26
CAPÍTULO 1 CONTROLE SOCIAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: ENTRE O POLÍTICO E O ECONÔMICO Valdemir Pires Introdução O controle social da Administração Pública é uma meta que vem adquirindo crescente adesão nos últimos anos, já beirando a condição de um mantra eclético e ecumênico, entoado por acadêmicos, políticos, jor- nalistas, militantes das mais variadas filiações ideológicas. Em reparti- ções governamentais sob reforma, salas de aula (de Sociologia, Econo- mia, Administração e de outras áreas de conhecimento conexas ou próximas), em eventos acadêmicos ou que congregam gestores públicos e policy-makers, dificilmente as expressões accountability, transparência, responsividade, responsabilização, empowerment, capital social deixam de comparecer nos discursos, títulos ou argumentos. Talvez seja pelo sentimento da candente necessidade de recuperar a democracia da vala cada vez mais profunda da descrença – e da dificul- dade em fazê-lo – que se tenha chegado a esse ponto em que se esquece que há uma potencial contradição em reivindicar o controle social da Administração Pública. A palavra administração já implica controle: não se administra sem controlar. Em uma acepção esquemática da administração como técnica (ou ciência, dependendo do ponto de vista), ela envolve planejamento, organização, direção e controle. ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:25 17

ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

CAPÍTULO 1CONTROLE SOCIAL DA ADMINISTRAÇÃO

PÚBLICA: ENTRE O POLÍTICO EO ECONÔMICO

Valdemir Pires

Introdução

O controle social da Administração Pública é uma meta que vemadquirindo crescente adesão nos últimos anos, já beirando a condição deum mantra eclético e ecumênico, entoado por acadêmicos, políticos, jor-nalistas, militantes das mais variadas filiações ideológicas. Em reparti-ções governamentais sob reforma, salas de aula (de Sociologia, Econo-mia, Administração e de outras áreas de conhecimento conexas oupróximas), em eventos acadêmicos ou que congregam gestores públicose policy-makers, dificilmente as expressões accountability, transparência,responsividade, responsabilização, empowerment, capital social deixamde comparecer nos discursos, títulos ou argumentos.

Talvez seja pelo sentimento da candente necessidade de recuperar ademocracia da vala cada vez mais profunda da descrença – e da dificul-dade em fazê-lo – que se tenha chegado a esse ponto em que se esqueceque há uma potencial contradição em reivindicar o controle social daAdministração Pública.

A palavra administração já implica controle: não se administra semcontrolar. Em uma acepção esquemática da administração como técnica(ou ciência, dependendo do ponto de vista), ela envolve planejamento,organização, direção e controle.

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2517

Page 2: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

18 ALVARO MARTIM GUEDES E FRANCISCO FONSECA

A administração complementada pelo adjetivo “pública”, por suavez, supõe que seu planejamento, organização, direção e controle sejamexercidos socialmente, entendida essa expressão como “em nome e embenefício da sociedade”. Assim é, teoricamente, nos marcos da demo-cracia representativa tradicional, consagrada e amplamente aceita, em-bora hoje sob descrédito crescente, porém sem que algo melhor seja cla-ramente vislumbrado.

Apesar disso, não estão desprovidos de razão todos aqueles que in-sistem em clamar pelo controle social da Administração Pública. Elessabem, percebem ou, minimamente, sentem que tanto o caráter social(do povo, para o povo, público, portanto) como a racionalidade (clarezade objetivos e adequada mobilização de meios) da atual AdministraçãoPública apresentam déficits que requerem maior atenção sobre os elosque unem os discursos e as práticas dos governos representativos e desuas intrincadas relações representantes-representados.

Até mesmo em grupos menores e menos complexos do que a socie-dade nacional em seu conjunto (empresas de capital aberto, por exem-plo) verifica-se e discute-se a dificuldade em assegurar que aqueles quetomam decisões e atuam em nome de terceiros o façam, de fato, em be-nefício destes (principal-agent theory – Ross, 1973). Aquilo que Galbraith(1967, p.97) afirma a respeito do alto dirigente empresarial se aplica igual-mente aos políticos eleitos e burocratas recrutados, em tese, por mérito(concurso público):

tem-se que imaginar que um homem heterossexual forte, cheio de vida eseguro de si se abstém das mulheres bonitas e disponíveis que o cercam deperto, a fim de maximizar as oportunidades de outros homens, de cuja exis-tência apenas sabe por ouvir dizer. Tais são os fundamentos da doutrina damaximização [dos dividendos para os acionistas] quando existe plena sepa-ração entre o poder e a recompensa.

1. As dificuldades das relações agente–principal

A gravidade do problema acima identificado por Galbraith pode sercontundentemente expressa por uma anedota produzida pela sabedoriapopular, que não poucas vezes, apesar de sua total falta de método, des-

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2518

Page 3: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

CONTROLE SOCIAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 19

cobre e difunde, sem rodeios, o que cientistas e filósofos levarão muitotempo para formular e sustentar de modo adequado, com seus instru-mentos de construção do conhecimento academicamente aceitos.

A jovem senhora, casada há dois anos, depois de um namoro de cin-co e um noivado de um ano, finalmente dera à luz uma linda menina,realizando seu sonho de ser mãe. Concluída a licença-maternidade (ti-nha ela um excelente emprego como secretária bilíngüe), contratou, de-pois de cuidadoso recrutamento e seleção, uma babá de dezenove anos,universitária com necessidade de complementar os recursos recebidosda família para se manter. Ofereceu um salário acima da média, paraassegurar que todo o potencial da garota fosse utilizado em benefício dafilhinha (não fora à toa que escolhera alguém com bom nível cultural).Como mãe prestimosa e, além disso, com peso na consciência por “aban-donar” a filha tão cedo, apesar das tantas notícias de maus-tratos infli-gidos por babás às crianças sob seus cuidados, a jovem senhora teve aidéia de pedir a seu pai, aposentado de 77 anos, que ficasse em sua casapelos menos durante as tardes, monitorando o trabalho da babá. O bomvelhinho, muito saudável para sua idade, atendeu prontamente o pedi-do da única filha. Mas não foi suficiente. A incansável mãe achou queseu pai, já idoso e cansado, poderia não dar conta do recado. Assim, pe-diu ao marido que, pelo menos uma vez por dia, passasse em casa paraverificar se tudo corria bem (já que ele tinha um trabalho que lhe permi-tia livre organização do expediente). Ficou tudo arranjado dessa forma:a babá cuidava do bebê, o vovô vigiava a babá e o papai monitorava ovovô. Qual não foi a surpresa da mamãe quando, um dia, movida nãosabendo por que tipo de instinto, foi até sua casa em horário incerto enão anunciado e encontrou o vovô zelando o bebê e a babá cuidando dopapai, que no caso se tornou o ex-marido.

O problema fundamental embutido nas relações agente–principal é:quem ou o quê assegura que os desígnios daquele que põe um terceiropara agir em seu nome e interesse sejam perseguidos com fidelidade ediligência?

A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial dasrelações agente–principal e, por extensão, de todo tipo de relação repre-sentante–representado: quem deseja fidelidade total não pode se fiarsenão em si mesmo (ainda que conheça muito o eventual preposto), e,

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2519

Page 4: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

20 ALVARO MARTIM GUEDES E FRANCISCO FONSECA

nesse caso, a fidelidade absoluta é impossível, pois ela é relacional, ouseja, existe apenas entre duas ou mais pessoas. Assim, o máximo que sepode obter a respeito é algo próximo da fidelidade. E mesmo isso nãosurge simplesmente da vontade do principal–representado ou dos prin-cipais–representados: há que se estruturar as relações de modo que apon-tem na direção da fidelidade possível, que é tanto menor quanto maior onúmero de envolvidos e a complexidade dos temas que abarcam. Pormais que se faça, nesse tocante, motoristas ressentidos e secretárias opor-tunistas – atentos e imperceptíveis observadores do cotidiano do poder– se encarregarão de testemunhar pequenos ou grandes atos ou omis-sões, que poderão ser tomados como indícios ou provas jurídicas de des-vio de conduta, e, ao fazê-lo, reforçarão a tese de que a fidelidade, juradaou esperada como prova de gratidão, nunca é completa, muito menoseterna.

Os problemas envolvidos nas relações agente–principal vêm ganhan-do destaque entre as preocupações contemporâneas, não só por causadas numerosas ocorrências de atos de corrupção e desonestidade entregestores públicos e privados (que indicam infidelidade do agente em re-lação ao principal), mas também graças à ascensão de teorias que estãodiscutindo a tendência de descolamento das decisões e ações dos agentesem relação aos interesses do principal, nas sociedades complexas, pro-curando encontrar mecanismos capazes de reduzir esse distanciamento.No campo teórico, duas vertentes oferecem grande contribuição a res-peito: a nova economia institucional (NEI)1 e a teoria da escolha pública(public choice).2 A primeira surgiu como resultado dos esforços para ex-plicar as mudanças recentes no comportamento, estruturação e desem-penho das corporações capitalistas, a partir de meados da década 1970; asegunda decorreu de uma reação contrária à idéia corrente de que o ho-mem público, embora não deixe de ser um agente econômico (por issoegoísta por natureza), se comporta de maneira altruísta nas decisões e

1 Para uma visão introdutória da nova economia institucional, ver ESPINO, J. A.Instituciones y economia. Uma introdución ao neoinstitucionalismo econômico. Mé-xico: Fondo de Cultura Económica, 1999.

2 A respeito da teoria da escolha pública, ver MUELLER, D. Public choice: a survey.Journal of Economic Literature, v.14, n.2, p.395-433, June.

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2520

Page 5: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

CONTROLE SOCIAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 21

ações governamentais. Essas duas correntes de pensamento fornecerãoas bases para as hipóteses alinhavadas a seguir.

2. Os problemas da representação de interesses –públicos e privados

Os problemas da representação de interesses ou da relação agente–principal sempre marcaram as relações políticas republicanas e demo-cráticas, surgindo apenas como germe em relações políticas que nãomerecem esses adjetivos. Ou seja, no campo da política, desde que seconcebe claramente a distinção entre interesse público e interesses pri-vados, surgem os dilemas da representação. E as soluções propostas desdeo início repousam sobre dois pilares: a crença no altruísmo de quem as-sume um cargo ou função pública (sintomaticamente, o homem bomassume, em tempos não tão remotos, o lugar do representante de Deusna Terra) e, na falta ou insuficiência deste, na criação de mecanismos decontrole, entre os quais a separação entre os poderes, para que um con-tenha o ímpeto do outro para manipular ilimitadamente as decisões emeios (mesmo os homens bons precisam de freios para não cair nas gar-ras do mal...).

No mundo dos negócios, o divórcio entre interesse privado e coletivoé mais recente. Entra em cena com o surgimento da sociedade anônima ede sua homônima madura: a firma multidivisional e, depois, transna-cional. Nessas empresas gigantescas, a supervisão de tarefas não podemais ser levada a efeito pelo típico empresário marshalliano, sagaz capi-tão de indústria e eficiente capataz da produção, diuturno companheirode jornada de seus colaboradores, dos quais o mais dileto é recomenda-do por Marshall (1890) como o melhor sucessor possível.

Na firma multidivisional, tal como praticamente inventada por SloanJr. (1963, p.153-4), na General Motors Corporation, a política faz suaentrada triunfal, alojando-se quase no rés-do-chão da fábrica, devido àinevitável necessidade de coordenação entre as divisões:

quanto mais se coordena, mais perguntas surgem na área de política; por-tanto é preciso recorrer à distinção entre política e administração. Por exem-

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2521

Page 6: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

22 ALVARO MARTIM GUEDES E FRANCISCO FONSECA

plo, quando duas ou mais divisões usam componentes comuns, a indepen-dência de cada uma delas é limitada na medida em que é preciso haver umprograma comum entre elas. Portanto, alguém precisa coordená-lo. À me-dida que esse processo é elaborado, mais perguntas que estavam antes naárea administrativa deslocam-se para a área política.

Da coordenação das divisões para a coordenação de unidades sepa-radas, agora até mesmo por oceanos, a política galga níveis nunca antesimaginados por qualquer economista e, sintomaticamente, sob justifi-cativa tão nobre quanto a de um governante: há que se assegurar os inte-resses de quem constitui e sustenta a firma (o acionista). Em outras pa-lavras: coloque-se empresa no lugar de governo e dirigente corporativono lugar de governante. Além disso, equipare-se imposto a dinheiro in-vestido em ações, assim como valorização das frações ideais de capital aotimização de políticas públicas. O resultado será, na condição de prin-cipal, o acionista (cujo dividendo deve ser maximizado pelo agente – odirigente corporativo), uma versão privada do cidadão (cujos tributosdevem ser aplicados pelo principal – o político eleito – para maximizar obem-estar coletivo). A política “invadindo” o reino sagrado da econo-mia. Exatamente o contrário do que tem sido pregado desde o final doséculo XX! Um giro de trezentos e sessenta graus quando se consideramas preocupações entre os norte-americanos quando a sociedade anôni-ma se consolidava em seu país. Berle e Means (1932, p.221), naqueletempo escandalizavam-se com o poder que vinham assumindo os diri-gentes corporativos:

pouco mais resta do acionista, em termos legais, do que a vaga expectativade que um grupo de homens, com o dever nominal de administrar a em-presa em seu benefício e em benefício de outros como ele, realmente cum-pre essa obrigação. O acionista quase nunca está em condições de exigir queesse grupo faça ou deixe de fazer determinada coisa. Só em casos extremosa opinião desse grupo sobre o que é ou não do interesse do acionista sofreráinterferência.

Em conseqüência disso, chegamos a uma situação em que o interesseindividual do acionista foi claramente subordinado à vontade de um grupocontrolador de administradores, mesmo que o capital da empresa se consti-tua de contribuições conjuntas talvez de muitos milhares de indivíduos. A

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2522

Page 7: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

CONTROLE SOCIAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 23

doutrina jurídica de que deve prevalecer a opinião dos diretores sobre o queconstitui o interesse superior da companhia, na verdade equivale a dizer que,em qualquer situação, os interesses do indivíduo podem ser sacrificados àsexigências econômicas da empresa como um todo, sendo praticamente defi-nitiva a interpretação do conselho de diretores quanto ao que constitui umaexigência econômica.

Essa doutrina é significativa. Até agora tem sido empregada basicamen-te com relação ao estado político. Um soberano pode subordinar – e real-mente o faz – o interesse do indivíduo a seus próprios objetivos, embora essepoder possa ser limitado por leis desinteressadas como as contidas na Decla-ração de Direitos da Constituição norte-americana. A peculiaridade da so-ciedade anônima é que ela sujeita direitos econômicos, até agora conhecidoscomo direitos de propriedade, a essas exigências num grau drástico e pecu-liar e com finalidades muito mais limitadas.

A citação longa é merecida pelos autores. Ela não surgiu de uma rá-pida e leviana observação do que ocorria nos Estados Unidos por oca-sião da dramática inovação institucional representada pelas sociedadespor ações contemporâneas. Pelo contrário, é fruto de um amplo e com-petente estudo realizado por eles, que viria a resultar nos fundamentosdo que atualmente se conhece no mundo todo em termos de regulamen-tação do mercado de capitais e das sociedades anônimas.

Qualquer semelhança entre os argumentos que dão base ao controleda empresa gigantesca por um pequeno grupo e ao poder atribuído aosrepresentantes na democracia de massas não será mera coincidência: aempresa moderna é grande demais e pertence a muita gente – não é viá-vel que tantos e tão despreparados decidam sobre seu destino; a socieda-de atual é muito complexa e constituída por um número gigantesco deindivíduos – é impossível que todos possam definir seus rumos. O pro-blema é o grande número. O mandato, a representação, poucos agindoem nome de muitos: eis a solução até agora imaginada e implementada,multiplicando as relações agente–principal nos âmbitos público e priva-do, com a única diferença de que no primeiro o voto se baseia na lógicaum indivíduo = um voto; ao passo que no segundo um indivíduo dispo-rá de tantos votos quantos sejam as ações que detenha.

Tanto nas empresas (mormente nas de grande porte) quanto nos go-vernos, os problemas da relação agente–principal são os mesmos, origi-

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2523

Page 8: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

24 ALVARO MARTIM GUEDES E FRANCISCO FONSECA

nados de diversas fontes, podendo ser enumeradas as principais: racio-nalidade limitada (a bounded rationality de Simon, 1957), insuficiência eassimetria de informações, dissonância cognitiva, oportunismo (do qualum tipo específico é o chamado rent seeking). Todas elas geram custos detransação; todas carregam elevado potencial para geração de conflitos,que demandam soluções institucionais para administrá-las. Nenhumadelas é passível de total erradicação, devendo, pois, ser objeto de contro-le e regulação, tanto quanto possível.

A racionalidade limitada (antípoda da racionalidade substantiva dateoria econômica da concorrência perfeita) ocorre em virtude da impos-sibilidade da mente humana de dominar o vasto campo de possibilida-des determinantes dos fenômenos sobre os quais decisões devem ser to-madas e ações devem ser encetadas. É impossível ao homem dotar-se detodas as informações necessárias a todas as decisões que deve tomar. Àsvezes, é o custo para a obtenção dessas informações que leva a que sejamdesconsideradas, gerando limitação da qualidade da decisão. Outrasvezes, é a percepção distorcida ou a memória insuficiente de dados ante-riores que provoca a mesma limitação. Insuficiência (por ser incomple-to) e imprecisão do conhecimento, essas são as marcas da boundedrationality simoniana a que os adeptos do planejamento estratégico pre-tendem sobrepor-se, no que são criticados por Mintzberg, Aslstrand eLampel (2000, p.62):

O fracasso do planejamento estratégico é o fracasso da formalização – desistemas para executar essas tarefas melhor que seres humanos de carne esangue. É o fracasso da previsão para prever descontinuidades, da institu-cionalização para prover inovações, dos dados factuais como substitutos dosintangíveis, de programações apertadas para responder aos fatores dinâmi-cos. Os sistemas formais certamente podem processar mais informações,pelo menos factuais, consolidá-las, agregá-las, movimentá-las. Mas eles nãopodem internalizá-las, compreendê-las, sintetizá-las.

De fato, criatividade e intuição, sempre presentes nas decisões, gran-des ou pequenas, pessoais, mercantis ou governamentais, são fatores nãopassíveis de enquadramento científico, metodológico ou tecnológico,talvez se constituindo nos recursos únicos contra os efeitos nocivos da

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2524

Page 9: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

CONTROLE SOCIAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 25

racionalidade limitada. Estratégias de mercado, assim como estratégiaseleitorais ou de marketing governamental, apelam, sem dúvida, a ele-mentos de percepção do mundo para além da racionalidade. O políticoou o homem de marketing, que tomar por base de seu argumento ou cam-panha apenas os requisitos racionais, corre sério risco de pôr a perdersua eleição ou o aumento de vendas, respectivamente.

A insuficiência de informações surge em oposição à plenitude de in-formações e conhecimentos candidamente acalentada e brandida pelateoria da concorrência perfeita, que predominou aproximadamente de1870 a 1930. Segundo essa teoria, o mercado tende ao equilíbrio (igua-lando oferta e procura de bens e serviços) graças ao funcionamento dosistema de preços, que respeita a soberania do consumidor e obriga oempresário a operar com custo mínimo, racionalizando assim a produ-ção. A base de tudo é a conhecida lei da oferta e da procura, formalizadaem um diagrama que leva o nome de “tesoura de Marshall” (duas cur-vas, uma positiva e outra negativamente inclinada, formando um “x”no interior de coordenadas cartesianas, onde o eixo “x” representa o preçoe o eixo “y”, a quantidade demandada aos preços possíveis, caindo como aumento daqueles, e vice-versa, até atingir um ponto de equilíbrio,aquele em que as duas curvas se encontram formando a famosa tesou-ra). Pois bem, a validade da lei da oferta e da procura e a credibilidadedos cálculos possíveis a partir da “tesoura” são postas em dúvida se umdos agentes envolvidos nas transações mercantis detém mais informa-ções do que outro – se o consumidor não conhece todos os preços pelosquais pode comprar um bem, ou se não sabe da existência de substitutospróximos, pode tomar uma decisão de compra que não seja a melhor.

A insuficiência de informações reforça a racionalidade limitada. Jun-tas fazem do mundo dos negócios (público e privado) um mundo de in-certezas e apostas, em que os agentes e atores recorrem a artifícios nemsempre matematicamente modeláveis, que podem, quando muito, seresolver pela teoria dos jogos (Von Neumann; Morgenstern, 1944; Nash,1949), em que os equilíbrios são instáveis e dependentes de variáveiscomportamentais nem sempre ponderáveis e os quais se determinammútua e conflitivamente.

A dissonância cognitiva origina-se da incapacidade humana para umaleitura totalmente objetiva do mundo. Um mesmo fenômeno pode ser

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2525

Page 10: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

26 ALVARO MARTIM GUEDES E FRANCISCO FONSECA

interpretado por dois indivíduos ou grupos de forma muito, senãocompletamente, distinta. Isso pode ocorrer em qualquer circunstância,mas aquelas que envolvem interesses conflitantes atraem com maior fa-cilidade o problema. Enquanto o acionista minoritário tem toda certezade que o lucro do ano deve ser totalmente distribuído, o majoritário en-tende que o momento é propício para investi-lo. Cada qual tem razõesdefensáveis que, no final das contas, precisarão ser pesadas e avaliadaspela assembléia que tomará a decisão, sob forte influência dos dirigen-tes. Da mesma maneira, alguns cidadãos entendem que a prioridade domomento é a educação, ao passo que outros fazem opção pela seguran-ça. O chefe do Poder Executivo elabora uma peça orçamentária, e ela éaprovada com restrição pelo Legislativo, sendo essa a forma de decidirsob divergências. Nada do que é, é. Tudo se torna o que é decidido. Cla-ro que as implicações filosóficas dessa percepção são de grande monta (arealidade é pactuada? Tudo são fenômenos? Não há objetividade?), masnão cabe discuti-las aqui, onde se pretende apenas identificar algumasdas principais fontes de problemas nas relações agente–principal.

A assimetria de informações, por sua vez, dificulta as relaçõesagente–principal – no âmbito público e privado – quando os agentes(governante ou dirigente de uma sociedade anônima, por exemplo) do-minam conhecimentos, dados ou informações que os principais têm di-ficuldades para obter ou compreender. Uma decisão sobre quais equi-pamentos adquirir para armar a Marinha, por exemplo, é extremamentecomplicada, desse ponto de vista: o chefe do Executivo pode nada sabersobre o assunto, os membros do Parlamento podem conhecer pouco e apopulação, em geral, mal se dá conta de que a Marinha existe e precisadeste ou daquele equipamento, mesmo em tempos de paz; o ministro daforça marítima é especialista em estratégia (podendo inclusive nem ser,ou não estar entre os melhores), mas pouco sabe sobre as tecnologiasatuais – um ministro, um presidente ou primeiro-ministro, um povo,todos à mercê de um grupo de técnicos, engenheiros e empresários queestão oferecendo determinada solução tecnológica à defesa de um país.Um exemplo, clássico, no âmbito privado: o do sujeito que compra umcarro usado (o lemmon de Akerlof, 1970). O vendedor sabe que é umasucata, mas a enfeitou e passou adiante, porque o comprador se encan-tou com o veículo e achou o preço ótimo.

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2526

Page 11: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

CONTROLE SOCIAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 27

Quanto ao oportunismo, é a mais insidiosa das fontes de problemasnas relações agente–principal. Supunha-se, até pouco tempo atrás, queo agente econômico era egoísta, mas sempre honesto; e o agente político,investido do cargo e graças, talvez, a um juramento, tornava-se altruís-ta. Questionadas essas premissas, a trapaça, o engodo e a transgressãoadquiriram, na teoria, o lugar que sempre ocuparam na vida cotidiana,passando a ser considerados elementos determinantes do desempenhona economia e na política, palcos da ação de agentes absolutamente inte-ressados do ponto de vista individual e não necessariamente honestos.Conforme North (1990), as vantagens do oportunismo, da trapaça e datransgressão não só fazem parte do cotidiano das relações sociais, comoaumentam nas sociedades complexas, como as atuais.

Este recente posicionamento da teoria diante da realidade representaum divisor de águas para as Ciências Sociais, especialmente para a Eco-nomia. Desde Adam Smith (1776) até bem pouco antes dos teóricos dapublic choice (década de 1950), aceitava-se como natural o comportamentoegoísta, admitindo-se a hipótese de que se torna benéfico pelos mecanis-mos do mercado e pela democracia representativa. Entretanto, semprese rejeitou tudo o que pudesse significar desrespeito às regras dos jogos,mercantil ou eleitoral. Fraude, corrupção, desrespeito a regras, transgres-sões de qualquer natureza eram vistos como ingredientes patológicos enão ontológicos das relações sociais. Tanto que o principal motivo dosliberais para a aceitação da intervenção do governo na economia era suacondição de juiz e gendarme: a força se faz necessária, para eles, quandoos fraudadores das regras se apresentam (esporadicamente).

As organizações contemporâneas (públicas e privadas) vêem-se dian-te de fortes e constantes incertezas, originadas de diferentes fontes (in-ternas e externas); deparam com interesses contraditórios que se avolu-mam (entre seus próprios agentes e na relação com outras organizações ecom a sociedade); precisam armar-se contra variados tipos de oportu-nismo. O moral hazard (ou risco moral) paira sobre os contratos: agen-tes que pagam para ser ressarcidos diante de sinistros passam, daí emdiante, a comportar-se negligentemente diante desses riscos,3 elevando

3 Por exemplo, proprietários de veículos que têm seguro contra acidente automobilís-tico passam a ser menos cuidadosos ao dirigir. O número de acidentes aumenta e,

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2527

Page 12: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

28 ALVARO MARTIM GUEDES E FRANCISCO FONSECA

os custos para todos, inclusive os que não são negligentes, em uma “se-leção adversa” (Arrow, 1965). Multiplicam-se as oportunidades para orent-seeking, comportamento típico dos agentes que tentam obter van-tagens nas brechas em relações, instituições e normas para ganhar di-nheiro ou melhorar sua participação em negócios, sem oferecer efetivacontrapartida4 (Tullock, 1967; Krueger, 1974). Em um cenário com es-sas características, a governança (corporativa e governamental5) é umabusca constante para tornar viável resultados e assegurar a sobrevivên-cia e a continuidade, sendo obtida apenas mediante intensos e perma-nentes esforços para aglutinar e contentar os numerosos stakeholders, oupartes interessadas ou envolvidas (Freeman, 1984).

3. Tendências contemporâneas no controle daAdministração Pública

As teorias econômica e administrativa vêm-se debruçando sobre osproblemas de controle na administração privada gerados pelas profun-das mudanças na própria natureza das organizações produtivas contem-porâneas. Os estudos e pesquisas têm resultado em importantes avan-ços na compreensão das organizações e de suas relações entre si, com oconjunto do mercado, com o governo e com outras instituições. Admi-

por conseguinte, o preço das apólices. Os motoristas segurados que são mais zelososirão arcar com o custo da inconseqüência dos que não são.

4 Por exemplo: um determinado grupo econômico consegue a aprovação legal que lheassegura o monopólio das atividades em um determinado mercado, dividindo asvantagens daí advindas com os legisladores que garantiram a conveniente lei. Oslegisladores subornados e os agentes do grupo econômico são rent-seekers, que pre-judicam todos os que consomem os bens ou utilizam os serviços do referido grupo,uma vez que pagarão preços de monopólio e não os gerados da competição entreempresas, que tendem a ser mais baixos.

5 Governança governamental pode parecer uma expressão redundante, mas aqui seaplica, porque uma instituição governamental pode existir sem governança (que nocaso não pode ser chamada de corporativa, como no mundo empresarial), ou seja,sem que as decisões e o monitoramento das ações sejam levados a efeito com a parti-cipação e conhecimento de todos os stakeholders, que no caso governamental incluimuito mais indivíduos e grupos do que no empresarial.

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2528

Page 13: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

CONTROLE SOCIAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 29

te-se agora, graças ao trabalho pioneiro de Williamson (1975; 1985), re-forçado pela contribuição de North (1990), que a empresa é uma estru-tura de governança, que tem o objetivo de assegurar a coordenação dasatividades produtivas, poupando custos de transação e reduzindo o im-pacto das incertezas. Dessa nova visão emerge o “homem contratual”em lugar do “homem econômico”, típico do mainstream da teoria eco-nômica. Dela também resultam princípios, normas e recomendações degestão que representam inovações institucionais que complementam, nasempresas da linha de frente do capitalismo, as inovações tecnológicas,inicialmente explicadas por Schumpeter (1912), precursor do que hojese denomina teoria das capacitações dinâmicas (dynamic capabilitiesapproach), composta por contribuições de Teece (1991), Dosi (1984),Nelson e Winter (1982), Freeman (1982), Prahalad e Hamel (1990).

A teoria das capacitações dinâmicas, de corte neo-schumpeteriano,com a abordagem neo-institucionalista (ou nova economia institucio-nal, capitaneada por Williamson e North) explicam e amparam as trans-formações em curso nas empresas e corporações produtivas e no mundodos negócios. Nisso são reforçadas por contribuições, como as de Alchiane Demsetz (1972), sobre os residual claimants, que teorizam sobre osmecanismos adequados para recompensar e encorajar a ação dos que li-deram a elevação de desempenho e lucros no interior da empresa (parti-cipação nos lucros, por exemplo). São reforçadas, ainda, pelos estudosde Fama (1980) sobre a necessidade de atrelar a remuneração dos execu-tivos à valorização das ações das empresas que comandam, estabelecen-do assim uma ponte que não havia entre a agregação de valor físico e avalorização financeira esperada pelo investidor. Graças a essa ponte, osproblemas de separação entre propriedade (detida pelos principais – acio-nistas) e direção (manejada pelos agentes–diretores) deixaram de ser en-carados como insolúveis, não obstante as dificuldades que a leitura deFama ainda enfrenta.

Das teorias e propostas mencionadas, resulta claro que os problemasda relação agente–principal se tornaram, nos âmbitos produtivo, comer-cial e de negócios, uma temática amplamente aceita. As instituições pas-saram a ser vistas como variáveis econômicas que devem solucionar es-ses problemas. Os conceitos de governança corporativa, regulação, custosde transação, custo de agência, custos de monitoramento etc. constituem

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2529

Page 14: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

30 ALVARO MARTIM GUEDES E FRANCISCO FONSECA

hoje uma epistemologia que permite uma visão bastante contrastante daempresa em relação às empresas típicas do início até meados do séculoXX. Nessa nova visão das instituições produtivas, destaca-se a percep-ção da importância, para o desempenho, de solucionar os problemas dasrelações agente-principal.

No setor governamental, em que a relação agente–principal, embo-ra não com este nome, há séculos é evidente – a democracia representa-tiva é uma relação agente–principal –, as interpretações das mudançasrecentes e as propostas decorrentes para a inovação institucional amplae às vezes radical também fizeram sua aparição desde o início da décadade 1980, estando em curso o debate a seu respeito e a experimentaçãoprática. Em comparação com o que acontece no setor privado, o atraso évisível: a empresa do início do capitalismo passou por uma profundametamorfose (mantendo os objetivos, mudou seu modo de agir e rela-cionar-se), enquanto os governos continuam muito parecidos com o queeram desde o surgimento dos Estados nacionais (apesar de muitas mu-danças de objetivos, praticamente mantêm intactos seu modo de agir erelacionar-se).

Antes da onda reformista que marcou as estruturas e relações gover-namentais nas duas últimas décadas do século XX, com desregulamen-tações, privatizações, terceirizações, aberturas à economia global etc., aatividade governamental foi objeto, a partir da década de 1950, de cerra-da crítica, que atingiu um de seus principais fundamentos: a representa-ção. Havia até então um consenso generalizado em torno da figura dosrepresentantes, tomados como desinteressados interpretadores da von-tade coletiva e diligentes encaminhadores de soluções para os proble-mas sociais. O distanciamento entre os interesses dos eleitores/repre-sentados/principais e os dos eleitos/representantes/agentes era tidocomo um tipo de desvio, passível de correção, uma vez que a ética e amoral se tornassem requisitos do comportamento tanto dos eleitoresquanto dos eleitos/governantes. Com o surgimento da teoria da escolhapública (Black, 1948; Downs, 1957; Olson, 1965; Buchanam; Tullock,1962), que é uma teoria econômica da democracia, passou-se a admitirque o comportamento do homem público (político eleito ou burocratarecrutado) não é diferente do comportamento do homem econômico ra-cional que dá base à teoria econômica.

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2530

Page 15: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

CONTROLE SOCIAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 31

As perguntas básicas que a teoria da escolha pública procura respon-der são: a) por que razão o homem egoísta que atua no mercado maximi-zando sua posição com o mínimo de esforço possível se torna, quandoinvestido de cargo público, altruísta?; e b) quais os indícios fortes de queessa metamorfose ocorre? A resposta a ambas as questões, na perspecti-va da public choice, é de que não há razões para crer nessa transformação:os políticos eleitos e os burocratas são os mesmos seres egoístas e calcu-listas que eram antes de se tornarem governantes e administradores pú-blicos. Eles também maximizam posição. Um – o político – procuramanter-se no poder buscando votos para isso, ou seja, maximiza capitaleleitoral; outro – o burocrata – tenta manter ou ampliar seu poder sobreorçamento, e outros recursos no interior da máquina pública, assegu-rando sua posição e renda, ou seja, maximiza seu bureau.

Para que o eleitor/cidadão interessado no bom desempenho da ad-ministração e das políticas públicas não leve calote diante do egoísmo edo oportunismo dos dirigentes políticos e administradores públicos,monta-se todo um esquema de pressões e contrapressões, que em tudo seassemelha ao esquema da mamãe com a babá mencionado no início desteartigo: o dirigente político eleito vigia, pune e recompensa o burocratapara que este faça, com toda diligência possível, o que aquele determina;ao determinar ao burocrata o que deve ser feito, o dirigente político levaem conta o que os usuários dos serviços e políticas públicos esperam, poisdo contrário perde votos. O eleitor vigia o eleito, que monitora o buro-crata, que coordena e supervisiona o trabalho de todos os agentes públi-cos e contratados para oferecer serviços e políticas públicas.

As relações entre eleitor–governante e entre eleito–burocrata são vis-tas em quase tudo parecidas com a relação consumidor–produtor, com adiferença de que a moeda de curso forçado, nas relações da democraciarepresentativa, é o voto. O voto é o recurso empregado pelo cidadão paraescolher os bens e serviços públicos a serem bancados com os recursosauferidos pelo governo por meio da tributação. Tecnicamente, enquantoo consumidor manifesta sua preferência pelos bens privados por meio dopreço (sistema de mercado), o eleitor manifesta a preferência por benspúblicos pelo voto. Ao fim e ao cabo, o egoísmo dos agentes individuaisnão prejudica o desempenho e não conduz a desvios de finalidade – arelação agente–principal que se estabelece entre eleitor–governante eleito

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2531

Page 16: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

32 ALVARO MARTIM GUEDES E FRANCISCO FONSECA

se equipara, em eficiência, à que existe entre consumidor e produtor. Em-bora não tão perfeito quanto o sistema mercantil, porque as punições erecompensas nele demoram um pouco a serem distribuídas (de um mo-mento eleitoral para outro, apenas), o sistema eleitoral serve bem à finali-dade de evitar desvios de comportamento dos agentes/representantes.

As imperfeições existentes no sistema eleitoral vis-à-vis as imper-feições muito menores do sistema mercantil (na acepção da publicchoice), tornam o governo um ente necessário, mas que deve limitar-seao mínimo, já que o sistema mais próximo da perfeição (o mercado),embora imperfeito ele também, deve prevalecer para a maximização deresultados.

A teoria da escolha pública passou um longo período na condição desimples e pouco acolhida crítica ao processo avassalador (e bem-sucedi-do) de crescimento dos governos, até que uma nova conjuntura sociopo-lítica e econômica, iniciada em meados da década de 1970, abrisse espa-ço para novas visões e teorias que apontavam nas mesmas direções: aineficiência da Administração Pública e insuficiente fidelidade dos go-vernantes em relação aos representados.

De fato, depois de um longo período de crescimento de suas funçõese estruturas (do pós-guerras até 1970, aproximadamente), impulsiona-do por necessidades econômicas, estratégicas e sociais e inspirado pelasteses intervencionistas de Keynes (1936), sobreveio uma onda de esfor-ços, a partir da década de 1990, para “reinventar o governo” (Osborne;Gaebler, 1993), “reformar o Estado” (Bresser Pereira; Wilheim; Sola,1999) e constituir uma “nova administração pública” (Du Gay, 1993;Dunleavy, 1991; Dunleavy; Hood, 1994; Ferlie et al., 1996; Hoget, 1991;Pollitt, 1990). Embora essas teses não desfrutem da mesma sinergia comas práticas que se verifica, no âmbito privado, entre o neo-schumpete-rianismo/neo-institucionalismo e os fazeres no mundo dos negócios, elasapontam na mesma direção e geram resultados semelhantes: inovaçõespolítico-administrativas voltadas para o melhor desempenho do gover-no e para a maior efetividade de suas ações. Há, pois, uma convergênciade objetivos e meios no amplo processo em curso para ampliar o contro-le dos principais sobre os agentes no mundo da economia e da política.Não parece um despropósito afirmar que as tendências de inovação ins-titucional, que desde o final do século XX estão lentamente transfor-

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2532

Page 17: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

CONTROLE SOCIAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 33

mando os fazeres governamentais e as técnicas governativas, não podemser dissociadas das mudanças que o mundo dos negócios está promo-vendo em seu comportamento e na visão de si, do mercado e do governo.

Por que, como, quando e em que ritmo, com quem, contra quem,para quem reinventar o governo, reformar o Estado e reestruturar a ad-ministração pública? Essas são questões que tornam muito mais difícil atarefa de inovação institucional no âmbito público do que no privado.As respostas a essas questões não podem ser dadas sem brotar de especí-ficas concepções do que sejam o homem, o mundo, as relações sociais e opoder. Não é intenção prosseguir, neste artigo, nesse tipo de discussão,em que economia e política entram em confronto. Mas é preciso retê-lacomo pano de fundo para evitar o canto de sereia, cuja estrofe principalpropõe simplesmente que os governos, para melhorar seu desempenho,façam uso dos métodos empresariais, tomando o homem público pelodirigente corporativo. Esse tipo de discurso desconsidera que, antes dalógica econômica contaminar as estruturas governamentais, a lógica po-lítica já se assenhoreou das grandes empresas e delas transborda na ten-tativa de controle dos governos, para atendimento dos interesses dascorporações. Na mais madura das democracias esse fenômeno foi há tem-pos identificado, por exemplo, por Galbraith (1967) e por O’Connor(1973).

Não é possível, nem desejável, neste artigo, fazer um levantamentoexaustivo do que vem sendo feito pelos e nos governos, ou contra eles,para elevar o controle social da Administração Pública. Os últimos trin-ta anos foram marcados por incontáveis tentativas e experiências e tam-bém por reflexões muito numerosas. Delas, entretanto, é possível, e de-sejável para as finalidades aqui perseguidas, esboçar três tendências, àsvezes vistas como alternativas, outras como complementares entre si.

Qualquer que seja a proposta ou a mudança feita para estabelecer ouampliar o controle social sobre a Administração Pública, ela poderá serenquadrada em uma das seguintes tendências:

• reforço do controle político (melhoria da fiscalização legislativa,controladorias internas autônomas e independentes, participação cida-dã etc.);

• introdução de controle mercantil (concessões, contratos de gestão,publicizações etc.) ou

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2533

Page 18: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

34 ALVARO MARTIM GUEDES E FRANCISCO FONSECA

• introdução ou aperfeiçoamento de controle semimercantil (agên-cias reguladoras independentes, por exemplo).

O controle político é o que se exerce por meio dos métodos e ações aoalcance dos agentes típicos das instituições governamentais democráti-cas: o político eleito, o burocrata nomeado por afinidade política e/oucapacidade de articulação e/ou gestão, o tecnocrata recrutado por méri-to e o cidadão/eleitor. A idéia de representação, de fazer em nome de,aparece fortemente nesse tipo de controle, que supõe uma soberania quemigra dos representados (o conjunto dos cidadãos/eleitores) para os re-presentantes mediante eleições periódicas. O mandato é a chave da por-ta para o poder decisório. Ele legitima as decisões tomadas e as medidasimplementadas. E é exercido mediante normas e fiscalização, direta (pelapopulação e usuários de serviços públicos) e indireta (controles internosdo Poder Executivo e agências, controle externo exercido pelo PoderLegislativo, Tribunais de Contas etc.).

O controle político é negociado, pactuado, podendo ser renegociadoe repactuado segundo as conjunturas e correlações de força. É presididopor objetivos e valores mutáveis de acordo com a evolução dos fatos, nãoobstante haja objetivos e valores que a ele se impõem de forma duradou-ra: ética, moral, direitos humanos, direitos civis, direitos políticos, di-reitos sociais, bem-estar coletivo etc. Pauta-se esse tipo de controle poruma noção de homem detentor de valores egoístas e altruístas que con-vivem entre si de modo problemático, tendo de ser objeto de constantearbitragem coletiva.

É político o controle que os parlamentares exercem sobre a elabora-ção orçamentária e, com a ajuda de Tribunais de Contas, sobre a execu-ção orçamentária. Esse tipo de controle com muita freqüência precisa secontrapor à lógica estritamente mercantil/econômica para assegurarvalores e direitos que fogem a ela – direitos sociais, por exemplo.

O controle mercantil é aquele em que a lógica de punição e recom-pensa, de acordo com o desempenho, se manifesta por meio da remune-ração em dinheiro ao agente ofertante de algum bem, direito ou benefí-cio. É o controle que detêm os compradores em face dos vendedores: senão for oferecido o que se deseja, não haverá compra nem pagamento. Éextremamente forte porque ameaça a sobrevivência e os interessespecuniários imediatos de quem não se submete a ele. Por isso costuma

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2534

Page 19: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

CONTROLE SOCIAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 35

ser tido como mais efetivo que o controle político, que é mais fluido eindireto (a não ser quando recorre ao uso da força, como no caso de pri-sões e outras privações físicas).

O controle mercantil é presidido pela lógica econômica de vantagenslíquidas. As decisões viáveis são só aquelas em que a relação custo–be-nefício (a relação entre o que é dado e o que é recebido em contrapartida)é favorável, ou seja, são tomadas e implementadas só quando ofereçamvantagens econômicas, financeiras ou pecuniárias. Pauta-se, portanto,por uma noção de homem racional e egoísta.

É mercantil o controle que os usuários dos planos de saúde exercemsobre as empresas ofertantes, escolhendo entre elas a que mais lhes con-vém e pagando de acordo com suas possibilidades e escolhas. Esse tipode controle dificilmente se deixa levar por razões extra-econômicas.

O controle semimercantil combina elementos do controle político ede controle mercantil, constituindo o que Le Grand e Bartlett (1993)denominaram quasi-market. Procura harmonizar a lógica de defesa dosinteresses coletivos (altruísta) com a tendência egoísta do comportamentoempresarial e individual. Tenta ecleticamente tirar proveito da propen-são à maior produtividade da lógica egoísta/empresarial e, simultanea-mente, dos freios a ela, em face dos interesses sociais e ambientais.

É semimercantil o controle que tem sobre os planos de saúde umaagência reguladora autônoma, cuja finalidade seja assegurar concomi-tantemente duas metas: o atendimento adequado aos usuários (ameaça-do pela sede de ganho dos fornecedores privados) e o equilíbrio econô-mico-financeiro dos ofertantes (que se arriscam diante das possíveistentativas dos usuários de pagar pelos serviços menos do que o custo,amparados em direitos sociais). Trata-se, pois, de um controle com ob-jetivos claramente contraditórios entres si, se não forem feitos esforçoscompatibilizadores específicos, que não podem partir dos agentes dire-tamente envolvidos, posto que são interessados e, portanto, não podemser juízes. Daí a necessidade de um árbitro de fora, com a devida compe-tência técnica, que é a agência reguladora, em tese neutra diante dos in-teresses contraditórios com que lida.

Todos os tipos de controle mencionados são controles sociais: origi-nam-se e se manifestam no interior das relações sociais. A diferença en-tre eles reside na lógica que preside seu funcionamento e eficácia. O con-

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2535

Page 20: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

36 ALVARO MARTIM GUEDES E FRANCISCO FONSECA

trole político repousa nas negociações que envolvem o poder. Soberania,mandato, pactos, acordos são seus instrumentos. O controle mercantilbaseia-se nas capacidades de compra e venda, mediadas pelo dinheiro –em uma palavra, poder econômico. Concorrência, preferência indivi-dual, contratos, risco configuram seu modo de funcionar. O controlesemimercantil mescla poder político e poder econômico, gerando figu-ras de controle híbridas. Marco regulatório, agência reguladora, direitode parceria são as novas figuras na cena do controle.

Cada um desses três tipos de controle apresenta pontos fortes e fra-cos. Há problemas que não podem ser adequadamente resolvidos pe-los instrumentos de ação políticos – por exemplo: como decidir o que equanto deve ser produzido de arroz, álcool e aeronaves? As tentativassocialistas revelaram a enormidade das dificuldades da planificaçãocentral para questões dessa natureza. Em contrapartida, há questõescujas repostas práticas não são aceitáveis quando dadas por mecanis-mos estritamente mercantis – por exemplo: como assegurar níveis ade-quados de defesa nacional senão por meio de decisões políticas de go-vernos soberanos?

O que se ensaia, desde que se está tentando reinventar os governos ede introduzir uma nova Administração Pública, é o aprofundamento doque começou timidamente com as antigas administrações indiretas eempresas estatais que marcaram o advento das economias mistas do pas-sado: mais liberdade de ação para quem realiza as atividades destinadasao bem-estar coletivo, obedecidas as regras de eficiência econômica pri-vada, porém sob algum tipo de controle que preserve o interesse coleti-vo. No lugar do controle governamental (presente nas unidades da ad-ministração indireta – autarquias, fundações etc. e empresas estatais),coloca-se um controle que, apesar de não-governamental (exercido porinstituição privada – a agência reguladora independente), tem objetivospúblicos, sem tornar inviável, porém, os lucros e sem tolher a iniciativaprivada. Reduz-se o peso da política, que ainda era grande nas adminis-trações indiretas e empresas públicas (em sua maioria eliminadas) e abre-se espaço para maior controle mercantil.

De modo pouco evidente, mas inequívoco, o controle semimercantilrepresenta uma “vitória” do controle mercantil sobre o controle políti-co, pois aquele cresce no conjunto das decisões, enquanto este diminui:

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2536

Page 21: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

CONTROLE SOCIAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 37

mais agências reguladoras significa menos governo, mais economia emenos política. Se as sociedades estão aceitando essa nova configuração,é porque estão avaliando positivamente o desempenho dos controlesmercantis, e negativamente os controles políticos, embora não tenhamainda toda confiança nos controles mercantis. Isso que dizer que os ti-pos de controle essencialmente econômicos estão migrando de dentropara fora das empresas, atingindo as atividades antes tipicamente go-vernamentais.

Em paralelo, como já se afirmou neste artigo, os controles políticosvão se ampliando no interior das empresas (entidades tipicamente eco-nômicas na divisão institucional de tarefas nitidamente estabelecida atépelo menos meados do século XX), adquirindo características muitoparecidas com as que têm no âmbito governamental.

Trata-se de um ponto culminante das sociedades de massas e da pro-dução em massa. A produção em massa exige grandes instituiçõesprodutivas que demandam a participação de numerosos agentes – pro-dutivos e financiadores – e relações externas muito amplas e comple-xas, passíveis de controle somente mediante estruturas de governançatão sofisticadas e intensivas de poder político e negociações como as queexistiam no passado só em governos nacionais. A democracia de mas-sas, por seu turno, tornou os governos tão complexos e gigantescos, e asrelações entre representantes e representados tão frias e distantes, quesua eficiência funcional já não pode mais se fiar simplesmente nas bu-rocracias tradicionais comandadas por políticos eleitos à base de plata-formas eleitorais e planos de governo desprovidos de uma estrutura degerenciamento econômico-financeiro focado em resultados, como osexistentes nas modernas corporações capitalistas.

Governos estão demandando mais economia e empresas estão assi-milando mais política: esse o dado novo geral que impulsiona as inova-ções institucionais tanto nas empresas, que se agigantaram e passaram adominar os processos produtivos e mercados, quanto nos governos, quedeparam com maior volume de demandas sociais, com volumes de re-cursos que não cresceram na mesma proporção e com capacidade demobilização e pressão políticas dos cidadãos/eleitores sem precedentes.

Não é à toa que parcerias público-privado, contratos de gestão, pu-blicizacões, consórcios envolvendo entidades governamentais e não-go-

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2537

Page 22: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

38 ALVARO MARTIM GUEDES E FRANCISCO FONSECA

vernamentais (além de empresas), como formas de solucionar proble-mas que antes caberiam aos governos, estão se avolumando e tendem aassim continuar. A reinvenção que está em curso, da qual o chamadoterceiro setor é apenas a ponta do iceberg, não é a do governo, mas a dasinstituições em geral. A nova administração não é somente pública, mastambém privada. A reforma do Estado é apenas a outra face da moedade uma reforma em curso há anos, sem ser anunciada, nas relações so-ciais, para adequá-las ao mundo com mais tecnologia e menos empregodo século XXI, mundo este que, embora inevitável se mantidas as atuaisformas de produzir e distribuir a riqueza e de lidar com o poder paraassegurar o mínimo de coesão social necessário à coexistência pacífica,é, ainda, uma incógnita para todos, podendo vir a ser melhor ou pior doque o atual. As expectativas de quem hoje pensa o futuro, considerandoum horizonte de tempo que ultrapasse o considerado pelos interessesempresariais não são, entretanto, as melhores.

Conclusão

A intenção deste capítulo é chamar a atenção para hipóteses que ca-recem ainda de maior investigação para serem sustentadas, tanto em-pírica como teoricamente. Sua validade repousa na plausibilidade dashipóteses aventadas, uma vez que se baseiam em ampla e respeitadaliteratura e atenta observação do autor, em suas atividades de ensino epesquisa, primeiro em organização industrial e, depois, em finanças pú-blicas. Sua importância está na possibilidade que abre de uma agendade pesquisa com potencial para romper com os procedimentos até hojeem uso para compreender a inovação institucional, que separam os âm-bitos público e privado em campos distintos de investigação, dificul-tando a compreensão dos aspectos comuns que determinam e influen-ciam essa inovação.

O ponto unificador da hipótese aventada – de que empresas e gover-nos enfrentam, atualmente, problemas que exigem inovação institucio-nal derivados de causas que têm a mesma fonte – é a idéia de que no âm-bito público, tanto quanto no privado, existem problemas nas relações detipo agente–principal que são fundamentais à existência dos governos

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2538

Page 23: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

CONTROLE SOCIAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 39

representativos e às empresas de capital aberto, sendo esses governos eempresas os pólos dinâmicos das sociedades capitalistas e democráticasque se generalizaram pelo planeta. Assim, as idéias-força do neo-institu-cionalismo, reforçado pela teoria das capacitações dinâmicas, e as idéias-força da teoria da escolha pública, associada às teses contemporâneas dereinvenção do governo e de nova administração pública, são tomadascomo fundamentos de interpretações e proposituras que tratam de ummesmo problema: a necessidade de adequação das instituições produti-vas e governamentais a uma realidade em transformação a partir do ace-lerado progresso técnico e da erosão do padrão de relações de produção ede relações políticas até agora prevalecentes, sem que se tenha ainda cla-reza de qual será o ponto de chegada das transformações tecnológicas,das inovações institucionais e, portanto, das condições de sociabilidade ede coesão social que estão por vir.

Admite-se, de antemão, uma motivação extracientífica por trás doartigo, vinculando a “busca da verdade” weberiana na pesquisa a umvalor que a transcende e preside: a necessidade de se estudar com muitocuidado o avanço das convicções6 em torno da superioridade dos meca-nismos mercantis de controle da Administração Pública, para evitar oobscurecimento da importância que tem a política para as relações civi-lizadas e democráticas, bem como para a definição das regras que confi-guram o ambiente de competição capitalista, o ambiente econômico. Paratodos aqueles que não se cansam de repetir o ditado bismarkiano de queninguém deve desejar descobrir como são feitas as leis (processo políti-co) e as salsichas (processo industrial nojento, nos tempos do chanceleralemão) se quiser continuar aceitando-as e consumindo-as, há que selembrar de uma diferença fundamental entre as duas coisas igualadaspelo famoso estadista: salsichas podem ser substituídas por outros ali-mentos, até com igual teor calórico e melhor sabor; a política, entretan-to, não tem substituto próximo. Quem não a “saboreia” de um jeito,terá de “engoli-la” de outro. Muda-se a receita, muda-se a cozinha e o

6 As convicções são, segundo Nietzsche, mais prejudiciais à verdade do que a própriamentira. Mas se a filosofia e a ciência porventura podem conviver sem elas, poderá apolítica?

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2539

Page 24: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

40 ALVARO MARTIM GUEDES E FRANCISCO FONSECA

cozinheiro, mas os comensais serão sempre os mesmos – todos, com di-ferentes porções, qualidade de serviço e gula.

Quem controlará os restaurantes? O chefe eleito? O cozinheiro in-dustrial? Os comensais em sistema de revezamento? Ou a babá paraquem a mamãe deixou a papinha antes de ir para o trabalho?

Referências bibliográficas

AKERLOF, G. The market for “lemmons”: quality, uncertainity and themarket mechanism. Quaterly Journal of Economics, v.84, n.3, p.488-500,1970.

ALCHIAN, A. A.; DEMSETZ, H. Production information costs, andeconomic organisation. American Economic Review, v.62, n.5, p.777-95,Dec. 1972.

ARROW, K. J. Aspects of the Theory for Risk-bearing. Helsinki: YrjHahnsson Foundation, 1965.

BERLE, A. A.; MEANS, G. C. 1932. A moderna sociedade anônima e apropriedade privada. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

BLACK, D. The theory of committiees and elections. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 1958.

BRESSER PEREIRA, L. C.; WILHEIM, J.; SOLA, L. (Orgs.). Sociedadee estado em transformação. Brasília, São Paulo: ENAP, Ed. Unesp, Im-prensa Oficial de São Paulo, 1999.

BUCHANAN, J. M.; TULLOCK, G. The Calculus of Consent. LogicalFoundation of Constitutional Democracy. Ann Arbor: University ofMichigan Press, 1962.

DOSI, G. Technical Change and Industrial Transformation. London:Mcmillan, 1984.

DOWNS, A. An Economic Theory of Democracy. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 1957.

DU GAY, D. Entrepreneurial management in the public sector. Work,Employment and Society, v.7, n.4, p.643-8, 1993.

DUNLEAVY, P. Democracy, Bureaucracy and Public choice. London:Harvester Wheatsheaf, 1991.

DUNLEAVY, P.; HOOD, C. From old public administration to the newpublic management. Public Money and Management, p.9-16, July-Sep.1994.

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2540

Page 25: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

CONTROLE SOCIAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 41

FAMA, E. Agency problems and the theory of the firm. Journal of PoliticalEconomics, v. 88, n.2, p.288-307, Apr. 1980.

FERLIE, E. et al. 1996 A nova administração pública em ação. Brasília: Ed.UnB e ENA, 1999.

FREEMAN, C. The economic of industrial innovation. London: FrancesPinter, 1982.

FREEMAN, R. E. Strategic Management: A Stakeholder Approach. Boston:Pittman, 1984.

GALBRAITH, J. K. 1967 O novo estado industrial. São Paulo: Abril Cul-tural, 1982.

HOOD, C. A public management for all seasons? Public Administration,v.69, n.1, p.3-20, Spring 1991.

JENSEN, M. C.; MEKLING. W. H. Theory of the firm: managerialbehavior, agency costs, and ownership structure. Journal of FinancialEconomics, v.3, n.4, p.305-60, Oct. 1976.

KEYNES, J. M. Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro. São Paulo:Abril Cultural, 1983. (Ed. orig. 1936)

KRUEGER, A. The Political Economy of the Rent-Seeking Society.American Economic Review, v.64, n.2. p.291-303, Jun. 1974.

LE GRAND, J.; BARTLETT, W. Quasi-markets and social policy. NewYork: Palgrave Macmillan, 1993.

MARSHALL, Alfred (1890). Princípios de economia. São Paulo: Abril Cul-tural, 1982. 2v.

MINTZBERG, H.; AHLSTRAND, B.; LAMPEL, J. Safári de estraté-gia. Um roteiro pela selva do planejamento estratégico. Porto Alegre:Bookman, 2000.

NASH JR., J. F. Non-cooperative games. The Annals of Mathematics, 2nd

Ser., v.54, n.2 (Sep., 1951), p.286-295, 1949.NELSON, R.; WINTER, S. An Evolutionary Theory of Economic Change.

Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press, 1982.NEUMANN, J. Von; MORGENSTERN, O. Theory of Games and

Economic Behavior. Princeton, New Jersey: Princeton University Press,2007. (Ed. orig. 1944)

NORTH, D. C. Institution, Institutional Change and Economic Performance.Cambridge: Press Syndicate of the University of Cambridge, 1990.

O’CONNOR, JAMES. USA: a crise do estado capitalista. Rio de Janeiro:OLSON, M. The Logic of Collective Action. Cambridge: Harvard University

Press, 1973. (Ed. orig. 1965)

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2541

Page 26: ControleSocial (2Prova) Cap01 · 2017. 12. 22. · A anedota da mãe e da babá ilustra com humor o drama essencial das relações agente–principal e, por extensão, de todo tipo

42 ALVARO MARTIM GUEDES E FRANCISCO FONSECA

OSBORNE, D.; GAEBLER, T. Reinventando o governo. Brasília: MHComunicação, 1993.

POLLITT, C. The New Managerialism and the Public Services: The Anglo-American Experience. Oxford: Basil Blackwell, 1990.

PRAHALAD, C. K.; HAMEL, G. The core competence of the corpora-tion. Harvard Business Review, v.68, n.3, p.79-93, May-June 1990.

ROSS, S. The economic theory of agency: the principal problem. AmericanEconomic Review, v.63, n.2, p.134-9, May 1973.

SCHUMPETER, J. A. A teoria do desenvolvimento econômico. São Paulo:Abril Cultural, 1982. (Ed. orig. 1912)

SIMON, H. A. Theories of decision-making in economics and behavioralscience. The American Economic Review, v.49, n.3, p.253-83, Jun. 1959.

SLOAN JR., A. P. Meus anos com a General Motors. São Paulo: Negócio,2001 (Ed. orig. 1963)

SMITH, A. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suascausas. São Paulo: Abril Cultural, 1983 2 v. (Ed. orig. 1776).

TEECE, D. Technological Development and Organisation of Industry. OECD.Technology and productivity. Paris: OECD, 1991.

TULLOCK, G. The Welfare Costs of Tariffs, Monopolies, and Theft.Western Economic Journal (New Economic Inquiry), v.5, n.3, p.224-32,1967.

WILLIAMSON, O. E. Markets and Hierarquies: Analysis and Anti-trustImplication. New York: Macmillan, 1975.

. The Economic Institutions of Capitalism. New York: The Free Press,1985.

ControleSocial (2Prova) Cap01.p65 7/2/2008, 00:2542