Contribuição Para a História Do Cristianismo Primitivo

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  • 7/26/2019 Contribuio Para a Histria Do Cristianismo Primitivo

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    Contribuio Para a Histria do Cristianismo PrimitivoFriederich Engels 1895

    I

    A histria do cristianismo primitivo oferececuriosos pontos de contato com o movimentooperrio moderno. Como este, o cristianismo era, naorigem, o movimento dos oprimidos: apareceuprimeiro como a religio dos escravos e dos libertos,dos pobres e dos homens privados de direitos, dospovos subjugados ou dispersos por Roma. Os dois, ocristianismo como o socialismo operrio, pregamuma libertao prxima da servido e da misria; ocristianismo transpe essa libertao para o Alm,numa vida depois da morte, no cu; o socialismo

    coloca-a no mundo, numa transformao dasociedade. Os dois so perseguidos e encurralados,os seus aderentes so proscritos e submetidos a leisde exceo, uns como inimigos do gnero humano,os outros como inimigos do governo, da religio, dafamlia, da ordem social. E, apesar de todas asperseguies, e mesmo diretamente servidos porelas, um e outro abrem caminho vitoriosamente.

    Trs sculos depois do seu nascimento, ocristianismo reconhecido como a religio do Estadoe do Imprio romano: em menos de sessenta anos, osocialismo conquistou uma posio tal que o seu

    triunfo definitivo est absolutamente assegurado.Conseqentemente, se o Sr. ProfessorA.

    Menger, no seu Direito ao Produto Integral doTrabalho, se espanta de que, sob os imperadoresromanos, tendo em vista a colossal centralizao dasriquezas e os sofrimentos infinitos da classetrabalhadora, composta essencialmente de escravos,o socialismo no tenha sido implantado depois daqueda do Imprio romano ocidental, porqueprecisamente no v que esse socialismo, namedida em que era possvel na poca, existiaefetivamente e chegava ao poder. . . com o

    cristianismo. S que o cristianismo, como tinhafatalmente de ser, considerando as condieshistricas, no queria a transformao social nestemundo, mas no Alm, no cu, na vida eterna depoisda morte, nomilleniumeminente.

    J na Idade Mdia o paralelismo dos doisfenmenos se impe, quando dos primeiroslevantamentos dos camponeses oprimidos e,sobretudo, dos plebeus das cidades. Esseslevantamentos, tal como todos os movimentos demassas na Idade Mdia, tiveram necessariamenteuma mscara religiosa; aparecem como restauraesdo cristianismo primitivo em conseqncia de uma

    degenerescncia crescente, mas atrs da exaltao

    religiosa escondem-se, regularmente, interessesmuito positivos deste mundo.

    Isso transparecia de uma maneira grandiosana organizao dos taboritas da Bomia sob JooZizka, de gloriosa memria. Mas este trao presisteatravs de toda a Idade Mdia, at que desaparecepouco a pouco, depois da guerra dos camponeses na

    Alemanha, para reaparecer entre os operrioscomunistas depois de 1830. Os comunistasrevolucionrios franceses, tal comoWeitlinge osseus aderentes, afirmavam-se ligados aocristianismo primitivo muito antes deRenanter dito:

    Se quiserem fazer uma idia

    das primeiras comunidades crists,observem uma seo local daAssociao Internacional deTrabalhadores.

    O homem de letras francs que, graas a umaexplorao da crtica bblica alem, sem exemplomesmo no jornalismo moderno, confeccionou o seuromance sobre a histria da Igreja, As Origens doCristianismo, no sabia tudo o que havia de

    verdade na sua frase. Eu queria ver o antigointernacionalista capaz de ler, por exemplo, a

    segunda Epstola aos Corntios, atribuda a Paulo,sem que, pelo menos num ponto, antigas feridas noreabrissem nele.

    A Epstola inteira, a partir do VIII captulo,ecoa da eterna queixa demasiado bem conhecida:As cotizaes no entram. Por volta de 1865,quantos, entre os mais zelosos propagandistas, noteriam apertado a mo do autor desta carta, quemquer que ele fosse, com uma simptica inteligncia,murmurando-lhe ao ouvido: Ento, irmo, tambmisso te aconteceu a ti! Tambm ns teramos muitoa dizer acerca disso tambm na nossa associaopululam os corntios , essas cotizaes que noapareciam, que, inalcanveis, giravam diante dosnossos olhos de Tntalo, eis o que constitua osfamosos milhes da Internacional.

    Uma das nossas melhores fontes sobre osprimeiros cristos Luciano de Samosata,oVoltaireda antigidade clssica, que mantinha amesma atitude ctica em relao a todas as espciesde supersties religiosas e que, portanto, no tinhamotivos nem por crena pag nem por poltica para tratar os cristos diferentemente de qualqueroutra associao religiosa. Pelo contrrio, acusa atodos da sua superstio, tanto aos adoradores de

    Jpiter como aos adoradores de Cristo: do seu pontode vista rasamente racionalista, um gnero de

    http://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/m/menger_anton.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/m/menger_anton.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/w/weitling.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/r/renan.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/v/voltaire.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/m/menger_anton.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/m/menger_anton.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/w/weitling.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/r/renan.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/v/voltaire.htm
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    superstio to inepto como o outro. Estatestemunha, de qualquer maneira imparcial, conta,entre outras coisas, a biografia de um aventureiro,Peregrinus, que se chamava na realidade Proteu deParium sobre o Helesponto. O dito Peregrinuscomeou na sua juventude, na Armnia, por um

    adultrio. Foi apanhado em flagrante delito elinchado segundo o costume do pas. Felizmenteconseguiu escapar, estrangulou Parium, o seu velhopai, e teve de fugir.

    Foi por essa poca que se fezinstruir na admirvel religio doscristos, contactando na Palestinacom alguns dos seus padres eescribas. Que vos hei-de dizeracerca disso? Esse homem depressalhes fez ver que eles no passavamde crianas; profeta, tiasarco, chefe

    de assemblia, tudo ele foi sozinho,interpretando os seus livros,explicando-os, compondo-os poriniciativa prpria. Por isso muitagente o olhava como a um deus, umlegislador, um pontfice, igual a esseque honrado na Palestina, onde foiposto numa cruz por ter introduzidoesse novo culto entre os homens.Proteu, tendo por este motivo sidodetido, foi posto na priso. Desde omomento que foi posto a ferros, os

    cristos, considerando-se comopresos nele, tudo fizeram para olibertar; mas, no o conseguindo,renderam-lhe pelo menos toda aespcie de honras com um zelo euma dedicao infatigveis. Desde amanh, viam-se volta da prisouma multido de mulheres velhas,de vivas, de rfos. Os principaischefes da seita passavam a noitejunto dele, depois de teremcorrompido os carcereiros: para llevavam as suas refeies e liam osseus livros santos; e o virtuosoPeregrinus, ele ainda se chamavaassim, era por eles tratado de novoScrates. No tudo; vrias cidadesda sia lhe enviaram deputados emnome de cristos, para lhe prestarassistncia, lhe servirem de apoio,de advogados e de consoladores.Era inacreditvel a dedicao emtais ocorrncias; para tudo dizer,nada lhes custava. Desse modoPeregrinus, sob o pretexto da sua

    priso, viu chegarem grandesquantidades de dinheiro e acumulou

    muito. Esses infelizes acreditam queso imortais e que viveroeternamente; em conseqncia,desprezam os suplcios e entregam-se voluntariamente morte. O seuprimeiro legislador ainda os

    convenceu de que eles so todosirmos. Desde que mudaram deculto, renunciaram aos deusesgregos e adoram o sofista crucificadode quem seguem as leis. Desprezamigualmente todos os bens e pem-nos em comum, pela f completa quetm nas suas palavras. De formaque, se aparece entre eles umimpostor, um patife decidido, ele noter dificuldade em enriquecerrapidamente, rindo-se por trs da

    sua simplicidade. Contudo,Peregrinus depressa foi libertadopelo governador da Sria.

    Depois de outras aventuras, diz-se:Peregrinus retomou, pois, a

    sua vida errante, acompanhado nassuas vagabundagens por um grupode cristos que lhe servem desatlites e lhe subvencionamabundantemente as suasnecessidades. Ele fez-se assim

    alimentar durante algum tempo. Masdepois, tendo violado alguns dosseus preceitos (tinham-no vistocomer carne proibida), foiabandonado pelo seu cortejo ereduzido pobreza.

    Quantas recordaes de juventude acordamem mim ao ler esta passagem de Luciano. Eisprimeiro o profeta Albrecht, que por volta de 1840e durante alguns anos tornava pouco seguras letra as comunidades comunistas deWeittlingnaSua. Era um homem grande e forte, que percorriaa Sua a p, procura de um auditrio para o seunovo evangelho da libertao do mundo. No fim decontas, parece ter sido um trapalho bastanteinofensivo e morreu cedo. Eis o seu sucessor, menosinofensivo, o Dr. Jorge Kuhlmann de Holstein, queaproveitou o tempo em queWeittlingesteve na prisopara converter os comunistas da Sua francesaaoseuprprio evangelho e que, por um tempo, oconseguiu to bem que conquistou at o maisespiritual e ao mesmo tempo o mais bomio de todoseles, August Becker. Depressa Kuhlmann davaconferncias que foram publicadas em Gnova em

    1845 sob o ttulo: O Novo Mundo ou o Reino doEsprito Sobre a Terra. Anunciao. E na

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    http://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/w/weitling.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/w/weitling.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/w/weitling.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/w/weitling.htm
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    introduo, redigida, segundo toda a probabilidade,por Becker, l-se.

    Faltava um homem na bocade quem todos os nossossofrimentos, todas as nossasesperanas e todas as nossas

    aspiraes, numa palavra, tudo oque agita mais profundamente onosso tempo, encontrasse uma voz...Esse homem que a nossa pocaesperava, apareceu. o Dr. JorgeKuhlmann de Holstein. Ele surgiucom a doutrina do novo mundo oudo reino do esprito na realidade.

    Ser necessrio dizer que essa doutrina donovo mundo no passava do mais banalsentimentalismo, traduzido em fraseologia

    semibblica Lamennais e debitada com arrognciade profeta? O que no impedia os bons discpulosdeWeittlingde andarem com atenes para comesse charlato, tal como os cristos da sia tinhamfeito em relao a Peregrinus. Eles, que, deordinrio, eram arquidemocratas e igualitrios, aponto de alimentarem desconfianas inextinguveispara com todo o mestre-escola, todo o jornalista,todos aqueles que no eram operrios manuais,como se eles fossem outros tantos sbiosprocurando explor-los, eles deixaram-se persuadirpor esse Kuhlmann, com os seus atavios de

    melodrama, de que, no novo mundo, o maissbio,id estKuhlmann, regulamentaria a repartiodos prazeres e que, portanto, j no velho mundo, osdiscpulos deviam fornecer alqueires de prazeres aomais sbio e contentarem-se com migalhas. EPeregrinus-Kuhlmann viveu na alegria e naabundncia... enquanto isso durou. Na verdade talno durou muito; o descontentamento crescente doscticos e dos incrdulos, as ameaas de perseguiodo governo, puseram fim ao reino do esprito emLausanne; Kuhlmann desapareceu.

    Exemplos anlogos viro s dezenas memria daqueles que conheceram por experincia o

    comeo do movimento operrio na Europa. Na horaatual, casos to extremos tornaram-se impossveis,pelo menos nos grandes centros; mas em localidadesperdidas, em que o movimento conquista um terreno

    virgem, um qualquer Peregrinus deste tipo poderiaainda conseguir um sucesso momentneo e relativo.E, tal como em todos os pases aflui para o partidooperrio toda a gente que j nada tem a esperar domundo oficial, ou que nele se queimou tal comoos adversrios da vacinao, os vegetarianos, osantivivecionistas, os partidrios da medicina dossimples, os pregadores das congregaes dissidentes

    a quem as ovelhas fugiram, os autores de novasteorias acerca da origem do mundo, os inventores

    falhados ou infelizes, as vtimas de reais ouimaginrias irregularidades a quem a burocraciachama refiles inteis, os honestos imbecis e osdesonestos impostores , o mesmo acontecia com ocristianismo. Todos os elementos que o processo dedissoluo do antigo mundo tinha atirado,

    sucessivamente, para o crculo de atrao docristianismo, o nico elemento que resistia a essadissoluo precisamente porque se tratava de umproduto especial e que, portanto, subsistia ecrescia, enquanto que os outros elementos nopassavam de moscas efmeras. Todas as exaltaes,extravagncias, loucuras ou golpes sujos que foramtentados em relao s jovens comunidades crists,todas, temporariamente e em certas localidades,encontraram ouvidos atentos e crentes dceis. E, talcomo os comunistas das nossas primeirascomunidades, os primeiros cristos eram de uma

    credulidade espantosa em relao a tudo que pareciaconvir sua doutrina, de modo que no podemossaber realmente se, dos numerosos escritos quePeregrinus comps para a cristandade, no haver,aqui e ali, qualquer fragmento que tenha escapadopara o nosso novo Testamento.

    II

    A crtica bblica alem, at agora a nica basecientfica do nosso conhecimento da histria docristianismo primitivo, seguiu uma dupla tendncia.

    Uma dessas tendncias representada pelaescola de Tubingue, qual, em sentido lato, pertencetambmD. F. Strauss. Ela vai to longe no examecrtico quanto uma escolateolgicapoderia ir.

    Admite que os quatro Evangelhos no socomunicaes de testemunhas oculares, masarranjos ulteriores de escritos perdidos, e que, nomximo, quatro das Epstolas atribudas a S. Pauloso autnticas etc. Ela afasta da narrao histrica,como inadmissveis, todos os milagres e todas ascontradies; do que resta, ela procura salvar tudoo que pode ser salvo e, por a, transparececlaramente o seu carter de escola teolgica. E

    graas a essa escola queRenan, o qual, em grandeparte, se apia nela, pde, aplicando o mesmomtodo, operar ainda muitos outros salvamentos.

    Alm de numerosas exposies mais que duvidosasdo Novo Testamento, ele quer ainda impor-nos umaquantidade de lendas de mrtires comohistoricamente autenticadas. Em todo o caso, tudo oque a escola de Tubingue rejeita do Novo Testamentocomo apcrifo, ou como no sendo histrico, podeser considerado como definitivamente afastado pelacincia.

    A outra tendncia representada por um

    nico homem:Bruno Bauer. O seu grande mrito ter, impiedosamente, criticado os Evangelhos e as

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    http://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/w/weitling.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/s/strauss_david.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/r/renan.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/bauer-b.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/w/weitling.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/s/strauss_david.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/r/renan.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/bauer-b.htm
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    Epstolas apostlicas, ter sido o primeiro a encararseriamente o exame dos elementos no s judaicos egreco-alexandrinos, mas tambm gregos e greco-romanos que permitiram ao cristianismo tornar-seuma religio universal. A lenda do cristianismonascido integralmente do judasmo, partindo da

    Palestina para conquistar o mundo com umadogmtica e uma tica traadas nas suas grandeslinhas, tornou-se impossvel depois deBruno Bauer;a partir de ento ela pode, no mximo, continuar a

    vegetar nas faculdades teolgicas e no esprito dequem quer conservar a religio para o povo,mesmo custa da cincia. Na formao docristianismo, tal como foi elevado categoria dereligio de Estado porConstantino, a Escola dePhilon de Alexandria e a filosofia vulgar greco-romana platnica e sobretudo estica desempenharam importante papel. Essa

    contribuio est longe de ter sido estabelecida nosdetalhes, mas o fato est demonstrado, e tal deve-se,sobretudo, aBruno Bauer; ele lanou as bases daprova de que o cristianismo no foi importado defora, da Judia, e imposto ao mundo greco-romano,mas que , pelo menos na forma que adquiriu comoreligio universal, o mais autntico produto dessemundo. Naturalmente que, nessetrabalho,Bauerexagerou bastante, como acontece atodos que combatem preconceitos inveterados. Nainteno de determinar, mesmo do ponto de vistaliterrio, a influncia de Philon, e sobretudo deSneca, sobre o cristianismo nascente, e derepresentar formalmente os autores do Novo

    Testamento como plagirios desses filsofos, obrigado a retardar o aparecimento da nova religioem meio sculo, a rejeitar as narrativas dehistoriadores romanos que a isso se opem e, emgeral, a tomar graves liberdades com a histriaconhecida. Segundo ele, o cristianismo como tal saparece sob os imperadores Flavianos, a literaturado Novo Testamento s sob Adriano, Antonino eMarco Aurlio. Portanto,Bauerfaz desaparecer todoo fundo histrico para as narrativas do Novo

    Testamento relativas a Jesus e aos seus discpulos;

    resolvem-se em lendas em que as fases dedesenvolvimento interno e os conflitos morais dasprimeiras comunidades so transpostos e atribudosa personagens mais ou menos fictcias. No so aGalilia nem Jerusalm, segundoBauer,os lugaresde nascimento da nova religio, mas sim Alexandriae Roma.

    Assim, se no resduo, que no contesta, dahistria e da literatura do Novo Testamento, a escolade Tubingue nos oferece o extremo mximo do que acincia pode, ainda nos nossos dias, aceitar comoestando sujeito a controvrsia,Bruno

    Bauerrepresenta o mximo de contestao que elase pode permitir. A verdade situa-se entre estesextremos. Que esta, com os nossos meios atuais,

    seja suscetvel de ser determinada, eis o que parecebem problemtico. Novas descobertas, como emRoma, no Oriente e sobretudo no Egito, daro umcontributo muito mais decisivo do que toda a crtica.

    Ora, existe no Novo Testamento um nico livrode que possvel, com margem de alguns meses,

    fixar a data da redao; ele deve ter sido escritoentre junho de 67 e janeiro ou abril de 68; um livroque, por conseqncia, pertence aos maislongnquos tempos cristos, que reflete as idiasdessa poca com a mais ingnua sinceridade e nalngua idiomtica que lhe corresponde; que, deincio, , na minha opinio, muito mais importantepara determinar o que foi realmente o cristianismoprimitivo que todo o resto do Novo Testamento,muito posterior em data na sua redao atual. Esselivro o que se chama oapocalipsede Joo; e como,ainda por cima, esse livro, em aparncia o mais

    obscuro de toda a Bblia, se tornou hoje, graas crtica alem, o mais compreensvel e o maistransparente de todos, proponho-me falar dele aosnossos leitores.

    Basta uma olhadela sobre esse livro para nosapercebermos do estado de exaltao no s doautor mas tambm do meio em que vivia. O nossoApocalipse no o nico da sua espcie e do seutempo. Do ano 164 antes da nossa era, data doprimeiro que chegou at ns o livro de Daniel ,at cerca de 250 da nossa era, data aproximativa doCarmen de Comodiano,Renanno conta menosde 15 Apocalipses clssicos chegados at ns, semfalar das imitaes ulteriores. (CitoRenanporque oseu livro o mais acessvel e o mais conhecido forados crculos dos especialistas.) Foi uma poca emque, em Roma e na Grcia, e muito mais ainda na

    sia Menor, na Sria e no Egito, uma misturaabsolutamente casual das mais crassas superstiesdos mais diversos povos era aceita sem exame ecompletada por piedosas fraudes e por umcharlatanismo direto, em que os milagres, osxtases, as vises, a adivinhao, a alquimia, acabala e outras bruxarias ocultas ocupavam oprimeiro lugar. Foi nessa atmosfera que o

    cristianismo primitivo nasceu, e ainda numa classemais do que qualquer outra acessvel a essasquimeras. Assim, os gnsticos cristos do Egito,como o provam, entre outras coisas, o papiro deLeyde, dedicaram-se, no sculo II da poca crist,fortemente alquimia, e incorporaram noes dealquimia nas suas doutrinas. E os mathe maticicaldeus e judeus que, segundoTcito, foram porduas vezes, sob Cludio e ainda sob Vittelius,expulsos de Roma por magia, as nicas astciasde geometria a que se dedicavam eram aquelas queencontraremos em pleno no Apocalipse de Joo.

    A isto acrescenta-se que todos os apocalipsesse julgam no direito de enganar os seus leitores. Nos so, geralmente, escritos por outras pessoas na

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    http://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/bauer-b.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/c/constantino.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/bauer-b.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/bauer-b.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/bauer-b.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/bauer-b.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/bauer-b.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/bauer-b.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/r/renan.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/r/renan.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/t/tacito_publio.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/bauer-b.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/c/constantino.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/bauer-b.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/bauer-b.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/bauer-b.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/bauer-b.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/bauer-b.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/bauer-b.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/r/renan.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/r/renan.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/t/tacito_publio.htm
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    maioria mais recentes diferentes dos pretensosautores, por exemplo o livro de Daniel, o livro deEnoch, os Apocalipses de Esdras, de Baruch, de

    Juda etc., os livros sibilinos, como no fundo noprofetizam seno coisas conhecidas h muito tempoe perfeitamente conhecidas do verdadeiro autor. Foi

    assim que no ano de 164, pouco tempo antes damorte de Antiochus Epifano, o autor do livro deDaniel, que era suposto viver na poca deNabucodonosor, fez predizer a Daniel a subida e odeclnio da hegemonia da Prsia e da Macednia, e ocomeo do Imprio mundial de Roma, para prepararos seus leitores, por essa prova dos seus donsprofticos, a aceitar a sua profecia final: que o povode Israel ultrapassar todos os seus sofrimentos eser, enfim, vitorioso. Assim, se o Apocalipse de

    Joo fosse realmente obra do autor pretendido,constituiria a nica exceo na literatura

    apocalptica.O Joo que se prope para autor era em todoo caso um homem muito considerado entre oscristos da sia Menor. O tom das cartas s seteIgrejas disso garantia. Poderia pois admitir-se quefosse o apstolo Joo cuja existncia histrica, seno absolutamente atestada, pelo menos muitopossvel. E se esse apstolo fosse efetivamente oautor, no se poderia pretender melhor para a nossatese. Seria a melhor prova de que o cristianismodesse livro o verdadeiro cristianismo primitivo.Est provado, diga-se de passagem, que oApocalipse no do mesmo autor do Evangelho oudas trs Epstolas atribudas a Joo.

    O Apocalipse compe-se de uma srie devises. Na primeira, o Cristo aparece, vestido depadre, caminhando entre sete castiais de ouro, querepresentam as sete Igrejas da sia e dita a Joocartas aos sete anjos dessas Igrejas da sia. Desdeo incio, a diferena manifesta-se gritante entre estecristianismo e a religio universaldeConstantinoformulada pelo conclio de Nicia. A

    Trindade no s desconhecida como constitui umaimpossibilidade. No lugar do EspritoSanto,nicoulterior, encontramos os sete espritos

    de Deus extrados pelos rabinos de Isaas, XI, dois;Jesus Cristo o filho de Deus, o primeiro e o ltimo,o alfa e o mega, mas de modo nenhum Deus ouigual a Deus: pelo contrrio, ele o comeo dacriao de Deus, portanto uma emanao de Deusexistente de toda a eternidade, mas subordinada,anloga aos sete espritos acima mencionados. Nocaptulo XV, 3, os mrtires, no cu, cantam ocntico de Moiss, o servidor de Deus, e o cntico docordeiro para a glorificao de Deus. Jesus Cristoaparece, pois, aqui, no somente como subordinadoa Deus, mas, de certa maneira, colocado no mesmo

    plano que Moiss. Jesus Cristo foi crucificado emJerusalm (XI, 8), mas ressuscitou (1, 5, 18); ocordeiro que foi sacrificado pelos pecados do

    mundo e com o sangue do qual os fiis de todos ospovos e de todas as lnguas so perdoados por Deus.Encontramos aqui a concepo fundamental quepermitiu ao cristianismo realizar-se como religiouniversal. A noo de que os deuses, ofendidos pelasaes dos homens, podiam ser acalmados por

    sacrifcios, era uma idia comum a todas as religiesdos Semitas e dos Europeus; a primeira idiarevolucionria fundamental do cristianismo (extradada escola de Philon) era que, pelo nico grandesacrifcio voluntrio de um mediador, os pecados detodos os tempos de todos os homens eram expiadosde uma vez para sempre. . . para os fiis. De talmodo que desaparecia a necessidade de qualquersacrifcio ulterior e, portanto, a base de numerosascerimnias religiosas. Ora, a libertao decerimnias que entravavam ou proibiam o comrciocom homens de crenas diferentes era a condio

    primeira de uma religio universal. E, contudo, ohbito dos sacrifcios estava to enraizado noshbitos populares que o catolicismo que retomoutantos costumes pagos julgou til consider-lo,introduzindo pelo menos o simblico sacrifcio damissa. Por outro lado, nenhum vestgio, no nossolivro, do dogma do pecado original.

    O que sobretudo caracteriza estas cartas, bemcomo o livro inteiro, que nunca, nem em partealguma, vem idia do autor designar-se, a ele e aosseus correligionrios, de outra maneira senocomo. . . Judeus. Aos sectrios de Esmirna e deFiladlfia, contra os quais se ergue, ele acusa: Elesdizem-se Judeus, mas no o so, pertencem sim auma sinagoga de Sat; e, dos de Prgamo, diz:

    Esto ligados a Balaam, queensinava a Balak a criar toda aespcie de dificuldades aos filhos deIsrael, para que eles comessemcarnes sacrificadas aos dolos epara que se dedicassem impudcia.

    No encontramos, pois, aqui, cristosconscientes, mas pessoas que se consideram

    Judeus: o seu judasmo, sem dvida, uma novafase do desenvolvimento do antigo: precisamentepor isso que o nico verdadeiro. por isso que,quando da apario dos santos diante do trono deDeus, vm em primeiro lugar 144.000 Judeus,12.000 de cada tribo, s depois a inumervelmultido de pagos convertidos a esse judasmorenovado. O nosso autor, no ano 69 da nossa era,estava bem longe de pensar que representava umafase completamente nova da evoluo religiosa,destinada a tornar-se um dos elementos maisrevolucionrios na histria do esprito humano.

    Vemos, pois, que o cristianismo de ento, queno tinha ainda conscincia de si, estava a millguas da religio universal, dogmaticamente

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    desenhada pelo conclio de Nicia; impossvelreconhecer esse nesta. Nem a dogmtica, nem atica do cristianismo ulterior, se encontram; emcompensao, h o sentimento de que se est emluta com toda a gente e se sair vencedor dessa luta;um ardor belicoso e uma certeza de vencer que

    desapareceram completamente nos cristos dosnossos dias e no se reencontra seno no outro ploda sociedade, entre os socialistas.

    De fato, a luta contra um mundo queinicialmente levou a melhor e a luta simultnea dosinovadores entre si so comuns aos dois; aoscristos primitivos e aos socialistas. Os dois grandesmovimentos no so feitos por chefes e profetas ainda que os profetas no faltem, quer num, quer nooutro , so movimentos de massas. E todo omovimento de massas no comeo necessariamenteconfuso; confuso porque todo o pensamento de

    massas se move, primeiro, em contradies, porquelhe falta clareza e coerncia; confuso aindaprecisamente por causa do papel que, nos comeos,nele desempenham os profetas. Esta confusomanifesta-se na formao de numerosas seitas quese combatem entre si pelo menos com tantoempenho como o que dedicam ao comum inimigoexterior. Isto passava-se assim no cristianismoprimitivo; passa-se da mesma maneira nos comeosdo movimento socialista, por mais aflitivo que issoseja para as honestas pessoas bem intencionadasque pregavam a unio, quando a unio no erapossvel.

    Ser que, por exemplo, a coeso daInternacional era devida a um dogma unitrio? Deforma nenhuma. Encontravam-se l comunistassegundo a tradio francesa anterior a 1848, que,por sua vez, representavam cambiantes diferentes;comunistas da escola deWeittling; outros aindapertencendo liga regenerada doscomunistas;proudhonianos, que eram o elementopreponderante na Frana e na Blgica;blanquistas;o Partido Operrio Alemo; enfim,anarquistasbakouninistas,que, por momentos,dominaram na Espanha e na Itlia; e estes eram s

    os grupos principais. A partir da fundao daInternacional, foi preciso um bom quarto de sculopara que se efetuasse definitivamente e por todo olado a separao com os anarquistas, e seestabelecesse um acordo pelo menos acerca dospontos de vista econmicos mais genricos. E issocom os nossos meios de comunicao, os caminhosde ferro, os telgrafos, as monstruosas cidadesindustriais, a imprensa e as reunies popularesorganizadas.

    A mesma diviso em inumerveis seitas entreos primeiros cristos, diviso que era justamente o

    meio de organizar a discusso e de obter a unidadeulterior. Constatamo-la j nesse livro,indubitavelmente o mais antigo documento cristo, e

    o nosso autor condena-a com a mesma atitudeimplacvel que emprega em relao ao mundo dospecadores no cristos. Eis primeiro os Nicolaites,em feso, em Prgamo; aqueles que se dizem Judeusmas que so a sinagoga de Sat, em Esmirna eFiladlfia; os aderentes da doutrina do falso profeta,

    chamado Balaam em Prgamo; aqueles que dizemser profetas mas que no o so, em feso; enfim ospartidrios da falsa profetisa, chamada Jezabel, em

    Titira. Nada de mais preciso nos dito acercadestas seitas; s dos sucessores de Balaam e de

    Jezabel se diz que comem carne sacrificada aosdolos e que se entregam impudcia.

    Tentou-se imaginar que essas cinco seitaseram de cristos paulinianos e todas essas cartascomo sendo dirigidas contra Paulo, o falso apstolo,o pretenso Balaam e Nicolas. Os argumentos, alisdificilmente sustentveis, encontram-se reunidos

    emRenan. So Paulo (Paris, 1869, pginas 303-305-367-370). Todos acabam por explicar as nossascartas pelos Atos dos Apstolos e pelas Epstolasditas de Paulo, escritos que, pelo menos na suaredao atual, so sessenta anos posteriores aoApocalipse e cujos dados a elas relativos so, pois,mais que duvidosos e que, alm disso, secontradizem absolutamente entre si. Mas o queresolve a questo que de modo algum o nossoautor se lembraria de dar a uma nica e mesmaseita cinco designaes diferentes: duas s para a defeso (falsos apstolos e nicolaites), duas igualmentepara Prgamo (os balaamitas e os nicolaites), e aindadesignando-as expressamente em cada caso comoduas seitas diferentes. Contudo, ns no pensamosnegar que entre essas seitas se pudessem encontrarelementos que hoje se considerariam como seitaspaulinianas.

    Nos dois passos em que se entra empormenores, a acusao limita-se ao consumo decarnes sacrificadas aos dolos e impudcia, os doispontos sobre os quais os Judeus tanto os antigoscomo os Judeus cristos estavam em perptuadisputa com os pagos convertidos. Carne oriundados sacrifcios pagos era no s servida nos festins,

    em que recusar os pratos apresentados poderiaparecer incoveniente e at perigoso, mas era tambm

    vendida nos mercados pblicos, em que no erapraticamente possvel distinguir se era Koscher ouno. Por impudcia, os mesmos Judeus noentendiam apenas o comrcio sexual fora docasamento, mas tambm o casamento entreparentes de graus proibidos pela lei judaica, ouainda entre Judeus e pagos, e este o significadoque geralmente dado palavra nos Atos dos

    Apstolos (XV, 20 e 29). Mas o nosso Joo tem umaopinio prpria mesmo no que dizia respeito ao

    comrcio sexual entre os Judeus ortodoxos. Ele diz(XIC, 4) dos 144.000 Judeus celestes: So aquelesque no se mancharam com mulheres, porque so

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    http://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/w/weitling.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/p/proudhon.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/blanquismo.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/bakunine.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/r/renan.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/w/weitling.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/p/proudhon.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/blanquismo.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/bakunine.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/r/renan.htm
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    virgens. E, de fato, no cu do nosso Joo no existeuma nica mulher. Ele pertencia, pois, a essatendncia que se manifesta igualmente noutrosescritos do cristianismo primitivo e considera pecadoo comrcio sexual em geral. Se, alm disso,considerarmos o fato de ele chamar a Roma a grande

    prostituda, com a qual os reis da Terra seentregaram impudcia e foram embriagados pelo

    vinho da sua impudcia e os seus mercadoresenriqueceram pelo poder do seu luxo , -nosimpossvel considerar a palavra, nas cartas, nosentido estrito que a apologtica teolgica lhe queriaatribuir, com o nico fito de extrair umaconfirmao para outras passagens do Novo

    Testamento. Muito pelo contrrio. Essas passagensdas cartas indicam claramente um fenmenocomum a todas as pocas profundamenteperturbadas, isto , que, ao mesmo tempo que se

    abalam todas as barreiras, procura-se relaxar oslimites tradicionais do comrcio sexual. Nosprimeiros sculos cristos, igualmente, ao lado doascetismo que mortifica a carne, manifesta-semuitas vezes a tendncia para estender a liberdadecrist s relaes, mais ou menos livres, entrehomens e mulheres. A mesma coisa aconteceu nomovimento socialista moderno.

    Que santa indignao no provocou, depois de1830, na Alemanha de ento essa piedosanursery, como lhe chamaHeine areabilitao dacarneso-simoniana! As mais intensamenteindignadas foram as ordens aristocrticas quedominavam na poca (nessa poca no havia aindaclasses entre ns) e que, tanto em Berlim como nassuas propriedades de campo, no sabiam viver semuma reabilitao sempre reiterada da sua carne.Que diriam essas boas pessoas se tivessemconhecidoFourier, que oferece para a carne aperspectiva de muito mais alegrias!

    Uma vez ultrapassado o utopismo, essasextravagncias cederam lugar a noes maisracionais e, na realidade, bem mais radicais, e,desde que a Alemanha, da piedosa nurserydeHeineque era, se tornou o centro do movimento

    socialista, toda a gente se ri da indignao hipcritado piedoso mundo aristocrtico.

    tudo, quanto ao contedo dogmtico dascartas. Quanto ao resto, elas excitam os camaradas propaganda enrgica, orgulhosa e corajosaconfisso da sua f face aos adversrios, luta semtrguas contra o inimigo de fora e de dentro; e, sobesse aspecto, elas poderiam tambm ter sidoescritas por um entusiasta da Internacional, pormenos profeta que ele fosse.

    III

    As cartas so apenas a introduo aoverdadeiro tema da comunicao do nosso Joo s

    sete Igrejas da sia Menor e, atravs delas, a toda acomunidade judaica reformada do ano 69, donde,mais tarde, saiu a cristandade. E ento entramos nosanturio mais ntimo do cristianismo primitivo.

    Entre que tipo de gente se recrutavam osprimeiros cristos? Principalmente entre os

    laboriosos e os fatigados, pertencendo s maisbaixas camadas do povo; tal como convm a umelemento revolucionrio. E de quem se compunhamessas camadas? Nas cidades, de homens livresdecadentes gente de toda a espcie, semelhantesaos mean whites dos Estados esclavagistas do Sul,aos aventureiros e aos vagabundos europeus dascidades martimas coloniais e chinesas, depois delibertos e sobretudo de escravos; noslatifundiadaItlia, da Siclia e da frica, de escravos; nosdistritos rurais das provncias, de pequenoscamponeses cada vez mais dependentes pelas suas

    dvidas. No existia de modo algum uma via deemancipao comum para tantos elementosdiversos. Para todos, o paraso perdido situava-se nopassado; para o homem livre desiludido, era apolis, cidade e Estado ao mesmo tempo, de quemos seus antepassados haviam sido outrora cidadoslivres; para os escravos prisioneiros de guerra, a erada liberdade antes da sujeio e do cativeiro; para opequeno campons, a sociedade gentlica e acomunidade do solo destrudas. Tudo isso, a mo deferro niveladora do Romano conquistador haviadeitado abaixo. O agrupamento social maisconsistente que a Antigidade tinha sabido criar eraa tribo e a confederao de tribos aparentadas,agrupamento baseado, entre os Brbaros, nas linhasde consaginidade, entre os Gregos e os Italiotas,fundadores de cidades, sobre a polis, quecompreendia uma ou vrias tribos aparentadas.Filipe e Alexandre deram pennsula helnica aunidade poltica, mas dela no resultou a formaode uma nao grega. As naes s se tornarampossveis depois da queda do Imprio Romano. Esteps termo, de uma vez para sempre, aos pequenosagrupamentos; a fora militar, a jurisdio romana,o aparelho de percepo de impostos, deslocaram

    completamente a organizao interior tradicional. perda da independncia e da organizao originalacrescentou-se a pilhagem pelas autoridades civis emilitares, que comeavam por despojar os vencidosdos seus tesouros para depois lhes emprestarem denovo com taxas de usura, para que eles pudessempagar novas exaes. O peso dos impostos e anecessidade de dinheiro que da resultava, emregies em que a economia natural reinavaexclusivamente ou de maneira preponderante,colocava cada vez mais os camponeses nadependncia dos usurrios, introduzindo uma

    grande desproporo de fortuna. Enriquecia os ricose empobrecia completamente os pobres. E toda aresistncia das pequenas tribos isoladas ou das

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    http://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/h/heine_heinrich.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/f/fourier.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/h/heine_heinrich.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/h/heine_heinrich.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/f/fourier.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/h/heine_heinrich.htm
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    cidades ao gigantesco poder de Roma era semesperana. Que remdio para isso, que refgio paraos vencidos, os oprimidos, os empobrecidos, quesada comum para esses grupos humanos diversos,de interesses divergentes ou mesmo opostos? Eracontudo preciso encontrar uma, era preciso que um

    nico grande movimento revolucionrio osenvolvesse a todos.

    Essa sada encontrou-se; mas no nestemundo. E, no estado de coisas de ento, s a religiopodia proporcion-la. Descobriu-se um novo mundo.

    A existncia da alma depois da morte do corpotinha-se tornado, pouco a pouco, um artigo de freconhecido em todo o mundo romano. Alm disso,um modo de sofrimento e de recompensa para aalma do morto, segundo as aes cometidas em vida,era por toda a parte progressivamente admitido.Quando s recompensas, na verdade, isso soava um

    pouco falso; a Antigidade era demasiadoespontaneamente materialista para no considerarinfinitamente mais preciosa a vida real do que a vidano reino das sombras; para os Gregos, aimortalidade era mesmo considerada umainfelicidade. Apareceu o cristianismo, que levou asrio os sofrimentos e as recompensas no outromundo e criou o cu e o inferno; assim estavaencontrada a via por onde conduzir os laboriosos eos desiludidos deste vale de lgrimas para o parasoeterno. De fato, era preciso a esperana de umarecompensa no Alm para conseguir elevar arenncia ao mundo e o ascetismo da escola esticade Philon categoria de princpio tico fundamentalde uma nova religio universal, capaz de arrastar asmassas oprimidas.

    Contudo, a morte no abre de imediato esseparaso celeste aos fiis. Veremos que o reino deDeus, de que a nova Jerusalm a capital, no seconquista nem se abre seno depois de ardenteslutas contra as potncias infernais. Ora, osprimeiros cristos consideravam essas lutas comoiminentes. Desde o comeo, o nosso Joo designa oseu livro como a revelao de coisas quedevemacontecerem breve; pouco depois, no

    versculo trs, ele diz: Feliz aquele que l e aquelesque escutam as palavras da profecia, porque o tempoest prximo; comunidade de Filadlfia, JesusCristo faz escrever: Virei em breve, e, no ltimocaptulo, o anjo diz que revelou a Joo as coisas quedevemacontecerem breve e ordena-lhe: No selesas palavras da profecia deste livro, porque o tempoest prximo, e Jesus Cristo diz por duas vezes,

    versculos 12 e 30: Virei em breve. Veremos emseguida quanto essa vinda era esperada para breve.

    As vises apocalpticas que o autor faz passarsob os nossos olhos so todas, e quase sempre

    palavra por palavra, extradas de modelos anteriores.Em parte dos profetas clssicos do Antigo

    Testamento, sobretudo de Ezequiel, em parte dos

    apocalipses judaicos posteriores, compostos segundoo prottipo do livro de Daniel, e sobretudo do livro deEnoch, j redigido, pelo menos em parte, nessapoca. Os crticos j demonstraram, at os mnimosdetalhes, de onde o nosso Joo tirou cada imagem,cada prognstico sinistro, cada chaga inflligida

    humanidade incrdula, em suma, o conjunto demateriais do seu livro; de forma que ele manifestauma pobreza de esprito pouco comum, mas ainda o prprio a proporcionar-nos a prova de que, as suaspretensas vises e xtases, ele no as viveu, nemmesmo em imaginao, tal como as descreve.

    Eis, em algumas palavras, a marcha dasaparies. Primeiro, Joo v Deus sentado sobre oseu trono, um livro selado com sete selos na mo;diante dele est o cordeiro (Jesus) degolado, mas denovo vivo, que considerado digno de abrir os selos.

    A abertura dos selos acompanhada de toda a

    espcie de sinais e de prodgios ameaadores. Aoquinto selo Joo apercebe, sob o altar de Deus, asalmas dos mrtires de Cristo que foram mortos porcausa da palavra de Deus:

    Eles gritaram com voz forte:At quando, mestre santo evenervel, continuars a adiar ojulgamento e a vingana do nossosangue sobre os habitantes daterra?

    Nesta altura, dada a cada um uma vestebranca e dizem-lhes que esperem ainda um poucoat que esteja completo o nmero de mrtires quedevem morrer. Ainda ento no se fala da religiodo amor, do amai aqueles que vos odeiam,abenoai os que vos maldizem etc. . . . Aqui prega-se abertamente a vingana, a s, a honesta vinganaa exercer sobre os perseguidores dos cristos. Issoprolonga-se ao longo de todo o livro. Quanto mais seaproxima a crise, mais as chagas e os julgamentoschovem densamente do cu, e mais o nosso Joosente alegria ao anunciar que a maioria dos homenscontinua a no se arrepender e a recusar fazerpenitncia pelos seus pecados; que novos flagelos de

    Deus devem cair sobre eles; que Cristo deve govern-los com uma vara de ferro e pisar o vinho no lagarda clera de Deus todo poderoso; mas que, apesarde tudo, os maus continuam a ter o coraoendurecido. o sentimento natural, afastado detoda a hipocrisia, de que se est em luta, e que naguerra como na guerra. Na abertura do stimo selo,aparecem sete anjos com trombetas: sempre que umanjo toca a trombeta, produzem-se novos sinais deterror. Depois do stimo toque de trombeta, setenovos anjos surgem em cena trazendo as setecleras de Deus, que so lanadas sobre a terra, e

    de novo chovem flagelos e julgamentos, no essencialuma fatigante repetio do que j acontecerainmeras vezes. Depois, surge a mulher, Babilnia, a

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    grande prostituda, vestida de prpura e deescarlate, sentada sobre as guas, bbada do sanguedos santos e do sangue dos mrtires de Jesus; agrande cidade sobre as sete colinas que tem arealeza sobre os reis da terra. Est sentada sobreum animal que tem sete cabeas e dez cornos. As

    sete cabeas so sete montanhas, so tambm setereis. Desses reis, cinco passaram; um existe, ostimo vir, e, depois dele, um dos cinco primeiros

    voltar, o qual estava ferido de morte mas curou-se.Este reinar sobre a terra quarenta e dois meses outrs anos e meio (a metade de uma semana de anosde sete anos), perseguir os fiis at a morte e fartriunfar a impiedade. Em seguida, trava-se umagrande batalha decisiva, os santos e os mrtires so

    vingados pela destruio da grande prostitutaBabilnia e todos os seus partidrios, quer dizer, agrande maioria dos homens; o diabo precipitado

    no abismo e a agrilhoado durante mil anos,durante os quais reina Cristo com os mrtiresressuscitados. Quando os mil anos tiverem sidocumpridos, o diabo libertado: segue-se uma ltima

    batalha dos espritos na qual ele definitivamentevencido. H uma segunda ressurreio, os restantesmortos ressuscitam e comparecem diante do tronode Deus (no do de Cristo, reparem bem) e os fiisentram num novo cu, numa nova Terra e numanova Jerusalm para a vida eterna. Tal como todaesta construo erguida com materiais quaseexclusivamente judeus e pr-cristos, tambm incluiquase exclusivamente concepes puramente

    judaicas. Desde que as coisas comearam a corrermal para o povo de Israel, a partir do momento emque ficou tributrio da Assria e da Babilnia, desdea destruio dos dois reinos de Israel e de Jud, at sua submisso pelos Seleucidas, isto , de Isaasat Daniel, sempre existiu, nas horas daadversidade, a profecia de um salvador providencial.No captulo XII, I, de Daniel encontra-se a profeciada descida de Miguel, o anjo-da-guarda dos Judeus,que os libertar da sua grande angstia: Muitosmortos ressuscitaro; haver uma espcie de

    julgamento final e aqueles que ensinaram a justia

    multido brilharo como estrelas, para sempre eperpetuamente. De cristo, apenas a forma como seinsiste na iminncia do reino de Jesus Cristo e nafelicidade dos fiis ressuscitados, particularmentedos mrtires.

    crtica alem, e sobretudo a Ewald, Luckee Ferdinand Benary que devemos a interpretaodesta profecia, no que respeita aos acontecimentosda poca. Graas aRenan,ela penetrou noutrosmeios para l dos crculos teolgicos. A grandeprostituda, Babilnia, significa, como vimos, acidade das sete colinas, Roma. Do animal sobre o

    qual ela est sentada, diz-se, XVII, nove, 11:As sete cabeas so sete

    montanhas sobre as quais a mulher

    est sentada. So tambm sete reis:cinco caram, um existe, o outroainda no veio, e, quando vier, ficarpouco tempo. E o animal que estava,e que j no est, um oitavo rei, epertence ao nmero dos sete, e

    caminha para a perdio.

    O animal , pois, a dominao mundial deRoma, representada sucessivamente por seteimperadores, um dos quais foi ferido de morte edeixou de reinar, mas que se curou, e voltar, paracumprir, como oitavo rei, o reino da blasfmia e darebelio contra Deus.

    E foi-lhe ordenado que fizessea guerra aos santos e os vencesse. Efoi-lhe dada autoridade sobre todasas tribos, todos os povos, todas as

    lnguas e todas as naes, e todosos habitantes da Terra o adoraro,aqueles cujo nome no foi escritodesde a fundao do mundo no livroda vida do cordeiro que foi imolado.E ela fez com que todos, pequenos egrandes, ricos e pobres, livres eescravos, recebessem uma marcasobre a mo direita ou sobre a frontee com que ningum pudesse comprarou vender sem ter a marca, o nomedo animal ou o nmero do seu nome.

    esta a sabedoria. Que quem teminteligncia calcule o nmero doanimal. Porque um nmero dehomem e o seu nmero 666 (XIII,sete-18).

    Constatemos apenas que o boicote mencionado aqui como uma medida a empregar pelopoderio romano contra os cristos que ele , pois,manifestamente uma inveno do diabo epassemos questo de sabermos quem esseimperador romano que j reinou, que foi ferido demorte e que volta como o oitavo da srie para ser o

    Anticristo.Depois deAugusto, o primeiro, temos: dois,

    Tibrio; trs,Calgula;quatro, Cludio; cinco,Nero;seis, Galba. Cinco caram, um existe. PortantoNero j caiu. Galba existe. Galba reinou de 9 de

    junho de 68 at 15 de janeiro de 69. Mas, assim queele subiu ao trono, as legies do Reno sublevaram-sesob Vitellius, enquanto, noutras provncias, outrosgenerais preparavam levantamentos militares.Mesmo em Roma, os pretorianos sublevaram-se,mataram Galba e proclamaram Oto imperador.

    Daqui resulta que o nosso Apocalipse foi

    escrito sob Galba, naturalmente para o fim do seureinado, ou mais tarde, durante os trs meses (at

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    http://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/r/renan.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/a/augusto_imperador.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/c/caligula.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/n/nero.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/r/renan.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/a/augusto_imperador.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/c/caligula.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/n/nero.htm
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    15 de abril de 69) do reinado de Oto, o stimo. Masquem o oitavo, que foi e no ? O nmero 666 achave.

    Entre os Semitas os Caldeus e os Judeus desta poca, uma arte mgica estava em voga,baseada num duplo significado das letras. Desde

    cerca de trezentos anos antes da nossa era, as letrashebraicas eram tambm empregues como nmeros:a=1, b=2, c=3, d=4, e assim sucessivamente. Ora, osadivinhos cabalistas adicionavam os valoresnumricos das letras de um nome, e com a ajuda dasoma dos algarismos obtida, por exemplo formandopalavras ou combinaes de palavras de um igual

    valor numrico que permitiam extrair conclusessobre o futuro de quem tinha o nome, procuravamfazer profecias. De forma idntica exprimiam-sepalavras secretas nessa lngua numrica. Dava-se aesta arte um nome grego, ghematriah, geometria;

    os Caldeus, que a exerciam como profisso, e aquemTcitochamava mathemaci, foram expulsosde Roma sob Cludio, e de novo sob Vitellius,provavelmente por delito grave.

    Foi precisamente por meio desta matemticaque foi produzido o nmero 666. Por detrs dele,esconde-se o nome de um dos primeiros cincoimperadores romanos. Ora, Ireneu, no fim do sculoII, alm do nmero 666, conhecia a variante 616,que datava tambm de uma poca em que o enigmados algarismos era ainda conhecido. Se a soluoresponder igualmente aos dois nmeros, a provaest feita.

    Ferdinand Bernary, em Berlim, encontrouessa soluo. O nome Nero. O nmerofundamenta-se em Neron Kesar, a transcriohebraica como o atestam o Talmude e asinscries palmirianas do grego Nrn Kaisar,Nero imperador, que tinha, como legenda, a moedade Nero, cunhada nas provncias do Leste doImprio. Assim: n (nun)=50; r(resch)=200; v(vau) por0=6; n(nun)=50; k(koph)=100; s(samech)=60; er(resch)=200; total=666. Ora, tomando como base aforma latina, Nero Caesar o segundo n(nun)=50suprime-se, e obtemos 666-50=616, a variante de

    Ireneu.Efetivamente, todo o Imprio Romano, no

    tempo de Galba, vivia em plena confuso. O prprioGalba, chefiando as legies de Espanha e da Glia,marchara sobre Roma para expulsar Nero; este fugiue fez-se matar por um liberto. Mas, contra Galba,no s os pretorianos em Roma mas tambm oscomandantes das provncias conspiravam; por todoo lado surgiram pretendentes ao trono, preparando-se para avanar sobre a capital com as suas legies.O Imprio parecia ter cado numa guerra intestina; asua queda parecia iminente. Para cmulo, espalhou-

    se o boato, sobretudo no Oriente, de que Nero noestava morto, mas apenas ferido, que estavarefugiado entre os Partas, que atravessaria o

    Eufrates e surgiria com uma fora armada parainaugurar um novo reino de terror ainda maissangrento. Sobretudo a Acaia e a sia foramalarmadas com essas notcias. E, precisamente nomomento em que o Apocalipse deve tersidocomposto,apareceu um falso Nero que se

    estabeleceu com um partido bastante numeroso nailha de Citnos (a Trmia moderna), no mar Egeu,perto de Patmos e da sia Menor, at que foi mortosob Oto. Nada de espantoso que entre os cristos,contra quem Nero lanara as primeiras grandesperseguies, se tenha propagado o boato de que elehavia de voltar como Anticristo, que o seu regresso

    bem como uma nova e mais sria tentativa deexterminao sangrenta da jovem seita seriam opressgio e o preldio de Cristo, da grande batalha

    vitoriosa contra as potncias do inferno, do reino dosmil anos a estabelecer em breve e cuja chegada

    certa permitia aos mrtires irem alegremente para amorte.A literatura crist e de inspirao crist dos

    dois primeiros sculos garante, com ndicessuficientes, que o segredo do nmero 666 entoconhecido de muitos. Ireneu de certeza que j o noconhecia, mas, por outro lado, sabia, como muitosoutros at fins do sculo II, que o animal doApocalipse era Nero voltando. Depois, este ltimotrao perdeu-se e o nosso Apocalipse caiu empoder da interpretao fantstica dos adivinhosortodoxos; eu prprio ainda conheci pessoas idosasque, segundo os clculos do velho Johnn AlbrechtBengel, esperavam o fim do mundo e o ltimo

    julgamento para o ano de 1836; a profecia realizou-se na data anunciada. S que o julgamento noatingiu o mundo dos pecadores, mas antes ospiedosos intrpretes do Apocalipse. Porque, nesseano de 1836, F. Bernary forneceu a chave donmero 666 e ps assim termo a todo esse clculodivinatrio, a essa nova ghemetriah.

    Do reino celeste reservado aos fiis, o nossoJoo apenas nos fornece uma descrio muitosuperficial. Para a poca, a nova Jerusalm construda segundo um plano bastante grandioso:

    um quadrado de 12.000 estdios de lado=2227quilmetros, portanto uma superfcie de cerca de 5milhes de quilmetros quadrados, mais do quemetade dos Estados Unidos da Amrica, construdaunicamente em ouro e pedras preciosas. A, Deushabita no meio dos seus e ilumina-os, substituindoo Sol; no h j nem morte, nem lamentos, nemsofrimentos; um rio de gua viva corre atravs dacidade, nas suas margens cresce a rvore da vidaproduzindo doze vezes os seus frutos, dando frutotodos os meses, e as folhas das rvores servem paraa cura dos gentis ( maneira de um ch medicinal,

    segundoRenan: O Anticristo, p. 542). A vivem ossantos nos sculos dos sculos.

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    http://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/t/tacito_publio.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/r/renan.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/t/tacito_publio.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/r/renan.htm
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    Era assim que se construa o cristianismo nasia Menor, o seu primeiro centro, por volta do anode 68, segundo o que conhecemos. Nenhum indciode uma Trindade; em seu lugar, o velho Jeov, uno eindivisvel, do judasmo decadente, que, de Deusnacional judeu, se elevou categoria de Deus nico;

    Deus supremo do cu e da terra onde pretendereinar sobre todos os povos, prometendo a graa aosconvertidos e exterminando os rebeldes semmisericrdia, nisso fiel ao antigo parcere subjectisac debellare superbos. Tambm esse Deus quepreside o ltimo julgamento, e no Jesus Cristo,como nas narrativas ulteriores dos Evangelhos e dasEpstolas. Conforme doutrina persa da emanao,familiar ao judasmo decadente, o Cristo ocordeiro, emanado de Deus de toda a eternidade; talcomo, embora ocupando um lugar muito inferior, ossete espritos de Deus que devem a sua existncia

    a uma passagem potica mal compreendida (Isaas,XI, dois). Nenhum deles Deus ou igual a Deus,mas submetido a ele. O cordeiro oferece-se de suaplena vontade como sacrifcio expiatrio pelospecados do mundo, e por esse alto feito v-seexpressamente promovido em grau no cu; em todoo livro esse sacrifcio voluntrio contado como umato extraordinrio e no como uma ao oriundanecessariamente do mais profundo do seu ser.

    evidente que toda a corte celeste dosantigos, dos querubins, dos anjos e dos santos nofalta. Para se constituir em religio, o monotesmosempre teve de fazer concesses ao politesmo,datando do Zendavesta. Entre os Judeus, a recadapara os deuses pagos e sensuais persiste em estadocrnico at que, depois do exlio, a corte celeste, maneira persa, acomoda um pouco melhor a religio imaginao popular. O prprio cristianismo,mesmo depois de ter substitudo o Deus dos Judeuseternamente imutvel pelo misterioso Deustrinitrio, diferenciado em si mesmo, no conseguiusuplantar o culto dos antigos deuses entre asmassas seno pelo culto dos santos. Assim, segundoFallmerayer, o culto de Jpiter persistiu noPeloponeso, na Maina, na Arcdia, at cerca do

    sculo IX. E s a poca moderna e o seuprotestantismo afastam os santos e encaram, enfim,seriamente, o monotesmo diferenciado.

    O nosso Apocalipse tambm no conhece odogma do pecado original nem a justificao pela f.

    A f dessas primeiras comunidades belicosas diferecompletamente da Igreja triunfante posterior; aolado do sacrifcio expiatrio do cordeiro, a prxima

    vinda de Cristo e a iminncia do reino milenarconstituem o seu contedo essencial e elamanifesta-se pela ativa propaganda, pela luta semtrguas contra o inimigo de fora e de dentro, pela

    orgulhosa confisso das suas convicesrevolucionrias diante dos juzes pagos, pelo

    martrio corajosamente suportado na certeza davitria.

    Como vimos, o autor no suspeita ainda que algo mais que Judeu. Conseqentemente, nenhumaaluso, em todo o livro, ao batismo; existem tambmnumerosos indcios de que o batismo uma

    instituio do segundo perodo cristo. Os 144.000Judeus crentes so selados, no batizados. Dossantos no cu dito: So aqueles que lavaram eembranqueceram as longas vestes no sangue docordeiro; nada acerca da gua do batismo. Os doisprofetas que precedem a apario do Anticristo (cap.

    XI) tambm no batizam e, no captulo XIX, 10, otestemunho de Jesus no o batismo mas o espritode profecia. Teria sido natural em todas estasocasies falar do batismo, por pouco que estivesse jinstitudo. Estamos pois autorizados a concluir comuma quase certeza que o nosso autor no o conhecia

    e que ele s foi introduzido quando os cristos sesepararam completamente dos Judeus.O nosso autor tambm ignorante acerca do

    segundo sacramento ulterior a eucaristia. Se notexto deLuteroo Cristo promete a todos os

    Tiasirianos que perseveraram na f a entrada na suacasa e a comunho com ele, isso constitui uma falsaabordagem do texto. Em grego l-se deipneso, eucearei (com ele), e a palavra est corretamentetraduzida na bblia inglesa: I shall sup with him. Aceia como festim comemorativo no aqui referida.

    O nosso livro, com a data (68 ou 69) atestadade maneira to particular, indubitavelmente o maisantigo da literatura crist no seu conjunto. Nenhumoutro escrito numa lngua to brbara, em queformigam os hebrasmos, as construesimpossveis, os erros gramaticais. S os telogos deprofisso, ou outros historigrafos interessados,continuam a negar que os Evangelhos e os Atos dos

    Apstolos so arranjos tardios de escritos hojeperdidos e cujo tnue ncleo histrico j no podeser descoberto sob a luxuriante lenda; mesmo astrs ou quatro Epstolas apostlicas pretensamenteautnticas deBruno Bauerno representam maisdo que escritos de uma poca posterior, ou, na

    melhor das hipteses, composies mais antigas deautores desconhecidos, retocadas e embelezadas pornumerosas adies e interpolaes. muito maisimportante para ns possuir com a nossa obra, cujoperodo de redao se estabelece com a margem deerro de um ms, um livro que nos apresenta ocristianismo sob a sua forma mais rudimentar, sob aforma em que est para a religio de Estado dosculo IV, constituda na sua dogmtica e na suamitologia pouco mais ou menos como a mitologiaainda vacilante dos Germanos deTcitoest para amitologia do Edda, plenamente elaborada sob a

    influncia de elementos cristos e antigos.O germe da religio universal encontra-se l,mas contm ainda em estado indiferenciado as mil

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    http://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/l/lutero.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/bauer-b.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/t/tacito_publio.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/l/lutero.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/bauer-b.htmhttp://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/t/tacito_publio.htm
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    possibilidades de desenvolvimento que se realizaramnas inumerveis seitas ulteriores. Se o fragmentomais antigo do processo de elaborao docristianismo tem para ns um valor muitoparticular, porque nos proporciona, na suaintegridade, o que o judasmo fortemente

    influenciado por Alexandria forneceu aocristianismo. Tudo o que posterior acrescentoocidental, greco-romano. Foi necessria a mediaoda religio judaica monotesta para fazer revestir aomonotesmo erudito da filosofia grega vulgar a formareligiosa sob a qual ele podia chegar s massas. Uma

    vez essa mediao encontrada, ele s podia tornar-seuma religio universal no mundo greco-romano,continuando a desenvolver-se para finalmente sefundir no fundo de idias que esse mundo tinhaconquistado.

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