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Contra a superinterpretação em uma ghost story:
a natureza da assombração de The Haunting of Hill House
Isabelle Rodrigues de Mattos Costa
Em seu prefácio para o livro de Shirley Jackson, The Haunting of Hill House,
Laura Miller afirma que a protagonista, Eleanor Vance, é atraída para tal aventura
“pela própria casa, e as coisas terríveis que acontecem lá emergem de sua vida interior
e a expressam.” (MILLER, 2006, p.ix, minha tradução). Miller também sugere que
Eleanor, ao invés de ser apenas uma vítima da casa, poderia ser a própria causa do
assombramento – a personagem teve um incidente com um poltergeist, em sua
infância, e esse fantasma pessoal talvez fosse responsável pelos fenômenos na casa
(IBID, p.x-xi).
As afirmações de Laura Miller encontram eco na famosa narrativa de Henry
James, A Volta do Parafuso, em que a protagonista é assombrada por visões que,
segundo algumas interpretações, poderiam ser manifestações de sua mente
desequilibrada, ao invés de manifestações fantasmagóricas. Esse jogo entre
personalidade instável e loucura encontra apoio na lógica interna da própria narrativa:
pode-se ler a novela de James supondo que a governanta era a única a ver os
fantasmas, não sendo absurdo afirmar que eles habitavam apenas a sua própria mente
perturbada.
É claro que essa dúvida sobre a veracidade dos fantasmas faz parte do jogo
narrativo dessas ghost stories psicológicas. Justamente por isso devemos buscar as
pistas dentro da narrativa, para desvendar a natureza da assombração em questão: se
é um elemento comum a várias personagens ou algo interno a uma única personagem.
Para tanto, devemos fazer uma série de perguntas ao texto e encontrar suas respostas
dentro dele próprio. Se as respostas realmente estiverem lá, então nos resta apenas
montar o quebra-cabeça criado pelo autor. Do contrário, ao elevar o pensamento para
além do texto, o mais longe possível, não encontraremos respostas dentro da estória
para as perguntas formuladas: e se as respostas não estiverem lá é porque o autor não
as inseriu no texto e, portanto, essa superinterpretação, fantasiosa, sem apoio textual,
não passa de um quebra-cabeça cujas peças não encaixam umas nas outras, pois não
consiste apenas das peças originais, mas destas misturadas com peças que nós
mesmos recortamos e misturamos com as outras.
Assim, para decifrar a natureza da assombração de The Haunting of Hill House,
podemos fazer basicamente as seguintes perguntas: qual a essência da assombração,
de onde ela se origina e como se manifesta?
De onde se origina a assombração
Hill House e a assombração que lá habita estão intensamente ligadas. Analisar a
essência da assombração consiste, portanto, em analisar a casa como um todo. A
descrição da casa que o texto nos dá consiste de adjetivos ligados a uma maldade
quase inata da casa, como pode ser visto no seguinte fragmento:
No human eye can isolate the unhappy coincidence of line and place which suggests evil in the face of a house, and yet somehow a maniac juxtaposition, a badly turned angle, some chance meeting of roof and sky, turned Hill House into a place of despair, more frightening because the face of Hill House seemed awake, with a watchfulness from the blank windows and a touch of glee in the eyebrow of a cornice. Almost any house, caught unexpectedly or at an odd angle, can turn a deeply humorous look on a watching person; even a mischievous little chimney, or a dormer like a dimple, can catch up a beholder with a sense of fellowship; but a house arrogant and hating, never off guard, can only be evil. This house, which seemed somehow to have formed itself, flying together into its own powerful pattern under the hands of its builders, fitting itself into its own construction of lines and angles, reared its great head back against the sky without concession to humanity. It was a house without kindness, never meant to be lived in, not a fit place for people or for love or for hope. Exorcism cannot alter the countenance of a house; Hill House would stay as it was until it was destroyed. (JACKSON, 2006, p. 24, grifos meus).
Percebemos então que Hill House não é apenas personificada, mas
personificada como algo ruim, algo que possui uma vontade própria e essa vontade é
má. Além disso, a própria história da casa é de morte, roubo e animosidade, como o
doutor Montague narra aos outros personagens.
A casa fora construída há oitenta anos, por Hugh Crain, e minutos antes de sua
esposa entrar na casa pela primeira vez, a carruagem onde ela estava sofreu um
acidente nos arredores e a mulher foi levada morta para Hill House. Hugh Crain
permaneceu morando ali com suas duas filhas até se casar mais duas vezes. A segunda
esposa morreu de uma queda misteriosa, mas a terceira teve seu falecimento na
Europa, bem longe de Hill House, e pouco tempo depois o próprio Hugh Crain faleceu
na Europa também.
Quando as duas filhas de Crain cresceram, brigaram constantemente pela
posse da casa, até que a irmã caçula se casou. A irmã mais velha foi então morar em
Hill House, por alguns anos, na companhia de criados e de uma garota do povoado. No
entanto, sua irmã caçula ainda disputava com ela a casa e os bens familiares, até que a
irmã mais velha finalmente faleceu de pneumonia. A companheira da primogênita
brigou pela casa, afirmando que a irmã caçula ia a Hill House de noite e roubava
objetos da casa.
A companheira da irmã mais velha tornou-se legalmente a dona do lugar, mas
não teve mais uma só noite de paz depois disso, pois continuou brigando com a irmã
caçula da falecida dona. Ela afirmava que objetos continuavam sumindo da casa,
embora a irmã caçula negasse ser a autora dos roubos, até o dia em que a nova dona
da casa finalmente se enforcou. Depois disso, a casa passou para a família de Luke, os
Sandersons, e nem eles nem mais ninguém conseguiram morar ali por mais do que
alguns dias.
Foi a história de Hill House e os eventos à casa relacionados que atraíram o
doutor Montague para lá. Ele queria estudar os fenômenos que aconteciam na casa, e
o grupo que reuniu deveria tomar notas do que acontecesse. Hill House, portanto, já
era considerada assombrada antes de Eleanor Vance se aproximar do lugar. E, uma vez
que a assombração só se manifestava nos terrenos da casa, poderíamos afirmar que,
está estritamente ligada a Hill House.
As manifestações fantasmagóricas
O primeiro evento suspeito a ocorrer na casa são portas que se fecham
sozinhas, bem na frente dos personagens, mesmo quando eles haviam colocado um
vaso de plantas na frente de uma porta para mantê-la aberta. Algumas características
da casa, como um cheiro estranho que Eleanor diz sentir na biblioteca e um ponto
onde a temperatura cai drasticamente, na entrada do quarto infantil (nomeado “o
coração da casa”) também são dignas de nota. Manifestações mais intensas ocorrem a
partir da segunda noite em que os personagens passam na casa. Vamos enumerá-las a
seguir:
1) A assombração bate em todas as portas, procurando o quarto com alguém
dentro, até que chega na porta de Eleanor e Theodora. Após bater à porta e obter
resposta, fica um tempo escutando, como se estudasse as personagens. Como a porta
está trancada, a assombração não consegue entrar e se enfurece, passando a bater
ainda mais forte, como se quisesse arrombar a porta, até, finalmente, ir embora. Ao
mesmo tempo, o doutor avistara o vulto de um cão perambulando pela casa, e o
persegue, na companhia de Luke. Nenhum dos dois escutou, portanto, as batidas nas
portas, apenas os gritos de Eleanor e Theodora. Nesta cena o doutor Montague diz que
a casa parecia querer separá-los.
2) Na manhã seguinte, Luke encontra uma inscrição na parede de um corredor
que leva à cozinha. A inscrição parece ter sido feita em giz, e diz: “HELP ELEANOR
COME HOME”. No dia seguinte, Theodora encontra a mesma inscrição em seu quarto,
escrita com algo que parecia sangue. Suas roupas estão igualmente ensanguentadas.
3) Theodora entra em choque, e vai passar a noite no quarto de Eleanor. Elas
ouvem uma voz no quarto ao lado, murmurando e rindo, e depois chorando, como se
fosse uma criança. Eleanor pensa estar segurando a mão de Theodora, mas quando as
luzes se acendem, ela percebe que Theodora esteve fora de seu alcance o tempo todo,
então ela estivera segurando outra mão: a mão da assombração.
4) No dia seguinte Eleanor e Theodora vão andar pela propriedade e veem
crianças, uma mãe, e um cão no piquenique. Impressionada, Theodora grita para
Eleanor correr sem olhar para trás, então elas se afastam correndo.
5) A esposa do doutor chega com um Planchette (algo parecido com um
tabuleiro Ouija) e diz que o objeto sugeriu a figura de uma freira e um monge, e talvez
freiras emparedadas, e também um nome – Eleanor. (IBID. p. 141). A senhora
Montague aloja-se, então, no quarto infantil (o coração gélido de Hill House) durante a
noite. Os outros quatro ocupantes se reúnem no quarto do doutor, onde escutam as
batidas nas portas outra vez.
Pode-se perceber que o que assombra Hill House é algo peculiar, pois não
apresenta uma única forma, mas várias: a assombração toma a forma de um cão, de
uma família inteira em um piquenique ou, até mesmo, não se apresenta com nenhuma
forma, apenas produzindo barulhos e escrevendo nas paredes. Em momento algum há
uma ameaça física, pois a assombração não fere ninguém, apenas “ataca”
psicologicamente, perturbando e assustando os personagens, até finalmente
“enlouquecer” Eleanor.
A relação entre Eleanor e a assombração
A partir do capítulo 7, Eleanor desenvolve uma consciência aguda da casa,
escutando todos os barulhos dentro dela. Ela ouve sons de uma criança cantando na
biblioteca, enquanto os outros não parecem nada ouvir. Ela também sente um toque
em seu rosto.
No capitulo 9, fica mais evidente a mudança psicológica e comportamental que
ocorre em Eleanor. Durante a noite, ela mesma começa a bater às portas dos quartos
dos amigos, e a correr e se esconder deles, quando saem para procurá-la. Ela então
corre por todos os aposentos da casa, pela varanda e em volta da casa, e também
dança. Parece totalmente lunática e, por um momento, esquece até quem são os
outros e quais seus nomes.
Os outros personagens ficam cada vez mais preocupados com Eleanor, pois
percebem como ela está mudando, deixando-se influenciar por Hill House. Decidem,
então, que o melhor para ela seria se afastar. Tentam mandá-la de volta para casa,
mas ela morre ao bater o carro contra uma árvore da propriedade, impedindo assim
que fosse afastada para sempre de Hill House.
Temos, portanto, apenas duas manifestações da assombração que Eleanor não
testemunha: a primeira é o vulto do cão que Luke e o doutor Montague seguem para
fora de casa; e a segunda é algo que apenas Theodora vê, quando estão caminhando
no jardim, e surpreendem o piquenique fantasmagórico: algo que ela jamais descreve,
simplesmente reagindo com um “Não olhe para trás” e “Corra!” (IBID. p.130).
Considerando-se ainda o fato de que a assombração já habitava a casa, muito
antes de Eleanor se aproximar dela (ou mesmo nascer), parece razoável afirmar que a
existência da assombração independe da personagem Eleanor e não se origina a partir
dela.
Poderíamos considerar, no entanto, que as manifestações da assombração
durante a estada dos personagens em Hill House possam ter afetado Eleanor de tal
maneira que ela começasse a se confundir com a assombração, como se fosse induzida
a agir, e mesmo a pensar, de outra maneira. Ao invés de simplesmente procurar culpar
um único personagem por algo que todos experimentaram, parece coerente afirmar
que a assombração apenas influenciou uma mente já perturbada, e por isso afetou
Eleanor mais do que aos outros personagens.
Referências bibliográficas
CULLER, Jonathan. Em defesa da superinterpretação. In: ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (p. 129-46)
JACKSON, Shirley. The Haunting of Hill House. New York: Penguin Books, 2006.
MILLER, Laura. Introduction. In: JACKSON, Shirley. The Haunting of Hill House. New York: Penguin Books, 2006.