CONTRATANTE VULNERÁVEL E AUTONOMIA · PDF fileigualdade jurídica formal) e da justiça distributiva (dar a cada um o que é seu, considerando a desigualdade de cada um – no plano

  • Upload
    lamdien

  • View
    217

  • Download
    1

Embed Size (px)

Citation preview

  • Ano 1 (2012), n 10, 6183-6204 / http://www.idb-fdul.com/

    CONTRATANTE VULNERVEL E AUTONOMIA

    PRIVADA

    Paulo Lbo1

    Sumrio: 1. Presuno de vulnerabilidade contratual e a

    regulao legal; 2. Poder negocial, vulnerabilidade e

    hipossuficincia; 3. Massificao contratual; 4. Modalidades

    legais de proteo do vulnervel; 5. A indispensvel

    considerao da equivalncia material; 6. Relatividade da

    autonomia privada; 7. Excurso.

    1. PRESUNO DE VULNERABILIDADE CONTRATUAL

    E A REGULAO LEGAL

    A admisso da vulnerabilidade como categoria jurdica

    do direito contratual importa giro copernicano, que desafia a

    concepo liberal da autonomia privada, mxime em tempos de

    grave crise financeira mundial, que ps a nu a universalizao

    dos malefcios da ideologia do neoliberalismo, prenunciada por

    Avels Nunes2. A vulnerabilidade do contratante fruto do

    Estado social, do sculo XX, com suas promessas de realizao

    da justia social e reduo das desigualdades sociais, que no

    Brasil projetaram-se nas Constituies de 1934 a 1988,

    1 Doutor em Direito Civil pela USP, Professor Emrito da UFAL, Professor

    Visitante da UFPE, ex-Membro do Conselho Nacional de Justia. 2 NUNES, A. J. Avels. Neo-liberalismo, globalizao e desenvolvimento

    econmico. Boletim de Cincias Econmicas. Coimbra: Universidade de Coimbra,

    n. XVL, 2000.

  • 6184 | RIDB, Ano 1 (2012), n 10

    especialmente nesta.

    No que respeita aos contratos, o Estado social caracteriza-

    se justamente pela funo oposta cometida ao Estado liberal

    mnimo. O Estado no mais apenas o garantidor da liberdade e

    da autonomia contratual dos indivduos; vai alm, intervindo

    profundamente nas relaes contratuais, ultrapassando os limites

    da justia comutativa para promover, no apenas a justia

    distributiva, mas tambm a justia social. Diferentemente da

    justia comutativa (dar a cada um o que seu, considerando cada

    um como igual transportando-se para o contrato o princpio da

    igualdade jurdica formal) e da justia distributiva (dar a cada um

    o que seu, considerando a desigualdade de cada um no plano

    contratual, atribuindo mais tutela jurdica ao contratante que o

    direito presume vulnervel, a exemplo do trabalhador, do

    inquilino, do consumidor, do aderente), a justia social implica

    transformao, promoo, mudana, segundo o preciso

    enunciado constitucional: reduzir as desigualdades sociais

    (arts. 3, III, e 170, VII, da Constituio brasileira). Com efeito,

    enquanto as justias comutativa e distributiva qualificam as

    coisas como esto, a justia social tem por fito transform-las, de

    modo a reduzir as desigualdades.

    A interveno do Estado nas relaes econmicas

    privadas, que caracteriza profundamente o Estado social, tem

    sob foco principal o contrato, como instrumento jurdico por

    excelncia da circulao dos valores e titularidades

    econmicos, e precisamente da proteo dos figurantes mais

    fracos ou vulnerveis. No Brasil, ao longo do sculo passado, o

    direito passou a presumir a vulnerabilidade de determinados

    figurantes, merecedores de proteo legal e de conseqente

    restrio do mbito de autonomia privada, quando esta

    instrumento de exerccio de poder do outro figurante (ou parte

    contratual). Assim, emergiram os protagonismos do muturio,

    com vedao dos juros usurrios (Dec. 22.626, de 1933), do

    inquilino comercial (Dec. 24.150, de 1934; atualmente, Lei

  • RIDB, Ano 1 (2012), n 10 | 6185

    8.245, de 1991) e do promitente comprador de imveis

    loteados (Dec.-Lei 58, de 1937), na dcada de trinta; do

    trabalhador assalariado (Consolidao das Leis do Trabalho, de

    1943), na dcada de quarenta; do inquilino residencial (Lei

    4.494, de 1964; atualmente, Lei 8.245, de 1991) e do

    contratante rural (Estatuto da Terra, de 1964), na dcada de

    sessenta; dos titulares de direitos autorais (Lei 5.988, de 1973;

    atualmente, Lei 9.610, de 1998), na dcada de setenta; do

    consumidor (Cdigo de Defesa do Consumidor, de 1991), na

    dcada de noventa; do aderente em contrato de adeso (Cdigo

    Civil, de 2002), na primeira dcada do sculo XXI.

    Algumas dessas vulnerabilidades reclamaram tal grau de

    interveno legal, que se converteram em ramos autnomos do

    direito, a exemplo do direito do trabalho, do direito autoral, do

    direito agrrio e do direito do consumidor. Como o direito civil

    dos contratos permaneceu ancorado nos pressupostos

    oitocentistas do Estado liberal, da concepo de mercado como

    espao imune controlabilidade social ou estatal e das

    conseqentes concepes de autonomia privada ilimitada e de

    igualdade jurdica formal dos contratantes, terminou por ser

    subtrado de importantes segmentos da vida econmica e do

    cotidiano das pessoas. Esses direitos contratuais especiais tm

    em comum a forte presena da interveno legislativa e da

    conseqente limitao da autonomia privada.

    Ressalta-se o paradoxo que os juristas comeam a

    perceber com mais nitidez: o Estado social, sob o ponto de

    vista do direito, cresce na mesma proporo em que ele

    decresce, sob o ponto de vista econmico. As recentes

    experincias brasileiras de privatizao de setores importantes

    da economia nacional, principalmente de fornecimento ou

    prestao de servios pblicos, revelaram que cresceram as

    demandas de regulao, para proteo dos contratantes

    usurios. E a regulao se d, prioritariamente, no controle das

    relaes contratuais, para tutela dos contratantes vulnerveis,

  • 6186 | RIDB, Ano 1 (2012), n 10

    que exercem pouco ou nenhum poder de barganha.

    A partir do incio dos anos oitenta do sculo XX, com o

    triunfo de governos conservadores nos pases economicamente

    mais fortes, passou a vigorar o suposto consenso de que o

    Estado o problema e o mercado a soluo, ou de que a

    atividade econmica desregulada mais eficiente. O fim do

    Estado social foi proclamado pelos poderes econmicos

    hegemnicos e pela literatura poltica e social, que alardeiam a

    necessidade de respeito aos contratos, pouco importando que

    tenham resultado do poder negocial dominante e da

    vulnerabilidade jurdica das outras partes, para que os

    investimentos nas naes mais pobres fluam.

    Apesar de viver o ordenamento jurdico brasileiro sob a

    conformao constitucional do Estado social, a concepo

    liberal do contrato ainda muito enraizada nos hbitos e

    quefazeres dos juristas nacionais, para o que contribuiu a onda

    aparentemente vencedora da globalizao econmica, fundada

    principalmente no mercado financeiro mundial livre de

    qualquer regulao e na corrente ideolgica do neoliberalismo,

    exigentes do encolhimento das garantias legais dos direitos

    nacionais, mxime no que concerne proteo dos contratantes

    vulnerveis, principalmente do trabalhador assalariado, do

    consumidor e do usurio dos servios pblicos privatizados.

    Esse cenrio enganador de ressurgimento das crenas nas

    virtudes econmicas do sistema de mercado livre levou alguns3

    a propugnar pelo retorno dos princpios clssicos do contrato,

    com interesse crescente (especialmente nos pases anglo-

    americanos) na relao entre eles e os princpios econmicos

    (eficincia, custo e benefcio), com alguma repercusso no

    Brasil, abdicando-se dos valores e princpios jurdicos

    fundamentais. A crise financeira mundial do final de 2008 ps

    em cheque essas convices que pareciam irreversveis,

    3 ATTIYAH, P. S. An introduction to the law of contract. New York: Oxford, 2000,

    p. 27.

  • RIDB, Ano 1 (2012), n 10 | 6187

    retomando-se a necessidade de regulao pblica da atividade

    negocial e, conseqentemente, da preservao dos contratantes

    vulnerveis. De repente, o Estado voltou a ser a soluo, e o

    mercado, o problema; a globalizao foi posta em causa; a

    nacionalizao de importantes unidades econmicas, de

    antema passou a ser a salvao 4.

    2. PODER NEGOCIAL, VULNERABILIDADE E

    HIPOSSUFICINCIA

    Montesquieu disse, com razo, que o poder exercido sem

    qualquer controle degenera em abuso: todo homem que tem

    em mos o poder sempre levado a abusar do mesmo; e assim

    ir seguindo, at que encontre algum limite 5. Sua reflexo,

    dirigida ao poder poltico, vale igualmente para o exerccio de

    qualquer tipo de poder. A histria ensina que a liberdade

    contratual transformou-se nas mos dos poderosos em

    instrumento inquo de explorao do que se presume vulnervel.

    Quem utiliza instrumentos contratuais para o exerccio, ainda

    que legtimo, do poder negocial deve se submeter a controle

    social ou estatal. O exerccio de poder implica submisso do

    outro. Seu controle tem como ponto de partida a identificao

    de quem a ele se submete, para que seja protegido dos abusos e

    excessos. Portanto, em relao ao poder negocial dominante, o

    controle preventivo ou repressivo se d pela interveno

    legislativa, de modo a proteger o juridicamente vulnervel.

    Dispensa-se o controle quando, no contrato, os figurantes

    so presumivelmente iguais, seja porque os riscos econmicos

    4 SANTOS, Boaventura de Sousa. Consensos problemticos. Constituio &

    democracia