Controle Penal Sobre Drogas Ilicitas- Boiteux

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LUCIANA BOITEUX DE FIGUEIREDO RODRIGUES

CONTROLE PENAL SOBRE AS DROGAS ILCITAS: O IMPACTO DO PROIBICIONISMO NO SISTEMA PENAL E NA SOCIEDADE

TESE DE DOUTORADO ORIENTADOR: PROF. DR. SERGIO SALOMO SHECAIRA

UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE DIREITO SO PAULO 2006

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LUCIANA BOITEUX DE FIGUEIREDO RODRIGUES

Controle penal sobre as drogas ilcitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade

Tese apresentada ao Departamento de Direito Penal, Medicina Legal e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Doutor em Direito.

Area de concentrao: Direito Penal, Medicina Legal e Criminologia. Orientador: Prof. Dr. Sergio Salomo Shecaira

So Paulo 2006

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Rodrigues, Luciana Boiteux de Figueiredo Controle penal sobre as drogas ilcitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade. / Luciana Boiteux de Figueiredo Rodrigues; orientador Prof. Dr. Sergio Salomo Shecaira -- So Paulo, 2006. 273 f. Tese ( Doutorado Programa de Ps-Graduao em Direito. rea de Concentrao: Direito Penal, Medicina Legal e Criminologia) Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo. 1. Direito Penal. 2. Poltica Criminal. 3. Sociologia Criminal. 4. Criminologia. 5.Drogas. I. Ttulo CDD 345.0277

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FOLHA DE APROVAOLuciana Boiteux de Figueiredo Rodrigues Controle penal sobre as drogas ilcitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade

Tese apresentada Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Doutor em Direito. Area de concentrao: Direito Penal, Medicina Legal e Criminologia.

Aprovado em: Banca Examinadora Prof. Dr _______________________________________________________________ Instituio________________________ Assinatura ____________________________ Prof. Dr _______________________________________________________________ Instituio________________________ Assinatura ____________________________ Prof. Dr _______________________________________________________________ Instituio________________________ Assinatura ____________________________ Prof. Dr _______________________________________________________________ Instituio________________________ Assinatura ____________________________ Prof. Dr _______________________________________________________________ Instituio________________________ Assinatura ____________________________

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Dedico este trabalho a meus pais, Sergio e Lucia, e a meus irmos, Serginho e Marcela, por tudo.

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AGRADECIMENTOS

Meus sinceros agradecimentos a todos que me ajudaram na elaborao desse trabalho, especialmente ao meu orientador, Prof. Dr. Sergio Salomo Shecaira, por todo incentivo, pacincia e crticas; aos professores e colegas da Faculdade de Direito do Largo de So Francisco, pelo convvio e aprendizado, aos companheiros de advocacia: Dr. Arthur Lavigne, Helton Marcio Pinto e Felipe Bernardo Nunes, pelo apoio e pela convivncia; aos amigos Ana Paula e Leonardo Sica, pela amizade e hospedagem em terras paulistas, Maria e ao Francisco, pela amizade e apoio, e a todos os meus amigos que me ajudaram nessa caminhada; aos meus alunos do Grupo de Pesquisa em Criminologia da UERJ pela dedicao; e aos funcionrio da Secretaria de Ps-Graduao e do Departamento de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP, por toda a ajuda.

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Se

afasto

do

meu

jardim

os

obstculos que impedem o sol e a gua de fertilizar a terra, logo surgiro plantas de cuja existncia eu sequer suspeitava. Da mesma forma, o desaparecimento do sistema punitivo estatal abrir, num convvio mais sadio e mais dinmico, os caminhos de uma nova justia Louk Hulsman, Penas Perdidas

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RESUMO

RODRIGUES, L.B.F. Controle penal sobre as drogas ilcitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade. 2006. 273 f. Tese (Doutorado em Direito) Faculdade de Direito, Universidade de So Paulo.

O estudo do controle penal sobre as drogas ilcitas tem por objetivo compreender a estratgia proibicionista de criminalizao de determinadas drogas como meio puramente simblico de proteo da sade pblica. Para tanto, investigou-se a forma pela qual esse modelo foi historicamente construdo e concretamente aplicado, e as razes que tm dificultado a adoo de alternativas de controle, apesar do fracasso da proibio. O enfoque crtico sobre o problema volta-se para o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade, como meio para se avaliar as possibilidades de superao desse paradigma. So sugeridas polticas alternativas de drogas e a reduo de danos como estratgias que devem ser adotadas pela legislao brasileira.

Palavras-chave: Direito Penal. Poltica Criminal. Sociologia Criminal. Criminologia. .Drogas.

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ABSTRACT

RODRIGUES, L.B.F. Drug penal control: the impact of prohibition on the penal system and on society. 2006. 273 f. Tese (Doutorado em Direito) Faculdade de Direito, Universidade de So Paulo

The study of penal control on illicit drugs aims at the understanding the symbolic way the drug prohibitionist strategy has been established to protect public health. For that, research conduction showed how this model has been historically built and applied, and the reason why there are difficulties in implementing alternatives of control, despite the failure of prohibition. The critical approach on the matter leads to the impact of prohibition on the penal system and society as well, as a key to evaluate possibilities for overcoming this paradigm. Alternative policies and harmful reduction measures are suggested as positive strategies to be adopted by Brazilian legislation.

Keywords: Criminal Law. Criminal Policy. Criminal Sociology. Criminology. Drugs.

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RESUM

RODRIGUES, L.B.F. Le Contrle Pnal sur les Drogues Illicites: limpact du prohibitionisme sur le systme pnal et sur la societ. 2006. 273 f. Tese (Doutorado em Direito) Faculdade de Direito, Universidade de So Paulo

Cet tude du contrle pnal sur les drogues illicites cherche comprendre la stratgie prohibitioniste de criminalisation simbolique de certaines drogues comme moyen de protection la sant publique. Lobject de la recherche a t le dit modle rpressif, la faon par laquelle il a t historiquement construit et concrtement appliqu, aussi bien que les raisons obstruant ladoption de mesures alternatives de contrle, malgr lechec de la rpression. La vision critique sur le problme tient limpact de laction rpressive sur le systme pnal et sur la societ comme instrument pour valuer les possibilits de solution cette problematique. Des sugestions pour une stratgie de politique alternative et de rduction des risques sont prsentes lintention de la legislation brsilienne.

Mots-cls: Droit pnal. Politique Criminelle. Sociologie Criminelle. Criminologie. Drogue.

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1......................................................................................................................... 185 Tabela 2......................................................................................................................... 201 Tabela 3......................................................................................................................... 207 Tabela 4......................................................................................................................... 232

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LISTA DE SIGLAS

AMB ABP CEBRID CONAD CND EMCDD EUA JEC LCH OEDT OMS ONU SISNAD UDI UNODC

Associao Mdica Brasileira Associao Brasileira de Psiquiatria Centro Brasileiro de Informao Sobre Drogas Conselho Nacional Antidrogas Comission of Narcotic Drugs European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction Estados Unidos da Amrica Juizados Especiais Criminais Leis dos Crimes Hediondos Observatrio Europeu da Droga e da Toxicodependncia Organizao Mundial de Sade Organizao das Naes Unidas Sistema Nacional Antidrogas Usurios de Drogas Injetveis United Nations Office on Drugs and Crime

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SUMRIOINTRODUO............................................................................................................. 16 CAPTULO I O Modelo Proibicionista de Controle de Drogas............................ 16 1.1 1.2 1.2.1 1.2.2 1.3 1.3.1 1.3.2 1.4 1.5 1.5.1 1.5.2 1.5.3 1.5.4 Origens Histricas ...................................................................................... 26 A Guerra do pio (1839-1842) ................................................................. 32 Antecedentes ................................................................................................ 32 A China e os interesses ingleses .................................................................. 34 Proibicionismo e Controle Internacional de Drogas............................... 37 Os primeiros tratados internacionais............................................................ 37 A Conveno das Naes Unidas de 1988 .................................................. 41 Fundamentos do Proibicionismo .............................................................. 45 O Controle de Drogas nos EUA................................................................ 48 As primeiras leis penais de drogas............................................................... 50 Bases da poltica da war on drugs ............................................................... 53 Legislao antidrogas dos EUA .................................................................. 57 Proibicionismo e controle social ................................................................ 62

CAPTULO II Modelos Alternativos e Poltica de Drogas na Europa................. 67 2.1 2.1.1 2.1.2 2.1.3 2.1.4 2.2 2.2.1 2.2.2 2.2.3 2.3.1 2.3.3.1 2.3.3.2 2.3.3.3 2.4 2.4.1 Polticas de Reduo de Danos.................................................................. 67 Definio e modalidades.............................................................................. 69 Experincias positivas.................................................................................. 73 Resposta s crticas e posio da ONU........................................................ 77 Justia teraputica: reduo de danos? ........................................................ 79 Modelos alternativos de controle de drogas ............................................ 81 A despenalizao do uso de drogas ............................................................. 82 Descriminalizao do uso de drogas............................................................ 86 Despenalizao do pequeno trfico ............................................................. 90 Legalizao Controlada ............................................................................... 91 Conceitos bsicos......................................................................................... 93 O controle sobre o usurio ........................................................................... 98 O controle sobre a produo e distribuio.................................................. 99 Poltica de drogas na Europa................................................................... 101 H uma poltica de droga europia? ....................................................... 101

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2.4.2 2.4.2.1 2.4.2.2 2.4.2.3 2.4.2.4 2.4.2.5 2.4.2.6 2.4.2.7 2.4.2.8 2.4.2.9 2.4.2.10 2.4.2.11 2.4.2.12

Controle de Drogas na Europa................................................................... 107 Alemanha ................................................................................................... 107 ustria........................................................................................................ 109 Blgica ....................................................................................................... 110 Dinamarca .................................................................................................. 112 Espanha ...................................................................................................... 113 Frana......................................................................................................... 115 Holanda ...................................................................................................... 121 Irlanda ........................................................................................................ 125 Itlia ........................................................................................................... 126 Portugal ...................................................................................................... 128 Reino Unido ............................................................................................... 131 Sua........................................................................................................... 133

CAPTULO III O controle penal de drogas no Brasil ......................................... 134 3.1 3.1.1 3.1.2 3.1.3 3.1.4 3.2 3.3 3.4 3.4.1 3.4.2 3.5 3.6 3.6.1 3.6.2 3.6.3 3.7 3.7.1 3.7.2 3.7.3 3.7.4 Histrico da legislao brasileira de drogas .......................................... 134 A legislao brasileira at 1940 ................................................................. 136 O incremento do controle penal (1964-1971)............................................ 142 O Brasil e o controle internacional de drogas (1976-1977)....................... 147 A influncia norte-americana..................................................................... 152 A Constituio de 1988 e a Lei dos Crimes Hediondos ........................ 154 Polticas de Reduo de Danos no Brasil ............................................... 164 Poltica oficial de drogas (2002-2005)..................................................... 168 O Plano Nacional Antidrogas de 2002....................................................... 169 A Poltica Nacional sobre Drogas de 2005 ................................................ 172 A despenalizao do uso pela Lei n. 10.249/01 ...................................... 174 A nova lei de txicos de 2002................................................................... 177 Antecedentes .............................................................................................. 177 Do captulo vetado ..................................................................................... 178 Disposies processuais e medidas de preveno ..................................... 182 Projetos de leis de drogas em tramitao .............................................. 184 Aspectos gerais .......................................................................................... 184 O delito de trfico de drogas nos projetos de lei........................................ 187 O porte de entorpecentes nos projetos de lei ............................................. 188 Anlise das propostas de alterao legislativa ........................................... 192

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CAPTULO IV Proibicionismo, Sistema Penal e Sociedade ............................... 194 4.1 4.1.1.1 4.1.1.2 4.1.1.3 4.1.1.4 4.2 4.2.1 4.3 4.3.1 4.3.2 4.4 4.4.1 4.4.2 4.4.3. A droga como um problema scio-econmico....................................... 195 A droga como mercadoria.......................................................................... 195 A economia da droga no Brasil.................................................................. 199 Droga e violncia ....................................................................................... 206 Droga, corrupo e lavagem de dinheiro ................................................... 212 A droga como um problema de direito penal........................................ 219 Princpios constitucionais e leis antidrogas............................................... 219 A droga como um problema penitencirio ............................................ 226 Droga e encarceramento em massa nos EUA ............................................ 226 Droga e sistema penitencirio no Brasil .................................................... 231 Crticas e alternativas ao proibicionismo .............................................. 234 Poltica de drogas e cultura do controle..................................................... 238 Perspectivas e alternativas ........................................................................ 243 Propostas alternativas para o Brasil ........................................................... 246

CONCLUSO............................................................................................................. 249 REFERNCIAS.......................................................................................................... 255

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INTRODUO O estudo do controle penal sobre as drogas ilcitas tem por objetivo compreender a estratgia proibicionista que preconiza, mediante a imposio de uma pena criminal, a proscrio de determinadas substncias, por meio da incluso destas a categoria de ilcitos. Para tanto, investigou-se a forma pela qual esse modelo foi historicamente construdo e concretamente implementado. O enfoque crtico recai sobre o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade, como meio para se avaliar as alternativas de superao desse paradigma1. Nesse contexto, deve-se levar em conta o aprofundamento das formas de controle social formal no ltimo sculo, em detrimento do controle social informal, e situar a criminalizao das drogas ilcitas dentro da estratgia penal geral da cultura do controle contempornea, analisada por David Garland2. Ao mesmo tempo, destacam-se as peculiaridades da questo da droga, e as transformaes ocorridas a partir do incio do sculo XX, quando se deu a criminalizao. A discusso sobre a proibio ou legalizao constitui questo to polmica e controvertida como a prpria definio da palavra droga, cuja origem no clara3. Como hiptese mais provvel, considera-se o termo originado do holands antigo droog, que significa folha seca, pois antigamente quase todos os medicamentos eram feitos base de vegetais. Sob o ponto de vista mdico, a Organizao Mundial de Sade a define como "qualquer entidade qumica ou mistura de entidades (outras que no aquelas necessrias para a manuteno da sade, como por exemplo, gua e oxignio), que alteram a funo biolgica e possivelmente a sua estrutura". Inclui-se tambm na definio o fato de ser capaz de modificar a funo dos organismos vivos, resultando em mudanas fisiolgicas ou de comportamento. Na linguagem comum, o termo em si possui

1 A noo de paradigma, para Thomas Kuhn, designa as realizaes cientficas que geram modelos que, por perodo mais ou menos longo, e de modo mais ou menos explcito, orientam o desenvolvimento posterior das pesquisas exclusivamente na busca da soluo para os problemas por elas suscitados; ou seja, entende-se por paradigma um conjunto de pressupostos que, aceitos sem crtica durante determinado perodo histrico, funcionam como fundamentos das concepes vigentes sobre o homem, a vida social, o ser e o conhecimento. Cf. KUHN, Thomas S. The structure of scientific revolutions. 3. ed. Chicago: University Chicago Press, 1996. 2 GARLAND, David. The culture of control: crime and social order in contemporary society. Oxford: University Press, 2001. 3 No dicionrio epistemolgico consultado, por exemplo, a origem da palavra droga considerada controversa. NASCENTES, Antenor. Dicionrio epistemolgico resumido. Rio de Janeiro: Ministrio da Educao e Cultura, 1966, p. 255.

17 significaes subjetivas, positivas e negativas4, e envolve questes morais e de valores, dificultando muito a sua compreenso. Em sentido normativo, podem ser lcitas ou ilcitas, dependendo de uma deciso poltica. No presente trabalho se utiliza o vocbulo droga no sentido de uma substncia que atua sobre o sistema nervoso central que, aps um julgamento de valor, ganha a qualificao normativa de lcita ou ilcita mediante a criao de uma norma proibitiva. Diante das controvrsias, no estudo da questo devem ser tomadas algumas cautelas bsicas, tais como evitar uma anlise de cunho moralista5, que leva conseqentemente a droga ser considerada como um tema tabu6, do qual no se pode falar. Esta deve ser investigada como um fato social complexo e problemtico, que envolve vrios campos do conhecimento, digno de uma profunda e sria abordagem. Do ponto de vista jurdico, ao se tratar do controle penal sobre as drogas ilcitas, deve ser considerado o objetivo ltimo do direito - a pacificao social -, e os meios legtimos de alcan-lo: pelo respeito aos direitos e garantias individuais. Com esse esprito, o foco da pesquisa est na atuao do controle (social) penal nesse campo, e no impacto das polticas proibicionistas no Brasil. Diante do carter essencialmente internacional da poltica de drogas, porm, ser necessrio analisar as origens do modelo proibicionista de controle internacional de drogas e as estratgias alternativas de regulao dessas substncias. A compreenso da forma de implementao desse tipo de controle em pases desenvolvidos, e a identificao das semelhanas e diferenas com o modelo brasileiro serviro de base para propostas racionais de alterao legislativa.No dicionrio, a palavra droga possui treze definies, podendo significar: qualquer substncia ou ingrediente usado em farmcia, tinturaria ou laboratrios qumicos; ou ento qualquer produto alucingeno (...), que leve dependncia qumica, e por extenso, qualquer substncia ou produto txico (fumo, lcool, de uso excessivo), entorpecente; como tambm pode ser: qualquer substncia que leve a um estado satisfatrio ou desejvel (o que tira a dor, emagrece), havendo significaes positivas e negativas, em seu sentido literal. No sentido figurado tambm h duplo significado, pois droga pode tanto significar bom na definio de algo que atraia, apaixone, intoxique o esprito, como tambm mal: no sentido do que no confivel, falsidade, mentira, ou o indivduo que costuma proceder mal; assim como qualquer ato, produto ou objeto de pouco valor, dentre outras. In: HOUAISS, Antnio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionrio HOUAISS da lingua portuguesa. Rio de Janeiro: Forense; Objetiva, 2001. 5 Nesse sentido, parte-se do pressuposto de J. L. L. Mackie. Ethics, 1977, de que todos os julgamentos morais so falsos, uma vez que no existe uma realidade moral objetiva que lhes sirva de referncia. Apud OUTHWAITE, William et al. Dicionrio do Pensamento Social do sculo XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 484. 6 No sentido de uma proscrio religiosa, indiscutvel, da qual no se pode falar ou questionar, que Freud designava como a proibio de atos contraditrios aos padres morais, ou como proibio instituda por um grupo social como medida de proteo, superstio; ou interdio de ordem cultural e social sobre a qual se evita falar por pudor, crena ou superstio. Cf. HOUAISS e outro, op. cit p. 2654.4

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O presente estudo situa-se no paradigma emergente da psmodernidade, tendo como horizonte a totalidade universal, no sentido proposto por Boaventura de Souza Santos7. Entende-se necessria uma abordagem interdisciplinar do fenmeno da droga de forma a permitir sua ampla compreenso. Mostra-se essencial integrar discusso jurdica as perspectivas de outros campos do conhecimento que tambm tratam do tema, com outras nuances. Da a razo pela qual se optou por no fazer uma anlise puramente jurdica, para evitar o conformismo e a legitimao do discurso repressivo8. A proposta de anlise , portanto, transdiciplinar, pois atravessa os campos da criminologia, da poltica criminal, e das cincias sociais, com auxlio das cincias mdicas e da economia, alm da histria. A metodologia utilizada pressupe a impossibilidade de se fracionar o objeto de estudo - o controle social da droga -, visto ser este fenmeno complexo estudado por vrias disciplinas, e por isso requer ferramentas capazes de responder s questes formuladas. Por se tratar de tese apresentada a uma Faculdade de Direito, a perspectiva jurdica constitui o fio condutor da anlise. Na perspectiva da psmodernidade, reconhece-se a necessidade de no se reduzir a complexidade da vida jurdica secura da dogmtica, razo pela qual se seguem as lies de Souza Santos, de que o direito deve redescobrir o mundo filosfico e sociolgico em busca da prudncia jurdica. Com isso pretende-se evitar os males da parcelizao do conhecimento e do reducionismo arbitrrio que transporta consigo, por se considerar constituir-se o conhecimento ps-moderno a partir de uma pluralidade metodolgica, e que a fragmentao ps-moderna no disciplinar, e sim temtica (...) ao contrrio do que sucede no paradigma actual, o conhecimento avana medida que seu objecto se amplia, ampliao que, como a da rvore, procede pela diferenciao e pelo alastramento das razes em busca de novas e mais variadas interfaces9. Diz-se que a questo das drogas ter-se - ia se perdido no caminho, pois os juristas legislaram e impuseram seu controle de forma alheia s contribuies deSANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as cincias. 10 ed. Porto: Afrontamento, 1998. Nesse sentido, analisa Salo de Carvalho que, no Direito, os comentrios sobre as temticas se restringem anlise da legislao, que carecem de fundamentao mais apurada e limitam-se a conceituar e categorizar as drogas a partir do discurso farmacolgico, e assim se tornam teis ao sistema repressivo. In: CARVALHO, Salo de. A poltica criminal de drogas no Brasil: do discurso oficial s razes da descriminalizao. Rio de Janeiro: Luam, 1997, p. 11. 9 SANTOS, Boaventura de Souza, op. cit. p. 47-48.8 7

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profissionais de outras reas que chegaram a solues para alm do marco legal, as quais, na maioria dos casos, foram deixadas de lado pelos legisladores e juristas. Porm, as solues para a questo esto muito mais alm do limitado campo jurdico, to caro aos legisladores e juristas, em especial pela tendncia de estes se isolarem tanto das cincias sociais, como da realidade social que os cerca. Segundo Rosa Del Olmo, ainda que se reconhea a importncia das regulamentaes jurdicas, preciso dar-lhes sua justa dimenso: Os aspectos lingsticos, culturais, econmicos, sociopolticos, histricos, etc., configuraram um saber que precisa ser incorporado ao delineamento de uma interveno global sobre drogas alternativa, o que implica, antes de mais nada, redefinir o que se entende por droga, e ao mesmo tempo iniciar a desconstruo das polticas atuais e a avaliao dos tratados internacionais vigentes que ningum se atreve a questionar, apesar de que, em alguns aspectos, contradizem a normativa internacional sobre direitos humanos... investir os recursos em programas dirigidos ao indivduo e a programas de desenvolvimento j que a droga deve associar-se com a qualidade de vida10. Por outro lado, em uma abordagem interdisciplinar de um campo to amplo corre-se o risco de uma excessiva abstrao ou simplificao, alm da desconsiderao das variaes porventura existentes. Tal risco justifica-se pela necessidade de identificar as estratgias e modelos, concretos e abstratos, que guiam a reao penal no controle das drogas, que s um enfoque macro permite. Entende-se que a anlise isolada da temtica torn-la-ia conformista e concorreria para a manuteno do modelo atual, que se entende deva ser objeto de crtica e questionamento. Essa perspectiva mais ampla possui igualmente benefcios, como a possibilidade de identificao de questes estruturais, bem como de tendncias e dinmicas comuns a um modelo construdo de cima para baixo, ou seja, uma estratgia de controle penal imposta verticalmente s naes do mundo pela comunidade internacional, sob influncia da potncia ento emergente. Ao mesmo tempo a abordagem do tema ser cautelosa, reconhecendo as semelhanas e diferenas da implementao do modelo proibicionista nas sociedades mais desenvolvidas, em comparao com o Brasil, bem como a necessidade de adaptao local de modelos e propostas alternativas, de forma a evitar equvocos de uniformizao e10

OLMO, Rosa del. A legislao no contexto das intervenes globais sobre drogas. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro, v. 7, n. 12. p. 65-80, 2. sem 2002, p. 75.

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leis e estratgias. Nem sempre o que adequado aos pases j desenvolvidos se adequa realidade dos pases ditos emergentes. O marco terico do presente estudo a Criminologia Crtica, que ao incluir o controle social como objeto de estudo da cincia criminolgica, marcou a passagem para o paradigma da definio social, que se afasta do paradigma clssicopositivista por se debruar sobre o funcionamento real do sistema penal e suas relaes com a estrutura scio-poltico-econmica como objetos de estudo. Mostra-se importante destacar a adeso do trabalho aos postulados da viso crtica da criminologia, em especial quanto aos conceitos de delito - tratado sob a perspectiva de sua construo normativa, ou seja, criado pelo legislador, sem base ontolgica, mas poltica - assim como o conceito de delinqente, que depende no s da definio poltica de delito, mas tambm da atuao do sistema penal, por meio da atribuio de um rtulo queles selecionados pela atuao das agncias do sistema11. Da a importncia de se estudar as origens do proibicionismo e a evoluo das leis penais para se evidenciar como se deu a construo do conceito de ilicitude sobre uma substncia, como fundamento do modelo repressivo. Na definio do marco terico utilizado no estudo do controle social (penal) sobre as drogas ilcitas, deve ser inicialmente indicado qual controle social se trata. Entende-se que a definio tradicional de controle social12 deve ser substituda por um conceito mais adequado ao estudo do controle do desvio nas sociedades ps-modernas, que reverta a noo de que o desvio leva ao controle social, pela constatao de que o controle social que leva ao desvio13. Adota-se a viso de Stanley Cohen ao defini-lo como as formas organizadas com que a sociedade responde a comportamentos e as pessoas que contempla como desviantes, problemticos, preocupantes, ameaadores, doentes ou indesejveis, sob a forma de: castigo, dissuaso, tratamento, preveno, segregao,

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Nesse sentido, o sistema penal seleciona pessoas ou aes, como tambm criminaliza certas pessoas segundo sua classe e posio social. ZAFFARONI, Eugnio Raul; PIERANGELI, Jos Henrique. Manual de direito penal brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 74. 12 Tradicionalmente, se definia controle social como: o conjunto de instituies estratgicas e sanes sociais que pretendem promover e garantir o submetimento do indivduo aos modelos e normas comunitrios. Cf. GARCA-PABLOS DE MOLINA. Antonio; GOMES, Luiz Flvio. Criminologia: introduo a seus fundamentos tericos. So Paulo: Revista dos Tribunais, p. 102. 13 Nesse sentido de LEMERT, 1967, p. v, de que older sociology tended to rest heavily upon the idea that deviance leads to social control. I have come to believe that the reverse idea, i.e., social control leads to deviance, is equally tenable and the potentially richer premise for studying deviance in modern society. Apud MAGUIRE, Mike; MORGAN, Rod; REINER, Robert. The Oxford handbook of criminology. 2. ed. Oxford: Clarendon Press, 1997, p. 454.

21 justia, ressocializao, reforma ou defesa social14. As diversas formas de controle social constituem, portanto, os instrumentos de convivncia e de organizao social gerados mediante tenses em variadas esferas: econmica, poltica e cultural das sociedades15. Nos processos de organizao social destacam-se o direito e a cultura jurdica como atores decisivos, capazes de reduzir as tenses, em uma perspectiva otimista, quando o controle social atua visando pacificao das sociedades, como tambm em sua forma perversa, gerando efeitos contrrios e aumentando o conflito, ao reforar as contradies, quando os problemas decorrentes da convivncia social so agravados com a criao de uma norma proibitiva. No campo do controle social insere-se a forma mais drstica de controle formal, exercido pelo sistema penal16, que aqui se denominou controle penal17. O controle penal sobre a droga atua por meio da proibio do consumo e da venda de determinadas substncias, e seu discurso punitivo fundamentado no conceito de nocividade de determinadas substncias, e impe um comportamento individual coletividade, moldado sobre o ideal de abstinncia como virtude a ser seguida. A criminologia tradicional parte de uma concepo harmoniosa de sociedade, no questionando as definies legais nem o quadro normativo, e presumindo a incorporao pela lei dos interesses gerais18, razo pela qual deu pouca importncia ao estudo do controle social. A Criminologia Crtica, ao contrrio, considera o tema da droga como um dos mais intrigantes objetos de estudo, pois envolve uma situao real em que a prpria lei (que no necessariamente representa os interesses coletivos) cria o delito e o delinqente, sob a perspectiva interacionista19, que, nas palavras de Baratta considera

COHEN, Stanley. Visiones de control social. Barcelona: PPU, 1988, p. 17. No sentido proposto por BERGALLI, Roberto. Contradicciones entre derecho y control social. Barcelona: M. J. Bosch, Goethe Institut, 1998, p. XII. 16 Zaffaroni afirma que o sistema penal a parte do controle social que resulta institucionalizado em forma punitiva e com discurso punitivo. ZAFFARONI, Eugnio Raul; PIERANGELI, Jos Henrique. Manual de direito penal brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 69. 17 O que diferencia o direito penal de outras formas de controle social a formalizao do controle, pois o controle penal um controle normativo, exercido por meio de normas que precedem o delito. MUOZ CONDE, Francisco. Direito penal e controle social. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 6. 18 Neste sentido, ANYAR DE CASTRO, Lola. A Criminologia da Reao Social. Rio de Janeiro: Forense, 1983. 19 Para o labelling approach, o controle social exerce um papel extremamente importante, pois considera que a criminalidade no tem natureza ontolgica, seno definitorial (deriva s das definies seletivas dadas pelos agentes de controle social formal). Assim, a populao penitenciria, subproduto final do funcionamento discriminatrio do sistema penal, no representa a populao criminosa real nem qualitativa nem quantitativamente tampouco as estatsticas oficiais correspondem realidade do delito na sociedade, mas to somente representa um retrato da atuao do sistema.15

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como determinante o problema da definio do delito, com as implicaes poltico-sociais que revela20. Assim, no so de interesse do presente estudo as causas que levam determinados indivduos a usar ou vender drogas, o que estaria mais prximo do que Baratta chamava de dimenso comportamental da criminologia. Pretende-se discutir a dimenso da definio, como teoria e sociologia do Direito Penal, ao se tratar especificamente do funcionamento da justia criminal e das instituies que compem o sistema penal (agncia legislativa, judicial, policial e as instituies internacionais), que determinam as proibies, executam a persecuo penal e impem as sanes pela violao da norma proibitiva. Alm disso, a concepo bsica do trabalho distancia-se do funcionalismo sistmico aplicado ao direito penal, que v o delito como expresso simblica de uma falta de fidelidade ao sistema social, e associa o funcionamento da ordem jurdica e do sistema penal a um conjunto de valores majoritariamente aceitos por seus componentes, que renem e institucionalizam tais valores21. Entende-se, como Muoz Conde, que a teoria sistmica, quando fala da funcionalidade da norma jurdicopenal nada diz sobre a forma especfica de seu funcionamento nem sobre o sistema social para o qual a norma funcional, razo pela qual no tem condies de permitir a compreenso da essncia do fenmeno jurdico-punitivo22. Parte-se do pressuposto que o direito penal no igualitrio, a ordem social no pacfica, mas conflituosa, devendo ser situada nesse contexto a opo normativa de criminalizao da droga, ao impor um determinado tipo de moral - a abstinncia - sem que essa expectativa represente necessariamente um valor, ou um sistema de valores partilhado pela sociedade. A experincia mostrou que, apesar da proibio, as drogas ilcitas continuam sendo amplamente consumidas, ganharam valor de mercadoria de troca e se inseriram em amplo mercado ilcito, refletindo a posio de outro grupo que no partilha do mesmo ideal representado pela norma proibitiva. Diante desse aspecto, pode-se afirmar que uma das conseqncias do proibicionismo a marginalizao de um nmero cada vez maior de pessoas que no se adequam ao modelo de conduta imposta pela norma, por no20

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crtica e Crtica do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 1997, p. 86. 21 BERGALLI, Roberto. Contradicciones entre derecho y control social. Barcelona: M. J. Bosch, Goethe Institut, 1998, p. 19. 22 MUOZ CONDE, Francisco. Direito penal e controle social. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 14.

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compartilharem dos mesmos valores morais defendidos pela norma proibitiva - no caso a abstinncia. Sob a perspectiva jurdica, deve ser apontado outro marco terico do trabalho: o Garantismo, proposto por Luigi Ferrajoli23 como um sistema epistemolgico de identificao do desvio penal, orientado a assegurar (...) o mximo grau de racionalidade e confiabilidade do juzo e, portanto, de limitao do poder punitivo e da tutela da pessoa contra a arbitrariedade24, que corresponde s garantias penais e processuais que se contrapem ao poder punitivo. A proposta de estudo com base garantista situa-se, portanto, na interseo entre a criminologia e o direito penal, no campo da poltica criminal, considerada no como poltica estatal de luta contra o crime, mas como ideologia poltica que orienta o controle social punitivo25. Considera-se que a discusso sobre poltica criminal de drogas deve ser resgatada pelas Faculdades de Direito, na forma de um exame jurdico da realidade social e dos efeitos das leis proibicionistas, que so aplicadas cotidianamente pelos operadores do direito de forma acrtica, legitimando o sistema atual. Dessa forma, adota-se o pressuposto de que existe uma poltica criminal brasileira de drogas de carter repressivo26, e pretende-se utilizar o potencial transformador do discurso crtico para deslegitimar o discurso punitivo, rejeitando a aceitao apriorstica de dogmas, por meio da investigao da realidade sobre a qual o direito penal aplicado, objetivando a elaborao de propostas transformadoras da realidade social, fundadas em marcos tericos humanistas, constitucionais e democrticos. O tema da criminologia da droga j foi estudado por vrios autores, como Alessandro Baratta, Rosa Del Olmo e Lola Anyar de Castro, dentre ouros que muito contriburam para a mudana de paradigma no estudo da criminologia. No Brasil, Nilo Batista, Maria Lcia Karam, Salo de Carvalho e Vera Malaguti Batista editaram obras

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FERRAJOLI, Luigi. Direito e razo: teoria do garantismo penal. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. Idem, p. 30. 25 Zaffaroni define poltica criminal como a cincia ou a arte de selecionar os bens (ou direitos) que devem ser tutelados juridica e penalmente e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a crtica dos valores e caminhos j eleitos. ZAFFARONI, Eugnio Raul; PIERANGELI, Jos Henrique. Manual de direito penal brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 132. 26 Identifica-se uma trplice base ideolgica na poltica de drogas brasileira: Defesa Social e Segurana Nacional, enquanto ideologias em sentido negativo, e pelos movimentos da Lei e Ordem, entendidos como ideologia em sentido positivo. Cf. CARVALHO, Salo de. A Poltica criminal de drogas no Brasil: do discurso oficial s razes da descriminalizao. Rio de Janeiro: Luam, 1997, p. 8.

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importantes que despertaram o interesse na crtica ao discurso repressivo da droga. O presente estudo em muito se apoiou na leitura das essenciais obras desses autores. Com base nessas premissas so analisadas de forma crtica no captulo I, as origens do proibicionismo, seus aspectos histricos e internacionais, assim como seus fundamentos e a forma de sua implementao mais radical pelos EUA, bero da mais severa legislao de drogas do mundo. A seguir, no captulo II, abordam-se os modelos alternativos, as polticas de reduo de danos, e outras formas de controle de drogas, como a despenalizao e descriminalizao. No extremo oposto ao proibicionismo, analisa-se em maiores detalhes a proposta de legalizao controlada de drogas. Aps, so brevemente examinadas as legislaes de doze pases europeu-ocidentais27 que adotam polticas alternativas de diferentes graduaes na oposio ao proibicionismo, que merecem ser estudadas como um modelo de controle em certa oposio ao radicalismo punitivo norteamericano. A especfica situao do Brasil analisada no captulo III, atravs da evoluo histrica da legislao de drogas brasileiras, suas influncias, modelos oficiais e estratgia de poltica criminal, incluindo a poltica de reduo de danos e um comentrio crtico aos projetos de lei em discusso no Congresso. Diante do quadro estudado, o captulo IV trata especificamente do impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade, sob um enfoque integrado de vrias disciplinas. Deixa-se de lado o discurso oficial, que fundamenta a proibio na questo da sade pblica, para estud-la sob perspectivas diversas. So elas: a droga como um problema scio-econmico, que interage com a violncia e a corrupo ao circular em um mercado ilcito absolutamente integrado na economia, por meio da lavagem de capitais; e como um problema penal e penitencirio, na medida em que a criminalizao desfigurou o direito penal e lotou as penitencirias. Finalmente, os efeitos perversos e s crticas ao proibicionismo so consolidados na concluso. A crtica formulada ao controle penal de drogas incluir a formulao de alternativas legislativas tendo como parmetro o modelo garantista e a necessidade deEm decorrncia da necessidade de delimitao do tema, optou-se por excluir o estudo dos modelos latinoamericanos de controle de drogas, que demandariam uma ateno especial, pelas caractersticas especficas desse tipo de anlise. Considera-se que especialmente o caso dos trs pases produtores, Colmbia, Peru e Bolvia merecem destaque e estudos aprofundados, diante das agressivas polticas de erradicao e substituio do plantio de substncias proibidas, determinadas e sustentadas pelos EUA. Porm, como essa anlise iria extrapolar os limites desse trabalho, optou-se por fazer menes localizadas, inseridas na perspectiva central do tema.27

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um direito penal democrtico que leve em conta a complexidade, a pluralidade e a diversidade dos grupos sociais. O desafio que norteou o desenvolvimento do presente trabalho envolveu a seguinte questo: possvel estabelecer um modelo alternativo e vivel de controle de drogas com a minimizao de riscos concretos sade pblica e individual, respeitando direitos e liberdades individuais, e salvaguardando os interesses coletivos? Na busca da resposta foi necessrio realizar levantamentos bibliogrficos amplos, tanto na rea jurdica como nas reas afins das cincias sociais; acessar dados estatsticos e penitencirios e estudos comparados de rgos de controle internacional de drogas, alm de realizao de pesquisa legislativa e histrica da legislao de drogas brasileira, norte-americana e europia. A viagem de estudos Frana providenciou o material necessrio, alm de permitir a troca de idias com alguns especialistas europeus. O estudo jurdico foi complementado com informao e dados da realidade scio-econmica do pas, obtidos por meio de estudos sociolgicos, antropolgicos e econmicos, alm de farmacolgicos, que foram integrados anlise jurdica. Pretende-se com o presente trabalho contribuir para o fascinante e desafiante estudo crtico interdisciplinar sobre o campo da droga, levando em conta as essenciais contribuies de outras reas, ao propor alternativas mais racionais, e assim ajudar na transformao do modelo brasileiro de controle de drogas para um modelo mais humano, fundado na dignidade da pessoa e representativo de um Estado Democrtico de Direito.

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I O MODELO PROIBICIONISTA DE CONTROLE DE DROGAS1.1. Origens histricas A investigao sobre as origens do proibicionismo permite uma melhor compreenso do fenmeno atual do controle penal sobre essas substncias. Diferentemente de outros delitos tradicionais como o homicdio, a criminalizao do uso e do comrcio de drogas relativamente recente. As drogas ilcitas ou proibidas mais populares nos dias de hoje j eram conhecidas e consumidas pelo homem h sculos, mas seu controle penal pelo Estado somente se concretizou nas primeiras dcadas do sculo XX, com as primeiras previses legais de crimes e penas. A histria do controle internacional de drogas bastante recente, mas no menos intrigante. Apesar de haver hoje uma relao prxima entre uso de droga e proibio, o consumo e a circulao de substncias como cocana, pio e cannabis eram legais at o incio do sculo XX, quando eram comumente usadas sob a forma recreativa ou medicinal. Nos primeiros anos do sculo passado, no entanto, essas trs drogas mais consumidas foram banidas. A explicao de como se deu essa to rpida, transformao, e as razes da aceitao internacional de uma poltica proibicionista de drogas, que permanece na maioria dos pases at hoje, essencial para introduzir o sensvel tema proposto, que envolve poltica, economia, moral e sade pblica, e assim poder situar o papel que o direito penal tem a exercer nesse campo. Historicamente, a modificao de comportamento, humor e emoo por meio de drogas sempre tem sido prtica comum. Assim, todas as sociedades, em larga escala, diferenciaram de alguma maneira, o uso mdico e o abuso no-mdico de drogas, e eventualmente fizeram com essa distino as fundaes morais e legais do sistema internacional de controle de drogas28. Na mesma linha, sob a perspectiva mdica, afirmase que, ao contrrio do que muitos pensam, o consumo de drogas no algo novo, um mal contemporneo, mas o uso da droga sempre acompanhou a histria da humanidade, assim como a busca do prazer e da necessidade de satisfao dos instintos29. A utilizao de plantas psicoativas e alucingenas pelos nativos em cultos indgenas e pagos era comum nos primrdios da colonizao, tanto nas AmricasCOURTWRIGHT, David T. Forces of Habit: drugs and the making of the modern world. Cambridge: Harvard University Press, 2002, p. 4. 29 SILVEIRA, Dartiu Xavier; MOREIRA, Fernanda Gonalves. Reflexes preliminares sobre a questo das substncias psicoativas. In: ______ . Panorama atual de drogas e dependncia. So Paulo, Atheneu, 2006, p. 3.28

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como na Europa. Afirmam antroplogos que a questo do uso de drogas pode ser considerado universal, uma vez que so pouqussimas as culturas que no se utilizam de alucingenos30, aos quais se atribui um papel importante em experincias religiosas. Na regio brasileira do Acre, plantas psicoativas compem rituais indgenas, como o caso do uso do cip ayahuasca na confeco de um ch alucingeno que at hoje ainda utilizado pela comunidade do Santo Daime31. No entanto, com a colonizao do Novo Mundo sob forte influncia da Igreja Catlica, a proscrio das plantas sagradas passou a fazer parte da imposio da cultura do descobridor-colonizador, e da afirmao do catolicismo como religio oficial, por meio da catequese dos ndios, habitantes nativos das terras americanas. Esse aspecto da religiosidade deve ser necessariamente includo como um dos elementos bsicos para se compreender as origens da proibio das drogas no mundo moderno, especialmente porque que um dos pilares da poltica proibicionista veio da influncia do protestantismo norteamericano, e de seu ideal religioso de abstinncia, pregado pelas proeminentes figuras de formao religiosa que atuaram como influentes arquitetos do proibicionismo32. Paradoxalmente, do ponto de vista econmico, a expanso comercial e cultural das grandes navegaes de certa forma desafiou o controle moral do cristianismo, pois a descoberta de culturas nativas originais de novos povos tambm influenciou a civilizao europia, que descobriu novas plantas e espcimes, tais como o haxixe33, o pio e o tabaco, alm de especiarias e novos frmacos. Tais substncias passaram a ser mercadorias valiosas no comrcio internacional, e levaram ao incremento das viagens e das rotas de comrcio com as terras mais distantes. Os navegadores que descobriam o novo mundo encontraram sociedades indgenas nativas fazendo uso sagrado de alucingenos tpicos de suas culturas. H relatos de que o tabaco, o pio e o bangue da ndia (ou maconha) tinham como utilidade sair de si e descansar do trabalho, e ainda serviriam para criar sonhos e iluses. Por sua vez, na Amrica Latina, havia o tradicional uso da

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GAUER, Ruth Maria Chitt. Uma leitura antropolgica do uso de drogas. In: Fascculos de Cincias Penais. Edio especial. Drogas: abordagem interdisciplinar. V. 3, n. 2, abr./mai./jun., 1990, p. 60. 31 O ch de ayahuasca permitido atualmente no Brasil, mas seu uso controverso em outros pases. Cf. S, Domingos Bernardo Gialluisi da Silva. Ayahuasca : a conscincia da expanso. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p. 145-174, 1996. 32 Como o Bispo de Manila, Monsenhor Charles Henry Brent (1862-1929), que teve papel fundamental da articulao da primeira conferncia internacional sobre drogas de Xangai, em 1909. 33 Haxixe uma droga de efeito entorpecente preparada com a resina do cnhamo e pode ser fumada pura ou associada cannabis. Cf. HOUAISS, Antnio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionrio HOUAISS da lingua portuguesa. Rio de Janeiro: Forense; Objetiva, 2001, p. 1509.

28 folha de coca34, que era misturada ao tabaco, para dar mais fora e ajudar a suportar melhor o trabalho. de se notar que at a Idade Mdia no havia proibio ao uso de drogas, mas to somente algumas prescries morais trazidas pela doutrina crist35. Os historiadores sociais identificaram dois tipos de uso social de drogas na transio entre a Baixa Idade Mdia e Renascimento: nas classes baixas, um uso desesperado, famlico, escapista, e nas classes altas, um consumo de especiarias que se confunde com a busca de remdios exticos, cuja eficcia costuma ser medida pelo preo das substncias empregadas na confeco da drogas36. No sculo XVI, a Europa assistiu a uma intensificao do fornecimento de especiarias asiticas, e do consumo de drogas, em especial do pio, devido provavelmente ao aumento das massas nmades expulsas do campo, corrodas dos velhos laos sociais da servido e da ausncia ainda dos novos laos sociais. Nessas circunstncias, aumentavam a fome e as doenas, assim como o consumo generalizado de plantas, no s para alimentao como para o consolo ou escapismo da realidade. O lcool, droga mais utilizada nos dias de hoje37, era utilizado desde o incio da histria, comeando como bebidas fermentadas de relativamente pouco contedo alcolico. Quando os rabes introduziram a nova tcnica de destilao na Europa, durante a Idade Mdia, os alquimistas acreditavam que este seria um elixir de vida, considerado como um remdio para praticamente todas as doenas. Deve ser tambm ressaltado o importante papel da Medicina nesse perodo, j que grande parte das experincias mdicas do sculo XVI est ligada experimentao prtica de drogas. A Medicina ainda no totalmente oficial j centralizava o novo conhecimento, e aprofundava as investigaes sobre o corpo humano e as doenas e, por meio de pesquisas, dissecao de cadveres e testes com substncias, procurava-se a cura dos males e das doenas de que padeciam os homens.

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A mastigao da folha de coca nos Andes data de 3.000 A.C., e constitui um hbito inseparvel da vida de camponeses e mineiros, usada no trabalho, como medicamento e nos ritos religiosos. As esttuas dos deuses incas, no Peru, mostram a imagens mastigando a folha, com as bochechas saltadas. 35 A moral crist sobre as drogas teve alguns eixos centrais: recusa aos analgsicos, aos eutansicos, aos afrodisacos e aos alucingenos. Cf. CARNEIRO, Henrique. Filtros, mezinhas e triacas: as drogas no mundo moderno. So Paulo: Xam, 1994, p. 29. 36 Idem p. 51. 37 Atualmente considera-se o valor teraputico do etanol extremamente limitado, sendo a ingesto crnica de grandes quantidades um srio problema social e mdico. GOODMAN & GILMANS The pharmacological basis of therapeutics. 9a. ed. New York: McGraw-Hill, 1995, p. 386.

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O comrcio internacional de substncias hoje consideradas como ilcitas, somadas s especiarias, teve um importante papel na economia internacional, tanto no apogeu do perodo colonial, como da em diante, em especial no decorrer do sculo XIX, caracterizado pela rota do pio. Naquela poca, a proibio ainda no era sequer considerada38, o que pode ser constatado na prpria origem da palavra droga; dentre as vrias hipteses de sua etimologia est a denominao em holands droog para os produtos secos do ultramar, ou seja, as especiarias, sem qualquer conotao negativa. Algumas drogas hoje mundialmente proibidas eram mercadorias amplamente comercializadas e integradas s economias dos pases, como o pio na China, cuja histria possui elementos bastante interessantes. Foi justamente a motivao econmica que levou, na era moderna, a um novo regime das drogas: os estimulantes lcool e tabaco, drogas de uso mais freqente pela populao mundial tornaram-se produtos de alta importncia estratgica comercial internacional, alm de aceitos pela Igreja, e o pio, por sua vez, retomou seu papel de principal frmaco na Europa, enquanto se manteve a proibio dos alucingenos, caracterstica peculiar dos cultos indgenas americanos. Como se percebe, neste momento que se afirma o primeiro paradigma de controle das drogas, a ser refinado na poca contempornea, com base em motivaes econmicas, culturais e religiosas, mas no puramente mdicas, na fixao do padro mundial de controle do uso, comrcio e consumo de drogas. No que se refere especificamente s drogas posteriormente proibidas, o pio39 veio a ser reintroduzido no Ocidente com o reatamento do comrcio com o Oriente, trazido diretamente da China e da ndia. Era uma das drogas mais usadas no mundo antigo, como analgsico e eutansico, e fazia parte de vrias receitas egpcias, gregas e romanas. Muito antes da segunda metade do sculo XIV, quando Veneza inicia um importante comrcio de pio e fabricao da triaca40, as novas escolas de Medicina, como a de Salerno, j defendiam o uso anestsico do pio, e lentamente retomavam seu uso medicinal.38

BASSIOUNI, M. Cherif; THONY, Jean Franois. The International Drug Control System. In: ______. (Org.). International Criminal Law: crimes. New York: Transnational Publishers, 1999, p. 913. 39 O pio o suco das cpsulas da papoula, e seus principais alcalides so a morfina, a codena e a tebana (paramorfina), sendo vrios os seus derivados, dentre eles a herona. A disseminao do uso do pio como medicamento amplia-se por toda a Europa, e vai se tornando uma panacia do sculo XVII em diante, por suas virtudes como antitussgeno, antidiarrico e analgsico, alm de outros fins. 40 A triaca era um antdoto confeccionado com dezenas de frmacos, inclusive o pio, destinado a curar doenas como paralisia, apoplexia, epilepsia e letargia. Sobre a histria social das drogas confira CARNEIRO, Henrique. Filtros, mezinhas e triaca: as drogas no mundo moderno. So Paulo: Xam, 1994.

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J outra substncia entorpecente bastante popular nos dias de hoje, a cannabis sativa, ou maconha41, era considerada ainda mais antiga. H indcios de que na pr-histria j se cultivava a cannabis, sendo remotas as origens da utilizao do cnhamo42 (ou hemp - fibra vegetal extrada do caule da planta cannabis sativa), bastante utilizada em medicamentos, temperos e, principalmente, para tecer roupas de fibras resistentes43, alm ser servir o leo das sementes como componentes de tintas e vernizes. O entorpecente maconha se diferencia do cnhamo pois possui altos teores do princpio ativo tetrahidrocanabinol (THC), um alucingeno encontrado nas folhas e nos frutos da mesma planta. Especula-se se o hbito de fumar maconha teria sido trazido para o Brasil pelos primeiros escravos vindos da frica44. Atualmente, cultivada em vrios locais do mundo, devido facilidade de sua adaptao a uma variedade de climas e altitudes, o que garantiu sua difuso pelo mundo, sendo hoje a substncia ilcita mais nele consumida45. Por outro lado a coca uma planta nativa do Peru, bastante cultivada na regio dos Andes, remontando aos incas o uso da mastigao das folhas de coca para aplacar a fome, revigorar as energias, pelo seu efeito excitante e estimulante, e para minimizar os efeitos da altitude. At hoje esse um hbito cultivado nos pases andinos. J a cocana, descoberta por volta de 1855, um alcalide extrado das folhas de coca, utilizado na forma de cloridrato, que se cristaliza em pequenas agulhas que assumem o aspecto de p amorfo. No final do sculo XIX, as experincias com cocana na Europa se intensificaram, tanto que um jovem mdico vienense chamado Sigmund Freud46 (18561939) comeou a estudar seus efeitos como substituto ao vcio da morfina, tendo encomendado a substncia ao laboratrio Merck com a inteno de test-la e investig-la pessoalmente. Ele teria ento experimentado a droga em abril de 1884 e terminado seuSobre a histria e as utilidades da maconha, confira ROBINSON, Rowan. O Grande Livro da cannabis. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, e GABEIRA, Fernando. A maconha, So Paulo: Publifolha, 2000 (Coleo Folha explica). 42 Cf. BURGIERMAN, Denis Russo. Maconha. So Paulo: Abril, 2002, p. 18-19, o primeiro registro de uso da cannabis dataria de mais de 12.000 anos, que teria sido encontrada em marcas de corda impressas em cacos de um vaso de barro, no stio arqueolgico de Yuan-shan, atual Taiwan. Cita o autor que a erva era usada h cerca de 2.000 A.C. na China e na ndia. 43 Peas grossas de tecido de cnhamo derivado da planta foram usadas durante sculos na confeco de velas de navio, e para fazer corda e papel. H informaes de que as caravelas que descobriram a Amrica seriam feitas da fibra de cnhamo. 44 De acordo com COURTWRIGHT, David T. Forces of Habit: drugs and the making of the modern world. Cambridge: Harvard University Press, 2002., p. 41, os escravos vindo de angola teriam trazido consigo a maconha para as plantaes de acar no Nordeste do Brasil, onde o cultivo teria sido estabelecido algum tempo depois de 1549. O nome maconha, alis, diz-se ser de origem angolana. 45 Idem, p. 39. 46 Para um aprofundamento dos escritos de Freud sobre a cocana, confira FREUD, Sigmund. Un peu de cocane pour me dlier la langue..., organizado por Charles Melman. Paris: Max Milo, 2005.41

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ensaio Uber Coca em junho do mesmo ano, no qual exps suas concluses consideradas um tanto precipitadas - sobre os benefcios da cocana, e sugerido o seu uso potencial em farmacoterapia, o que foi questionado mais tarde por outros pesquisadores. No entanto, isso no impediu que a produo de cocana pelo Laboratrio Merck aumentasse de 0,4 quilos em 1883 para 1673 quilos em 1884 e 83.343 quilos em 1885, assim como seu preo tambm foi aumentado. A cocana rapidamente se transformou em um dos mais importantes produtos farmacuticos na Europa e nos Estados Unidos47. O uso de drogas psicoativas, at o incio do sculo XX, envolvia dois diferentes caminhos: o uso mdico, destinado a aliviar sintomas, distrbios e patologias mentais, e o uso religioso, cerimonial ou recreacional, que modificava o comportamento normal e produzir estados alterados de conscincia. Aps terem as drogas surgido como promissores medicamentos, despertando grande interesse da classe cientfica, acabaram chamando a ateno da populao que foi se afastando do discurso e do controle mdico para um uso hedonista, de prazer e recreao48. Diante desse quadro, o disciplinamento do comrcio e do consumo de drogas do incio do perodo moderno deve ser compreendido no mbito da expanso mundial ibrica na poca das grandes navegaes, mas no se deve esquecer que a definio de droga sempre foi um conceito antes de tudo moral, que vai acarretar, posteriormente, seu contedo ilcito e criminal. O novo Estado Moderno, portanto, une o poder religioso ao poder mdico para guardar um conjunto de normas reguladoras da vida pessoal, em especial do consumo das drogas. Ressalte-se que o uso de drogas psicotrpicas consideradas como eficazes pela psiquiatria se tornou muito comum a partir de meados dos anos 50 do sculo passado, e hoje entre 10 a 15% dos medicamentos vendidos nos Estados Unidos tem por objetivo a alterao de processos mentais, tais como sedar, estimular, ou mudar de outra maneira o humor, e o comportamento. As drogas psicotrpicas, so amplamente receitadas pelos mdicos nos dias de hoje, dentre elas barbitricos49, ansiolticos50 e antidepressivos,DAVENPORT-HINES, Richard. The Pursuit of Oblivion: a global history of narcotics. New York: WW Norton, 2002. p. 158. 48 MUSTO, David. One hundred years of cocaine. Westport: Auburn House, 2002. 49 Os barbitricos so hipntico-sedativos que foram muito utilizados no incio do sculo XX no tratamento de distrbios de ansiedade. No entanto, foram posteriormente considerados no recomendveis por induzirem tolerncia e causarem dependncia fsica, alm de reaes potencialmente letais quando da suspenso do uso do medicamento. Essas srias contra-indicaes levaram busca por outros agentes, tendo sido substitudos pelos benzodiazepnicos para tratar da ansiedade. Os barbitricos so pouco utilizados atualmente, embora sejam recomendados no tratamento emergencial de convulses, apesar dos riscos. GOODMAN & GILMANS The pharmacological basis of therapeutics. 9a. ed. New York: McGraw-Hill, 1995, p. 370.47

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e foram consideradas uma revoluo na psiquiatria, mas ao mesmo tempo, por atuarem sob o sistema nervoso central causam dependncia e por isso tm severas restries de venda e consumo, e esto sujeitas a controle mdico. A partir de meados do sculo XX, com a evoluo da farmacologia foram descobertas as primeiras drogas sintticas. Em 1943, Hofmann teria sido o primeiro a ingerir uma quantidade mnima de cido lisrgico (LSD) e experimentado seus efeitos alucingenos51. A atual poltica de controle das drogas, portanto, tem em sua origem aspectos religiosos, econmicos e sociais, muito embora na atualidade seja mais perceptvel o discurso oficial mdico. No h como se deixar de analisar o quadro dentro de um contexto mais amplo, que leva, na atualidade, coexistncia de drogas proibidas, de consumo semiclandestino, por um lado, e de substncias teraputicas legais, fabricadas pelas grandes indstrias multinacionais, cuja diferenciao feita por critrios polticolegislativos e sofre a influncia de atitudes sociais que determinam quais drogas so admissveis e atribuem qualidades ticas aos produtos qumicos52. Aps ter-se situado historicamente as origens do controle das drogas ilcitas, estudar-se- em maiores detalhes a situao de dois pases estratgicos, por meio da anlise de suas polticas pblicas de controle do comrcio e de consumo de substncias entorpecentes. 1.2. A Guerra do pio (1839-1842) Optou-se pelo estudo das origens do controle penal de drogas na China, diante do marco histrico da Guerra do pio, entre 1839-1842, na histria do controle internacional de drogas. 1.2.1 Antecedentes A histria do pio na China e suas conseqncias internacionais constituem um exemplo da relevncia da questo poltico-econmica por trs das discusses sobre controle das drogas. Por isso, dentro da perspectiva histrica do controle penal sobre as drogas, deve ser analisada a situao especfica da China, que passou por50

Os benzodiazepnicos so medicamentos com efeito sedativo, relaxante muscular e ansioltico, destinados ao tratamento de distrbios de ansiedade, porm o risco de uso da substncia em longo prazo continua controverso. Idem, p. 309. 51 Ibidem, p. 400. 52 ESCOHOTADO, A. Historia de las drogas. Madrid: Alianza Editorial, 1996.

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importantes transformaes scio-econmicas e culturais no sculo XIX, e travou uma guerra contra o Imprio Britnico, em decorrncia de interesses comerciais na liberao do comrcio de pio. Desde o sculo XI, j era observado na China algum uso de pio para fins medicinais e tambm como narctico53. Calcula-se que no sculo XVIII havia cerca de um milho de chineses viciados em pio, o que do ponto de vista dos traficantes de drogas significava um amplo espao comercial para ser conquistado54, uma vez que o consumo da droga era acessvel tanto aos moradores das cidades quanto aos pobres, que utilizavam pequenos locais pblicos. Em 1729, contudo, a venda e o consumo de tal substncia foram banidos do territrio chins pelo Imperador, aps ter sido constatada a ampla difuso de seu consumo pelos chineses. Diferenciou-se, porm, a venda de pio medicinal, que era permitido, do uso meramente hedonista, que passou a ser proibido55. O comrcio internacional do pio j no final do sculo XVIII gerava enormes lucros Coroa Britnica, que explorava o grande mercado consumidor chins, com o pio originado do Sudeste asitico. Para que o pio pudesse ser um produto com vendas estabilizadas, vrios fatores estavam em jogo: a liberao do comrcio do produto, que tinha que esta-r disponvel em grandes quantidades, com meios desenvolvidos de consumo, e nmero suficiente de consumidores que tornassem vivel tal rota de comrcio. Especula-se porque os chineses daquela poca fumavam tanto pio. Apesar de no estar disponvel literatura chinesa contempornea sobre o tema, de acordo com documentos do perodo o pio teria atrado inicialmente grupos que lutavam contra o tdio e o stress. Conforme afirma Spence, o uso de derivados de pio tem o efeito de reduzir a velocidade, e causar o efeito de tornar menos ntido o mundo em volta da pessoa,

Muito embora o costume da inalao de tal substncia s tenha se tornado popular durante o sculo XVII, juntamente com o hbito de fumar tabaco. Acredita-se que as tcnicas de fumar pio misturado com tabaco por meio do uso de cachimbos tenham sido trazidas pelas tropas chinesas que retornavam de Taiwan em 1721, e que, aps, sua utilizao teria se espalhado pela China continental. Cf. SPENCE, Jonathan D. The Search for Modern China. New York, London: W.W. Norton, 1991, p. 87 54 Idem, p. 129. 55 Contudo, como no havia qualquer precedente no cdigo penal chins da poca, foram invocadas clusulas por analogia, e assim passaram os traficantes a serem punidos como contrabandistas. A pena de tal crime era o uso de um pesado colar de madeira (chamado de cangue) durante um ms, e depois o banimento; enquanto que os que incitavam os inocentes a usarem o narctico estavam sujeitos s mesmas penas dos pregadores de religies ortodoxas, qual seja, o estrangulamento (sujeito mitigao mediante reviso). J os que fumavam ou plantavam pio eram punidos com cem chicotadas, de acordo com as penas previstas para o delito de desobedecer a ordens imperiais. Ibidem, p. 88.

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de fazer o tempo esticar e esvair-se, de trocar as complexas ou doloridas realidades para uma distncia aparentemente infinita 56. Assim, no final do sculo XIX, o uso de pio se espalhara para outros estratos sociais, alm de os operrios (estivadores ou colliers) terem comeado a usar a substncia, visando melhoria de seu desempenho laboral. Diz-se que os colliers conseguiam carregar cargas ainda mais pesadas sob a influncia do pio, o que teria levado o narctico a se tornar bastante popular, com o aumento do nmero de viciados entre os camponeses, que comearam a plantar papoula para aumentar seus parcos rendimentos. Oficialmente, estavam proibidos o consumo e a venda da droga para fins no medicinais, mas mantinham-se locais escondidos, mas abertos ao pblico, destinados ao consumo de pio, enquanto a venda para uso medicinal continuava abertamente. O Imperador da poca j reconhecia esse impasse, alis, bastante atual, entre a necessidade legtima do uso do narctico como um remdio particularmente valioso no tratamento de algumas doenas, e ponderava acerca dos riscos do uso no medicinal do pio. Com esse panorama de fundo, os acontecimentos acabariam levando a uma guerra entre o Reino Unido e a China no sculo XIX, que ficou conhecida como a Guerra do pio. 1.2.2. A China e os interesses ingleses No incio do sculo XIX, a disseminao do pio em territrio chins causou um complexo dilema social: acadmicos, oficiais e o prprio Imperador se depararam com a discusso sobre a legalizao da droga ou seu banimento total. Ao mesmo tempo, os britnicos investiam fortunas na manufatura e distribuio da droga, gerando uma imensa participao dos lucros e rendimentos da venda de pio na balana internacional de pagamentos do Reino Unido da poca. O comrcio de pio passou ento a constituir um elemento central da poltica externa inglesa. Em 1800 um ato oficial do governo chins proibiu tanto a importao de pio quanto sua produo interna em territrio chins, e em 1813 outros editos proibiram o fumo de pio. A punio para os que violassem a proibio era severa: 100Traduo livre do seguinte trecho original the taking of opium derivatives has the effect of slowing down and blurring the world around one, of making time stretch and fade, of shifting complex or painful realities to an apparent infinitive distance. Cf. SPENCE, Jonathan D. The Search for Modern China. New York, London: W.W. Norton, 1991, p. 131.56

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golpes de bambu, junto com o uso pblico da cangue, o colar de madeira, por um ms ou mais. Com tal proibio, apesar de os mercadores chineses (cohongs) responsveis pela venda de pio no pas terem parado de comercializar diretamente o produto, isso no impedia que estrangeiros ancorassem seus navios em locais distantes, e continuassem a vender suas mercadorias de forma ilcita. Os esforos do governo chins para combater essa distribuio ilegal no foram suficientes para impedir o comrcio da droga, pois mesmo com a ameaa de severa punio e o intenso interrogatrio imposto aos usurios para que revelassem seus fornecedores, os envolvidos no milionrio negcio ilcito cobriam todos os seus rastros por meio de numerosos intermedirios, sem que nunca se conseguisse chegar aos responsveis principais. Diante desse quadro, o Imperador ao perceber que a economia chinesa estava sendo prejudicada pela compra de pio da Inglaterra, determinou que peritos lhe aconselhassem sobre a questo do pio57. Aps avaliar as evidncias, em 1838, o governo decidiu banir o comrcio de pio, e ordenou o fechamento de fbricas estrangeiras em Canto, alm da destruio de trs milhes de libras de pio cru, tendo nomeado o Comissrio Lin para levar a cabo a tarefa repressiva58. No seu esforo visando erradicao do trfico, o governo chins fez chegar ao conhecimento dos comerciantes ingleses de pio que eles deveriam entregar as arcas do produto estocado em seus navios, sem qualquer compensao59.

A assessoria do Imperador se dividiu entre os proibicionistas, a favor da incrementao da proibio e da punio, afirmando que os chineses no precisavam de pio, nem nacional nem importado; e os favorveis legalizao, que defendiam a legalizao do comrcio do entorpecente, argumentando que isso poria fim corrupo e chantagem de funcionrios pblicos, e ainda renderia ao tesouro impostos e tarifas, alm de permitir o desenvolvimento da plantao interna do produto na China, de melhor qualidade e mais barato do que o indiano, afastando os estrangeiros daquele mercado. SPENCE, Jonathan D. The Search for Modern China. New York, London: W.W. Norton, 1991, p. 149-150. 58 O Comissrio Lin fazia proclamaes pblicas enfatizando os riscos sade causados pelo pio, e ordenava a todos os fumantes que largassem o vcio. A idia era que todos aqueles que fumavam pio deveriam ser punidos. Em meados de Maio de 1839, cerca de 1.600 chineses haviam sido presos e 35.000 libras de pio e 43.000 cachimbos tinham sido confiscados, sendo que nos meses seguintes, as foras de Lin apreenderam ainda mais 15.000 libras de drogas e outros 27.500 cachimbos. Idem. 59 Como se no bastasse, o Comissrio Lin chegou a escrever uma carta Rainha Victoria explicando porque estavam os chineses banindo o consumo e o comrcio de pio. O teor da carta era o seguinte: We have heard that in your honorable nation too the people are nor permitted to smoke the drug, and that offenders in this particular expose themselves to severe punishment... In order to remover the source of evil thoroughly, would it not be better to prohibit sale and manufacture rather than merely prohibit its consumption?. CHANG Hsin-pao. Commissioner Lin and the Opium War, Cambridge: Harvard University Press, 1964, p. 134-135 apud SPENCE, Jonathan D. The Search for Modern China. New York, London: W.W. Norton, 1991, p. 151. Ocorre que o pio, na verdade, no era proibido na Inglaterra, mas consumido normalmente como ludano, um medicamento base de pio, por diversas personalidades, sendo que muitos ingleses consideravam o pio como menos prejudicial do que o lcool, o que levou desconsiderao pela Rainha Victoria dos apelos dos chineses.

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O procedimento adotado tinha por objetivo a imediata interrupo do fornecimento da droga, mediante o bloqueio da sada dos comerciantes estrangeiros e das cargas. Porm, um dos lderes dos comerciantes de pio britnicos acabou preso, quando se recusou a entregar a carga de pio em seu poder. O bloqueio chins s foi suspenso quando as arcas de pio foram apreendidas e sua carga jogada no mar. Diante do quadro acima descrito, no se mostra surpreendente a reao inglesa s intensas atividades repressivas chinesas, que culminou com a primeira Guerra do pio. A proibio do comrcio do entorpecente pelo Imperador, que acreditava ser aquele um problema puramente domstico, levou os ingleses a responderem com o uso da fora, e a desafiar o Imprio Chins, o que acabou levando guerra e imposio de um tratado entre os dois pases, assinado em 1842, beneficiando a Inglaterra em seu comrcio com o Oriente. Dentre as causas da guerra do pio mencionadas por Jonathan D. Spence est o fato de que as discusses entre experts promovidas pelo Imperador entre 1836-1838 criaram a convico para os traficantes ingleses de que o pio estava prestes a ser legalizado na China, e isso os teria levado a aumentar seus estoques e a fazer pedidos adicionais para seus fornecedores na ndia. No entanto, quando as proibies rgidas de 1838 geraram seus efeitos, o mercado diminuiu e os traficantes se viram perigosamente com excesso de estoque. Outra considerao importante que os ingleses, ao entregarem seus estoques ao governo chins, assim o fizeram esperando uma reparao futura, que no veio60. Tais circunstncias ocasionaram uma forte reao inglesa, tendo sido determinado pelo Parlamento ingls o envio de uma esquadra e a mobilizao das tropas alocadas na ndia, para obter satisfao e reparao dos chineses. Enquanto isso, na China, a poltica criminal adotada pelo governo levou ao grande aumento do preo do pio. Mesmo tendo investido bastante na compra de navios e em armas, os chineses no conseguiram paralisar o comrcio de pio, tendo os ingleses se posicionado na Ilha de Hong Kong e continuado seu comrcio, contando ainda com a ajuda dos norteamericanos61.

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As outras causas apontadas foram os desvios sociais da dinastia Qing; a disseminao do vcio do pio entre os chineses; o crescimento dos preconceitos contra estrangeiros na China; e a recusa por parte dos estrangeiros de aceitao das normas legais chinesas e as mudanas nas rotas de comrcio internacionais. Idem, p. 153-154. 61 SPENCE, Jonathan D. The Search for Modern China. New York, London: W.W. Norton, 1991, p. 156.

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Foi justamente no porto de Hong Kong onde ocorreram os confrontos entre chineses e ingleses em setembro e outubro de 1839, com baixas em ambos os lados, tendo sido afundados pela Marinha Inglesa os barcos vela chineses, bastante inferiores em tecnologia naval. Os ingleses ento bloquearam os acessos da baa e invadiram o norte da China, forando o Imperador Chins a iniciar as negociaes, em agosto de 1840. A essa altura o Comissrio Lin j havia sido demitido em decorrncias de suas polticas inadequadas. No final do sculo XIX, foram restabelecidas as rotas de comrcio ilegal de pio, sem se conseguir interromper seu fluxo ou reduzir os lucros, que aumentavam cada vez mais. O Imprio Chins, por outro lado, saiu humilhado e subjugado da guerra, tendo aberto seu comrcio para o mundo, com a Inglaterra como seu parceiro principal, detentora de diversos privilgios. Como se v, a rota do pio teve um importante papel na economia internacional do sculo XIX, levando a Inglaterra a declarar guerra China com o objetivo de manter o comrcio do produto. A segunda guerra do pio aconteceu entre 1856-1860. Estes conflitos internacionais refletiram as divergncias entre as potncias da poca com relao ao controle da venda e consumo de pio e seu reflexo economia mundial, marcada pela oposio entre o proibicionismo chins e o interesse ingls na legalizao do pio na China, por motivao puramente comercial. Depois dos acontecimentos do perodo, a China ultrapassou a ndia e Bengala como o maior produtor mundial de pio, o que levou edio do Decreto Imperial de 1906 que proibiu o cultivo e o uso de pio por um perodo de dez anos. 1.3. Proibicionismo e Controle Internacional de Drogas 1.3.1. Os primeiros tratados internacionais O aumento da percepo social da questo do pio na China do sculo XIX, e os conflitos decorrentes do comrcio mundial ocasionaram a Guerra do pio entre o Imprio Chins e a Coroa Britnica, e marcaram o incio de debates internacionais sobre o controle dessa e de outras substncias psicoativas j no incio do sculo XX. Decorridos quarenta anos dos acontecimentos em territrio chins, o tema do controle das drogas voltou tona, tendo se destacado na Conferncia de Xangai de 1909 o posicionamento proibicionista dos Estados Unidos da Amrica. Naquele foro,

38 reuniram-se os representantes dos treze pases62, dentre eles as potncias coloniais da poca e representantes do Imperador chins, para discutir limites produo e ao comrcio de pio e seus derivados. Na ocasio, apesar de contrariados, os europeus acabaram aceitando formalmente a proposta americana de restringir o negcio do pio apenas para fins medicinais, feita pelo seu representante, Monsenhor Brent, , mas tal acordo no culminou com a adoo de nenhuma medida concreta, diante da presso que os europeus sofriam de suas poderosas indstrias farmacuticas (como as alems Bayer e Merck)63. Isso no impediu, no entanto, que as concluses de tal conferncia constitussem as bases da elaborao do primeiro tratado multilateral sobre o tema, trs anos depois. A importncia da Conferncia de Xangai est na criao de um esboo de um sistema de cooperao internacional em assuntos de droga, que inspirou a primeira conveno sobre pio de 1912, e inaugurou a prtica de encontros diplomticos para o controle de drogas psicoativas, motivados pelo mpeto proibicionista norte-americano. A 1a. Conveno sobre pio da Haia, realizada em 1912, foi mais uma vez incentivada pelos EUA, pressionando pela implementao de sua poltica a nvel internacional, e culminou com a elaborao de um documento de grande impacto, que explicitamente exigia a limitao da produo e venda de pio e opiceos (morfina), incluindo pela primeira vez a cocana, que eram as substncias de maior visibilidade nas sociedades americana e europia do incio do sculo XX. Estabeleceu-se a necessidade de cooperao internacional no controle dos narcticos, restringindo-se seu uso ldico, apenas permitido o uso mdico. A Conveno da Haia representa a consolidao da postura proibicionista dos Estados Unidos no mbito mundial, em especial com a ampliao do rol de substncias proibidas. Gradualmente essa preocupao mundial foi se estendendo a outras drogas, com a proibio total da cocana e de derivados da coca e mais adiante dos diversos tipos de cannabis sativa. As convenes seguintes foram ampliando e reforando o controle sobre novas drogas. A poltica internacional de drogas foi usada como estratgia para justificar a alterao das legislaes nacionais. Nos EUA, sob a justificativa de adequao s Convenes Internacionais, tornaram-se mais rgidas as leis de controle de drogas, com a edio do Harrison Act de 1914. O novo modelo proibicionista internacional

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Dentre eles as potncias coloniais Inglaterra, Alemanha, Frana, Holanda e Portugal. Cf. RODRIGUES, Thiago. Narcotrfico: uma guerra na guerra. So Paulo: Desatino, 2003, p. 28-29.

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influenciou tambm a legislao de drogas na Frana, com a Lois sur les drogues de 1916, e no Reino Unido, com o Dangerous Drug Act de 1920. Em 1925, assinada a 2a. Conveno Internacional sobre pio, que significou um grande passo frente no controle das drogas narcticas, ao determinar aos governos nacionais a submisso de estatsticas anuais sobre a produo, consumo e fabrico de drogas recm criada Permanent Central Opium Board, implementando-se, assim, o primeiro sistema de monitoramento de drogas a nvel internacional. Alguns anos depois, em 1931, foi elaborada a 1a. Conveno de Genebra destinada a limitar a fabricao e regulamentar a distribuio dos estupefacientes ou drogas narcticas, que limitou a fabricao mundial de drogas para finalidades mdicas e cientficas, e restringiu as quantidades de drogas disponveis em cada estado e territrio, sendo vetado aos pases signatrios que excedessem a fabricao ou importao das suas necessidades de narcticos previstas. Cinco anos depois, em 1936, foi assinada a 2a. Conveno de Genebra, direcionada especificamente supresso do trfico ilcito de drogas perigosas, que entrou em vigor em 1939, na qual as partes se comprometeram a efetivar medidas para prevenir a impunidade de traficantes e a facilitar a extradio por crimes de trfico. Com a criao das Naes Unidas em 1945, aps o fim da 2a. Guerra Mundial, foram estabelecidas as linhas mestras do controle internacional de drogas vigente at os dias de hoje, tendo sido concludas trs convenes sob seus auspcios, ainda hoje em vigor64. A primeira Conveno das Naes Unidas sobre o tema, a Conveno nica sobre Entorpecentes de 1961, foi considerada um grande feito na histria dos esforos internacionais para controlar os entorpecentes, sendo reconhecida como um simples e efetivo instrumento que foi amplamente aceito65. Ela instituiu um amplo sistema internacional de controle e atribuiu a responsabilidade aos estados-parte de incorporao das medidas ali previstas em suas legislaes nacionais, alm de ter reforado o controle sobre a produo, distribuio e comrcio de drogas nos pases nacionais, e proibido expressamente o fumo e a ingesto de pio, assim como o simples mastigamento da folha de coca e o uso no mdico da cannabis.64

Foram assinados trs Protocolos: o Protocolo de Genebra de 1946, o Protocolo de Paris de 1948 e o Protocolo para a limitao e regulao do cultivo da papoula, da produo e das trocas internacionais e do uso do pio, de 1953. 65 BASSIOUNI, M. Cherif; THONY, Jean Franois. The International Drug Control System. In: ______. (Org.). International Criminal Law: crimes. New York: Transnational Publishers, 1999, p. 920.

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Porm, na verdade, tal conveno marca o incio de um movimento de militarizao da segurana pblica, com a delegao de legitimidade de represso s agncias norte-americanas, como operadores por excelncia desse tipo de controle policial sobre as drogas66. Nesse momento nota-se a radicalizao do controle internacional de drogas, que passou a buscar a total erradicao do consumo e da produo de determinadas substncias, inclusive algumas que eram consumidas h milnios por tribos nativas da Amrica Latina, como o caso de folha de coca no Peru e na Bolvia. Pretendia-se impor uma valorao negativa sobre uma cultura ancestral, sem levar em considerao a diversidade cultural dos povos. Sob a perspectiva internacional, tal instrumento criou um sistema central de certificao de importao, exportao e de troca de informaes atravs do INCB International Narcotics Control Board. Em 1972, foi assinado um Protocolo emendando a conveno para aumentar os esforos de prevenir a produo ilcita, o trfico e o uso de narcticos, bem como mencionava a necessidade de se providenciar acesso a tratamento e reabilitao de drogados, em conjunto ou em substituio pena de priso nos casos criminais envolvendo adictos. Atualmente, os pases europeus que tm tornado menos repressora sua poltica com relao aos usurios se baseiam nessa referncia ao tratamento e substituio da pena de priso. A grande novidade no controle penal das drogas no perodo que se seguiu foi a elaborao da Conveno sobre Substncias Psicotrpicas de 1972, que incluiu as drogas psicotrpicas no rol das substncias proibidas. At ento apenas as drogas narcticas relacionadas com o pio, alm da cannabis e da cocana, estavam sujeitas a controle internacional, muito embora outras substncias, como os estimulantes, anfetaminas e LSD, at ento fora do controle, tivessem tambm efeitos psicoativos. Alegou-se que os efeitos danosos dessas substncias justificariam a extenso a estes dos mesmos controles existentes sobre os narcticos. A partir de 1976, quando a conveno entrou finalmente em vigor, essas novas substncias referidas, assim como os sedativoshipnticos e os tranqilizantes, foram submetidas a controle internacional. O sistema internacional de controle foi sendo ampliado e atingiu o pice da represso com a vigente Conveno das Naes Unidas contra o Trfico Ilcito de Entorpecentes e Substncias Psicotrpicas de 1988.CARVALHO, Salo. A atual poltica brasileira de drogas. Revista Brasileira de Cincias Criminais, v. 9, n. 34, p. 130. abr./jun. 2001.66

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1.3.2. A Conveno da ONU de 1988 A Conveno das Naes Unidas contra o Trfico Ilcito de Entorpecentes e Substncias Psicotrpicas de 1988, ainda em vigor, foi assinada e depois promulgada no Brasil em 1991. O sistema internacional atual de controle de drogas baseado na referida conveno de 1988, depende da participao dos Estados, que se comprometem a elaborar, implementar e ratificar tratados, sob os auspcios das Naes Unidas, que elaboram os modelos uniformes de controle de substncias. No final da dcada de 80 parecia que o consenso entre os governos tinha sido alcanado, considerando-se o fenmeno das drogas ilcitas como um desafio coletivo global, assentado nos princpios da cooperao e da co-responsabilidade, dentro da proposta repressiva. Um marco apontado da internacionalizao da poltica repressiva norte-americana para o mundo, ou ponto de convergncia no mbito internacional, que antecedeu a prpria concluso da Conveno de 1988, foi a Conferncia Internacional sobre o Uso Indevido e o Trfico Ilcito de Entorpecentes, em Viena, em junho de 1987, onde pela primeira vez a Unio Europia se incorporou ao debate internacional sobre a matria. Nesse evento, foi aprovado pelos governos um plano de atividades em matria de fiscalizao do uso indevido de entorpecentes, para a futura definio das polticas de drogas dos mbitos internos dos pases. A Conveno da ONU de 1988 um instrumento repressivo que pretende combater as organizaes de traficantes, atravs da ampliao das hipteses de extradio67, cooperao internacional68 e do confisco de ativos financeiros dos traficantes69, unificando e reforando os instrumentos legais j existentes. Foi assim criado um sistema com enfoque particular de se opor ao poder militar, econmico e financeiro alcanado pelo trfico ilcito nesses anos de proibio. Esse instrumento internacional, para seus comentaristas, teria assegurado a coeso da resposta internacional contra o trfico de drogas ao propor a harmonizao das definies de trfico de entorpecentes e assemelhados; a incriminao

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O carter internacional dos delitos de trfico de entorpecentes e a necessidade de harmonizao das legislaes nacionais para facilitar a cooperao e a extradio entre os pases, diante do princpio da dupla criminalizao que deve orientar qualquer medida judicial a ser requerida, est prevista no art. 7 da Conveno em tela, e nos seus vinte pargrafos. 68 A necessidade de cooperao judicial est prevista no artigo 9o. da Conveno. 69 O confisco de bens de traficantes regulado pelo art. 5 da Conveno da ONU de 1988.

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da lavagem de dinheiro de origem ilcita; e o reforo da cooperao internacional entre Estados, para adaptar os meios de combate aos novos desafios. Persiste-se na utilizao de termos blicos, como guerra s drogas, combate aos traficantes, represso e eliminao nas leis penais, o que para Salo de Carvalho determina o modelo repressivo e se incorpora ao imaginrio poltico-criminal70. A associao explcita entre o trfico ilcito de drogas e as organizaes criminosas tambm refora esse modelo, pois se considera teriam estas como objetivo minar as economias lcitas e ameaar a segurana e a soberania dos Estados, alm de invadir, contaminar e corromper as estruturas da Administrao Pblica.... O apelo guerra era emocional e mesmo irracional. Dentre os objetivos principais declarados dessa Conveno, estabeleceu-se tambm a meta de erradicao do cultivo de plantas narcticas (o que se aplicava diretamente aos pases produtores de coca da Amrica Latina), e de aumento dos esforos contra a produo ilcita de drogas, incluindo o monitoramento e o controle de substncias qumicas usadas no preparo e manufatura de drogas ilcitas. Foi com base neste ltimo instrumento de 1988 que se internacionalizou de forma definitiva a poltica americana de guerra s drogas. certo que a definio de trfico de entorpecentes contida no artigo 3.1.a. da referida conveno foi contemplada nos sistemas penais de diversos pases. Com o objetivo declarado de uniformizar a descrio tpica das aes ilcitas pelos estados signatrios, a Conveno ampliou o alcance das chamadas ofensas relacionadas com drogas, pois alm da incriminao do trfico e do uso de entorpecentes, determinou a previso legal da proibio e apreenso de equipamentos e materiais destinados a uso na produo de estupefacientes e substncias psicotrpicas; a criminalizao da incitao pblica do uso e consumo de entorpecentes; a punio da participao no crime de trfico; a a