente e fez-me uma deixa no testamento.

Pus-me com afã no estudo das línguas malaio-polinésias; mas não havia meio!

Bem jantado, bem vestido, bem dormido, não tinha energia necessária para fazer entrar na cachola aquelas coisas esquisitas. Comprei livros, assinei revistas: Revue Anthropologique et Linguistique, Proceedings of the English-Oceanic Association, Archivo Glottologico Italiano, o diabo, mas nada! E a minha fama crescia. Na rua, os informados apontavam-me, dizendo aos outros: "Lá vai o sujeito que sabe javanês." Nas livrarias, os gramáticos consultavam-me sobre a colocação dos pronomes no tal jargão das ilhas de Sonda. Recebia cartas dos eruditos do interior, os jornais citavam o meu saber e recusei aceitar uma turma de alunos sequiosos de entender o tal javanês. A convite da redação, escrevi, no Jornal do Commércio, um artigo de quatro colunas sobre a literatura javanesa antiga e moderna...

— Como, se tu nada sabias? — interrompeu-me o atento Castro.

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— Muito simplesmente: primeiramente, descrevi a ilha de Java, com o auxílio de dicionários e umas poucas de geografia, e depois citei a mais não poder.

— E nunca duvidaram? — perguntou-me ainda o meu amigo.

— Nunca. Isto é, uma vez quase fico perdido. A polícia prendeu um sujeito, um marujo, um tipo bronzeado que só falava em língua esquisita. Chamaram diversos intérpretes, ninguém o entendia. Fui também chamado, com todos os respeitos que a minha sabedoria merecia, naturalmente. Demorei-me em ir, mas fui afinal. O homem já estava solto, graças à intervenção do cônsul holandês, a quem ele se fez compreender com meia dúzia de palavras holandesas. E o tal marujo era javanês — uf!

Chegou, enfim, a época do congresso, e lá fui para a Europa. Que delícia! Assisti à inauguração e às sessões preparatórias. Inscreveram-me na seção do tupi-guarani e eu abalei para Paris. Antes, porém, fiz publicar no Mensageiro de Bâle o meu retrato, notas biográficas e bibliográficas. Quando voltei, o presidente pediu-me desculpas por me ter dado aquela seção; não conhecia os meus trabalhos e julgara que, por ser eu americano-brasileiro, me estava naturalmente indicada a seção do tupi-guarani. Aceitei as explicações e até hoje ainda não pude escrever as minhas obras sobre o javanês, para lhe mandar, conforme prometi.

Acabado o congresso, fiz publicar extratos do artigo do Mensageiro de Bâle, em Berlim, em Turim e em Paris, onde os leitores de minhas obras me ofereceram um banquete, presidido pelo Senador Gorot. Custou-me toda essa brincadeira, inclusive o banquete que me foi oferecido, cerca de dez mil francos, quase toda a herança do crédulo e bom Barão de Jacuecanga.

Não perdi meu tempo nem meu dinheiro. Passei a ser uma glória nacional e, ao saltar no cais Pharoux, recebi uma ovação de todas as classes sociais e o presidente da República, dias depois, convidava-me para almoçar em sua companhia.

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Dentro de seis meses fui despachado cônsul em Havana, onde estive seis anos e para onde voltarei, a fim de aperfeiçoar os meus estudos das línguas da Malaia, Melanésia e Poli

— É fantástico — observou Castro, agarrando o copo de cerveja.

— Olha: se não fosse estar contente, sabes que ia ser?— Quê? — Bacteriologista eminente. Vamos? — Vamos.

O Melhor das Palavras

Dentro de seis meses fui despachado cônsul em Havana, onde estive seis anos e para onde voltarei, a fim de aperfeiçoar os meus estudos das línguas da Malaia, Melanésia e Polinésia.

observou Castro, agarrando o copo de

Olha: se não fosse estar contente, sabes que ia ser?

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Julio Cesar Oliveira

O SONHO DO FEIJÃO Carlos Eduardo Novaes

Dona Abgail sentou-se na cama, sobressaltada, acordou

o marido e disse-lhe que havia sonhado que iria faltar feijão.Não era a primeira vez que esta cena ocorria. Dona Abgail consciente de seus afazeres de dona-de-casa vivia constantemente atormentada por pesadelos desse gênero. E de outros gêneros, quase todos alimentícios.

Ainda bêbado de sono o marido esticou o braço e apanhou a carteira sobre a mesinha de cabeceira: ”Quanto é que você quer?” A mulher pensou um pouco e pediu o suficiente para comprar 15 quilos, ”depois se a situação se agravar você me dá para comprar mais 15.” Levantou-se rápida, mudou de roupa e ligou para sua amiga, dona Etelvina que era uma espécie de líder das donas-de-casa de Irajá.

— Alô, Etelvina? Eu estou com o pressentimento de que vai faltar feijão. — Feijão também? Então deixa eu avisar rápido as

outras. Em menos de cinco minutos a notícia se espalhou por

toda a cidade. As donas-de-casa possuem uma misteriosa rede de comunicação por onde os boatos se propagam com a rapidez de um Boeing-747. É só alguém dizer que vai faltar, por exemplo, azeite, no Leblon, que em três minutos já se forma uma fila no Méier.

Ao sair para comprar o feijão, dona Abgail atrasou-se um pouco para deixar seus quatro filhos na escola.

Quando parou na porta do supermercado viu uma fila enorme que se estendia por mais de 80 metros. Perguntou a uma das enfileiradas:

— Que fila é essa? — É a do feijão.

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Julio Cesar Oliveira

Perfilou-se arrependida por ter revelado o seu sonho. Se não tivesse espalhado a notícia poderia fazer sua

compra tranqüilamente pois ninguém saberia que o feijão ia faltar. Depois, dona Abgail começou a encontrar outras amigas, estabeleceu-se um animado bate-papo e acabou achando que aquela fila estava ótima. Era uma das melhores que já freqüentara.

Existem algumas donas-de-casa que têm uma atração toda especial por fila. Para muitas há qualquer coisa de

heróico numa fila: a espera, a paciência e o que é mais importante, a entrada triunfal em casa sobraçando o tão disputado produto. Esta é a realização suprema da dona-de-casa, daí elas não permitirem que suas empregadas as substituam nas filas.

Quando chegou a sua hora de comprar, dona Abgail percebeu que as prateleiras já estavam vazias. Voltou-se para dona Etelvina ao seu lado e comentou: ”eu não disse que iria faltar feijão?”

Ao sair notaram que já havia mais três filas formadas: — Essa fila é de quê? — De pasta de dentes. — E essa? — Essa é de papel higiênico. — E essa? É pra quê? — Pra nada. É pra quem não tem o que fazer. Dona Abgail que já não arranjara o feijão pensou que deveria levar alguma outra coisa. Entrou na fila do papel

higiênico e convidou dona Etelvina para acompanhá-la, ”assim a gente aproveita e conversa um pouco.” Dona Abgail comprou 30 rolos de papel higiênico e voltou para casa. Deu de cara com o marido que assustou-se ao vê-la chegar assim carregada e não resistiu em perguntar:

— Tem alguém desarranjado aqui em casa? Com um apartamento pequeno, dona Abgail ficou sem

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Julio Cesar Oliveira

saber onde colocar aqueles 30 rolos. Resolveu recorrer à sua vizinha dona Olga, companheira de mais de 10 anos de fila:

— Olga, será que eu posso deixar uns 10 rolinhos de papel higiênico em sua casa? — Pode. Mas por quê? — Porque como vai faltar eu resolvi estocá-lo. — Vai faltar? Não me diga. E você não me avisou nada? Dona Olga se arrumou rapidamente e correu ao

supermercado. Já tinha oito filas, sendo que três delas só de papel higiênico. Para provar sua organização, as donas-de-casa fizeram uma fila para papel branco. Outra para papel rosa e outra para o azul. Dona Olga entrou na fila do azul que combinava com os azulejos de seu banheiro. Comprou 20 rolos (dona Olga era viúva e não tinha as mesmas condições econômicas de dona Abgail, que podia comprar rolos), cumprimentou algumas conhecidas de fila e perguntou:

— Alguém aí sabe o que vai faltar amanhã? — Não sei — disse uma senhora que parecia ser a coordenadora da fila — mas parece que vai faltar

azeitona. — Verde ou preta? — Ainda não decidimos. — Se for verde você me telefona que eu venho. A coordenadora informou também a dona Olga que

provavelmente faltaria arroz. Dona Olga retornou à sua casa e tratou de avisar a dona Abgail que faltaria arroz.

— Oba — gritou dona Abgail — essa fila é das boas. E correu ao quarto para botar o despertador para as

cinco horas. Dia seguinte levantou-se, fez o café do marido e saiu. A

fila ainda estava pequena. Entrou e, caminhando lentamente, foi esbarrar no balcão de enlatados: ”Ué, mas eu vim para a fila do arroz.

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Julio Cesar Oliveira

— Mas o arroz não vai faltar — disse-lhe um empregado

— não aqui. Parece que está faltando em Bangu. — E o senhor sabe se tem fila por lá? — Olha, até as seis horas a fila dava a volta no

quarteirão. Dona Abgail não pensou duas vezes. Pegou um táxi e foi para Bangu. Realmente a fila estava gigantesca.

Saltou e indagou: ”Essa é a fila do arroz?” — Não, é do óleo de soja. — Mas como do óleo de soja? Não tem óleo de soja. — Eu sei — respondeu uma enfileirada — mas quando

chegar nós já estamos na fila. A fila foi andando, andando e quando dona Abgail

encostou no balcão o óleo de soja ainda não havia chegado. Aí dona Abgail não teve outra alternativa, pensou um pouco e comprou mais 30 rolos de papel higiênico.

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Julio Cesar Oliveira

”CÃOMÍCIO” NO CALÇADÃO José Carlos Oliveira

Reunidos no calçadão central da Avenida Atlântica,

entre as Ruas Sousa Lima e Sá Ferreira, dezenas de cães, participaram sábado à tarde de um comício autorizado, em princípio, pela Administração Regional de Copacabana. Eram cachorros das mais variadas raças e dos mais diferentes tamanhos, desde Pastores Alemães até miniaturas Pintcher.

Junto ao meio-fio, no local da concentração, um carro-choque do Batalhão de Gatos, armados de unhas e dentes, garantia a ordem. O primeiro a subir ao tablado, que era um engradado de refrigerantes emborcado, foi um Poodle branquinho, de rabinho coto.

— Nossos donos são irresponsáveis! — gritou ele. — Abaixo os donos irresponsáveis! — respondeu a multidão raivosa (embora toda ela vacinada). — Todo o poder aos cachorros! — prosseguiu veemente

o Poodle branco, cujo focinho lembrava vagamente o de Jane Fonda, e que era tido, entre o Posto 6 e o Posto 4, como o líder inconteste do Dog-Power.

Em seguida, pediu a palavra um Weimaraner azulado, de olhos tristes. Do alto do caixote, falou ponderadamente:

— Meus modos, if. . . if. .. (estava chorando, o coitado). . . Meus modos refletem o do meu dono. . . Não quero mais, if if . . Não quero mais passar

vergonha sujando a calçada! — Nós também não! — responderam em uníssono os manifestantes caninos. Lá do meio do povo,

alguém latiu com voz de Pointer: — Nossos donos precisam aprender que lugar de cachorro fazer suas ”coisas” é em casa! — Bravo! Apoiado! — concordou a cãonalhada.

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Julio Cesar Oliveira

— Pipi-dog! Queremos pipi-dog! — puseram-se a ladrar umas cadelinhas Basset — cinco ou seis, provavelmente da mesma ninhada. — Somos moças de família, e portanto temos direito a um lugar no apartamento, onde possamos fazer a nossa toalete sem que os intrusos invadam a nossa privacidade!

— Muito bem! Falou! Podem crer! — entoaram em coro os cinco Dobermans que moram no Edifício Chopin, um dos mais luxuosos de Copacabana, e que fazem pipi — vejam só a heresia! — na piscina do Copacabana Palace, que fica logo ali ao lado.

Agora, estava no tablado um musculoso Boxer, com sua cara abobalhada e seu tradicional bom coração.

— Senhoras e senhores — disse ele — sejamos objetivos.

Desejo colocar em votação uma proposta simples, de três pontos, a qual, se aprovada, será encaminhada

aos nossos donos, em forma de abaixo-assinado. Primeiro ponto:

— ”Quero meu pipi-dog no apartamento”. — Apoiado! — gritou a assembléia. — Segundo ponto:. . . Mas, antes, para evitar tumulto,

prefiro que os distintos companheiros, em vez de latirem, ladrarem, rosnarem e coisa e tal, balancem o rabo em sinal de aprovação. Aqueles que não mais possuem rabo poderiam uivar, mas docemente, pois uma de nossas preocupações principais há de ser a de não agravar a poluição sonora, de maneira a não indispor a opinião pública contra a nossa causa. . .

Todos balançaram o rabo, em silêncio. A questão do orador fora aceita. Ele então prosseguiu:

— Segundo ponto: — ”Queremos fazer nosso Cooper canino apenas no calçadão central da Avenida Atlântica. . .”

Rabinhos balançaram para lá e para cá: aprovado.

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Julio Cesar Oliveira

— Terceiro ponto: — ”É preferível que não nos levem à praia, onde involuntariamente causamos uma porção de doenças!”

Rabinhos alegres: de acordo. — Desta forma — finalizou o Boxer — poderemos afirmar que somos felizardos e que temos donos

educados! — Nosso dono vai ser superlegal! — exclamou a

assembléia, esquecendo a recomendação de só balançar o rabo. Nessa altura, todos ali estavam com vontade de fazer cocô e pipi. Sendo assim, o Poodle branco decidiu dar por encerrada a reunião, recomendando que os manifestantes se dispersassem em ordem.

Mas nesse instante pulou no caixote um autêntico Vira-Lata, magrinho, de olhos famintos, as costelas aparecendo sob o pêlo ralo, o rabo entre as pernas.

— Irmãos! — bradou ele, ou melhor, soltou essa palavra num gemido. — Irmãos! Todos somos irmãos! Todos os cachorros são iguais! Portanto, o verdadeiro problema não está no pipi-dog doméstico nem no pinicão de apartamento. O necessário é que todos nós, os de pedigrees e os da rua, os de raça e os vira-latas, tenhamos, todos, direito aos cuidados veterinários periódicos, à vacinação gratuita, à alimentação farta e balanceada, à coleira protetora com sua placa de identificação, aos banhos seguidos

de talco contra pulgas . . Viva pois a revolução! Todo o poder aos cachorros, sem distinção de raça, cor ou credo!

— Uh! Fora! — gritaram os cães de luxo, que pertencem todos, naturalmente, à Direita, e preferem que as coisas continuem como estão, no plano mais amplo da justiça social. — Fora! Sarnento! Babão! Comedor de restos! Ralé!

A multidão de sócios do Kennel Club avançou na direção do anarquista, rosnando ameaçadoramente. Foi preciso que os gatos salvassem o Vira-Lata do linchamento inevitável,

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para o que o cercaram, dispersando a cachorrada ululante com bombas de gás lacrimogêneo.

Em seguida, o Batalhão de Gatos levou o Vira-Lata para o lugar adequado a essa espécie de agitador. Ele agora está sendo processado e é capaz de passar o resto da vida num canil-presí-dio. Acusação: trata-se de um CÃOMUNISTA.

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JÁ NÃO SE FAZEM PAIS COMO ANTIGAMENTE

Lourenço Diaféria

A grande caixa foi descarregada do caminhão com cuidado. De um lado estava escrito assim: ”Frágil”. Do outro lado estava escrito: ”Este lado para cima”. Parecia embalagem de geladeira, e o garoto pensou que fosse mesmo uma geladeira. Foi colocada na sala, onde permaneceu o dia inteiro. À noitinha a mãe chegou, viu a caixa, mostrou-se satisfeita, dando a impressão de que já esperava a entrega do volume.

O menino quis saber o que era, se podia abrir. A mãe pediu paciência, no dia seguinte viriam os técnicos para instalar o aparelho O equipamento, corrigiu ela, meio sem graça.

Era um equipamento. Não fosse tão largo e alto, podia-se imaginar um conjunto de som, talvez um sintetizador. A curiosidade aumentava. À noite o menino sonhou com a caixa fechada.

Os técnicos chegaram cedo, de macacão. Eram dois. Desparafusaram as madeiras, juntaram as peças brilhantes umas às outras, em meia hora instalaram o boneco, que não era maior do que um homem de mediana estatura. O filho espiava pela fresta da porta, tenso.

A mãe o chamou: — Filhinho, vem ver o papai que a mamãe trouxe. O filho entrou na sala acanhado com o artefato estranho:

era um boneco, perfeitamente igual a um homem adulto. Tinha cabelos encaracolados, encaaeeides nas têmporas, usava Trim, desodorante, fazia a barba com gilete ou aparelho elétrico, sorria, fumava cigarros king-size, bebia uísque, roncava, assobiava, tossia, piscava os olhos — às vezes um de cada vez — assoava o nariz, abotoava o paletó, jogava tênis, dirigia carro, lavava pratos, limpava a casa, tirava o pó dos móveis, fazia strogonoff,

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acendia a churrasqueira, lavava o quintal, estendia roupa, passava a ferro, engomava camisas, e dentro do peito tinha um disco que repetia: ”Já fez a lição? Como vai, meu bem? Ah, estou tão cansado! Puxa, hoje tive um trabalhão dos diabos! Acho que vou ficar até mais tarde no escritório. Você precisava ver o bode que deu hoje lá na firma! Serviço de dono-de-casa nunca é reconhecido! Meu bem, hoje não!”

O menino estava boquiaberto. Fazia tempo que sentia falta do pai, o qual havia dado no pé. Nunca se queixara, porém percebia que a mãe também necessitava de um companheiro. E ali estava agora o boneco, com botões, painéis embutidos, registros, totalmente transistorizado. O menino entendia agora por que a mãe trabalhara o tempo todo, muitas vezes chegando bem tarde. Juntara economias, sabe lá com que sacrifícios, para comprar aquele paizão.

— Ele conta histórias, mãe? Os técnicos olharam o garoto com indiferença. — Esse é o modelo ZYR-14, mais indicado para

atividades domésticas. Não conta histórias. Mas assiste a televisão. E pode ser acoplado a um dispositivo opcional, que permite longas caminhadas a campos de futebol. Sabendo manejá-lo, sem forçar, tem garantia para suportar crianças até seis anos. Porém não conta histórias, e não convém insistir, pode desgastar o circuito do monitor.

O garoto se decepcionou um pouco, sem demonstrar isso à mãe, que parecia encantada.

Ligado à tomada elétrica (funcionava também com bateria), o equipamento paterno já havia colocado os chinelos e, sem dizer uma palavra, foi até à mesa e apanhou o jornal.

A mãe puxou o filho pelo braço: — Agora vem, filhinho. Vamos lá para dentro, deixa

teu pai descansar.

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CONFUSO Luis Fernando Verissimo

O Consumidor acordou confuso. Saíam torradas do seu

rádio-despertador. De onde saía então — quis descobrir — a voz do locutor? Saía do fogão elétrico, na cozinha,

onde a Empregada, apavorada, recuara até a parede e, sem querer, ligara o interruptor da luz, fazendo funcionar o gravador na sala. O Consumidor confuso sacudiu a cabeça, desligou o fogão e o interruptor, saiu da cozinha, entrou no banheiro e ligou seu barbeador elétrico. Nada aconteceu. Investigou e descobriu que a sua Mulher, na cama, é que estava ligada e zunia como um barbeador. Abriu uma torneira do banheiro para lavar o sono do rosto. Talvez aquilo tudo fosse só o resto de um pesadelo. Pela torneira jorrou café instantâneo.

Confuso, o Consumidor escovou os dentes com o novo desodorante e sentou na tampa da privada — fazendo soar a campainha da porta — para pensar. Acendeu um batom Roxo Purple, nova sensação, da mulher. O que estaria acontecendo? Resolveu telefonar para o Amigo. Saiu do banheiro e foi para a sala.

Quando girou o disco do telefone a televisão a cores começou a funcionar. Pensou com rapidez. Foi até o televisor e, no selecionador de canais, discou o número do amigo. Saiu laranjada do telefone. Apagou o batom num cinzeiro e voltou para o quarto. A mulher acabava de acordar e, sonolenta, caminhava na direção do banheiro. Viu a Mulher fechar a porta do banheiro e dali a pouco ouviu a campainha da porta tocar de novo. Esperou. Quando a Mulher abriu a porta do banheiro e, confusa, lhe disse

”Querido.. .” ele antecipou: — Já sei. Saiu café da torneira da pia. — Não. Liguei o chuveiro e uma voz disse ”Alô?”

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Era o Amigo. — Deixe que eu falo com ele. Foi até o chuveiro falar com o Amigo. Contou tudo que

estava acontecendo. O Amigo disse que na sua casa era a mesma coisa, saía música do condicionador de ar e a televisão corria atrás das crianças dizendo bandalheira, era o fim do mundo. Foi quando o consumidor, confuso, viu que o novo secador de cabelo descia sozinho da sua prateleira, atravessava o chão do banheiro como um pequeno mas decidido tanque e saía pela porta. Disse para o Amigo que o chamaria de volta, desligou o chuveiro e saiu correndo.

O secador encaminhava-se lentamente para a cozinha, onde a Mulher e a Empregada, assustadas, testavam todas as utilidades domésticas. A janela da máquina de lavar roupa transmitia o padrão do Canal 10, e o fogão, agora, dava o noticiário das oito. O consumidor chegou a tempo de evitar que o secador atacasse sua mulher por trás. Atirou o secador com força contra a parede. Ouviu-se um berro de dor e fúria partindo dos alto-falantes do estéreo, na sala, e ao mesmo tempo a geladeira começou a movimentar-se pesadamente na direção do Consumidor, da Mulher e da empregada.

— A chave geral! — gritou o Consumidor. Saíram todos correndo pela porta da cozinha. Chegaram

até a chave geral. O Consumidor abriu a portinhola, puxou a alavanca e ouviu nitidamente que se ligava o motor do Dodge Dart na garagem. O melhor era fugir!

Correram para a garagem, entraram no carro, o consumidor botou em primeira, apertou o acelerador e um Boeing caiu em cima da casa.

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FELICIDADE CLANDESTINA Clarice Lispector

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos

excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia” e “saudade” .

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me

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mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a

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filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

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ASSALTO Carlos Drummond de Andrade

Na feira, a gorda senhora protestou a altos brados contra

o preço do chuchu: - Isto é um assalto! Houve um rebuliço. Os que estavam perto fugiram.

Alguém,correndo, foi chamar o guarda. Um minuto depois, a rua inteira, atravancada, mas provida de admirável serviço de comunicação espontânea, sabia que se estava perpetrando um assalto ao banco. Mas que banco? Havia banco naquela rua? Evidente que sim, pois do contrário como poderia ser assaltado?

- Um assalto! Um assalto!- a senhora continuava a exclamar, e quem não tinha escutado escutou, multiplicando a notícia. Aquela voz subindo do mar de barracas e legumes era como a própria sirena policial, documentando, por seu uivo, a ocorrência grave, que fatalmente se estaria consumando ali, na claridade do dia, sem que ninguém pudesse evitá-la.

Moleques de carrinho corriam em todas as direções, atropelando-se uns aos outros. Queriam salvar as mercadorias que transportavam. Não era o instinto de propriedade que os impelia. Sentiam-se responsáveis pelo transporte. E no atropelo da fuga, pacotes rasgavam-se, melancias rolavam, tomates esborracha-

vam-se no asfalto. Se a fruta cai no chão, já não é de ninguém; é de qualquer um, inclusive do transportador. Em ocasiões de assalto, quem é que vai reclamar uma penca de bananas meio amassadas?

- Olha o assalto! Tem um assalto ali adiante! O ônibus na rua transversal parou para assuntar.

Passageiros ergueram-se, puseram o nariz para fora. Não se via nada. O motorista desceu, desceu o trocador, um passageiro advertiu:

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- No que você vai a fim de ver o assalto, eles assaltam sua caixa.

Ele nem escutou. Então os passageiros também acharam de bom alvitre abandonar o veículo, na ânsia de saber, que vem movendo o homem, desde a idade da pedra até a idade do módulo lunar. Outros ônibus pararam, a rua entupiu.

- Melhor. Todas as ruas estão bloqueadas. Assim eles não podem dar no pé.

- É uma mulher que chefia o bando! - Já sei. A tal dondoca loura. - A loura assalta em São Paulo. Aqui é a morena. - Uma gorda. Está de metralhadora. Eu vi. - Minha Nossa Senhora, o mundo está virado! - Vai ver que está caçando é marido. Não brinca numa hora dessas. Olha aí sangue

escorrendo! - Sangue nada, tomate. Na confusão, circularam notícias diversas. O assalto

fora a uma joalheria, as vitrinas tinham sido esmigalhadas a bala. E havia jóias pelo chão, braceletes, relógios. O que os bandidos não levaram, na pressa, era agora objeto de saque popular. Morreram no mínimo duas pessoas, e três estavam gravemente feridas. Barracas derrubadas assinalavam o ímpeto da convulsão coletiva. Era preciso abrir caminho a todo custo. No rumo do assalto, para ver, e

no rumo contrário, para escapar. Os grupos divergentes chocavam-se, e às vezes

trocavam de direção: quem fugia dava marcha à ré, quem queria espiar era arrastado pela massa oposta. Os edifícios de apartamentos tinham fechado suas portas, logo que o primeiro foi invadido por pessoas que pretendiam, ao mesmo tempo, salvar o pêlo e contemplar lá de cima.

Janelas e balcões apinhados de moradores, que gritavam:

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- Pega! Pega! Correu pra lá! - Olha ela ali! - Eles entraram na kombi ali adiante! - É um mascarado! Não, são dois mascarados!Ouviu-se nitidamente o pipocar de uma metralhadora, a

pequena distância. Foi um deitar-no-chão geral, e como não havia espaço, uns caíam por cima de outros. Cessou o ruído. Voltou. Que assalto era esse, dilatado no tempo, repetido, confuso?

- Olha o diabo daquele escurinho tocando matraca! E a gente com dor-de-barriga, pensando que era metralhadora!

Caíram em cima do garoto, que soverteu na multidão.A senhora gorda apareceu, muito vermelha, protestando sempre:

- É um assalto! Chuchu por aquele preço é um verdadeiro assalto!

O Melhor das Palavras

É um mascarado! Não, são dois mascarados! se nitidamente o pipocar de uma metralhadora, a

chão geral, e como não ssou o ruído.

Voltou. Que assalto era esse, dilatado no tempo, repetido,

Olha o diabo daquele escurinho tocando matraca! E a barriga, pensando que era metralhadora!

Caíram em cima do garoto, que soverteu na multidão.A rda apareceu, muito vermelha, protestando sempre: É um assalto! Chuchu por aquele preço é um

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Julio Cesar Oliveira

SEMPRE HAVERÁ A COMIDA - OU UMA BARATA...

Stella Florence

Imagine uma pessoa que tem medo de baratas. Medo, não: pavor, ojeriza, aversão completa. Uma pessoa cuja simples verificação da existência de seis pernas ásperas de barata cascuda rastejando a dois metros de distância, pelo asfalto, já causa arrepios n'alma e um pulo desarticulado. Imaginou? OK. Assim será mais fácil compreender Ângela.

Um metro e sessenta e sete centímetros, cabelo encaracolado, nem comprido, nem curto, pele morena. E não mais falemos: ela se ofenderia. Você se ofenderia se lesse um episódio pessoal, verídico e íntimo — como verá aqui — debulhado ao público com todos os detalhes, não? Preservemos Ângela. Paremos por aqui a descrição de seus dotes físicos, a não ser por mais um detalhe. Não por maldade, ora, conheço Ângela há muito tempo e não a magoaria por nada, mas acontece que este "detalhe" da sua anatomia é essencial para a nossa narração: oitenta e três quilos e subindo.

Não ignorem o "subindo", por favor, ele é parte integrante do peso de Ângela. Se eu dissesse que ela pesa oitenta e três quilos e "descendo", a história seria radicalmente outra. Esse peso em escala descendente, ou seja, quando se está emagrecendo, é refrescante ponto a menos na balança, ó leveza, ó alegria, ó poder. Já oitenta e três quilos — a mesma quantidade de carne, osso e banha — quando se está atolado até o pescoço à compulsão desvairada pela comida, é deprimente furo a mais no cinto. Nesse estado não é costume freqüentar a balança, ao contrário: a engenhoca demoníaca é brutalmente empurrada com o pé para debaixo do armário, o mais fundo e longe possível das vistas.

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Ângela estava subindo: afogando na comida suas mágoas, ansiedades, ausências... Naquela noite o marido viajava a negócios: viajando, sempre estava; a negócios, ela não saberia dizer, nem queria. O caçula, saindo da adolescência, não parava em casa: morava mais no apartamento da namorada do que no próprio lar, além da faculdade e do estágio tomarem seu tempo restante.

O mais velho, há dois anos cursando a universidade de oceanografia na Capital, ligava de vez em quando para se dizer vivo e, com as contas normais atrasadas por causa da compra de algum equipamento novo, pedir dinheiro extra. O quanto Ângela, na fase das intermináveis lições de casa, desejou que eles já estivessem "criados" e agora... Não importa. Há a comida e o trabalho. Certo, a firma a estava pressionando para se aposentar no tempo devido, no entanto, mesmo depois disso, ainda haveria a comida. Ao menos, a comida haveria sempre.

Ângela alcançara, no momento indiscreto que pretendo narrar aqui, o pico da dependência: aquele ponto em que se alguém — chefe, mãe, filho, marido, ou avó — se colocasse entre ela e um filé à parmegiana, por exemplo, um braço torcido ou uma perna quebrada seria inevitável.

Tudo o que eu poderia fazer para poupar Ângela foi feito e mais não diria sem afetar sobremaneira sua intimidade. Voltemos à noite de ontem, quando tudo aconteceu.

Ângela chegou do trabalho carregando um saquinho de pães de queijo de cujo conteúdo viera se empanturrando no ônibus. Com a boca cheia do penúltimo petit four, abriu a porta da varanda para ventilar o ambiente, tirou as roupas incômodas, jogou-as de lado e foi direto ao chuveiro preparar-se para degustar, limpa e relaxada, o meio bolo de frutas cristalizadas e as latas de batatas Pringles sabor caipira que estavam na cozinha.

E foi nisso o que pensou nos oito minutos em que durou o banho. Mais tempo para quê, se o corpo já estava limpo? Se depilar para quê, se o marido — que achava antiestético pêlos

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livres — estava viajando, mais uma vez, a negócios? Lavar a cabeça para quê, se quanto mais sujo o cabelo menos precisava penteá-lo? Passar gel perfumado para quê, se ninguém iria cheirá-la? E mesmo se fosse, seria o marido; então, para quê? Uma rápida sova de sabonete ordinário estava bom demais.

Enxugou-se ligeira, meteu-se numa camisola velha, cal-çou um roto par de chinelos de pano, jogou a manta de lã — sempre tivera pés gelados — sobre o sofá, ligou a TV bem alto, e correu à cozinha para pegar seus desejados petiscos.

Abriu a porta. Ativou o interruptor. Foi em direção à geladeira. Assim que as luzes brancas — sempre meio retardadas — se acenderam, meio passo dentro da cozinha, Ângela viu. Enxergou.

No chão, estrategicamente posicionada entre a geladeira e o armário, uma barata olhava para Ângela, balançando as finas e longas antenas.

Ângela bateu a porta da cozinha aos berros e recuou trinta passos, quase despencando nove andares pela varanda da sala. Seus olhos se fixaram no corredor para que não fosse surpreendida por aquele ser repugnante em plena sala de visitas. Agachou, com o pescoço em riste, a fim de alcançar o jornal de domingo; enrolou um bocado e deu um passo a frente.

Uma barata. Uma nojenta, asquerosa, repulsiva e horrenda barata marrom. Lembrou-se do inseticida no alto do armário do banheiro. Se corresse até lá, pegasse o spray e voltasse imediatamente ao mesmo ponto, poderia flagrar a maldita em plena marcha caso ela estivesse vindo para sala, pois seu corredor era longo, quase cinco metros.

Num pé, Ângela estava no banheiro apanhando o veneno, no outro, retornara à entrada da varanda: um olhar perscrutador, passagem livre.

Respirou fundo, gotículas de suor tomavam corpo em sua fronte. Com o jornal numa mão e o spray na outra, Ângela entrou no corredor cuja luz estava bem acesa.

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Eis que, de repente, não mais que de repente (expressão que, apesar de ter criado fama nos versos de Vinícius, foi origi-nalmente dita por uma empregada do poetinha que, ao lhe pre-parar o uísque das seis, foi surpreendida por uma barata dentro do porta-gelo), a inimiga dá as caras, ou melhor, as antenas.

A danada passou pelo vão da porta da cozinha e parou. Encarava Ângela desafiadora, bulindo uma na outra as patas dianteiras e saracoteando as ignóbeis antenas. Depois de três segundos estanque, a barata avançou em direção a Ângela que, sem conseguir controlar os nervos, começou a gritar desbragadamente. Então, o pior tomou forma.

A barata parou um instante e agitou as asas peçonhentas. Agitou novamente, sempre encarando Ângela que, pregada de pânico no soalho do corredor, gritava a plenos pulmões. A barata ameaçou voar e cumpriu a promessa: levantou-se do chão, indo diretamente para o rosto de Ângela e, tão súbito quanto o movimento dessas malditas criaturas que nunca deveriam ter recebido asas da Providência, Ângela pensou no seu bolo de frutas cristalizadas, nas suas latas de batata frita, no último pão de queijo e, principalmente, no quanto precisava deles todos.

Empunhou o spray qual espada e disparou o jato para frente enquanto berrava — que de berrar, pelo menos, ninguém a podia impedir. A barata tonteou e recuou o vôo. No chão, pôs-se a caminhar para a direita, e Ângela, sem tirar o dedo do spray, gritando e pulando como se pisasse em brasa, mirava o veneno com instável determinação.

A voz, de tanta gritaria, começou a falhar enquanto a barata rodava de um lado a outro do corredor, mais lenta, nem por isso menos viva. Ângela mal respirava, seu estoque de oxigênio se transformava em berros, seu corpo todo balançava num chilique convulso, só o braço direito permanecia teso empunhando o escudo gasoso.

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Tomada de intensa coragem pela necessidade que a de-pendência da comida lhe infundia, Ângela deu um passo à frente, o dedo molhado com o líquido venenoso que jorrava sem parar, enquanto a barata, só a dar voltas, sacudiu novamente as asas. Foi o máximo: Ângela não pôde mais.

Lágrimas gordas jorraram imediatas e Ângela, enquanto chorava, rasgava a garganta em uivos enlouquecidos, agitando-se como doida. O apartamento já estava inundado com o cheiro do spray que prometia matar insetos de qualquer espécie numa tacada só e, em meio a seu desespero, ela pedia aos céus que o demônio morresse. Entretanto, a barata balançava ainda as antenas e, apesar de rastejar com certa lentidão, era impossível para Ângela se aproximar com segurança daquele verme resistente. Tamanha histeria fez saltar uma veia diagonal em sua testa e Ângela, de olhos, rosto e garganta inchados, se aproximou da barata (mantendo sempre distância razoável) em pulos curtos, sem largar um instante o botão do spray.

Enquanto pulava no mesmo lugar, Ângela tropeçou nos próprios pés e desabou ao chão, dando de cara com o bicho meio tonto. Reunindo um último fiapo de forças, Ângela cravou o jornal enrolado em cima da barata. Sem coragem de levantar o rolo, ela tascou a lata de veneno uma, duas, três, dez, vinte, cinqüenta vezes sobre o periódico até que nem um mamute pudesse permanecer vivo por baixo do que havia sido um dia o suplemento feminino.

Exausta, sentou-se ali mesmo. Enxugou o abundante suor do rosto que ameaçava pingar pelas próprias sobrancelhas. Verificou o estrago no pé: tornozelo inchado como um pão. Pensou então que precisaria da bolsa de gelo, de gelo também, claro, do livro do seguro-saúde, de uma caneta, do telefone e da agenda com o número do radiotáxi.

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Até agora, quase onze e meia da manhã de um sábado morno, Ângela, com o pé devidamente engessado, nem pensou em comida. Ao menos as baratas servem para alguma coisa.

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e onze e meia da manhã de um sábado morno, Ângela, com o pé devidamente engessado, nem pensou em comida. Ao menos as baratas servem para alguma coisa.

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RETRIBUIÇÃO Luis Fernando Verissimo

Não faz muito, as pessoas culpavam a bomba atômica

pela inconstância do tempo e pelas catástrofes naturais. Os testes atômicos de americanos e russos, na superfície da Terra, supostamente abalavam o esquema pré-ordenado de ventos e nuvens do planeta e os resultados eram acessos tropicais na Pata-gônia e súbitos invernos no Piauí. “Estão mexendo com a natureza... “, diziam as pessoas, em tom sombrio e ominoso.

Não demorava e as detonações atômicas desprenderiam de alguma remota geleira polar a Besta Final que espalharia o terror pelos continentes como retribuição do mundo natural às ofensas da ciência.

Ninguém discute que os testes atômicos eram criminosos, por outras razões, mas sempre achei muita graça das pessoas que pregam a inviolabilidade da natureza. Na maioria das vezes, são pessoas que desfrutam, dos pés aos cabelos, todos os benefícios na natureza violada. A civilização é um ultraje à natureza. Quase todo conforto material é antinatural. A medicina, nem se fala. Existe violação mais radical da natureza do que uma intervenção cirúrgica, por exemplo, ou o controle bacteriológico, ou todas as formas de imunização? Isto não tem nada a ver com ecologia, pois o desequilíbrio ecológico, um perigo real, ameaça o ambiente humano, não uma vaga e reverenciável pureza geográfica.

Ultimamente, como só os franceses, em esparsos exercícios de grandeur, fazem testes atômicos acima da superfície, começou a renascer a idéia do cataclismo como retribuição divina ao mau comportamento humano. Há pouco, na coluna do Dr. Corção, li a sugestão de que o terremoto da Nicarágua era um aviso à humanidade pelos seus desatinos. E ninguém estava sorrindo nem fazendo literatura, era sério.

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O terremoto foi contra a tanga e o topless. E, como todo apelo ao primitivo, a formulação não deixa de ter uma certa simplicidade lógica e atraente. Me digam uma coisa, aquele vulcão não explodiu na Islândia logo depois da estréia do Último tango em Paris? Hein? Hein? Lembro uma versão antiga de Os quatro cavaleiros do Apocalipse em que a dissolução final da sociedade era simbolizada por uma multidão enlouquecida dançando o boogie-woogie. É que antigamente era mais fácil identificar o pecado. Qualquer coisa mais ligeira do que uma valsa era uma capitulação ao Demônio. Hoje, com a Igreja dividida, a nudez triunfante, a nossa vida sexual totalmente exposta ao escrutínio científico, a pílula aí mesmo, o Demônio em desuso, o difícil é saber quando se está pecando ou apenas seguindo a moda. E então é fácil imaginar um diálogo mudo entre Deus e o Homem, o Homem experimentando e Deus sinalizando — com tremores de terra, furacões, avalanchas, raios — o que pode e o que não pode. — Querida, deixa. . . — Não, isso não. Nunca mais. — O que qui tem, meu bem? Ninguém vai ficar sabendo. — É que da última vez inundou toda a costa oriental do Paquistão! Por exemplo.

Diz que na manhã em que os jornais publicaram toda a extensão das enchentes catastróficas no interior do Estado, teve um cara que abriu de um golpe uma janela de segundo andar da Marli e gritou para a rua, compungido: — Culpa minha! Culpa minha!

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TENTAÇÃO Clarice Lispector

Ela estava com soluço. E como se não bastasse a

claridade das duas horas, ela era ruiva. Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da

menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.

Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.

Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.

A menina abriu os olhos pasmados. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.

Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela

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olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.

Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos. Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas

que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se, com urgência, com encabulamento, surpreendidos.

No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.

Mas ambos eram comprometidos. Ela com sua infância impossível, o centro da inocência

que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.

A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina. Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.

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A MÁSCARA DA CONVIVÊNCIA Stella Florence

Sueli tomava o mesmo ônibus todos os dias levando

consigo uma frasqueira preta, dois passes e uns trocados no eterno bolso do blazer de linho bastante largo e confortável em que sua figura redonda se protegia mais e melhor das zombarias alheias.

Apesar de morar numa cidade grande, era bastante co-mum encontrar os mesmos passageiros, o mesmo motorista, a mesma cobradora: a todos cumprimentava com um suave balançar de cabeça enquanto o suor já ameaçava escorrer pelas axilas, já que ela não tirava o blazer nem no mais alto verão. Parecia preferir uma forte enxaqueca a passar vergonha.

Chegava ao trabalho, impreterivelmente, antes das oito e meia. Dirigia um aceno suficiente ao porteiro, à recepcionista e à copeira, variando comentários sobre como o tempo, o trânsito ou o estado dos elevadores sempre desnivelados eram incômodos.

Por volta das nove e meia, Sueli dispunha sobre a mesa do chefe os pagamentos do dia acompanhados dos respectivos cheques enfileirados em cascata com notas explicativas, os principais jornais, bem como um novo par de luvas descartáveis para seu manuseio e as cartas prontas para assinatura numa pasta plástica azul, caso ele não desejasse despachar pessoalmente, o que era usual. Comunicavam-se por bip, celular e telefone comum o expediente todo, mesmo quando estavam apenas a alguns metros de distância.

Ainda cedo, ela ouvia todas as secretárias da empresa dando seus gritinhos matutinos seqüenciais enquanto Adriano, o estagiário xodó de todas elas, fazia sua peregrinação, assustando-as pelas costas, para deleite coletivo. Com Sueli, entretanto —

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pessoa seríssima a quem parecia faltar, inclusive, um certo senso de humor — , ele jamais tomara tais liberdades.

O office-boy responsável pela circulação dos documentos internos cruzava a mesa de Sueli nas mais diferentes horas, várias vezes por dia, e guardava-lhe profundo respeito por nunca ter presenciado outra fisionomia em seu rosto que não a placidez-prestativa-humilde-quase-triste de uma boa secretária.

Mais que uma boa secretária: Sueli era uma boa secretária gorda, o que a fazia bem mais humilde, servil e prestativa do que as outras, já que parecia dever algo aos superiores e colegas pelo simples fato de eles serem tão condescendentes para com sua deformidade plástica. Tinha de ser ou agir como se fosse grata: eles a haviam contratado mesmo sabendo que ela se locomoveria mais devagar do que as outras secretárias quando estivesse, por exemplo, servindo a uma reunião importante.

Ao meio-dia e meia Sueli subia até o refeitório e prepa-rava, diariamente, um diet shake como almoço. Limitava-se a comentar com os colegas de trabalho, que também usavam o refeitório, o quanto, para ela, era difícil emagrecer, que fazia dieta o tempo todo e ainda assim não emagrecia um grama e que só quebrava o regime nas festinhas da empresa, afinal é até falta de educação não comer o bolo que o chefe oferece de graça.

Depois da refeição frugal, Sueli descia para o seu andar e pegava, dentro de uma gavetinha sempre trancada, sua frasqueira preta (cujo conteúdo jamais fora revelado a ninguém) e um nécessaire para higiene pessoal. Também recolhia os jornais já liberados pelo chefe e se fechava no banheiro, àquele horário sempre vazio. Aproximadamente uma hora mais tarde, retornava ao trabalho, mesmo que este consistisse apenas em estar ali, solícita.

Nunca entrava em discussões ou fofocas e, escusando-se a pretexto de muito, muito trabalho, retirava-se das aglomerações ao redor da máquina de café sorrateiramente, quase de cabeça

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baixa, para não ofender ninguém. Quando a situação impunha a obrigatoriedade de um comentário, concordava com a maioria e emendava com uma queixa qualquer contra o prefeito ou o governador.

Ao se despedir, às seis da tarde, desejava a todos um bom descanso, amavelmente. O ritual de Sueli no escritório, semana após semana, fluía imutável. Foi um choque quando souberam-na presa por desacato à autoridade. Seu chefe — sempre frio e distante até então — decidiu não medir esforços para libertá-la do que só poderia ter sido um engano. Na delegacia, soube que Sueli fora presa em uma casa noturna suspeitíssima quando, se recusando terminantemente a ser revistada, dera um tapa de mão cheia no rosto de um policial. Não poderia ficar detida por muito tempo, mas, ao menos, passaria a noite ali como reprimenda, disse o delegado.

O chefe não quis vê-la, não estava acostumado a encará-la, ainda mais numa situação extraordinária como aquela. Preferia agir a ouvir lamúrias. Após uma operação simples que envolveu duas mãos molhadas a preço módico, ela foi solta e sua ficha magicamente limpa.

Depois de um banho demorado em casa, Sueli ligou para o celular do chefe e, chorando de mansinho, agradeceu sua atitude, digna de um homem bom. Segredou-lhe, entre diminutos soluços, ser um ex-namorado de sua irmã, de nome Geraldo, o policial que a prendera. Ela havia presenciado, há alguns anos — absolutamente por acaso, quando saía de um seminário para secretárias num hotel finíssimo — , o próprio acompanhado de uma dama vulgar em atitude indubitavelmente culposa.

Arrependera-se amargamente por ter contado o ocorrido à irmã, que se perdera no mundo depois da traição sofrida e hoje era cafetinada justamente pelo ex-namorado, um policial corrupto. Estava ela resgatando a pobrezinha de uma casa de espetáculos duvidosa quando o drama se desenrolara.

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O chefe considerou desnecessários os agradecimentos e explicações, posto que acreditava nela; era sua secretária há seis anos. Ordenou que voltasse ao trabalho e esquecesse o ocorrido. Na mesma tarde, transmitiu um mail a todos os terminais do escritório — com exceção do dela — no qual se lia: "Nossa respeitável colega foi vítima de uma ação inescrupulosa da polícia. Qualquer comentário sobre esse assunto, com quem quer que seja, será considerado por mim falta grave, culminando em demissão sumária. Ajam normalmente."

Dessa forma, Sueli voltou ao trabalho e à rotina. Os funcionários, apavorados com a perspectiva de perderem o emprego, nada comentaram aos borbotões, como era de se esperar num caso como aquele. Aos poucos, de baixinho nos banheiros o assunto passou a não ser mais discutido e, por fim, foi esquecido. Tudo voltara ao normal.

Um ano se passou até que, numa quarta-feira de cinzas, Sueli disse ter recebido o telefonema de um primo-irmão comunicando o falecimento de sua mãe e a conseqüente necessidade de sua volta imediata à cidade natal. Expôs o fato ao chefe, contendo as redondas lágrimas num lencinho violeta, e este lhe concedeu licença por três dias úteis.

Assim que chegou em casa, Sueli abriu a misteriosa frasqueira preta. De dentro dela diversos raios acinzentados brotaram em filetes fracos e curtos. Ignorando a estranha luminosidade, ela umedeceu cuidadosamente as pontas dos dedos num fluido gelatinoso que tomava quase todo o conteúdo da frasqueira, levando-as ao queixo e à fronte. Alguns segundos depois, bordas sintéticas começaram a despregar de seu rosto qual clara em neve em tigela de louça. De posse das pontas, tirou, sem a menor dificuldade, uma máscara cor da pele contendo um ar de placidez-prestativa-humilde-quase-triste, mergulhando-a, imediatamente, no fluido indefinido com cuidado para que, ao trancar a frasqueira, a estranha película não grudasse nas suas extremidades secas.

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Apanhou vários vestidos leves e coloridos de verão, uma jaqueta de couro surrada, uma colônia, duas sandálias e jogou-os, displicentemente, dentro da mochila aberta sobre a cama. Foi até a sala, abaixou-se em frente a uma estante de madeira e, ao retirar alguns livros, um fundo falso foi revelado. Passou a mão na frasqueira e encaixou-a com toda delicadeza na abertura. Algum tempo depois, fechou o gás e os registros de água, desligou a chave geral da eletricidade e trancou a porta atrás de si.

Ao entrar no elevador, demorou-se alguns instantes admirando o próprio rosto: tez morena e delicada colorida por bochechas róseas, olheiras sutis, cílios longos, olhar leve e expressivo e um sorriso jovial, fresco, cintilante mesmo, escorrendo farto pelos cantos da boca.

Voltou quatro dias depois, no domingo à noite. Foi direto para a cama sem sequer acender as luzes do apartamento. No dia seguinte, acordou quarenta minutos mais cedo que de costume.

Tomou um banho cuidadoso, escovando com habilidade uma camada dourada de purpurina dos olhos, do colo, da barriga, da parte frontal das coxas e dos cabelos, prendendo-os, ainda molhados, num coque na altura da nuca; comeu três sanduíches com geléia e queijo prato, um copo de leite com chocolate e duas cocadas caseiras; vestiu-se toda de cinza e verde-musgo; encontrou no bolso da jaqueta de couro a falsa certidão de óbito de sua mãe (para, mesmo não sendo necessário, mostrá-la ao chefe) e passou-a para o blazer de linho; recuperou a frasqueira do fundo da estante, recolocou sua máscara da convivência e saiu para o escritório protegendo devidamente sua desafiadora e desaforada alegria de viver gorda.

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GALHARDO Luis Fernando Verissimo

Aconteceu de o grupo ficar hospedado num hotel de

Paris em que as paredes eram finas e podia-se ouvir um suspiro do quarto ao lado, quanto mais gemidos e outros ruídos associados ao sexo. Como os daquele casal, que sempre terminavam com a mulher

gritando — presumivelmente durante o orgasmo — "Ai, Galhardo! Ai, Galhardo!".

O grupo não se conhecia. Tinha sido organizado por uma agência de turismo para assistir às finais da Copa. Durante a viagem, não houve qualquer tipo de aproximação entre os componentes do grupo e só no terceiro ou quarto dia de Paris é que começou a confraternização. Por iniciativa de Marçal e Marília, que ocupavam o quarto ao lado do casal barulhento.

Durante um café da manhã, no hotel, Marçal contou o que fazia, Marília deu detalhes da vida familiar dos dois — casa, filhos etc. — e em pouco tempo estavam todos apresentando rápidos resumos de suas vidas, alguns até descobrindo afinidades, amigos, parentes ou fornecedores em comum, essas coisas. Só não tinham se manifestado ainda os vizinhos de quarto de Marçal e Marília, um homem retaco e sorridente e uma mulher loira, mais alta do que ele, que usava a camisa 9 do Ronaldo amarrada na frente, com o umbigo à mostra. Marçal virou-se para o homem e perguntou:

— E você, Galhardo? O homem não parou de sorrir. — Galhardo? Marçal hesitou, sabendo que tinha feito uma bobagem

mas que não podia recuar. — Seu nome não é Galhardo? — Jeremias Portinho. — Portinho, desculpe. Não sei de onde eu tirei o

Galhardo...

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— E eu sou a Sandra — disse a mulher. Naquela noite, depois da vitória contra o Chile, Sandra

estava ainda mais entusiasmada na hora do orgasmo. — Galhardo! Ai, Galhardo! No quarto ao lado, Marçal e Marília discutiam as

alternativas. — É adjetivo — propôs Marçal. Marília sustentava que era outro homem. Devia haver

outro homem, chamado Galhardo, com eles no quarto. — Como?! — reagiu Marçal. — Veio com eles na

mala? Um anão bom de cama? Um amante portátil? Deve ser adjetivo.

Na manhã do jogo final — na noite anterior, os gritos de "Ai, Galhardo!" tinham ecoado pelo hotel —, Marília não se conteve e disse a Sandra:

— Já sei por que o Marçal chamou seu marido de Galhardo. E que ele se parece muito com um amigo nosso chamado Galhardo. Talvez vocês conheçam...

Sandra estava olhando a ponta de um croissant, com cara de sono, como se decidindo se o croissant merecia uma mordida sua ou não.

— Eu conheci um Galhardo uma vez. Faz anos... Ela mordeu a ponta do croissant e continuou: — Mas ele não era nada parecido com o Portinho.

Durante o jogo, Marília disse a Marçal: — Desvendei o mistério do Galhardo. — O quê? — E evocação. Mas o Zidane tinha feito o segundo, e Marçal não queria

nem ouvir.

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O GRANDE MISTÉRIO Stanislaw Ponte Preta

Há dias já que buscavam uma explicação para os odores

esquisitos que vinham da sala de visitas. Primeiro houve um erro de interpretação: o quase imperceptível cheiro foi tomado como sendo de camarão. No dia em que as pessoas da casa notaram que a sala fedia, havia um soufflé de camarão para o jantar. Daí...

Mas comeu-se o camarão, que inclusive foi elogiado pelas visitas, jogaram as sobras na lata do lixo e — coisa estranha — no dia seguinte a sala cheirava pior.

Talvez alguém não gostasse de camarão e, por cerimônia, embora isso não se use, jogasse a sua porção debaixo da mesa. Ventilada a hipótese, os empregados espiaram e encontraram apenas um pedaço de pão e uma boneca de perna quebrada, que Giselinha esquecera ali. E como ambos os achados eram inodoros, o mistério persistiu.

Os patrões chamaram a arrumadeira às falas. Que era um absurdo, que não podia continuar, que isso, que aquilo. Tachada de desleixada, a arrumadeira caprichou na limpeza. Varreu tudo, espanou, esfregou e... nada. Vinte e quatro horas depois, a coisa continuava. Se modificação houvera, fora para um cheiro mais ativo.

À noite, quando o dono da casa chegou, passou uma espinafração geral e, vitima da leitura dos jornais, que folheara no lotação, chegou até a citar a Constituição na defesa de seus interesses.

— Se eu pago empregadas para lavar, passar, limpar, cozinhar, arrumar e ama-secar, tenho o direito de exigir alguma coisa. Não pretendo que a sala de visitas seja um jasmineiro, mas feder também não. Ou sai o cheiro ou saem os empregados.

Reunida na cozinha, a criadagem confabulava. Os debates eram apaixonados, mas num ponto todos concordavam:

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ninguém tinha culpa. A sala estava um brinco; dava até gosto ver. Mas ver, somente, porque o cheiro era de morte.

Então alguém propôs encerar. Quem sabe uma passada de cera no assoalho não iria melhorar a situação?

-- Isso mesmo — aprovou a maioria, satisfeita por ter encontrado uma fórmula capaz de combater o mal que ameaçava seu salário.

Pela manhã, ainda ninguém se levantara, e já a copeira e o chofer enceravam sofregamente, a quatro mãos. Quando os patrões desceram para o café, o assoalho brilhava. O cheiro da cera predominava, mas o misterioso odor, que há dias intrigava a todos, persistia, a uma respirada mais forte.

Apenas uma questão de tempo. Com o passar das horas, o cheiro da cera — como era normal — diminuía, enquanto o outro, o misterioso — estranhamente, aumentava. Pouco a pouco reinaria novamente, para desespero geral de empregados e empregadores.

A patroa, enfim, contrariando os seus hábitos, tomou uma atitude: desceu do alto do seu grã-finismo com as armas de que dispunha, e com tal espírito de sacrifício que resolveu gastar os seus perfumes. Quando ela anunciou que derramaria perfume francês no tapete, a arrumadeira comentou com a copeira:

— Madame apelou para a ignorância. E salpicada que foi, a sala recendeu. A sorte estava

lançada. Madame esbanjou suas essências com uma altivez digna de uma rainha a caminho do cadafalso. Seria o prestigio e a experiência de Carven, Patou, Fath, Schiaparelli, Balenciaga, Piguet e outros menores, contra a ignóbil catinga.

Na hora do jantar a alegria era geral. Nas restavam dúvidas de que o cheiro enjoativo daquele coquetel de perfumes era impróprio para uma sala de visitas, mas ninguém poderia deixar de concordar que aquele era preferível ao outro, finalmente vencido.

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Mas eis que o patrão, a horas mortas, acordou com sede. Levantou-se cauteloso, para não acordar ninguém, e desceu as escadas, rumo à geladeira. Ia ainda a meio caminho quando sentiu que o exército de perfumistas franceses fora derrotado. O barulho que fez daria para acordar um quarteirão,quanto mais os da casa, os pobres moradores daquela casa, despertados violentamente , e que não precisavam perguntar nada para perceberem o que se passava. Bastou respirar.

Hoje pela manhã, finalmente, após buscas desesperadas, uma das empregadas localizou o cheiro. Estava dentro de uma jarra, uma bela jarra, orgulho da família, pois tratava-se de peça raríssima, da dinastia Ming.

Apertada pelo interrogatório paterno Giselinha confessou-se culpada e, na inocência dos seus 3 anos, prometeu não fazer mais.

Não fazer mais na jarra, é lógico.

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O HOMEM DAS NÁDEGAS FRIAS Stanislaw Ponte Preta

A historinha que vai contada abaixo, naquele estilo

literário que fez de Stanislaw Ponte Preta um escritor de importância transcendental, é absolutamente verdadeira e — a par de ser jocosa — serve para provar que na época hodierna a mulher está tão desacostumada ao cavalheirismo, que engrossa a toda hora, por falta de treino.

A pessoa que foi testemunha do episódio merece todo crédito e garante que aconteceu no interior de um desses ônibus elétricos que a irreverência popular apelidou de chifrado. O ônibus vinha lotado e, como acontece com tanta freqüência, com vários passageiros em pé. Antigamente, quando havia passageiro em pé, era tudo homem, porque a delicadeza mandava que os cavalheiros cedessem seus lugares às damas. Hoje, porém, é na base do chega-pra-lá.

Vai daí, havia um senhor que estava sentado distraidamente lendo o seu jornal e nem percebeu que havia em pé, ao seu lado, uma jovem senhora dessas que não são nem de capelão largar batina, nem de mandar dizer que não está. Em suma: uma mulher bastante razoável.

O senhor acabou de ler o seu jornal, dobrou-o e deu aquela espiada em volta, ocasião em que percebeu a distinta viajando em pé, ao seu lado. Devia ser um cavalheiro de conservar hábitos d'antanho porque, imediatamente, levantou-se e disse pra dona:

— Faça o obséquio de sentar-se, minha senhora. Seu ato não parecia esconder segundas intenções, tão espontâneo ele foi. Mas, se o cavalheiro era antigão, a madama era moderninha. Achou logo que o senhor estava querendo fazer hora com ela e, desacostumada ao gesto delicado, torceu o nariz e falou:

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— Muito obrigada, mas eu não sento em lugar quente. Houve risinho esparso pelo ônibus e comentários velados, o que deixaria o senhor com cara de tacho, não fosse ele — conforme ficou provado — pessoa de muita presença de espírito.

Notando que todos o olhavam como se ele fosse um palhaço, o gentil passageiro voltou a sentar-se e disse, no mesmo tom de voz da grosseira passageira, isto é, naquele tom de voz que desperta a atenção geral:

— Sinto muito que o lugar esteja quente, minha senhora. Mas não existe nenhum processo que nos permita carregar uma geladeira no rabo.

Alias, ele não disse rabo. Ele disse mesmo foi bunda

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BOTECOS Luis Fernando Verissimo

Tinha uma mania: colecionava botecos. Não os

freqüentava, apenas. Era um estudioso. Gostava de descobrir botecos e recomendar para os amigos. Ultimamente vinha se especializando - um refinamento da sua paixão - no que chamava de botecos asquerosos. Daqueles que nenhum fiscal da Saúde Pública incomoda porque não passa pela porta sem desmaiar. Seu rosto se iluminava na frente de um boteco asqueroso recém-descoberto.

Não resistia e entrava. Depois contava para os amigos. - Uma glória. Sabe ovo boiando em garrafão com água? -Repelentes,é?

As galinhas não os receberiam de volta. A própria mãe! Descrevia o boteco com carinhoso entusiasmo.

- E que moscas. Que moscas! Só não tinha paciência com o falso sórdido. Alguns

botecos assumiam suas privações como uma declaração de falta de princípios. Ele preferia o sórdido inconsciente, o sórdido autêntico. Principalmente o sórdido pretensioso.

Uma vez contara, extasiado, uma cena. Terminara de comer uma inominável almôndega, pedira um palito para o dono do boteco e desencadeara uma busca barulhenta e mal-humorada, com o dono procurando por toda a parte e gritando para a mulher:

- Cadê o palito? Finalmente o dono encontrara o palito, atrás da orelha, e

o oferecera. Ele se emocionava só de contar. Os amigos, sabendo da sua paixão, mantinham-se atentos para botecos sórdidos que pudessem interessá-lo. Muitos ele já conhecia.

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Um que tem uma Virgem Maria pintada num espelho com uma barata esmigalhada de tapa-olho? Vou seguido. A cachaça é tão braba que tem bula com contra-indicação.

Outro dia lhe trouxeram a notícia do pior dos botecos.Não era um boteco de quinta categoria. Era um boteco de última categoria. Ficava no limite entre a vida inteligente, e a vida orgânica. Ele precisava ir lá verificar.

Foi no mesmo dia. Ficou estudando o boteco de longe, antes de se aproximar. Tinha um garoto na porta do boteco. A função do garoto era atacar cachorros sarnentos. Quando passava um cachorro sarnento o garoto o enxotava

- para dentro do boteco! Ele atravessou a rua na direção do boteco com aquele

brilho no olhar que tem o pesquisador no limiar da grande revelação, ou o santo antes do doce martírio.

O Melhor das Palavras

Um que tem uma Virgem Maria pintada num espelho olho? Vou seguido. A

ção. Outro dia lhe trouxeram a notícia do pior dos botecos.

Não era um boteco de quinta categoria. Era um boteco de última categoria. Ficava no limite entre a vida inteligente, e a vida

dando o boteco de longe, antes de se aproximar. Tinha um garoto na porta do boteco. A função do garoto era atacar cachorros sarnentos. Quando passava

co com aquele brilho no olhar que tem o pesquisador no limiar da grande

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O MEDO DO VENTO Stella Florence

Janaína, do alto dos seus catorze anos, olhou-se no espe-

lho: as faces em brasa expunham todo o pânico que assolava sua alma adolescente. Não poderia, não conseguiria, é: não iria.

Felipe havia acabado de ligar convidando-a para um cineminha; logo ele, o garoto por quem era apaixonada desde a quinta série, resolve, três anos depois, para seu completo desespero, notá-la. O tal "cineminha na tarde de sábado" significava que ela teria, em primeiro lugar, de comparecer ao encontro. Frente a essa verdade irrefutável sentiu a pressão cair, amparou a cabeça zonza nas mãos geladas e sentou-se rapidamente no banquinho plástico do banheiro.

Como esconderia sua barriga protuberante, seus seios imensos e seu magno culote? O cabelo já ia pelo meio das costas, mas ainda não era capote suficiente. Um encontro como aquele pedia uma roupa diferente do uniforme azul-marinho cujas mangas do casaco se encontravam esgarçadas por estarem constantemente — inclusive no inverno — presas aos quadris: pedia algo esbelto, esguio.

E se não fosse? E se dissesse que tinha esquecido um outro compromisso? Não. Felipe era especial demais para que ela o fizesse pensar o contrário. Doença! Doença é a desculpa mais comum: catapora, caxumba, sarampo, quem sabe uma pneu-monia dupla e, assim, ganharia tempo para emagrecer até um outro convite de Felipe... Entretanto, não poderia sustentar a mentira virótica por muito tempo e, além do mais, seria um pouco difícil, para não dizer absolutamente improvável, que tais sintomas amadurecessem da sexta para o sábado.

Decidiu-se por um pé torcido, afinal pés se torcem de uma hora para outra, e já dera um passo em direção ao telefone a fim de acabar com aquela agonia — só o fato de Felipe a ter convidado para sair já era alegria para mais de ano na cronologia

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adolescente, época em que um nada de ilusão ainda alimenta — quando o dito tocou.

A voz amiga de sua prima Carla, revendedora de roupas, de quem Janaína era freguesa assídua, fez uma luz-de-fim-do-túnel acender em seu rosto.

— Carlinha, você me caiu do céu! Preciso urgente de uma roupa que me deixe magra para um encontro. Magra, Carlinha, magra!

Pois como não. Carlinha havia acabado de comprar uma leva de roupas com novidades à beca. Janaína correu para a casa da prima e, instalada com conforto no quarto de casal improvisado como provador, começou a experimentar tudo o que encontrava pela frente, inclusive peças que, visivelmente, não entrariam nem no seu tornozelo.

Após atender a uma cliente que viera comprar o kit da "dieta popcorn", Carlinha — que também vendia dietas — entrou no quarto encontrando Janaína com um ar desconsolado diante da montanha de roupas.

— E aí Janinha? Gostou de alguma coisa? Não? Vou te ajudar: comprei umas calças de lycra — ainda estão no armário — que são um arraso! Certeza que pelo menos uma delas vai ficar perfeita em você.

Mas, porém, contudo, entretanto, outrossim, Janaína queria ficar magra — magra de uma hora para a outra. Portanto, nada poderia ser mais adequado do que se enfiar numa calça um número menor que seu manequim. E ela fez questão disso, bateu o pé, fechou assunto. Carlinha, em respeito, inclusive, aos laços sangüíneos evocados por Janaína, consentiu e foi buscar a calça.

Assim começou a operação que poderíamos rotular como "preciso dessa calça agora", ou "engordei um pouquinho, mas deve entrar", talvez "como enfiar a calça jeans da sua irmã caçula", ou quem sabe "sem lenço e sem documento nos bolsos senão eles rasgam" e, por que não?, "mamãe, arranja talco"...

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Talco foi a única solução viável encontrada por Carla para que aquele pedacinho de pano elástico pudesse, talvez, entrar no corpo da prima.

Janaína besuntou-se com o pó cheiroso, especialmente nas coxas e em parte dos glúteos, e começou a puxar a calça, alternando cinco centímetros do lado esquerdo para cima, cinco do lado direito, sob o olhar apreensivo de Carlinha.

Quando a calça chegou à altura dos quadris (a ciência deve explicar isso de algum modo) uma cena dantesca havia se delineado. A silhueta das pernas de Janaína assemelhava-se a uma caixa d'água municipal: espremida na base e represada em forma de cogumelo no topo, a banha caindo por sobre a costura para lá de resistente.

Decidida, Janaína enroscou os dedos no passador do lado esquerdo e, dando um pulo aflito, conseguiu que ela subisse mais um pouco. Repetiu a operação com o passador do lado direito e assim, de pulo em pulo, um suadouro danado, a calça entrou. Entrou, mas não fechou. Com medo de estourar o zíper ou o dedo — já sangrara várias vezes o indicador tentando fechar zíperes — , deitou-se de costas numa clareira previamente aberta na cama para esse fim e rogou a Carla que a ajudasse.

— Vamos lá, Carlinha, tá quase, tá quase... Assim como o subir, o fechar da calça envolvia toda

uma técnica especial: enquanto Carlinha segurava um lado do zíper ao encontro do outro com força, no mínimo, brutal, Janaína o subia um pouquinho, mais uma seguradinha, mais uma fechadinha, mais uma forcinha, mais uma subidinha.

O resultado foi algo que Deus só não duvida porque permitiu que o homem, usando a inteligência por ele concedida, criasse coisas, por exemplo, como calças de lycra. A calça jeans pura, quando não entra, não entra e pronto: pode-se mugir, zunir, urrar. Mas a de lycra... estica. E se estica, tem de entrar.

O que se via no quarto abafado era o seguinte: Carlinha, encolhida no chão, assoprava as mãos inchadas enquanto

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Janaína, deitada na cama, molhada de suor, respirando como uma asmática, chupava o vinco profundo formado no dedo indicador.

Depois de alguns minutos descansando, Janaína rolou pela cama e, se apoiando na parede como uma lagartixa, ficou de pé. Sorriu para a prima.

— Ela está ótima, uau! Vou ficar sem comer hoj e pra poder sentar no cinema... meio inclinada, mas tudo bem. Olha como estou magrinha!

De fato, da barriga para baixo, estava magrinha. A cintura de Janaína — pois possuía uma e até bem definida — havia sumido por completo, já que toda a banha de baixo pulara para cima, recheando-a com pneus tala-larga e estômago de pomba exagerados em relação à realidade. Não que fosse magra: era uma adolescente, como centenas de outras, apenas cheinha; nada que justificasse tamanho sacrifício. Todavia, na cabeça de Janaína, seu corpo era o exato clone de um bípede massudo.

Ela voltou para casa cheia de alegria e expectativas pelo encontro do dia seguinte. Compôs um conjunto combinando o azul profundo da lycra com um camisão vinho, um lencinho azul do tom da calça para amarrar no pescoço e um sapato modelo boneca marrom-avermelhado.

A noite, não jantou. No sábado, não tomou café da manhã nem almoçou: se manteve em pé apenas com um copo de leite desnatado e meia pêra — para evitar mau hálito.

Dezessete horas. Dentro de casa, pronta, sentia-se segura e bonita — apesar da respiração entrecortada. Saiu.

Entrou no metrô. Assim que o primeiro vento tocou o corpo de Janaína, sua posição altiva começou a ser minada. A roupa colou-se em seu corpo sem folgas, evidenciando cada milímetro excedente. Ela vergou-se, puxou o blusão para frente em sentido oposto à pele a fim de que as gorduras saltadas não aparecessem, tornou-se corcunda, não abriu os braços, o rosto contraiu-se numa careta.

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A corrente de ar contínua nos corredores cimentados foi deixando-a, em princípio, angustiada: não conseguiria esconder do mundo suas excrescências se houvesse um mínimo de vento onde quer que fosse. Quando passou pela roleta, a angústia evoluíra ao desespero e, mais tarde, à profunda tristeza e incapacidade diante da vida.

Arrastou-se, desanimada, até o encontro. Assistiu ao filme com Felipe, que mesmo saudando-a com olhos sincera-mente interessados, mesmo dizendo com todas as letras que ela estava linda aquela tarde, mesmo tentando em vão abraçá-la, tocar sua mão, dar-lhe um beijo, não fez brotar sequer um sorriso nos lábios de Janaína ou diminuiu a tristeza que havia se tornado, em curto espaço de tempo, sua dona e senhora.

Quando, em casa, pôde ela se livrar da calça — para isso passando por nova operação complicadíssima — , apanhou o bolo de chocolate congelado do seu aniversário e, lascando a obturação de um molar na pedra gelada, pôs-se a comer como louca.

Desde então, com medo do vento a encontrar, a menina Janaína nunca mais saiu de casa, nem deixou que qualquer arzinho novo entrasse pelas janelas, portas ou frestas. A calça de lycra, aquela mesma, transformou-se num rolo improvisado, tapando eternamente o vão da porta de entrada, por onde uma brisa costumava entrar vez em quando.

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HISTÓRIA DE UM NOME Stanislaw Ponte Preta

No capítulo dos nomes difíceis têm acontecido coisas

das mais pitorescas. Ou é um camarada chamado Mimoso, que tem físico de mastodonte, ou é um sujeito fraquinho e insignificante chamado Hércules. Os nomes difíceis, principalmente os nomes tirados de adjetivos condizentes com seus portadores, são raríssimos, e é por isso que minha avó a paterna - dizia:

— Gente honesta, se for homem deve ser José, se for mulher, deve ser Maria!

É verdade que Vovó não tinha nada contra os joões, paulos, mários, odetes e — vá lá — fidélis. A sua implicância era, sobretudo, com nomes inventados, comemorativos de um acontecimento qualquer, como era o caso, muito citado por ela, de uma tal Dona Holofotina, batizada no dia em que inauguraram a luz elétrica na rua em que a família morava.

Acrescente-se também que Vovó não mantinha relações com pessoas de nomes tirados metade da mãe e metade do pai. Jamais perdoou a um velho amigo seu — o "Seu" Wagner — porque se casara com uma senhora chamada Emília, muito respeitável, aliás, mas que tivera o mau-gosto de convencer o marido de batizar o primeiro filho com o nome leguminoso de Wagem — "wag" de Wagner e "em" de Emília. É verdade que a vagem comum, crua ou ensopada, será sempre com "v", enquanto o filho de "Seu" Wagner herdara o "w" do pai. Mas isso não tinha nenhuma importância: a consoante não era um detalhe bastante forte para impedir o risinho gozador de todos aqueles que eram apresentados ao menino Wagem.

Mas deixemos de lado as birras de minha avó — velhinha que Deus tenha, em Sua santa glória — e passemos ao

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estranho caso da família Veiga, que morava pertinho de nossa casa, em tempos idos.

"Seu" Veiga, amante de boa leitura e cuja cachaça era colecionar livros, embora colecionasse também filhos, talvez com a mesma paixão, levou sua mania ao extremo de batizar os rebentos com nomes que tivessem relação com livros. Assim, o mais velho chamou-se Prefácio da Veiga; o segundo, Prólogo; o terceiro, Índice e, sucessivamente, foram nascendo o Tomo, o Capítulo e, por fim, Epílogo da Veiga, caçula do casal.

Lembro-me bem dos filhos de "Seu" Veiga, todos excelentes rapazes, principalmente o Capítulo, sujeito prendado na confecção de balões e papagaios. Até hoje (é verdade que não me tenho dedicado muito na busca) não encontrei ninguém que fizesse um papagaio tão bem quanto Capítulo. Nem balões. Tomo era um bom extrema-direita e Prefácio pegou o vício do pai - vivia comprando livros. Era, aliás, o filho querido de "Seu" Veiga, pai extremoso, que não admitia piadas. Não tinha o menor senso de humor. Certa vez ficou mesmo de relações estremecidas com meu pai, por causa de uma brincadeira. "Seu" Veiga ia passando pela nossa porta, levando a família para o banho de mar. Iam todos armados de barracas de praia, toalhas etc. Papai estava na janela e, ao saudá-lo, fez a graça:

— Vai levar a biblioteca para o banho? "Seu" Veiga ficou queimado durante muito tempo.

Dona Odete — por alcunha "A Estante" — mãe dos meninos, sofria o desgosto de ter tantos filhos homens e não ter uma menina "para me fazer companhia" - como costumava dizer. Acreditava, inclusive, que aquilo era castigo de Deus, por causa da idéia do marido de botar aqueles nomes nos garotos. Por isso, fez uma promessa: se ainda tivesse uma menina, havia de chamá-la Maria.

As esperanças já estavam quase perdidas. Epílogozinho já tinha oito anos, quando a vontade de Dona Odete tornou-se uma bela realidade, pesando cinco quilos e mamando uma

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enormidade. Os vizinhos comentaram que "Seu" Veiga não gostou, ainda que se conformasse, com a vinda de mais um herdeiro, só porque já lhe faltavam palavras relacionadas a livros para denominar a criança.

Só meses depois, na hora do batizado, o pai foi informado da antiga promessa. Ficou furioso com a mulher, esbravejou, bufou, mas — bom católico — acabou concordando em parte. E assim, em vez de receber somente o nome suave de Maria, a garotinha foi registrada, no livro da paróquia, após a cerimônia batismal, como Errata Maria da Veiga.

Estava cumprida a promessa de Dona Odete, estava de pé a mania de "Seu" Veiga.

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CONVERSA DE BOTEQUIM Fernando Sabino

— Essa rainha da Inglaterra vai acabar entrando pelo

cano. — Por quê? — Vir no Brasil uma hora dessas? Pau comendo solto

por aí... — Tem polícia pra proteger ela, que é que há? — Polícia? A polícia mesmo é que está baixando o pau,

armando bochincho... — Psiu, fala baixo, crioulo. Tá querendo ir em cana?

Meu chapa! Solta mais uma, bem gelada! — Vi o retrato dela na capa duma revista: até que é uma

coroa bem apanhada. Nós vamos tomar mais uma? — Vamos. Te agüenta aí que quem paga sou eu. Hoje

estou com o tutu. — O rei também vem? — Que rei? — Marido da rainha. — Tu é mesmo crioulo doido: o marido dela não é rei, é

príncipe. — Quem te disse isso? — Vai por mim. — Essa não! Marido de rainha só pode ser rei. Príncipe

é filho. — Pois o dela é príncipe. Deixa pra lá, tu não entende

disso: é coisa de inglês. — Um cara aí me disse que ela vai inaugurar a ponte

Rio—Niterói. — Só se for nadando: a ponte ainda nem começou! — Diz também que ela quer ver o Pelé jogar. — Cariocas e paulistas. Eu tou nessa boca. — A gente devia ter uma também, até que seria bacana.

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— Uma o quê? — Uma rainha. — Tu tá com essa rainha na cabeça, que é que há? — Por que é que não pode ter? — Porque aqui não é reinado, é presidência, só por isso.

Essa já não tá tão gelada. — Uma rainha era capaz de consertar essa joça. Pra te

falar a verdade... Posso falar a verdade? — Pode. Mas fala baixo, crioulo, que não tou pra entrar

em fria. Olha o doutor aí na outra mesa ouvindo a gente. Acaba essa e vamos pedir outra mais gelada.

— E daí? Tou falando o que todo mundo sabe: que esse país tá uma joça. E tá mesmo.

— Pronto, começou a ignorância. Continua assim, que eu vou puxando.

— Só uma rainha pra dar jeito nessa gente, botar respeito. Enquadrar essa polícia, esses milicos.

— Com essa eu me mando. Garotão! Suspende a brama, traz a nota! Tu ainda vai se dar mal, crioulo.

— Pera aí! Não tou falando nada demais. Só tou falando que uma rainha mesmo de verdade ficava no trono até morrer, todo mundo respeitava ela, não tinha esse negócio de toda hora tirar o presidente e botar outro. Tou certo ou não tou?

— Tu tá é no fogo, olha aí: entornou a lourinha. — No tempo do Getúlio não tinha dessas coisas:

Getúlio era feito uma rainha. — Não tinha? E o fim que ele teve? Pára com essa

conversa de comunista, crioulo, que tu ainda vai ver o sol nascer quadrado. A gente já não tivemos rainha? Princesa Isabel, Pedro II, essas coisas? E deu certo? Me diga se deu certo.

— Pede outra cerveja pra gente chulear a conversa. — Então muda de assunto. Pára de falar nessa rainha,

que já tá enchendo. — Então no que é que a gente vai falar?

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— Sei lá. Melhor ficar calado do que ficar falando besteira.

— Mas tu concorda que nem conversa boa a gente pode ter mais.

— Ah, isso eu concordo. Olha aí, essa tá que é uma beleza de gelada.

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OS BONS LADRÕES Paulo Mendes Campos

Morando sozinha e indo á cidade em um dia de festa,

uma senhora de Ipanema teve a sua bolsa roubada, com todas suas jóias dentro. No dia seguinte, desesperada de qualquer eficiência policial, recebeu um telefonema:

- É a senhora de quem roubaram a bolsa ontem? - Sim. - Aqui é o ladrão, minha senhora. - Mas como o... senhor descobriu o meu número? - Pela carteira de identidade e pela lista. - Ah, é verdade. E quanto quer para devolver meus

objetos? - Não quero nada, madame. O caso é que sou um

homem casado. - Pelo fato de ser casado, não precisa andar roubando.

Onde estão as minhas jóias, seu sujeito ordinário? - Vamos com calma, madame. Quero dizer que só

ontem, por um descuido meu, minha mulher descobriu quem eu sou realmente. A senhora não imagina o meu drama.

- Escute uma coisa, eu não estou para ouvir graçolas de um ladrão muito descarado...

- Não é graçola, madame. O caso é que adoro minha mulher.

- E por que o senhor está me contando isso? O que me interessa são jóias e a carteira de identidade (dá um trabalho danado tirar outra), e não tenho nada com a sua vida particular. Quero o que é meu.

- Claro, madame, claro. Estou lhe telefonando por isso. Imagine a senhora que minha mulher falou que me deixa imediatamente se eu não regenerar...

- Coitada! Ir numa conversa dessas.

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- Pois eu prometi nunca mais roubar em minha vida. - E ela bancou a pateta de acreditar? - Acho que não. Mas o que eu prometo, cumpro; sou um

homem de palavra. - Um ladrão de palavra, essa é fina. As minhas jóias

naturalmente o senhor já vendeu. - Absolutamente, estão em meu poder. - E quanto quer por elas, diga logo? - Não vendo, madame, quero devolvê-las. Infelizmente,

minha mulher disse que só acreditaria em minha regeneração se eu lhe devolvesse as jóias. Depois ela vai lhe telefonar para checar.

- Pois fique sabendo que estou gostando muito de sua senhora. Pena uma pessoa de tanto caráter casada com um...homem fora da lei.

- É também o que eu acho. Mas gosto tanto dela que estou disposto a qualquer sacrifício.

- Meus parabéns. O senhor vai trazer-me as jóias aqui? - Isso nunca. A senhora podia fazer uma suja. - Uma o quê? - A senhora, com o perdão da palavra, podia chamar a

policia. - Prometo que não chamo, não por sua causa, por causa

da sua senhora. - Vai me desculpar, madame, mas essa eu não vou. - Também sou uma mulher de palavra. - O caso, madame, é que nós, os desonestos, não

acreditamos na palavra dos honestos. - Tá. Mas como o senhor pretende fazer, então? - Estou bolando um jeito de lhe mandar as jóias sem

perigo para mim e sem que outro ladrão possa roubá-las. A senhora não tem uma idéia?

- O senhor entende mais disso do que eu.

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Julio Cesar Oliveira

- É verdade. Tenho um pano: eu lhe mando umas flores com as jóias dentro dum pequeno embrulho.

- Não seria melhor eu encontra-lo numa esquina? - Negativo! Tenho o meu pudor, madame. - Mas não há perigo de mandar coisa de tanto valor por

uma casa de flores? - Não. Vou seguir o entregador a uma certa distância. - Então, fico esperando. Não se esqueça da carteira. - Dentro de vinte minutos está tudo aí. - Sendo assim, muito agradecida e lembranças para sua

senhora. Dentro do prazo marcado, um menino confirmava que,

em certas ocasiões, até os ladrões mandam flores e jóias.

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Julio Cesar Oliveira

O DAY AFTER DO CARIOCA (OU: O DIA EM QUE O RIO DE JANEIRO

DERRETEU) Carlos Eduardo Novaes

Aparentemente aquele dia amanheceu igual a todos os

outros do mês de janeiro. Céu azul, lavado, um sol forte e musculoso ainda se espreguiçando, uma promessa de calor. Manhã sob medida para turistas, estudantes em férias e desempregados. O Rio, quando quer, sabe como nenhuma outra cidade se enfeitar para o verão. D. Odete Araújo abriu a janela de sua casinha em Bangu e girou a cabeça como se tentando perscrutar o tempo. Viu um cidadão parado na calçada segurando um cigarro. A fumaça do cigarro subia em linha reta, parecia traçada a régua. Não havia a mais leve brisa no ar. D. Odete respirou fundo, passou as costas da mão na testa gotejante e comentou com a vizinha:

— Acho que hoje chegaremos aos 45 graus. Os moradores de Bangu entendem mais do que todos de

altas temperaturas. A vizinha deu de ombros. Um grau a mais ou a menos não faz diferença neste inferno suburbano. Na véspera, os termômetros de Bangu acusaram 44.8 graus, quebrando os recordes dos anos de 84, 85, 86 e 87. D. Odete comentou num tom cabalístico que aquele era o 13º dia consecutivo que o Rio se debatia com uma febre de 40 graus.

No Centro da cidade, um movimento típico das manhãs de verão. As pessoas procurando as sombras, procurando os bares, procurando diminuir o ritmo. Nada de anormal. O contínuo Ademar Ferreira, porém, percebeu o termômetro digital, que uma hora antes acusava 43 graus, agora marcando 48. O amigo, com quem conversava numa esquina da Avenida Rio Branco, disse que os termômetros estavam de miolo mole. Ontem vira um marcando 54 graus. Ademar continuou

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conversando, tornou a olhar o termômetro: 49 graus. Notou certa inquietação no ar. Os transeuntes se mexiam mais, tiravam o paletó, afrouxavam a gravata: 50 graus. Outras pessoas começaram a perceber a escalada dos termômetros. O calor aumentava: 51 graus. Um grupo preocupado se reuniu em torno de um orelhão e ligou para o Serviço de Meteorologia. O que está acontecendo? Os cientistas admitiam que a temperatura subia. vertiginosa, mas desconheciam as razões. Estavam acompanhando uma frente fria encalhada na Patagônia.

As pessoas se aglomeravam diante dos termômetros como se acompanhassem o movimento de apostas no Jóquei: 53 graus. As expressões revelavam medo e tensão. O calor tornava-se escaldante. Era como se tivessem ligado o forno da Rio Branco: 55 graus. Não dava mais para ficar exposto ao sol. As pessoas procuraram proteção embaixo das marquises. Muitas, nervosas, se refugiavam em lojas e escritórios com ar condicionado: 56 graus. Um bando de honrados cidadãos invadiu uma loja de eletrodomésticos:

— Liguem os ventiladores, pelo amor de Deus! — Infelizmente vendemos todos — respondeu o vendedor, torcendo o lenço empapado de suor.

Na Zona Sul o pânico se alastrava como um rastilho de pólvora. Edevaldo Santos, vendedor de picolés na praia, notou que algo estranho acontecia quando abriu a caixa de isopor e viu os palitos boiando num caldo de sorvete: 60 graus. Não dava mais para atravessar a areia quente. Quem ficou na praia já não podia sair. Dois helicópteros procuravam transportar os banhistas. Primeiro, velhos e crianças! A praia, como a cidade, já estava sob o império do caos, apesar das rádios e televisões pedirem calma à população. A corda que pendia dos helicópteros era disputada a tapa: 65 graus. Faltava ar, a garganta secava, o corpo parecia incandescente. A estudante Luísa Coelho lembrou-se de Joana D'Arc. Teve início a invasão de bares, restaurantes, supermercados. Todos corriam às prateleiras de bebidas. Água,

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refrigerantes, cerveja, vinho, champanhe, qualquer líquido. Tinha gente bebendo Pinho-Sol.

O trânsito enlouqueceu de vez. Os motoristas abandonavam seus carros nos congestionamentos. Os ônibus eram largados em qualquer lugar. Os veículos transformavam-se em fornos crematórios: 74 graus. Os pneus começaram a derreter. Nas ruas as pessoas iam se desfazendo das roupas. Vários executivos foram vistos se esgueirando pelos cantos, de cueca, meias e pasta. Começou a invasão dos apartamentos com ar condicionado. Eles viraram uma espécie de abrigo nuclear. Só na minha sala havia 67 pessoas se empurrando para botar a cara na frente do aparelho: 80 graus. De repente ouviu-se um ruído e logo o silêncio do ar-condicionado. A cidade ficara sem energia. O calor derreteu os cabos da Light. O sol esquentava os vidros e o concreto dos prédios. Era insuportável o calor nos apartamentos. A população desesperada saiu às ruas à cata de sombras. Num poste em Madureira havia 23 pessoas espremidas e perfiladas ao longo de sua tira de sombra: 84 graus!

Os carros dos Bombeiros circulavam pelas ruas com um restinho de água molhando a população. "Aqui, aqui! Joga aqui antes que eu pegue fogo!" Os chafarizes da cidade. estavam mais cheios do que trem da Central. Milhares de. pessoas mergulhavam na Lagoa Rodrigo dA Freitas. Só que esta, como as outras lagoas da cidade, secava rapidamente. As poucas matas pegavam fogo. As ruas de terra rachavam ao melhor estilo nordestino. O asfalto começou a borbulhar. Ploft! A cidade se transformava num caldeirão: 88 graus. No cais do porto os marinheiros se atiravam do convés como se os navios estivessem naufragando. No Santos Dumont um avião da Ponte-Aérea, ao invés de levantar vôo, embicou dentro d'água. O piloto foi aplaudidíssimo pelos passageiros.

A temperatura estava em torno dos 94 graus. No Sumaré as antenas das emissoras de televisão adernavam, desmaiando lentamente. O Pão de Açúcar começou a derreter como um

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sorvete de casquinha. Uma mancha escura se espalhava pelo mar. No meio, boiando, o bondinho com turistas americanos fotografando tudo. Outros morros também derretiam. O Dois Irmãos, para surpresa geral, entrou em erupção. A estátua de Cristo tinha desaparecido do alto do Corcovado. Dizem que, quando o morro começou a desmanchar, Ele saiu voando com seus braços abertos. Todo mundo já estava tendo visões e alucinações. Nas calçadas da Visconde de Pirajá — lado da sombra — as pessoas se arrastavam aos gritos de "água, água". Eram inúmeras as miragens. O pipoqueiro Manuel de Souza jura que viu as Sete Quedas na Praça Nossa Senhora da Paz.

As 17h12min, por fim, o sol começou a perder a força. As pessoas, ainda desconfiadas, foram saindo de dentro das geladeiras, freezers, frigoríficos. Nas câmaras frigoríficas da Cibrazem — contou-se ... — havia 12 mil 344 pessoas. Uma sensação de forno quente pairava sobre o Rio. Somente à meia-noite os termômetros voltaram ao normal: 40 graus. Terminara o efeito-estufa, deixando um rastro de dor e destruição. Não havia uma única gota d'água na cidade. Fomos dormir e no Day After, como não havia trabalho, saímos todos para a praia. Pois creiam: no meio do comércio de sanduíches naturais, chapéus, cocadas, óleo para bronzear, o diabo, já tinha nego vendendo um aparelhozinho para dessalinizar a água do mar.

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A CESTA Paulo Mendes Campos

Quando a cesta chegou, o dono não estava. Embevecida,

a mulher recebeu o presente. Procurou logo o cartão, leu a dedicatória destinada ao marido, uma frase ao mesmo tempo amável e respeitosa.

Quem seria? Que amigo seria aquele que estimava tanto o marido dela? Aquela cesta, sem dúvida nenhuma, mesmo a uma olhada de relance custava um dinheirão. Como é que ela nunca tivera notícia daquele nome? Ricos presentes só as pessoas ricas recebem.

Eles eram remediados, viviam de salários, sempre inferiores ao custo das coisas. Sim, o marido, com o protesto dela, gostava de bons vinhos e boa mesa, mas isso com o sacrifício das verbas reservadas a outras utilidades.

De qualquer forma, aquela cesta monumental chegava em cima da hora. E se fosse um engano? Não, felizmente o nome e o sobrenome do marido estavam escritos com toda a clareza e o endereço estava certo. Alvoroçada, examinou uma a uma as peças envoltas em flores e serpentinas de papel colorido. Garrafas de uísque escocês, champanha francês, conhaque, vinhos europeus, pâté, licores, caviar, salmão, champignon, uma lata de caranguejos japoneses... Tudo do melhor. Mulher prudente, surripiou umas garrafas e escondeu-as nas gavetas femininas do armário. Conhecia de sobra a generosidade do marido: à vista daquela cesta farta, iria convidar todo o mundo para um devastador banquete. Isto não tinha nem conversa, era tão certo quanto dois e dois são quatro. Mas quem seria o amigo? Esperou o regresso do marido, morrendo de curiosidade.

E ei-lo que chega, ao cair da noite, cansado, sobraçando duas garrafas de vinho espanhol, uma garrafa de uísque engarrafado no Brasil, um modesto embrulho de salgadinhos.

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Caiu das nuvens ao deparar com a gigantesca cesta. Pálido de espanto, não tanto pelo valor material do presente (era um sentimental), mas pelo valor afetivo que o mesmo significava, começou a ler o cartão que a mulher lhe estendia. Houve um longo minuto de densa expectativa, quando, terminada a leitura, ele enrugou a testa e se concentrou no esforço de recordar. A mulher perguntava aflita:

- Quem é? Mais da metade da esperança dela desabou com a

desolada resposta: - Esta cesta não é para mim. - Como assim? Você anda ultimamente precisando de

fósforo. - Não é minha. - Mas olhe o endereço: é o nosso! O nome é o seu. - O meu nome não é só meu. Há um banqueiro que tem

o nome igualzinho. Está na cara que isto é cesta pra banqueiro. - Mas, o endereço? - Deve ter sido procurado na lista telefônica. Ela não queria, nem podia, acreditar na possibilidade do

equívoco. - Mas faça um esforço. - Não conheço quem mandou a cesta. - Talvez um amigo que você não vê há muito tempo. - Não adianta. - Você não teve um colega que era muito rico? - O nome dele é completamente diferente. E ficou

pobre! - Pense um pouco mais, meu bem. Novo esforço foi feito, mas a recordação não veio. Ela

apelou para a hipótese de um admirador. Afinal, ele era um grande escritor, autor de um romance que fizera sucesso e de um livro para crianças, que comovera leitores grandes e pequenos.

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- Um fã, quem sabe é um fã? - Mulher, deixa de bobagens... Que fã coisa nenhuma! - Pode ser sim! Você é muito querido pelos leitores. A idéia o afagou. Bem, era possível. Mas, em hipótese

nenhuma, ficaria com aquela cesta, caso não estivesse absolutamente certo de que o presente lhe

pertencia. - Sou um homem de bem! Era um homem de bem. Pegou o catálogo, procurou o

telefone do homônimo banqueiro, falou diretamente com ele depois de alguma demora: não é muito fácil um desconhecido falar a um banqueiro. Aí, a mulher ouviu com os olhos arregalados e marejados:

- Pode mandar buscar a cesta imediatamente. O senhor queira desculpar se minha mulher desarrumou um pouco a decoração. Mas não falta nada.

A mulher foi lá dentro, quase chorando, e voltou com umas garrafas nas mãos.

- Eu já tinha escondido estas. - Você é de morte. Coloque as garrafas na cesta. Vinte minutos depois, um carro enorme parava à porta,

subindo um motorista de uniforme. A cesta engalanada cruzou a rua e sumiu dentro do automóvel. Ele sorria, filosoficamente. Dos olhos da mulher já agora corriam lágrimas francas.

Quando o carro desapareceu na esquina, ele passou o braço em torno do pescoço da mulher:

- Que papelão, meu bem! Você ficou olhando para aquela cesta como se estivesse assistindo à saída de meu enterro. E ela, passando um lenço nos olhos:

- Às vezes é duro ser casada com um homem de bem.

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O HOMEM TROCADO Luís Fernando Veríssimo

O homem acorda da anestesia e olha em volta. Ainda

está na sala de recuperação. Há uma enfermeira do seu lado. Ele pergunta se foi tudo bem.

— Tudo perfeito — diz a enfermeira, sorrindo. — Eu estava com medo desta operação... — Por quê? Não havia risco nenhum. — Comigo, sempre há risco. Minha vida tem sido uma

série de enganos... E conta que os enganos começaram com seu

nascimento. Houve uma troca de bebês no berçário e ele foi criado até os dez anos por um casal de orientais, que nunca entenderam o fato de terem um filho claro com olhos redondos. Descoberto o erro, ele fora viver com seus verdadeiros pais. Ou com sua verdadeira mãe, pois o pai abandonara a mulher depois que esta não soubera explicar o nascimento de um bebê chinês.

— E o meu nome? Outro engano. — Seu nome não é Lírio? — Era para ser Lauro. Se enganaram no cartório e... Os enganos se sucediam. Na escola, vivia recebendo

castigo pelo que não fazia. Fizera o vestibular com sucesso, mas não conseguira entrar na universidade. O computador se enganara, seu nome não apareceu na lista.

— Há anos que a minha conta do telefone vem com cifras incríveis. No mês passado tive que pagar mais de R$ 3 mil.

— O senhor não faz chamadas interurbanas? — Eu não tenho telefone! Conhecera sua mulher por engano. Ela o confundira

com outro. Não foram felizes. — Por quê? — Ela me enganava.

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Fora preso por engano. Várias vezes. Recebia intimações para pagar dívidas que não fazia. Até tivera uma breve, louca alegria, quando ouvira o médico dizer:

— O senhor está desenganado. Mas também fora um engano do médico. Não era tão

grave assim. Uma simples apendicite. — Se você diz que a operação foi bem... A enfermeira parou de sorrir. — Apendicite? — perguntou, hesitante. — É. A operação era para tirar o apêndice. — Não era para trocar de sexo?

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MENINA NO JARDIM Paulo Mendes Campos

Em seus 14 meses de permanência neste mundo, a

garotinha não tinha tomado o menor conhecimento das leis que governam a nação. Isso se deu agora na praça, logo na chamada República Livre de Ipanema.

Até ontem ela se comprazia em brincar com a terra. Hoje, de repente, deu-lhe um tédio enorme do barro de que somos feitos: atirou o punhado de pó ao chão, ergueu o rosto, ficou pensativa, investigando com ar aborrecido o mundo exterior. Por um momento seus olhos buscaram o jardim à procura de qualquer novidade. E aí ela descobriu o verde extraordinário: a grama. Determinada, levantou-se do chão e correu para a relva, que era, vá lá, bonita, mas já bastante chamuscada pela estiagem.

Não durou mais que três minutos seu deslumbramento. Da esquina, um senhor de bigodes, representante dos

Poderes da República, marchou até ela, buscando convencê-la de que estava desrespeitando uma lei nacional, um regulamento estadual, uma postura municipal, ela ia lá saber o quê.

Diga-se, em nome da verdade, que no diálogo que se travou em seguida, maior violência se registrou por parte da infratora do que por parte da Lei, um guarda civil feio, mas invulgarmente urbano.

- Desce da grama, garotinha - disse a Lei. - Blá blé bli bá - protestou a garotinha. - É proibido pisar na grama - explicou o guarda. - Bá bá bá - retrucou a garotinha com veemência. - Vamos, desce, vem para a sombra, que é melhor. - Buh buh - afirmou a garotinha, com toda razão, pois o

sol estava mais agradável do que a sombra. A insubmissão da garotinha atingiu o clímax quando o

guarda estendeu-lhe a mão com a intenção de ajudá-la a

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abandonar o gramado. A gentileza foi revidada com um safanão. “Dura lex sed lex”.

- Onde está sua mamãe? A garotinha virou as costas ao guarda com desprezo. A

essa altura levantou-se do banco, de onde assistia à cena, o pai da garota, que a reconduziu sob chorosos protestos à terra seca dos homens, ao mundo sem relva que o Estado faculta ao ir e vir dos cidadãos.

A própria Lei, meio encabulada com o seu rigor, tudo fez para que o pai da garotinha se persuadisse de que, se não há mal para que uma brasileira tão pequenininha pise na grama, isso de qualquer forma poderia ser um péssimo exemplo para os brasileiros maiores.

- Aberto o precedente os outros fariam o mesmo - disse o guarda com imponência.

- Que fizessem, deveriam fazê-lo - disse o pai. - Como? - perguntou o guarda confuso e vexado. - A grama só podia ter sido feita, por Deus ou pelo

Estado, para ser pisada. Não há sentido em uma relva na qual não se pode pisar.

- Mas isso estraga a grama, cavalheiro! - E daí? Que tem isso? - Se a grama morrer, ninguém mais pode ver ela -

raciocinou a Lei. - E o senhor deixa de matar a sua galinha só porque o

senhor não pode mais ver ela? O guarda ficou perplexo e mudo. O pai, indignado,

chegou à peroração: - É evidente que a relva só pode ter sido feita para ser

pisada. Se morre, é porque não cuidam dela. Ou porque não presta. Que morra. Que seja plantado em nossos parques o bom capim do trópico. Ou que não se plante nada. Que se aumente pelo menos o pouco espaço dos nossos poucos jardins. O que é

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preciso plantar, seu guarda, é uma semente de bomsujeitos que fazem os regulamentos.

- Buh bah - concordou a menina, correndo em disparada para a grama.

- O senhor entende o que ela diz? - perguntou o guarda.- Claro - respondeu o pai. - Que foi que ela disse agora? - Não a leve a mal, mas ela mandou o regulamento para

o diabo que o carregue.

O Melhor das Palavras

preciso plantar, seu guarda, é uma semente de bom-senso nos

concordou a menina, correndo em disparada

perguntou o guarda.

Não a leve a mal, mas ela mandou o regulamento para

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MIOPIA PROGRESSIVA Clarice Lispector

Se era inteligente, não sabia. Ser ou não inteligente

dependia da instabilidade dos outros. Às vezes o que ele dizia despertava de repente nos adultos um olhar satisfeito e astuto. Satisfeito, por guardarem em segredo o fato de acharem-no inteligente e não o mimarem; astuto, por participarem mais do que ele próprio daquilo que ele dissera. Assim, pois, quando era considerado inteligente, tinha ao mesmo tempo a inquieta sensação de inconsciência: alguma coisa lhe havia escapado. A chave de sua inteligência também lhe escapava. Pois às vezes, procurando imitar a si mesmo, dizia coisas que iriam certamente provocar de novo o rápido movimento no tabuleiro de damas, pois era esta a impressão de mecanismo automático que ele tinha dos membros de sua família: ao dizer alguma coisa inteligente, cada adulto olharia rapidamente o outro, com um sorriso claramente suprimido dos lábios, um sorriso apenas indicado com os olhos, "como nós sorriríamos agora, se não fôssemos bons educadores" - e, como numa quadrilha de dança de filme de faroeste, cada um teria de algum modo trocado de par e lugar. Em suma, eles se entendiam, os membros de sua família; e entendiam-se à sua custa. Fora de se entenderem à sua custa, desentendiam-se permanentemente, mas como nova forma de dançar uma quadrilha: mesmo quando se desentendiam, sentia que eles estavam submissos às regras de um jogo, como se tivessem concordado em se desentenderem.

Às vezes, pois, ele tentava reproduzir suas próprias frases de sucesso, as que haviam provocado movimento no tabuleiro de damas. Não era propriamente para reproduzir o sucesso passado, nem propriamente para provocar o movimento mudo da família. Mas para tentar apoderar-se da chave de sua "inteligência". Na tentativa de descoberta de leis e causas, porém, falhava. E, ao repetir uma frase de sucesso, dessa vez era

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recebido pela distração dos outros. Com os olhos pestanejando de curiosidade, no começo de sua miopia, ele se indagava por que uma vez conseguia mover a família, e outra vez não. Sua inteligência era julgada pela falta de disciplina alheia?

Mais tarde, quando substituiu a instabilidade dos outros pela própria, entrou por um estado de instabilidade consciente. Quando homem, manteve o hábito de pestanejar de repente ao próprio pensamento, ao mesmo tempo que franzia o nariz, o que deslocava os óculos - exprimindo com esse cacoete uma tentativa de substituir o julgamento alheio pelo próprio, numa tentativa de aprofundar a própria perplexidade. Mas era um menino com capacidade de estática: sempre fora capaz de manter a perplexidade como perplexidade, sem que ela se transformasse em outro sentimento.

Que a sua própria chave não estava com ele, a isso ainda menino habituou-se a saber, e dava piscadelas que, ao franzirem o nariz, deslocavam os óculos. E que a chave não estava com ninguém, isso ele foi aos poucos adivinhando sem nenhuma desilusão, sua tranqüila miopia-exigindo lentes cada vez mais fortes.

Por estranho que parecesse, foi exatamente por intermédio desse estado de permanente incerteza e por intermédio da prematura aceitação de que a chave não está com ninguém - foi através disso tudo que ele foi crescendo normalmente, e vivendo em serena curiosidade. Paciente e curioso. Um pouco nervoso, diziam, referindo-se ao tique dos óculos. Mas "nervoso" era o nome que a família estava dando à instabilidade de julgamento da própria família. Outro nome que a instabilidade dos adultos lhe dava era o de "bem comportado", de "dócil". Dando assim um nome não ao que ele era, mas à necessidade variável dos momentos.

Uma vez ou outra, na sua extraordinária calma de óculos, acontecia dentro dele algo brilhante e um pouco convulsivo como uma inspiração.

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Foi, por exemplo, quando lhe disseram que daí a uma semana ele iria passar um dia inteiro na casa de uma prima. Essa prima era casada, não tinha filhos e adorava crianças. "Dia inteiro" incluía almoço, merenda, jantar, e voltar quase adormecido para casa. E quanto à prima, a prima significava amor extra, com suas inesperadas vantagens e uma incalculável pressurosidade - e tudo isso daria margem a que pedidos extraordinários fossem atendidos. Na casa dela, tudo aquilo que ele era teria por um dia inteiro um valor garantido. Ali o amor, mais facilmente estável de apenas um dia, não daria oportunidade a instabilidades de julgamento: durante um dia inteiro, ele seria julgado o mesmo menino.

Na semana que precedeu "o dia inteiro", começou por tentar decidir se seria ou não natural com a prima.

Procurava decidir se logo de entrada diria alguma coisa inteligente - o que resultaria que durante o dia inteiro ele seria julgado como inteligente. Ou se faria, logo de entrada, algo que ela julgasse "bem comportado", o que faria com que durante o dia inteiro ele seria o bem comportado. Ter a possibilidade de escolher o que seria, e pela primeira vez por um longo dia, fazia-o endireitar os óculos a cada instante.

Aos poucos, durante a semana precedente, o círculo de possibilidades foi se alargando. E, com a capacidade que tinha de suportar a confusão - ele era minucioso e calmo em relação à confusão - terminou descobrindo que até poderia arbitrariamente decidir ser por um dia inteiro um palhaço, por exemplo. Ou que poderia passar esse dia de um modo bem triste, se assim resolvesse. O que o tranqüilizava era saber que a prima, com seu amor sem filhos e sobretudo com a falta de prática de lidar com crianças, aceitaria o modo que ele decidisse de como ela o julgaria. Outra coisa que o ajudava era saber que nada do que ele fosse durante aquele dia iria realmente alterá-lo. Pois prematuramente - tratava-se de criança precoce - era superior à instabilidade alheia e à própria instabilidade. De algum modo

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pairava acima da própria miopia e da dos outros. O que lhe dava muita liberdade. Às vezes apenas a liberdade de uma incredulidade tranqüila. Mesmo quando se tornou homem, com lentes espessíssimas, nunca chegou a tomar consciência dessa espécie de superioridade que tinha sobre si mesmo.

A semana precedente à visita à prima foi de antecipação contínua. Às vezes seu estômago se apertava apreensivo: é que naquela casa sem meninos ele estaria totalmente à mercê do amor sem seleção de uma mulher. "Amor sem seleção" representava uma estabilidade ameaçadora: seria permanente, e na certa resultaria num único modo de julgar, e isso era a estabilidade. A estabilidade, já então, significava para ele um perigo: se os outros errassem no primeiro passo da estabilidade, o erro se tornaria permanente, sem a vantagem da instabilidade, que é a de uma correção possível.

Outra coisa que o preocupava de antemão era o que faria o dia inteiro na casa da prima, além de comer e ser amado. Bem, sempre haveria a solução de poder de vez em quando ir ao banheiro, o que faria o tempo passar mais depressa. Mas, com a prática de ser amado, já de antemão o constrangia que a prima, uma estranha para ele, encarasse com infinito carinho as suas idas ao banheiro. De um modo geral o mecanismo de sua vida se tornara motivo de ternura. Bem, era também verdade que, quanto a ir ao banheiro, a solução podia ser a de não ir nenhuma vez ao banheiro. Mas não só seria, durante um dia inteiro, irrealizável como - como ele não queria ser julgado "um menino que não vai ao banheiro" - isso também não apresentava vantagem. Sua prima, estabilizada pela permanente vontade de ter filhos, teria, na não ida ao banheiro, uma pista falsa de grande amor.

Durante a semana que precedeu "o dia inteiro", não é que ele sofresse com as próprias tergiversações. Pois o passo que muitos não chegam a dar ele já havia dado: aceitara a incerteza, e lidava com os componentes da incerteza com uma concentração de quem examina através das lentes de um microscópio.

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A medida que, durante a semana, as inspirações ligeiramente convulsivas se sucediam, elas foram gradualmente mudando de nível. Abandonou o problema de decidir que elementos daria à prima para que ela por sua vez lhe desse temporariamente a certeza de "quem ele era". Abandonou essas cogitações e passou a previamente querer decidir sobre o cheiro da casa da prima, sobre o tamanho do pequeno quintal onde brincaria, sobre as gavetas que abriria enquanto ela não visse. E finalmente entrou no campo da prima propriamente dita. De que modo devia encarar o amor que a prima tinha por ele?

No entanto, negligenciara um detalhe: a prima tinha um dente de ouro, do lado esquerdo.

E foi isso - ao finalmente entrar na casa da prima - foi isso que num só instante desequilibrou toda a construção antecipada.

O resto do dia poderia ter sido chamado de horrível, se o menino tivesse a tendência de pôr as coisas em termos de horrível ou não horrível. Ou poderia se chamar de "deslumbrante", se ele fosse daqueles que esperam que as coisas o sejam ou não.

Houve o dente de ouro, com o qual ele não havia contado. Mas, com a segurança que ele encontrava na idéia de uma imprevisibilidade permanente, tanto que até usava óculos, não se tornou inseguro pelo fato de encontrar logo de início algo com que não contara.

Em seguida a surpresa do amor da prima. É que o amor da prima não começou por ser evidente, ao contrário do que ele imaginara. Ela o recebera com uma naturalidade que inicialmente o insultara, mas logo depois não o insultara mais. Ela foi logo dizendo que ia arrumar a casa que ele podia ir brincando. O que deu ao menino, assim de chofre, um dia inteiro vazio e cheio de sol.

Lá pelas tantas, limpando os óculos, tentou, embora com certa isenção, o golpe da inteligência e fez uma observação

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sobre as plantas do quintal. Pois quando ele dizia alto uma observação, ele era julgado muito observador. Mas sua fria observação sobre as plantas recebeu em resposta um "pois é", entre vassouradas no chão. Então foi ao banheiro onde resolveu que, já que tudo falhara, ele iria brincar de "não ser julgado": por um dia inteiro ele não seria nada, simplesmente não seria. E abriu a porta num safanão de liberdade.

Mas à medida que o sol subia, a pressão delicada do amor da prima foi se fazendo sentir. E quando ele se deu conta, era um amado. Na hora do almoço, a comida foi puro amor errado e estável: sob os olhos ternos da prima, ele se adaptou com curiosidade ao gosto estranho daquela comida, talvez marca de azeite diferente, adaptou-se ao amor de uma mulher, amor novo que não parecia com o amor dos outros adultos: era um amor pedindo realização, pois faltava à prima a gravidez, que já é em si um amor materno realizado. Mas era um amor sem a prévia gravidez. Era um amor pedindo, a posteriori, a concepção. Enfim, o amor impossível.

O dia inteiro o amor exigindo um passado que redimisse o presente e o futuro. O dia inteiro, sem uma palavra, ela exigindo dele que ele tivesse nascido no ventre dela. A prima não queria nada dele, senão isso. Ela queria do menino de óculos que ela não fosse uma mulher sem filhos. Nesse dia, pois, ele conheceu uma das raras formas de estabilidade: a estabilidade do desejo irrealizável. A estabilidade do ideal inatingível. Pela primeira vez, ele, que era um ser votado à moderação, pela primeira vez sentiu-se atraído pelo imoderado: atração pelo extremo impossível. Numa palavra, pelo impossível. E pela primeira vez teve então amor pela paixão.

E foi como se a miopia passasse e ele visse claramente o mundo. O relance mais profundo e simples que teve da espécie de universo em que vivia e onde viveria. Não um relance de pensamento. Foi apenas como se ele tivesse tirado os óculos, e a miopia mesmo é que o fizesse enxergar. Talvez tenha sido a

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partir de então que pegou um hábito para o resto da vida: cada vez que a confusão aumentava e ele enxergava pouco, tirava os óculos sob o pretexto de limpá-los e, sem óculos, fitava o interlocutor com uma fixidez reverberada de cego.

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partir de então que pegou um hábito para o resto da vida: cada vez que a confusão aumentava e ele enxergava pouco, tirava os

los e, sem óculos, fitava o

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PESCARIA Stanislaw Ponte Preta

— Fomos uns cinco pescar — conta-nos o amigo que há

muito não encontrávamos. Tinha comprado um molinete e, segundo nos confessou, desde menino sonhava em ter o seu próprio molinete. Por isso aceitou o convite.

Quando o encontramos, às 11 horas da noite de sábado, estava cansadíssimo e queria ir dormir. Mesmo assim contou como foi a pescaria.

— Eles me convidaram dizendo que estava dando muito pampo na Barra da Tijuca. Passaram lá em casa às 7, me pegaram e saímos para comprar isca.

Ficaram comprando isca e lá pelas 9 horas entraram num bar para tomar um negócio porque estava ameaçando chuva e era preciso precaução. Às 11 horas, saíram do bar e tinha um camarada na porta vendendo siris.

— Vivos? — perguntamos: Nosso amigo diz que sim e que, por isso mesmo, era

preciso preparar. Ninguém levava comida para a pescaria e, portanto, até que seria bom cozinharem uns siris para fazer o farnel.

Na casa de um dele, a cozinheira foi avisada de que chegariam dentro em pouco com uma centena de siris para preparar. E de fato chegaram, lá pelas duas da tarde.

Foi tudo muito rápido. Às 5 horas os siris estavam prontinhos e todos sentados em volta da mesa, para experimentar. Trouxeram umas cervejas e foram comendo, foram comendo, até que chegou uma hora em que havia mais siris do que fome. Resolveram tomar providências e telefonaram para uns amigos.

— Venham comer siris.

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Os amigos chegaram com um violão e uma garrafa de uísque. Uísque vai, uísque vem, deu fome outra vez. Erhoras quando a cozinheira salvou a situação com uma panelada de carne-seca com abóbora. Uns sirizinhos antes, como aperitivo, e todos caíram na carne-seca.

Então deu vontade de cantar. Um lá pegou o violão, os outros suas caixas de fósforo e começaram a lembrar sambas antigos.

E nosso amigo, ainda com o caniço e o molinete na mão, confessa:

— Saí de lá agora. — E a pescaria? — Pescaria? Que pescaria?

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Os amigos chegaram com um violão e uma garrafa de uísque. Uísque vai, uísque vem, deu fome outra vez. Eram oito horas quando a cozinheira salvou a situação com uma panelada

seca com abóbora. Uns sirizinhos antes, como aperitivo,

Então deu vontade de cantar. Um lá pegou o violão, os ram a lembrar sambas

E nosso amigo, ainda com o caniço e o molinete na

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LÍGIA, POR UM MOMENTO! Ignácio de Loyola Brandão

“Há mais de um ano espero a chance para te fazer uma

pergunta”, disse Zé Mário. “Te dou uma carona, vamos conversando.” Aceitei, eram onze da noite, não havia como sair do Ibirapuera, a não ser que se achasse um táxi, na pura sorte. Ou atravessando as alamedas escuras, se conseguisse chegar ileso a um ponto de ônibus. Confesso, não tinha coragem de passar entre os eucaliptos e as capoeiras de arbustos. Ter medo de assalto é normal, facilitar é suicídio. Esse era o problema da Bienal do Livro. A saída. No final, as pessoas corriam como baratas, ansiosas em busca de amigos que pudessem levar.

Descemos para o estacionamento, Zé Mário me olhava receoso. Que pergunta seria esta que leva um ano a ser feita? Durante este tempo nos encontramos muitas vezes, ele sempre está em lançamento de livros, coquetéis, faculdades onde faço palestras. Freqüentamos os mesmos cinemas, as pessoas de um grupo idêntico, ele é professor de Teoria Literária e eu sou jorna-lista, escrevo uns contos de vez em quando. Circulamos dentro de áreas restritas, dificilmente fugindo a determinados limites. São os mesmos cinemas, teatros, os bares e restaurantes, mesmas pessoas nas mesmas festas. Talvez por isso eu esteja um pouco afastado; me cansa. Não quero que um dia possam dizer: “Ah, está à procura dele? Pois tem um coquetel para a venda de um saco de feijão, ele vai estar lá.” A gente precisa se resguardar um pouco, se conter. Se dar, porém lentamente, com menos sofre-guidão. Gosto de Zé Mário, ele veio do sul, era garoto ainda, estivemos apaixonados pela mesma mulher. Ganhei dele; e não ficou·meu inimigo, ao contrário, tentou se aproximar, e con-seguiu. “Naquele tempo, você exercia um fascínio sobre as pessoas, escrevia em jornal, era irônico, todo mundo tinha medo do que você dizia, era um cínico, agressivo. Exatamente o que eu

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queria ser, eu tinha chegado de Porto Alegre, queria conquistar São Paulo, lembra-se? Queria que me admirassem, as pessoas te curtiam, você tinha chegado da Europa trazendo discos da Joan Baez, o seu apartamento se enchia de gente.” Os discos da Baez. Tenho ainda exatamente os mesmos, nunca mais coloquei na vitrola. Por bloqueio. Não tenho coragem. Sei o que eles me trazem de volta. Ligação e rompimento. Uma tarde, Baez cantava “Baby I Gonna Leave You”, e essa tarde marcou minha vida, como a mais dolorida, ela me deixou com o sentido de rejeição que até hoje, homem maduro, carrego, cheio de insegurança.

Tinha chovido, mas o céu já estava limpo. Rompemos entre luzes irreais, o vapor de mercúrio tornava prateados os gramados úmidos, o silêncio era enorme.

— Pergunta, eu pedi, mais ansioso do que ele. — Sabe, percebi um dia que minha vida poderia ter sido

modificada. E não deixei. Você já teve esta sensação? — Na hora, não. Depois, sim. Mas depois é fácil ver as

coisas. Não dá para julgar, ou se sentir culpado. — É estranho que você esteja ligado a dois momentos

importantes de minha vida. Primeiro, aquela mulher que você ganhou. Tinha de ganhar, você era mais velho, no grupo todos falavam de você e de repente o homem de quem todos falam chega da Europa. Ela era uma atriz principiante, vinda de Porto Alegre. Claro, aceitei, eu também te admirava. Mas, desta vez, foi diferente.

— Diz logo, não fica rodeando. — Não sei, pode ser que eu tenha criado um mito na

minha cabeça. Não me interessa. Fiquei marcado e preciso saber. Talvez haja tempo. Preciso saber, e só você pode me ajudar. É di-fícil explicar. Ficou na minha cabeça. É uma obsessão. Vai ouvindo, depois me diz. Não, depois me ajuda! Tenho de resolver isso, não posso mais segurar. Se eu conseguir encontrá-la, pode ser que ainda me salve. Ando confuso, perdi minha tese por incapacidade de concentração. Acredita? Acho que não, você

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continua cínico, não pode ter idéia do que seja sentar-se à mesa para estudar, escrever, tomar notas, e não ver nada, não fixar uma só linha. Me fechei, completamente. Porque sei. Eu me recusei. Recusei uma coisa que desejava. Foi um daqueles momentos que decidem tua vida. Já teve disso? Saber que foi aquele instante e que o teu gesto, o teu próximo passo determinou tudo? Fui covarde, e não me conformo. Fiquei pensando: sempre é tempo. Hoje decidi. Vai ser esta noite: Esteja onde estiver, vou atrás dela. Se estiver em São Paulo, vou bater na porta, não interessa se casou ou não. Se mudou, encho o tanque e vou em frente, nem que tenha de atravessar o Brasil. Pareço bobo, não? Dom Quixote. Pode ser. Esta noite é pra valer. Resolvi.

— Se fosse mais claro, deixasse de falar para você mesmo, seria mais fácil.

— Estou assim, porque você precisa entender a importância. Agora compreendo a frase vida ou morte. É um lugar comum, só que estou dentro dele. Vida ou morte. Um ano atrás eu me apaixonei por uma mulher que estava com você. Nos vimos uma só noite. Nunca mais parei de pensar nela. Nunca mais. Dia e noite. Acordo, levanto, trabalho, durmo, acordo. Um ano. Marquei o dia, hora, tudo. Pareço um moleque, um adolescente? Assim que ela me deixou. Adolescente. Que maravilha. Fazia anos que não me sentia desse jeito. Dormindo abraçado ao travesseiro, imaginando que é ela. Pode? Um ho-mem desquitado, de quarenta anos, dois filhos? Até me dá um pouco de vergonha.

— Pois é, as pessoas andam tão fechadas que se envergonham das emoções. Então, negam tudo, se tornam intransponíveis, não percebem o encanto dos pequenos toques elétricos que fazem a gente vibrar, e viver.

— Deixa isso pra lá. Não te dei carona para analisar emoções da humanidade. Que mania você tem, continua igual ! O problema é que eu preciso encontrar Lígia.

— Ah, Lígia?

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— Ela mesmo. Não tem a mínima idéia de como preciso dela. Pensei muito se não criei na minha cabeça alguma coisa. Acho que não. Tenho certeza. A gente não tem muitas certezas na vida, mas esta, eu tenho. É ela.

— Lígia? — Faz um ano. Você entrou com uma menina loira e

sentou-se ao meu lado, lembra-se? Era o último dia que exibiam “Corações e Mentes”, o cinema estava cheio. Você nem tinha me visto, te chamei. Havia um lugar vago ao meu lado. Você pediu: “Guarda que ainda vem uma amiga nossa.” Coloquei minha bolsa. Logo depois, ela chegou. Quando atravessou o corredor à nossa frente, lembra-se, estávamos na segunda fila, do meio para trás, senti que era ela. Só podia ser. Vi o perfil, no escuro. Na penumbra, batido de luz. Alta, o rosto de traços decididos, suave no recorte. Pode? Foi assim que vi, naquela hora. Tinha o andar firme, um jeito meio... soberbo... não é bem a palavra,... é soberbo mesmo. Um certo orgulho, segurança. Você chamou, ela veio, sentou-se ao meu lado. Me deu a mão, sorriu. Engraçado, parecia que nos conhecíamos há tanto tempo. Sempre fui tímido com mulheres desconhecidas, mas não com aquela...

Não com aquela, penso. Por que não com aquela? Que era de intimidar. Lígia não era bonita, porém compensava com todos os truques. Eram muitos. O corpo magro, bem feito e tão desejado. Ela mal tinha idéia como era desejada. Editora de moda e sabia o que vestir, como vestir. Se valorizava. Os olhos eram claros e o sorriso grande. Servia-se deles também para afas-tar as pessoas. Quando queria, era inacessível, distante, fria. Para isso, valia-se de uma ascendência de menina rica, bem tratada. Gente bem nascida, bem-criada, que falava várias línguas. Claro, a família perdeu tudo, ela teve que trabalhar corno todo mundo. Mas deixava entrever que não era como todo mundo. Por isso, foi difícil para ela, no começo. Havia a distância, o isolamento. Mesmo as pessoas que ela queria, ficavam desconfiadas. Foi apenas uma fase, com os anos, ela se integrou. Casou-se, teve

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uma filha, foi morar nos Estados Unidos. Mas o casamento balançou, eles voltaram. Foram morar, quase como hippies, numa casinha, na praia, perto do Rio. Tinham guardado algum dinheiro, o marido era correspondente de uma revista americana qualquer. Uma vez, saiu reportagem sobre pessoas que estavam fugindo das cidades. No Jornal do Brasil. Falavam dela. Um rosto feliz, ela fazia bordados que vendia na feira na praça. E, dizia a reportagem, estava se preparando para escrever. Uns contos. Não queria voltar para a cidade. Sua casa era branca, com redes, plantas, desenhos que eles mesmos faziam e colavam pelas paredes. A filha, com dois anos, vivia solta. A casa ficava numa ponta da vila, não havia carros, perigo nenhum. Lígia parecia ter descoberto a vida que a gente queria e não tinha cora-gem de assumir. Vendo a reportagem, pensei que ela devia ter se transformado muito por dentro. Claro, por que não admitir? Lígia tinha sido uma esnobe. Inadaptada. Áspera. Árdua de se convi-ver. Foi preciso ser machucada, para descer do seu olimpo. Verdade que ela tinha sido colocada nesse olimpo, não subira de propósito. Os seus primeiros contatos com o cotidiano foram aci-dentados; e ela foi cortando arestas, aparando pontas. Até se tomar pessoa agradável, desejada. Tenho uma grande amiga, Maria Alice, que era confidente de Lígia. Ela sofria, me disse, porque não se sentia atraente. E era, sem saber. Tanto que a maioria do meu grupo a queria. Tanto, que ali estava Flavinho, morto de fixação.

— ... você está me escutando? Estou te enchendo? Estou, está na cara. Fica aí olhando para fora...

— Não , continua. Pensava em Lígia. Fala. — Está tudo tão vivo na minha cabeça. De repente, no

meio do filme, ela estendeu a mão. Cheia de balas. Foi um choque. Pensa bem! Na tela, aquela sangreira do Vietnã. Foi na cena em que o oficial mata o soldado com um tiro na cabeça. E, ao meu lado, aquela mulher com um sorriso, estendendo a mão cheia de açúcar. Acha que fiquei bobo? Eu não! Acho lindo. Me

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tocou. Apanhei uma bala e senti, comigo mesmo, que estava estabelecida a cumplicidade. Porque ela não ofereceu a bala a vocês. Era uma coisa nossa, ali, no escuro do cinema. Minha e dela. E éramos completamente desconhecidos. Falamos coisas durante o filme. Não me lembro o quê. Só sei que eram observações sobre a vida americana que ela parecia conhecer bem. Detalhes que me escapavam e ela completava. Quando o filme terminou, combinamos de jantar. Todos. Ela estava de carro. Andamos muito, estava estacionado longe, perto da banca de flores do largo do Arouche. Um Volks creme, sujo de barro. “Vim hoje da praia”, ela comentou. “Peguei um desvio todo enlameado.” Abriu a porta, bateu a mão no assento traseiro. “Ainda está cheio de areia. Mas areia não suja, não é?” Olhei as mãos dela, os braços. Era uma noite de calor, ela usava um vestido leve, de algodão cru. Sua pele era morena e senti uma excitação. Lígia trazia o sol na pele, o primeiro sol de verão que tinha queimado levemente seus braços. Quis tocar naquela carne, deixei a mão solta sobre o banco, ela raspava o ombro nos meus dedos. Cúmplice. Ela tinha se tornando minha cúmplice, naquela noite, e gostávamos do jogo.

Me lembro que depois Lígia desapareceu. Passaram seis meses, voltou a São Paulo, procurando emprego em revistas. Tinha se separado, a filha estava com os pais dele, num país aqui da América. Em tudo Lígia precisava ser diferente. Não, nada de ligações comuns, de dia-a-dia. Havia um mistério qualquer nela, uma coisa insondável que não chegávamos a compreender. Penso que somente Maria Alice, a minha amiga que foi confidente dela, chegou a entendê-la um pouco, à certa altura. Porque, então, Lígia iniciaria um processo de abertura para a vida e as coisas. Fazia uma espécie de exame de si mesma, de suas relações, do que pretendia. Mostrava a Maria Alice os esboços dos contos. Rasgava a maioria, insatisfeita. “Nunca estive satisfeita com nada, o que há comigo? Nem com as pessoas, nem com meu trabalho, nem com nada. Mas posso recomeçar, agora vejo tudo

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tão claro. E vou recomeçar.” Naquela semana em que fomos ver “Corações e Mentes” ela se preparava para ir ao encontro do ex-marido. Pela terceira e última vez, numa tentativa de reconcilia-ção. Achava que valia a pena, porque existia a filha.

— O que é que há? Vou parar, pô! — Nada disso, continua. Estava me lembrando que

naquela semana Lígia ia embora. E você também. Falou nisso o jantar todo. Sei lá que viagem você ia fazer. Ia ver uma escola em Blumenau. A gente ainda gozou: fazer o que em Blumenau? Vai é se enterrar. E, no fundo, estávamos mortos de inveja. Você embarcava no dia seguinte, não foi?

— Isso mesmo! Viagem desgraçada. Por que fui? Era só ficar. Que nada. Fui pensando nela.

— Mas conta do jantar. . . — Nada de especial. Você estava interessado na

loirinha. Ou não estava? Nem prestei atenção. Só me interessava Lígia. Durante o jantar uma ou duas piadas, um olhar, um sorriso e eu tive certeza. Era ela. Fizemos ali naquela mesa um mundo particular, dentro do qual nos entendemos. Éramos quatro, e na verdade éramos dois. O resto estava isolado, fora de nossos limi-tes. Dá para entender? Não acha incrível esta sensação, quando ela se apodera da gente? Estamos no meio de todo mundo, afastados vinte metros um do outro. Mas a pessoa está dentro do teu círculo, e você no dela. E ninguém penetra nosso cordão mágico. É muito bobo?

— Continua com vergonha, hein? A gente é mesmo besta. Se solta, puxa!

— Na hora de ir embora, percebeu que fizemos uma manobra? Deixamos a loirinha, depois você. Demos voltas incríveis, só para ficarmos juntos. Ela me levou em casa. Ficamos conversando no carro, diante do meu prédio por umas duas horas. Estava amanhecendo quando ela se foi. Eu podia ter dito: sobe comigo. Mas não era hora. Era coisa que, com Lígia, devia acontecer naturalmente. E ia acontecer. Ela ainda

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perguntou: “Você precisa viajar mesmo? Tem que ir?” Banquei o besta. “Tenho. É a minha carreira, meu futuro.” De tanto pensar no futuro, a gente acaba por destruí-lo. Ela se foi, subi. A mala estava pronta. Se abro, nunca mais viajo, pensei. Não abri. Tomei um café, desci, peguei um táxi e fui para a Rodoviária. Para não encontrar emprego em Blumenau. E voltar seis meses depois, recomeçar. Te procurei, você estava viajando. Daquelas coisas que acontecem em São Paulo. Desencontro, desencontro. Um pouco de besteira minha. No fundo, nos encontramos, mas eu tinha medo. Que você me gozasse. Ou dissesse: ela voltou para o marido, está feliz. Era isso, medo de que ela estivesse bem com o outro.

Penso agora nas coisas que Maria Alice me contou. Cada tarde, ela chegava e desabafava. Tinha ido visitar Lígia. Voltava arrasada, precisava de mim para se recuperar. Lígia tinha voltado grávida da última viagem. Sentiu-se mal e foi ao médico. O médico: “Precisa abortar. Já. E fazer uma operação.” Abriram e fecharam. Nada a fazer, disse o médico. Lígia ficou sabendo. Percebeu o clima à sua volta e exigiu que contassem tudo. Foi para casa. Ficou de cama, porque as pernas tinham se quebrado e os ossos não se consolidavam. Só permitia visita de Maria Alice, dia sim, dia não. Era o contato com o mundo, com as coisas. E lia estranhos livros sobre a vida além da morte. Continuava ras-gando os contos que escrevia, trabalhava nos esboços. Parece que desejava permanecer de algum modo. Não confiava na memória das pessoas que a queriam. Queria mais. Achava que era bobagem tudo que fizera. A esnobe que tinha sido. Refez tudo em sua cabeça. Até que um dia não quis mais receber Maria Alice. Mandou dizer que estava com dores. Muito feia. Maria Alice ficava na sala, mandava escritos, recebia bilhetes.

“É hoje, me decidi.” Zé Mário estava quase gritando comigo.

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“Tem de ser hoje. Para o que der e vier. Vamos lá?” E sorria. Firme, confiante. Tranqüilo. Como vou contar que ela morreu há dois dias?

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AMOR Clarice Lispector

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo

saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação. Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando.

Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se.

No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem. No

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fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas.

E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha – com persistência, continuidade, alegria.

O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto - ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles.

Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

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O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher. O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto. A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego. O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles...

Um homem cego mascava chicles. Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os

irmãos viriam jantar - o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir - como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada - o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão – Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava - o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente

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pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente.

Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão - e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuiam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na

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calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras,as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca. Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se.

Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico. Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo. A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais. Um movimento leve e íntimo a sobressaltou - voltou-se rápida. Nada

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parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu. Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber. Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo.

E a morte não era o que pensávamos. Ao mesmo tempo que imaginário - era um mundo de se

comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega - era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante. As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia.

Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo.

A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

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Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo. Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria - e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre.

Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito - o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava - que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver.

O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se trêmula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado - amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal - o cego ou o belo Jardim Botânico? - agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta.

O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe,

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chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. O sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha? Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la.

De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver. Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lado dos que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo – e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar o leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão. Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! Pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja.

“Estou com medo”, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar. Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando

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lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos. Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras.

Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu. Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

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Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

- O que foi?! gritou vibrando toda. Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu

entendendo: - Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras. Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

- Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela. - Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um

estouro, respondeu ele sorrindo. Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde

alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver. Acabara-se a vertigem de bondade. E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.

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A MÁQUINA EXTRAVIADA José J. Veiga

Você sempre pergunta pelas novidades daqui deste

sertão, e finalmente posso lhe contar uma importante. Fique o compadre sabendo que agora temos aqui uma máquina imponente, que está entusiasmando todo o mundo. Desde que ela chegou - não me lembro quando, não sou muito bom em lembrar datas - quase não temos falado em outra coisa; e da maneira que o povo aqui se apaixona até pelos assuntos mais infantis, é de admirar que ninguém tenha brigado ainda por causa dela, a não ser os políticos.

A máquina chegou uma tarde, quando as famílias estavam jantando ou acabando de jantar, e foi descarregada na frente da Prefeitura. Com os gritos dos choferes e seus ajudantes (a máquina veio em dois ou três caminhões) muita gente cancelou a sobremesa ou o café e foi ver que algazarra era aquela.

Como geralmente acontece nessas ocasiões, os homens estavam mal-humorados e não quiseram dar explicações, esbarravam propositalmente nos curiosos, pisavam-lhes os pés e não pediam desculpa, jogavam pontas de cordas sujas de graxa por cima deles, quem não quisesse se sujar ou se machucar que saísse do caminho.

Descarregadas as várias partes da máquina, foram elas cobertas com encerados e os homens entraram num botequim do largo para comer e beber. Muita gente se amontoou na porta mas ninguém teve coragem de se aproximar dos estranhos porque um deles, percebendo essa intenção nos curiosos, de vez em quando enchia a boca de cerveja e esguichava na direção da porta. Atribuímos essa esquiva ao cansaço e à fome deles e deixamos as tentativas de aproximação para o dia seguinte; mas quando os procuramos de

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manhã cedo na pensão, soubemos que eles tinham montado mais ou menos a máquina durante a noite e viajado de madrugada.

A máquina ficou ao relento, sem que ninguém soubesse quem a encomendou nem para que servia. Ë claro que cada qual dava o seu palpite, e cada palpite era tão bom quanto outro. As crianças, que não são de respeitar mistério, como você sabe, trataram de aproveitar a novidade. Sem pedir licença a ninguém (e a quem iam pedir?), retiraram a lona e foram subindo em bando pela máquina acima - até hoje ainda sobem, brincam de esconder entre os cilindros e colunas, embaraçam-se nos dentes das engrenagens e fazem um berreiro dos diabos até que apareça alguém para soltá-las; não adiantam ralhos, castigos, pancadas; as crianças simplesmente se apaixonaram pela tal máquina.

Contrariando a opinião de certas pessoas que não quiseram se entusiasmar, e garantiram que em poucos dias a novidade passaria e a ferrugem tomaria conta do metal, o interesse do povo ainda não diminuiu. Ninguém passa pelo largo sem ainda parar diante da máquina, e de cada vez há um detalhe novo a notar. Até as velhinhas de igreja, que passam de madrugada e de noitinha, tossindo e rezando, viram o rosto para o lado da máquina e fazem uma curvatura discreta, só faltam se benzer.

Homens abrutalhados, como aquele Clodoaldo seu conhecido, que se exibe derrubando boi pelos chifres no pátio do mercado, tratam a máquina com respeito; se um ou outro agarra uma alavanca e sacode com força, ou larga um pontapé numa das colunas, vê-se logo que são bravatas feitas por honra da firma, para manter fama de corajoso.

Ninguém sabe mesmo quem encomendou a máquina. O prefeito jura que não foi ele, e diz que consultou o arquivo e nele não encontrou nenhum documento autorizando a transação. Mesmo assim não quis lavar as mãos, e de certa forma encampou a compra quando designou um funcionário para zelar pela máquina. Devemos reconhecer - aliás todos reconhecem - que

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esse funcionário tem dado boa conta do recado. A qualquer hora do dia, e às vezes também de noite, podemos vê-lo trepado lá por cima espanando cada vão, cada engrenagem, desaparecendo aqui para reaparecer ali, assoviando ou cantando, ativo e incansável. Duas vezes por semana ele aplica caol nas partes de metal dourado, esfrega, sua, descansa, esfrega de novo - e a máquina fica faiscando como jóia. Estamos tão habituados com a presença da máquina ali no largo, que se um dia ela desabasse, ou se alguém de outra cidade viesse buscá-la, provando com documentos que tinha direito, eu nem sei o que aconteceria, nem quero pensar. Ela é o nosso orgulho, e não pense que exagero. Ainda não sabemos para que ela serve, mas isso já não tem maior importância.

Fique sabendo que temos recebido delegações de outras cidades, do estado e de fora, que vêm aqui para ver se conseguem comprá-la. Chegam como quem não quer nada, visitam o prefeito, elogiam a cidade, rodeiam, negaceiam, abrem o jogo: por quanto cederíamos a máquina. Felizmente o prefeito é de confiança e é esperto, não cai na conversa macia. Em todas as datas cívicas a máquina é agora uma parte importante das festividades. Você se lembra que antigamente os feriados eram comemorados no coreto ou no campo de futebol, mas hoje tudo se passa ao pé da máquina.

Em tempo de eleição todos os candidatos querem fazer seus comícios à sombra dela, e como isso não é possível, alguém tem de sobrar, nem todos se conformam e sempre surgem conflitos. Felizmente a máquina ainda não foi danificada nesses esparramos, e espero que não seja. A única pessoa que ainda não rendeu homenagem à máquina é o vigário, mas você sabe como ele é ranzinza, e hoje mais ainda, com a idade.

Em todo caso, ainda não tentou nada contra ela, e ai dele. Enquanto ficar nas censuras veladas, vamos tolerando; é um direito que ele tem. Sei que ele andou falando em castigo, mas ninguém se impressionou. Até agora o único acidente de

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certa gravidade que tivemos foi quando um caixeiro da loja do velho Adudes (aquele velhinho espigado que passa brilhantina no bigode, se lembra?) prendeu a perna numa engrenagem da máquina, isso por culpa dele mesmo. O rapaz andou bebendo em uma serenata, e em vez de ir para casa achou de dormir em cima da máquina. Não se sabe como, ele subiu à plataforma mais alta, de madrugada rolou de lá, caiu em cima de uma engrenagem e com o peso acionou as rodas.

Os gritos acordaram a cidade, correu gente para verificar a causa, foi preciso arranjar uns barrotes e labancas para desandar as rodas que estavam mordendo a perna do rapaz. Também dessa vez a máquina nada sofreu, felizmente. Sem a perna e sem o emprego, o imprudente rapaz ajuda na conservação da máquina, cuidando das partes mais baixas. Já existe aqui um movimento para declarar a máquina monumento municipal - por enquanto. O vigário, como sempre, está contra; quer saber a que seria dedicado o monumento. Você já viu que homem mais azedo?

Dizem que a máquina já tem feito até milagre, mas isso - aqui para nós - eu acho que é exagero de gente supersticiosa, e prefiro não ficar falando no assunto. Eu - e creio que também a grande maioria dos munícipes - não espero dela nada em particular; para mim basta que ela fique onde está, nos alegrando, nos inspirando, nos consolando. O meu receio é que, quando menos esperarmos, desembarque aqui um moço de fora, desses despachados, que entendem de tudo, olhe a máquina por fora, por dentro, pense um pouco e comece a explicar a finalidade dela, e para mostrar que é habilidoso (eles são sempre muito habilidosos) peça na garagem um jogo de ferramentas, e sem ligar a nossos protestos se meta por baixo da máquina e desande a apertar, martelar, engatar, e a máquina comece a trabalhar.

Se isso acontecer, estará quebrado o encanto e não existirá mais máquin

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O HOMEM NU Fernando Sabino

A o acordar, disse para a mulher: - Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da

televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.

- Explique isso ao homem - ponderou a mulher. - Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto

de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém.

Deixa ele bater até cansar - amanhã eu pago. Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao

banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito.

Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a

porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.

Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos.

- Maria! Abre aí, Maria. Sou eu - chamou, em voz baixa.

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Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro. Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão!

Não era. Refugiado no lanço de escada entre os andares, esperou

que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:

- Maria, por favor! Sou eu! Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na

escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo

uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal-ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde

se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada

passava, vagarosa, encerando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão. Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.

- Ah, isso é que não! - fez o homem nu, sobressaltado. E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador

e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!

- Isso é que não - repetiu, furioso. Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força

entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea

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ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão de seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência: parar." Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.

- Maria! Abre esta porta! - gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si. Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:

- Bom dia, minha senhora - disse ele, confuso. - Imagine que eu...

A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:

- Valha-me Deus! O padeiro está nu! E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha: - Tem um homem pelado aqui na porta! Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se

passava: - É um tarado! - Olha, que horror! - Não olha não! Já pra dentro, minha filha! Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para

ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.

- Deve ser a polícia - disse ele, ainda ofegante, indo abrir.

Não era: era o cobrador da televisão.

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A MULHER DO VIZINHO Fernando Sabino

Na rua onde mora (ou morava) um conhecido e

antipático General do nosso Exército, morava (ou mora) também um sueco cujos filhos passavam o dia jogando futebol com bola de meia. Ora, às vezes acontecia cair a bola no carro do General e um dia o General acabou perdendo a paciência, pediu ao delegado do bairro para dar um jeito nos filhos do vizinho. O delegado resolveu passar uma chamada no homem e intimou-o a comparecer à delegacia.

O sueco era tímido, meio descuidado no vestir e pelo aspecto não parecia ser um importante industrial, dono de grande fábrica de papel (ou coisa parecida), que realmente ele o era. Obedecendo à intimação recebida, compareceu em companhia da mulher à delegacia e ouviu calado tudo o que o delegado tinha a lhe dizer. O delegado tinha a lhe dizer o seguinte:

- O senhor pensa que só porque o deixaram morar neste país pode logo ir fazendo o que quer? Nunca ouviu falar num troço chamado autoridades constituídas? Não sabe que tem de conhecer as leis do país? Não sabe que existe uma coisa chamada Exército Brasileiro, que o senhor tem de respeitar? Que negócio é esse? Então é ir chegando assim sem mais nem menos e fazendo o que bem entende, como se isso aqui fosse a casa da sogra?

Eu ensino o senhor a cumprir a lei, ali no duro: "dura lex"! Seus filhos são uns moleques e outra vez que eu souber que andaram incomodando o General, vai tudo em cana. Morou? Sei como tratar gringos feito o senhor. Tudo isso com voz pausada, reclinado para trás, sob o olhar de aprovação do escrivão a um canto. O vizinho do General pediu, com delicadeza, licença para se retirar. Foi então que a mulher do vizinho do General interveio:

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- Era tudo que o senhor tinha a dizer a meu marido? O delegado apenas olhou-a, espantado com o

atrevimento. - Pois então fique sabendo que eu também sei tratar

tipos como o senhor. Meu marido não é gringo nem meus filhos são moleques. Se por acaso importunaram o General, ele que viesse falar comigo, pois o senhor também está nos importunando. E fique sabendo que sou brasileira, sou prima de um Major do Exército, sobrinha de um Coronel, e filha de um General! Morou?

Estarrecido, o delegado só teve força para engolir em seco e balbuciar humildemente:

- Da ativa, minha senhora? E, ante a confirmação, voltou-se para o escrivão,

erguendo os braços, desalentado: - Da ativa, Motinha. Sai dessa.

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UMA GALINHA

Clarice Lispector

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.

Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.

Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou - o tempo da cozinheira dar um grito - e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé.

A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou

o telhado onde esta hesitante e trêmula escolhia com urgência outro rumo.

A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido.

E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado. Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante

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num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. Ë verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.

Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos.

Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo.

Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou respirando, abotoando e desaboto-

ando os olhos. Seu coração tão pequeno num prato solevava e abaixava as penas enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento despregou-se do chão e saiu aos gritos:

- Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um

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pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:

- Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!

- Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros. Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha

passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem

interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e

a do sobressalto. Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga - e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.

Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho - era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.

Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.

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O BURGUÊS E O CRIME Carlos Heitor Cony

O burguês Foi durante a noite que, de repente, ele se fez a

pergunta: - Porque não? A pergunta finalizava a série de pensamentos que

haviam começado horas antes, quando estava no teatro. Fora com a mulher assistir a uma peça de sucesso, com artistas de sucesso, estréia recente e também de sucesso. As duas primeiras noites haviam sido dedicadas à alta sociedade, às classes produtoras, ao Corpo Diplomático, às autoridades constituídas e a penetras de diferentes origens e feitios. Na altura da terceira apresentação, ele chegara em casa e a mulher o intimara:

- É o fim, Figueiredo! Todo mundo já viu a peça, menos nós. Tem de ser hoje.

Uma semana depois, a peça seria suspensa por falta de público, mas naquela terceira noite ele teve de se acotovelar na entrada, discutir com os bilheteiros e terminar sendo explorado por um cambista que lhe vendeu duas péssimas poltronas com ágio pesado e imerecido. Suportou, lá dentro - e estoicamente - os primeiros momentos da peça, mas ainda em meio ao primeiro ato desanimou de procurar entender o que se passava no palco. Era um drama complicado e palavroso, uma jovem que tinha neurose e amantes, um analista, uma enfermeira lésbica e, presidindo a tudo, um pai severo e asmático. Em suma: um conflito acima de suas possibilidades e de seu interesse.

Quando ia ao cinema, sempre podia dormir quando o filme seguia um rumo surpreendente assim. No escuro o cochilo ficava impune, a mulher nem suspeitava. À saída, ele concordava com a opinião da mulher e conseguiam chegar em casa sãos e salvos. Mas no teatro era difícil o cochilo. Havia luz, e pior que a

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luz, havia sempre a iminência de algo espantoso, o cenário despencar, a roupa da atriz cair, um ator ter enfarte ou esquecer o texto, um fósforo botar fogo no pano de boca. Tais e tantos atrativos impediam-no de dormir, mas propiciavam discreta dormência, o pensamento solicitado ora pelo calor, ora pela peça, ora ainda pelo pigarro de um velho na platéia, ou pelo sapato um pouco apertado que Ema - a mulher - o obrigara a usar.

Tivera um dia calmo, calmos eram todos os seus dias. A firma, apesar do sócio que era uma toupeira, prosperava. Saúde boa, perspectivas boas.

Não tinha motivos para pensar no futuro ou no passado. Sobravam-lhe motivos para dormir no presente, a peça já era um motivo.

A frase, dita por alguém no palco, chamou-o de volta. Ele já contara as pregas do lado direito da cortina que compunha o fundo do cenário, e preparava-se, resignado, pra contar as pregas do lado esquerdo, quando ouviu alguém falar em morte.

Não, não ameaçavam ninguém de morte. O drama do palco era existencial, não continha mortes nem ameaças de. Fora uma frase convencional, assim como "não devemos matar a velha de susto, ou "se a velha souber disso pode morrer Matar ou morrer? Não chegava a ser uma opção, nem no palco, nem em sua vida, mas uma série de pensamentos que tinham, ora a sua lógica, ora o seu absurdo, e em ambos os casos, a sua conveniência. Evidente, não pensava nunca em sua própria morte, mas sabia que havia gente que morria e gente que matava. Os que morriam eram os doentes, os suicidas, os atropelados, os assassinos, os passageiros de avião ou da Central do Brasil.

Os que matavam eram os criminosos, os ladrões noturnos, os tiranos, os motoristas de ônibus.

Não era agradável pensar em morrer. Logo retirou este elemento de sua opção e ficou apenas com o matar. Matar o quê? Matar para quê? Na peça, falavam em matar uma velha de susto. Ele não tinha velha nenhuma à vista. A mãe já morrera, as

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parentas de velhice mais agressiva também já haviam morrido. Havia a sogra, ainda, mas não chegava a ser uma velha, e, além do mais, era uma excelente pessoa. Se não adiantava matar uma velha, matar o quê?

Matar por matar, amor à arte, eis a questão. Matar para experimentar os nervos, ou para provar a si mesmo do que era capaz. Sim, isso justificava um crime. Mas para provar do que era capaz, não bastaria matar – isso qualquer idiota poderia fazer. Tinha de matar e permanecer impune – para poder se olhar no espelho e se sentir redimido, confiante: sou um caráter!

Foi então que surgiu o problema - que seria, nos próximos dias, o seu problema, o único problema realmente sério de sua vida - como obter o crime perfeito? Matar o porteiro de seu edifício, por exemplo, nunca seria um crime perfeito. Mais cedo ou mais tarde a polícia apertaria os moradores do prédio e ele acabaria confessando. Para matar impunemente teria de escolher um comerciário de Brás de Pina, uma funcionária subalterna que voltasse, tarde da noite, para o Leblon. Mas seria estúpido matar sem motivo, embora matasse perfeitamente. O crime perfeito, sem lucro pessoal, não lhe interessava, aliás, pensando bem, agora que o primeiro ato terminava, nenhum crime lhe interessava.

Teve coragem para o comentário. -Uma peça muito profunda! A mulher não concordou nem discordou. Apenas disse: - Vamos esperar pelo resto. Acho que vai sair um

escândalo! Foi a vez de ele concordar, embora não suspeitasse que

tipo de escândalo estava prestes a estourar. Saiu para o hall, circulou entre estranhos, bebeu um gole d'água gelada, sem sede mesmo, só para passar o tempo. Durante o segundo ato os pensamentos seguiram outro rumo. Surgiu no palco um pastor protestante. Surgiu também um militar reformado que era mudo - e ele começou a pensar em como seria sua vida - e como seria ele

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mesmo - se não tivesse voz. Chegou à conclusão e ao fim da peça: poderia manter o mesmo padrão de vida se, por acaso, ficasse sem voz. Era-lhe coisa inútil, espécie de adorno.

Para ganhar dinheiro e dormir com a mulher - a voz era dispensável, uma responsabilidade incômoda. Ao saírem, cumprimentou com a cabeça alguns conhecidos e fez a viagem de volta imaginando-se mudo. Conseguiu chegar em casa sem ter pronunciado uma só palavra-o que não era uma vantagem especial, sempre que iam ou que voltavam de algum lugar, a mulher é quem falava, ele apenas

ouvia. A grande oportunidade para testar a sua disciplina interior foi ao guardar o carro na garagem. Todas as vezes tinha de pedir à mulher que suspendesse o vidro da porta:

- Suspenda o seu vidro, Ema. Àquela noite, engoliu em seco e esperou que a mulher

saísse para, então, inclinar-se no banco, com algum esforço para sua espinha já bombardeada por sedimentações calcáreas que prenunciavam um respeitável bico-de-papagaio, e rodar a manivelinha até fechar o vidro. Na cama, preparado para dormir, a palavra primeiramente, e o conceito depois, retornaram à sua cabeça e às suas preocupações: matar. Há muito não tinha insônia. A firma prosperava, vendia material de escritório aos ministérios militares, era pago em dia, e não faltavam encomendas, tanto a Marinha como o Exército e a Aeronáutica - felizmente para ele e para a Pátria - gastavam mais em papel timbrado do que em pólvora.

Geralmente, caía duro em cima da cama. De quinze em quinze dias, ou de vinte em vinte dias, procurava a mulher para um amor apressado e quase sempre incompleto da parte dela. Quando percebeu as horas, viu que gastara a noite toda pensando. Tinha disciplina interior feroz e eficiente. Se dormisse até as 9, estaria salvo.

Virou para o lado e antes de escorregar definitivamente no sono, teve um pensamento também definitivo:

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- "Se não fosse a polícia, eu matava!" O crime A firma era próspera e prosperava, apesar do sócio: um

belo homem, excelente caráter, pai amantíssimo, esposo exemplar, amigo irreprochável - Foi o mínimo que um orador, à beira do túmulo, disse dele, no dia do enterro:

"Colhidos pela brutalidade de tua morte, aqui estamos, Anselmo, para prantearmos o excelente caráter, o pai amantíssimo, o esposo exemplar, o amigo irreprochável que acabamos de perder!" No mesmo cemitério, à beira de outro túmulo, e mais ou menos à mesma hora, Ema foi sepultada e chorada quase que solitariamente: quatro coveiros a sepultaram, com suas correntes e más vontades, e o marido a chorou, apesar de tudo, segundo afirmaram alguns poucos presentes que ouviram os soluços de um enterro e o discurso do outro.

À noite, apareceram-lhe em casa alguns amigos compenetrados. Conforme afirmaram mais tarde, foram à casa dele unicamente para que o Figueiredo "não fizesse uma besteira". Apesar da presença dos amigos, Figueiredo conteve-se e não cometeu besteira nenhuma. Tomou apenas um porre, como lhe convinha, e disse obscenidades a respeito da vida e de si mesmo, chamando a vida de merda e chamando-se a si mesmo de corno. O que ia de encontro aos pensamentos gerais, embora os amigos protestassem, deixa disso, Figueiredo, deixa disso!

No dia seguinte ao do enterro, apareceu mal vestido e barbeado para iniciar as providências legais das sucessões, pois sucedia ao sócio no controle da firma e sucedia à mulher nos bens do casal que eram muitos, o sogro lhe havia deixado apólices e casas em Vila Isabel.

Estava rico e livre agora da chatice do sócio e da chatice da mulher. E para ficar livre dos amigos, começou a cultivar mau hálito, o que impedia que os mais importunos se acercassem dele para dar conselhos, principalmente quando, após o escândalo da

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dupla morte, revelou-se o outro escândalo, o da fortuna que lhe chegava às mãos através de tão rudes eventos.

Rosnavam que, se não fossem as trágicas e patentes circunstâncias, a polícia deveria investigar melhor aquilo tudo. Mas a suspeita não tinha consistência - apesar do ódio que Figueiredo passou a provocar pela fortuna, pelo mau hálito, e pela liberdade que lhe chegara à vida. Ele mesmo, com o tempo, começou a esquecer, a duvidar do passado, e um dia, vendo no fundo do armário uma peça íntima de Ema, suspirou e sentiu saudades. Logo se aprumou, afugentou o pensamento macabro que lhe surgiu, e embora não houvesse ninguém à volta, disse em voz alta, como convinha a um homem que sofrera tanto:

- "Aquela cachorra!" Porém já cinco anos eram passados da morte da

cachorra e do cachorro. Cinco anos daquela tragédia que enlutou a família cristã, rudemente golpeada pelo escândalo daquele pacto de morte. Cronistas sem assunto escreveram sobre o pacto de morte tão romanticamente previsto e executado, foram ouvidas opiniões de sociólogos, de pedagogos e de sacerdotes sobre o caso. Cinco dias depois já ninguém falava no assunto e cinco anos depois, só mesmo ele, e às vezes, pensava em tudo, detalhadamente, como num passo heróico de sua vida. Chegara àquela noite em casa, de uma viagem rápida a São Paulo, e baqueara ao entrar em seu quarto: caídos e nus, em cima da cama, a sua mulher e o sócio. Próximo do sócio, o copo partido, cujos resíduos foram examinados pelo Instituto de Criminalística e cuja malignidade foi devidamente provada.

A perícia, com a ajuda dele, reconstituiu os acontecimentos. Ele viajara a São Paulo, voltaria na noite seguinte. Tão logo se mandou pela estrada, Ema chamara o amante. A perícia examinou a vagina de Ema e encontrou sinais evidentes do coito recente. O imperscrutável aconteceu - e aqui o relatório policial foi respeitoso, ao afirmar que, "após manterem relações de fundo sexual, os dois amantes decidiram pôr fim à

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vida através de um pacto de morte que foi imediatamente cumprido".

Anselmo preparou o veneno, Ema bebeu estoicamente, sem repugnância pela morte ou pelo gosto de amêndoas que saía do copo. E Anselmo, logo em seguida, ingeriu o restante. Contorceram-se pouco, e logo se imobilizaram

- e foi assim que, à noite, Figueiredo e mais tarde a polícia os encontraram.

No Distrito Policial o pacto de morte foi classificado como "Ocorrência nº 53.697" e arquivado após despacho do delegado-auxiliar, cumpridas as formalidades legais e pagas as taxas do costume.

O crime e o burguês - "Se não fosse a polícia eu matava!" Com essa frase ele adormecera, uma semana antes da

tragédia que abalou a sociedade cristã e a sua vida. Viera do teatro e ficara pensando em matar, mas não sabia nem como, nem a quem matar. Não tinha nenhum problema importante na vida, tudo lhe ia bem, e essa inexistência de um problema dava-lhe a sensação de burrice, de imprestabilidade.

Desde que pensara em matar, sentiu que iniciava uma nova vida, fugia à rotina, à qual sempre se submetera. Era o seu problema, embora não fosse, ainda, a sua vontade. No trabalho, em casa, andando pelas ruas, tinha agora uma ordem fixa de pensamentos e de energias.

Certa tarde, regressando da cidade, parou no Flamengo. Entrou num prédio, tomou o elevador, fechou os olhos e apertou um botão: qualquer andar em que o elevador parasse, serviria. Parou no sétimo andar. Havia duas portas à frente, apertou a campainha do 701. A velhinha veio abrir e ele quase chegou ao crime: levou as duas mãos para a frente em direção ao gasganete da velha. Mas deu-lhe uma tremedeira nas pernas e ele recuou.

O elevador ficara parado no andar e ele pôde fugir. Poderia ter deixado a velha morta, ninguém teria visto nada. Mas

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deixou a velha apenas surpreendida e irritada. Passou uma noite de cão, reprovando-se a covardia. Tivera tudo à mão, a velha, o elevador, não esbarrara com ninguém, nunca entrara naquele prédio.

A polícia procuraria pelos parentes da velha, os desafetos, os fornecedores, as ex-empregadas, os vizinhos. Não tivera ao alcance das mãos apenas o gasganete da velha: tivera nas mãos o crime perfeito - e o desperdiçara, sem lucro algum. E então tremeu, emocionado e surpreso: acabara de descobrir o crime verdadeiramente perfeito: O LUCRO. Matar sem lucro, como no caso da velha, seria uma brincadeira idiota. Tinha de matar com muito lucro, com tanto lucro que ficasse óbvia a lucrabilidade do crime. E para tornar patente essa lucrabilidade, tinha de escolher uma vítima que fosse patentemente próxima de seus interesses. Viu a mulher dormindo a seu lado.

- "Se mato esta mulher - a minha mulher - o primeiro e necessário suspeito serei eu mesmo. Riu, com a facilidade do problema. Tão fácil era o problema que resolveu exagerar. Não mataria apenas uma pessoa, mas duas. E, na escala de importância e de lucro, a segunda pessoa que lhe apareceu foi o sócio, o qual hipotecara, há tempos, a parte dele, para levar a mulher aos Estados Unidos, curar um tumor no colo do útero. Ele emprestara o dinheiro e ficara com as hipotecas do sócio. Se matasse o sócio, a firma ficaria inteiramente em suas mãos, era um lucro evidente, agressivo.

Dois dias depois, avisou à mulher que ia a São Paulo, viagem rápida. Saiu à noite, subiu em direção a Teresópolis. Deixou o carro numa rua que lhe pareceu deserta, tomou um ônibus e antes da meia-noite estava novamente em casa. Entrou pela garagem, como o fazia todas as noites, mas sem o carro, e por causa disso, não teve necessidade de acordar o garagista.

Surpreendeu a esposa: - Uê? Você já voltou? - Você está vendo.

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Explicou que o carro enguiçara no quilômetro 97 da Rio-São Paulo, tomara um ônibus, amanhã voltaria ao local, com um mecânico. Foram dormir e ele procurou a mulher. Dessa vez, pela primeira vez em muitos anos, concentrou-se no esforço de fazê-la gozar- era parte do plano. Depois que ela estremeceu e gritou coisas indecentes - sinal que finalmente gozara

- ele conseguiu, também, um escasso prazer. Mas logo levou a mão ao peito:

- Ema, o enfarte! Caiu para o lado, olhos arregalados, bufando grosso.

Ema deu um pulo da cama, nua. - Vou buscar a coramina! - Não! Chame o Anselmo, preciso falar com ele, é

urgente, mas diga a ele para não contar a ninguém, para vir já! As hipotecas dele! Ele pode perder tudo!

Ema foi ao telefone, acordou Anselmo: - O Figueiredo teve um enfarte. Venha correndo, mas

não diga nada a ninguém. As hipotecas! A mulher de Anselmo perguntou quem chamava o

marido dela àquela hora da noite, mas Anselmo, apesar de esposo exemplar e pai amantíssimo, deu um grito:

- Vá à merda, mulher. Depois eu explico! Ema foi à cozinha, apanhou um copo d'água. Quando

voltou ao quarto, pingando gotas de coramina no copo, encontrou o marido em pé, com um copo na mão.

- Uê? Já ficou bom? Figueiredo avançou para ela. - Beba isso! - Mas... - Beba, sua idiota! Era a primeira vez, em dezenove anos de casados, que

se dava o nome ao boi naquela casa. Ema apanhou o copo, sentiu um cheiro estranho. Bebeu um gole e ainda teve tempo de perguntar:

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- Para que é isso? - É um afrodisíaco. Faz a gente gozar mais ainda. Mas Ema não ouviu que ia gozar mais ainda. Caiu

próximo à cama e Figueiredo arrumou-a o melhor que pôde. Mais alguns minutos, foi à porta

da frente, esperar pelo sócio. Viu o elevador subir, a luzinha crescendo, crescendo. Anselmo saiu do elevador e deu com ele na porta.

- E o enfarte? - Entre depressa! Anselmo não gostou. A mulher dele ia falar o resto da

vida contra aquela saída abrupta, misteriosa, ia ser o diabo explicar.

- Brincadeira tem hora! Cadê o enfarte? Figueiredo estendeu-lhe o copo. - Prove essa droga! Veja que gosto tem e se concorda

comigo. Anselmo provou, sentiu um gosto adocicado de

amêndoas, mas não teve tempo de concordar. Figueiredo arrastou-o ao quarto, tirou-lhe a roupa, deitou-o ao lado de Ema, a mão estendida para fora do leito. Pegou no copo, colocou-o na mão de Anselmo, deixou que o copo se partisse no chão. Apagou as luzes, deixando apenas um pequeno abajur aceso. Ganhou a rua, atravessando a garagem do prédio, o garagista tinha sono de pedra, quando chegava tarde, com o carro, tinha de esmurrar a campainha para que o homem lhe abrisse a porta dos carros. Andou pela cidade, esperando o primeiro ônibus para Teresópolis. Deixara impressões no copo, nas roupas, em todos os lugares. Mas o lucro era tão dele que invalidava a suspeita. Deixara atrás de si um crime que se explicava por si mesmo.

Tomou o ônibus para Teresópolis. Com o sereno da noite, o carro ficara melado como um bicho. Antes de ligar o motor, abriu o painel de instrumentos e desligou o cabo do velocímetro. Desceu a serra, almoçou um frango assado à beira

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da estrada, atingiu a Avenida Brasil e cortou em direção oposta à cidade. Andou mais alguns quilômetros e pegou a Rio-São Paulo. Enfrentou as retas iniciais, atingiu a serra mas logo fez um contorno e embicou de volta ao Rio. Parou no posto de gasolina para abastecer o carro.

- Tem mecânico aí? O mulato de maus dentes surgiu das entranhas de uma

camioneta. - É o cabo do velocímetro. Acho que houve alguma

coisa com ele. Deu boa gorjeta ao mecânico e ao homem do posto que

lhe enchera o tanque, tinha agora duas pessoas que atestariam que ele regressava de São Paulo. Quando arrancou, os dois homens o chamaram de doutor:

- Boa viagem, doutor! Chegou em casa, após uma boa viagem, e viu o quadro

que logo os policiais examinaram, os jornais noticiaram e com o qual ele lucrou.

Moral O crime, para o burguês, só não compensa quando a

polícia está contra.

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UMA VELA PARA DARIO Dalton Trevisan

Dario vem apressado, guarda-chuva no braço esquerdo.

Assim que dobra a esquina, diminui o passo até parar, encosta-se a uma parede. Por ela escorrega, senta-se na calçada, ainda úmida de chuva. Descansa na pedra o cachimbo. Dois ou três passantes à sua volta indagam se não está bem. Dario abre a boca, move os lábios, não se ouve resposta. O senhor gordo, de branco, diz que deve sofrer de ataque. Ele reclina-se mais um pouco, estendido na calçada, e o cachimbo apagou. O rapaz de bigode pede aos outros que se afastem e o deixem respirar. Abre-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe tiram os sapatos, Dario rouqueja feio, bolhas de espuma surgem no canto da boca. Cada pessoa que chega ergue-se na ponta dos pés, não o pode ver.

Os moradores da rua conversam de uma porta a outra, as crianças de pijama acodem à janela. O senhor gordo repete que Dario sentou-se na calçada, soprando a fumaça do cachimbo, encostava o guarda-chuva na parede. Mas não se vê guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado. A velhinha de cabeça grisalha grita que ele está morrendo. Um grupo o arrasta para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protesta o motorista: quem pagará a corrida? Concordam chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado à parede - não tem os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.

Alguém informa da farmácia na outra rua. Não carregam Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito peso. É largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobrem o rosto, sem que faça um gesto para espantá-las. Ocupado o café próximo pelas pessoas que apreciam o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozam as delícias da noite. Dario em sossego e torto no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.

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Um terceiro sugere lhe examinem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficam sabendo do nome, idade, sinal de nascença. O endereço na carteira é de outra cidade. Registra-se correria de uns duzentos curiosos que, a essa hora, ocupam toda a rua e as calçadas: é a polícia. O carro negro investe a multidão. Várias pessoas tropeçam no corpo de Dario, pisoteado dezessete vezes. O guarda aproxima-se do cadáver, não pode identificá-lo - os bolsos vazios. Resta na mão esquerda a aliança de ouro, que ele próprio – quando vivo - só destacava molhando no sabonete. A polícia decide chamar o rabecão.

A última boca repete - Ele morreu, ele morreu. E a gente começa a se dispersar. Dario levou duas horas para morrer, ninguém acreditava estivesse no fim. Agora, aos que alcançam vê-lo, todo o ar de um defunto. Um senhor piedoso dobra o paletó de Dario para lhe apoiar a cabeça. Cruza as mãos no peito. Não consegue fechar olho nem boca, onde a espuma sumiu. Apenas um homem morto e a multidão se espalha, as mesas do café ficam vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.

Um menino de cor e descalço vem com uma vela, que acende ao lado do cadáver. Parece morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva. Fecham-se uma a uma as janelas. Três horas depois, lá está Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó. E o dedo sem a aliança. O toco de vela apaga-se às primeiras gotas da chuva, que volta a cair.

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VOCAÇÕES Luís Fernando Veríssimo

X Todos diziam que a Leninha, quando crescesse, ia ser

médica. Passava horas brincando de médico com as bonecas. Só que, ao contrário de outras crianças, quando largou as bonecas não perdeu a mania. A primeira vez que tocou no rosto do namorado foi pára ver se estava com febre. Só na segunda é que foi carinho. Ia porque ia ser médica. Só tinha uma coisa:

não podia ver sangue. - Mas Leninha, como é que….. - Deixa que eu me arranjo. Não que ela tivesse nojo de sangue… desmaiava. Não

podia ver carne mal passada. Ou Ketchup. Um arranhãozinho era o bastante para derrubá-la.

Se o arranhão fosse em outra pessoa ela corria para socorrê-la -era o instinto medico-, mas botava o curativo com o rosto virado.

- Acertei? Acertei? - Acertou o joelho. Só que é na outra perna. Mas fez vestibular para medicina, passou e preparou-se

para começar o curso. - E as aulas de anatomia, Leninha? E os cadáveres?

- Deixa que eu me arranjo. Fez um trato com a Olga, colega desde o secundário.

Quando abrissem um cadáver, fecharia os olhos. A Olga descreveria tudo para ela.

- Agora estão tirando o fígado. Tem uma cor meio…. - Por favor, sem detalhes…

Conseguiu fazer todo o curso de medicina sem ver uma gota de sangue. Houve momentos em que precisou explicar os olhos fechados.

- É concentração professor..

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Mas se formou. Hoje é médica, de sucesso. Não na cirurgia, claro. Se bem que chegou a pensar a convidar a Olga para fazerem uma dupla cirúrgica, ela operando com o rosto virado e a Olga dando as coordenadas.

- Mais pra esquerda…. Aí agora corta! Está feliz. Inclusive se casou, pois encontrou sua alma

gêmea. Foi num aeroporto. No bar onde foi tomar um cafezinho enquanto esperava a chamada para o embarque, puxou conversa com um homem que parecia muito nervoso. problema?_ perguntou, pronta para medicá-lo.

- Não, tentou sorrir o homem - É o avião… - Você tem medo de voar? - Pavor. Sempre tive. - Então porque voa? - Na minha profissão, é preciso. - Qual é a sua profissão? -Piloto. Casaram-se uma semana depois.

O Melhor das Palavras

Mas se formou. Hoje é médica, de sucesso. Não na cirurgia, claro. Se bem que chegou a pensar a convidar a Olga para fazerem uma dupla cirúrgica, ela operando com o rosto

Está feliz. Inclusive se casou, pois encontrou sua alma gêmea. Foi num aeroporto. No bar onde foi tomar um cafezinho enquanto esperava a chamada para o embarque, puxou conversa com um homem que parecia muito nervoso. – Algum

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O PADEIRO Rubem Braga

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento – mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a “greve do pão dormido”. De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.

Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:

— Não é ninguém, é o padeiro! Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar

aquilo? “Então você não é ninguém?” Ele abriu um sorriso

largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: “não é ninguém, não senhora, é o padeiro”. Assim ficara sabendo que não era ninguém…

Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina – e muitas vezes

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Julio Cesar Oliveira

saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.

Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; “não é ninguém, é o padeiro!”

E assobiava pelas escadas.

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KNI E GIV Carlos Eduardo Novaes

Desde que a nave espacial Viking amartissou (é isso

mesmo?) Juvenal Ouriço e o Boca não descolam o ouvido do rádio. Parecem dois paraíbas de obra depois do expediente. Juvenal aguarda com a maior ansiedade a notícia de que há vida em Marte.

E afirma que quando a informação chegar vai dar uma festa. Causa-lhe uma profunda ansiedade a idéia de que "nós, terráqueos, somos os únicos seres viventes em trânsito pela Via-Láctea".

- Já imaginou a sensação de solidão universal? ¬diz arregalando os olhos. - Eu já não gosto de me sentir só nem em casa, que dirá no planeta? Haverá vida em Marte? Tudo indica que sim, pois ao mesmo tempo que enviamos daqui a Viking, os marcianos mandavam de lá a nave Gnikiv, movidos pela mesma curio¬sidade: haverá vida na Terra? As duas naves, por sinal, se cruzaram ali pelo quilômetro 46 milhões 578 mil 300 da estrada do Sol.

A Viking viaja por instrumentos. A Gnikiv, porém, traz dois cosmonautas a bordo: Kni e Giv. Quando Kni olhou pela escotilha e viu a nossa nave passando, berrou para o companheiro: "Ei, Giv, olhe.

Que é aquilo? Um disco voador?" - Disco voador o quê, rapaz! Que mania a sua de pensar

que todo objeto que se move no espaço é disco voador. Disco voador não existe.

- Pra mim existe. E lhe digo mais: é tripulado por seres da Terra.

- Duvido muito. - Duvida por quê? Você não acha possível que exista

uma civilização adiantada na Terra?

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Julio Cesar Oliveira

- Não sei nem se há vida na Terra. - Claro que há. Pode não ser muito antiga, mas há. Alguns cientistas suspeitam de que a vida na Terra

começou em 1945. Foi a partir dessa época que eles passaram a observar a formação de gigantescos cogumelos luminosos.

- Deixa de bobagem. Aquilo eram explosões provocadas pelo choque de meteoritos com a superfície do planeta.

- Então esse negócio que passou por aí veio de onde? - Sei lá. Olha aí no mapa. Qual é a outra estação depois da Terra?

- Vênus. - Vênus não deve ser. Tem outra? - Tem Mercúrio, uma estaçãozinha pequena. - Também não creio que seja de lá. E depois? Vem o

quê? - Depois acaba. Mercúrio é o fim da linha.

Os dois ainda discutiam a procedência da Viking quando a Gnikiv trepidou um pouco, perdeu altura e surgiu sobre o céu do Rio de Janeiro. Kni observou lá de cima e comentou com Giv: "Creio que nos distraímos e saímos da rota".

- É mesmo? Por que você diz isso? - Está cheio de crateras lá em baixo. Acho que estamos

sobrevoando a Lua. Os dois tornaram a consultar os mapas, refizeram os

cálculos e constataram surpresos que estavam realmente sobre a Terra. "Engraçado"

- disse Kni - "os nossos mapas estão todos errados, eu nunca soube que havia tanta cratera na Terra".

- Quem sabe não são erupções vulcânicas que ocorreram após nossa saída de Marte?

- Não creio. Não daria tempo. É muita erupção pra pouca viagem. Você se esquece de que viemos praticamente ali da esquina. Foram apenas 384 milhões de quilômetros.

O módulo da Viking amartissou, auxiliado por três foguetes e um pára-quedas em 3h20min. A Gnikiv demorou

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menos. Pouco mais de meia hora. Bem verdade que já nos movimentos finais a nave foi auxiliada em terra por dois crioulos que orientavam as manobras: "Dá ré, agora vira tudo pra direita, isso, chega um pouquinho à frente, tá bom aí". Os marcianos saltaram e um dos crioulos logo perguntou: "Posso tomar conta?"

A nave desceu num local ermo, próximo à Favela da Rocinha. Ao botar os pés na Terra, Giv farejou o ar, respirou fundo e observou: "Estou sentindo um cheirinho de nitrogênio" .

- Eu também - disse Kni puxando ar - mas pra mim está misturado com oxigênio. E se você respirar na direção do vento ainda vai sentir um leve aroma de argônio. Sentiu?

- Senti. Acho que com essa composição é muito difícil haver vida na Terra.

A atmosfera em Marte é quase toda composta de anidrido carbônico. Sua temperatura é mais baixa que a nossa. Os marcianos estranharam o calor. Um crioulo ao lado sorriu e disse: "Os senhores não são os primeiros, tudo quanto é gringo reclama do nosso calor". Kni virou-se para o crioulo e foi direto ao assunto: "Será que você pode nos informar se existe vida na Terra?" O crioulo pensou alguns segundos, encavalou o lábio inferior no superior e balançou a cabeça negativamente: "Não sei não senhor".

- Ele não sabe de nada - aparteou o outro crioulo - é completamente analfabeto. - E você sabe? Sabe se existe vida na Terra? - Eu? - perguntou o outro crioulo que era meio folgado.

- Eu acho que não tem não, mas não posso dar certeza. Explicou que estava começando o Mobral agora, mas

"se os senhores quiserem a gente pode perguntar ao meu irmão que tem algum estudo". Os três iniciaram então uma caminhada pelo atalho (o outro crioulo ficou tomando conta da nave) até o barraco.

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Enquanto andavam, Kni e Giv assediavam o crioulo com perguntas: "Você sabe se há mais alguma coisa no ar, aqui, além de nitrogênio, oxigênio e argônio?"

- Não sei dizer, não senhor. Dizem que há muita poluição mas eu mesmo nunca vi.

- E de que é a camada que cobre a superfície da Terra? - De que é? De asfalto. - Isso que nós estamos pisando é asfalto? - Não senhor.

Aqui é terra. - Que é a Terra eu sei. Vocês são quantos aqui? - Na Rocinha? - Não. Na Terra. - Toda? - perguntou o crioulo fazendo uma bola com os

braços. - Não sei não senhor, mas deve ser mais de 2 milhões. Os três chegaram até o barraco. O crioulo apresentou

aquelas figuras (cada um imagina o seu marciano como quiser) ao irmão explicando antes que "estes senhores aca¬baram de chegar de... de onde

mesmo? Nevoer quê?" - Não. Nós viemos de Marte. - Pois é - prosseguiu o crioulo na maior tranqüi¬lidade,

provavelmente imaginando que Marte ficasse ali depois de Nova Iguaçu - esses senhores chegaram de Marte e estão querendo saber se existe vida na Terra. Eu não soube responder. Você sabe?

- Bem - disse o irmão do crioulo meio indeciso eu acho que existe.

- De que forma? - perguntou Kni. - São moléculas? - Isso eu não sei. - Claro que são - intrometeu-se o crioulo folgado. - Eu me lembro de quando era garoto as pessoas

chegavam pra mim e diziam: "Não faça isso, seu molécula". Kni e Giv se entreolharam e cheios de dúvidas pediram

maiores explicações ao irmão do crioulo. Os quatro senta¬ram-se

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em volta de uma mesa (uma mesa de dois pés). O irmão do crioulo, então, foi desfiando toda a sua existência, desde o dia em que nasceu naquele mesmo barraco. Ao terminar, Kni, incrédulo, perguntou-lhe: "Isso que você acabou de contar: é essa a vida que existe na Terra?" O irmão do crioulo disse que sim.

- Não. Não é possível - disse Kni. - brincando. Isso não é vida.

Os dois saíram. Voltaram à nave e de lá informaram a Marte que não havia vida na Terra.

O Melhor das Palavras

em volta de uma mesa (uma mesa de dois pés). O irmão do desde o dia em

que nasceu naquele mesmo barraco. Ao terminar, Kni, incrédulo, lhe: "Isso que você acabou de contar: é essa a vida

que existe na Terra?" O irmão do crioulo disse que sim. Você está

Os dois saíram. Voltaram à nave e de lá informaram a

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RELATO DE OCORRÊNCIA EM QUE QUALQUER SEMELHANÇA NÃO É MERA COINCIDÊNCIA.

Rubem Fonseca

Na madrugada do dia 3 de maio, uma vaca marrom caminha na ponte do rio Coroado, no quilômetro 53, em direção ao Rio de Janeiro. Um ônibus de passageiros da empresa Única Auto Ônibus, chapa RF - 80-07-83 e JR - 81-12-27, trafega na ponte do rio Coroado em direção a São Paulo.

Quando vê a vaca, o motorista Plínio Sérgio tenta se desviar. Bate na vaca, bate no muro da ponte, o ônibus se precipita no rio.

Em cima da ponte a vaca está morta. Debaixo da ponte estão mortos: uma mulher vestida de

calça comprida e blusa amarela, de 20 anos presumíveis e que nunca será identificada; Ovídia Monteiro, de 34 anos; Manuel dos Santos Pinhal, português, de 35 anos, que usava uma carteira de sócio do Sindicato de Empregados em Fábricas de Bebidas; o menino Reinaldo de 1 ano, filho de Manuel; Eduardo Varela, casado, 43 anos.

O desastre foi presenciado por Elias Gentil dos Santos e sua mulher Lucília, residentes nas cercanias. Elias manda a mulher apanhar um facão em casa. Um facão? pergunta Lucília.

Um facão depressa sua besta, diz Elias. Ele está preocupado. Ah! percebe Lucília. Lucília corre.

Surge Marcílio da Conceição. Elias olha com ódio para ele. Aparece também Ivonildo de Moura Júnior. E aquela besta que não trás o facão! pensa Elias. Ele está com raiva de todo mundo, suas mãos tremem. Elias cospe no chão várias vezes, com força, até que sua boca seca.

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Bom dia, seu Elias, diz Marcílio. Bom dia, diz Elias entredentes, olhando pros lados. Esse mulato!, pensa Elias.

Que coisa, diz Ivonildo, depois de se debruçar na amurada da ponte e olhar os bombeiros e os policiais embaixo. Em cima da ponte, além do motorista de um carro da Polícia Rodoviária, estão apenas Elias, Marcílio e Ivonildo.

A situação não anda boa não, diz Elias olhando para a vaca. Ele não consegue tirar os olhos da vaca.

É verdade, diz Marcílio. Os três olham para a vaca. Ao longe vê-se o vulto de Lucília, correndo. Elias recomeçou a cuspir. Se eu pudesse eu também era

rico, diz Elias. Marcílio e Ivonildo balançam a cabeça, olham para a vaca e para Lucília, que se aproxima correndo. Lucília também não gosta de ver os dois homens. Bom dia. d. Lucília, diz Marcílio. Lucília responde balançando a cabeça. Demorei muito?, pergunta, sem fôlego, ao marido.

Elias segura o facão na mão, como se fosse um punhal; olha com ódio para Marcílio e Ivonildo. Cospe no chão. Corre para cima da vaca.

No lombo é onde fica o filé, diz Lucília. Elias corta a vaca.

Marcílio se aproxima. O senhor depois me empresta a faca, seu Elias? Pergunta Marcílio.

Não, responde Elias. Marcílio se afasta, andando apressadamente. Ivonildo

corre em grande velocidade. Eles vão apanhar facas, diz Elias com raiva, aquele

mulato, aquele corno. Suas mãos, sua camisa e sua calça estão cheias de sangue. Você devia ter trazido uma bolsa, uma saca, duas sacas, imbecil. Vai buscar duas sacas, ordena Elias.

Lucília corre. Elias já cortou dois pedaços grandes de carne quando

surgem, correndo, Marcílio e sua mulher Dalva, Ivonildo e sua

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sogra Aurélia e Erandir Medrado com seu irmão Valfrido Medrado. Todos carregam facas e facões. Atiram-se sobre a vaca.

Lucília chega correndo. Ela mal pode falar. Está grávida de 8 meses, sofre de verminose e sua casa fica no alto de um morro, a ponte no alto de outro morro. Lucília trouxe uma segunda faca com ela. Lucília corta a vaca.

Alguém me empresta uma faca senão eu apreendo tudo, diz o motorista do carro da polícia. Os irmãos Medrado, que trouxeram vários facões, emprestam um ao motorista.

Com uma serra, um facão e uma machadinha aparece João Leitão, o açougueiro, acompanhado de dois ajudantes.

O senhor não pode, grita Elias. João Leitão se ajoelha perto da vaca. Não pode, diz Elias dando um empurrão em João. João

cai sentado. Não pode, gritam os irmãos Medrado. Não pode, gritam todos, com exceção do motorista da

polícia. João se afasta; a dez metros de distância, pára; com os

seus ajudantes, fica observando. A vaca está semidescarnada. Não foi fácil cortar o rabo.

A cabeça e as patas ninguém conseguiu cortar. As tripas ninguém quis.

Elias encheu as duas sacas. Os outros homens usam a camisa como se fossem sacos.

Quem primeiro se retira é Elias com a mulher. Faz um bifão pra mim, diz ele sorrindo para Lucília. Vou pedir umas batatas a d. Dalva, vou fazer também umas batatas fritas para você, responde Lucília.

Os despojos da vaca estão estendidos numa poça de sangue. João chama com um assobio os seus dois auxiliares. Um deles traz um carrinho de mão. Os restos da vaca são colocados no carro. Na ponte fica apenas a poça de sangue.

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UM BRAÇO DE MULHER Rubem Braga

Subi ao avião com indiferença, e como o dia não estava

bonito, lancei apenas um olhar distraído a essa cidade do Rio de Janeiro e mergulhei na leitura de um jornal. Depois fiquei a olhar pela janela e não via mais que nuvens, e feias. Na verdade, não estava no céu; pensava coisas da terra, minhas pobres, pequenas coisas. Uma aborrecida sonolência foi me dominando, até que uma senhora nervosa ao meu lado disse que “nós não podemos descer!”. O avião já havia chegado a São Paulo, mas estava fazendo sua ronda dentro de um nevoeiro fechado, à espera de ordem para pousar. Procurei acalmar a senhora.

Ela estava tão aflita que embora fizesse frio se abanava com uma revista. Tentei convencê-la de que não devia se abanar, mas acabei achando que era melhor que o fizesse. Ela precisava fazer alguma coisa, e a única providência que aparentemente podia tomar naquele momento de medo era se abanar. Ofereci-lhe meu jornal dobrado, no lugar da revista, e ficou muito grata, como se acreditasse que, produzindo mais vento, adquirisse maior eficiência na sua luta contra a morte.

Gastei cerca de meia hora com a aflição daquela senhora. Notando que uma sua amiga estava em outra poltrona, ofereci-me para trocar de lugar, e ela aceitou. Mas esperei inutilmente que recolhesse as pernas para que eu pudesse sair de meu lugar junto à janela; acabou confessando que assim mesmo estava bem, e preferia ter um homem — “o senhor” — ao lado. Isto lisonjeou meu orgulho de cavalheiro: senti-me útil e responsável. Era por estar ali eu, um homem, que aquele avião não ousava cair. Havia certamente piloto e co-piloto e vários homens no avião. Mas eu era o homem ao lado, o homem visível, próximo, que ela podia tocar. E era nisso que ela confiava: nesse ser de casimira grossa, de gravata, de bigode, a

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cujo braço acabou se agarrando. Não era o meu braço que apertava, mas um braço de homem, ser de misteriosos atributos de força e proteção.

Chamei a aeromoça, que tentou acalmar a senhora com biscoitos, chicles, cafezinho, palavras de conforto, mão no ombro, algodão nos ouvidos, e uma voz suave e firme que às vezes continha uma leve repreensão e às vezes se entremeava de um sorriso que sem dúvida faz parte do regulamento da aeronáutica civil, o chamado sorriso para ocasiões de teto baixo.

Mas de que vale uma aeromoça? Ela não é muito convincente; é uma funcionária. A senhora evidentemente a considerava uma espécie de cúmplice do avião e da empresa e no fundo (pelo ressentimento com que reagia às suas palavras) responsável por aquele nevoeiro perigoso. A moça em uniforme estava sem dúvida lhe escondendo a verdade e dizendo palavras hipócritas para que ela se deixasse matar sem reagir.

A única pessoa de confiança era evidentemente eu: e aquela senhora, que no aeroporto tinha certo ar desdenhoso e solene, disse suas malcriações para a aeromoça e se agarrou definitivamente a mim. Animei-me então a pôr a minha mão direita sobre a sua mão, que me apertava o braço. Esse gesto de carinho protetor teve um efeito completo: ela deu um profundo suspiro de alívio, cerrou os olhos, pendeu a cabeça ligeiramente para o meu lado e ficou imóvel, quieta. Era claro que a minha mão a protegia contra tudo e contra todos, estava como adormecida.

O avião continuava a rodar monotonamente dentro de uma nuvem escura; quando ele dava um salto mais brusco, eu fornecia à pobre senhora uma garantia suplementar apertando ligeiramente a minha mão sobre a sua: isto sem dúvida lhe fazia bem.

Voltei a olhar tristemente pela vidraça; via a asa direita, um pouco levantada, no meio do nevoeiro. Como a senhora não

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me desse mais trabalho, e o tempo fosse passando, recomecei a pensar em mim mesmo, triste e fraco assunto.

E de repente me veio a idéia de que na verdade não podíamos ficar eternamente com aquele motor roncando no meio do nevoeiro – e de que eu podia morrer.

Estávamos há muito tempo sobre São Paulo. Talvez chovesse lá embaixo; de qualquer modo a grande cidade, invisível e tão próxima, vivia sua vida indiferente àquele ridículo grupo de homens e mulheres presos dentro de um avião, ali no alto. Pensei em São Paulo e no rapaz de vinte anos que chegou com trinta mil-réis no bolso uma noite e saiu andando pelo antigo viaduto do Chá, sem conhecer uma só pessoa na cidade estranha. Nem aquele velho viaduto existe mais, e o aventuroso rapaz de vinte anos, calado e lírico, é um triste senhor que olha o nevoeiro e pensa na morte.

Outras lembranças me vieram, e me ocorreu que na hora da morte, segundo dizem, a gente se lembra de uma porção de coisas antigas, doces ou tristes. Mas a visão monótona daquela asa no meio da nuvem me dava um torpor, e não pensei mais nada. Era como se o mundo atrás daquele nevoeiro não existisse mais, e por isto pouco me importava morrer. Talvez fosse até bom sentir um choque brutal e tudo se acabar. A morte devia ser aquilo mesmo, um nevoeiro imenso, sem cor, sem forma, para sempre.

Senti prazer em pensar que agora não haveria mais nada, que não seria mais preciso sentir, nem reagir, nem providenciar, nem me torturar; que todas as coisas e criaturas que tinham poder sobre mim e mandavam na minha alegria ou na minha aflição haviam-se apagado e dissolvido naquele mundo de nevoeiro.

A senhora sobressaltou-se de repente e muito aflita começou a me fazer perguntas. O avião estava descendo mais e mais e entretanto não se conseguia enxergar coisa alguma. O motor parecia estar com um som diferente: podia ser aquele o

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último e desesperado tredo ronco do minuto antes de morrer arrebentado e retorcido. A senhora estendeu o braço direito, segurando o encosto da poltrona da frente, e então me dei conta de que aquela mulher de cara um pouco magra e dura tinha um belo braço, harmonioso e musculado.

Fiquei a olhá-lo devagar, desde o ombro forte e suave até as mãos de dedos longos. E me veio uma saudade extraordinária da terra, da beleza humana, da empolgante e longa tonteira do amor. Eu não queria mais morrer, e a idéia da morte me pareceu tão errada, tão feia, tão absurda, que me sobressaltei. A morte era uma coisa cinzenta, escura, sem a graça, sem a delicadeza e o calor, a força macia de um braço ou de uma coxa, a suave irradiação da pele de um corpo de mulher moça.

Mãos, cabelos, corpo, músculos, seios, extraordinário milagre de coisas suaves e sensíveis, tépidas, feitas para serem infinitamente amadas. Toda a fascinação da vida me golpeou, uma tão profunda delícia e gosto de viver uma tão ardente e comovida saudade, que retesei os músculos do corpo, estiquei as pernas, senti um leve ardor nos olhos. Não devia morrer! Aquele meu torpor de segundos atrás pareceu-me de súbito uma coisa doentia, viciosa, e ergui a cabeça, olhei em volta, para os outros passageiros, como se me dispusesse afinal a tomar alguma providência.

Meu gesto pareceu inquietar a senhora. Mas olhando novamente para a vidraça adivinhei casas, um quadrado verde, um pedaço de terra avermelhada, através de um véu de neblina mais rala. Foi uma visão rápida, logo perdida no nevoeiro denso, mas me deu uma certeza profunda de que estávamos salvos porque a terra existia, não era um sonho distante, o mundo não era apenas nevoeiro e havia realmente tudo o que há, casas, árvores, pessoas, chão, o bom chão sólido, imóvel, onde se pode deitar, onde se pode dormir seguro e em todo o sossego, onde um homem pode premer o corpo de uma mulher para amá-la com

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força, com toda sua fúria de prazer e todos os seus sentidos, com apoio no mundo.

No aeroporto, quando esperava a bagagem, vi de perto a minha vizinha de poltrona. Estava com um senhor de óculos, que, com um talão de despacho na mão, pedia que lhe entregassem a maleta. Ela disse alguma coisa a esse homem, e ele se aproximou de mim com um olhar inquiridor que tentava ser cordial. Estivera muito tempo esperando; a princípio disseram que o avião ia descer logo, era questão de ficar livre a pista; depois alguém anunciara que todos os aviões tinham recebido ordem de pousar em Campinas ou em outro campo; e imaginava quanto incômodo me dera sua senhora, sempre muito nervosa. “Ora, não senhor.” Ele se despediu sem me estender a mão, como se, com aqueles agradecimentos, que fora constrangido pelas circunstâncias a fazer, acabasse de cumprir uma formalidade desagradável com relação a um estranho – que devia permanecer um estranho.

Um estranho — e de certo ponto de vista um intruso, foi assim que me senti perante aquele homem de cara desagradável. Tive a impressão de que de certo modo o traíra, e de que ele o sentia.

Quando se retiravam, a senhora me deu um pequeno sorriso. Tenho uma tendência romântica a imaginar coisas, e imaginei que ela teve o cuidado de me sorrir quando o homem não podia notá-lo, um sorriso sem o visto marital, vagamente cúmplice. Certamente nunca mais a verei, nem o espero. Mas o seu belo braço foi um instante para mim a própria imagem da vida, e não o esquecerei depressa.

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O AGRÔNOMO SUÍÇO Fernando Sabino

O poeta estava calmamente no bar, tomando um

aperitivo, quando lhe telefonaram. Quem o chamava era eu. O poeta não tem telefone

em casa e há dias que eu o vinha procurando: a menos que me tivesse enganado, ele sabia de um amigo seu que conhecia um agrônomo suíço, interessado em administrar fazendas. Ora, outro amigo meu, a quem dei conhecimento da existência desse suíço, me disse que estava precisando exatamente de uma pessoa assim. E me pediu que conseguisse maiores informações com o poeta.

No bar, àquela hora, fazia um barulho infernal. O poeta veio ao telefone e mal conseguiu ouvir o meu nome:

- Quem? - Eu, rapaz! Então não está conhecendo a minha voz? - Eu quem? Levou uns bons cinco minutos para descobrir com

quem estava falando. Talvez já tivesse tomado mais de um aperitivo, é possível.

- Que houve? Aconteceu alguma coisa? Eu mal conseguia escutá-lo e ele não me ouvia de todo: - Você se lembra daquele agrônomo que um conhecido

seu... - Daquele o quê? - Daquele AGRÓNOMO! - Você está enganado, não conheço ninguém com esse

nome. - Eu nem falei ainda o nome dele! É um suíço. - Luís? - SUÍÇO! Você um dia me falou... - Não conheço nenhum Luís. Eu estava pensando que ...

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- Fale mais alto! Sua voz está sumindo. - Não, estou por aí mesmo... Você é que anda sumido. Respirei fundo e voltei à carga: - Eu sei que você não conhece o suíço. Um conhecido

seu é que conhece. - Escuta que brincadeira é essa? Eu estava aqui tomando

o meu uísque... - Desculpe incomodá-lo no bar, mas você não tem

telefone em casa... - Não tem importância. Só que está parecendo

brincadeira. Entendi você falar num suíço... - Isso! - Pois é isso mesmo, quer dizer: é suíço mesmo. O

homem está em cima de mim para arranjar... - Que homem? Não estou entendendo nada, muito

barulho aqui. - Um amigo meu, você não conhece. Está precisando de

um agrônomo para a fazenda dele. - Fazendo o quê? Perdi a paciência: - Olha, telefona para minha casa amanhã de manhã, está

bem? Mas o poeta agora estava interessado: - Não precisa se zangar! Aconteceu alguma coisa com

você? - Conversar com bêbado dá é nisso. - Você está bêbado? - Bêbado está você, essa é boa! - Espera! Entendi direitinho você falar que estava

bêbado. Deve ser o barulho. Espera um pouco. Ouvi pelo fone sua voz para os que o rodeavam:

- Vocês aí, querem fazer o favor de falar um pouco mais baixo?

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Julio Cesar Oliveira

Um amigo meu está em dificuldades, e eu não escuto nada.

De novo para mim: - Alô! Pode falar agora que estou ouvindo

perfeitamente. Você está precisando de alguma coisa? - Estou: que você me telefone amanhã de manhã. E

desliguei. No dia seguinte era ele quem me procurava: - Você talvez não se lembre, mas ontem eu estava

calmamente no bar, tomando um aperitivo, quando você me telefonou no maior pileque para me contar que estava sendo perseguido por um sujeito chamado Luís.

Que você quis dizer com isso? - Isso, não: suíço - arrematei.

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O ASSALTO Luís Fernando Veríssimo

Quando a empregada entrou no elevador, o garoto

entrou atrás. Devia ter uns dezesseis, dezessete anos. Preto. Desceram no mesmo andar. A empregada com o coração batendo. O corredor estava escuro e a empregada sentiu que o garoto a seguia. Botou a chave na fechadura da porta de serviço, já em pânico. Com a porta aberta, virou-se de repente e gritou para o garoto:

- Não me bate! - Senhora? - Faça o que quiser, mas não me bate, - Não, senhora, eu... A dona da casa veio ver o que estava havendo. Viu o

garoto na porta e o rosto apavorado da empregada e recuou, até pressionar as costas contra a geladeira.

- Você está armado? - Eu? Não. A empregada, que ainda não largara o pacote de

compras, aconselhou a patroa, sem tirar os olhos do garoto: - É melhor não fazer nada, madame. O melhor é não gritar. - Eu não vou fazer nada, juro! - disse a patroa, quase aos

prantos. - Você pode entrar. Pode fazer o que quiser. Não precisa usar a violência. O garoto olhou de uma mulher para outra. Apalermado.

Perguntou: - Aqui é o 12? - O que você quiser. Entre. Ninguém vai reagir. O garoto hesitou, depois deu um passo para dentro da

cozinha. A empregada e a patroa recuaram ainda mais. A patroa

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esgueirou-se pela parede até chegar à porta que dava para a saleta de almoço. Disse:

- Eu não tenho dinheiro. Mas o meu marido deve ter. Ele está em casa. Vou chamá-lo. Ele lhe dará tudo. O garoto também estava com os olhos arregalados.

Perguntou de novo: - Este é o 12? Me disseram para pegar umas garrafas no

12. A mulher chamou, com a voz trêmula: - Henrique! O marido apareceu na porta do gabinete. Viu o rosto da

mulher, o rosto da empregada e o garoto e entendeu tudo. Chegou a hora, pensou. Sempre me indaguei como me comportaria no caso de um assalto. Chegou a hora de tirar a prova.

- O que você quer? - perguntou, dando-se conta em seguida do ridículo da pergunta. Mas sua voz estava firme.

- Eu disse que você tinha dinheiro - falou a mulher. - Faço um trato com você - disse o marido para o garoto - dou tudo de valor que tem em casa, contanto que você

não toque em ninguém. E se as crianças chegarem de repente? pensou a mulher.

Meu Deus, o que esse bandido vai fazer com as minhas crianças? O garoto gaguejou:

- Eu... Eu... E aqui que tem umas garrafas para pegar? - Tenho um pouco de dinheiro. Minha mulher tem jóias. Não temos cofre em casa, acredite em mim. Não temos

muita coisa. Você quer o carro? Eu dou a chave. Errei, pensou o marido. Se sair com o carro, ele vai

querer ter certeza de que ninguém chamará a polícia. Vai levar um de nós com ele. Ou vai nos deixar todos amarrados. Ou coisa pior...

- Vou pegar o dinheiro, está bem? - disse o marido. O garoto só piscava.

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- Não tenho arma em casa. É isso que você está pensando? Você pode vir comigo.

O garoto olhou para a dona da casa e para a empregada. - Você está pensando que elas vão aproveitar para fugir,

é isso? - continuou o marido. - Elas podem vir junto conosco. Ninguém vai fazer nada. Só não queremos violência. Vamos todos para o gabinete.

A patroa, a empregada e o Henrique entraram no gabinete. Depois de alguns segundos, o garoto foi atrás. Enquanto abria a gaveta chaveada da sua mesa, o marido falava:

- Não é para agradar, não, mas eu compreendo você. Você‚ uma vítima do sistema. Deve estar pensando, "esse burguês cheio da nota está querendo me conversar", mas não ‚ isso não. Sempre me senti culpado por viver bem no meio de tanta miséria. Pode perguntar para minha mulher. Eu não vivo dizendo que o crime é um problema social! Vivo dizendo. Tome. É todo dinheiro que tenho em casa. Não somos ricos. Somos, com alguma boa vontade, da média alta. Você tem razão. Qualquer dia também começamos a assaltar para poder comer. Tem que mudar o sistema. Tome.

O garoto pegou o dinheiro, meio sem jeito. - Olhe, eu só vim pegar as garrafas... - Sônia busque as suas jóias. Ou melhor, vamos todos

buscar as jóias. Os quatro foram para a suíte do casal. O garoto atrás.

No caminho, ele sussurrou para a empregada: - Aqui ‚ o 12? - Por favor, não! - disse a empregada, encolhendo-se. Deram todas as jóias para o garoto, que estava cada vez

mais embaraçado. O marido falou: - Não precisa nos trancar no banheiro. Olhe o que eu

vou fazer. Arrancou o fio do telefone da parede.

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- Você pode trancar o apartamento por fora e deixar as chaves lá embaixo. Terá tempo de fugir. Não faremos nada. Só não queremos violência.

- Aqui não é o 12? Me disseram para pegar umas garrafas.

- Nós não temos mais nada, confie em mim. Também somos vítimas do sistema. Estamos do seu lado. Por favor, vá embora!

A empregada espalhou a notícia do assalto por todo o prédio. Madame teve uma crise nervosa que durou dias. O marido comentou que não dava mais para viver nesta cidade. Mas achava que tinha se saído bem. Não entrara em pânico. Ganhara um pouco da simpatia do bandido. Protegera o seu lar da violência. E não revelara a existência do cofre com o grosso do dinheiro, inclusive dólares e marcos, atrás do quadro da odalisca.

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VIAGEM DE BONDE Rachel de Queiroz

Era o bonde Engenho de Dentro, ali na Praça Quinze.

Vinha cheio, mas como diz, empurrando sempre encaixa. O que provou ser otimismo, porque talvez encaixasse metade ou um quarto de pessoa magra, e a alentada senhora que se guindou ao alto estribo e enfrentou a plataforma traseira junto com um bombeiro e outros amáveis soldados, dela talvez coubesse um oitavo. Assim mesmo, e isso prova bem a favor da elasticidade dos corpos gordos, ela conseguiu se insinuar, ou antes, encaixar. E tratava de acomodar-se gingando os ombros e os quadris à direita e à esquerda, quando o bonde parou em outro poste, o soldado repetiu o tal slogan do encaixe, e foi subindo — logo quem! — uma baiana dos seus noventa quilos, e mais uma bolsa que continha o fogareiro, a lata dos doces, o banquinho e o tabuleiro.

E aquela baiana pesava os seus noventa quilos mas era nua, com licença da palavra, pois com tanta saia engomada e mais os balangandãs, chegava mesmo era aos cem. E esqueci de dizer que junto com ela ainda vinha uma cunhãzinha esperta que era um saci, que se insinuou pelas pernas do pessoal e acabou cavando um lugarzinho sentada, na beirinha do banco, ao lado de uma moça carregada de embrulhos e que assim mesmo teve o coração de arrumar a garota.

Também o diabo da pequena conquistava qualquer um, com aquele olho preto enviesado, o riso largo de dente na muda. Esqueci de falar que tudo isso se passava no carro-motor. No reboque, atrás, a confusão parecia maior. Muita gente pendurada entre um carro e outro, e havia um crioulo de bigode à Stalin, muito distinto, tinha cara de dirigente no Ministério do Trabalho, que muito sub-repticiamente viajava sobre o pino de ligação entre os dois carros ou, para dizer melhor, com um pé na sapata do carro-motor e o outro na sapata do reboque.

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E quando o condutor aparecia para cobrar a passagem, se era o condutor da frente ele punha os dois pés no reboque, e se era o condutor do reboque que vinha com o "faz favor" ele então executava o vice-versa. Sei que não pagou passagem a nenhum dos dois e devia fazer aquilo por esporte; não tinha cara de quem precisa se sujar por cinqüenta centavos; esporte, aliás, que todo o mundo aprova e aprecia, pois quem é que não gosta de ver se tirar um pouco de sangue à Light? E aí o bonde andou um bom pedaço sem que ninguém mais atacasse a plataforma.

A turma que chegava, ocupava-se agora em guarnecer os balaústres, formando com os pingentes uma superestrutura decorativa. Mas, alcançando-se o abrigo defronte à Central, quase chegou a haver pânico. Porque no momento em que a multidão da calçada assaltava o veículo, a baiana quis descer, e não era façanha somenos desalojar aquela massa da pressão onde se encastoara, sem falar na pressão de baixo para cima feita pelos que tentavam subir, contra quem pretendia descer.

Mas afinal já a baiana aterrissara na calçada e o vácuo por ela deixado era instantaneamente ocupado com uma violência de sorvedouro, o condutor tocara o seu tintim de partida, quando ressoaram uns gritos agudos cortando o ar abafado. Era o pequeno saci de olhos pretos a clamar que o povo subindo não a deixara descer. E a tensão geral explodiu em cólera e ternura, e todo o mundo tocava a campainha, alguns confundiam, puxavam a corda do marcador de passagens, o condutor vendo isso pôs-se a imprecar em puro linguajar da Mouraria, uma voz berrava: — já se viu que brutalidade, impedir a criança de descer; a baiana, em terra, chamava a filha com voz macia, o motorneiro, para ajudar e mostrar que não tinha nada com aquilo, desandou a tocar aquela espécie de sino que fica embaixo do pé dele.

E enquanto os passageiros compassivos desembarcavam a garota, um senhor, que vinha em pé no meio dos bancos, pôs-se a declamar que era assim mesmo, que motorneiro, condutor e

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fiscal, em vez de se aliarem com o povo, não passavam de uns lacaios da Light, mas quando chegasse na hora de pedir aumento de ordenado haviam de querer que a população ajudasse com aumento nas passagens. O povo é que é sempre o sacrificado. E o condutor aí se enraiveceu também, e começou a convidar o homem para a beira da calçada, e o senhor disse que não ia porque não se metia com estrangeiros, e um engraçadinho deu sinal de partida e o motorneiro (que já estava por demais chateado) partiu mesmo, deixando o condutor em terra, vociferando; só foi dar pela falta quando chegou com o carro bem defronte do sinal; parou então, e enquanto o condutor corria o guarda começou a apitar, que o bonde tinha parado no meio da luz verde aberta para os carros em direção contrária; parecia o dia de juízo, o bonde parado, os automóveis buzinando, o guarda apitando e sacudindo os braços, o pessoal do bonde rindo que era ver uns demônios.

Afinal o bonde partiu, tudo pareceu acalmar um pouco, mas aquele senhor em pé que xingara os pobres empregados da Light de lacaios do polvo canadense mostrou que era homem afeito a comícios, não se dava de uma interrupção tumultuosa. Estava acostumado a falar até em meio da fuzilaria, assim que ele disse. E que isso tudo acontecia porque o Governo promete mas não cumpre o dispositivo constitucional — sim, meus senhores, constitucional! — da mudança da capital da República. Imagine que delícia o Rio ficar livre de toda a laia dos buro-cratas, dos automóveis dos políticos e dos políticos propriamente ditos. Imagine, o Getúlio em Goiás e com ele a alcatéia dos lobos, os cardumes de tubarões, os rebanhos de carneiros! Isso aqui ficava mesmo um céu aberto. Pelo menos um milhão de pessoas iria embora, e que maravilha o Rio com um milhão de vagas nos transportes, um milhão de vagas nas residências, um milhão de bocas a menos, para comer o nosso mísero abastecimento! As favelas se acabam automaticamente, o arroz

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baixa a quatro cruzeiros! Saem a Câmara e o Senado, e os Ministérios com todas as suas marias candelárias.

Pensando nos ministérios — será apenas um milhão de gente que nos deixa? Calculando por baixo, talvez saia mais de um milhão! O que virá em muito boa hora, pois no Rio sobram uns dois milhões! E aí o bonde inteiro aplaudiu, cada qual só pensava na vaga a seu lado.

E, se aquele bonde fosse maior, talvez nesse dia, no Rio de Janeiro, houvesse uma revolução. Talvez o povo do Rio de Janeiro desse ordem de despejo para o seu Governo, lhe apanhasse os trastes, lhe apontasse a estrada, que é larga e vai longe. Mas, feliz ou infelizmente, o bonde era pequeno e, apesar de conter tanta gente, não dava nem para um bochincho.

E o Governo, pensando bem, também é de carne como nós — e só um coração de ferro tem coragem de deixar este Rio, assim mesmo apertado, superlotado, sem comida, sem transporte, sem luz e sem água. Como disse um paraíba que vinha junto com o soldado: — Qual, se no céu faltasse água ou luz, por isso os anjos haveriam de se largar de lá? Céu é céu, de qualquer jeito...

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UM MÚSICO EXTRAORDINÁRIO Lima Barreto

Quando andávamos juntos no colégio, Ezequiel era um

franzino menino de quatorze ou quinze anos, triste, retraído, a quem os folguedos colegiais não atraíam. Não era visto nunca jogando "barra, carniça, quadrado, peteca", ou qualquer outro jogo dentre aqueles velhos brinquedos de internato que hoje não se usam mais. O seu grande prazer era a leitura e, dos livros, os que mais gostava eram os de Jules Verne. Quando todos nós líamos José de Alencar, Macedo, Aluísio e, sobretudo, o infame Alfredo Gallis, ele lia a Ilha Misteriosa, o Heitor Servadac, as Cinco Semanas em um Balão e, com mais afinco, as Vinte Mil Léguas Submarinas.

Dir-se-ia que a sua alma ansiava por estar só com ela mesma, mergulhada, como o Capitão Nemo do romance vernesco, no seio do mais misterioso dos elementos da nossa misteriosa Terra.

Nenhum colega o entendia, mas todos o estimavam, porque era bom, tímido e generoso. E porque ninguém o entendesse nem as suas leituras, ele vivia consigo mesmo; e, quando não estudava as lições de que dava boas contas, lia seu autor predileto.

Quem poderia pôr na cabeça daquelas crianças fúteis pela idade e cheias de anseios de carne para a puberdade exigente o sonho que o célebre autor francês instila nos cérebros dos meninos que se apaixonam por ele, e o bálsamo que os seus livros dão aos delicados que prematuramente adivinham a injustiça e a brutalidade da vida?

O que faz o encanto da meninice não é que essa idade seja melhor ou pior que as outras. O que a faz encantadora e boa é que, durante esse período da existência, nossa capacidade de sonho é maior e mais força temos em identificar os nossos

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sonhos com a nossa vida. Penso, hoje, que o meu colega Ezequiel tinha sempre no bolso um canivete, no pressuposto de, se viesse a cair em uma ilha deserta, possuir à mão aquele instrumento indispensável para o imediato arranjo de sua vida; e aquele meu outro colega Sanches andava sempre com uma nota de dez tostões, para, no caso de arranjar a "sua" namorada, ter logo em seu alcance o dinheiro com que lhe comprasse um ramalhete.

Era, porém, falar ao Ezequiel em Heitor Servadac, e logo ele se punha entusiasmado e contava toda a novela do mestre de Nantes. Quando acabava, tentava então outra; mas os colegas fugiam um a um, deixavam-no só com o seu Jules Verne, para irem fumar um cigarro às escondidas.

Então, ele procurava o mais afastado dos bancos do recreio, e deixava-se ficar lá, só, imaginando, talvez, futuras viagens que havia de fazer, para repassar as aventuras de Roberto Grant, de Hatteras, de Passepartout, de Keraban, de Miguel Strogoff, de Cesar Cascavel, de Philéas Fogg e mesmo daquele curioso doutor Lindenbrock, que entra pela cratera extinta de Sueffels, na desolada Islândia, e vem à superfície da Terra, num ascensor de lavas, que o Estrômboli vomita nas terras risonhas que o Mediterraneo afaga...

Saímos do internato quase ao mesmo tempo e, durante algum, ainda nos vimos; mas, bem depressa, perdemo-nos de vista.

Passaram-se anos e eu já o havia de todo esquecido, quando, no ano passado, vim a encontrá-lo em circunstâncias bem singulares.

Foi em um domingo. Tomei um bonde da Jardim, aí, na avenida, para visitar um amigo e, com ele, jantar em família. Ia ler-me um poema; ele era engenheiro hidráulico.

Como todo o sujeito que é rico ou se supõe ou quer passar como tal, o meu amigo morava para as bandas de Botafogo.

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Ia satisfeito, pois de há muito não me perdia por aquelas bandas da cidade e me aborrecia com a monotonia dos meus dias, vendo as mesmas paisagens e olhando sempre as mesmas fisionomias. Fugiria, assim, por algumas horas, à fadiga visual de contemplar as montanhas desnudadas que marginam à Central, da estação inicial até Cascadura. Morava eu nos subúrbios. Fui visitar, portanto, o meu amigo, naquele Botafogo catita, Meca das ambições dos nortistas, dos sulistas e dos... cariocas.

Sentei-me nos primeiros bancos; e já havia passado o Lírico e entrávamos na Rua Treze de Maio quando, no banco atrás do meu, se levantou uma altercação com o condutor, uma dessas vulgares altercações comuns nos nossos bondes.

— Ora, veja lá com quem fala! dizia um. — Faça o favor de pagar a sua passagem, retorquia o

recebedor. — Tome cuidado, acudiu o outro. Olhe que não trata

com nenhum cafajeste! Veja lá! — Pague a passagem, senão o carro não segue. E como eu me virasse por esse tempo a ver melhor tão

patusco caso, dei com a fisionomia do disputador que me pareceu vagamente minha conhecida. Não tive de fazer esforços de memória. Como uma ducha, ele me interpelou desta forma:

— Vejas tu só, Mascarenhas, como são as cousas! Eu, um artista, uma celebridade, cujos serviços a este país são inestimáveis, vejo-me agora maltratado por esse brutamonte que exige de mim, desaforadamente, a paga de uma quantia ínfima, como se eu fosse da laia dos que pagam.

Àquela voz, de súbito, pois ainda não sabia bem quem me falava, reconheci o homem: era o Ezequiel Beiriz. Paguei-lhe a passagem, pois, não sendo celebridade, nem artista, podia perfeitamente e sem desdouro pagar quantias ínfimas; o veículo seguiu pacatamente o seu caminho, levando o meu espanto e a minha admiração pela transformação que se havia dado no

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temperamento do meu antigo colega de colégio. Pois era aquele parlapatão, o tímido Ezequiel?

Pois aquele presunçoso que não era da laia dos que pagam era o cismático Ezequiel do colégio, sempre a sonhar viagens maravilhosas, à Jules Verne? Que teria havido nele? Ele me pareceu inteiramente são, no momento e para sempre.

Travamos conversa e mesmo a procurei, para decifrar tão interessante enigma.

— Que diabo, Beiriz! Onde tens andado? Creio que há bem quinze anos que não nos vemos — não é? Onde andaste?

— Ora! Por esse mundo de Cristo. A última vez que nos encontramos... Quando foi mesmo?

— Quando eu ia embarcar para o interior do Estado do Rio, visitar a família.

— E verdade! Tens boa memória... Despedimo-nos no Largo do Paço... Ias para Muruí — não é isso?

— Exatamente. — Eu, logo em seguida, parti para o Recife a estudar

direito. — Estiveste lá este tempo todo? — Não. Voltei para aqui, logo de dous anos passados lá. — Por quê? — Aborrecia-me aquela "chorumela" de direito...

Aquela vida solta de estudantes de província não me agradava... São vaidosos... A sociedade lhes dá muita importância, daí...

— Mas, que tinhas com isso? Fazias vida à parte... — Qual! Não era bem isso o que eu sentia... Estava era

aborrecidíssimo com a natureza daqueles estudos... Queria outros.. .

— E tentaste? — Tentar! Eu não tento; eu os faço... Voltei para o Rio

a fim de estudar pintura. — Como não tentas, naturalmente...

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— Não acabei. Enfadou-me logo tudo aquilo da Escola de Belas-Artes.

— Por quê? — Ora! Deram-me uns bonecos de gesso para copiar... Já viste que tolice? Copiar bonecos e pedaços de

bonecos... Eu queria a cousa viva, a vida palpitante... — E preciso ir às fontes, começar pelo começo, disse eu

sentenciosamente. — Qual! Isto é para toda gente... Eu vou de um salto; se

erro, sou como o tigre diante do caçador — estou morto! — De forma que... — Foi o que me aconteceu com a pintura. Por causa dos

tais bonecos, errei o salto e a abandonei. Fiz-me repórter, jornalista, dramaturgo, o diabo! Mas, em nenhuma dessas profissões dei-me bem... Todas elas me desgostavam... Nunca estava contente com o que fazia... Pensei, de mim para mim, que nenhuma delas era a da minha vocação e a do meu amor; e, como sou honesto intelectualmente, não tive nenhuma dor de coração em largá-las e ficar à-toa, vivendo ao deus-dará.

— Isto durante muito tempo? — Algum. Conto-te o resto. Já me dispunha a

experimentar o funcionalismo, quando, certo dia, descendo as escadas de uma secretaria, onde fui levar um pistolão, encontrei um parente afastado que as subia. Deu-me ele a notícia da morte do meu tio rico que me pagava colégio e, durante alguns anos, me dera pensão; mas, ultimamente, a tinha suspendido, devido, dizia ele, a eu não esquentar lugar, isto é, andar de escola em escola, de profissão em profissão.

— Era solteiro esse seu tio? — Era, e, como já não tivesse mais pai (ele era irmão de

meu pai), ficava sendo o seu único herdeiro, pois morreu sem testamento. Devido a isso e mais ulteriores ajustes com a Justiça, fiquei possuidor de cerca de duas centenas e meia de contos.

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— Um nababo! Hein? — De algum modo. Mas escuta. filho! Possuidor dessa

fortuna, larguei-me para a Europa a viajar. Antes — é preciso que saibas — fundei aqui uma revista literária e artística —Vilhara — em que apresentei as minhas idéias budistas sobre a arte, apesar do que nela publiquei as cousas mais escatológicas possíveis, poemetos ao suicídio, poemas em prosa à Venus Genitrix, junto com sonetos, cantos, glosas de cousas de livros de missa de meninas do colégio de Sion.

—Tudo isto de tua pena? — Não. A minha teoria era uma e a da revista outra,

mas publicava as cousas mais antagônicas a ela, porque eram dos amigos.

— Durou muito a tua revista? — Seis números e custaram-me muito, pois até

tricromias publiquei e hás de adivinhar que foram de quadros contrários ao meu ideal búdico. Imagina tu que até estampei uma reprodução dos "Horácios", do idiota do David!

— Foi para encher, certamente? — Qual! A minha orientação nunca dominou a

publicação... Bem! Vamos adiante. Embarquei quase como fugido deste país em que a estética transcendente da renúncia, do aniquilamento do desejo era tão singularmente traduzida em versos fesceninos e escatológicos e em quadros apologéticos da força da guerra. Fui-me embora!

— Para onde? — Pretendia ficar em Lisboa, mas, em caminho,

sobreveio uma tempestade;. e deu-me vontade, durante ela, de ir ao piano. Esperava que saísse o "bitu"; mas, qual não foi o meu espanto, quando de sob os meus dedos surgiu e ecoou todo o tremendo fenômeno meteorológico, toda a sua música terrível... Ah! Como me senti satisfeito! Tinha encontrado a minha vocação... Eu era músico! Poderia transportar, registrar no papel e reproduzi-los artisticamente, com os instrumentos adequados,

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todos os sons, até ali intraduzíveis pela arte, da Natureza. O bramido das grandes cachoeiras, o marulho soluçante das vagas, o ganido dos grandes ventos, o roncar divino do trovão, estalido do raio — todos esses ruídos, todos esses sons não seriam perdidos para a Arte; e, através do meu cérebro, seriam postos em música, idealizados transcendentalmente, a fim de mais fortemente, mais intimamente prender o homem à Natureza, sempre boa e sempre fecunda, vária e ondeante; mas...

—Tu sabias música? — Não. Mas, continuei a viagem até Hamburgo, em

cujo conservatória me matriculei. Não me dei bem nele, passei para o de Dresde, onde também não me dei bem. Procurei o de Munique, que não me agradou. Freqüentei o de Paris, o de Milão...

— De modo que deves estar muito profundo em música?

Calou-se meu amigo um pouco e logo respondeu: — Não. Nada sei, porque não encontrei um

conservatório que prestasse. Logo que o encontre, fica certo que serei um músico extraordinário. Adeus, vou saltar. Adeus! Estimei ver-te.

Saltou e tomou por uma rua transversal que não me pareceu ser a da sua residência.

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O MILAGRE Stanislaw Ponte Preta

Naquela pequena cidade as romarias começaram quando

correu o boato do milagre. É sempre assim. Começa com um simples boato, mas logo o povo — sofredor, coitadinho, e pronto a acreditar em algo capaz de minorar sua perene chateação — passa a torcer para que o boato se transforme numa realidade, para poder fazer do milagre a sua esperança.

Dizia-se que ali vivera um vigário muito piedoso, homem bom, tranqüilo, amigo da gente simples, que fora em vida um misto de sacerdote, conselheiro, médico, financiador dos necessitados e até advogado dos pobres, nas suas eternas questões com os poderosos. Fora, enfim, um sacerdote na expressão do termo: fizera de sua vida um apostolado.

Um dia o vigário morreu. Ficou a saudade morando com a gente do lugar. E era em sinal dc reconhecimento que conservavam o quarto onde ele vivera, tal e qual o deixara. Era um quartinho modesto, atrás da venda. Um catre (porque em histórias assim a cama do personagem chama-se catre), uma cadeira, um armário tosco, alguns livros. O quarto do vigário ficou sendo uma espécie de monumento à sua memória, já que a Prefeitura local não tinha verba para erguer sua estátua.

E foi quando um dia... ou melhor, uma noite, deu-se o milagre. No quarto dos fundos da venda, no quarto que fora do padre, na mesma hora em que o padre costumava acender uma vela para ler seu breviário, apareceu uma vela acesa.

— Milagre!!! — quiseram todos. E milagre ficou sendo, porque uma senhora que tinha o

filho doente, logo se ajoelhou do lado de fora do quarto, junto à janela, e pediu pela criança. Ao chegar em casa, depois do pedido — conta-se — a senhora encontrou o filho brincando, fagueiro.

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— Milagre!!! — repetiram todos. E o grito de "Milagre!!!" reboou por sobre montes e rios, vales e florestas, indo soar no ouvido de outras gentes, de outros povoados. E logo começaram as romarias.

Vinha gente de longe pedir! Chegava povo de tudo quanto é canto e ficava ali plantado, junto à janela, aguardando a luz da vela. Outros padres, coronéis, até deputados, para oficializar o milagre. E quando eram mais ou menos seis da tarde, hora em que o bondoso sacerdote costumava acender sua vela... a vela se acendia e começavam as orações. Ricos e pobres, doentes e saudáveis, homens e mulheres, civis e militares caíam de joelhos, pedindo.

Com o passar do tempo a coisa arrefeceu. Muitos foram os casos de doenças curadas, de heranças conseguidas, de triunfos os mais diversos. Mas, como tudo passa, depois de alguns anos passaram também as romarias. Foi diminuindo a fama do milagre e ficou, apenas, mais folclore na lembrança do povo.

O lugarejo não mudou nada. Continua igualzinho como era, e ainda existe, atrás da venda, o quarto que fora do padre. Passamos outro dia por lá. Entramos na venda e pedimos ao português, seu dono, que vive há muitos anos atrás do balcão, a roubar no peso, que nos servisse uma cerveja. O português, então, berrou para um pretinho, que arrumava latas de goiabada numa prateleira:

— Ó Milagre, sirva uma cerveja ao freguês! Achamos o nome engraçado. Qual o padrinho que

pusera o nome de Milagre naquele afilhado? E o português explicou que não, que o nome do pretinho era Sebastião. Milagre era apelido.

— E por quê? — perguntamos. — Porque era ele quem acendia a vela, no quarto do

padre

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PORQUE NÃO SE MATAVA Lima Barreto

Esse meu amigo era o homem mais enigmático que

conheci. Era a um tempo taciturno e expansivo, egoísta e generoso, bravo e covarde, trabalhador e vadio. Havia no seu temperamento uma desesperadora mistura de qualidades opostas e, na sua inteligência, um encontro curioso de lucidez e confusão, de agudeza e embotamento.

Nós nos dávamos desde muito tempo. Aí pelos doze anos, quando comecei a estudar os preparatórios, encontrei-o no colégio e fizemos relações. Gostei da sua fisionomia, da estranheza do seu caráter e mesmo ao descansarmos no recreio, após as aulas, a minha meninice contemplava maravilhada aquele seu longo olhar cismático, que se ia tão demoradamente pelas coisas e pelas pessoas.

Continuamos sempre juntos até à escola superior, onde andei conversando; e, aos poucos, fui verificando que as suas qualidades se acentuavam e os seus defeitos também.

Ele entendia maravilhosamente a mecânica, mas não havia jeito de estudar essas coisas de câmbio, de jogo de bolsa. Era assim: para umas coisas, muita penetração; para outras, incompreensão.

Formou-se, mas nunca fez uso da carta. Tinha um pequeno rendimento e sempre viveu dele, afastado dessa humilhante coisa que é a caça ao emprego.

Era sentimental, era emotivo; mas nunca lhe conheci amor. Isto eu consegui decifrar, e era fácil. A sua delicadeza e a sua timidez faziam a compartilha com outro, as coisas secretas de sua pessoa, dos seus sonhos, tudo o que havia de secreto e profundo na sua alma.

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Julio Cesar Oliveira

Há dias encontrei-o no chope, diante de uma alta pilha de rodelas de papelão, marcando com solenidade o número de copos bebidos.

Foi ali, no Adolfo, à Rua da Assembléia, onde aos poucos temos conseguido reunir uma roda de poetas, literatos, jornalistas, médicos, advogados, a viver na máxima harmonia, trocando idéias, conversando e bebendo sempre.

E uma casa por demais simpática, talvez a mais antiga no gênero, e que já conheceu duas gerações de poetas. Por ela, passaram o Gonzaga Duque, o saudoso Gonzaga Duque, o B. Lopes, o Mário Pederneiras, o Lima Campos, o Malagutti e outros pintores que completavam essa brilhante sociedade de homens inteligentes.

Escura e oculta à vista da rua, é um ninho e também uma academia. Mais do que uma academia. São duas ou três. Somos tantos e de feições mentais tão diferentes, que bem formamos uma modesta miniatura do Silogeu.

Não se fazem discursos à entrada: bebe-se e joga-se bagatela, lá ao fundo, cercado de uma platéia ansiosa por ver o Amorim Júnior fazer sucessivos dezoitos.

Fui encontrá-lo lá, mas o meu amigo se havia afastado do ruidoso cenáculo do fundo; e ficara só a uma mesa isolada.

Pareceu-me triste e a nossa conversa não foi logo abundantemente sustentada. Estivemos alguns minutos calados, sorvendo aos goles a cerveja consoladora.

O gasto de copos aumentou e ele então falou com mais abundância e calor. Em princípio, tratamos de coisas gerais de arte e letras. Ele não é literato, mas gosta das letras, e as acompanha com carinho e atenção. Ao fim de digressões a tal respeito, ele me disse de repente:

— Sabes por que não me mato? Não me espantei, porque tenho por hábito não me

espantar com as coisas que se passam no chope. Disse-lhe muito naturalmente:

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—Não. — Es contra o suicídio? — Nem contra, nem a favor; aceito-o. — Bem. Compreendes perfeitamente que não tenho

mais motivo para viver. Estou sem destino, a minha vida não tem fim determinado. Não quero ser senador, não quero ser deputado, não quero ser nada. Não tenho ambições de riqueza, não tenho paixões nem desejos. A minha vida me aparece de uma inutilidade de trapo. Já descri de tudo, da arte, da religião e da ciência.

O Manuel serviu-nos mais dois chopes, com aquela delicadeza tão dele, e o meu amigo continuou:

— Tudo o que há na vida, o que lhe dá encanto, já não me atrai, e expulsei do meu coração. Não quero amantes, é coisa que sai sempre uma caceteação; não quero mulher, esposa, porque não quero ter filhos, continuar assim a longa cadeia de desgraças que herdei e está em mim em estado virtual para passar aos outros. Não quero viajar; enfada. Que hei de fazer?

Eu quis dar-lhe um conselho final, mas abstive-me, e respondi, em contestação:

— Matar-te. — E isso que eu penso; mas... A luz elétrica enfraqueceu um pouco e cri que uma

nuvem lhe passava no olhar doce e tranqüilo. — Não tens coragem?—perguntei eu. — Um pouco; mas não é isso o que me afasta do fim

natural da minha vida. — Que é, então? — E a falta de dinheiro! —Como? Um revólver é barato. — Eu me explico. Admito a piedade em mim, para os

outros; mas não admito a piedade dos outros para mim. Compreendes bem que não vivo bem; o dinheiro que tenho é curto, mas dá para as minhas despesas, de forma que estou

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sempre com cobres curtos. Se eu ingerir aí qualquer droga, as autoridades vão dar com o meu cadáver miseravelmente privado de notas do Tesouro. Que comentários farão? Como vão explicar o meu suicídio? Por falta de dinheiro. Ora, o único ato lógico e alto da minha vida, ato de suprema justiça e profunda sinceridade, vai ser interpretado, através da piedade profissional dos jornais, como reles questão de dinheiro. Eu não quero isso...

Do fundo da sala, vinha a alegria dos jogadores de bagatela; mas aquele casquinar não diminuía em nada a exposição das palavras sinistras do meu amigo.

— Eu não quero isso —continuou ele. Quero que se de ao ato o seu justo valor e que nenhuma consideração subalterna lhe diminua a elevação.

— Mas escreve. — Não sei escrever. A aversão que há na minha alma

excede às forças do meu estilo. Eu não saberei dizer tudo o que de desespero vai nela; e, se tentar expor, ficarei na banalidade e as nuanças fugidias dos meus sentimentos não serão registradas. Eu queria mostrar a todos que fui traído; que me prometeram muito e nada me deram; que tudo isso é vão e sem sentido, estando no fundo dessas coisas pomposas, arte, ciência, religião, a impotência de todos nós diante de augusto mistério do mundo. Nada disso nos dá o sentido do nosso destino; nada disto nos dá uma regra exata de conduta, não nos leva à felicidade, nem tira as coisas hediondas da sociedade. Era isso...

— Mas vem cá: se tu morresses com dinheiro na algibeira, nem por tal...

— Há nisso uma causa: a causa da miséria ficaria arredada.

— Mas podia ser atribuído ao amor. — Qual. Não recebo cartas de mulher, não namoro, não

requesto mulher alguma; e não podiam, portanto, atribuir ao amor o meu desespero.

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— Entretanto, a causa não viria à tona e o teu ato não seria aquilatado devidamente.

— De fato, é verdade; mas a causa-miséria não seria evidente. Queres saber de uma coisa? Uma vez, eu me dispus. Fiz uma transação, arranjei uns quinhentos mil-réis. Queria morrer em beleza; mandei fazer uma casaca; comprei camisas, etc. Quando contei o dinheiro, já era pouco. De outra, fiz o mesmo. Meti-me em uma grandeza e, ao amanhecer em casa, estava a níqueis.

— De forma que é ter dinheiro para matar-te, zás, tens vontade de divertir-te.

— Tem me acontecido isso; mas não julgues que estou prosando. Falo sério e franco.

Nós nos calamos um pouco, bebemos um pouco de cerveja, e depois eu observei:

— O teu modo de matar-te não é violento, é suave. Estás a afogar-te em cerveja e é pena que não tenhas quinhentos contos, porque nunca te matarias.

— Não. Quando o dinheiro acabasse, era fatal. — Zás, para o necrotério na miséria; e então? — E verdade... Continuava a viver. Rimo-nos um pouco do encaminhamento que a nossa

palestra tomava. Pagamos a despesa, apertamos a mão ao Adolfo,

dissemos duas pilhérias ao Quincas e saímos. Na rua, os bondes passavam com estrépido; homens e

mulheres se agitavam nas calçadas; carros e automóveis iam e vinham...

A vida continuava sem esmorecimentos, indiferente que houvesse tristes e alegres, felizes e desgraçados, aproveitando a todos eles para o seu drama e a sua complexidade.

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O HOMEM DA PASTA PRETA Stanislaw Ponte Preta

SOBRAÇANDO uma enorme pasta preta o homem chegou-se para perto da nossa mesa e esperou que levantássemos a cabeça. Fingimos não dar pela sua presença, mas a situação foi ficando meio velhaca e fomos obrigados a perguntar se desejava alguma coisa. Ora se.

Bastou dar a deixa para ele explicar que era um emissário do saber, da cultura, da ilustração. Representante dos mais famosos editores, o homem de indisfarçável sotaque espanhol pôs-se a oferecer livros e mais livros, tudo a preços de ocasião, com descontos formidáveis, com facilidades de pagamento.

— O senhor precisa aproveitar el momento que es oportuno. Las livrarias fazem um desconto especial ahora.

Para ganhar tempo, perguntamos por que as livrarias estão fazendo desconto especial agora. Ele, muito naturalmente, explicou:

— Junho! Não sabemos porque Balzac é mais barato em junho e

jamais saberemos, pois o homem não é de dar tempo para pensar. Ali estava, sobre a mesa, toda a Comédia Humana, mais barata à vista, com um pequeno acréscimo para as tais suaves prestações mensais.

Ficou absolutamente bestificado quando soube que Balzac não interessava. E o Anatole France de bolso, também não? Mas isso era desconcertante! Um cavalheiro com a nossa cultura, com a nossa posição social... E perguntou:

— O amigo, naturalmente, tiene su posición dentro do café- society?

— Jogamos na defesa.

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Ele achou a resposta de um fino humor. Grande espírito. E aproveitou para sapecar Eça de Queiroz inteiramente revisto pelo filho do próprio. Inclusive — garantiu — com notas muito oportunas. Explicamos que já tínhamos o Eça lá em casa. O Eça, o Ramalho, o Camilo, o Fialho, o Antero. Em matéria de literatura portuguesa, lá em casa vamos bem.

Subiu a Península Ibérica e abriu um folheto que demonstrava e provava que nunca, em nenhum país do mundo, se fez — numa só edição — um apanhado tão completo da obra de Cervantes. Já impacientes, declaramos:

— Cervantes dá azia! Não sabemos se azia em espanhol é diferente. O fato é

que não entendeu. Fechou o folheto e abriu outro. Este elucidava os interessados numa coleção enciclopédica. Eram vinte volumes que condensavam curiosidades matemáticas, as chamadas maravilhas da natureza e outros alicerces do saber. O homem que lesse com atenção a obra toda poderia fazer um figurão, respondendo perguntas nos programas de televisão.

Um a um, fomos recusando poetas e prosadores, biógrafos e historiadores, gramáticos, metafísicos, astrônomos e astrólogos. Da fina-flor da literatura, passou a meros catálogos. O senhor tem disco? É amante da pesca?

— Quem nos dera ter amante! Nem sequer sorriu. Gosta de fotografias? Quer aprender

a desenhar? Deseja ser mecânico de rádio em 20 lições? A arte da decoração.

O nosso corpo. O mar que nos cerca. A vida no subsolo. No mundo das bactérias. A culinária de todo o mundo.

Nesta última oferta apelamos para o ofendido. Imediatamente pediu desculpas. Realmente, um homem do nosso trato não iria cozinhar nunca. Por fim, esgotado o estoque, sentindo que não venderia coisa nenhuma, apelou pra ignorância. Olhou para os lados certificou-se de que estávamos a sós e segredou:

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— Tenho aqui umas coisas mui lindas. Para leitura íntima. E mostrou um livro com uma mulher nua na capa. Nem assim...

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CEM ANOS DE PERDÃO Clarice Lispector

Quem nunca roubou não vai me entender. E quem

nunca roubou rosas, então é que jamais poderá me entender. Eu, em pequena, roubava rosas.

Havia em Recife inúmeras ruas, as ruas dos ricos, ladeadas por palacetes que ficavam no centro de grandes jardins. Eu e uma amiguinha brincávamos muito de decidir a quem pertenciam os palacetes. "Aquele branco é meu." “Não, eu já disse que os brancos são meus." "Mas esse não é totalmente branco, tem janelas verdes." Parávamos às vezes longo tempo, a cara imprensada nas grades, olhando.

Começou assim. Numa das brincadeiras de "essa casa é minha", paramos diante de uma que parecia um pequeno castelo. No fundo via-se o imenso pomar. E, à frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas as flores.

Bem, mas isolada no seu canteiro estava uma rosa apenas entreaberta cor-de-rosa-vivo. Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher feita ainda não era. E então aconteceu: do fundo de meu coração, eu queria aquela rosa para mim. Eu queria, ah como eu queria. E não havia jeito de obtê-la. Se o jardineiro estivesse por ali, pediria a rosa, mesmo sabendo que ele nos expulsaria como se expulsam moleques. Não havia jardineiro à vista, ninguém. E as janelas, por causa do sol, estavam de venezianas fechadas. Era uma rua onde não passavam bondes e raro era o carro que aparecia. No meio do meu silêncio e do silêncio da rosa, havia o meu desejo de possuí-la como coisa só minha. Eu queria poder pegar nela. Queria cheirá-la até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume.

Então não pude mais. O plano se formou em mim instantaneamente, cheio de paixão. Mas, como boa realizadora que eu era, raciocinei friamente com minha amiguinha,

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explicando-lhe qual seria o seu papel: vigiar as janelas da casa ou a aproximação ainda possível do jardineiro, vigiar os transeuntes raros na rua. Enquanto isso, entreabri lentamente o portão de grades um pouco enferrujadas, contando já com o leve rangido. Entreabri somente o bastante para que meu esguio corpo de menina pudesse passar. E, pé ante pé, mas veloz, andava pelos pedregulhos que rodeavam os canteiros. Até chegar à rosa foi um século de coração batendo.

Eis-me afinal diante dela. Paro um instante, perigosamente, porque de perto ela ainda é mais linda. Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e chupando o sangue dos dedos.

E, de repente - ei-la toda na minha mão. A corrida de volta ao portão tinha também de ser sem barulho. Pelo portão que deixara entreaberto, passei segurando a rosa. E então nós duas pálidas, eu e a rosa, corremos literalmente para longe da casa.

O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha.

Levei-a para casa, coloquei-a num copo d'água, onde ficou soberana, de pétalas grossas e aveludadas, com vários entretons de rosa-chá. No centro dela a cor se concentrava mais e seu coração quase parecia vermelho.

Foi tão bom. Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas. O

processo era sempre o mesmo: a menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava.

Também roubava pitangas. Havia uma igreja presbiteriana perto de casa, rodeada por uma sebe verde, alta e tão densa que impossibilitava a visão da igreja. Nunca cheguei a vê-la, além de uma ponta de telhado. A sebe era de pitangueira. Mas pitangas são frutas que se escondem: eu não via nenhuma.

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Então, olhando antes para os lados para ver se ninguém vinha, eu metia a mão por entre as grades, mergulhava-a dentro da sebe e começava a apalpar até meus dedos sentirem o úmido da frutinha. Muitas vezes na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura demais com os dedos que ficavam como ensangüentados. Colhia várias que ia comendo ali mesmo, umas até verdes demais, que eu jogava fora.

Nunca ninguém soube. Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem 100 anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens.

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O CEMITÉRIO Lima Barreto

Pelas ruas de túmulos, fomos calados. Eu olhava

vagamente aquela multidão de sepulturas, que trepavam, tocavam-se, lutavam por espaço, na estreiteza da vaga e nas encostas das colinas aos lados. Algumas pareciam se olhar com afeto, roçando-se amigavelmente; em outras, transparecia a repugnância de estarem juntas. Havia solicitações incompreensíveis e também repulsões e antipatias; havia túmulos arrogantes, imponentes, vaidosos e pobres e humildes; e, em todos, ressumava o esforço extraordinário para escapar ao nivelamento da morte, ao apagamento que ela traz às condições e às fortunas.

Amontoavam-se esculturas de mármore, vasos, cruzes e inscrições; iam além; erguiam pirâmides de pedra tosca, faziam caramanchéis extravagantes, imaginavam complicações de matos e plantas—coisas brancas e delirantes, de um mau gosto que irritava. As inscrições exuberavam; longas, cheias de nomes, sobrenomes e datas, não nos traziam à lembrança nem um nome ilustre sequer; em vão procurei ler nelas celebridades, notabilidades mortas; não as encontrei. E de tal modo a nossa sociedade nos marca um tão profundo ponto, que até ali, naquele campo de mortos, mudo laboratório de decomposição, tive uma imagem dela, feita inconscientemente de um propósito, firmemente desenhada por aquele acesso de túmulos pobres e ricos, grotescos e nobres, de mármore e pedra, cobrindo vulgaridades iguais umas às outras por força estranha às suas vontades, a lutar...

Fomos indo. A carreta, empunhada pelas mãos profissionais dos empregados, ia dobrando as alamedas, tomando ruas, até que chegou à boca do soturno buraco, por onde se via

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fugir, para sempre do nosso olhar, a humildade e a tristeza do contínuo da Secretaria dos Cultos.

Antes que lá chegássemos, porém, detive-me um pouco num túmulo de límpidos mármores, ajeitados em capela gótica, com anjos e cruzes que a rematavam pretensiosamente.

Nos cantos da lápide, vasos com flores de biscuit e, debaixo de um vidro, à nívea altura da base da capelinha, em meio corpo, o retrato da morta que o túmulo engolira. Como se estivesse na Rua do Ouvidor, não pude suster um pensamento mau e quase exclamei:

— Bela mulher! Estive a ver a fotografia e logo em seguida me veio à

mente que aqueles olhos, que aquela boca provocadora de beijos, que aqueles seios túmidos, tentadores de longos contatos carnais, estariam àquela hora reduzidos a uma pasta fedorenta, debaixo de uma porção de terra embebida de gordura.

Que resultados teve a sua beleza na terra? Que coisas eternas criaram os homens que ela inspirou? Nada, ou talvez outros homens, para morrer e sofrer. Não passou disso, tudo mais se perdeu; tudo mais não teve existência, nem mesmo para ela e para os seus amados; foi breve, instantâneo, e fugaz.

Abalei-me! Eu que dizia a todo o mundo que amava a vida, eu que afirmava a minha admiração pelas coisas da sociedade—eu meditar como um cientista profeta hebraico! Era estranho! Remanescente de noções que se me infiltraram e cuja entrada em mim mesmo eu não percebera! Quem pode fugir a elas?

Continuando a andar, adivinhei as mãos da mulher, diáfanas e de dedos longos; compus o seu busto ereto e cheio, a cintura, os quadris, o pescoço, esguio e modelado, as aspáduas brancas, o rosto sereno e iluminado por um par de olhos indefinidos de tristeza e desejos...

Já não era mais o retrato da mulher do túmulo; era de uma, viva, que me falava. Com que surpresa, verifiquei isso.

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Pois eu, eu que vivia desde os dezesseis anos, despreocupadamente, passando pelos meus olhos, na Rua do Ouvidor, todos os figurinos dos jornais de modas, eu me impressionar por aquela menina do cemitério! Era curioso.

E, por mais que procurasse explicar, não pude.

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VALENTIA Fernando Sabino

ELE entrou num botequim da Rua Barata Ribeiro e

pediu à moça atrás do balcão um misto quente: — E um suco de laranja — arrematou. — Só temos laranjada — a mulatinha, mirrada e

assustadiça, olhou para o vaso de plástico embaçado onde o líquido amarelo borbulhava gelado: — O senhor quer suco mesmo?

— Se for possível. Ela se dispôs a espremer umas laranjas ali à mão. Em

pouco colocava à sua frente o suco de laranja e o sanduíche. — Muito obrigado. Quanto é? As despesas ali eram pagas antecipadamente na caixa, e

os pedidos feitos mediante a ficha — era o que ele podia observar agora, enquanto comia, reparando o procedimento dos outros fregueses. A mocinha passou a atender um e outro. Ele acabou de comer, sorveu um último gole do suco de laranja:

— Quanto é? — repetiu, limpando a boca no guardanapo de papel.

Ela se deteve diante dele, acabou se voltando para a caixa:

— Seu Manuel, quanto é um suco de laranja? O homem fez que não ouviu, ela teve de repetir a

pergunta. De súbito ele se desdobrou por detrás da caixa, e era enorme assim de pé, o peito estufado dentro da camisa encardida, a gravata de laço frouxo no colarinho desabotoado, o rosto crispado numa careta de raiva que a barba por fazer ainda mais acentuava:

— Quem lhe deu ordem de fazer suco de laranja? Sua voz carregada de sotaque era tão poderosa e

autoritária que se fez no botequim um respeitoso silêncio, todos os olhares se voltaram.

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— Esse moço aqui... — balbuciou ela. Suas palavras mal foram ouvidas, logo esmagadas pelas

do patrão: — Quem manda aqui sou eu. Ele não podia mandar

você fazer coisa nenhuma. Pois agora quem vai pagar é você! A mocinha, aterrada, olhou para o freguês. O freguês

não olhou para ninguém: limitou-se a beber o que havia ainda de suco de laranja no fundo do copo e limpar a boca, desta vez com as costas da mão. Ninguém dizia nada, e todos esperavam. Ele se voltou enfim para o homem lá da caixa e perguntou com delicadeza:

— O que foi que o senhor disse? O homem se adiantou um passo em sua direção: — Não se meta nisso. Estou falando com aquela parva. Pequenino, ele parecia um menino ao aproximar-se

lentamente da figura agigantada do outro. O silêncio no botequim agora era pesado e cheio de expectativa. E, estupefatos, todos viram quando o homenzarrão se inclinou, carrancudo, para ouvir melhor o que o pequenino lhe dizia quase num sussurro :

— Eu vou te matar, seu cachorro ordinário. Aqui. E agora. Eu vou te matar, entendeu? Diga se entendeu.

— Entendi sim senhor — gaguejou o homem, de súbito apavorado, embora o outro não fizesse o menor gesto ameaçador nem sugerisse possuir nenhuma arma.

— Então diga quanto lhe devo. O homem balbuciou uma quantia qualquer, indo

refugiar-se atrás da caixa. Depois de pagar e guardar calmamente o troco, ele se voltou para a mocinha lá no balcão, que continuava imóvel como uma estátua:

— Olha, minha filha: eu moro aqui perto e vou passar aqui todos os dias. Se esse cafajeste lhe fizer alguma coisa, basta me falar que eu me entendo com ele, está bem?

A mocinha, estarrecida, concordou com a cabeça, o próprio cafajeste quase concordou também com a cabeça. O

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freguês deu-lhe ainda um último olhar e depois saiu, palitando os dentes com um pau de fósforo.

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O HOMEM QUE ESPALHOU O DESERTO Ignácio de Loyola Brandão

Quando menino, costumava apanhar a tesoura da mãe e

ia para o quintal, cortando folhas das árvores. Havia mangueiras,abacateiros, ameixeiras, pessegueiros e até mesmo jabuticabeiras.

Um quintal enorme, que parecia uma chácara e onde o menino passava o dia cortando folhas. A mãe gostava, assim ele não ia para a rua, não andava em más companhias. E sempre que o menino apanhava o seu caminhão de madeira (naquele tempo, ainda não havia os caminhões de plástico, felizmente) e cruzava o portão, a mãe corria com a tesoura: tome, filhinho, venha brincar com as suas folhas. Ele voltava e cortava. As árvores levavam vantagem, porque eram imensas e o menino pequeno.

O seu trabalho rendia pouco, apesar do dia-a-dia, constante, de manhã à noite. Mas o menino cresceu, ganhou tesouras maiores. Parecia determinado, à medida que o tempo passava, a acabar com as folhas todas. Dominado por uma estranha impulsão, ele não queria ir à escola, não queria ir ao cinema, não tinha namoradas ou amigos. Apenas tesouras, das mais diversas qualidades e tipos. Dormia com elas no quarto. À noite, com uma pedra de amolar, afiava bem os cortes, preparando-as para as tarefas do dia seguinte. Às vezes, deixava aberta a janela, para que o luar brilhasse nas tesouras polidas.

A mãe, muito contente, apesar de o filho detestar a escola e ir mal nas letras. Todavia, era um menino comportado, não saía de casa, não andava em más companhias, não se embriagava aos sábados como os outros meninos do quarteirão, não freqüentava ruas suspeitas onde mulheres pintadas exageradamente se postavam às janelas, chamando os incautos. Seu único prazer eram as tesouras e o corte das folhas.

Só que, agora, ele era maior e as árvores começaram a perder. Ele demorou apenas uma semana para limpar a

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jabuticabeira. Quinze dias para a mangueira menor e vinte e cinco para a maior.

Quarenta dias para o abacateiro que era imenso, tinha mais de cinqüenta anos. E seis meses depois, quando concluiu, já a jabuticabeira tinha novas folhas e ele precisou recomeçar.

Certa noite, regressando do quintal agora silencioso, porque o desbastamento das árvores tinha afugentado pássaros e destruído ninhos, ele concluiu que de nada adiantaria podar as folhas. Elas se recomporiam sempre. É uma capacidade da natureza, morrer e reviver. Como o seu cérebro era diminuto, ele demorou meses para encontrar a solução: um machado.

Numa terça-feira, bem cedo, que não era de perder tempo, começou a derrubada do abacateiro. Levou dez dias, porque não estava habituado a manejar machados, as mãos calejaram, sangraram.

Adquirida a prática, limpou o quintal e descansou aliviado.

Mas insatisfeito, porque agora passava os dias a olhar aquela desolação, ele saiu de machado em punho, para os arredores da cidade. Onde encontrava árvore, capões, matos atacava, limpava, deixava os montes de lenhas arrumadinhos para quem quisesse se servir. Os donos dos terrenos não se importavam, estavam em vias de vendê-los para fábricas ou imobiliárias e precisavam de tudo limpo mesmo.

E o homem do machado descobriu que podia ganhar a vida com o seu instrumento. Onde quer que precisassem derrubar árvores, ele era chamado. Não parava. Contratou uma secretária para organizar uma agenda. Depois, auxiliares. Montou uma companhia, construiu edifícios para guardar machados, abrigar seus operários devastadores. Importou tratores e máquinas especializadas do estrangeiro. Mandou assistentes fazerem cursos nos Estados Unidos e Europa. Eles voltaram peritos de primeira linha. E trabalhavam, derrubavam. Foram do sul ao norte, não deixando nada em pé. Onde quer que houvesse uma

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folha verde, lá estava uma tesoura, um machado, um aparelho eletrônico para arrasar.

E enquanto ele ficava milionário, o país se transformava num deserto, terra calcinada. E então, o governo, para remediar, mandou buscar em Israel técnicos especializados em tornar férteis as terras do deserto. E os homens mandaram plantar árvores.E enquanto as árvores eram plantadas, o homem do machado ensinava ao filho a sua profissão.

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O PERU DE NATAL Mário de Andrade

O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de

meu pai acontecida cinco meses antes, foi conseqüência decisiva para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres.

Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família.

Uma vez que eu sugerira à mamãe a idéia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto. Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a idéia de fazer uma das minhas chamadas "loucuras". Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, de uma

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criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de "louco". "É doido, coitado!" falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada.

Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes...), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas "loucuras":

— Bom, no Natal, quero comer peru. Houve um desses espantos que ninguém não imagina.

Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto.

— Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania... Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo...

— Meu filho, não fale assim... — Pois falo, pronto! E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa

parentagem infinita, diz-que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam

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peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces.

Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa. Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus "gostos", já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja.

Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a... culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral:

— É louco mesmo!...

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Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado:assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão.

— Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso! Era mentira. O amor familiar estava por tal forma

incandescente em mim, que até era capaz de comer pouco, só-pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo.

Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus... Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas.

— Eu que sirvo! "É louco, mesmo" pois por que havia de servir, se

sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heróica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo de um pedaço admirável da "casca", cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:

— Se lembre de seus manos, Juca!

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Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime.

— Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não! Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e

principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos... Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.

Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido. Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora.

— Só falta seu pai... Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru

perfeito, tanto que me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial,

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de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:

— É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente... (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família.

E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que "vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai", um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso.

Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever «felicidade gustativa», mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber. Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade!

A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor... Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o nome de "bem-casados". Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à lembrança de meu pai,

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que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação.

Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!...

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PENÉLOPE Dalton Trevisan

Naquela rua mora um casal de velhos. A mulher espera

o marido na varanda, tricoteia em sua cadeira de balanço. Quando ele chega ao portão, ela está de pé, agulhas

cruzadas na cestinha. Ele atravessa o pequeno jardim e, no limiar da porta, beija-a de olho fechado. Sempre juntos, a lidar no quintal, ele entre as couves, ela no canteiro de malvas. Pela janela da cozinha, os vizinhos podem ver que o marido enxuga a louça. No sábado, saem a passeio, ela, gorda, de olhos azuis e ele, magro, de preto. No verão, a mulher usa um vestido branco, fora de moda; ele ainda de preto. Mistério a sua vida; sabe-se vagamente, anos atrás, um desastre, os filhos mortos.

Desertando casa, túmulo, bicho, os velhos mudam-se para Curitiba. Só os dois, sem cachorro, gato, passarinhos. Por vezes, na ausência do marido, ela traz um osso ao cão vagabundo que cheira o portão. Engorda uma galinha, logo se enternece incapaz de matá-la. O homem desmancha o galinheiro e, no lugar, ergue-se caco feroz. Arranca a única roseira no canto do jardim. Nem a uma rosa concede o seu resto de amor.

Além do sábado, não saem de casa, o velho fumando cachimbo, a velha trançando agulhas. Até o dia em que, abrindo a porta, de volta do passeio, acham a seus pés uma carta. Ninguém lhes escreve, parente ou amigo no mundo. O envelope azul, sem endereço. A mulher propõe queimá-lo, já sofridos demais. Pessoa alguma lhes pode fazer mal, ele responde. Não queima a carta, esquecida na mesa. Sentam-se sob o abajur da sala, ela com o tricô, ele com o jornal. A dona baixa a cabeça, morde uma agulha, com a outra conta os pontos e, olhar perdido, reconta a linha. O homem, jornal dobrado no joelho, lê duas vezes cada frase. O cachimbo apaga, não o acende, ouvindo o seco bater das agulhas. Abre enfim a carta. Duas palavras, em letra recortada de jornal. Nada mais, data ou assinatura. Estende

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o papel à mulher que, depois de ler, olha-o. Ela se põe de pé, a carta na ponta dos dedos.

— Que vai fazer? — Queimar. Não, ele acode. Enfia o bilhete no envelope, guarda no

bolso. Ergue a toalhinha caída no chão e prossegue a leitura do jornal.

A dona recolhe a cestinha, o fio e as agulhas. — Não ligue, minha velha. Uma carta jogada em todas

as portas. O canto das sereias chega ao coração dos velhos?

Esquece o papel no bolso, outra semana passa. No sábado, antes de abrir a porta, sabe da carta à espera. A mulher pisa-a, fingindo que não vê.

Ele a apanha e mete no bolso. Ombros curvados, contando a mesma linha, ela pergunta:

— Não vai ler? Por cima do jornal admira a cabeça querida, sem cabelo

branco, os olhos que, apesar dos anos, azuis como no primeiro dia.

— Já sei o que diz. — Por que não queima? É um jogo, e exibe a carta: nenhum endereço. Abre-a,

duas palavras recortadas. Sopra o envelope, sacode-o sobre o tapete, mais nada. Coleciona-a com a outra e, ao dobrar o jornal, a amiga desmancha um ponto errado na toalhinha. Acorda no meio da noite, salta da cama, vai olhar à janela. Afasta a cortina, ali na sombra um vulto de homem. Mão crispada, até o outro ir-se embora.

Sábado seguinte, durante o passeio, lhe ocorre: só ele recebe a carta? Pode ser engano, não tem direção. Ao menos citasse nome, data, um lugar. Range a porta, lá está: azul. No bolso com as outras, abre o jornal. Voltando as folhas, surpreende o rosto debruçado sobre as agulhas. Toalhinha difícil,

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trabalhada havia meses. Recorda a legenda de Penélope, que desfaz a noite, à luz do archote, as linhas acabadas no dia e assim ganha tempo de seus pretendentes. Cala-se no meio da história: ao marido ausente enganou Penélope? Para quem trançava a mortalha? Continuou a lida nas agulhas após o regresso de Ulisses?

No banheiro fecha a porta, rompe o envelope. Duas palavras... Imagina um plano? Guarda a carta e dentro dela um fio de cabelo. Pendura o paletó no cabide, o papel visível no bolso. A mulher deixa na soleira a garrafa de leite, ele vai-se deitar. Pela manhã examina o envelope: parece intacto, no mesmo lugar. Esquadrinha-o em busca do cabelo branco — não achou.

Desde a rua vigia os passos da mulher dentro de casa. Ela vai encontrá-lo no portão — no olho o reflexo da gravata do outro. Ah, erguer-lhe o cabelo da nuca, se não tem sinais de dente... Na ausência dela, abre o guarda-roupa enterra a cabeça nos vestidos. Atrás da cortina espiona os tipos que cruzam a calçada. Conhece o leiteiro e o padeiro, moços, de sorrisos falsos.

Reconstitui os gestos da amiga: pós nos móveis, a terra nos vasos de violetas úmida ou seca... Pela toalhinha marca o tempo. Sabe quantas linhas a mulher tricoteia e quando, errando o ponto, deve desmanchá-lo, antes mesmo de contar na ponta da agulha. Sem prova contra ela, nunca revelou o fim de Penélope. Enquanto lê, observa o rosto na sombra do abajur. Ao ouvir passos, esgueirando-se na ponta dos pés, espreita à janela: a cortina machucada pela mão raivosa.

Afinal compra um revólver. — Oh, meu Deus... Para quê? — espanta-se a

companheira. Ele refere o número de ladrões na cidade. Exige conta

de antigos presentes. Não fará toalhinhas para o amante vender?

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No serão, o jornal aberto no joelho, vigia a mulher — o rosto, o vestido

— atrás da marca do outro: ela erra o ponto, tem de desmanchar a linha. Aguarda-o na varanda. Se não a conhecesse, ele passa diante da casa. Na volta, sente os cheiros no ar, corre o dedo sobre os móveis, apalpa a terra das violetas — sabe onde está a mulher.

De madrugada acorda, o travesseiro ainda quente da outra cabeça. Sob a porta, uma luz na sala. Faz o seu tricô, sempre a toalhinha. É Penélope a desfazer na noite o trabalho de mais um dia? Erguendo os olhos, a mulher dá com o revólver. Batem as agulhas, sem fio. Jamais soube por que a poupou. Assim que se deitam, ele cai em sono profundo.

Havia um primo no passado... Jura em vão, a amiga: o primo aos onze anos morto de tifo. No serão ele retira as cartas do bolso — são muitas, uma de cada sábado — e lê, entre dentes, uma por uma. Por que não em casa no sábado, atrás da cortina, dar de cara com o maldito? Não, sente falta do bilhete. A correspondência entre o primo e ele, o corno manso; um jogo, onde no fim o vencedor. Um dia tudo o outro revelará, forçoso não interrompê-la.

No portão dá o braço à companheira, não se falam durante o passeio, sem parar diante das vitrinas. De regresso, apanha o envelope e, antes de abri-lo, anda com ele pela casa. Em seguida esconde um cabelo na dobra, deixa-o na mesa. Acha sempre o cabelo, nunca mais a mulher decifrou as duas palavras. Ou — ele se pergunta, com nova ruga na testa — descobriu a arte de ler sem desmanchar a teia?

Uma tarde abre a porta e aspira o ar. Desliza o dedo sobre os móveis: pó. Tateia a terra dos vasos: seca. Direto ao quarto de janelas fechadas e acende a luz. A velha ali na cama, revólver na mão, vestido brando ensangüentado. Deixa-a de olho aberto. Piedade não sente, foi justo. A polícia o manda em paz, longe de casa à hora do suicídio.

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Quando sai o enterro, comentam os vizinhos a sua dor profunda, não chora. Segurando a alça do caixão, ajuda a baixá-lo na sepultura; antes de o coveiro acabar de cobri-lo, vai-se embora. Entra na sala, vê a toalhinha na mesa — a toalhinha de tricô. Penélope havia concluído a obra, era a própria mortalha que tecia — o marido em casa. Acende o abajur de franja verde. Sobre a poltrona, as agulhas cruzadas na cestinha. É sábado, sim. Pessoa alguma lhe pode fazer mal. A mulher pagou pelo crime. Ou — de repente o alarido no peito — acaso inocente? A carta jogada sob outras portas... Por engano na sua. Um meio de saber, envelhecerá tranqüilo. A ele destinadas, não virão, com a mulher morta, nunca mais. Aquela foi a última — o outro havia tremido ao encontrar porta e janela abertas. Teria visto o carro funerário no portão. Acompanhado, ninguém sabe, o enterro. Um dos que o acotovelaram ao ser descido o caixão — uma pocinha d’água no fundo da cova. Sai de casa, como todo sábado. O braço dobrado, hábito de dá-lo à amiga em tantos anos. Diante da vitrina com vestidos, alguns brancos, o peso da mão dela. Sorri desdenhoso da sua vaidade, ainda morta... Os dois degraus da varanda — “Fui justo”, repete, “fui justo” —, com mão firme gira a chave. Abre a porta, pisa na carta e, sentando-se na poltrona, lê o jornal em voz alta para não ouvir os gritos do silêncio.

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COMO NASCEU, VIVEU E MORREU

A MINHA INSPIRAÇÃO Raul Pompéia

Página arrancada ao livro de lembranças de um futuro

Esculápio. Eu ia vê-la naquele dia. O dia dos seus anos! Devia estar esplêndida. Ia completar o seu décimo sétimo ano de um viver de alegrias. O meu presente era simples: uma gravatinha de fita azul; mas havia de agradar-lhe. Era o meu coração quem o dava. Ela o sabia. Sabia também que o coração de umestudante não é rico. Dá pouco, mesmo quando dá... Ela desculparia.

Que noite ia eu passar! Dançaríamos muitas vezes juntos, a começar da segunda quadrilha...

Preparei-me. Empomadei-me; escovei-me; perfumei-me; mirei-me, etc., etc. Conclusão: estava chic. Mas eram cinco horas e eu não queria chegar antes das sete. Fazer-me um pouco desejado... o que é que tem?... Todavia faltava bastante tempo!... Em que ocupar-me a fim de passar essas duas longuíssimas horas? Que fazer?... Impaciência e dúvida; dois tormentos a me angustiarem...

Eu passeava pelo meu quarto, deitando vagamente uns olhares pelos meus desconjuntados móveis: aquelas minhas cadeiras, lembrando a careta de um choramingas a entortar o queixo; a mesa, gemendo sob um mundo de livros desencapados e sebentos; o meu toilette, quero dizer um velho compêndio de anatomia com uns frascos por cima e um espelho pequeno pregado na parede; a minha cama, com a coberta a escorregar languidamente para o chão... Continuava a passear. Olhei ainda uma vez para o espelho e sorri-me, vendo lá dentro a minha gentil figura partida em quatro por duas rachaduras cruzadas no vidro... Que fazer?...

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Debrucei-me na janela... Embaixo a rua, a atividade prosaica das cidades de alguma importância: idas e vindas e mais vindas do que idas, por causa da hora que era de jantar, (por tocar nisto... eu não tinha ainda jantado. É o que me cumpria fazer; mas o meu plano era economizar um jantar, vingando-me à noite nos buffetes da menina...) Meus olhos corriam pela rua como andorinhas brincalhonas. Depois de percorrem o quarto, andavam pela rua em busca de resposta à minha pergunta: - que fazer?...

Por fim foram esbarrar no frontispício da igreja... Começaram a subir... Brincaram nas janelas; contaram quantos vidros havia; examinaram os enfeites de arquitetura... Subiram mais, percorreram os sinos, o zimbório e foram pousar no pára-raios.

Estavam quase no céu. Daqui para ali, menos de um passo. Os olhos lá foram. Mergulharam-se erradios no azul... Que fazer?

Ora... enfim! Estava achada a resposta! Por que não veio ela mais cedo não o posso explicar.

Os meus olhos estavam no céu. Era uma tarde encantadora. Que cor a do firmamento

nessa hora! Que abóbada incomparável a cobrir a rua!... Depois, aquelas nuvens mimosas, desfiando-se nos ares, como brancas meadas de lá nuns dedos sedutores... O sol a descambar, batendo de través na poeira levantada do chão pelos carros, que magníficas cortinas desdobravam pelas janelas das habitações velando-as como que de douradas gazes. No horizonte, por sobre a última linha de telhados e chaminés fumegantes, como se ostentavam aquelas colinas de um azulado branco feitas vapores tênues; como se recortavam sem fazer uma só volta que não fosse demorada e graciosa como as curvas de esbelto corpozinho de donzela...

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Oh! Do quarto para fora, tudo o que se prendia aos céus por um raio de luz ou por uma ponta de vaporoso véu, tudo respirava poesia...

Eu achara a resposta. Que fazer?... Versos!... Feliz achado!... Um soneto ou alguns alexandrinos... qualquer cousa que desse claro testemunho do meu amor. O laço de fita com que eu ia mimosear o meu anjo era azul... Ótimo! Sobre o laço, um soneto!... Ouro sobre azul! Com certeza não dançaríamos somente (eu e ela) trocaríamos o primeiro beijo! Não esse beijo insípido que se dá a carregar aos zéfiros, entregando-se-lhes nas pontas dos dedos, mas um ósculo açucarado de lábios ardentes sobre a maciez de uma face. Um ideal realizado. Uma cousa assim como o contato com um jambo que houvesse roubado o veludo ao pêssego...

- Bravo! Já estou quase deitando verso de improviso! exclamei eu, notando a minha exaltação.

Venha papel! venha pena! Cérebro, soma-te com o teu companheiro, o coração! Não brigueis desta vez como é de vosso costume... somai-vos um com o outro e vertei nesta folha de papel alguma cousa que não horrorize a Petrarca... Espírito de Dante, eu te evoco! vem com aquele fogo que em ti acendia a tua celeste Beatriz! Dirceu, corre também em meu socorro! Poetas antigos e modernos, correi todos! Musas, vinde com eles! Transportai-me nesses êxtases que vos deram a imortalidade na memória dos homens!...

Nascera-me a inspiração! Ia metrificar alguma cousa que devia maravilhar os críticos... (aparte a modéstia: isto que escrevo não é para o público). Mas eu me sentia um pouco acima de mim mesmo...

Sem dúvida era essa sensação mística a que experimentam todas essas cabeças de gênio, um momento antes de dar à luz qualquer produção sublime...

Molhei a pena, com um movimento nervoso. A minha impaciência (confesso-o) não era então para chegar à casa do

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meu bem, era para gravar no papel aquilo que me ardia no crânio. Molhei a pena...

Oh! desgraça! A infame pena trouxe na ponta um pingo de tinta, trêmulo, ameaçador. Desviei-a violentamente... foi a minha perdição... Olhei triste para o meu punho esquerdo... Estava descansado sobre a folha de papel, quando o pingo... Maldição!... Ainda havia pouco, tão alvo, luzidio como porcelana... então, com uma feia nódoa circular negra... negra, de quase uma polegada de diâmetro e ainda a infiltrar-se pelo linho, a tomar cada vez mais vulto!...

Pobre camisa!... estragada!... Mais pobre de mim... Esse pingo era uma catástrofe. Aquela camisa era a única. Única! Triste verdade, cujas conseqüências me desesperavam.

- Adeus, meu anjo! disse eu, sem poder engolir um soluço.

Já não me era possível ir vê-la. Nem um companheiro morava comigo. Se morasse, talvez o mal fosse remediável. Mas não! Não havia esperança!... Comprar outra? Onde? Era um domingo... Com que dinheiro?... Era num fim de mês. Não havia esperança.

Aquele beijo que sonhei num instante de ebriedade desfez-se-me no espírito como a má impressão de um R. Não era só isto. A minha ausência seria notada pela menina. O que pensaria ela?...

Talvez que eu, por mesquinho, quis poupar-me a despesa de oferecer-lhe qualquer cousa...

- Quando, gritei eu, aí está o meu laço de fita de cinco mil réis... Ainda mais. Um baile leva a uma casa tantos pelintras... quem sabe se ela não se agradaria de algum desses bolas, esquecendo-se de mim?... E teria razão. A abelha, se aqui não encontra mel, vai buscá-lo acolá... Momentos dolorosos os que passei nessa tarde! Depois de todos os pensamentos que me assaltaram brutalmente à primeira reflexão, foi que lembrei-me do meu soneto...

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- Soneto, para onde tu foste?... Mais este golpe: - a minha inspiração morrera. Eu não

sentia mais a exaltação auspiciosa de alguns minutos antes. Tudo perdido! Fora-se tudo!

Eu vi e jurá-lo-ei, se me não acreditarem, eu vi essa corja do Parnaso, poetas e Musas, fugir-me do quarto! Eu vi as sirigaitas de saias arregaçadas a correr, e os idiotas irem-lhe após, sobraçando liras, como os traquinas das escolas públicas, quando disparam pelas ruas, de ardósia ao sovaco... Nessa mesma tarde, fui à janela outra vez. Estava aflito e superexcitado. Parece-me, até, que tinha os olhos molhados. Pus-me a ver os transeuntes. Cada um que passava, para os lados na morada do objeto dos meus devaneios parecia um convidado de baile. Tortura.

Em seguida avistei a maldita torre, por onde meus olhos haviam subido ao céu que me inspirava a negrejada lembrança de poetar. Para acabar. A desgraça de que fora vítima fez-me esquecer o jantar, que positivamente era só o que eu devia perder não indo à festa. Não comi e não reparei nisso. Tornou-se inútil vingar-me da minha economia. Se neste particular não perdi, no resto ganhei.

A minha querida (soube-o depois) nem perguntou por mim na festa. Esteve alegre. Encontrou quem lhe agradasse (um sujeitinho com quem se vai casar). Melhor. Já estou consolado da desgraça, um mal que me veio para bem. Livrou-me de uma levianazinha. O aborrecimento que hoje me causam os mesmos objetos que tanto me entusiasmaram naquela tarde veio matar umas pequenas veleidades poéticas que ainda acatava. Estou descrente. Agora acabou-se... Só estudo; ergo: ganhei... Estou na expectativa de um fim de ano esplêndido.

Mais uma palavra. O laço de fita azul... guardo-o. É um talismã.

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O HOMEM QUE QUERIA ELIMINAR A

MEMÓRIA Ignácio de Loyola Brandão

Entrou no hospital, mandou chamar o melhor

neurocirurgião. Disse que era caso de vida e morte. Não se sabe como, o melhor neurocirurgião foi atendê-lo. Médicos são imprevisíveis. Precisa-se muito e eles falham; subitamente, estão ali, salvando nossas vidas, ele pensou, sem se incomodar com o lugar-comum.

Estava na sala diante do doutor. Uma sala branca, anônima. Por que são sempre assim, derrotando a gente logo de entrada?

O médico: – Sim? – Quero me operar. Quero que o senhor tire um pedaço

do meu cérebro. – Um pedaço do cérebro? Por que vou tirar um pedaço

do seu cérebro? – Porque eu quero. – Sim, mas precisa me explicar. Justificar. – Não basta eu querer? – Claro que não. – Não sou dono do meu corpo? – Em termos. – Como em termos? – Bem, o senhor é e não é. Há certas coisas que o senhor

está impedido de fazer. Ou melhor; eu é que estou impedido de fazer no senhor.

– Quem impede? – A ética, a lei.

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– A sua ética manda também no meu corpo? Se pago, se quero, é porque quero fazer do meu corpo aquilo que desejo. E se acabou.

– Olha, a gente vai ficar o dia inteiro nesta discussão boba. E não tenho tempo a perder. Por que o senhor quer cortar um pedaço do cérebro?

– Quero eliminar a minha memória. – Para quê? – Gozado, as pessoas só sabem perguntar: o quê? por

quê? para quê? Falei com dezenas de pessoas e todos me perguntaram: por quê? Não podem aceitar pura e simplesmente alguém que deseja eliminar a memória.

– Já que o senhor veio a mim para fazer esta operação, tenho ao menos o direito dessa informação.

– Não quero mais lembrar de nada. Só isso. As coisas passaram, passaram. Fim!

– Não é tão simples assim. Na vida diária, o senhor precisa da memória. Para lembrar pequenas coisas. Ou grandes. Compromissos, encontros, coisas a pagar.

– É tudo isso que vou eliminar. Marco numa agenda, olho ali e pronto.

– Não dá para fazer isso, de qualquer modo. A medicina não está tão adiantada assim.

– Em lugar nenhum posso eliminar a minha memória? – Que eu saiba não. – Seria muito melhor para os homens. O dia a dia. O dia

de hoje para a frente. Entende o que eu quero dizer? Nenhuma lembrança ruim ou boa, nenhuma neurose. O passado fechado, encerrado. Definitivamente bloqueado. Não seria engraçado? Não se lembrar sequer do que se tomou no café da manhã? E para que quero me lembrar do que tomei no café da manhã?

– Se todo mundo fizesse isso, acabaria a história. – E quem quer saber de história? – Imaginou o mundo?

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– Feliz, tranquilo. Só de futuro. O dia em vez de se transformar em passado de hoje, mudando-se em futuro. Cada instante projetado para a frente.

– Não seria bem assim. Teríamos apenas uma soma de instantes perdidos. Nada mais. Cada segundo eliminado. A sua existência comprovada através de quê?

– Quem quer comprovar a existência? – A gente precisa. – Para quê? O médico pensou. Não conseguiu responder. O homem

tinha-o deixado totalmente confuso. Pediu ao homem que voltasse outro dia. Despediram-se. O médico subiu para os brancos corredores do hospital, passou pela sala de operações. Chamou um amigo.

– Estou pensando em tirar um pedaço do meu cérbro. Eliminar a memória. O que você acha?

– Muito boa idéia. Por que não pensamos nisto antes? Opero você e depois você me opera. Também quero.

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PREOCUPAÇÕES DE UMA VELHINHA Luiz Vilela

Se o ronco de um quadrimotor rompe a calma da

manhã, os olhos da velhinha se erguem assustados do canteiro de couves para o céu onde o monstro de metal passa com imponência aterradora cintilando ao sol, e de sua mão pende por um momento o velho regador de lata, que ela pousa depois lentamente no chão, quando o som já se perdeu e a distância apagou o minúsculo ponto no azul; e então ela olha para os canteiros, seus canteiros que ela rega toda manhã e de tempos em tempos cava com a enxadinha e semeia, ela olha e tem medo, seu coração que já morreu em muitas mortes e que sempre ressuscitou com a valentia de uma planta rebelde parece agora temer coisas jamais vistas, coisas obscuras e terríveis que lhe anunciam o ronco do avião sobre sua cabeça, as notícias que os olhos, num intervalo do crochê, vão tentando decifrar no jornal largado sobre a mesa, ou os ouvidos atentos recolhem das conversas.

— Antero, os chineses são gente má? … — Os chineses? Por quê? São gente feito nós mesmos. — Hoje li no jornal que eles estão matando muita gente — Guerra, Mamãe. — Guerra pra quê? — Pra que; guerra, uai, um é inimigo do outro e quer

destruir o outro. Guerra que lembra é a do Paraguai, era menina ainda, o

pai contando histórias, umas bonitas, outras tristes — mas não pareciam matar tanta gente. Depois outra guerra, muito longe, e depois, mais perto, a guerra da Itália, quando diziam que o Jaime podia ser chamado a qualquer hora e em que o Amadeu foi, tinha até um retrato dele vestido de soldado — mas essa guerra ficava noutras terras, a milhares de léguas de distância, e era preciso ir

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de navio ou avião, pois tinha o mar. Agora era esquisito, parecia que a guerra estava em toda parte (tantos nomes de lugares que ela nunca tinha ouvido falar), no mundo inteiro — e decerto de uma hora para outra estaria ali também na cidade, no meio deles, aviões jogando bombas, soldados atirando nas pessoas e as casas pegando fogo, sangue e gente morta nas ruas.

— O Brasil também está na guerra? … — O Brasil? Não. — Então como que eu li que foi um batalhão de

soldados brasileiros para um lugar estrangeiro … — Onde? Ah, isso é outra coisa, Mamãe; é guerra, mas

não é o Brasil, é a ONU, um batalhão de soldados do mundo inteiro, vários paises, mesmo quem não está na guerra; é para acabar com a guerra, entende?

Diz que entende e pára de falar; depois ela vai pensar sozinha para ver se entendeu mesmo, mas agora não está entendendo: pois se não está na guerra então pra que mandar soldado? Mas não gosta de perguntar aos filhos, eles não gostam de explicar, dizem que é muito complicado, a senhora não entende, Mamãe. Mas tem hora que dá uma comichão na língua e quando vê já está falando:

— Quê que é belico? — Bélico: acento no é. Bélico é guerra, coisas de

guerra. — Material bélico … — Fuzil, metralhadora, canhão, tanque, morteiro, tudo

isso. — Morteiro? Uai, essa eu não tinha ouvido falar não, é

arma também? Como que ela é? — A senhora anda curiosa, hem, Mamãe; pra que que a

senhora quer saber? É arma de matar, destruir; é um cano, a gente joga a bomba dentro e o cano joga a bomba pra longe e ela explode, morteiro é isso.

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Tomou uma chamada, bem feito, quem mandou ela ficar perguntando? Sabe que eles não gostam de explicar, já tomou várias chamadas e não aprende; mas é que dá uma comichão e quando vê — ainda bem que tem hora que segura e não fala: melhor deixar para quando estiver sozinha no quarto, de noite, no escuro, antes de deitar; aí vai pensando devagarinho e repetindo o que leu ou falaram para ela: mas quanto mais pensa, mais fica tudo embaralhado na sua cabeça. As vezes reza a Deus pedindo que Ele ajude seu entendimento, mas o que sente é que as coisas no mundo ficaram tão complicadas que nem mesmo Deus pode mais entender direito; sente como se Ele também estivesse numa confusão e num medo igual ela, aquele medo que estava agora dia e noite com ela: era como se de uma hora para outra uma coisa terrível fosse acontecer e acabar com tudo o que havia de bom na terra.

De manhã, ao acordar, lembrava-se de sua hortinha, suas couves, alfaces, tomates, cebolas, moranguinhos; estariam lá ainda, no mesmo lugar do mesmo jeito, ou encontraria apenas um montão de cinzas cheio de braços e pernas de gente, cabeças, orelhas, olhos esbugalhados, como vira no sonho?

Ontem, Cidinho, o netinho maior, na hora que ela estava aguando, entrou na horta com um estranho objeto na mão, uma arma que ele falou o nome mas ela não entendeu e que bastava puxar o gatilho que ela e a horta desapareceriam na mesma hora; ele falou que ia puxar; ela pediu pelo amor de Deus que não fizesse isso; ele puxou e então houve um estalo, mas nada aconteceu, e ele ficou rindo dela e dizendo "Vovó boba, Vovó boba", e depois saiu de afasta continuando a rir dela e a dar tiros. Ela ficou parada entre dois canteiros, o coração ainda batendo forte do susto, as pernas trêmulas, e ao olhar para as suas couves, verdinhas e viçosas, começou a chorar — era boba mesmo, era boba.

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LADRÃO!… Humberto de Campos

A sala do júri da cidade provinciana enchera-se, desde o

amanhecer, da melhor gente, não só do lugar, do perímetro urbano, como de todo o município e, ainda, dos municípios vizinhos. O processo que naquele dia se ia julgar, era, talvez, o mais sensacional formado na comarca. Tratava-se, na opinião geral, de um desses casos de degradação pela miséria ou pelo vício, da queda inesperada de um rapaz ainda novo, e dos mais considerados na sociedade local, da revelação, em suma, de um caráter baixo e depravado, que se disfarçara, até então, sob a roupagem do brio, da honra e das boas maneiras.

Amplo e simples, o salão do tribunal era uma grande peça com doze janelas, na ala direita do andar térreo e único da Câmara Municipal. Sobre um estrado, a mesa pesada e tradicional, para o juiz e os auxiliares. Em frente ao magistrado, o tosco banco dos réus. Ao lado, separado por uma grade convencional, os membros do conselho de sentença. Do lado oposto, a tribuna, pequeno púlpito de roça. E atrás, como no recinto de um cinema, os bancos para os espectadores, nos quais a multidão se comprimia, abanando-se com os leques, com os lenços, com os chapéus. Pintadas recentemente, as paredes eram brancas, de cal. Nestas, uma nódoa única, e essa mesma, sagrada: a imagem do Crucificado, a cabeça pendente, os braços abertos e flácidos ao peso do corpo, como num conforto triste aos que fossem, como ele, vitimas da justiça dos homens.

Embrulhado na sua toga, o juiz apareceu, cercado pelo silêncio geral. Era um homem alto, seco, de tez tostada, bigode curto e grisalho. Houve um movimento de cadeiras. A campainha soou, como nos atos litúrgicos. E a uma ordem do magistrado, entrou o réu, entre dois soldados.

Abelardo Padilha Porto era acadêmico de medicina no Rio quando, com a morte do pai, teve de interromper os estudos

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e regressar precipitadamente à sua cidade natal. Os negócios do velho agricultor não tinham corrido bem, nos últimos tempos. Endividado, os credores, logo após a morte do devedor, haviam-se apossado da fazenda, da casa, do gado, das plantações. E se ele, e a velha mãe, ainda viviam na propriedade, era apenas enquanto esta não era vendida, para rateio judiciário do produto. Era esta a sua situação de pobreza, e de vergonha iminente, quando se deu o crime, que espantara a cidade.

Entre os estabelecimentos mais movimentados da rua do Sal, estava o do português Antônio Rocha, constituído por uma casa de secos e molhados, cujo comércio diário subia a várias centenas de mil réis. A casa de negócio do gordo comerciante era, como em geral sucede no interior, o desdobramento, apenas, da sua casa de moradia. Com quatro portas de frente, três pertenciam ao armazém, e uma, apenas, à família, instalada nos fundos do prédio. A entrada para a casa de residência era, assim, independente; e feita por um corredor, comunicando-se, embora, a sala de jantar com o armazém, para o trânsito dos moradores.

Era aí, segregada do mundo, sem uma janela por onde olhasse a rua, que vivia, há dois anos, uma das moças mais bonitas da modesta cidade provinciana. Casada por necessidade, escondera no seu coração, ao entregar-se para sempre ao homem que era o seu marido, uma afeição que lhe nascera na infância, e que sabia correspondida. Por vários anos relutara, na esperança de uma longínqua felicidade. E quando não pudera mais, quando a velha mãe, já tuberculosa, lhe anunciou que não duraria muito na terra, foi que resolveu aceder ao pedido de casamento do vendeiro português, entregando-lhe o seu corpo e o seu destino sem, contudo, entregar-lhe a sua alma.

A chegada de Abelardo Padilha ao município, para liquidar os negócios paternos, havia abalado, fundo, o coração de Santinha Rocha. Amava-o como nos tempos de menina, e, se a sua virtude, a sua condição de mulher honesta, lhe não permitiam mais a realização de um sonho que alimentara desde criança,

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restava-lhe, pelo menos, o consolo de dar-lhe, na situação que atravessava, uma demonstração concreta, e pura, da sua amizade de irmã. Possuía economias, feitas pouco a pouco, possuía jóias, que o marido lhe havia dado; e tudo aquilo seria dele, do homem a quem amara sempre, daquele que fora, na vida, a única esperança do seu destino irremediável. E se ela possuía meios, recursos sem aplicação, por que não o socorria, evitando-lhe uma vergonha, e, com a vergonha, a miséria, a fome, e, quem sabe? o suicídio aos olhos da pobre mãe entrevada? Urgia, pois, chamá-lo, falar com ele, socorrê-lo. Procurá-lo, não ser ia possível, pois que o marido não a deixava sair desacompanhada. O remédio, era, portanto, fazê-lo vir à sua casa, sem testemunhas, na noite em que Antônio estivesse ausente.

O processo era perigoso, mas era o único. Ademais, onde a estrada escura e coberta de espinhos que o Amor não ilumine e recubra de flores? E foi instado, solicitado, insistido, por dois, cinco, dez bilhetes de coração, que o Abelardo aquiescera em penetrar, naquela noite triste, na casa do comerciante.

Antônio da Rocha havia saído, já há meia hora, em visita a um amigo, quando o vulto do antigo estudante surgiu à esquina, à claridade medrosa do pequeno lampião solitário. Parou, olhou em torno, examinando a rua. Não havia ninguém. Cauteloso, mergulhou de novo na sombra, e caminhava cosido com a parede, quando, em frente, exatamente, à porta do Antônio da Rocha, ouviu o seu nome, num sussurro, que o fizera estremecer:

- Abelardo… Entra!… E logo duas mãos esguias, geladas, que apertavam as

suas no escuro, e que, posta a porta no trinco, pois que o marido havia levado a chave, o conduziam, amigas, para a sala de jantar.

Pondo o coração nas palavras, a moça contou-lhe, nervosa, os olhos cheios d’água, o motivo daquela temeridade. Que ele não fizesse mau juízo da sua virtude, da sua seriedade de

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mulher. Amava-o, sem dúvida; mas amava-o com saudade, não com esperança. Quem o havia chamado ali, não era a noiva, era a irmã, a companheira dos outros tempos. Queria-o de todo o coração. E não consentiria que ele, e principalmente sua mãe, tão idosa e tão santa, passassem pela vergonha de serem postos na rua, sem um abrigo ou um pedaço de pão.

- Não é uma esmola que te dou, Abelardo; é um empréstimo que te faço! – disse, estendendo-lhe um maço de cédulas, que o rapaz, com a vergonha no rosto, recusava aceitar.

Nesse momento, porém, a porta estalou na fechadura. - Meu Deus!… O Antônio!… – gemeu a moça, com

olhos de terror. E como alucinada, empurrando o rapaz pela porta que

dava para o armazém: - Foge!… Foge!… Pelo amor de Deus!… E enfiando-lhe o dinheiro no bolso do casaco, às

pressas: - Toma!… Foge!… Pesado e mole, com a atenção emaranhada nas cifras, o

vendeiro levou, ainda, alguns minutos para limpar os pés no capacho, trancar a porta, experimentar os ferrolhos; e minutos tão longos que, quando chegou à sala de jantar, a mulher já estava no quarto de dormir, simulando o primeiro sono.

Antônio da Rocha fora criado, porém, com espírito de prudência e sentido de previsão. Três vezes por semana, antes de deitar-se, tomava de uma vela e percorria, examinando meticulosamente os menores recantos, os dois compartimentos do armazém. E naquela noite, mandava-lhe a consciência, mecanicamente, que cumprisse aquela obrigação.

A vela na mão esquerda, a direita no bolso da calça, o comerciante caminhava, despreocupado, entre pilhas de charque e sacos de arroz, quando ouviu, de súbito, um rumor de papéis remexidos. Estacou desconfiado e, depois de prestar melhor

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ouvido ao barulho, regressou ao quarto de dormir, apanhando o revólver e dizendo, para a mulher:

- Temos ladrão em casa… Vem cá! - Antônio!… – exclamou a moça, sentando-se

repentinamente na cama, as mãos na cabeça. Tomando aquela exclamação como um grito de medo,

Antônio da Rocha marchou, resoluto, para o armazém. E, à porta do compartimento das vendas, gritou:

- Quem está aí? E outra vez: - Se não responder, eu atiro! E esse tempo, o comerciante, que apagara a vela, havia

já alcançado o comutador da eletricidade. E quando uma onda de claridade se espalhou pela casa, iluminando tudo, Antônio da Rocha estacou, estarrecido: diante dele, encostado a uma das prateleiras, estava o “doutor” Abelardo Padilha, corretamente vestido, a fisionomia serena, tendo nas mãos, amontoadas em pilhas, várias mercadorias apanhadas apressadamente no escuro: latas de leite condensado, vidros de conserva, maços de fósforos, um queijo, um pequeno embrulho de café.

- O senhor… um ladrão!… – exclamou o vendeiro, a boca torcida, em uma ironia que era, ao mesmo tempo, de raiva e prazer.

A essas palavras, Abelardo Padilha estremeceu. Uma onda de sangue inundou-lhe o rosto, cegando-o. Teve ímpetos de atirar tudo aquilo para o lado, e estrangular o miserável que assim o insultava. Lembrou-se, porém, de Santinha, da sua reputação, do seu destino, do dever, que lhe cabia, de salvá-la, dando a sua honra de homem pela sua honra de mulher. E, baixando a cabeça, deixou cair, tudo aquilo, com estrondo, no chão.

E ali estava, agora, diante da cidade toda, para ser julgado.

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- O acusado – indagou o juiz, a voz pausada e serena, o acusado confessa que penetrou, altas horas da noite, em um estabelecimento comercial, cujas portas se achavam fechadas… Que motivo o levou ali?

- O roubo, Sr. juiz! – declarou Padilha, a voz trêmula.E mergulhando a cabeça entre os braços desatou a

chorar…

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indagou o juiz, a voz pausada e serena, – o acusado confessa que penetrou, altas horas da noite, em um estabelecimento comercial, cujas portas se achavam fechadas…

declarou Padilha, a voz trêmula. E mergulhando a cabeça entre os braços desatou a

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A DOENÇA DO ANTUNES Lima Barreto

A fama do doutor Gedeão não cessava de crescer. Não havia dia em que os jornais não dessem noticia de

mais uma proeza por ele feita, dentro ou fora da medicina. Em tal dia, um jornal dizia: "O doutor Gedeão, esse maravilhoso CLÍNICO e excelente goal-keeper, acaba de receber um honroso convite do Libertad Foot-ball Club, de São José de Costa Rica, para tomar parte na sua partida anual com o Airoca Foot-ball Club, de Guatemala. Todo o mundo sabe a importância que tem esse desafio internacional e o convite ao nosso patrício representa uma alta homenagem à ciência brasileira e ao foot-ball nacional. O doutor Gedeão, porém, não pôde aceitar o convite, pois a sua atividade mental anda agora norteada para a descoberta da composição da Pomada Vienense, específico muito conhecido para a cura dos calos."

O doutor Gedeão vivia mais citado nos jornais que o próprio presidente da república e o seu nome era encontrado em todas as seções dos cotidianos. A seção elegante de O Conservador, logo ao dia seguinte da noticia acima, ocupou-se do doutor Gedeão da seguinte maneira: "O doutor Gedeão Cavalcanti apareceu ontem no Lírico inteiramente fashionable. O milagroso clínico saltou do seu coupé completamente nu. Não se descreve o interesse das senhoras e o maior ainda de muitos homens. Eu fiquei babado de gozo.

A fama do doutor corria assim desmedidamente. Deixou em instantes de ser médico do bairro ou da esquina, como dizia Mlle. Lespinasse, para ser o médico da cidade toda, o lente sábio, o literato ilegível à João de Barros, o herói do foot-ball, o obrigado papa-banquetes diários, o Cícero das enfermarias, o mágico dos salões, o poeta dos acrósticos, o dançador dos bailes de bom-tom, etc., etc.

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O seu consultório vivia tão cheio que nem a avenida em dia de carnaval, e havia quem dissesse que muitos rapazes preferiam-no, para as proezas de que os cinematógrafos são o teatro habitual.

Era procurado sobretudo pelas senhoras ricas, remediadas e pobres, e todas elas tinham garbo, orgulho, satisfação, emoção na voz quando diziam:—Estou me tratando com o doutor Gedeão.

Moças pobres sacrificavam os orçamentas domésticos para irem ao doutor Gedeão e muitas houve que deixavam de comprar o sapato ou o chapéu da moda para pagar a consulta do famoso doutor. De uma, eu sei que lá foi com enormes sacrifícios para curar-se de um defluxo; e curou-se, embora o doutor Gedeão não lhe tivesse receitado um xarope qualquer, mas um específico de nome arrevesado, grego ou copta, Anakati Tokotuta.

Porque o maravilhoso clínico não gostava das fórmulas e medicamentos vulgares; ele era original na botica que empregava.

O seu consultório ficava em uma rua central, bem perto da avenida, ocupando todo um primeiro andar. As antesalas eram mobiliadas com gosto e tinham mesmo pela parede quadros e mapas de coisas da arte de curar.

Havia mesmo, no corredor, algumas gravuras de combate ao alcoolismo e era de admirar que estivessem no consultório de um médico, cuja glória o obrigava a ser conviva de banquetes diários, bem e fartamente regados.

Para se ter a felicidade de sofrer um exame de minutos do milagroso clínico, era preciso que se adquirisse a entrada, isto é, o cartão, com antecedência, às vezes de dias. O preço era alto, para evitar que os viciosos do doutor Gedeão não atrapalhassem os que verdadeiramente necessitavam das luzes do célebre clínico.

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Custava a consulta cinqüenta mil-réis; mas, apesar de tão alto preço, o escritório da celebridade médica era objeto de uma verdadeira romaria e toda a cidade o tinha como uma espécie de Aparecida médica.

José Antunes Bulhões, sócio principal da firma Antunes Bulhões & Cia., estabelecido com armazém de secos e molhados, lá pelas bandas do Campo dos Cardosos, em Cascadura, andava sofrendo de umas dores no estômago que não o deixavam comer com toda liberdade o seu bom cozido, rico de couves e nabos, farto de toucinho e abóbora vermelho, nem mesmo saborear, a seu contento, o caldo que tantas saudades lhe dava da sua aldeia minhota.

Consultou mezinheiros, curandeiros, espíritas, médicos locais e não havia meio de lhe passar de todo aquela insuportável dorzinha que não o permitia comer o cozido, com satisfação e abundância, e tirava-lhe de qualquer modo o sabor do caldo que tanto amava e apreciava.

Era ir para a mesa, lá lhe aparecia a dor e o cozido com os seus pertences, muito cheiroso, rico de couves, farto de toucinho e abóbora, olhava-o, namorava-o e ele namorava o cozido sem animo de mastigá-lo, de devorá-lo, de engoli-lo com aquele ardor que a sua robustez e o seu desejo exigiam.

Antunes era solteiro e quase casto. Na sua ambição de pequeno comerciante, de humilde

aldeão tangido pela vida e pela sociedade para a riqueza e para a fortuna, tinha recalcado todas as satisfações da vida, o amor fecundo ou infecundo, o vestuário, os passeios, a sociabilidade, os divertimentos, para só pensar nos contos de réis que lhe dariam a forra mais tarde do seu quase ascetismo atual, no balcão de uma venda dos subúrbios.

À mesa, porém, ele sacrificava um pouco do seu ideal de opulência e gastava sem pena na carne, nas verduras, nos legumes, no peixe, nas batatas, no bacalhau que, depois de cozido, era o seu prato predileto.

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Desta forma, aquela dorzita no estômago o fazia sofrer extraordinariamente. Ele se privava do amor; mas que importava se, daqui a anos, ele pagaria para seu gozo, em dinheiro, em jóia, em carruagem, em casamento até, corpos macios, veludosos, cuidados, perfumados, os mais caros que houvesse, aqui ou na Europa; ele se privava de teatros, de roupas finas, mas que importava se, dentro de alguns anos, ele poderia ir aos primeiros teatros daqui ou da Europa, com as mais caras mulheres que escolhesse; mas deixar de comer —isto não! Era preciso que o corpo estivesse sempre bem nutrido para aquela faina de quatorze ou quinze horas, a servir o balcão, a ralhar com os caixeiros, a suportar desaforos dos fregueses e a ter cuidado com os calotes.

Certo dia, ele leu nos jornais a notícia que o doutor Gedeão Cavalcanti tinha tido permissão do governo para dar alguns tiros com os grandes canhões do "Minas Gerais".

Leu a notícia toda e feriu-lhe o fato da informação dizer: "esse maravilhoso clínico e, certamente, um eximio artilheiro.. . "

Clínico maravilhoso! Com muito esforço de memória, pôde conseguir recordar-se de que aquele nome já por ele fora lido em qualquer parte. Maravilhoso clínico! Quem sabe se ele o não curaria daquela dorzita ali, no estômago? Meditava assim, quando lhe entra pela venda adentro o Senhor Albano, empregado na Central, funcionário público, homem sério e pontual no pagamento.

Antunes foi-lhe logo perguntando: — Senhor Albano, o senhor conhece o doutor Gedeão

Cavalcanti? — Gedeão—emendou o outro. — Isto mesmo. Conhece-o, Senhor Albano? — Conheço. — E bom médico?

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— Milagroso. Monta a cavalo, joga xadrez, escreve muito bem, é um excelente orador, grande poeta, músico, pintor, goal-keeper dos primeiros...

— Então é um bom médico, não é, Senhor Albano? — E. Foi quem salvou a Santinha, minha mulher.

Custou-me caro... Duas consultas... Cinqüenta mil-réis cada uma... Some.

Antunes guardou a informação, mas não se resolveu imediatamente a ir consultar o famoso taumaturgo urbano. Cinqüenta mil-réis! E se não ficasse curado com uma única consulta? Mais cinqüenta...

Viu na mesa o cozido, olente, fumegante, farto de nabos e couves, rico de toucinho e abóbora vermelha, a namorá-lo e ele a namorar o prato sem poder amá-lo com o ardor e a paixão que o seu desejo pedia.Pensou dias e afinal decidiu-se a descer até à cidade, para ouvir a opinião do doutor Gedeão Cavalcanti sobre a sua dor no estômago, que lhe aparecia de onde em onde.

Vestiu-se o melhor que pôde, dispôs-se a suportar o suplício das botas, pôs o colete, o relógio, a corrente e o medalhão de ouro com a estrela de brilhantes, que parece ser o distintivo dos pequenos e grandes negociantes; e encaminhou-se para a estação da estrada de ferro.

Ei-lo no centro da cidade Adquiriu a entrada, isto é, o cartão, nas mãos do

continuo do consultório, despedindo-se dos seus cinqüenta milréis com a dor do pai que leva um filho ao cemitério. Ainda se o doutor fosse seu freguês... Mas qual! Aqueles não voltariam mais...

Sentou-se entre cavalheiros bem vestidos e damas perfumadas. Evitou encarar os cavalheiros e teve medo das damas. Sentia bem o seu opróbrio, não de ser taberneiro, mas de só possuir de economias duas miseráveis dezenas de contos... Se tivesse algumas centenas—então, sim! —ele poderia olhar

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aquela gente com toda a segurança da fortuna, do dinheiro, que havia de alcançar certamente, dentro de anos, o mais breve possível.

Um a um, iam eles entrando para o interior do consultório; e pouco se demoravam. Antunes começou a ficar desconfiado... Diabo! Assim tão depressa?

Teriam todos pago cinqüenta mil-réis? Boa profissão, a de médico! Ah! Se o pai tivesse sabido

disso... Mas qual! Pobre pai! Ele mal podia com o peso da mulher e dos

filhos, como havia ele de pagar-lhe mestres? Cada um euriquece como pode...

Foi, por fim, à presença do doutor. Antunes gostou do homem. Tinha um olhar doce, os cabelos já grisalhos, apesar de sua fisionomia moça, umas mãos alvas, polidas...

Perguntou-lhe o médico com muita macieza de voz: — Que sente o senhor? Antunes foi-lhe dizendo logo o terrível mal no estômago

de que vinha sofrendo, há tanto tempo, mal que desaparecia e aparecia mas que não o deixava nunca. O doutor Gedeão Cavalcanti fê-lo tirar o paletó, o colete, auscultou-o bem, examinou-o demoradamente, tanto de pé como deitado, sentou-se depois, enquanto o negociante recompunha a sua modesta toilette.

Antunes sentou-se também, e esperou que o médico saisse de sua meditação.

Foi rápida. Dentro de um segundo, o famoso clínico dizia com toda segurança:

— O senhor não tem nada. Antunes ergueu-se de um salto da cadeira e exclamou

indignado: — Então, senhor doutor, eu pago cinqüenta mil-réis e

não tenho nada! Esta é boa! Noutra não caio eu!

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E saiu furioso do consultório que merecia, da cidade, uma romaria semelhante à da milagrosa Lourdes.

O Melhor das Palavras

E saiu furioso do consultório que merecia, da cidade,

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O CRIME DO PROFESSOR DE MATEMÁTICA

Clarice Lispector

Quando o homem atingiu a colina mais alta, os sinos tocavam na cidade embaixo. Viam-se apenas os tetos irregulares das casas. Perto dele estava à única árvore da chapada. O homem estava de pé com um saco pesado na mão.

Olhou para baixo com olhos míopes. Os católicos entravam devagar e miúdos na igreja, e ele procurava ouvir as vozes esparsas das crianças espalhadas na praça. Mas apesar da limpidez da manhã os sons mal alcançavam o planalto. Via também o rio que de cima parecia imóvel, e pensou: é domingo. Viu ao longe a montanha mais alta com as escarpas secas. Não fazia frio, mas ele ajeitou o paletó agasalhando-se melhor. Afinal pousou com cuidado o saco no chão. Tirou os óculos talvez para respirar melhor porque, com os óculos na mão, respirou muito fundo. A claridade batia nas lentes que enviaram sinais agudos. Sem os óculos, seus olhos piscaram claros, quase jovens, infamiliares. Pôs de novo os óculos, tornou-se um senhor de meia-idade e pegou de novo no saco: pesava como se fosse de pedra, pensou. Forçou a vista para perceber a correnteza do rio, inclinou a cabeça para ouvir algum ruído: o rio estava parado e apenas o som mais duro de uma voz atingiu por um instante a altura — sim, ele estava bem só. O ar fresco era inóspito, ele que morara numa cidade mais quente. A única árvore da chapada balançava os ramos. Ele olhou-a. Ganhava tempo. Até que achou que não havia porque esperar mais.

E no entanto aguardava. Certamente os óculos o incomodavam porque de novo os tirou, respirou fundo e guardou-os no bolso.

Abriu então o saco, espiou um pouco. Depois meteu dentro a mão magra e foi puxando o cachorro morto. Todo ele se

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concentrava apenas na mão importante e ele mantinha os olhos profundamente fechados enquanto puxava. Quando os abriu, o ar estava ainda mais claro e os sinos alegre tocaram novamente chamando os fiéis para o consolo da punição.

O cachorro desconhecido estava à luz. Então ele se pôs metodicamente a trabalhar. Pegou no

cachorro duro e negro, depositou-o numa baixa do terreno. Mas, como se já tivesse feito muito, pôs os óculos, sentou-se ao lado do cão e começou a observar a paisagem.

Viu muito claramente, e com certa inutilidade, a chapada deserta. Mas observou com precisão que estando sentado já não enxergava a cidadezinha embaixo. Respirou de novo. Remexeu no saco e tirou a pá. E pensou no lugar que escolheria. Talvez embaixo da árvore. Surpreendeu-se refletindo que embaixo da árvore enterraria este cão. Mas se fosse o outro, o verdadeiro cão, enterrá-lo-ia na verdade onde ele próprio gostaria de ser sepultado se estivesse morto: no centro mesmo da chapada, a encarar de olhos vazios o sol. Então, já que o cão desconhecido substituía o “outro”, quis que ele, para maior perfeição do ato, recebesse precisamente o que o outro receberia. Não havia nenhuma confusão na cabeça do homem. Ele se entendia a si próprio com frieza, sem nenhum fio solto.

Em breve, por excesso de escrúpulo, estava ocupado demais em procurar determinar rigorosamente o meio da chapada. Não era fácil porque a única árvore se erguia num lado e, tendo-se como falso centro, dividia assimetricamente o planalto. Diante da dificuldade o homem concedeu: “não era necessário enterrar no centro, eu também enterraria no outro, digamos, bem onde eu estivesse neste mesmo momento em pé”. Porque se tratava de dar ao acontecimento a fatalidade do acaso, a marca de uma ocorrência exterior e evidente — no mesmo plano das crianças na praça e dos católicos entrando na igreja — tratava-se de tornar o faro ao máximo visível à superfície do

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mundo sob o céu. Tratava-se de expor um fato, e de não lhe permitir a forma íntima e impune de um pensamento.

À idéia de enterrar o cão onde estivesse nesse mesmo momento em pé — o homem recuou com uma agilidade que seu corpo pequeno e singularmente pesado não permitia. Porque lhe pareceu que sob os pés se desenhara o esboço da cova do cão.

Então ele começou a cavar ali mesmo com pá rítmica. Às vezes se interrompia para tirar e de novo botar os óculos. Suava penosamente. Não cavou muito, mas não porque quisesse poupar seu cansaço. Não cavou muito porque pensou lúcido: “se fosse para o verdadeiro cão, eu cavaria pouco, enterrá-lo-ia bem à tona”. Ele achava que o cão à superfície da terra não perderia a sensibilidade.

Afinal largou a pá, pegou com delicadeza o cachorro desconhecido e pousou-o na cova.

Que cara estranha o cão tinha. Quando com um choque descobrira o cão morto numa esquina, a idéia de enterrá-lo tornara seu coração tão pesado e surpreendido, que ele nem sequer tivera olhos para aquele focinho duro e de baba seca. Era um cão estranho e objetivo.

O cão era um pouco mais alto que o buraco cavado e depois de coberto com terra seria uma excrescência apenas sensível do planalto. Era assim precisamente que ele queria. Cobriu o cão com terra e aplainou-a com as mãos, sentindo com atenção e prazer sua forma nas palmas como se o alisasse várias vezes. O cão agora era apenas uma aparência do terreno.

Então o homem se levantou, sacudiu a terra das mãos, e não olhou nenhuma vez mais a cova. Pensou com certo gosto: acho que fiz tudo. Deu um suspiro fundo, e um sorriso inocente de libertação. Sim, fizera tudo. Seu crime fora punido e ele estava livre.

E agora ele podia pensar livremente no verdadeiro cão. Pôs-se então imediatamente a pensar no verdadeiro cão, o que ele evitara até agora. O verdadeiro cão que agora mesmo devia

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vagar perplexo pelas ruas do outro município, farejando aquela cidade onde ele não tinha mais dono.

Pôs-se então a pensar com dificuldade no verdadeiro cão como se tentasse pensar com dificuldade na sua verdadeira vida. O fato de o cachorro estar distante na outra cidade dificultava a tarefa, embora a saudade o aproximasse da lembrança.

“Enquanto eu te fazia à minha imagem, tu me fazias à tua”, pensou então com auxílio da saudade. “Dei-te o nome de José para te dar um nome que te servisse ao mesmo tempo de alma. E tu — como saber jamais que nome me deste? Quanto me amaste mais do que te amei”, refletiu curioso.

“Nós nos compreendíamos demais, tu com o nome humano que te dei, eu com o nome que me deste e que nunca pronunciaste senão com o olhar insistente”, pensou o homem sorrindo com carinho, livre agora de se lembrar à vontade.

“Lembro-me de ti quando eras pequeno”, pensou divertido, “tão pequeno, bonitinho e fraco, abanando o rabo, me olhando, e eu surpreendendo em ti uma nova forma de ter minha alma. Mas desde então, já começavas a ser todos os dias um cachorro que se podia abandonar. Enquanto isso, nossas brincadeiras tornavam-se perigosas de tanta compreensão”, lembrou-se o homem satisfeito, “tu terminavas me mordendo e rosnando, eu terminava jogando um livro sobre ti e rindo. Mas quem sabe o que já significava aquele meu riso sem vontade. Eras todos os dias um cão que se podia abandonar.”

“E como cheiravas as ruas!”, pensou o homem rindo um pouco, “na verdade não deixaste pedra por cheirar… Este era o teu lado infantil. Ou era o teu verdadeiro cumprimento de ser cão? – e o resto apenas brincadeira de ser meu? Porque eras irredutível. E, abanando tranqüilo o rabo, parecias rejeitar em silêncio o nome que eu te dera.

“Às vezes, tocado pela tua acuidade, eu conseguia ver em ti a tua própria angústia. Não a angústia de ser cão que era a

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tua única forma possível. Mas a angústia de existir de um modo tão perfeito que se tornava uma alegria insuportável: davas então um pulo e vinhas lamber meu rosto com amor inteiramente dado e certo perigo de ódio como se fosse eu quem, pela amizade, te houvesse revelado. Agora estou bem certo de que não fui eu quem teve um cão. Foste tu que tiveste uma pessoa.”

“Mas possuíste uma pessoa tão poderosa que podia escolher: e então te abandonou. Com alívio abandonou-te. Com alívio sim, pois exigias — com a incompreensão serena e simples de quem é um cão heróico — que eu fosse um homem. Abandonou-te com uma desculpa que todos em casa aprovaram: porque como poderia eu fazer uma viagem de mudança com bagagem e família, e ainda mais um cão, com a adaptação ao novo colégio e à nova cidade, e ainda mais um cão? ‘Que não cabe em parte alguma’, disse Marta pratica. ‘Que incomodara os passageiros’, explicou minha sogra sem saber que previamente me justificava, e as crianças choraram, e eu não olhava nem para elas nem para ti, José. Mas só tu e eu sabemos que te abandonei porque eras a possibilidade constante de eu pecar o que, no disfarçado de meus olhos, já era pecado. Então pequei logo para ser logo culpado. E este crime substitui o crime maior que eu não teria coragem de cometer”, pensou o homem cada vez mais lúcido.

“Há tantas formas de ser culpado e de perder-se para sempre e de se trair e de não se enfrentar. Eu escolhi a de ferir um cão”, pensou o homem. “Porque eu sabia que esse seria um crime menor e que ninguém vai para o Inferno por abandonar um cão que confiou num homem. Porque eu sabia que esse crime não era punível.”

Sentado na chapada, sua cabeça matemática estava fria e inteligente. Só agora ele parecia compreender, em toda sua gélida plenitude, que fizera com o cão algo realmente impune e para sempre. Pois ainda não haviam inventado castigo para os grandes crimes disfarçados e para as profundas traições.

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O homem tirou os óculos, respirou, botou-os de novo. Olhou a cova coberta. Onde ele enterrara um cão

desconhecido em tributo ao cão abandonado, procurando enfim pagar a dívida que inquietantemente ninguém lhe cobrava. Procurando punir-se com um ato de bondade e ficar livre de seu crime. Como alguém da uma esmola para enfim poder comer o bolo por causa do qual o outro não comeu o pão.

Mas como se José, o cão abandonado, exigisse dele muito mais que a mentira: como se exigisse que ele, num último arranco, fosse um homem — e como homem assumisse o seu crime — ele olhava a cova onde enterrara a sua fraqueza e a sua condição.

E agora, mais matemático ainda, procurava um meio de não se ter punido. Ele não devia ser consolado. Procurava friamente um modo de destruir o falso enterro do cão desconhecido. Abaixou-se então, e, solene, calmo, com movimentos simples — desenterrou o cão. O cão escuro apareceu afinal inteiro, infamiliar com a terra nos cílios, os olhos abertos e cristalizados. E assim o professor de matemática renovara o seu crime para sempre. O homem então olhou para os lados e para o céu pedindo testemunha para o que fizera. E como se não bastasse ainda, começou a descer as escarpas em direção ao seio de sua família.

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O PECADO Lima barreto

Quando naquele dia São Pedro despertou, despertou

risonho e de bom humor. E, terminados os cuidados higiênicos da manhã, ele se foi à competente repartição celestial buscar ordens do Supremo e saber que almas chegariam na próxima leva.

Em uma mesa longa, larga e baixa, em grande livro aberto se estendia e debruçado sobre ele, todo entregue ao serviço, um guarda-livros punha em dia a escrituração das almas, de acordo com as mortes que Anjos mensageiros e noticiosos traziam de toda extensão da terra. Da pena do encarregado celeste escorriam grossas letras, e de quando em quando ele mudava a caneta para melhor talhar um outro caráter caligráfico.

Assim páginas ia ele enchendo, enfeitadas, iluminadas em os mais preciosos tipos de letras. Havia no emprego de cada um deles, uma certa razão de ser e entre si guardavam tão feliz disposição que encantava o ver uma página escrita do livro. O nome era escrito em bastardo, letra forte e larga; a filiação em gótico, tinha uma ar religioso, antigo, as faltas, em bastardo e as qualidades em ronde arabescado.

Ao entrar São Pedro, o escriturário do Eterno, voltou-se, saudou-o e, à reclamação da lista d’almas pelo Santo, ele respondeu com algum enfado (endado do ofício) que viesse à tarde buscá-la.

Aí pela tardinha, ao findar a escrita, o funcionário celeste (um velho jesuíta encanecido no tráfico de açúcar da América do Sul) tirava uma lista explicativa e entregava a São Pedro a fim de se preparar convenientemente para receber os ex-vivos no dia seguinte.

Dessa vez ao contrário de todo o sempre, São Pedro, antes de sair, leu de antemão a lista; e essa sua leitura foi útil,

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pois que se a não fizesse talvez, dali em diante, para o resto das idades – quem sabe? – o Céu ficasse de todo estragado. Leu São Pedro a relação: havia muitas almas, muitas mesmo, delas todas, à vista das explicações apensas, uma lhe assanhou o espanto e a estranheza. Leu novamente. Vinha assim:

P. L. C., filho de..., neto de..., bisneto de... – Carregador, quarenta e oito anos. Casado. Casto. Honesto. Caridoso. Pobre de espírito. Ignaro. Bom como São Francisco de Assis. Virtuoso como São Bernardo e meigo como o próprio Cristo. É um justo.

Deveras, pensou o Santo Porteiro, é uma alma excepcional; como tão extraordinárias qualidades bem merecia assentar-se à direita do Eterno e lá ficar, per saecula saeculorum, gozando a glória perene de quem foi tantas vezes Santo...

– E porque não ia ? deu-lhe vontade de perguntar ao seráfico burocrata.

– Não sei, retrucou-lhe este. Você sabe, acrescentou, sou mandado...

– Veja bem nos assentamentos. Não vá Ter você se enganado. Procure, retrucou por sua vez o velho pescador canonizado.

Acompanhado de dolorosos rangidos da mesa, o guarda-livros foi folheando o enorme Registro, até encontrar a página própria, onde com certo esforço achou a linha adequada e com o dedo afinal apontou o assentamento e leu alto:

– P. L. C., filho de..., neto de..., bisneto de... – Carregador. Quarenta e oito anos. Casado. Honesto. Caridoso. Leal. Pobre de espírito. Ignaro. Bom como São Francisco de Assis. Virtuoso como São Bernardo e meigo como o próprio Cristo. É um justo.

Levando o dedo pela pauta horizontal e nas “Observações”, deparou qualquer coisa que o fez dizer de súbito:

– Esquecia-me... Houve engano. É ! Foi bom você falar. Essa alma é a de um negro. Vai para o purgatório.

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BOAS MANEIRAS Paul Karrer

A cansada ex-professora se aproximou do balcão do

supermercado. Sua perna esquerda doía e ela esperava ter tomado todos os comprimidos do dia: para pressão alta, tonteira e um grande número de outras enfermidades.

“Graças a Deus eu me aposentei há vários anos” – ela pensou. “Não tenho energia para ensinar hoje em dia”.

Imediatamente antes de se formar a fila para o balcão, ela viu um rapaz com quatro crianças e uma esposa, ou namorada, grávida. A professora não pode deixar de notar a tatuagem em seu pescoço.

“Ele esteve preso” – pensou. Continuou a observá-lo. Sua camiseta branca, cabelo

raspado e calças largas levaram-na a conjecturar: “Ele é membro de alguma gangue”. A professora tentou deixar o homem passar na sua

frente. - Você pode ir primeiro – ofereceu. - Não, a senhora primeiro – ele insistiu. - Não, você está com mais gente – disse a professora. - Devemos respeitar os mais velhos – defendeu-se o

homem. E, com isto, fez um gesto largo indicando o caminho

para a mulher. Um breve sorriso adejou em seus lábios enquanto ela

mancou na frente dele. A professora que existia dentro dela não pode desperdiçar o momento e, virando-se para ele , perguntou:

- Quem lhe ensinou boas maneiras? - A senhora, Sra. Simpson, na terceira série.

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UM MENDIGO ORIGINAL João do Rio

Morreu trasanteontem, às 7 da tarde, de uma congestão,

o meu particular amigo, o mendigo Justino Antônio. Era um homem considerável, sutil e sórdido, com uma

rija organização cerebral que se estabelecia neste princípio perfeito: a sociedade tem de dar-me tudo quanto goza, sem abundância mais também sem o meu trabalho – princípio que não era socialista mas era cumprido à risca pela prática rigorosa.

A primeira vez que vi Justino Antônio num alfarrabista da rua São José foi em dia de sábado. Tinha um fraque verde, as botas rotas, o cabelo empastado e uma barba de profeta, suja e cheia de lêndeas. Entrou, estendeu a mão ao alfarrabista.

— Hoje, não tem. — Devo notar que há já dois sábados nada me dás. — Não seja importuno. Já disse. — Bem, não te zangues. Notei apenas porque a recusa

não foi para sempre. Este cidadão, entretanto, vai ceder-me quinhentos réis.

— Eu! — Está claro. Fica com esta despesinha a mais:

quinhentos réis aos sábados. É melhor dar a um pobre do que tomar um chope. Peço, porém, para notares que não sou um mordedor, sou mendig0, esmolo, esmolo há vinte anos. Tens diante de ti um mendigo autêntico.

— E por que não trabalha? — Porque é inútil. Dei sorrindo a cédula. Justino não agradeceu, e quando

o vimos pelas costas, o alfarrabista indignado prorrompeu contra o malandrim que com tamanho descaro arrancava os níqueis à algibeira alheia. Achei original Justino. Como mendigo era uma curiosa figura perdida em plena cidade, capaz de permitir um pouco de fantasia filosófica em torno de sua diogênica dignidade.

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Mas o mendigo desapareceu, e só um mês depois, ao sair de casa, encontrei-o à porta.

— Deves-me dois mil-réis de quatro sábados, e venho ver se me arranjas umas horas usadas. Estas estão em petição de miséria.

Fi-lo entrar, esperar à porta da saleta, forneci-lhe botas e dinheiro.

— E se me desses o almoço? Mandei arranjar um prato farto, e com a gula de

descrevê-lo, fui generoso. — Vem para a mesa. — A mesa e o talher são inutilidades. Não peço senão o

que necessito no momento. Pode-se comer perfeitamente sem mesa e sem talher.

Sentou-se num degrau da escada e comeu gravemente o pratarraz. Depois pediu água, limpou as mãos nas calças e desceu.

— Espera aí, homem. Que diabo! Nem dizes obrigado. — É inútil dizer obrigado. Só deste o que falta não te

faria. E deste por vontade. Talvez fosse até por interesse. Deste-me as botas velhas como quem compra um livro novo. Conheço-te.

— Conheces-me? — Não te enchas, vaidoso. Eu conheço tôda a gente.

Até para o mês. — Queres um copo de vinho? — Não. Costumo embriagar-me às quintas; hoje é

segunda. Confesso que o mendigo não me deixou uma impressão

agradável. Mas era quanto possível novo, inédito, com a sua grosseria e as suas atitudes de Sócrates de ensinamentos. E diariamente lembrava a sua figura, a sua barba cheia de lêndeas… Uma vez vi-o na galeria da Câmara, na primeira fila,

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assistindo aos debates, e na mesma noite, entrando num teatro do Rocio, o empresário desolado disse-me:

— Ah! não imaginas a vazante! É tal que mandei entrar o Justino.

— Que Justino? — Não conheces? Um mendigo, um tipo muito

interessante, que gosta de teatro. Chega à bilheteira e diz: “Hoje não arranjei dinheiro. Posso entrar?” A primeira vez que me vieram contar a pilhéria achei tanta graça que consenti. Agora, quando arranja dez tostões compra a senha sem dizer palavra e entra. Quando não arranja repete a frase e entra. Um que mal faz?

Fui ver o curioso homem. Estava em pé em geral, prestando uma sinistra atenção às facécias de certo cômico.

— Justino, por que não te sentas? — É inútil. Vejo bem de pé. — Mas o empresário… — Contento-me com a generosidade do empresário. — Mas na Câmara estava sentado. — Lá é a comunhão que paga. Insisti no interrogatório, a falar da peça, dos atores, dos

prazeres, da vida, do socialismo, de uma porção de coisas fúteis, a ver se o mendigo falava.

Justino conservou-se mudo. No intervalo convidei-o a tomar uma soda, por não ser quinta-feira.

— Soda é inútil. Estás a aborrecer-me. Vai embora. Outra qualquer pessoa ficaria indignadíssima. Eu curvei

resignadamente a cabeça e acabei vexado. A voz daquele homem, branca, fria, igual, no mesmo

tom, era inexorável. — É um tipo o teu espectador – disse ao empresário. — Ah!… ninguém lhe arranca palavra. Sabes que nunca

me disse obrigado?

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Eu andava precisamente neste tempo a interrogar mendigos para um inquérito à vida da miséria urbana e alguns dos artigos já haviam aparecido. Dias depois, estando a comprar charutos, entra pela tabacaria adentro o homem estranho.

— Queres um charuto? — Inútil. Só fumo às terças e aos domingos. Os

charuteiros fornecem-me. Entrei para receber os meus dois mil-réis atrasados e para dizer que não te metas a escrever a meu respeito.

— Por quê? — Porque abomino a minha pessoa em letra de forma,

apesar de nunca a ter visto assim. Se fizeres a feia ação, sou forçado a brigar contigo, sempre que te encontrar.

A perspectiva de rolar na via pública com um mendigo não me sorria. Justino faria tudo quanto dissera. Depois era um fenômeno de hipnose. Estava inteiramente dominado, escravizado àquela figura esfingética da lama urbana, não tinha forças para resistir à sua calma e fria vontade. Oh! ouvir esse homem! Saber-lhe a vida!

Como certa vez entranto, à 1 hora da manhã, atravessasse o equívoco e silencioso jardim do Rocio, vi uma altercação num banco. Era o tempo em que a polícia resolvera não deixar os vagabundos dormirem nos bancos. Na noite de luar, dois guardas civis batiam-se contra um vulto esquálido de grandes barbas. Acerquei-me. Era ele.

— Vamos, seu vagabundo. — É inútil. Não vou. — Vai à força! — É inútil. Sabem o que é este banco para mim? A

minha cama de verão há doze anos! De uma hora em diante, por direito de hábito, respeitam-na todos. Tenho visto passar muito guarda, muito suplente, muito delegado. Eles vão-se, eu fico. Nem tu, nem o suplente, nem o comissário, nem o delegado, nem

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o chefe serão capazes de me tirar esse direito. Moro neste banco há uma dúzia de anos. Boa-noite.

Os civis iam fazer uma violência. Tive de intervir,

convencê-los, mostrar autoridade, enquanto Justino, recostado e impassível, dizia:

— Deixa. Eles levam-me, eu volto. Afinal os guardas acederam, e Justino deitou-se

completamente. — Foi inútil. Não precisava. Mas eu sou teu amigo? — Meu amigo? — Certo. Nunca te pedi nada que te pudesse fazer falta

e nunca te menti. Fica certo. Sou o teu melhor amigo, sou o melhor amigo de toda a gente.

— E não gostas de ninguém. — Não é preciso gostar para ser amigo. Amigo é o que

não sacrifica. E desde então comecei a sacrificar-me voluntariamente

por ele, a correr à polícia quando o sabia prêso, a procurá-lo quando o não via e desesperado porque não aceitava mais de dois mil-réis da minha bolsa, e dizia, inexorável, a cada prova da minha simpatia:

— É inútil, inteiramente inútil! Durante três anos dei-me com ele sem saber quantos

anos tinha ou onde nascera. Nem isso. Apenas ao cabo de seis meses consegui saber que fumava aos domingos e às terças, embebedava-se às quintas, ia ao teatro às sextas e às segundas, e todo dia à Câmara. Nas noites de chuva dormia no chão! Numa hospedaria; em noites secas no seu banco. Nunca tomava banho, pedia pouco, e ao menor alarde de generosidade, limitava o alarde com o seu desolador: é inútil. Teria tido vida melhor? Fora rico, sábio? Amara? Odiara? Sofrera? Ninguém sabia! Um dia disse-lhe:

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— A tua vida é exemplar. És o Buda contemporâneo da Avenida.

Ele respondeu: — É um erro servir de exemplo. Vivo assim porque

entendo viver assim. Condensei apenas os baixos instintos da cobiça, exploração, depravação, egoísmo em que se debatem os homens se na consciência de uma vontade que se restringe e por isso é forte. Numa sociedade em que os parasitas tripudiam – é inútil trabalhar. O trabalho é de resto inútil. Resolvi conduzir-me sem idéias, sem interesse, no meio do desencadear de interesses confessados e inconfessáveis. Sou uma espécie de imposto mínimo, e por isso nem sou malandro, nem mendigo, nem um homem como qualquer – porque não quero mais do que isso.

— E não amas? — Nem a mim mesmo porque é inútil. Desses interesses

encadeados resolvi, em lugar de explorar a caridade ou outro genêro de comércio, tirar a percentagem mínima, e daí o ter vivido sem esforço com todos os prazeres da sociedade, sem invejas e sem excessos, despercebido como o invísivel. Que fazes tu? Escreves? Tempo perdido com pretensões a tempo ganho. Que gozas tu? Teatros, jantares, festas em excesso nos melhores lugares. Eu gozo também quando tenho vontade, no dia de porcentagem no lugar que quero – o menor, o insignificante – os teatros e tudo quanto a cidade pode dar de interessante aos olhos. Apenas sem ser apontado e sem ter ódios.

— Que inteligência a tua! — A verdadeira inteligência é a que se limita para evitar

dissabores. Tu podes ter contrariedades. Eu nunca as tive. Nem as terei. Com o meu sistema, dispenso-me de sentir e de fingir, não preciso de ti nem de ninguém, retirando dos defeitos e das organizações más dos homens o subsídio da minha calma vida.

— É prodigioso. — É um sistema, que serias incapaz de praticar, porque

tu és como todos os outros, ambicioso e sensual.

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Quando soube da sua morte corri ao necrotério a fazerlhe o enterro. Não era possível. Justino tinha deixado um bilhete no bolso pedindo que o enterrassem na vala comumgeral do espetáculo dos vermes”.

Saí desolado porque essa criatura fora a única que não me dera nem me tirara, e não chorara, e não sofrera e não gritara, amigo ideal de uma cidade inteira fazendo o que queria sem ir contra pessoa alguma, livre de nós como nós livres dele, a dez mil léguas de nós, posto que ao nosso lado.

E também com certa raiva – por que não dizê porque o meu interesse fora apenas o desejo teimoso de descobrir um segredo que talvez não tivesse.

Enfim morreu. Ninguém sabia da sua vida, ninguém falou da sua morte. Um bem? Um mal?

Nem uma nem outra coisa, porque, afinal, na vida tudo é inteiramente inútil…

O Melhor das Palavras

Quando soube da sua morte corri ao necrotério a fazer-lhe o enterro. Não era possível. Justino tinha deixado um bilhete no bolso pedindo que o enterrassem na vala comum “a entrada

única que não me dera nem me tirara, e não chorara, e não sofrera e não gritara, amigo ideal de uma cidade inteira fazendo o que queria sem ir contra pessoa alguma, livre de nós como nós livres dele, a dez

por que não dizê-lo? —porque o meu interesse fora apenas o desejo teimoso de

Enfim morreu. Ninguém sabia da sua vida, ninguém

rque, afinal, na vida tudo

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DR. POR CORRESPONDÊNCIA Marcos Ray

Minha casa (falo dum tempo muito distante) por muitos

anos serviu de hospedaria a parentes, quase desconhecidos, que vinham do interior visitar ou tentar a vida na capital. Uns se alojavam em casa porque não encontravam vagas nos hotéis, alguns por não gostarem deles e outros porque confessavam preferir o convívio familiar. Primo Emílio estava ente estes. Na carta em que nos preveniu de sua vinda, esclareceu que tinha meios para alugar um belo apartamento no entro ou uma casa confortável num bairro tranqüilo mas temia magoar nosso espírito de hospitalidade. "Morro de saudade", terminava a carta.

Nunca o carteiro trouxe uma carta tão surpreendente para minha família. É que Emílio era um primo distante, fora de circulação e completamente esquecido. Eu só o conhecia através dum retrato dele, já amarelado, num álbum de família. O Emílio, com uma palheta na cabeça, gravata-borboleta, num jardim público, diante duma jaula de macacos. Bela chapa!

A carta chegou às onze. Ao meio-dia o Emílio apertava a campainha de casa com sua mala e sua simpatia. Certamente não usava mais palheta, mas a prestíssima gravata-borboleta estava lá, enfeitando seu afinado pescoço.

— Eh, gente!. Aqui estou eu, o Emílio! Primo Emílio era um homem de estatura mediana, o

corpo cilíndrico, o rosto oval e pequeno. Jovem era no espírito, pois dos lados seus cabelos já embranqueciam. Tinha que pintá-los mensalmente, como fiquei sabendo depois. Fumava como um possesso, cigarros Petit Londrino, e cuspia com freqüência, sem ver onde. Quando estava satisfeito, esfregava as mãos: ríamos muito desse costume. E gostava de dizer: "Ora, muito bem" mesmo quando as coisas não iam bem.

No dia da chegada, durante todo o almoço, só falou duma coisa: sua aversão aos hotéis e da multidão de insetos que

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torturava suas noites de solidão e insônia. Mamãe, comovida, quase derrama uma lágrima, enquanto primo Emílio fazia uma confissão: — Mas fui um ingrato, tia. Que se danem os parentes, dizia. Verdade, eu era assim, porém, o sofrimento me ensinou a estimar os parentes e a rezar para que nunca lhes falte saúde e dinheiro. Aí, não só minha mãe, todos ficaram comovidos. — Você traz algum plano do interior? — perguntou meu pai. — Vou construir edifícios. Sabiam que São Paulo é a cidade que mais cresce no mundo?

— Empreiteiro? — Empreiteiro, eu? Arquiteto! — E o diploma? — Vou receber em dezembro, se passar nos exames — Em que faculdade você estuda, Emílio? — Numa faculdade do Rio de Janeiro. — Como é possível, se você não mora lá? Aí ele fez uma pausa inteligente e revelou: — Vou me formar por correspondência — E ante a

incredulidade geral, prosseguiu: — hoje em dia apenas os incapazes é que vão à escola. Estamos no século XX, sabiam? Tudo agora é muito prático. Por isso inventaram esses cursos. Tenho um amigo que estuda até cirurgia por correspondência... Meu pai ponderou:

— Você entregaria sua barriga a um cirurgião que tivesse se formado por correspondência?

— Entregava. Acho... Primo Emílio, justiça se lhe faça, não ficou parado.

Levantava cedo, tomava seu café com leite e saía às pressas para a rua. Voltava, às vezes, meia hora depois. No jantar, era o primeiro a chegar à mesa. Em seguida, tornava a sair com a mesma pressa e o coitado ficava fora até alta madrugada. Imaginávamos que, mesmo antes de receber o diploma, já se lançara ao trabalho de construir, ele que odiava perder tempo. Certo dia, no almoço, primo Emílio anunciou:

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— Começo amanhã. — Onde vai ser seu primeiro edifício? — indagou

mamãe. — Edifício? Do que está falando, tia?

— Não vai ser construtor? Primo Emílio ria a valer, sacudindo a cabeça. — Já há construtoras demais. — Então, o que vai fazer? — quis saber meu pai.

Primo Emílio foi para seu quarto, o dos fundos, donde tivemos que desalojar a empregada, e voltou triunfante com diversos pacotes que colocou sobre a mesa. Era como se trouxera ouro em pó, pois os pacotes tinham pó, como logo nos mostrou.

— Este, sim, é um grande negócio. — Que negócio? — Vou fabricar bebidas. — Bebidas? Este pó amarelado é uísque escocês. Este é um vermute

muito saboroso. Este outro é de vinho do Rio Grande. Bebidas finas, daquelas que se fabricavam antes da guerra. Aqui está o melhor negócio do mundo!

— E a destilaria? Vai precisar de uma, não? — Bobagem! Apenas na manhã seguinte, que era Sábado,

conhecemos com detalhes os planos industriais do primo Emílio. Ele tinha razão, não precisava de destilarias. Bastavam pó, álcool e água: e mais uma coisa, a banheira velha, há anos aposentada num canto do quintal. Esfregando as mãos, com muito otimismo, e nomeando-me seu assistente, partiu para o trabalho. Assim que o líquido ganhou cores, pegou uma colher de madeira, mergulhou-a na banheira e levou-a à boca. Retirou-a apressadamente. — Mais pó! — exclamou.

Dei-lhe outro pacote, que imediatamente Emílio despejou na banheira.

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O líquido que era azul ficou esverdeado, depois foi amarelando e, por fim, ficou roxo.

— Bela cor! — admirou-se meu primo. A segunda etapa foi encher as garrafas. Primo Emílio comprara algumas dúzias de garrafas vazias. Ajudei-o, interessado nessa tarefa. Mas o seu dia não acabou aí. Faltavam os rótulos. Tinha um maço deles, coloridos, vistosos, escritos em inglês. Professoralmente, Emílio ensinou-se o sentido de algumas palavras, como made, finest, scotland e muitas outras. Sua pronúncia provavelmente não era boa mas ele estava muito feliz. Por dois meses ajudei primo Emílio a encher s garrafas, como também a colar os rótulos. Às vezes surgia uma cor tão confusa que ninguém em casa conseguia distinguir; aí o Emílio colocava nas garrafas o rótulo do "Rum das Antilhas". Essa bebida tinha muita saída como verifiquei mais tarde. Primo Emílio, pelo menos a princípio, deu sorte como industrial. A banheira estava sempre cheia e ele comprou centenas e garrafas vazias. Lembro que até pagou a meu pai o aluguel do quarto dos fundos, o que causou a todos incrível surpresa. Aos domingos trazia à mesa uma garrafão de vinho, não de sua fabricação, mas comprado num dos empórios do bairro. Renovou o guarda-roupa e deu de sair todas as noites, muito perfumado, com ares de bacana.

Certo dia, primo Emílio declarou: — Vou mudar. Estou pensando em comprar uma casa

nas Perdizes. Mas levo a banheira. Pago um conto por ela. — Por um conto você pode comprar algumas banheiras

novas — disse meu pai. — Eu sei, mas sou muito grato a essa banheira. Disse

um conto, pago já. — Já? — Quero dizer, amanhã. Na manhã seguinte dois homens de chapéu apareceram

em casa. Primo Emílio foi recebê-los de braços abertos. Mas não eram compradores. Ambos mostraram um distintivo na parte

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traseira da lapela e levaram o industrial juntamente com um maço de rótulos do "Rum das Antilhas". Durante três dias primo Emílio permaneceu na Polícia, dando explicações. Consta que o Delegado simpatizou com ele, como todo mundo, e o deixou ir em liberdade com a promessa de que nunca mais fabricaria bebidas nacionais ou estrangeiras. Primo Emílio voltou para casa, mas não derrotado, como supúnhamos. Era um homem otimista e cheio e idéias.

— Eu dou um jeito — garantiu à mesa, ajeitando a gravata — Neste mundo só não vence quem não quer. Em seguida foi ao quintal e olhou demoradamente a banheira.

— Vou vendê-la para o ferro-velho — disse meu pai. — Eu disse que compro a banheira e não voltei atrás. — Para fabricar bebidas? Isso, não! — Tive outra idéia — comunicou misteriosamente,

antes de internar-se no quarto para meditar. No dia seguinte, primo Emílio saiu cedo para comprar um fole. Eu disse um fole. Quando perguntarão para que queria aquilo, não respondeu. O certo é que estava em plena ação. Meu pai descobrira que ele mandara fazer uma grande placa e três metros de comprimento por dois de largura. A banheira arrastou para seu quarto depois de fazer nela alguns consertos. Andou verificando o encanamento da casa e, sem fazer nenhuma consulta, mandou ladrilhar parte de seu modesto quarto, ao mesmo tempo que trocara o vidros da janela por outros espessos e escuros. Para finalizar, descobriu uma tipografia no bairro e encomendou milhares de impressos.

Todos em casa andávamos preocupados com essa movimentação, mas não foi preciso obrigá-lo a falar.

— Agora já posso me abrir, sócio — disse ele a meu pai.

— O que está querendo dizer? — Preste atenção, sócio.

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— Antes me explique porque está me chamando de sócio.

— Vou explicar. Quando ia explicar, tocaram a campainha. Eram

carregadores trazendo a referida placa de três metros por dois. Fomos todos para a porta curiosos, sabendo que ela explicaria tudo. Foi com assombro que meu pai leu: "AO SULTÃO DOS BANHOS TURCOS" — reumatismo, artritismo, doenças da coluna, paralisias em geral — Duchas quentes e frias, segundo o moderníssimo processo Emilius.

— Podem pregar a placa na fachada — ordenou Emílio aos carregadores. E voltando-se a meu pai:

— Pode dar uma gorjeta a eles, sócio? De volta à mesa, alegre e realizado, mas ainda com

apetite, Emílio falou dos milagres que os banhos turcos realizam na cura das doenças da circulação. Os extremos, o quente e o frio, têm tirado da cama pessoas entrevadas há anos. Ele lera tudo a respeito e não tinha dúvidas. Quanto ao processo Emiluis, reconhecia que não passava de um charme, algo diferente, um sopro de ar frio na espinha, aplicado com o fole, que, e não fizesse bem, mal também não faria.

— Mas você pretende atender a seus clientes no quartinho do fundo? — indagou minha mãe.

— Os doentes não querem comodidade, querem a cura. — Você já fez alguma experiência? — Eu, não, mas os turcos fizeram antes de mim.

Séculos de experiência. Vocês já viram algum turco reumático? Digam lá. Já viram?

— Não lembro — admitiu meu pai. — Então. se tivesse visto, não esqueceria.

Meu pai ainda resistia à sociedade, a despeito do dinheiro que podia ganhar com a casa de banhos.

— E a licença, Emílio? Tem licença para abrir o estabelecimento?

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Primo Emílio levantou-se em meio à sobremesa, lembrando-se que precisava passar na tipografia, para apanhar os reclames, como dizia, para distribuí-los pelas casas do bairro. Emílio sempre acreditou muito na publicidade e foi a primeira pessoa que ouvi dizer que "a propaganda é a alma do negócio". Assim que primo Emílio saiu, fui à porta ver mais demoradamente a placa, que causava estranheza aos vizinhos, mesmo porque a falta de água era o grande problema da rua. À tardinha ele voltava, já tendo distribuído a maior parte dos folhetos. Devia estar entusiasmado, pois não o vira ainda fumar charuto, o que ele fazia gloriosamente.

Na manhã seguinte, ao contrário do seu hábito, Emílio levantou cedo e pôs-se a andar pela casa, talvez à espera do primeiro cliente. Esperou em vão o dia todo, passeando, impaciente. Dois dias mais tarde resolveu sair, lembrando que o dono do armazém arrastava penosamente uma perna. Tentou convencê-lo a um tratamento de doze banhos. Embora cada banho fosse baratíssimo, o homem preferiu continuar com sua perna paraplégica. Soubemos que o Emílio teve uma briga feia com ele e só não o esmurrou, para convencê-lo, porque tinha uma continha.

Nenhum cliente apareceu na primeira semana. Na segunda apareceu um, mas este mudou de idéia ao ver o enorme fole que produzia jato de ar frio na espinha. Ao completar o mês já estávamos todos certos de que o empreendimento de Emílio fracassara. Ele até já cuidava da retirada da tabuleta, quando um carro parou diante de casa e dele desceu sua grande esperança. Desceu não, foi descido. O que eu vi foi um velhinho, carregado pelos braços robustos de dois netos. Largaram-no numa poltrona da sala, o ancião segurando na mão trêmula um dos folhetos do Emílio.

— Por favor, quero ver o Dr. Emílio. Minha mãe, assustada com o estado do enfermo, e para

evitar complicações, ia dizendo que o Dr. Emílio fora viajar,

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quando ele irrompeu na sala com um sorriso capaz de incutir confiança e certeza de cura em todos os paraplégicos do mundo.

— Aqui estou eu! — exclamou, como se dissesse, aqui está a salvação. — Qual é o seu caso? Ah, as pernas" arregace as

calças para examiná-lo. O exame foi breve. — O que acha do caso, doutor? — É sopa! — Sopa? — Sopa. Em seguida, carregando-o pelos braços, Emílio levou o

cliente ao quarto dos fundos, que se lamuriou e grunhiu durante todo o trajeto. Na sala, à espera, ficaram os netos, meu pai e minha mãe, que rezava disfarçadamente. Eu fui até o quintal, perto do quarto, pois com meus doze anos era o único na família que acreditava nos milagres que o Emílio podia realizar com os banhos, a vapor e o fole.

No começo o velhinho parecia estar resistindo bem ao sacrifício. A água quente talvez o confortasse. Mas as coisas pioraram quando chegou do armazém aquela imensa pedra de gelo. Então o idoso cliente passou a gemer cada vez mais alto. Um dos netos bateu à porta assustado, mas Emílio respondeu "que era assim mesmo e que tudo corria bem". No entanto, os gemidos transformaram-se em gritos na aplicação da ducha de ar frio na espinha. Pensei que o velho bateria as botas, esticaria as canelas,. Rira para o beleléu. E parece que essa era a impressão de todos, inclusive da vizinhança. Quando a ambulância chegou, o cliente do Emílio não gritava nem gemia mais, porém estava rígido e gelado. O primo, ainda segurando o fole, garanti aos netos do infeliz que ele resistiria melhor ao segundo banho. E nomeava ilustras paraplégicos que, dizia, freqüentavam com bons resultados a sua clínica. Mas eles não quiseram ouvir nada, e além de não pagar o banho, ainda insultaram o primo Emílio.

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— É o que dá quando se lida com ignorantes — lamentou o sultão dos banhos turcos. — mas se quiserem voltar,que não contem mais comigo!

Nunca vi ninguém mais triste que o primo Emílio como no dia em que retiraram a tabuleta da frente da casa. O mundo desabava para ele, sua última esperança que naufragava. Desiludido, arrumou as malas para voltar ao interior, mas não voltou. Ficou por lá, tentando bolar novas idéias. Cansada de sua presença, minha mãe lhe pediu a cama, pois a empregada não queria dormir mais no divã. Ele devolveu a cama, dizendo:

— Não faz mal, durmo na banheira. Devia gostar dela, já que jamais levantava antes do

meio-dia. Lembro que foi nas vésperas do Natal, o primo já muito desmoralizado na família, quando chegou pelo correio um cartucho envolto em papel de seda. Eu, que o recebi do carteiro, fui ao seu quarto. O primo roncava dentro da banheira, vestindo algo que já fora um pijama. Como não tinha mais dinheiro para pintar os cabelos, eles haviam embranquecido. Notei que sua velha palheta servia agora de cinzeiro. E a inseparável gravata não tinha mais cor, como o "Rum das Antilhas". Acordei o primo com dificuldade, e entreguei-lhe o cartucho. Emílio, ainda sonolento, preferiu dormir mais, antes de abri-lo. Íamos nos sentar à mesa para o almoço quando ele surgiu impetuosamente na sala sorrindo histericamente a brandir o cartucho no ar.

— O meu diploma! Passei nos exames! Sou doutor! Ouviram? Sou doutor!

Era um belíssimo e solene diploma, nitidamente impresso, escrito com letras góticas, selado, carimbado e cheio de assinaturas dos dois lados.

— Vejam, está tudo em rodem — disse o primo. — Dentro da lei, como sempre exigi as coisas. Meu pai, que não levava o primo a sério, teve que dar a mão à palmatória.

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— É mesmo um turuna esse Emílio. Doutor por correspondência! Quem diria?

— E me formei com boa nota! Nove e meio. — Nove e meio é nota e mais alguma coisa, homem! A alegria do Emílio fez daquela Natal uma data

inesquecível. Correu ao mercado e encomendou um peru com dinheiro que meu pai lhe adiantou, o que não tirava o valor do presente. Fez mais: em nossa conta comprou enfeites natalinos e armou uma belíssima árvore num canto da sala. Nem Papai Noel movimentou-se tanto quanto o Emílio naqueles dias. Quanto ao diploma, mandou fazer uma sólida moldura dourada e dependurou-o no corredor para que todos o vissem, quando passassem. A mesma tipografia que imprimiu o volantes de propaganda do "sultão dos banhos turcos" rodou mil cartões de visita: "Dr. Emílio de tal, arquiteto."

Aquele resto de ano passou-o fazendo planos, diante duma prancheta de arquiteto que mamãe lhe deu. Achava-se com fôlego suficiente para revolucionar a arquitetura e ganhar rios de dinheiro. Alguns esses projetos explicou em detalhes, entre eles o de um imenso hospital para a classe média que ele considerava a grande injustiçada. Na festinha de fim de ano, à meia-noite, enquanto s crianças, na rua, martelavam os postes e as sirenes tocavam, fez solenemente uma revelação íntima e comovida: primo Emílio ia casar.

— Vocês ignoram, mas há vinte anos sou noivo duma boa moça lá de minha cidade. Suponho que ela esteja um pouco cansada de esperar, mas agora que o dinheiro vai entrar, caso-me com ela. É hora de criar juízo!

Essa revelação arrancou lágrimas da família e convenceu meu pai a ir comprar Às pressas mais algumas garrafas de vinho porque o momento exigia.

Nos primeiros dias de janeiro, primo Emílio já com um anelão de doutor no dedo, aconteceu aquilo. Isto é, uma notícia no jornal, na última página, dedicada ao noticiário policial! A

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notícia aludia a uma verdadeira fábrica de diplomas do curso superior, localizada no Rio de Janeiro, cujo reitor já se encontrava nas grades. Vinha depois uma lista de diplomandos que haviam caído no conto, incluindo o nome do primo Emílio.

Meu primo foi o último em casa a ler a notícia. Ninguém tinha coragem de mostrar-lhe o jornal. Mas era necessário antes que ele se empregasse como arquiteto numa construtora e acabasse preso também. Emílio bateu os olhos na página, entendeu e caiu sentado. Permaneceu algum tempo mudo e surdo às palavras de consolo que a família lhe dirigia. Depois, levantou-se e foi para o quarto dos fundos. — Será que ele vai se matar? — receou minha mãe. Aliás, esse era o temor de todos. Mas ele não se matou. Tendo encontrado no quarto um resto de pó colorido e uma garrafa de álcool, fabricou em pouco tempo uma bebida capaz de obter o efeito desejado. Ao voltar para a sala, onde todos o esperavam, suas pernas cambaleavam e sua cabeça parecia dar giros. Quisemos que sentasse, mas preferiu circular em torno da mesa. Numa das voltas perdeu o equilíbrio e caiu. Ameaçou vomitar, já sentado no divã. Pusemos um jornal no chão. Ao ver o jornal, não quis mais vomitar. Pediu café. Veio o café, não o tomou.

Deu um pontapé na prancheta. — Adeus, vou embora — disse. — Você não pode andar assim pela rua —

ponderaram.— Nada mais me segura aqui. Volto para o interior e me caso com Joaninha.

— Joaninha? Só então soubemos o nome da paciente noiva.

— Fique — pediu meu pai. — Não fico — respondeu, decidido, arrotando o

inconfundível "Rum das Antilhas". — Fique ao menos até amanhã. — Até amanhã? — Amanhã você já pode ir.

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Emílio concentrou-se para sair de sua indecisão. Depoidum longo silêncio, resolveu:

— Já que insistem, hoje fico, amanhã eu parto.Primo Emílio era homem de palavra: ficou. Apenas

esqueceu da Segunda parte da promessa.; não partiu no dia seguinte porque choveu muito. Mas cinco anos depois ele fazia as malas e dizia o seu adeus. Soubemos, mais tarde, que a tal Joaninha já estava casada quando ele chegou ao interior. Ingrata. O mundo é assim mesmo.

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se para sair de sua indecisão. Depois

em, hoje fico, amanhã eu parto. Primo Emílio era homem de palavra: ficou. Apenas

esqueceu da Segunda parte da promessa.; não partiu no dia seguinte porque choveu muito. Mas cinco anos depois ele fazia

tarde, que a tal Joaninha já estava casada quando ele chegou ao interior. Ingrata.

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O CAVALO IMAGINÁRIO

Moacyr Scliar

Nós todos frequentávamos o mesmo colégio, naquela pequena cidade do interior. Um colégio privado, e muito caro, o que, para nossos pais, não chegava a ser problema: éramos, meus amigos e eu, filhos de fazendeiros. Nossos pais tinham grandes propriedades. E tinham muito dinheiro. Nada nos faltava. Andávamos sempre muito bem-vestidos, comprávamos o que fosse necessário para o colégio e gastávamos bastante no bar da escola.

Aos domingos nos reuníamos para andar a cavalo. Cavalos não faltavam nas fazendas de nossos pais, animais de puro-sangue e bela estampa. Cada um de nós tinha a sua própria montaria, e não estou falando de pôneis, aqueles cavalinhos mansos; não, estou falando de cavalos de verdade, cavalos que corriam muito e saltavam obstáculos. Estou falando de equitação, aquele nobre esporte. Nossos pais faziam questão de que fôssemos excelentes ginetes. Tínhamos até um professor, que nos treinava na arte de cavalgar.

Eu disse que cada um de nós tinha um cavalo, mas isso não é verdade. Havia um que não tinha cavalo. O Francisco.

O Francisco não era filho de fazendeiro. O pai dele tinha uma profissão humilde, era sapateiro. Na verdade, o Francisco só estava em nossa escola porque havia recebido uma bolsa de estudos – era um garoto muito inteligente e muito dedicado. Mas o que fazia em nosso grupo?

Boa pergunta. Acho que nenhum de nós saberia como responder. Diferente dos outros garotos da escola – a maioria dos quais nos detestava –, ele tinha por nós uma admiração que beirava a reverência. Sempre que podia estava por perto. Mais do

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que isso, oferecia-se para prestar pequenos serviços. Se um de nós queria um refrigerante, o Francisco ia buscar.

Se um de nós deixava de apresentar o trabalho solicitado pelo professor, Francisco se encarregava de fazê-lo. Por isso, e só por isso, nós o tolerávamos. Por isso, e só por isso, permitíamos que andasse conosco. Durante a semana, bem entendido; porque no domingo as coisas mudavam. No domingo ele voltava para o seu lugar. Domingo era o dia de cavalgar, e, do alto de nossas selas, nós contemplávamos, altaneiros, o mundo a nosso redor.

Como eu disse, Francisco não tinha cavalo. Isso não impedia que cedo já estivesse no clube hípico, esperando por nós. Ficava a olhar-nos, enquanto galopávamos de um lado para o outro. E nós gostávamos de tê-lo como plateia, porque nos aplaudia entusiasticamente. Mais do que isso, procurava imitar-nos: galopava de um lado para o outro, como se estivesse montando um cavalo imaginário. Nós na pista, cavalgando – ele, ao lado da pista, trotando de um lado para outro e gritando como nós gritávamos, aqueles brados que os cavaleiros soltam quando se entregam ao esporte das rédeas.

De um modo geral, achávamos engraçado aquilo. Não Rodrigo.

Era um cara desagradável, aquele Rodrigo. Mesmo nós, que éramos amigos dele, tínhamos de reconhecer: um garoto intratável, agressivo com os colegas e até com os professores. A má fama que o nosso grupo tinha devia-se sobretudo a ele. Mas a verdade é que tínhamos de aceitá-lo: seu pai não apenas era o maior fazendeiro da região, como também ocupava o cargo de prefeito da cidade. Rodrigo era seu filho caçula – e o mais mimado. Um garoto estragado, como dizia meu pai.

Rodrigo não gostou nada daquela história. E nos disse: – Não quero mais saber desse tal de Francisco nos

imitando.

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Procuramos convencê-lo de que se tratava apenas de uma brincadeira. Inútil: Rodrigo estava furioso mesmo.

– Vou resolver essa coisa à minha maneira – garantiu. Foi o que fez. Num domingo, enquanto Francisco

cavalgava seu cavalo imaginário, Rodrigo se aproximou dele. Apeou e comandou:

– Desça de seu cavalo. Francisco obedeceu: desceu do fictício cavalo. Nós vamos fazer uma aposta – disse Rodrigo. – Se eu

perder, entrego-lhe o meu cavalo. Se você perder, entrega-me o seu.

– Que aposta é? – indagou Francisco, numa voz trêmula.

– Uma corrida – disse Rodrigo. Apontou umas árvores, a uns duzentos metros de distância: – Até ali, e voltamos. Quem chegar aqui primeiro, ganha.

Lembro-me de que o sangue me subiu à cabeça. – Olha aqui, Rodrigo – comecei a dizer –, você não

pode – Francisco me interrompeu: – Eu aceito a aposta – disse, com voz firme, ainda que

meio embargada. – Quero correr. Foi uma coisa patética de se ver. Os dois se colocaram

lado a lado e, a um sinal, começou aquela coisa maluca. Rodrigo simplesmente trotava em seu magnífico cavalo, Francisco corria atrás – sem conseguir alcançá-lo. Rodrigo foi até as árvores, voltou. Minutos depois Francisco, ofegante. Rodrigo mirou-o com arrogância:

– Parece que eu ganhei, não é mesmo? Francisco, ainda ofegante, permanecia calado. – Seu cavalo agora é meu – continuou Rodrigo. – E sabe

o que vou fazer com ele? Vou soltá-lo no campo. Ele agora está livre, você não pode mais montar, entendeu?

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Francisco, quieto. Rodrigo apanhou as rédeas imaginárias e foi até o portão do clube. Ali, espantou o suposto cavalo aos gritos. Feito isso, montou em seu próprio cavalo e foi embora.

Francisco nunca mais foi ao clube. Aliás, ele nem ficou na cidade. Segundo o pai, tinha ido morar com os avós num lugar bem distante.

Nunca mais o vi. Não sei o que foi feito dele. Dizem que vende automóveis, não sei. Mas tenho certeza de que sei com o que sonha: com um belo cavalo, no qual, montado, galopa à vontade por um imenso campo que não tem limites.

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VISTA CANSADA Otto Lara Resende

Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada

coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.

Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.

Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.

Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.

Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de

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ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.

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TRISTE MOÇA HELIODORA Helena Silveira

Heliodora, quando viu a dona da pensão onde morava

Felício, apertou contra os seios as dálias e s rainúnculas, numa hesitação tímida.

— O que quer, moça? — Queria que a senhora me desse licença de entrar no

quarto de Felício e botar lá estas flores... A matrona fechou a cara e ficou a aquilatar a moça,

sopesando-lhe a possível honestidade pelo aspecto do vestuário, pelo formato do rosto e pelos seios, também submergidos nas flores. A análise pareceu não lhe dizer nada de preciso, pois que continuou silenciosa e aborrecidamente indecisa. Heliodora semelhou ler-lhe o pensamento, já que deixou cair um —"eu sou noiva dele, vamos nos casar no mês que vem", com uma castidade de quem sai de um banho frio. A senhora, aí, apaziguou-se, disse que "pois não, moça, pode entrar" e apontou a porta ao fundo do corredor: — "a do lado esquerdo, não do direito". Heliodora deslizou pelo soalho, as flores fazendo proa ao corpo. Escutava o próprio coração bater e parecia amedrontada da ousadia de seu gesto.

Mergulhou na penumbra do quarto, as pálpebras palpitando sobre as pupilas engrandecidas como as das aves noturnas. "Então é aqui? É aqui que ele dorme?" mirou enternecidamente o promontório alvo da cama, avolumando-se, cortando fatias de escuridão. Foi até a janela, abriu as venezianas, debruçou-se sobre a rua quieta do bairro. Fazia um ano que estava noiva de Felício e nunca pensara em visitá-lo em seu quarto de pensão. Não sabe explicar por que a idéia de lhe levar flores durante a ausência e dispô-las em vasos veio-lhe naquela manhã, com tanta força que, da idéia à ação, foi tempo curto. Logo depois do almoço, adquirira os ramos na barraca da praça, tomara o bonde e ali estava agora, a olhar a paisagem que

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ele devia olhar, logo de manhãzinha, quando inda entontecido de sono. — "Coitado" — Sempre que pensava em Felício, ela dizia coitado.

— Decerto era pelo jeito dele, modesto, acomodado. Jeito que tinham os mocinhos que iam morrer no fundo do submarino ou no avião de bombardeio, nas fitas de cinema. —"Coitado" — continuou — sem ter quem tome conta das roupas nem da comida! É tão bom de boca! Tudo o que come acha gostoso. A mãe dissera-lhe, um dia, que moço assim, que come em pensão ou restaurante, acaba com úlcera no estômago. Mas, erigiu ao agouro, imaginando que, em pouco tempo, quem cozinharia para Felício seria ela. O casamento estava próximo e, pensando nisso, Heliodora voltou-se de costas para a janela e fitou a cama coberta por colcha barata, com lençóis encardidos e um travesseiro estropiado e bambo, sem fronha, a deixar aparecer suas vísceras de paina. Aproximou-se do leito e, só então, se lembrou das flores que havia deixado sobre a cômoda. Inútil procurar um vaso apropriado na pobreza do quarto. Tomou dois copos que estavam numa prateleirazinha de mármore rachado, encheu-os de água, na torneira da pia ecantilhada. Pobre pia! Era mesmo uma pia para Felício, que não gostava de se queixar de coisa nenhuma! Foi arrumando as flores com unção enamorada. Não era moça de muitos extravasamentos.

Sabia que não era bonita, que era um pouco gorda demais. Tinha um senso muito grande do ridículo, para jamais deixar-se levar por transportes que não assentavam nem a seu físico, nem ao seu moral de menina educada em colégio de freiras. Noivavam em frente dos pais, na saleta. Felício chegava depois do jantar, às quintas e sábados. Domingo, às vezes, participava do ajantarado. E tudo corria de modo puro, ascético, sem suspiros nem derramamentos, com certa doçura que não estava nem nele, nem nela, mas era uma conseqüência dos dois a um tempo, comportadamente sentados no sofá. Agora, estava no quarto dele. Aqui, ele dormia. Aqui sonhava. À beira dessa

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cama, se despia... Fora um pouco estouvada em vir, assim sozinha, sem companhia de irmã nem de prima.

Entretanto, de modo algum ele poderia vir àquela hora. Estava na repartição. Quando chegasse, havia de ver as flores, logo, da porta. Disporia um ramo na cômoda, outro sobre o criado-mudo. Assim fez e se postou a admirar as corolas de cores muito nítidas entre a folhagem dos melindres. Felício haveria de sentir o coração aquecido, logo ao entrar no quarto! Começou a andar de um lado para outro. Pegou no pijama, atirado sobre a cadeira única. Faltava o botão do meio e as mangas estavam puídas e tombavam com a tristeza de um corpo enforcado. Tudo era tão melancólico entre aquelas paredes nuas! Do lado oposto em que estava a cama havia pequena mesa, que parecia servir de escrivaninha. Abeirou-se dela, pegou um volume de lombada comida por traças — "Manual do Apicultor". Ao lado havia um tinteiro, uma caneta com a inscrição — "Saudade de Caxambu", um bloco de papel e um caderninho fulvo. Ficou a olhar aquilo, comovida e consternada, tamborilando os dedos na mesa, pensando no noivo sempre tão coitado mesmo: "Ele vive aqui. Ele mora aqui, numa solidão quase miserável...' E os olhos escorriam pelo soalho nodoso, lastimando, iam depois ganhar fôlego nas flores que formavam pequenas ilhas de suntuosidade no aposento. Tomou sem sentir o caderninho fulvo. Abriu, viu escrito: "Natália de Amoedo — Avenida Paulista, 400 — Encontro às seis da tarde embaixo da pérgola do parque." Ia fechando quando ganhou um sobressalto: Santo Deus, que seria aquilo? Naturalmente, anotação para algum amigo! Febril, virou a página, leu: "Pedir a Eliana de Castro Rios que ponha o vestido verde para ir à 'boite' hoje. Telefone 55314." — Como um sonho ruim e pesado, foi vendo outros nomes de mulher e outros endereços: Rua Antilhas, Avenida Brasil, Avenida Higienópolis, Rua Estados Unidos, Rua Colômbia, Rua Guadalupe, avenida Rebouças e um amontoado de Eneidas, Marias Helenas, Saritas, todas residentes nos bairros mais ricos de São Paulo, todas

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aprazadas para coquetéis e ceias, velejar em Santo Amaro no barco do amigo Freddy, fim de semana em São Vicente para um "passeio no iate de Gastão, aquele boa-bola".

À Heliodora, semelhava que era seu próprio coração que se debruçava nas páginas, que lia e se ensopava de um ciúme verde com gosto de fel, que lhe fazia brotar suor entre as sobrancelhas, na juntura do nariz. Perdeu a noção do tempo. Se não fossem passos ouvidos no corredor, ela, decerto, ficaria ali indefinidamente. Mas os passo chamaram-na à realidade. E se fosse Felício? Não, não era. Deveria ser o vizinho de quarto. A moça, sem refletir mais, deitou o caderninho fulvo na bolsa, foi saindo. No saguão ouviu a voz da matrona:

— Quer deixar algum recado? Ela quis responder, mas como achar voz? Olhou a

mulher apenas, com olhar sumido de afogado e foi saindo depressa para a rua quieta. Andou a esmo e, quando deu acordo de si, estava dentro de um taxi, o chofer esperando:

— Para onde, madama? Revolve o caderninho, nervosa, deita o endereço, nem

sabe de que jeito: — Avenida Paulista, 400. — Atrás das grades do palacete, atende um mordomo: — Dona Natália? Está no Guarujá. E rodando para o Jardim América, ouve que dona Eliana

está no Rio e, em Higienópolis, sabe que dona Sarita está na Europa. Continua a seguir seu roteiro infame. Suspira com certo alívio quando um criado lhe diz para passar à pequena sala azul, porque "madama vai atendê-la dentro de poucos minutos". Ao se defrontar com Moema de Alcântara e Castilho, titubeia, acha-se horrível, gorda, ante aquela criatura de longas mãos que parece um sopro vai derrubar. Evidentemente é uma carne alimentada a champanha e "paté de foie gras" francês. Heliodora sente-se grosseira e miserável, baixa os olhos e diz:

— Eu sou a noiva de Felício!

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Espera a resposta como um boi aguarda o cutelo, e como nem uma nem outro vem, como a vida não lhe termina de um golpe, levanta os olhos com, lentidão, mirando primeiro os sapatos, depois o longo traje da "hotesse" —tal vinha nas revistas mundanas. A "hotesse" fitava-a com um rosto egípcio e longínquo, uma das sobrancelhas a se erguer, imperceptivelmente.

Eu sou a noiva de Felício! Da casa entre áleas do Pacaembu à pensão, Heliodora

vai a pé, perdendo-se em voltas, subindo colinas cheias de palacetes desabrochados, descendo ladeiras e, olhando para frente, para trás, para direita, para esquerda, a paisagem que vê é o rosto de Moema Alcântara e Castilho e o som que ouve é seu riso em três notas:

—Minha pobre menina, isto é por demais ridículo! Nunca vi esse homem! Não tenho a mínima idéia de

quem seja! Vê a si própria, toda trêmula, estendendo o caderninho à mulher assexuada e em idade e, depois como em pesadelo terrível, ouve o comentário:

— Agora já sei! Trata-se, sem dúvida, daquele indivíduo cacete que ora me telefona, ora telefona à Natália ou Sarita ou mesmo à Maria Helena! Diz que se chama Felício, sim, é verdade, e conversa conosco, descrevendo-nos os vestidos que usamos em coquetéis ou recepções! Fica íntimo e, quando não se tem nada que fazer, diverte-nos um bocado. Sim, porque é um cafajeste, o pobre desse rapaz desconhecido. Um cafajeste! Heliodora vai ao encontro de Felício, pelas ruas do Pacaembu. Flores não fazem mais proa a seu corpo, proa são seus seios anelantes. Volta à pensão. Não pode esperar pela visita à noite. É preciso que o veja, nesse momento, mesmo que aquela situação insólita seja explicada. Atira o caderninho fulvo quase no rosto do noivo, quando este abre a porta do quarto e aí vê a sua expressão mudar, as feições adquirindo um jeito astucioso e displicente, tão diverso de eu modo eterno:

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— Heliodora, é preciso que você perdoe essas coisas! Eu lhe sou fiel. juro que sou! Entretanto, essas senhoras é que me procuram... Não sei por que mas o fato é que eu "tenho muito sucesso" com as mulheres. Vivo tendo de inventar coisas para me descartar delas, porque o meu amor é só por você! Heliodora ouve sua própria voz, muito paciente, explicando a entrevista com Moema Alcântara e Castilho e vê o rosto de Felício como que ser chupado interiormente. Tudo aquilo é tão doloroso! Ele volta de novo a ser coitado, tão coitado! Ela tem vontade de niná-lo pelo que ele vai dizendo:

— Minha noiva, eu sou um frouxo! Um pobre coitado de um frouxo! Minha vida foi sempre um miserê danado. Por isso, sempre vivi sonhando com riquezas e com essas mulheres de crônicas sociais. Segui as vidas delas nas revistas e nas colunas mundanas. Sabia os vestidos que punham num coquetel do Automóvel Clube e via de longe, da arquibancada geral, quando elas passeavam no prado do Jóquei em tarde de corridas.

De tanto espreitar, de tanto ler sobre elas, era como se fossem minhas conhecidas. Às vezes, de sonhar, parecia até um romance que eu estava escrevendo...

Um suspiro subiu do peito de Felício, Tão magoado que Heliodora se pôs a chorar muito mansamente. Ele continuou a pôr em pedaços o próprio peito:

— Telefonava para elas, sim! Via que me faziam de palhaço, mas o que eu queria era, de certo modo, poder penetrar naquele mundo tão fabuloso. Tomava apontamentos neste pobre caderninho, como se eu fosse um grã-fino e tivesse muitos compromissos... Nesse ponto, Heliodora quis falar e não pôde, fez apenas um gesto brando, como a se apontar a si própria. O rapaz compreendeu, porque parou de se purgar, mirou-a, gorda e fiel, à sua frente, os flancos ansiosos... E teve uma vontade desumana de comunicar-lhe sua degradação, aquele nojo da própria carne, morando nele:

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— Eu tinha você, é verdade, mas não era a mesma coisa. Essa história de dizer que os homens é que escolhem as mulheres é bobagem. Só temos as mulheres que querem a gente e que, em geral, não são as mulheres que queremos... Não falou mais, pois a noiva foi saindo do quarto. Ele a acompanhou, até o saguão. Viu-a que descia a escada, os pés meio chatos, o andar arrastado que nem parecia de moça nova. Se ao menos ela voltasse a cabeça para dizer de modo literário:

— Está tudo acabado entre nós! Mas Heliodora era incapaz de ser literária. No momento

em que a fitou, pela última vez, seu rosto estava bovino e pesado. E se a autora aqui termina o conto, é que nada mais aconteceu na vida daqueles dois e, na verdade, de tão modesto o que foi contado nem merecia ter sido! Esquecia-me de dizer que, ao voltar ao quarto, Felício reparou nas flores. Pensou que tinham sido postas ali pela dona da pensão.

— Pólen de flor no quarto dá azena! E atirou os ramos pela janela.

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FUJIE

João Antonio

Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres, como as plantas, imovelmente e nunca saciada. Tu que carregas no meio de ti o vértice supremo da paixão

O Dia da Criação Vinícius de Moraes

Alteração na vida. Meus olhos tristes Para mim, moleque da Penha, um dos amigos de meu

pai largou aquele entusiasmo: — Este menino é um touro, se fosse você, Antonio, botava ele num esporte.

E Antonio, meu pai, adorava lutas. Comprou-me quimono, me levou ao barbeiro que eu andava cabeludo que nem urso, me enfiou umas idéia na cabeça de moleque, me carregou para a academia de judô. Tombos tremendos. Suei feito um boi ladrão. Dolorido, quebrado. Moleque, botei a boca no mundo numa revolta danada. O tal judô não me servia. Desistiria. — Que nada! Desistir nada! É só para você não ficar mole. Íamos às provas lá no Pacaembu, na Lapa, na academia da rua Quintino Bocaiúva. Sempre conhecíamos gente nova. Assim, eu achei muito amigo. Entre judocas, camaradagem. Muito bom o convívio de japoneses lá de São Paulo. Sujeitos dóceis, cordatos, bem-educados a ponto de parecerem moças. E quem os vê não avalia o que podem na briga.

Academia, disputa, camaradagem, mais coisas. Lá na Liberdade achei o ótimo Toshitaro. Nunca vi ninguém como. Costumo dizer que o sujeito que não se der bem com o Toshitaro não presta. Ou não conhece Toshi.

Eu nunca havia sentido nada pelas coisas do Japão. Levou-me a beber sakê nos restaurantes da Liberdade, mostrou-

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me cinema. Depois gravuras, depois pinturas, tatuagens. Fui atingindo as dimensões místicas de todas aquelas belezas. Percebi, por exemplo, que naquelas mulheres passivas e tímidas a afáveis, mexendo-se dentro de quimonos enormes, quase aos pulinhos, e que o cinema me trazia entre neve e casas do Japão, morava um mundo diferente de sensualidade. Poesia naquelas coisas.

Gostei. Como quem descobre uma maravilha, gostei. Não me arredava daqueles ambientes. Gostei demais. Judô, folclore japonês, depois teatro, fotografia.

Aquilo sim, meu Deus, era um mundo! À mesa, papai se admirava com meus entusiasmos.

Gostava — rapazola, eu já era faixa vermelha. Toshitaro, com cinco anos na minha frente, me levava pela mão direita ao judô. Esquecia a condição de faixai preta e o 3º dan, me dava o lado direito na luta. Dava tudo. Sujeito espetacular, enorme no tatami e fora dele. Aprendi mais com Toshi do que com os três professores que já tive. Só me abro mesmo é com meu pai — eu penso que é defeito de criação. Fico gostando de uma coisa e não digo a ninguém. Assim como, quando me encho demasiado com um aborrecimento e a raiva cresce, me tranco num lugar e choro que nem criança. Pois um dia falávamos. Uma patrícia de Toshi nos cumprimentou, passando. Grandiosa!

— Você viu? Parece que suas maçãs do rosto são de pêssego. Toshitari ria. Ria.

E você já sabe tudo o que é bom... Agora, íntimos. Eu não sei se estou certo — mas dois

sujeitos ganham mesmo intimidade, quando entra mulher na história. Vinha à minha casa, ia à casa dela. Amigão. Unha e carne.

Dezesseis anos. O ginásio acabado. A boa vida acabada. Precisava trabalhar. Gente pobre, é isto. Bom. Olhei para a minha perspectiva e vi que minha vida iria se complicar. Que é que eu sabia fazer? Lutar judô, declinar latim com lerdeza, tipar

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redações, tentar fotografias em dias de sol? Isto e mais outras coisas que não resolveriam nada. Afora... Minha vida e complicaria. Á noite, escola — que eu queria continuar estudos. Batente durante o dia. Por aí, nesses pensamentos, me lembrei de Toshitaro. Que seu pai era fotógrafo. O estúdio de seu Teikam. Toshi duro no tatami, tão bom na vida! Estava empregado. Revelar negativos, ajeitar fotos, aprender trabalhar com lente e luz, me virar na vida, que diabo!

Promoção papa papai nos Correios e Telégrafos, e se negociou um apartamento na Liberdade. Pagaria aos poucos, como toda compra que arranja. Ah papai e sua conversa... Para mim, uma sopa. O estúdio de seu Teikam, meu trabalho, a quinze minutos do apartamento. A escola no centro da cidade. E judô onde eu quisesse. Tinha Toshitaro bem perto de mim.

Quatro datas quase coincidentes: a primeira barba, dezoito anos, casamento de Toshi, minha faiax marrom. Fizeram lua-de-mel numa estação de águas.

Toshitaro casado. Papai engordando. Minha barba crescendo, pedindo Segunda raspagem. Três semanas sem ver Toshi e eu fiquei vazio. Zanzei pelas ruas da Liberdade como um errado. Necessário não se ter alguém, para entender a valia. Uma falta danada. E a Física e a Química na escola, como duas pragas, a exigiram tudo. Dureza.

Começava a compreender que eu me completava em Toshi. Tudo de meu. Uma chapa sem a opinião dele... Passeio sem Toshi, a mesma coisa. Teatro também, sakê também, judô também. Tudo valendo nada.

Voltaram. Dupliquei a amizade. Interrompi economias e presenteei

como que pude Toshi, que o casamento não ausentou de nada! Unha e carne, ainda. Nossas coisas iam bem.

Por que diabo há e sempre entrar mulher na história? Meus olhos tristes. Meus olhos já viajam pouco para ela. E a cada vez que se arriscam é um estremecimento, atrapalhação sem

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jeito. Não fiz nada, eu não pedi nada! Eu só queria a camaradagem de Toshi. Será que aquela mulher não entende? Se vou à varanda do laboratório de revelação. Cada vez que preciso e alguma coisa. Cada vez que me faltam fósforos. É ela que vem. Que me procura à toa, por banalidades. Chega-se, tira-me o cigarro da boca, acende-o e recoloca-o na minha boca. Numa insolência que dá vontade de bater. E quando olho para aquela janela... São os seus olhos que estão me comendo, pedindo.

Medo. Meus olhos viajam pouco. Aquela mulher vai matar uma amizade de anos, coisa

intocável. Como a cara de um homem. Porque eu acabo dando o fora, caindo no mundo, já me chega o que aconteceu. Horrível, esta situação. Não agüento. Será que não está contente com o que tem? Outro Toshi não existe. Tão forte. Bom. Homem se atilando cada vez mais em tudo o que faz. Por que diabo houve de se meter comigo?

E eu que não procurei nada... está certo que sou maluco por ela. Fujie, ideal de beleza de todas as graças que vejo nas coisas do Japão. Que me surgiu a eclodir como o máximo. É verdade. Entretanto, nunca dissera nada, nunca nem ao de leve um gesto inusitado que demonstrasse. Sempre eu a tapar tudo. O diabo é que vivo agitado, as idéias coladas nela, nos braços, nas ancas, não sei. Impossível desguiar. Olhei para aqueles cabelos, dei com o corpo inteiriço. Desejei. Sonhei. Com os olhos de Fujie, sonhei, com a boca, com Fujie inteira. Disse seu nome lá sei quantas vezes, rabisquei-o em todos os papéis, dez, vinte, um milhão de vezes. Amassei-os. Fiz tudo de novo. Os olhos rasgados me pedindo, me comendo. Quando em quando, ninguém nos vendo, leva minhas mãos a seus peitos para sentir o calor. Beijei seu retrato que eu havia fotografado e chorei que nem moleque. Primeiro abalo na minha vida. Mas eu não disse nada.

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Fujie, Fujie que insiste há meses. Que tenta, que procura, que espera. Eu, tímido, abobalhado. O calor que e emana dos seios me dá vontade. .. Fazer uma maluqueira à frente de todos. Escorraçando-me das conversas, dos encontros de olhos. Penso no cafajeste que fui. E em Toshi. Minha vontade é não voltar ao estúdio do sr. Teikam. Tomar sumiço da Liberdade. Fazer uma asneira tremenda.

Eu vivo é tonto. Fujie me passando bilhetes sorrateiros, quentes ainda do seu seio, escrevendo coisas. A solidão das noites em que Toshitaro vai á academia com o pai, me pedindo, me lacrando de bobo! Sozinhos, mostra-me a língua, numa provocação a que não resisto. Diabo de mulher maluca! Depois, toca-me o braço tão de mansinho. Uma ternura que me agita. Encolho-me, esgueiro-me. Humilhado e pequeno. Se eu quisesse lhe diria desaforos tremendos... Mas nunca tive coragem.

Ontem. Meia hora bobeando sem nexo pela rua Galvão Bueno.

Como um zonzo. Matara as aulas, vejam onde cheguei! Olhei para os cartazes do Niterói, entrei. Não suportei o filme dez minutos. Lassidão. Minha cabeça molhada pela chuva. A capa pesava, nos ombros pesava. Enfiei a mão no bolso, adivinhei o bilhete. Um arrojo maluco me passou pela cabeça. Como um mecanismo vadio, me arrastei lento até a Avenida Liberdade. Ajeitei-me num tamborete de bar, pedi conhaque. Fazia muito calor e chovia. Moscas agitavam-se. Mas só havia no ar o corpo de Fujie que eu adoro. Dali eu via o luminoso de seu Teikam e adivinhava o quarto dela. Fumei muito olhando o luminoso. Bondes que vão para o outro lado da cidade rangiam-me na cabeça. Adoraria estar longe! Dei e cara com um conhecido me ofertando café.

Fechei os olhos. Os seios quentes. Os olhos rasgados me surgiram, tomando conta das moscas, dos bondes e de mim; me ergui pesadamente. Oito horas. Noite tão quente, chata! Fiquei

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virando um infinito de coisas na cabeça, com angústia. Uma depressão tremenda. Tinha a cabeça molhada, mas suava na testa. Luzes iam, sumiam na avenida. O luminoso de seu Teikam brilhava, se apagava, brilhava. Tive a impressão ed que ele sabia o que se passava comigo. Zonzo, caminhei para ele. Ia quase chorando. Os autos me espirravam água da chuva.

Eu a enlacei. — Nega, benzinho... Lá , a chuva fazia festa no telhado. No quarto algumas

moscas estavam numa agitação irritante. Eu só sabia que estava fazendo uma canalhice. Ia chover mais, ia chover muito. Era chuva que Deus mandava. Eu fazia um esforço para me agarrar à idéia de que nãoo era culpado. Culpada era a avenida, era a noite, era a chuva, era qualquer coisa. Ralhou comigo:

— Eu não sou negra. — É só carinho que eu estou fazendo.

Chuva lá fora, zoeira de moscas atribuladas. Dentro do quarto, amor.

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AUTO DA BARCA Leonardo Arroyo

Ainda ressoavam na sala, no milagre de sua consciência

alerta, as palavras finais do longo discurso: "e de tudo resta sempre a amarga contingência de uma frustração permanente. Uma permanente frustração que o homem, dotado daquela enorme capacidade de renovar-se, que é sempre o seu apanágio e que talvez seja sempre também o seu castigo, logo esquece para tentar novamente perseguir a inocência original que o tempo enxovalha e torna amarga". Estavam os dois homens sentados à beira da mesa do bar mal iluminado de beira do cais, perto da janela larga e aberta. Para além dos caixilhos verdes e desbotados, mastros de navios cortados de fios deixavam— se ver destacado difusamente no céu estrelado, como desenhos, traços indistintos de um vago problema geométrico. O mais moço tinha um rosto amarelo, quase branco, que indicava a sua condição de forasteiro. Ele acendeu o cigarro e logo o esqueceu sobre o cinzeiro, cruzando os braços em postura de tranqüilidade

— "a amarga contingência, de uma frustração permanente", repetiu ainda uma vez.

— E ele? Nunca compreendeu isso? O homem amarelo deu de ombros. Descruzou os braços

e apanhou o cigarro do cinzeiro e acendeu- o defitivamente. Puxou várias vezes a fumaça e foi por entre nuvens de fumo branco tirante a azul, que deformavam seu rosto aos olhos do outro, que respondeu:

— E mesmo que tivesse compreendido... Eu pergunto: em que clima vive um homem que transforma uma paisagem de sua vida em permanente obsessão?

— Sim, como ele. O outro inclinou-se mais para a mesa, como se o

vozerio do bar pudesse impedir a conversação. E num sussurro, múrmura voz que apenas interessasse ao vizinho, acrescentou:

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"não que fosse um episódio fugaz, mas toda a sua vida". E depois, sem sequer levantar os olhos para o interlocutor, mas apenas para uma vaga entidade sem forma, nebulosa, indistinta:

"Quem poderia resistir àqueles apelos, dia e noite, noite e dia, de trens que chegavam e partiam, de trens se renovando, de nunca haver seus bancos os mesmos passageiros, de nunca os rostos serem os mesmos, mas submetidos a uma renovação sem começo e sem fim?"

— Uma tortura, murmurou o outro. Aí está porque lhe falo, acentuou o homem amarelo.

Percebe tudo, como se também houvesse participado desde o começo de toda essa fuga que vem durando exatamente dois anos...quando nem sequer sei o seu nome. Porque há uma identidade para além das convenções dos homens que pode ultrapassar, como o amor e a morte. Uma tortura é o termo exato. E isso durante trinta e cinco anos naquela estaçãozinha do interior, vendo o trem chegar e vendo o trem partir, gente indo para toda a parte, cada qual carregando a sua condição mortal e cada qual ocupado com aqueles interesses restritos da vida de cada um. Milhares de rostos se mudando diariamente, indo sempre para alguma parte... e ele condenado a ficar na estação durante esses trinta e cinco anos, cuidando do cadáver de si mesmo, daquele corpo físico aprisionado nos regulamentos e obrigações ferroviárias.

E agora ouvia a voz do outro numa simultânea inteligência das coisas, ao mesmo tempo que recordava a noite primeira em que o homem amareloali aparecera, como algo deslocado no ambiente dos marinheiros e mulheres sem compromisso, que não aquele de viver. Trazia, então, no rosto o singular estigma do adventício pela cor amarela da pele quase branca, distante e imune aos ensolarados dias da beira do cais, nos olhos essa irresistível ânsia de quem procura e de quem, ao mesmo tempo, não poderia deixar de atrair certa ansiedade, de procura o que somente mais tarde compreenderia. E isto graças

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àquela insondável composição de disponibilidade que o transformara num marinheiro desocupado cuja única função seria de freqüentar o bar, ouvindo vozes, e exclamações e blasfêmias, e histórias daquele marítimo mundo que aos poucos ia sendo obrigado a deixar e do qual, como tênue ligamento, existia apenas o bar que se ia adelgaçando cada vez de modo inexorável, porque tudo deve cansar e acabar. E demodo também que, à forma de integrar a sal esfumaçada e movimentada, fora notada pelo adventício logo após a primeira semana. E do mesmo modo que já na segunda semana, o forasteiro dele se aproximara, ainda indeciso em seus objetivos, mas já traindo a certeza que ele ali estava para ajudá-lo, ou para compreendê-lo, que talvez fosse esta a sua maior necessidade.

Porque ele conhecera a outro e vira o velho fugitivo, muitas vezes no bar e embora sentira a misteriosa afinidade dos seres eleitos pela causa original. Porque ele os identificara, mesmo que os indícios materiais (o outro, um velho de apagados olhos azuis, atarracado e sombrio, e este um jovem amarelo, inquieto e aflito) o separasse e mais difícil tornasse qualquer identificação. Contudo, ele percebera o misterioso que de ambos vertia e os colocava num mesmo plano da dor e sofrimento. E assim foi, porque ele não se surpreendeu quando lhe foi dirigida a palavra e nem se inquietou também quando respondeu exatamente o que deveria responder de modo a não surpreender o seu interlocutor, o jovem de rosto amarelo.

— Sim, ele vem cá, nem sempre, mas vem. E sempre perde o navio.

— E onde mora? — Quem sabe. Vive como um bicho ou sempre

viajando por esse mundo afora. Porisso penso que ele muitas vezes embarca.

— Nunca. Ele não pode embarcar, embora assim o quisesse, toda a vida e nunca tivesse podido, ou mesmo tido qualquer oportunidade.

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— Então, porque desaparece? — Ele sempre desaparece. Há dois anos que não faz

outra coisa senão desaparecer, como se fosse de sua natureza essa deslocação permanente...

Sim, e porisso não tenha a marca do homem marítimo, pode passar como tendo... porque se desloca permanentemente.

— É esse o seu espírito. — É porisso que pode enganar a todos e a todos

convencer de que muitas vezes perde o navio. — Sim, é por isso. — Porque em espírito ele se vingava de toda sujeição

física, projetando-se num mundo idealque nem mesmo a mulher que viveu a vida inteira aoseu lado poderia alcançar e nem sequer compreender. É que ali, ao seu lado, vendo também a trágica procissão de rostos na janela dos trens, um dia teve de morrer porque deveria fazê- lo, que para isso estava viva. E porque para isso nascera e para isso se preparara a vida inteira. Nem mesmo a mulher, nem mesmo o filho... E depois de três ou quatro noites, em que os encontros se repetiam, não pôde conter interiormente o seu sobressalto ao fazer a descoberta. Mesmo que o jovem do rosto amarelo nada lhe tivesse dito a respeito, tudo ficava claro naquela relação de caça ecaçcador porcaminhos difíceis econtraditórios através desses dois anos de perseguição contínua. Porque o jovem procurava o pai, mas o pai fugia de tudo aquilo que, dolorosamente, poderia trazê-lo ao sofrido passado de trinta e cinco anos de desfilar de trens, ruídos de máquinas e apitos, de horários matemáticos e de rostos de gente partindo sempre para algum lugar do mundo vasto que até então lhe fora defeso.

— Mas ele virá aqui, com certeza, qualquer noite. — Quem sabe? Ele não deve embarcar, mas quem pode

afirmar tal coisa? — Sim um dia ele pode encontrar seu barco e então...

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— Então nada mais restará de tudo isso, senão a continuidade daquela estação ferroviária que alguém deverá administrar, que alguém deverá operar com a mesma segurança infalível daqueles trinta cinco anos a que ele foi obrigado a se devotar. Esse alguém serei eu.

— Como um castigo, então? — Sim, como um castigo. — E nem sequer eu, como filho, pude impedir a

fatalidade implacável que seria a fuga de todo o consternado clima que cercara os melhores anos de sua vida. E assim quando a mãe cumpriu o que se costumara chamar de sua missão na terra, quando por todas evidências, nunca fôra assim, ele sentiu que somente aquele liame ainda o prendia, embora tênue mas inflexível. Porém duro, resistente, se partia de repente. E mesmo quando voltava do enterro (e ainda assim ouvindo apitos de trens) vinha pensando que nunca poderia Ter um espírito cristão e que sua realidade estava além de qualquer convenção, mesmo daquelas que durante milhares de anos vêm engrandecendo engrandecendo o homem e vêm-lhe lhe dando uma lição diária, que nunca se efetiva, do amor de uns pelos outros... E foi por isso que nem voltou para casa, foi por isso que ainda com aquele rosto compungido que necessariamente o acompanhara durante o enterro...

— Que ele ainda conserva, disse o marinheiro. Porque esse traço é que o marca e estranhamente o coloca à parte em qualquer lugar em que se encontre...

— Foi por isso, dizia, que ele sumiu definitivamente de tudo aquilo que poderia lembrar os trinta e cinco anos implacáveis que teve que viver ao lado da mulher e mais da metade deles ao lado do filho,dos trens,dos rostos nunca iguais, de gente indo sempre para qualquer parte, por aquelas partes para as quais ele andou tentando ir nesses dois últimos anos, que eram, necessariamente, aquelas para onde deveria ir...

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— Sim, agora vejo uma identidade, uma recusada identidade...

E ele fixou os olhos no jovem numa interrogação muda, como se temesse completar seus próprios pensamentos em torno da identidade que o assaltara de repente, e sem saber ao certo porque, em meio à fumaça da sala, do vozerio dos marinheiros e mulheres ali próximos mas não tão distantes do diálogo murmurado perto da janela que se abria para o céu estrelado de vagos desenhos geométricos. E assim com os olhos fixos no rosto amarelo do jovem, enquanto indagava mudamente, ia pensando que tudo pode se repetir na pobre história do homem, marcado imemorialmente pela brutal condição sempre uns mandando e outros sempre obedecendo dentro de uma única realidade que lhe restava, que era viver. "Então ele teria sempre de andar, pensava, não apenas motivado pela estação ferroviária, ou pela soma de valores cotidianos que o vinha destruindo lenta mais inexoravelmente ao longo dos anos, mas por aquela vaga maldição que nele subsistia, na sua carne, na sua alma. Então ele teria sempre de andar. "E ele percebeu que o jovem baixava mais ainda a voz, tentando compreender a muda interrogação.

— Talvez assim fosse e que aí, mais de que qualquer outro motivo, estivesse a razão de sua pena...

— Sim, o condenado, o andante, disse o marinheiro com esforço, evitando pronunciar um nome. E por um instante ficaram calados. Alguém gritava mais alto na sala e outro alguém altercava não se sabia bem porque com uma mulher. E esta também gritava uma fieira de palavrões, assim afirmando sua condição de ser viva e triunfante. Mas o jovem inclinou- se novamente para o interlocutor e retomou o fio de sua narração, enquanto ambos, sem prévia combinação alguma, sem nenhum entendimento racional, mas movido por indistinta razão que os prendia ali e os mantinha em vigília, de vez em quando voltavam os olhos para a porta da entrada, como se de repente tudo fosse ficar esclarecido definitivamente.

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— E nesses dois anos ele andou por toda a parte onde devia necessariamente andar, como se estivesse, digamos, atrás de um navio que nunca deveria alcançar. Porque esse idéia do barco ele a teve com toda a certeza e nela via uma oportunidade definitiva, quando pela segunda vez conseguiu escapar. Pois ele trazia a premonição de tudo. Assim foi, porque um dia antes, numa velha cidadezinha do interior, de onde se podia sair apenas num ônibus que ali passava todas as tarde, ele conseguiu o seu intento. Ali permanecera quatro meses sem compromisso algum, prestamos corriqueiros serviços para sobreviver (ainda assim ele precisava sobreviver), ora rachando lenha, ora lavando pratos, mora limpando quintais, ou mesmo cuidando de crianças, ou mesmo ajudando a enterrar os mortos. Mas certo dia ele percebeu que eu chegava para falar- lhe. E sem que eu saiba como, mesmo para a surpresa quem tivera com ele um serviço tratado, ele apanhou esse único que me trazia e desapareceu pela segunda vez, dissolvendo-se nesse imenso anonimato anônimo que constitui um país. De modo que a procura recomeçou, agora mais difícil porque sabia que eu o perseguia e, mais ainda, quem o procurava por todos esses contraditórios, estranhos caminhos, e difíceis, que é o mundo de cada um. Nem ao menos teve um momento sequer de piedade, de comiseração porque deveria multiplicar- se cada dia em cem vezes a mim mesmo, com dois mil olhos e outras tantas línguas para indagar, procurar, falar, mediar, pensar, aonde parava aquele homem apavorado pelos apitos dos trens e pelos regulamentos ferroviários. Ele adivinhava tudo. E era como se tivesse desenvolvido o sentido de pressentimento das coisas, para a sua própria salvação...

— E ele pode salvá-lo mais uma vez, disse o marinheiro para o jovem de rosto amarelo, mas ainda assim fiscalizando a porta.

— Sim, pode, como o salvou uma terceira vez, como poderá salvá- lo uma quarta vez, como poderá salvá- lo uma quinta vez, se é que se pode entender por salvação essa sua

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necessidade impenitente de redenção. Porque assim deve ser, estou certo agora. E ele nem será talvez mais um homem, mas uma sombra, irreal e irredutível a qualquer forma e convenção, senão aquela uma que ele próprio quiser e bem entender.

— Por isso consegue fugir. — Como aconteceu na cidade, onde meses mais tarde

foi descoberto, mas não visto, senão certa noite, esguiando- se por uma viela, como uma sombra que jamais poderia ser identificada. Porque ele escorria por entre os dedos quando sentia que eu estava próximo. E assim foi porque nessa noite cheguei ao quarto humilde que conseguira alugar num cortiço entre arranha- céus, situado em terreno baldio quase centro da cidade. Era de uma tristeza que dava a medida de sua miséria. Um simples enxergão no chão de cimento com um caixote que deveria servir de mesa e sobre a qual se achava apenas uma vela pela metade. Nenhum outro indício de sua presença, nenhum outro indício palpável, nem um objeto, nada, nada, nem sequer uma caixa de fósforos. E, no entretanto, era ele que ali morava, sem sombra alguma de dúvida. Isso se podia sentir no ar, no abafado clima do quartinho miserável, que era a projeção de toda a sua alma e de toda sua permanente carga de obsessão. E ninguém o vira à luz do dia entre a vizinhança. Ele chegava com a noite e saía com a noite, como uma ave noturna, até que certa vez uma criança começou a chorar e ele se traiu, sabe- se lá por que insondáveis razões. Então ele não pôde suportar o choro frágil e desamparado dentro da noite. Era um choro contínuo, renitente, obsessionante martelar nos seus ouvidos já então pagando aquele tributo da idade mal- agasalhada e mal dormida. Estava ficando surdo, mas os gemidos da criança eram como estiletes de gelo a ferir- lhe os tímpanos. Ele se levantou, movido por aquela angustiosa impossibilidade de tolerar o lamento infantil e foi bater na porta de onde os lamentos pareciam surgir. Aí viram- no mais uma vez nesse dois anos de fuga, o suficiente para nunca mais esquecê- lo pela impressão que causavam os

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olhos azuis, o corpo atarracado e a voz pastosa e difícil, tão longos anos já vinha perdendo o hábito de falar. Ele era pesado de boca e pesado de língua como Moisés.

— Que tem o menino, indagou com dificuldade, nem sequer fitando o casal que cercava a criança estendida, agitada, numa pobre cama, conforme foi testemunhado mais tarde.

— Não sabemos, responderam. E ele se aproximou da criança e sem tocar o pequenino ser que ali sofria aterrorizou o casal com apenas três palavras implacáveis que logo pela manhã, sem ouvir testemunhas, senão o pai e a mãe, haveriam de ser confirmadas:

— Ele vai morrer. E assim foi, porque a criança realmente morreu ao

amanhecer quando lá eu chegara para encontrar o velho. E ao simples enunciar da palavra "velho" a mãe e levantou as mãos para o céu num desesperado, triste, revoltado apelo, começando a gritar. E o pai então se lembrou, mas já muito tarde, porque ele tornara a desaparecer, deixando apenas como identificação aqueles olhos azuis e secos de implacável impiedade, E ele desaparecera assim pela terceira vez.

— Mas aí não porque ele desconfiasse que o haviam identificado, disse o marinheiro, olhando para o jovem de rosto amarelo. Não, não porque ele desconfiasse que o haviam identificado, respondeu voltando os olhos para a porta do bar, mas porque ele mesmo se antecipara com aquele trágico vaticínio a si mesmo. Ele se traíra nessa consternada premonição, porque haveria alguém que necessariamente o interrogaria tão logo o vaticínio fosse proclamado no cortiço, como depois aconteceu e se tornou de conhecimento de todos.

— Foi, então, um erro dele. Sim, um erro. E a esperança é que ele volte a cometer

outro desacerto para ser apanhado. Porque meses mais tarde ele caiu em novo erro ao deixar-se ficar doente, ao deixar-se apanhar na rua como um desconhecido e miserável mendigo e ser levado

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para o hospital com grave infecção nos olhos e onde permaneceu internado, no pavilhão dos indigentes, durante dois meses de sobressalto e angústia, sempre temendo aquela a angústia, sempre temendo aquela hora necessária em que eu entrasse na enfermaria e o identificasse.

De modo que quando isso aconteceu e ele não pôde ver nada, porque trazia os olhos azuis e secos cobertos de algodão e gaze. E de modo que nunca quis saber realmente quem o havia identificado, de forma concreta, porque não podia ver, mas com toda a certeza a sua privilegiada sensibilidade haveria de deixar claro que ali estava aquele que o vinha procurando nesses dois anos consecutivos e que, afinal, triunfara, embora de modo precário, porque nada o obrigaria a voltar à sua velha estação ferroviária, aos apitos dos trens, aos rostos dos passageiros se renovavam e constantemente iam para alguma parte, para essa mesma parte para os quais ele estava indo também há dois anos.

De forma que ele não via e naquela durante condição deixou-se identificar, mas ainda assim não se deixando trair por nenhuma emoção. Permanecera duro, hierático na cama, sem que um músculo do rosto cheio de rugas se alterasse, embora reconhecesse no fundo do coração amargurado e solitário, aquela voz que o interpelava inutilmente, também sobrecarregada de amargurada e indizível solidão. E assim, dois dias depois, ainda dentro dos estranhos recursos da sua premonição, ele desapareceu pela quarta vez para surpresa e sobressalto das enfermeiras do hospital. Porque ele ia ficar definitivamente cego e não alcançaria nunca a paz que tanto desejava e como entendia.

— Uma paz que vai além do que é convencional, disse o marinheiro. Era como se a sua tranqüilidade, então, fosse o mundo palmilhado e renovado sob a sola dos seus pés e na variação da luz dos seus olhos.

— Sim, é isso. Porque ele trazia o coração pesado do que é imóvel e

imutável, como se a estação ferroviária, os apitos dos trens e a

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permanente mudança dos rostos dos passageiros fossem um castigo. E esse ódio o tornava implacável e duro consigo mesmo e também com aqueles que mais de perto poderiam tocar- lhe o coração amargurado.

— É isso. — E daí também a certeza de que já não embarcaria

nunca. Porque já não vê e não poderá distinguir suficientemente a cor do mar, dos peixes e das nuvens, nem mesmo a bandeira do possível navio que o haveria de levar e talvez libertar para sempre dessa malfadada obsessão que o torturou durante trinta e cinco anos e que lhe deu a melancólica ,avara aurora, de apenas dois anos durante a qual, através dessa fuga permanente, ele procurou alcançar a sua difícil redenção.

— Sim, é isso disse o jovem amarelo. — Então não precisamos vigiar a porta. Porque ele não

virá mais, disse o marinheiro. Ele está perdido

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NATAL NA BARCA Lygia Fagundes Telles

Não quero nem devo lembrar aqui por que me

encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu.

O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.

Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio.

Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.

A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o. rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.

— Tão gelada — estranhei, enxugando a mão. — Mas de manhã é quente.

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Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.

— De manhã esse rio é quente — insistiu ela, me encarando.

— Quente? — Quente e verde, tão verde que a primeira vez que

lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas?

Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta:

— Mas a senhora mora aqui perto? — Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas

vezes, mas não esperava que justamente hoje... A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-

a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era sereno.

— Seu filho? — É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico

de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem mas piorou de repente. Uma febre, só febre... Mas Deus não vai me abandonar.

— É o caçula? Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era

altivo mas o olhar tinha a expressão doce. — É o único. O meu primeiro morreu o ano passado.

Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos.

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Joguei o cigarro na direção do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.

— E esse? Que idade tem? — Vai completar um ano. — E, noutro tom, inclinando

a cabeça para o ombro: — Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado... A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braços. E voou.

Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não tinha forças para rompê-los.

— Seu marido está à sua espera? — Meu marido me abandonou. Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível. Fora uma

loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia mais parar, ah! aquele sistema dos vasos comunicantes.

— Há muito tempo? Que seu marido... — Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem.

Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, sabe que de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito? Não tocou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.

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Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos, aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa irritação me fez andar.

— A senhora é conformada. — Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou. — Deus — repeti vagamente. — A senhora não acredita em Deus? — Acredito — murmurei. E ao ouvir o som débil da

minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela segurança, daquela calma.

Era a tal fé que removia montanhas... Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro

direito para o esquerdo. E começou com voz quente de paixão: — Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei

uma noite tão desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.

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Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei-me para o rio. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto.

Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim

— Estamos chegando — anunciou. Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era

sair, fugir antes que ela descobrisse correr para longe daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia:

- Chegamos!... Ei! Chegamos! Aproximei-me evitando encará-la. — Acho melhor nos despedirmos aqui — disse

atropeladamente, estendendo a mão. Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um

movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.

— Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.

— Acordou?! Ela sorriu: — Veja... Inclinei-me. A criança abrira os olhos — aqueles olhos

que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando sem conseguir falar.

— Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a sacola no braço.

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Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite.

Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente

Verde e quente...

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MORFINA Humberto de Campos

Quando o Carvalho Souto, meu companheiro de

escritório, sofreu aquele acidente de automóvel em que fraturou duas costelas e o braço esquerdo, eu, ia vê-lo quase diariamente à Casa de Saúde Santa Genoveva, na Tijuca. A solicitude persistente com que velava pelo meu amigo, fez-me, em pouco tempo, íntimo dos médicos do estabelecimento. E de tal maneira que, trinta e quatro dias depois, quando o Souto recebeu o boletim concedendo-lhe “alta”, eu contava já um amigo novo, na pessoa amável e mansa do Dr. Augusto de Miranda, que exercia, então, ali, as funções de subdiretor. Filho de médico, e neto de médico, Miranda nascera, pode-se dizer, no quarto ano de medicina. Aos sete anos já utilizava o seu pequenino serrote de fazer gaiolas, serrando, com ele, a perna dos passarinhos que apareciam com alguma unha doente.

Mediano de estatura, robusto de tórax, cabelos alourados e olhos entre o azul e o verde, o subdiretor da Casa de Saúde Santa Genoveva era uma figura grave e simpática. O rosto largo, e escanhoado, transpirava a energia serena e boa das almas fortes e tranqüilas. Daí a confiança que entre nós rapidamente se estabeleceu, a franqueza com que me falou, naquela manhã, de uma das suas doentes que ali se achava, ainda, hospitalizada.

- Quer vê-la? Vamos… – convidou. A Casa de Saúde Santa Genoveva está situada, como se

sabe, na Estrada Velha da Tijuca, em um ponto pitoresco, dominando a cidade. Ensombram-lhe as cercanias de antigo solar, algumas dezenas de mangueiras enormes, e árvores outras, de fronde compacta e agasalhadora. Sob uma dessas mangueiras, estirada em uma espreguiçadeira de pano branco e vermelho, achava-se uma senhora alta, de rosto longo e olhos cavados, mas apresentando na fisionomia cansada e enferma os traços da antiga distinção. Devia ter sido bela, com os seus cabelos negros

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de ondulação larga. E elegantíssima de porte, a avaliar pela graça do busto posto em relevo na postura em que se encontrava.

- Preste atenção, vamos passando… Depois que você conhecer a história trágica de sua vida, voltaremos… – disse-me o Dr. Miranda.

Entramos por uma estrada de mangueiras vetustas, e, enquanto caminhávamos lentamente na manhã fresca, o subdiretor, a voz tranqüila e pausada, me falava desta maneira:

- Aquela senhora que acaba de ver, foi casada com um dos meus companheiros de turma na Faculdade, e é a heroína de uma das tragédias mais terríveis que vieram ter aqui dentro o seu desfecho…

- O marido morreu? – indaguei. - Não. Ela, porém, o perdeu sem que ele morresse: está

desquitada. As senhoras desquitadas, são, em nossa terra, as viúvas dos maridos vivos.

Apanhou, no chão, um pequeno ramo uma nódoa na estrada limpa, e reatou:

- Filha de um advogado que morreu sem fortuna, esta moça, aos dezessete anos, casou com o colega de que lhe falo, o qual fez um dos mais belos cursos do seu tempo, mas não foi igualmente feliz na vida prática. No primeiro ano de casamento, veio-lhe um filho. Linda criança! Vi-a uma tarde, na rua, em companhia do pai, e não esqueci, jamais, a sua graça infantil… Quatro anos depois de casados, foi esta senhora uma noite atacada de cólica hepática de extraordinária violência. O marido recorreu à terapêutica indicada no caso, mas inutilmente. Compadeceu-se, e aplicou-lhe uma injeção de morfina. A doente sentiu alívio imediato, e dormiu, até à noite. Ao acordar, pôs-se a gemer novamente, e, em seguida, a gritar. Nova injeção. Novo sono. No dia seguinte, à tarde, voltaram os gemidos queixando-se ela dos mesmos padecimentos. Gemia, debatia-se, gritava, reclamando a injeção. Profissional inteligente, o marido certificou-se de que, verdadeira a princípio, a dor, agora, era

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simplesmente simulada. A morfina havia exercido a sua influência funesta! Por isso, não deu a injeção. Desiludida de alcançar o que pretendia, a esposa calou-se. E a tranqüilidade voltou, de novo, à intimidade do casal.

- E a tragédia? - Espere, que a história é longa… Ao fim de algumas

semanas, começou o meu colega a observar na senhora uns ímpetos de temperamento, uns excessos de paixão que o encantavam, porque ele era homem, mas que o preocupavam porque era médico e o alarmavam porque era marido. Pôs-se vigilante, e descobriu a verdade terrível: a esposa, seduzida pelas sensações das injeções que ele lhe aplicara, era presa, já, da morfinomania, consumindo diversas ampolas por dia! A sua assinatura havia sido falsificada, já, por mais de uma vez, no papel do consultório, em receitas de responsabilidade, pondo em perigo a sua reputação profissional.

O Dr. Miranda parou, por um momento, para acender um cigarro, e tornou:

- Com a sua experiência de clínico, o marido compreendeu a ineficiência do seu esforço individual para salvar a companheira infeliz. Por esse tempo, havia chegado da Europa um colega nosso, o Dr. Stewenson, que se tinha especializado na Alemanha e na Suíça na cura da toxicomania. Era um belo homem e um belo espírito, e o marido daquela senhora foi à sua procura, e expôs lealmente o seu caso doméstico. Pediu-lhe que tomasse sob os seus cuidadosa esposa, e levou-a, no dia seguinte, ao consultório. Stewenson marcou o início do tratamento para outro dia. A moça foi, sozinha. O médico fê-la entrar para o seu gabinete, e fechou-o a chave. Em seguida, encheu duas seringas, aplicando uma injeção na cliente, e outra em si mesmo. E rolaram, os dois, abraçados, como dois loucos… Stewenson era morfinômano, e o seu anúncio como especialista contra os entorpecentes não visava senão atrair as senhoras viciadas, conquistando companheiras para os seus delírios…

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- Que horror!… - Ao fim de algumas semanas, o marido da pobre moça

descobria a extensão tomada pelo seu infortúnio. A esposa, ela própria, confessou-lhe tudo, fornecendo-lhe os elementos para apurar a verdade. E ele apurou que era duas vezes desgraçado: o Dr. Stewenson era amante de sua mulher!… Diante disso, veio a separação, com o desquite. Não tendo sido judicial, o meu antigo colega de turma passou a dar uma pensão à esposa, que fixou residência apartamento em Copacabana, ficando ele num hotel no centro da cidade. Ele era, porém, um homem de temperamento apaixonado, e não podia esquecer a criatura a quem amara tanto, e que lhe havia dado as horas de paixão mais intensas da vida. Nenhuma outra mulher lhe satisfazia os sentidos e o coração. E ei-lo, na da noite, alta madrugada, abandonando o seu hotel e indo secretamente, bater à porta do apartamento de Copacabana, tornando-se um dos amantes de sua antiga mulher.

- Mas, isso é verdade? – perguntei, - É verdade, e é ciência, – respondeu-me o Dr. Miranda. Havia rodeando um tronco de mangueira, um banco

circular, de pedra. Sentamo-nos. E o subdiretor da Casa de Saúde Santa Genoveva reatou:

- A esposa, agora entregue a si mesma, continuava a tomar morfina, absorvendo doses espantosas. Uma tarde, achando-se em casa, encheu a seringa, e meteu a agulha na parte anterior da coxa. Apertou o sifão. O líquido desapareceu da agulha. No mesmo instante, porém, a pobre rapariga soltou um grito. Uma nódoa vermelha surgira-lhe diante dos olhos. E essa nódoa se transformou em chamas, em labaredas enormes, que a envolviam como se a tivessem precipitado numa fogueira. Um calor intenso, infernal, subia-lhe pelo corpo todo, e tudo era vermelho, tudo era fogo ante os seus olhos horrivelmente abertos. As mãos na cabeça, o pavor estampado na face, a infeliz gritou para a criada, que lhe fazia companhia: “Chamem meu

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marido, que eu estou morrendo!”. Dizia, aos gritos, que estava sendo queimada viva, e rasgava as roupas, correndo pela casa, batendo-se nos móveis, pois que se achava completamente cega, não vendo senão línguas de fogo, chamas que se enroscavam no seu corpo, em furiosos turbilhões. Quando o ex-marido chegou, encontrou-a totalmente nua, o sangue a correr-lhe da testa. E descobriu, logo, a origem daquela crise: a agulha alcançara a artéria, entrando a morfina, diretamente, na circulação… Daí a sensação de incêndio dentro do qual se debatia, e a impressão de labaredas que a envolvessem e as tivesse diante dos olhos… Não podendo detê-la sozinho, chamou o ex-esposo dois empregados do prédio, que a subjugaram, e a amarraram, inteiramente despida, na cama, a fim de receber a única medicação aconselhável no caso, e evitar que se mutilasse na fúria com que se atirava pelo chão, pelos armários, pelas paredes…

- Coitada! - Afinal, passou a crise. Dias e dias tinha ela

permanecido entre a vida e a morte. Após as injeções sedativas desamarraram-na. Mas ficara com os braços feridos, as mãos feridas, o rosto ferido… O ex-esposo foi, então, de uma solicitude acima de todo louvor… Não a abandonou um só instante. Amor ou piedade, o certo é que ficou a seu lado até que a viu fora de perigo… Um dos primeiros cuidados da pobre moça, logo que recobrou os sentidos, foi ver o filhinho, que contava, então, cinco anos, e ficara com o pai, que o internara em um colégio em Botafogo. O desejo era legítimo, e, ao vê-la melhor, o pai foi buscar o menino. A desventurada, chorou muito, beijou muito o garoto, e, como fosse hora do almoço, o meu colega foi para a mesa, com outras pessoas da família que ali se achavam de visita, ficando a mãe e o filho no quarto próximo. De repente as Pessoas que se encontravam à mesa ouviram um grito: “Corram que eu estou matando meu filho! Corram, pelo amor de Deus!”. Correram todos, e soltaram, diante do que viam, um grito de terror. A morfinômana tinha as mãos

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crispadas em torno do pescoço da criança, e estrangulava-a sem querer! Queria retirar as mãos, e não podia! Ao contrário do seu desejo, os dedos cada vez mais se contraíam, comprimindo as carnes do pequenito, que se tornara roxo, e cuja língua saía, já, da boca, com um filete de sangue… “Salvem meu filho!… Matem-me, mas salvem meu filho!…”, gritava a pobre. Bateram-lhe nas mãos até lhe ferirem os dedos. Quase lhe quebram os braços, com as pancadas que lhe deram, para libertar a criança. Quando o conseguiram, era tarde. Minutos depois, o pequenino morria…

O subdiretor da Casa de Saúde Santa Genoveva não procurou ver o espanto que se estampava em meu rosto. Acendeu outro cigarro, e pôs-se de pé. Fiz o mesmo.

- Agora, – continuou, – a desventurada senhora que ali viu, está boa. Mas a nossa vigilância em torno dela é enorme.

- Para que não volte à morfina? O Dr. Miranda sacudiu a cabeça, lentamente: - Não. Para que não corte, como tem tentado, as mãos

com que estrangulou o seu filho! E pusemo-nos a andar, de regresso, a cabeça baixa, em

silêncio, um ao lado do outro.

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ROMANCE DA MOÇA Carlos Heitor

Pensei que fosse coincidência. Sempre que descia à garagem, ela estava por ali, aparentemente à espera de alguém. Com o tempo, passei a cumprimentá-la.

Num dia de chuva, ofereci carona. Ela recusou. Um amigo viria buscá-la. Em sinal de gratidão, avisou-me que um dos pneus do meu carro estava baixo. Aí fui eu que agradeci.

Não sei se na mesma semana, ou na seguinte, ela entrou na minha sala. Anunciou-se à secretária de forma estranha: “É a moça da garagem.” Sim, era ela, com uma pequena pasta à mostra.

Resumindo: fizera um romance. Não conhecia ninguém na área editorial ou literária. Perguntou se podia deixar os originais, não tinha pressa, queria uma opinião.

Com pequenas variantes, isso já aconteceu outras vezes e acontece com todos nós, que de alguma forma fazemos parte da tribo que se dedica a esse tipo de ofício.

Oferece-lhe um café e abri o original. Não havia indicação de autor ou autora. O título era uma charada “S.O.S”. Havia uma epígrafe de São João da Cruz, falando da escura noite da alma, e uma estrofe de Bandeira: “Mas para quê/ tanto sofrimento/ se lá fora o lento/ deslizar da noite”.

Elogiei as epígrafes e abri a primeira página. Começava assim: “Salve a minha alma!”. Levei um susto. Como início de romance, era péssimo. Mesmo assim, senti alguma coisa de íntimo naquele grito ou naquele desespero. Fora esse o início de um romance que não cheguei a terminar.

Ia perguntar onde ela encontrara aquele original tão perdido que nunca mais me lembrara dele. Não foi preciso. Ela se identificou: “Sou filha de Martha. Você deixou este original com ela. Antes de morrer, pediu-me que o entregasse.”

Naquele dia a moça aceitou a carona.

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O SOFÁ DE CETIM VERMELHO Maria de Lourdes Teixeira

Ela vivia sozinha no apartamento avelhantado e

sombrio, rodeada de fotografias, trastes e cacarecos acumulados durante uma existência inteira. Ora, no meio desses despojos de uma vida obscura, destacava-se a nota escandalosa de um sofá escarlate, reluzente e espalhafatoso, novo em folha como se tivesse acabado de chegar da loja para uma festa. Ali estava no lugar de honra da sala, limpíssimo, sem o menor sinal de uso, objeto de adoração de sua dona.

Impossível saber a idade da mulher. Tanto poderia tratar-se de uma anciã como de uma criatura envelhecida pela carência de trato.

As janelas nunca se abriam de todo. Por uma fresta, nas horas de sol a pino, entrava a nesga de luz suficiente para fazer brilhar o cetim do sofá, para exibir a poeira dos móveis, as teias de aranha do teto e, principalmente, os retratos que se inclinavam das paredes uns ao lado dos outros. Perfilados e sinistros, figuras de várias idades, mas todos parecendo velhos pelas roupas fora da moda, alguns homens de chapéu, algumas mulheres de cabelo a la garçonne, outras de birote e gola alta, tinham os olhos fixos em quem os observasse, como legítimos donos da residência.

Infundiam a certeza de ser gente morta, que talvez nem cinzas restassem.

Nessa caixa sem ressonâncias em que não entrava viva alma, visto que o pão e o leite os entregadores os deixavam diariamente ao pé da porta, e onde morriam os abafados rumores da rua, nesse cofre fechado ao presente e onde o passado se conservava como múmia em sarcófago, vivia há anos a mulher sozinha. Ninguém a visitava nem ela visitava ninguém. Só saía a longos intervalos para tomar as providências essenciais à sua frugal manutenção. Em tais ocasiões, levava dias e noites de antemão preocupada com a saída que, além de quebrar-lhe a

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rotina, representava um sacrifício e um perigo. As ruas eram ameaças de misteriosos riscos; os automóveis, feras rugidoras; os transeuntes, lobos terríveis. Só se tranqüilizava quando ao voltar, depositava ao lado de dentro as sacolas e os embrulhos, a bolsa empanturrada e, dando duas voltas à chave, aferrolhava os trincos que lhe garantiam a intransponível separação do lado de lá. Respirava, então, como soldado que saiu incólume de uma batalha.

Armazenava o seu estoque, repunha em baixo do colchão a bolsa com sua fortuna e suas velhas jóias, trocava os sapatos pelos chinelos, depois se acomodava na poltrona de molas frouxas. Só então se restabelecia a integridade do seu eu estilhaçado pelo rompimento do velho hábito caseiro, reencontrando-o ao influxo da gente que a olhava do fundo das molduras. Ela os entendia: "Até que enfim está de volta. Preocupamo-nos, sabe? Não fosse algum carro atropelar você ou algum malvado matá-la para roubar-lhe a bolsa. E então, que seria de nós? Nossa existência depende da sua, querida. Veja que responsabilidade. Você desaparecendo, morreremos todos definitivamente. Cuide-se, cuide-se. Não saia de casa. Lembre-se dos lobos. Tranque a porta. Não morra..."

Os retratos viviam uma vida concentrada e sinistra nos olhos sardônicos. A mulher lhes captava olhares, ora solidários, ora ameaçadores, desbotadas, livres de angústias e uma ou outra expressão de ternura que apaziguava e comovia. Então, agradecida, obstinava-se em precaver-se cada vez mais. Os lobos não a apanhariam, não aniquilariam a sua gente ali conservada. Certa noite em que a insônia foi mais renitente, ela ouviu um rumor quase imperceptível, vindo da sala. Ergueu a cabeça do travesseiro a fim de distinguir melhor, esperou com o coração aos saltos, até que a repetição a impeliu a levantar-se para tirar a limpo o insólito acontecimento. Enfiou os pés nos chinelos achamboados e lá se foi, silenciosamente, até o comutador embutido junto à porta da sala. Ao acender a luz o visitante não

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fugiu. Surpreendido, agüentou firme, imóvel, perto da poltrona, de frente para a mulher, a pequena cabeça erguida, o focinho delicado a farejar, os olhinhos cintilando. Tratava-se de um rato. Um rato de tamanho regular não um camundongo nem um ratão. Um rato entre cor de cinza e cor de avelã, de pêlos duros e bigodes espetados, tenso como minúsculo aparelho de mola carregada ao máximo e cujas orelhas eram antenas prontas a captar qualquer reação da dona do apartamento. Ela também se manteve estática, resolvendo o que devia fazer àquela intromissão. O rato aguardava, como se adivinhasse a vacilação do enorme vulto parado no vão da porta iluminada. Naturalmente intuía que o seu destino estava em jogo. O instinto de conservação era nele, por isso, um fio retesado prestes a desferir o salto defensivo.

Num átimo de segundo a mulher lembrou-se de consultar os parentes. Analisou-os e os viu plácidos, algo divertidos com o incidente. Um pensamento lhe ocorreu: por que não deixar à vontade o bichinho que nenhum mal lhe faria? Seria, afinal, uma presença, e uma presença inofensiva. Prejuízos? Dar-lhe-ia os sobejos de suas refeições. Assim alimentado, não lembraria de roer coisas, fazer estragos, e talvez mesmo se acostumasse a vir vê-la de vez em quando. Seria uma companhia, já que cachorros e gatos eram proibidos pelo regulamento do prédio e, além disso, exigiriam saídas diárias e cuidados de higiene. Ao passo que o rato iria sozinho dar seu giro lá fora.

Mas por onde teria entrado? Preocupou-se. Espiou em baixo dos móveis sem nada ver que pudesse ter servido de portal. Depois desistiu. Fosse por onde fosse, estava visto que por ali somente o animalzinho conseguiria esgueirar-se. O apartamento era velho, haveria fendas.

Vencidas as hesitações, levantou-se e foi até a cozinha raspar a panela para servir o hóspede. Numa tampa de lata depôs os restos no chão, em frente à porta, de modo a enxergar da

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poltrona a cena do repasto. Depois se encaminhou para a sala, à espera de que o rato, ao sentir o cheiro da comida, tivesse coragem de ir devorá-la. Ele, porém, desaparecera. Procurou-o por todos os cantos. Nada. Estaria enfurnado de atalaia, ou fora embora pela mesma invisível fenda por onde entrara? Afinal, decepcionada, desistiu de esperá-lo, resolveu deixar-lhe a ceia, onde estava. Caso voltasse, lá a encontraria.

Ora, as coisas se passaram exatamente como ela previra. Apagada a luz, quando a ausência de qualquer movimento indicou que a dona da casa adormecera, o rato reapareceu cauteloso, farejou aqui e ali, até que descobriu a refeição. Comeu-a avidamente. Depois, empanzinado, deu mais uns giros e bateu em retirada, a fim de digerir em lugar tranqüilo, livre de surpresas. Sua noite estava ganha. Podia dormir.

Na manhã seguinte, ao ver a lata vazia, a mulher compreendeu que o intruso aceitara a hospitalidade. Então passou a cevá-lo diariamente com sobejos que lhe despertassem o apetite. Não foi, pois, de admirar que dentro em pouco ele desse em chegar e sair sem cerimônia, vindo a mulher saber que a entrada era debaixo do armário encostada à porta de serviço, sempre fechada tanto por segurança como por não haver empregada no apartamento. O animalzinho aparecia à noite vindo da cozinha, olhava fixamente, estudando-lhe as intenções ou pedindo-lhe licença; dava algumas voltas, ia até o quarto, o banheiro, sumia aqui, reaparecia acolá, até que se dispusesse a cear. Ela olhava-o, curiosa. O rato aprecia-lhe mais um brinquedo mecânico do que um roedor de verdade. Era gracioso nas evoluções e nos movimentos, vivo e arisco, atento como se previsse o mínimo gesto de sua hospedeira. Se não a temia a ponto de flanar pelos cômodos em sua presença e saborear confiadamente a ceia, contudo, disparava à menor suspeita de que poderia ser apanhado.

Com o decorrer das noites ela se acostumara à diversão. Derreada na velha poltrona (jamais no sofá), em absoluta

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imobilidade, até onde alcançava sua vista ela seguia os caprichos do rato, ora embaixo de uma cadeira, ora ao pé do fogão, no espaço entre a mesinha e o sofá, no umbral do banheiro; Quando desaparecia no dormitório, ela ficava à espera de que surgisse de novo, imaginando o que estaria o travesso bisbilhotando por lá. E, de vez em quando, ao dar com os olhos nos retratos, discernia na expressão dos defuntos uma discreta participação naquele divertimento. Não restava a menor dúvida. Os parentes também se tinham afeiçoado à companhia do rato, também gostavam do bichinho que trazia uma vibração de vida àquela mansão de mortos.

Certa noite, como ele demorasse e a mulher sentisse mais cansada, resolveu ir deitar-se, depois de verificar se estava em ordem a minúscula ceia na tampa da lata. Caso não dormisse, levantaria quando o amiguinho chegasse. Mas adormeceu logo, um sono inquieto de que despertou com o miúdo ruído de sempre. Sorriu, resolveu levantara-se. Sentou na beira da cama, procurou com os pés os chinelos, calçou-os e de camisola mesmo foi até a porta da sala. Acendeu a luz.

Espanto! O bicho estava repimpado no sofá, quieto,

aparentemente tranqüilo, embora os olhinhos de miçanga fixados nela lhe denunciassem as expectativas. No brilhante cetim vermelho o pequeno vulto escuro se destacava como uma nódoa de lama.

A mulher avançou de braços estendidos como se quisesse agarrá-lo num ímpeto de ódio violento. É claro que o rato, como se movido por impulso elétrico, saltou e embarafustou pela cozinha adentro, desaparecendo embaixo do armário. Ela ali ficou, petrificada ante a profanação. Afinal, como autômato, se aproximou do sofá, ajoelhou-se, pôs-se a alisá-lo com ambas as mãos, da beirada para o fundo, ao longo do assento, nos braços, como a desagravá-lo, enquanto o pulso lhe batia forte ao ímpeto da indignação.

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No dia seguinte saiu cedo. Voltou logo, trazendo na bolsa a latinha que lhe indicaram na farmácia como infalível veneno. Passou o dia nervosa. E nem bem escureceu foi despejar a comida na tampa de lata, a qual misturou a dose mortífera, mexendo-a com extremo cuidado.

Não de deitou. Postou-se na poltrona, à espera. Entretanto, como se avisado por um pressentimento, o condenado tardava. Ter-se-ia assustado com sua expulsão do sofá? Não voltaria mais? Exausta, pouco a pouco ela imergiu em pesada modorra, num sono que só despertou horas depois. Estranhou achar-se ali na obscuridade, com os membros dormentes. Recordou o motivo da vigília onde o sono a vencera. Que horas seriam? Contudo, ao readquirir a consciência, qualquer coisa que não chegava a ser um rumor, que era a intuição de algo insólito, a amedrontou.

Ergueu-se com esforço, arrastou-se até o comutador, acendeu a luz. Seus olhos custaram a acomodar-se à claridade. Perscrutou o ambiente, desconfiada. Até que a sua atenção foi atraída pela coisa: lá estava ele, o rato, destacando-se bem ao centro do sofá, mas absurdamente de pé. De pé, apoiado no encosto de cetim, sobre as duas patas traseiras, as suas outras abertas como braços retesados, e os olhos — oh, os olhos! — duas fagulhas, dois pontos de fogo desesperadamente fixos nela. E esses olhos exprimiam tanto sofrimento, tamanho pasmo, que a mulher rompeu em soluços. O rosto amarfanhado nas mãos, chorava alucinadamente, sem coragem de olhar outra vezo sacrificado. Um pensamento lhe passou pelo cérebro como um relâmpago: seria mesmo um rato?

Entreabriu um pouco as mãos e por entre os dedos afrouxados viu os retratos na parede, como num velório. Mas não olhavam para o cadafalso vermelho. Todos eles a encaravam com repulsa, condenando-a e como insistisse em inquiri-los, viu — horrorizada — repetir-se nos olhos de cada um o desespero e a danação do rato.

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O BLOCO DAS MIMOSAS BORBOLETAS Rui Ribeiro Couto

Foi na véspera do Carnaval que encontrei o Sr. Brito.

Ele esperava o bonde junto ao Hotel Avenida. — Boa tarde, Sr. Brito! — Boa tarde! E, como eu parasse para acender um charuto, o sr. Brito,

aproximando-se, pediu com humildade; — O seu fogo, faz favor? Estava ali há dois minutos, com o cigarro apagado, à espera do bonde e de um conhecido para emprestar-lhe um fogo. O Sr. Brito ouviu dizer, ou leu num almanaque, que o banqueiro Laffitte obteve o seu primeiro emprego porque o futuro patrão o viu curvar-se para apanhar um simples alfinete. Então, faz economia de caixas de fósforos, de cafés, engraxate. Pode ser que algum capitalista se aperceba disso e o convide para um alto negócio.

Aliás, há uma outra razão para o Sr. Brito agir desse modo: possui duas interessantes filhas, as duas muito jovens, as duas muito dispendiosas, as duas impondo uma importância social que está em absoluto desacordo com o modesto cargo que o sr. Joscelino de Brito e Sousa ocupa, silenciosamente, no Ministério da Fazenda.

Eram cinco e meio da tarde. Como a multidão nos acotovelasse, convidei o Sr. Brito a tomar um aperitivo na Americana. O Sr. Brito, aceso o seu cigarro, principiara a lamentar-se; e a conversa, ainda que fastidiosa, excitava a minha curiosidade. Sr.Brito é dos homens mais notáveis da cidade. Eu é que sei. No entanto, ninguém lhe dá importância. Tem uma obesidade caída, um desânimo balofo, um desacoroçoado jeito de velho funcionário pobre que se desespera em casa com as meninas. As meninas querem vestidos, precisam freqüentar a sociedade, consomem-lhe todo o ordenado. Ultimamente, deram

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para um furor de luxo que não tem medida. E o Sr. Brito, triste, cogitativo, anda sempre assim, de fazer dó: os braços cheios de embrulho, o paletó-saco poeirento, os cabelos grisalhos esvoaçando-lhe pelas orelhas, sob o chapéu de palha encardida.

— Sr. Brito, um vermute. — Acho bom, doutor, acho bom. Tem um pormenor impressionante no rosto: as

sobrancelhas muito peludas, também grisalhas, como que enfarinhadas de cinza. São agressivas as suas sobrancelhas. Na pessoa mansa do Sr. Brito, esse ponto enérgico é único, isolado. Tirando as sobrancelhas, tudo é doçura. A pêndula do bar martelou sei horas. O Sr. Brito, que ia engolir o vermute, teve uma indecisão, o cálice suspenso à boca. Li nos seus olhos inquietos esta frase: "As meninas estão à minha espera".

Exatamente, O Sr. Brito bebeu o gole e disse: — As meninas estão à minha espera. Ah, a minha feroz alegria. O Sr. Brito é assim: um

homem que eu, há tempos, venho surpreendendo, desvendando. Tomando posse de sua individualidade sem resistência. Estou a ponto de "saber" todo o Sr. Brito. Há ocasiões que, encontrando-o, digo para mim mesmo: "Ele vai falar-me de um artigo tremendo que saiu hoje contra o presidente da República, na "Vanguarda". É delicioso: o Sr. Brito, depois de me apertar a mão, põe-se a conversar sobre vagas coisas e, de repente, como se obedecesse ao meu comando, pergunta:

— Leu hoje a Vanguarda? Que artigo tremendo! Que horror!

—Tome outro vermute, Sr.Brito. — As meninas devem estar impacientes. — E como vão elas? — Assim, assim. O senhor é que não quis mais

aparecer?

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Ele pergunta isso sem o menor interesse oculto. Sabe perfeitamente que não pretendo casar-me.

— Muito serviço, não calcula. Mas, aos domingos, doutor! Uma vez ou outra! Dá-nos

sempre muita honra e principalmente muito prazer. — Obrigadinho, obrigadinho. Hei de aparecer. O senhor

sabe que aprecio muito suas meninas. — Elas são boazinhas, isso é verdade. Gostam de

divertir-se, de dançar, de brincar. Nem pensam na vida. Não pensam na vida! Para seus olhos de pais essas duas interessantes princesas de arrabalde não pensam na vida! Tratam exclusivamente de suas preciosas pessoinhas, dos seus preciosos projetos de casamento, do seu precioso luxo que custa lágrimas secretas do pai desconsolado.

— Faça o favor, beba outro. Aceita. E expõe o seu caso de hoje, que eu há vinte

minutos estou esperando, como um caçador mau, de emboscada: — Não avalia as dificuldades que passei de ontem para

cá! Imagine que era necessário arranjar um conto de réis e eu não encontrava agiota nenhum que me quisesse emprestá-lo. Afinal, sempre convenci o Moraes, aquele da Rua da Misericórdia, que por sinal todos os meses já me rói metade do ordenado. Esta vida, meu caro doutor.

— Sei o que ela é, Sr. Brito. Eu também tenho meus apertos. O vermute o perturbou um pouco, predispondo-o para a confidência. Continuo insinuando a expansão, pelo meu ar atento, pelo meu todo solícito, pelas minhas frases curtas que deixam sempre uma outra, para o Sr. Brito emendá-la com o que tem no íntimo.

— As meninas morreriam de tristeza se eu não conseguisse nada.

— Ah! — O senhor sabe, são moças, querem divertir-se. — É natural.

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— O Carnaval faz todo o mundo perder a cabeça. O senhor compreende: qual é o pai que numa ocasião destas não fará um sacrifício.

— Justo! Pedi mais dois vermutes ao garção. — Estes empréstimos abalam muito a bolsa de um

homem, Sr. Brito. — Um horror, nem fale. — Mas obteve, então? — Toma um gole. Chupa os beiços, enxugando-os. E

desabafando: — Ah, felizmente. — Meus parabéns sinceros. Sorriu, feliz. Seus olhos, debaixo das sobrancelhas

crespas e peludas, cintilaram contentes. As filhas morreriam de tristeza se não tivesse arranjado! Tomou outro gole. Tive a sensação inefável de haver ganhado a tarde.

— Sr. Brito, há de me dar licença... — Pois não, pois não! Paguei a despesa, levantei-me. Ele bebeu o resto do

cálice e levantou-se também, sobraçando os embrulhos. Senti que ia dizer-me qualquer coisa ainda sobre as meninas, sobre o Carnaval, sobre aqueles embrulhos, sobre o empréstimo...

— Elas estão ansiosas. Está vendo isto? São as fantasias que já haviam escolhido na cidade. E caixas de lança-perfume. E confete.

— E serpentinas. — Tudo! O sr. Brito, na sua ternura, ter-me-ia abraçado se não

fossem os embrulhos. — Não sabe o que é ter duas filhas, dois anjos como eu

tenho!

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O bonde da Gávea parara para o assalto dos passageiros. O Sr. Brito ia precipitar-se, mas uma idéia lhe fuzilou no cérebro:

— Não quer tomar parte no bloco das meninas? Desta vez o Sr. Brito me apanhara de surpresa. Não gostei.

Aquilo me escapara. — Ah, ela organizaram bloco este ano? — Alugamos um autocaminhão. Elas se lembraram do

senhor, mas tinham pedido o telefone e sua pensão. E eu ia-me esquecendo, que cabeça! É o Bloco da Mimosas Borboletas. Então, vem? O bonde partia. Campainhando.

— Telefone para lá! Falou isso correndo, querendo voltar a cabeça para mim

e ao mesmo tempo preparar o pulo sobre o estribo. Pulou. Dependurado, com os embrulhos lhe atrapalhando os movimentos, era sublime o Sr. Brito. E o bonde virou a esquina da rua São José, levando a meiguice, a ventura, o êxtase daquele pai. O Moraes da rua da Misericórdia, estava na porta do Brahma, torcendo os bigodes.

Devo tomar parte no Bloco das Mimosas Borboletas? Quarta-feira de Cinzas eu entrava tranqüilamente num café quando o sr.Brito surgiu, súbito. Quase nos abalroamos.

— Oh, Sr.Brito! Vamos a um cafezinho? Estendi-lhe o braço, procurando envolvê-lo pelo ombro. Ele tentou esquivar-se. esboçando uma recusa frouxa. Insisti com veemência e ele entrou afinal, sombrio.

Observei-lhe que o laço de gravata estava desfeito. Teve um gesto nervoso, apalpando o colarinho e o peito da camisa ,como se aquilo lhe tivesse feito lembrar de alguma coisa desagradável ou dolorosa. Tive receio de pensar o que ele iria dizer-me...Aquele desleixo na gravata era significativo. Eu sabia que era Lalá, a mais velha, quem lhe dava o nó, todas as manhãs. Ele ia dizer... Não, o Sr.Brito desta vez não disse nada. Então, puxei conversa.

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— Divertiu-se muito no Carnaval? Deu de ombros, molemente, num desânimo da vida. E,

puxando um cigarro de palha do fundo do bolso do paletó, fez-me com os dedos trêmulos o gesto de pedir fósforos. Minutos escoaram-se. Era mais prático nos despedirmos.

— Bem, Sr.Brito, vou aos meus negócios. Segurou-me pelo braço. Tive um choque. A revelação ia sair. Passaram-se ainda uns momentos de silêncio. Perguntou-me, enfim:

— Por que não quis tomar parte no nosso bloco? — Ora, Sr.Brito, eu não sou carnavalesco. Acredite: não

saí de casa os três dias. — Pois lamentei, lamentei muito a sua ausência. — Ora, por que Sr.Brito? — O Sr. é um moço sério. Se o senhor tivesse vindo,

olharia para as minhas filhas. Senti um susto e uma pérfida vontade de rir. Tive

impressão de ridículo e, ao mesmo tempo, um vago drama palpitante. As sobrancelhas do Sr.Brito, um instante fitas em mim, moviam-se agora, acompanhando um tique nervoso de piscar, indício de comoção.

— Muito agradecido pela confiança, Sr.Brito. Porém, não sei se sou digno.

— Sei eu, sei eu. Comecei a ficar impaciente. — Que houve de extraordinário, Sr. Brito? — Imagine o senhor ontem, último dia, como eu

estivesse com os meus rins muito doloridos, não pude acompanhar as meninas no carro. Sabe os meus rins...

— Sei, Sr.Brito. — O bloco era grande, umas trinta pessoas. Enfim,

havia o Gomes, da minha repartição. O Gomes com a senhora. Fiquei tranqüilo por esse lado e confiei-lhe as meninas. Sabe, os rapazes me pareciam distintos, mas nunca é bom confiar demais.

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— Claro. — Pois meu caro, não lhe conto nada: até esta hora as

meninas ainda não voltaram. — Oh, Sr.Brito. — O Gomes está abatido. Diz que não sabe que elas lhe

escaparam das vistas. — No rosto tranqüilo do Sr.Brito, os olhos, sempre

doces, faiscaram de dor. As sobrancelhas tremeram. — É verdade o que me diz? — Des-gra-ça-da-mem-te. — Caiu-lhe a cabeça sobre o peito, no desconsolo da

calamidade. Não tendo o que dizer (e já um pouco arrependido de não haver tomado parte no bloco mas por motivos inconfessáveis), reuni todas as minhas cóleras contra aquele Gomes:

— Porém, Sr.Brito, esse sujeito, esse Gomes, é um patife. O Sr.Brito fez com a cabeça que não que o Gomes não era um patife. E disse devagar, com tristeza:

— A mulher dele também até agora não chegou em casa. Íamos pela rua cheia de povo barulhento e feliz.

— Sr.Brito, cuidado com este auto. Atravessamos. Eu tentava qualquer coisa em prol daquela dor. — Sossegue. Elas dormiram com certeza em casa de

amigas. — Ninguém sabe delas. — Paciência, Sr.Brito, paciência. Talvez já estejam em

casa, até. Barafustamos por um telefone público. Esperamos um

momento até que D.Candinha (irmã solteirona e velhusca do sr.Brito), que criara as meninas, sem mãe, desde cedo), atendeu de outro lado do fio.

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— Elas já chegaram? — rompeu o Sr.Brito, com voz gritada e comovida, ansioso pela resposta. Largou o fone no gancho, sem ânimo.

— Vamos embora, doutor. Não apareceram! Não há notícias!

E fomos para o Jornal do Brasil. No balcão da caixa o Sr.Brito redigiu com letra trêmula o anúncio: Um conto de réis — Gratifica-se com um conto de réis a quem der notícias positivas sobre o paradeiro de duas moças que anteontem, vestidas à século XVIII, tomaram parte no Bloco das Mimosas Borboletas, da Gávea. Dirigir-se à Rua Andora,no.7".

O Sr. Brito pagou o anúncio e saímos. Na rua teve uma idéia repentina: — É verdade que vou eu buscar outro conto de réis? E sua doce pessoa crispou-se de angústia.

Ao nos despedirmos, ele queixou-se de uma dor de cabeça. Parou um momento a mão à testa. E, súbito, amontoou-se na calçada. Eu não tivera tempo de ampará-lo. Então, com esforço, suspendi aquela massa pesada. Pessoas que passavam me ajudaram. Estava morto.

Seu cadáver foi no automóvel da Assistência Pública para a casa, depois das formalidades legais. Acompanhei-o. Candinha estava fazendo o jantar e veio ver quem batia, manca de reumatismo, limpando as mãos no avental. Espantou-se. Atrás dos óculos os olhos se esbugalhavam, sem compreender. Até que, como que se lembrando, deu um grito:

— As meninas! E ergueu os braços exclamativos. — É o Sr. Brito, D.Candinha — intervim com calma.

Está doente. Muito doente. — O Jocelino! Pobre Jocelino! Que foi que aconteceu

pro Jocelino! E pôs-se a limpar os olhos com o avental sujo. Entre as pessoas que velavam o cadáver, Gomes

destaca-se por um ar indigno de homem ferido no seu amor

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próprio. A mulher desaparecera definitivamente. Suspeitava-se de um estudante de medicina, um certo Aristóteles, sergipano, um dos influentes do Bloco.

Havia quem apertasse a mão do Gomes, com comoção, apresentando-lhe condolências. Dava a impressão de um parente. A fuga da mulher estabelecera entre ele e o defunto um laço confuso de família.

Gomes agradecia, com um lenço sempre encostado ao rosto. Pela madrugada entrou Cotinha, a filha mais moça. Entrou pé ante pé. Ninguém lhe perguntou donde vinha nem porque vinha. Havia na sala apenas três ou quatro pessoas pobres da vizinhança, além de mim. Todas as demais — Gomes, inclusive — se tinham retirado por volta da meia-noite.

D.Candinha dormia dentro, numa cadeira de balanço da sala de jantar, vencida pelas agitações das últimas quarenta e oito horas. Cotinha caminhou receosa para o meio da sala, atirou-se sobre o caixão. E chorou convulsamente, como se esvaziando a repelões. Quando acabou de chorar, veio para onde eu estava, toda encolhida como uma criminosa, de olhos inchados e vermelhos. Apertei-lhe a mão que me estendeu e ficamos em silêncio. Depois de uns minutos, como um sentimento surdo e talvez hostil nos impelisse a explicações, perguntei:

— E Lalá? — Não sei (deu de ombros, espichando o beiço num

muxoxo contrariado). Cada uma de nós foi para seu lado. Fiquei estarrecido.

— E a senhora do Gomes? Disse que ignorava também o destino da outra.

Formosíssimo! Eis o epílogo do Bloco das Mimosas Borboletas no carnaval de 1922, na muito leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro — pensei com meus botões. Depois Cotinha contou que soubera da morte do pai por acaso, porque passara de automóvel pela porta, "com um senhor"... E acrescentou tímida, rompendo o pudor:

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— O senhor com quem eu estou. Tive um baque. Era possível? Um cinismo lavado de

lágrimas, assim era possível? Mas D. Cotinha: que bicho mordeu as senhoras, desse modo, de repente? Ficaram doidas? Sacudiu os ombros, pondo as duas mãos nos olhos, como uma criança. E chorando de novo:

— É a vida... Que é que o senhor quer? As outras pessoas da sala olhavam-nos a cochichar entre si. Sem dúvida faziam mau juízo. Talvez pensassem até que eu era o comparsa d Cotinha. Um cheiro de flores pisadas e cera errava, acre. Um sentimento pungente me dominava, abafando uma vaga, imprecisa sensação de sarcasmo. As oito velas ardiam silenciosas em torno do caixão do Sr. Brito, que tinha um crucifixo de prata À cabeça. Eu não conseguira ainda, até aquele instante, definir o meu estado de alma. Parecia-me, profanamente, que qualquer coisa de cômico se insinuava por tudo aquilo. Quem sabe, talvez, fosse engano meu, ruindade minha, tendência cruel do meu temperamento. No fundo, eu estava zonzo com o que me rodeava: o Sr. Brito, a filha que voltava, as pessoas pobres e parvas da vizinhança, as oito velas, o cheiro de flores pisadas, a idéia do cavalheiro com quem Cotinha passara no automóvel, a idéia de Lalá, a idéia de Aristóteles furtando a mulher do Gomes, a lembrança do anúncio que saíra e manhã no Jornal do Brasil, o ridículo do Bloco da Mimosas Borboletas — tudo aquilo ainda não recebera uma forma definitiva no meu espírito.

Cotinha merecia umas bofetadas? O problema de saber se Cotinha merecia ou não uma

bofetadas me invadiu, súbito. Fiquei a remoer essa inspiração, como se ela encerrasse um alto valor poético ou filosófico. Eram quarto da madrugada. Uma mulher levantou-se, em bico de pés. Um mulato de cavanhaque, a seguir, levantou-se também . daí a um quarto de hora Cotinha e eu estávamos a sós. Ficamos nós dois, longo tempo, olhando o Sr. Brito.

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Por duas vezes Cotinha soluçou: — Coitado do meu paizinho! Por outras duas vezes suspirou: — E Lalá que não sabe de nada! Que horror! Claridades pálidas do dia nascente entraram

vagarosamente pelas janelas. Um torpor me tomou. Cotinha chorava agora encostada a mim. O barulho de um bonde, que vinha vindo longe, me ergueu na cadeira. Cotinha encostou a cabeça ao espaldar, fatigada, humilhada, amarrotada, sem valor e sem destino, como uma pobre coisa. Para vencer o torpor, tomei a deliberação de sair, de andar. Fui olhando então, de perto, o meu defunto amigo, o meu campo de observações e de conquistas psicológica, o meu infeliz Jocelino de Brito e Souza.

O rosto estava calmo, como a sorrir. As sobrancelhas peludas continuavam agressivas, enérgicas na fisionomia doce para todo o sempre. Aquela massa humana estava agora liberta de pensar no Moraes da rua da Misericórdia.

— D. Cotinha, até logo, à hora do enterro. Ela veio até a porta da sala, que dava para uma área.

Levantei a gola do paletó por causa do frio da madrugada. Estendi a mão para Cotinha. Encarei-a com piedade e revolta: gordinha, morenota, um leve buço enegrecendo-lhe o lábio superior. E irresponsável, camaradinha, fácil, derrotada nas suas vaidades de princesa de arrabalde por aquele complicado drama de fuga e morte.

Olhando-me a fito, vi nos olhos dela a recordação da vida já antiga: o lar do Sr. Brito, os domingos de visita ou passeios com outras pessoas que freqüentavam a casa, os projetos ambiciosos de bons casamentos, o luxo, a comodidade quotidiana de uma situação, e respeito e prazer. Agora, tudo acabado, para nunca mais!

Desabou a chorar sobre o meu ombro: que era muito infeliz, que ia sofrer muito, que não sabia como perdera a cabeça, que agora não havia remédio, que queria morrer também...

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Consolei-a como pude, segurando-a pelos pulsos. Dei-lhe o conselho de mandar procurar Lalá (ela devia suspeitar, pelo menos suspeitar onde estava a irmã) e despedi-me rápido. A rua. A rua deserta, vazia, livre, para os meus passos e para o meu rumo.! Corri por ali afora, corri para alcançar o bonde e para desentorpecer. E enquanto corri levava a sensação de fugir de uma coisa fascinante e ameaçadora de que eu me libertava, enfim... uma coisa suave e horrenda que não poderia mais acontecer na madrugada pura do arrabalde...

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MENTIRA! Maria Angélica Monnserat Alves

Alfabetizadora atenta aos problemas de sua turma,

percebeu que algo não ia bem com aquela menina frágil. Sabia, por ser amiga da família, que a relação dos pais estava passando por uma fase ruim. Resolveu, então, intervir, tentando uma reconciliação entre eles.

Traçou o seguinte plano: comprou duas entradas para uma peça de teatro famosa na época. A aluna deveria dizer à mãe que as havia achado na rua, na volta do colégio e, aí, quem sabe?

No dia estipulado, script decorado e uma dose extra de coragem, lá veio a garotinha da escola com um envelope na pasta, QUEIMANDO! (Ao entrar em casa, preferia ter morrido na véspera, conhecedora que era da posição inflexível da mãe em relação a mentiras.)

Nervosamente, então, entrega as entradas e começa a desempenhar o seu papel, sem grande convicção. A mãe se surpreende.

– Como alguém ia perder isso sem perceber? Pergunta imprevista, só Deus sabe o que foi respondido.

E o interrogatório continuou… Depois de algum (pouco) tempo, premida tanto pela

autoridade materna quanto pela fragilidade dos seus sete anos, sucumbiu e, chorando, confessou a verdade! Terrível verdade!

Imediatamente, a reação: a menina deveria entregar as entradas de volta à professora, que morava perto! Agradeceria e, pronto, tudo resolvido! Tudo?

E lá foi ela, de volta, com o bendito envelope na mão, (QUEIMANDO!)

Pela segunda vez, naquele curto espaço de tempo, preferiu a morte na véspera!

Foi andando, cabisbaixa…

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Tento reconstituir seu percurso, estes passos, num tão pequeno espaço físico, inversamente proporcional ao tempo psicológico, implacável.

O fato de ter MENTIDO já lhe bastaria. Acrescentava- se, a ele, a revelação de um segredo da SUA professora, a quem adorava. Além disto, o ter que enfrentá-la, depois de tê-la traído.

E as entradas, QUEIMANDO, na mão… Passo a passo, penosamente, se aproxima da casa… Quantos quilômetros percorreu ela? Nunca se saberá! Mas, com certeza, os ecos destes passos são ouvidos até

hoje…

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CASO DO MARIDO DOIDO Stanislaw Ponte Preta

Quando a mulher entrou em casa, vinda de um

cabeleireiro que não tivera tempo de atendê-la, foi para surpreender o marido em flagrante... com a empregada. Era uma empregada nova (no emprego e na idade), admitida dias antes para o serviço de copeira e nunca — está claro — de cooperar.

Assim, surpreendida cm afazeres que não eram os seus, a empregada soltou um grito. Foi ela a primeira pessoa ali naquela sala a dar com a recém-chegada (e, pior que recém-chegada... patroa) parada na porta de entrada. O grito era um misto de espanto e terror e tão alto saiu, que o marido deu um pulo e caiu em pé, no meio do tapete, com uma perna só. A outra perna ficou no ar, suspensa, como que a aguardar os acontecimentos.

A cena durou uns cinco segundos, se tanto. Depois a copeira correu lá para dentro e os dois — marido e mulher — continuaram parados: ele ainda numa perna só, de olhos vidrados, sem mover um músculo. Aparentemente não respirava, sequer.

A primeira palavra que a mulher disse foi "francamente". A segunda foi "cretino". O "francamente" era num tom entre enojado e raivoso. E mais não disse porque o marido mexia-se, afinal. Trocou a perna que estava no ar pela que estava no chão e saiu pulando num pé só. Deu uma volta completa na sala e se dirigiu para a porta do corredor, rumo ao elevador.

A mulher ainda esperou que ele voltasse, mas quando percebeu a demora precipitou-se pelas escadas abaixo, já prevendo o que aconteceria. Ao chegar ao portão, ele já estava lá do outro lado da rua nuzinho, como Deus o fizera, sempre a pular como um saci.

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Enlouqueceu, de certo. Tido e havido, há mais de dez anos, como um marido exemplar, ao ser surpreendido em flagrante com a empregada, o choque fora demasiado grande para ele... e enlouquecera. Claro que enlouquecera. Lá ia ele a pular, em direção à praça. Agora gritava a plenos pulmões:

— Cauby! Cauby! Cauby! Só doido mesmo. Ele detestava Cauby. Em seguida mudou de grito. Passou a berrar: — Flamengo, Flamengo, Flamengo. A mulher sabia que ele era Vasco e pensou consigo

mesma que felizmente não havia ninguém na rua, com exceção de um gari que até há pouco varria os buracos da calçada e agora encostara a vassoura no muro e pusera as mãos nas cadeiras para melhor apreciar aquele estranho rubro-negro.

A mulher tentara em vão trazê-lo de volta para casa. Ele se desprendia de suas mãos e cada vez pulava mais alto. Somente o estribilho é que mudara. Agora gritava:

— É o maior! É o maior! É o maior! A mulher não sabia quem era o "maior", se Cauby ou o

Flamengo. Detalhe — de resto — sem importância, diante da idéia de que dentro em breve chegariam outras pessoas, atraídas pelos gritos. Tinha que levá-lo de volta urgentemente. Apelou para o gari, mas este não estava muito propenso a se meter com doido.

— Que é que o senhor está fazendo aí parado? — perguntou a mulher para o gari.

Nem o gari sabia o que estava fazendo na rua. Mesmo assim — por hábito — respondeu que sua função era de lixeiro. E a mulher, que trazia viva na mente a cena da sala, comentou:

— Este homem não deixa de ser lixo também. Graças a esta observação, o gari recolheu-o. Agora

vinha mais calmo. Já caminhava direito e o acesso de loucura parecia ter passado, quando, no elevador, seguro pela mulher à direita e pelo gari à esquerda, começou a recitar Shakespeare em

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francês. Embora nu, segurava uma túnica imaginária e se dizia Marco Antônio:

— Cétait le plus noble Romain d'eux tous. Sa vie fut noble, et les divers éléments étaient si bien mêlés en lui que la nature pouvait se lever, et dire à 1'univers entier: "Celui-là était un homme!"

Finalmente a mulher, o gari e Marco Antônio chegaram ao seu destino. A primeira deu uma gorjeta ao segundo e carregou o Imperador para o quarto, Imperador que já não era Marco Antônio, pois, contrariando a História Universal, fora substituído por César, a murmurar em tom de lamento:

— Et tu Brutus! Et tu Brutus! E a dizer estas três palavras ficou, até a chegada dos

parentes. Todos, um por um, tentaram conversar com ele sem nada conseguir. Depois foi chamado um psiquiatra, o único que se fez ouvir e que, ao sair do quarto, aconselhou um mês de repouso num sanatório para doentes nervosos.

O marido foi calado e triste. Um mês e pouco depois estava de volta, com uma recomendação expressa dos médicos para que, de modo nenhum, comentassem com ele o caso da empregada.

E, neste instante, deitado na cama, o marido, aparentemente distraído, pensa nos acontecimentos dos últimos tempos. Não há dúvida de que representara bem o seu papel de louco. Até os médicos foram na conversa. Mas, pouco a pouco, sua atenção é desviada para os movimentos da nova copeira que — inocentemente — espana os móveis. Já ia chamá-la suavemente pelo nome quando se lembrou que a mulher saíra para ir ao cabeleireiro e bem podia voltar antes da hora, caso não fosse atendida. Mesmo assim chamou a copeira e esta, quando já vinha vindo, recebeu ordem para trazer um café.

Quando ela saiu do quarto, respirou fundo e pensou: — Será que eu fiquei maluco mesmo?

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CONSPIRAÇÃO Moacyr Scliar

Sempre que faltava um professor, dona Marta o

substituía. Lecionava canto; a disciplina era considerada de importância secundária e, além disso, suas aulas eram péssimas – mas, em compensação, ela estava sempre disponível. De manhã, de tarde, de noite. Morava no colégio, praticamente. Quando chegávamos, pela manhã, já estava sentada na sala dos professores, sempre com aquele sorriso meio sofrido, meio idiota; e ficava na escola mesmo depois que saíam os últimos alunos do noturno. Esperava um irmão que vinha buscá-la; como ninguém nunca tinha visto esse irmão, circulava a história de que ela dormia no sótão do colégio. Que comia lá, era certo. Ao meio-dia ia para um banco, no pátio, tirava de sua sacola um sanduíche e ficava mastigando, melancólica.

Um dia não veio a professora de português. Trouxeram dona Marta. Entrou na sala de aula, no seu andar vacilante, cumprimentou-nos, pediu desculpas pela ausência da colega. E anunciou que não nos faria cantar: estava rouca (coisa difícil de comprovar; sua voz tinha normalmente um timbre enrouquecido. O que era motivo de deboche: Goela Enferrujada, era seu apelido. Que ela ignorava, ou fingia ignorar).

– Vamos fazer uma coisa diferente – disse. Tentou assumir um ar misterioso, cúmplice: – Vamos fazer de conta que estamos na aula de português, certo? Quero, que vocês escrevam uma composição. Sobre qualquer tema, à escolha de vocês. Depois escolherei cinco alunos, ao acaso; lerão suas composições e o melhor ganhará um prêmio.

Fez uma pausa e acrescentou: – Aqui está. Tirou da bolsa um chocolate. Uma barra de chocolate

ordinário, pequena. E aquela barra ela segurou no ar pelo menos um minuto, sorrindo, feliz.

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O nosso era um colégio de filhos de gente rica. Chocolate, bombons, balas, tínhamos todo dia, a qualquer hora. Chocolate? Ouvi risinhos de mofa. Mas nesse momento o diretor apareceu à porta e lançou-nos um olhar severo. Pusemo-nos imediatamente a trabalhar.

Eu tinha certeza de que não seria escolhido para ler. Nunca era escolhido para nada, e nem queria. Isso, e mais o fato de que na época andava lendo muito livro de mistério, talvez explicasse o título de minha composição, “Conspiração contra os cegos”. Nela, eu descrevia um distante país, governado por uma casta de cegos; rei cego, ministros cegos, generais cegos, todos oprimindo cruelmente o povo. Que não podia se revoltar, e nem sequer conspirar: os ouvidos aguçadíssimos dos cegos captavam qualquer murmúrio de descontentamento. Mesmo assim, líderes resolutos conseguiam organizar uma conspiração, baseada só na palavra escrita. Livros eram publicados contra os cegos, revistas, jornais. Toda a articulação anticego era feita por escrito. Finalmente a oligarquia era derrubada e um novo rei assumia. Seus primeiros atos: destruir as impressoras, fechar os jornais e declarar ilegal a alfabetização.

Terminei a composição e fiquei quieto, aguardando. Os outros iam terminando também. Prontos?, perguntou ela. Todos responderam que sim. Menos eu. Fiquei quieto. E contudo, foi para mim (muito azar!) que ela apontou seu dedo vacilante.

– Você… Como é seu nome? – Oscar – respondi (mentira; meu nome é Francisco

Pedro; alguns risinhos abafados se ouviram, mas eu fiquei firme).

– Bonito nome – ela, sorridente. – Leia sua composição para nós, Oscar.

Não havia como escapar. Dei uma olhada na folha de papel e, depois de uma pequena hesitação, anunciei:

– Escrevi sobre um passeio no campo.

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Ela sorria aprovadora. Contei então sobre um passeio no campo. Descrevi a paisagem: as árvores, o riacho, as vacas pastando sob um céu muito azul. Concluí dizendo que um passeio no campo nos ensinava a amar a natureza.

Muito bonito, ela disse, quando terminei. E acrescentou, emocionada:

– Eu gostaria de guardar sua composição. Não vale a pena, eu disse. Mas eu quero, insistiu ela.

Não vale a pena, repeti. Ela riu: ora, Oscar, não seja modesto, me dê sua composição.

– A composição é minha – eu disse – e faço com ela o que quero. Esta aula era para ser de canto, não de português. A senhora não tem o direito de me exigir nada.

– Vou pedir pela última vez – disse ela, e sua voz agora tremia. – Quero sua composição. Por favor.

Peguei a folha de papel e rasguei-a, em meio a um silêncio sepulcral.

Não disse nada, mas todos podiam ver as lágrimas correndo-lhe pelo rosto. O que me surpreendeu: eu não sabia, naquela época, que os cegos podem chorar.

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A ESTRANHA PASSAGEIRA Stanislaw Ponte Preta

-O senhor sabe? É a primeira vez que eu viajo de avião.

Estou com zero hora de vôo-e riu nervosinha, coitada. Depois pediu que eu me sentasse ao seu lado, pois me

achava muito calmo e isto iria fazer-lhe bem. Lá se is a oportunidade de ler o romance policial que eu comprara no aeroporto, para me distrair na viagem. Suspirei e fiz o bacana respondendo que estava às suas ordens.

Madama entrou no avião sobraçando um monte de embrulhos, que segurava desajeitada mente. Gorda como era, custou a se encaixar na poltrona e arrumar todos aqueles pacotes. Depois não sabia como amarra o cinto e eu tive que realizar essa operação em sua farta cintura.

Afinal estava ali pronta pra viajar. Os outros passageiros estavam já se divertindo às minhas custas, a zombar do meu embaraço ante as perguntas que aquela senhora me fazia aos berros, como se estivesse em sua casa, entre pessoas íntimas. A coisa foi ficando ridícula.

-Para que esse saquinho aí? – foi a pergunta que fez, num tom de voz que parecia que ela estava no Rio ou em São Paulo.

- É para a senhora usar em caso de necessidade – respondi baixinho.

Tenho certeza de que ninguém ouviu minha resposta, mas todos adivinharam qual foi, porque ela arregalou os olhos e exclamou:

-Uai.....as necessidades neste saquinho ? No avião não tem banheiro?

Alguns passageiros riram, outros – pro fineza – fingiram ignorar o lamentável equívoco da incômoda passageira de primeira viagem. Mas ela era azougue (embora com tantas carnes

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parecesse mais um açougue ) e não parava de badalar. Olhava para trás, olhava para cima, mexia na poltrona e quase levou um tombo, quando puxou a alavanca e empurrou o encosto com força, caindo para trás e esparramando embrulhos para todos os lados.

O comandante já esquentara os motores e a aeronave estava parada, esperando ordens para ganhar a pista de decolagem. Percebi que minha vizinha de banco apertava os olhos e lia qualquer coisa. Logo veio a pergunta:

- Quem é essa tal de emergência que tem uma porta só pra ela?

Expliquei que emergência não era ninguém, a porta é que era de emergência, isto é, em caso de necessidade, saía-se por ela.

Madama sossegou e os outros passageiros já estavam conformados com o término do “show”. Mesmo os que mais se divertiam com ele resolveram abrir jornais, revistas ou se acomodarem para tirar uma pestana durante a viagem.

Foi quando madama deu o último vexame. Olhou pela janela (ela pedira para ficar do lado da janela para ver a paisagem) e gritou:

- Puxa vida!!!!! Todos olharam para ela, inclusive eu. Madama apontou

para a janela e disse: - Olha lá embaixo. Eu olhei. E ela acrescentou: -Como nós estamos voando alto, moço. Olha só...o

pessoal lá embaixo até parece formiga. Suspirei e lasquei: - Minha senhora, aquilo são formigas mesmo. O avião

ainda não levantou vôo.