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Copyright © 2018 por Jessé José Freire de Souza...uma suposta “nova classe média”. Essa estratégia de marketing míope nem mesmo era necessária, pois tal ascensão ocorreu

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Copyright©2018porJesséJoséFreiredeSouza

Todososdireitosreservados.Nenhumapartedestelivropodeserutilizadaoureproduzidasobquaisquermeiosexistentessemautorizaçãoporescritodoseditores.

edição:PascoalSoto

preparodeoriginais:CláudioMarcondes

revisão:RafaellaLemoseTaísMonteiro

projetográficoediagramação:NataliNabekura

capa:Retina_78

fotodoautor:©MarcusSteinmeyer

adaptaçãoparae-book:MarceloMorais

CIP-BRASIL.CATALOGAÇÃONAPUBLICAÇÃOSINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJ

S715c Souza,Jessé

Aclassemédianoespelho[recursoeletrônico]/JesséSouza.RiodeJaneiro:EstaçãoBrasil,2018.

recursodigital

Formato:ePubRequisitosdosistema:AdobeDigitalEditionsMododeacesso:WorldWideWebISBN978-85-5608-040-0(recursoeletrônico)

1.Classemédia-Brasil.2.Estruturasocial-Brasil.3.Brasil-Condiçõessociais.4.Brasil-Condiçõeseconômicas.5.Livroseletrônicos.I.Título.

18-53018 CDD:305.550981CDU:316.342.2

Todososdireitosreservados,noBrasil,porGMTEditoresLtda.RuaVoluntáriosdaPátria,45–Gr.1.404–Botafogo22270-000–RiodeJaneiro–RJTel.:(21)2538-4100–Fax:(21)2286-9244E-mail:[email protected]

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Agradeçoatodosquemeconfiaramosrelatosdesuasvidasparaaconstruçãodestelivro.AgradeçodemodomuitoespecialaJoyceAnselmo,comquemdiscutitodasasquestõesdestelivro,eminhadívidaétãograndequenãocaberiaemrodapés.

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Sumário

Introdução

AMORALIDADEDACLASSEMÉDIAAclassemédiaeaconstruçãodoindivíduomodernoAinvençãohistóricado“serhumanosensível”Aprendizadomoralejustificaçãodeprivilégios

ACONSTRUÇÃODACLASSEMÉDIABRASILEIRAAgênesedaclassemédiabrasileiraOcamponacidadeOadventodocapitalismoindustrialAconstruçãodosprojetosnacionais:ummaisinclusivoeooutroexcludenteAoposiçãoentremercadoeEstadocomoexpressãodalutadeclasses–eaclassemédiacomofieldabalançaOgolpede2016esuasprecondições:ocapitalismofinanceiroeopapeldasclassesmédias

TRAJETÓRIASDEVIDAAaltaclassemédia

Sérgio:oCEOdeumbancoexplicacomosecompraomundoAntônio:ogerentedacadeiadelojasealutadeclassesnaclassemédiaAfamíliaPradoRenataeRoberto:aclassemédiadeOsloCaio:ogerentedefazendaAnálisedasentrevistasdaaltaclassemédia

AmassadaclassemédiaRonaldo:publicitárionoRiodeJaneiroInácio:corretorimobiliárioqueviroumotoristadecarrosdeluxo

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William:oengenheiroqueviroumotoristadaUberMirtes:aaposentadaquefoiàsruasesearrependeuLídia:comosetodotipoderacismofosseumacoisasóGisálio:avitóriasobreapobrezaAnálisedasentrevistasdamassadaclassemédia

Conclusão:Aclassemédiaemtemposdecapitalismofinanceiro

Notas

Sobreoautor

SobreaEstaçãoBrasil

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UmdiaaVerdadeeaMentiraseencontram.AMentiradizàVerdade:“Hojeestá um dia maravilhoso!” A Verdade olha para o céu, desconfiada, e

suspira, pois o dia estava realmente lindo. Elas passam algum tempo juntas,chegandofinalmenteaumpoço.AMentiradizàVerdade:“Aáguaestámuitoboa, vamos tomar um banho juntas!” A Verdade, mais uma vez desconfiada,testa a água e descobre que realmente está muito gostosa. Elas se despem ecomeçamatomarbanho.Derepente,aMentirasaidaágua,vesteasroupasdaVerdadeefoge.

AVerdade,furiosa,saidopoçoecorreparaencontraraMentiraepegarsuasroupasdevolta.

Omundo,vendoaVerdadenua,desviaoolhar,comdesprezoeraiva.ApobreVerdadevoltaaopoçoedesapareceparasempre,escondendonele

suavergonha.Desdeentão,aMentiraviajaaoredordomundovestidacomoaVerdade,satisfazendoasnecessidadesdasociedade.PorqueomundonãonutreomenordesejodeencontraraVerdadenua.

Parábolajudaica

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O

Introdução

que será dito acerca da classe média neste livro, o leitor ou a leitora –muitoprovavelmentepertencenteaestaclassesocial–nãoouviunemleu

em nenhum outro lugar. A perspectiva que adoto implica a crítica a todas asconcepções correntes do termo na sociedade brasileira. A despeito de secolocarem como científicas, as ideias dominantes produzem um efeito de“desconhecimento”, e não de “conhecimento”, distorcendo a realidade einvertendoascausasdetodososfenômenossociais.

Pelo menos 90% do que se passa por científico nas ciências sociais ecostumaserensinadonasuniversidadesnãopassademeraconfirmaçãodeumconjuntodepreconceitosquevisa eternizar a dominação social deunspoucossobremuitos.Contudo,nãohácomodispensaraciência,poisapenaspormeiodela é possível realizar a crítica à falsa ciência. Trata-se aqui, portanto, decriticarafalsaciênciacombasenosinstrumentosdaciênciaverdadeira.

Adistinçãodoverdadeiro edo falso será constatadapelopróprio leitorouleitora.Bastaquefaçausoadequadodessedomquenosfoipresenteado,muitoemborasejacadavezmenosutilizado,queéanossacapacidadederefletircomautonomia.

Estou convencido de que tudo pode ser explicado, atémesmo os assuntosmaiscomplicados,deformaclaraeacessível.Éoquepretendofazeraqui,sembanalizar temas complexos nem ceder a superficialidades. Por mais novo e

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surpreendentequesejaoconteúdo,meuobjetivoéquequalquerleitorouleitorapossaacompanharcomfacilidadeareconstruçãohistóricaesocialquefaçoaquidaclassemédiabrasileira.

Alinguagem“difícil”damaioriadosintelectuaistemavercomumusodoconhecimento semelhante ao uso nocivo do dinheiro: para marcar diferençassociais e acentuar o sentimento narcísico de superioridade em relação aos nãoiniciados.Noentanto,qualquercoisapodeserditadeummodocompreensívelparaamaioriadaspessoas.

Infelizmente,ograndeobstáculoparasealcançarumconhecimentoefetivo,emancipador e autônomo está não somente na maior ou menor clareza dasideias, mas sim no medo diante da verdade. Embora possa ser libertadora eemancipadora, a verdade também pode ser bastante incômoda. Apesar dedizermos o contrário para nós mesmos, todos nós amamos as mentiras queconfirmamavidaquelevamosnapráticaequelegitimamasnossas ilusões.Edetestamos a verdade que nos mostra que somos diferentes daquilo queimaginamos.

Oqueesperodo leitor eda leitoranãoé apaciênciaparadestrinchar algoespecialmentedifícil,tampoucoquetenhaconhecimentosprévios.Oquepeçoéque tenha coragem,pois a covardia é a grande aliadadamentira, inclusivedamentiraquenosvendemcomociência.

Assim,nasredessociaiscostumamosnosprotegerdosconteúdoscontráriosao que acreditamos e, nos livros, só buscamos aquilo que confirma as nossasconvicções.A covardia e amentira são falsas aliadas de todos nós e excluemtudooquehádegenerosoebelonanaturezahumana.Elasnostransformamemformigasque,aindaqueprodutivaseordeiras,repetemamesmavidahámilhõesde anos. Só a verdade abre caminho para o aprendizado, e isto só é possívelquandosuperamosomedo.

Nesse sentido, faço uma aposta como leitor ou leitora: se chegar ao finaldeste livro, prometo que você vai mudar, em alguma medida significativa, aconcepçãoquetemdesimesmo,desuaclassesocial,doseupaísedomundo.Concordandooudiscordandodoqueserádito,apostoquenãoficaráindiferente.

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Antes de tudo, porém, teremos de desconstruir as mentiras, pretensamentecientíficas,quenoscontaramavidatoda.

Taismentirassãodedoistipos.Noprimeiro,comointuitodesermosmaisdomináveis, somos induzidos a nos ver como homens e mulheresexcepcionalmente capacitados. Esta é a grande cilada do liberalismohegemônico, o pressuposto implícito de todas as ciências ensinadas nasuniversidades.Segundoele,somos“indivíduos”autônomoselivres,quevivemnummundotransparenteeclaro.

O mundo social está aí para ser conquistado por nós, basta que sejamosdisciplinados e diligentes. Mais adiante, contudo, vamos ver o quanto há deequívoconessa ideia,mesmosendoelaabasenãosódosensocomumdarua,mastambémdoensinodaeconomia,dodireito,dapolítica,dapsicologiaedasociologia,tantonoBrasilcomonorestodomundo.

A falsidade dessa ideia é de fácil demonstração, como se verá. Maisimportante é saber por que, sendo falsa e superficial, todos nós preferimosacreditar nela. Omotivo é simples: ela estimula nosso narcisismo infantil, ouseja,odesejodenosvermoscomofortes,inteligentesepoderosos.Afelicidadeestá logo ali na esquina, e depende apenasdenossavontade livre e autônomaparaserconquistada.

Onossoegoé“inflado”poressasconcepçõesquenosatribuemumperfeitocontrole sobre nósmesmos e nos dizem que sabemos de onde viemos, o quesomos e o que queremos. Elas também reforçam a ilusão de que a vida emsociedade,comtodaasuacomplexidade,édefácilcompreensão.Nestemundo,quenosseriacompletamentetransparente,nãoexistemistérionemmentira–equererépoder.Amamosessasmentirasporquenosdãoaimpressãodequenãosomos limitados nem estamos submetidos a constrangimentos eimpossibilidades.Temosaimpressãodequepodemostudo,bastaquerer.

Entretanto, o custo de amar asmentiras é altíssimo. São justamente essasmentiras–quesomostodosforteseautônomosequeomundoébenigno,justoede fácil compreensão – que nos tornam escravos de uma ordem social

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determinada. Uma ordem social que tem donos. Tais ideias só se tornaramhegemônicasporqueexistemaquelesquelucram,emuito,comisso.

É mais fácil explorar as pessoas quando elas acham que são livres eautônomas.Reclamardoquêedequem,seomundoéperfeitoetransparente?Seháalgoerrado, entãooerro sópodeestar emnósmesmos,quenão somossuficientementelivres,autônomos,diligentesoudisciplinados.Éexatamenteporisso que existem essas mentiras, que estão por toda parte: nas escolas, nasuniversidades,nocinema,natelevisão,nosjornais,naspropagandas–eemtudooquevemoseouvimosdesdequenascemos.Essaéafunçãodelas.

O mesmo se dá com a própria ideia de classe social. Como pode existirclassesocial,sesomostodosindivíduoslivres,autônomosepoderosos?Admitirque pertencemos a uma classe social é reconhecer que somos “reduzidos” aalgumacoisa.Comoficanossaliberdade?Enossaautonomia?Porcontadisso,inventou-seuma ideiadeclassesocialquenão restringeninguém,não reduzaliberdadedeninguémnemretiraaautonomiadenenhumindivíduo.Enenhumaclasse social é mais escravizada por essas mentiras sociais de liberdade e deautonomiaindividualdoqueaclassemédia.

Entretodasasclassessociais,aclassemédia–assimcomoadosexcluídos–étambémamenosconhecida.Masissoaconteceporrazõesopostas.Enquantoos excluídos são simplesmente invisibilizados e desprezados, a classe médiarepresentaumidealdesejáveledegrandeforçasimbólica.

Aocontráriodaclassedosproprietários–admiradamassempresuspeitadeabuso econômico – e da classe trabalhadora – percebida como grandezamassificada–,aclassemédiaestáintimamenteassociadaaoindividualismoeàautonomia individual. E não existe valor mais alto no Ocidente do que aautonomia individual.Alémdisso,umasociedadedeclassemédiaépercebidacomoigualitáriaejusta,conciliandoosregistrospositivosdotrabalhoprodutivo,daliberdadeindividualedavidademocrática.

Daíseentendeporque,quandonopoder,oPartidodosTrabalhadorestenhaescolhido elaborar a sua narrativa – sobre a importante e histórica ascensãosocial dos excluídos sociais que efetivamente viabilizava, elevando-os ao

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patamar da classe trabalhadora, ainda que precária – com base no advento deumasuposta“novaclassemédia”.

Essa estratégia de marketing míope nem mesmo era necessária, pois talascensão ocorreu de verdade e foi inédita na história do nosso paíspatologicamentedesigual.Ofatodetersidoadotadamostraoquantoésedutoraaideiadeclassemédia.Estaéaforçasimbólicaaquemereferi.OeconomistaMarcelo Neri, o pai da ideia de uma “nova classe média”,1 simplesmentededuziuasupostanovaclasseapartirdarendamédia,comoseumaclassesocialfosseconstruídaapenaspelarenda.

Oproblemaéqueessadefiniçãoliberaldeclassesocial,quepermite“falar”declasse,aomesmotempoqueretiradelaqualquerefeitoimportante,continuaaser hegemônica, tanto no campo da direita comono da esquerda.O recurso àdefiniçãodeclassesocialbaseadanarendatornapossívelfalardeclassesocialemantercompletamenteintocadasasmentirassobreliberdadeeautonomia.

Ora, essa concepção impede a compreensão do mundo social, sobretudoporquedistorceeinverteoqueestánocentrodaideiadeclasse.Aclassesocialé,antesdetudo,reproduçãodeprivilégios,sejamelespositivosounegativos.Oproblema é que muitos privilégios positivos, como a posse de conhecimentovalorizado–precisamenteotipodecapitalmonopolizadopelaclassemédiareal–sãoliteralmenteinvisíveis.

Apossibilidadedeaprendizadoefetivonaescolarequeraexistênciaanterior,no ambientedoméstico edesde amais tenra idade, de estímulos emocionais emorais (também invisíveis). Ninguém nasce com capacidade de concentração,disciplinaeautocontrole,amoràleitura,pensamentoprospectivooucapacidadedepensamentoabstrato.

Emseuconjunto,essaherançaimaterialpermiteareproduçãodoprivilégioda classe média real de uma geração a outra, transmitindo, por meio dasocialização familiar típica da classe, o bom aproveitamento escolar e, maistarde,oingressoprivilegiadonomercadodetrabalho.Arendatambémajudaaaprofundaradesigualdade,namedidaemqueasfamíliasdeclassemédiapodemcompraro tempo livredos filhos apenasparao estudo.Nasclassespopulares,

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poroutrolado,osfilhoscomeçamatrabalhareestudaraos12ou13anos.Masainjustiça começa no berço e fica evidente aos 5 anos de idade, quando unschegamàescolacomovencedoreseosoutroscomoperdedores.

Ouseja,arendaauferidapelosintegrantesadultosdaclassemédiasóexistepor conta dessa reprodução invisível de privilégios positivos na infância e naadolescência. Por aí se explica a renda diferencial dos indivíduos da classemédiaemrelaçãoaosdasclassespopulares.Aotornarinvisívelareproduçãodeprivilégios, a pseudociência liberal se tornamanipuladora, invertendo causas eefeitos.

Elalegitimaprivilégiosinjustosatribuindo-osao“méritoindividual”–atal“meritocracia” hoje tão em voga – e chega atémesmo a culpar as vítimas doabandono pela sua própria exclusão. O objetivo deste livro é precisamenteoferecer uma percepção desse segmento fundamental da nossa sociedade, aclassemédia,de tal formaque seja superadoo superficialismocomoqualelacostumaservistaatualmente.

Dada a dimensão de desejo evocada pela ascensão social, mesmo quandofantasiosa, a classe trabalhadora precária – os “batalhadores brasileiros”, nadefiniçãoqueutilizeiemlivrodaépoca2–adorouaascensãoimagináriatantooumais do que a ascensão real. Hoje em dia, o trabalhador precário não seconsidera pobre, mas de classe média. Os pobres são apenas os excluídos emarginalizados. A classe média real, por sua vez, se vê como “elite”,contribuindo para um autoengano fatal e de consequências terríveis para odestinodasociedadebrasileiraedaprópriamassadaclassemédia.

Espero que este livro possa contribuir para a autocompreensão tanto dosindivíduos dessa classe social – da qual faço parte – quanto da sociedadebrasileira como um todo. Nesta tarefa, é crucial o entendimento adequado daclassemédiareal.

Primeiro,numaclassetãomalconhecida–edaqualanossaignorâncialevaem conta apenas a renda, imaginando os seres humanos como páginas embranco,semfamílianempassado–,oqueserequeréesclarecerqueindivíduossãoessesquepossuembemmaisdoqueumacarteiramaisrecheada.

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Trata-se, portanto, de reconstituir os valores que servem de guia para ocomportamentoefetivodosquefazempartedestaclasse,assimcomoasformasespecíficas de sua socialização familiar e escolar, o que vai explicar a rendadiferencial posterior, na idade adulta. Se a classe média é a classe doindividualismoéticoporexcelência,torna-sefundamentalentenderoverdadeirosignificado dessa ideia para identificar a singularidade da classe média noconjuntodasclassessociais.

Esse é um primeiro ponto que vai surpreender o leitor ou leitora. Nummundo onde se imagina existir apenas dinheiro e poder como forçasdeterminantes do nosso comportamento, estou convencido de que é possíveldemonstrar cabalmente a fragilidade e a mentira dessa visão. Os valores queorientamnossavidapodemnãoestarclarosnanossacabeça,masestarãosemprepresentesnonossocomportamentoconcreto.

É bem assim que podemos “provar” a existência de ideias e valores queinfluememnossavida,aindaquenãotenhamosconsciênciadeles.Bastamostrardequemodo,nocomportamentododiaadia,elesestãopresentesedeterminamoquefazemos,mesmosemtermosumaideiaclaradisso.Precisamenteporquenão os submetemos a um exame consciente, tais ideias e valores têm umaeficáciaaindamaior.

Demodo claro e cristalino, vamosmostrar a existência de uma hierarquiamoral,compostapelacombinaçãodeideiasevaloresquenosinfluenciamtantoquanto a busca por dinheiro e poder. O que marca a singularidade dapersonalidadeindividualéacombinaçãodestesestímulosempíricos,odinheiroe o poder, e da eficácia dessa hierarquia moral e valorativa em cada pessoa.Trata-se,portanto,derevelaronúcleocontraditórioetensionaldapersonalidademodernaeaformaespecíficaqueelaassumenaclassemédiabrasileira.

Depois seráprecisodestacar oquediferencia a classemédiabrasileira dasclassesmédiasdeoutrospaíses.Paraoconhecimentodequalquerfenômenodavidasocial,nadamelhordoqueoestudodesuagênesehistórica.Issotambémvaleparaaclassemédia.Aindaqueassuasprecondiçõessociais,econômicasepolíticas tenham variado ao longo do tempo, a sua gênese, desde que bem

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compreendida, nos oferece uma perspectiva muito fecunda para umentendimentoadequadodaconjunturaatual.

Alémdaorigem,outrorecursocrucialdeautoconhecimentoéaperspectivacomparada. Enquanto indivíduos, sempre estamos, quer tenhamos consciênciaounão,noscomparandocomoutrosindivíduos.Talcomparação,sefeitacomadevidacoragemparaaautocrítica,éindispensávelparanostornarmosmelhoresdoquesomos.

Com as sociedades acontece o mesmo. É sempre pela comparação queapreendemosnossosdefeitosevirtudes–e,porextensão,osdefeitosevirtudesdasociedadeemquevivemos.Nossopontoprivilegiadodecomparaçãoseráaconstrução histórica da classe média europeia e, em menor grau, da norte-americana. Quase sempre, essa comparação tem sido feita com base eminterpretaçõesdosmitosnacionais,semcompromissocomaverdadecientífica.No caso brasileiro, sobretudo a partir do mito nacional norte-americano,idealizadocomomodelo.

Alémdamentiraquenosfazcrerquesomosindivíduoslivreseautônomos,sem passado nem classe social, há outro grande engodo a ser desconstruído:aquelesustentadopelomitonacionaldominante,apartirdaidealizaçãoservile“vira-lata” do americano supostamente perfeito e honesto. A classe médiabrasileiraseráoprincipalsuportesocialdessasmentirassociaiscompartilhadasportodos.

Aformaparticulardevidabrasileira–nãoapenasnapolítica,mastambémnas várias dimensões da existência econômica e social – só pode sercompreendidadesdeessaperspectivacrítica,quelevaemcontaaviolênciasutilque se esconde por trás das ideias que fundamentam e justificam nossocomportamentocotidiano.

Além do interesse de gênese e de comparação, o terceiro elementoconstitutivodesteestudoédecaráterrelacional.Comosóseconheceumaclassesocialquandoarelacionamoscomasoutras,éprecisoexaminarasrelaçõesdaclassemédia com a elite e com as classes populares. As classes não existem

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isoladasnomundosocial,massempreemrelaçõesdealiançaededisputapelosrecursosescassoscomoutrasclassessociais.

Por isso, esclarecer os fatores que influem tanto nas alianças quanto nasdisputas nos permite compreender o comportamento de cada classe social narealidadesocialepolítica.Valeressaltar,nesseaspecto,queosrecursosescassosnãosãoapenaseconômicos,comosesupõeemgeral.Osindivíduosdasdiversasclasseslutamtantopormonopolizaroacessoacoisasmateriais–carros,viagenseapartamentos–,comopeloacessoacoisasimateriaisesimbólicas–respeito,reconhecimentosocialeprestígio.Asduasdimensõestêmigualrelevânciaesãoindissociáveis.

Por fim, vamos reconstituir a trajetória de pessoas concretas, seja da altaclassemédia,sejadamassadaclassemédiarealeestabelecida.Navidapráticadecadaumvaiserpossíveldemonstrarqueareconstruçãoteóricaehistóricafaztodoosentidonaconstruçãodeumanovavisão,muitodiversadadominante,arespeitodecomoosindivíduosdeclassemédialevamsuavidaequaissãoseussonhos,angústias,herançaspassadas irrefletidas,concepçõesdefelicidade,etc.Nessesentido,oquesepropõeaseguirécolocaraclassemédiabrasileiradiantedoespelhoerevelarsuasváriasfraçõeseconcepçõesdemundo.

Desdenovembrode2015,quando iniciei o trabalhoneste livro, fizusodedoistiposdemateriais.Oprimeiroincluimaisde200entrevistasqualitativasemprofundidadecommembrosdaclassemédia,conduzidasnoâmbitodoprojetoRadiografiadaSociedadeBrasileira,umapesquisadeabrangêncianacional,quecoordenei enquanto presidente do IPEA (Instituto de Pesquisa EconômicaAplicada).3 O segundo tipo de material abrange dezenas de entrevistas querealizei pessoalmente entre 2016 e 2018, com pessoas de classe média, emdiversascidadesbrasileiras.

Visando tornar mais atraente o conteúdo dessas entrevistas, assim comoexplicitarosvínculosentreostiposindividuaiseostiposmaisuniversaisdeumaclasse, decidi fazer uso de um procedimento consagrado: mesclar váriasentrevistas para criar os indivíduos mais característicos a fim de delinear os“tipos ideais”daclassemédiabrasileira.“Ideal”nãocomosentidodemodelo

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ouexemplo,esimde“construçãoideacional”,deumaideiaelaboradaapartirdarealidade concreta para destacar as características mais relevantes daamostragemoriginalquefundamentouapesquisa.

Devidoàenormedisparidadeecomplexidadedosexemplosconcretos,boapartedaanálisedomaterialempíricoconcentra-senapesquisadascaracterísticascomuns.Apesardeque tudooqueconstadaseçãofinaldeste livro tenhasidoefetivamenterelatadoporalguém,nenhumdessestiposexistiudefatoenquantoindivíduo singular. Todos os tipos são, portanto, um amálgama do relato deváriaspessoasentrevistadas.

Aoanalisarasentrevistas,dei-mecontadeumaimportantedivisãonaclassemédia. Passei a atentarmenos para os cortes horizontais das frações da classemédia, aindaque sejam relevantespara a análise, e enfocarmais asdistinçõesverticais, que permitem diferenciar a “alta classemédia” da “massa da classemédia”,ouseja,ahierarquiaespecíficanointeriordoprópriosegmentosocial.

Aaltaclassemédiaéoverdadeiro representante,o real “capataz”que,pordelegação, exerce a funçãode comandoda sociedade em todososníveis,masemnome de uma ínfima elite de proprietários efetivos.Que esta classemuitobem paga, mas com origem e trajetória de classe típicas da classe média, sepercebacomo“elite” fazparteda ilusãoobjetivaque lhepermitedefender tãobemosinteressesdosseuspatrões.

Jáamassadaclassemédiaperfazoquesecostumadenominarclassemédiabaixaoumédia–ouainda,peloscritériosaproximativosderenda,aschamadasclassesA e B. Nesse sentido, de acordo com o critério exclusivo de renda, amassadaclassemédiaabrangeamaioriadaclasseAeatotalidadedaclasseB.A alta classemédia, por sua vez, abrange apenas os segmentos superiores daclasseAsegundoomesmocritério.

Assim,emtermosquantitativos,amassadaclassemédiaperfaz,nomáximo–osresultadosvariamconformeocritérioadotado–,4entre15%ecercade18%da população brasileira. A alta classe média é bem menor e não inclui,certamente, mais do que 2% da população, sendo a fração de grandesproprietários,a“elitereal”,aindabemmenoremaisrestrita.

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Para efeitos de quantificação, sempre meramente aproximativa, parto dopressupostodequenomáximo20%dapopulaçãobrasileirafazpartedaclassemédiareal.Nocontextobrasileiro,portanto,essaéumaclasseprivilegiadapeloacesso facilitado à incorporação de capital cultural e conhecimento útil maisvalorizado e prestigioso. E isso ficamuito evidente quando a comparamos àsclasses populares. Esse é o dado fundamental, como veremos a seguir, e suaquantificação,commargemdeerrodeumpoucomaisouumpoucomenos,temimportânciasecundária.

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AMORALIDADEDACLASSEMÉDIA

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E

Aclassemédiaeaconstruçãodoindivíduomoderno

mtodasasépocaselugares,ossereshumanostêmnecessidadessimilares.Todospossuemuma“necessidadeexterna”–porcomida,proteçãocontra

as intempéries e sobrevivência material –, e uma “necessidade interna” – dedotar de sentido a própria vida. A necessidade externa nos remete à nossarealidade“animal”eaoimpulsodeautopreservaçãoquepartilhamoscomtodososseresvivos.Jáanecessidade interna, imaterial,éespecificamentehumanaetemavercomodesafiodeconstruirumavidavirtuosaefeliz.5

Aformaespecíficapelaqual os indivíduos e as sociedades resolvemessasquestõesfundamentaismudadeacordocomolugareaépoca.Masnãovariaofatodeseremambasasquestõescentraisdaexistênciahumananesteplaneta.Éexatamente isso que nos permite comparar indivíduos e sociedades muitodistintasnoespaçoenotempo.

A necessidade externa, que se confunde com a dimensão econômica dasobrevivência, é sempre mais evidente e compreensível. O que muda nessadimensão é fundamentalmente o nível tecnológico, que permite dominar anatureza e colocá-la a serviço dos homens. A necessidade interna é de maisdifícil compreensão. Como possui uma dimensão moral e política além daexistencial, ela tem a ver com a legitimação pessoal e social que justifica aexistênciaindividualeadominaçãosocialemtodososaspectos.

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Nasociedademoderna,tendemosareprimiressasquestõeseanãoenfrentá-las de forma refletida e consciente. Só a necessidade externa acaba por serconscientemente articulada.Mais que isso, ela aparece como o único aspectorelevantedavidapessoalesocial.Anecessidadeinternadejustificaçãoesentidoéreprimidaepermaneceirrefletidaefragmentada,relegadaaoindivíduoisoladoeincapazdeseabstrairdeseuprópriocontexto.

Nãoporacaso,portanto,acapacidadehumanadeautorreflexãoedescobertadenovos sentidospara avidapessoal e social sempre foi recalcada emantidasob estrita vigilância. Essa capacidade humana é revolucionária e, quandodeixada livre, tende a questionar o sentido da tradição e da reproduçãoimpensadadavida.Osdetentoresdeprivilégiosnãotêminteressenessetipodeliberdade, que abre o caminho para a crítica à tradição e a invenção de ummundonovo.

Esseéocasodanossasociedadeatual.Háumacontradiçãoóbviaentreasnovas possibilidades históricas de acesso à educação e à informação,potencialmentefavoráveisàdifusãodopensamentoreflexivoeautônomo,e,dooutrolado,asforçasmobilizadasparaqueissojamaisaconteça.Umaimprensamanipuladoraehipócrita,comoabrasileira,umaindústriaculturalantirreflexivae concepções demundo hegemônicas e subservientes ao poder de fato são osatuaisexércitossimbólicosquemantêmsubmissaasociedadeebloqueiamseupotencialdedesenvolvimentohumano.

Parasabercomochegamosaesteponto,nadamelhorquerevisitarasorigenseagênesehistóricadessasagadoespíritohumano.Deinício,aconstruçãoeainterpretaçãodanecessidadeinternasãodeterminadaspelareligião.Todaavidasimbólica dos indivíduos articula-se em função de mensagens religiosasparticulares.Para alémdamerapercepção físicado corpo e suasnecessidadesfisiológicas, a própria ideia de “individualidade” resulta do desempenhoespecíficodeumacertamensagemreligiosa.

Assim,a ideiaque fazemosdenósmesmos,hojeemdia,como indivíduosdotadosdevontadeprópriaestálongedeserumfatonatural,comoonascerouopôr do sol. Como todas as concepções importantes quemovem nossa vida, a

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ideiadequesomosindivíduosquepossuemvontadeprópriaéresultadodeumaconstruçãohistórica.

Essaconstruçãohistóricateveumpanodefundoreligioso.Osurgimentodanoçãodeumaindividualidadequenãosópensaomundoapartirdesimesma,comoefetua“escolhas”deacordocomsuacapacidadedediscernimento,éumprodutoda tradição judaico-cristã.Essa tradição estánaorigemde tudooquenosparecemaiscaracterísticodoOcidente.AocontráriodoqueafirmamcertascorrentesdoIluminismo,omundodaAntiguidadeedaIdadeMédia,dominadopelareligião,nãofoiumaépocadetrevas.

Areligiãofoiaformapelaqualavidasimbólicahumana,mesmonoâmbitodapolítica,conseguiusearticulareseexpressardemodocompreensívelparaaspessoas daquela época. Até o próprio nascimento da “consciênciamoral” – acaracterísticamais importante da individualidade, pois permite a escolha entreformas de vida conflitantes com base na reflexão – é um produto direto dodesenvolvimentodasreligiões.

Em termos históricos, foi o judaísmo antigo que legou essa conquista aoOcidente.Comojudaísmo,pelaprimeiravezosmandamentosdadivindadesãopercebidoscomodemandasmoraisdirigidasàconsciência individualdos fiéis,que“escolhem”,deacordocomsuaconsciência,seguirounãoaregraimpostapeladivindade.Éaliberdadedeescolherentrecaminhosalternativosquefundaefaznascer,historicamente,amoralidadenosentidoemqueaconhecemoshoje:a introjeçãododilemamoral na consciência individual nos torna responsáveispela vida que escolhemos. Esse dilema simplesmente não existia antes de tersidoinventadopelojudaísmoantigo.

Antesdodilemamoraldirigidoàsconsciênciasindividuais,oquehaviaeraoimpériodamagia,ouseja,deinterdiçõesmoraisexternascujoúnicoapeloeraatradiçãocompartilhadaemsociedade.Emgeral,adesobediênciadoindivíduoaessasregrastradicionaisacarretavacastigosimpiedososouamorte,poiseratidacomo uma falta que colocava em risco a sociedade inteira e, portanto, exigiaumapuniçãoexemplar.

Percebidoscomopartedeumtodosocialindiviso,osindivíduosnãoseviam

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comodotadosdeconsciênciaoudevontadeprópria.Emresumo,elesexistiamfisicamentecomoindivíduos,comcabeça,troncoemembros,masnãoestavamexpostos ao desafio da escolha existencial, que empresta dignidade moral ànoçãodeindividualidade.

O cristianismo recebe e aprofunda o legado judaico. A mensagem de sãoPaulorompeadivisãojudaicaentreeleitosenãoeleitosedifundeaideiadequetodossãoiguaisepassíveisdesalvação.Agora,amensagemreligiosaseestendepotencialmenteatodaahumanidade.NoséculoIV,santoAgostinhointerpretaocaminhopara a salvação nos termos da ideia platônica da virtude.O “bem” édefinido como o controle do espírito sobre as paixões corporais, tidas comoperigosas e incontroláveis.A partir de então, quemquisesse ser salvo teria decontrolarseusimpulsosnaturais,comoodesejosexualeaagressividade.Jásenota,então,a formasingularpelaqualas ideias influenciamocomportamentopráticodaspessoascomuns.

Anoçãoplatônicadevirtudepassaaserafontemoralqueseparaaideiadebem e demal noOcidente,mas não porque todos passaram a ler Platão e seconvenceram intelectualmente de que ele tinha razão. Longe disso. A enormemaioria mal sabia ler e jamais conseguiria acompanhar os meandros de umpensamento complexo como o do filósofo grego. Não obstante, as pessoascomuns passaram a se guiar na vida cotidiana por um platonismo prático,porque, no cristianismo, o caminho específico da salvação eterna – o objetivoprincipal da forma como era interpretada na época a necessidade interna deconferir sentido à existência – requeria o controle das pulsões corporais doindivíduo.

Assim,amaiorinstituiçãodoOcidente,aIgrejacristã,exerceuumimpactoextraordinário na humanidade, com seu exército de padres emissionários quechegavamaosrecantosmaisremotosafimdedifundirumamensagemoralparaaqueles que, embora não soubessem ler, podiam ouvir e aprender. As ideiasmoraiseaeficáciapráticadessamensagemsingularestão,portanto,intimamenterelacionadasaoesforçocotidianoeincansáveldeinstituiçõesimportantes.Essaéumaconstataçãofundamentalparaosfinsdestelivro.

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Dada a invisibilidade desse processo secular de inculcação e incorporaçãoinconscientedeideias, tendemosaacharquenossoshábitosecomportamentosnossãotransmitidospelosangueouquevêmdasnuvens.Éesseesquecimentoque nos faz de tolos, pois a dinâmica das instituições que nos dominam e osinteresses que elas defendem se tornam literalmente invisíveis. Não dá paracriticaroquenãosevêeoquenãosepercebe.

Daíqueointuitodestelivrosejareconstruirosmeandrosdessaepopeiadasideias que dão sentido ao nosso comportamento prático. Nosso objetivo érecuperar essa lembrança e, com ela, a capacidade reflexiva que os podrespoderes, voluntariamente, nos fizeram esquecer com o intuito de melhor noscontrolar.

Parateremefeitopráticonavidareal,asideiasprecisamestarconectadasaosinteressesmateriaisousimbólicos–comoo“interesseideal”nasalvaçãoeterna–quemovemavidaeasescolhasdosindivíduoscomuns.Oestudodasideiasporseuvalorintrínsecoédeinteresseapenasparaespecialistaseintelectuais,ouseja,umaparcelaínfimadahumanidade.

Nãosão tais ideiasquenospreocupam,e simaquelasquese tornamguiaspráticosdavidacomumdepessoascomunsecominteressescomuns.Oquenosimporta, portanto, é a eficácia social das ideias, que as torna fatoresdeterminantes da existência cotidiana. Existem ideias que humilham,desempregameoprimem,fingindoquefazemprecisamenteooposto.Sãoessasideiasquetêmdeserdenunciadas.

Nesse sentido, é crucial notar que as ideias práticas e influentes não sãoapenas construções cognitivas destinadas a perceber o mundo como sendoverdadeiro ou falso. As ideias relevantes são aquelas que vinculam de modoorgânico o impulso cognitivo de compreender o enigmadomundo, ou seja, odilema do verdadeiro ou falso, com a questão ainda mais importante dedistinguirocertodoerradoeojustodoinjusto.Asideiasquedefatoimportamsão as ideiasmorais, que permitem conciliar a interpretação domundo com aatuaçãopráticaepropositalnele.

Amoralidadenãoseconfunde,portanto,comomoralismo,ouseja,coma

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obediênciarígidaaprincípioséticostradicionais,emboraestasejaumaconfusãocorriqueira.Definidacomoaaçãorevestidadepropósitonomundo–implicandouma escolha e, portanto, uma responsabilidade pela vida escolhida –, amoralidadeéadimensãomaiselevadadavidaindividualesocial.

Desse modo, a necessidade interna de conferir sentido ao mundo, essademandapresente em todas as épocas, não apenas éumanseio intelectual porexplicaçãoeesclarecimento,mas,antesdetudo,umanecessidadepragmáticadeorientar o comportamento prático e dotá-lo de propósito. A moralidade é adimensão que ilumina e constrói uma prática concreta. E nós, como sereshumanos, somos a resultante da ação de ideias que são, ao mesmo tempo,valoresenosorientamnaconduçãocotidianadavida.

Éanoçãoplatônicadevirtude,definidacomoasuperioridadeeocontroledoespíritosobreaspaixõesepulsõesanimais,quevaiconstituiropanodefundomoral pressuposto em nossas ideias e avaliações do mundo. O modo comoavaliamosanósmesmoseaosoutros,anossapercepçãodealgocomovirtuosooucomovil, sóseexplicacombasenessahierarquiamoral“invisível”.Aindaque não seja refletida, tal hierarquia domina a produção de todas as nossasavaliaçõesmorais.

Semacompreensãoeapercepçãodessafontemoral– tantonasuagênesecomonaformapelaqualcontinuaatéhojeaserreproduzidainstitucionalmente–,imaginamosquenascemoscomideiasmorais,talcomonascemoscomolhoseboca. A ignorância acerca de tudo o que nos move e determina nossocomportamento prático faz com que tendamos sempre a considerar como“natureza” e “dado” aquilo que, na realidade, é “cultura”, ou seja, “invençãohumana”econstruçãohistórica.

Pior ainda, tendemos a achar que as ideias morais são criadas por nósindividualmente,comosecadapessoa tivesseseusprópriosvaloresmorais, talcomo cada um tem sua bicicleta, seu carro ou apartamento. O liberalismodominantenadadebraçadanessasilusõesobjetivas.Paraosegosinfantilizadoseinflados,elereforçaaideiadequecadaindivíduodefinesuavida,seuconceitodefelicidadeeseusprópriosvalores.Oresultadoconcretodissosãoindivíduos

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dóceis e tradicionalistasna esferapessoal epública– e tambémconsumidoresávidos nummercado que sempre oferece algum produto certo para acalmar aansiedadeeainsegurançaexistenciais.

Imaginarqueosvaloressãocriaçõesindividuais,comofazemosnodiaadia,é uma bobagem facilmente criticável e passível de refutação empírica. Ora, amoralidade é, por definição, social, ou seja, pressupõe aomenos duas pessoascomexpectativasrecíprocasdecomportamento.Nessesentido,todoindivíduojánascedentrodeumcontextomoral,oqualele incorporademodo insensíveleirrefletido pela socialização familiar, e depois escolar, como algo afetivo esagrado,umavezquetransmitidoporpessoaspróximaseamadas.Daíadvémaforça emotiva das demandas morais, as quais, quando descumpridas,inexoravelmente despertam sentimentos de culpa, de ressentimento e deautodesvalorização.

Esses inevitáveis “sentimentos morais”– como culpa, remorso,ressentimento, raiva ou inveja – comprovamque o “social” e sua forçamoralestão“dentro”–enãoapenas“fora”–denós,eprecisamenteporcontadissoessa força é tão acentuada. Ninguém inventa os próprios valores morais. Nomáximo, enquanto indivíduos, podemos reagir de modo peculiar ao enormeimpacto de umamoralidade social que, por sua vez, nos oprime e nosmoldaquaseporcompleto.Asreaçõesindividuaisàmoralidadesocial,quandonãosetornamforçasocialepolítica,tendemaserumateimosiadescontínua,subjetivaedesprovidadeconsequênciaspráticas.

NoOcidente,oprocessodesecularizaçãodomundomudouradicalmenteaforma como os indivíduos percebem o dilema moral. Antes, a noção defelicidade e virtude que dava sentido à vida acenava com a possibilidade desalvação no além-mundo.Emmedida variável, de pessoa a pessoa, esse era oúnico meio para conferir sentido e motivação à existência, para além da lutacotidiana pela sobrevivência. Isto muda com o advento histórico doindividualismo secular como valor moral e existencial mais alto: a partir deentão, o próprio homeme suavida – aqui e agora, e nãonohipotético futuroapósamorte–estãonocentrodetodaaproblemáticarelativaaosentidodavida.

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Nesse processo histórico em que se deu a passagem da religiosidade àsecularizaçãodomundo,ofundamentalécompreendercomoosentidodavidapessoaledomundosocialdeixadedependerda“salvaçãonoalém-mundo”parase tornar “salvaçãonestemundo”.Não foi algoqueocorreudeumdiaparaooutro, nem supõe o esclarecimento de quem até então vivia nas trevas, comodefendealeituratriunfalistadoiluminismoliberal.

Naverdade, literalmente todas asquestões existenciais epolíticas atuais jáestavampresentesnacompreensãoreligiosaecristãdomundo.Todasasideiasassociadas à valorização da igualdade, à autonomia e à felicidade individualforam herdadas e transfiguradas a partir do repertório religioso. Ainda que areligiãocontinuesendoimportanteparamuitos,asgrandesquestõesindividuaise sociais vão ser definidas, a partir de então, sem o recurso à linguagem e àsemânticareligiosa.

Vimos que a hierarquia moral legada pelo cristianismo tem como eixoprincipalaoposiçãoentreespíritoecorpo.Tudooqueéassociadoaoespíritopassaasernobreedignodeadmiração,etudooquetemavercomocorpoesuas funçõesévistocomoanimal,banale inferior.Como,paraa interpretaçãoquesetornadominanteapartirdesantoAgostinho,oespíritoédefinidocomoum“espaçointerno”,umadimensãode“interioridade”,eletambéméocaminhoquelevaaDeus.

Note que a ideia atual de interioridade, como espaço subjetivo só nosso edentro de nós, não caiu das nuvens e muito menos é inata. Ela foi criada einventada historicamente, e só depois de sua reiteração secular – e persistenteinstitucionalização cotidiana – foi que passamos a ver essa ideia como algonatural e óbvio como o nascer do sol. Antes de tudo, porém, ela é umaconstruçãohistóricaecontingentedareligiosidadeocidental.

Aconcepçãodeindivíduodotadodeumadimensãomoralautônomaecapazdeescolhaconscienteeresponsável,demarcandoumespaçointerioresubjetivopróprio,sofretransformaçõesprofundastambémcomaReformaprotestantedoprincípio do século XVI. O protestantismo está na origem dos aprendizados

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históricos que vão marcar indelevelmente a versão secularizada daindividualidadeocidental.

Cabe ressaltar aqui que as consequências do protestantismo não serestringemaospaísesprotestantes,comomuitos imaginam, inclusiveboapartedos intelectuais. Primeiro, o protestantismoprovocou umaprofunda reação docatolicismo,pormeiodaContrarreforma,emgrandemedidaumcompromissoeuma aceitação parcial de várias concepções protestantes. Segundo, astransformaçõesculturaisdoprotestantismoafetaramosmaisdiversosâmbitos–entre os quais o econômico, o político e o cultural –, com reflexos nassociedadesocidentaiscomoumtodo.

Umexemplo são as fábricas, escolas, universidades e empresas, empaísestantocatólicosquantoprotestantes,quevãoestimularomesmotipodedisciplinaeautocontrolequeoprotestantismoantesdifundiaporconvencimentoreligioso.Hojenãoprecisamosqueninguémnosconvençadenada.Simplesmentesomosreprovados nos exames escolares se não formos disciplinados no estudo ousomosdespedidossenãonosmostrarmosdisciplinadosnotrabalho.Ouseja,oqueantesoprotestantismodefendiasobaformadeprincípiosreligiososhojenoséimpostopelaforçadaspráticas,comseusprêmiosecastigos,dasinstituiçõesmaisimportantesemnossavida.

Decertomodo,somostodosprotestanteshojeemdia,postoque,naprática,independentementedesermosounãoreligiosos,vivemoscotidianamentesoboimpériodas ideiasdadisciplinaprotestante.Dáatéparadizerqueaverdadeirarevoluçãoburguesaecapitalistafoiamudançadasconsciênciaspromovidapeloprotestantismo, que se tornou o princípio universal da eficácia de todas asinstituições e, portanto, serve de orientação para o comportamento prático daspessoascomuns.Écrucial,portanto,entendercomoessas ideiasse tornamumimperativopráticodofuncionamentocorriqueirodasinstituições,ouseja,comoantigasideiassetornamtijolo,cimento,examedeescolaecontratodetrabalho.Semissonãocompreendemosnadadeimportantenomundomoderno.

Nessa redefiniçãomoderna da noção de indivíduo, o primeiro impacto doprotestantismotemavercomanovavaloraçãoatribuídaaotrabalhoprodutivo.

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Até então, o trabalho havia sido encarado historicamente como restrito aescravosou servos, umaatividadedestituídadenobreza e respeitabilidade.Asclasses superiores tinham sua nobreza confirmada pelo fato de que nãotrabalhavam, sendo o ócio e a contemplação atributos que conferiam honra enobreza.

Martinho Lutero e, em seguida, todas as vertentes do protestantismoinvertem por completo o sentido do trabalho. Em vez de desonroso edesrespeitoso, o trabalho passa ser visto, enquanto meio de realização dodesígnio de Deus na terra, como “sagrado” e fonte principal de toda honra,prestígioerespeitosocial.

A revoluçãode consciências protestante vira de ponta-cabeça o imagináriosocial.O trabalhoprodutivoecotidiano torna-seosuporte tantodaautoestimacomodo reconhecimentoe respeito socialdo indivíduo.Nãohácomonegaroaspecto democratizante dessa mudança histórica. Como todos podem exerceralgumaformadetrabalho,ahonradeixadeseratributodanobrezaepassaaserfontedeumadignidadepotencialmenteuniversal.Earevalorizaçãoprotestantenãodiferenciaos tiposde trabalho,oqueabririaaportaparanovasdistinçõesemfunçãodediferentesofícios,masenfatizaomodocomoserealizaotrabalho,qualquerquesejaele.

Comodizofilósofoneo-hegelianoCharlesTaylor,referindo-seàpassagemdahonraàdignidade,oDeusprotestante“amaadvérbios”.6Qualquertrabalhoédigno desde que exercido da melhor maneira possível. Aí está o núcleo damensagemprotestante.Aqui jásenotaasementedoprocessodesecularizaçãodo protestantismo se transformando em utilitarismo, na medida em que, aosolhosdeDeus,otrabalhoganhaosentidodetrabalhoútilexercidoemfavordobemcomum.

OpensadoralemãoMaxWeberfoiquemmelhorcompreendeuosignificadoe a importância da revolução protestante para o mundomoderno. Para ele, oprotestantismo era um “mediador evanescente”, que “morre” para que nasça asociedadedisciplinardocapitalismomoderno.7Nessesentido,oprotestantismose “realiza” no mundo, com suas ideias se tornando práticas institucionais e

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sociais. As pessoas costumam esquecer que tais práticas, hoje generalizadas,foram um dia inventadas por religiosos e não caíram do céu. Para Weber, oprotestantismocomeçacomoumaideiamoralreligiosaparadepoissetornar,sobaformade“utilitarismo”,umaideiamoralsecular.

Se a fontemoral do protestantismo é religiosa e divina, a fontemoral doutilitarismoéseculare laica,guiadapelanoçãodebemcomum.Comopassardotempo,outilitarismocorreoriscodesetransformaremmeroconsumismoehedonismo, sem qualquer relação com a moralidade protestante que lhe deuorigem–eabandonaovínculoexplícitocomqualquerformademoralidade.Elapassa a ser, por conta disso, reprimida, recalcada e “subjetivada”. Daí quevejamos só a ação de dinheiro e poder na vida. Daí o desafio de torná-lacompreensível e explicitada que me propus nesta primeira parte do livro. Amoralidadeseculartemdeser,apartirdeentão,reconstruídademodotensionalecontraditóriopelaarticulaçãopolíticaconscienteerefletida.

Esse encadeamento histórico, no entanto, é quase sempre esquecido pelosintelectuais que recorrem a Weber para postular uma hierarquia entre paísesprotestantes,superioresehonestos,epaísescatólicos,inferioresedesonestos.Éoqueocorre, tantonoBrasilcomonosEstadosUnidos,aindaquecomosinaltrocado,comamaioriadosintelectuais.

Tudosepassa,paraestes,comoseoprotestantismonãotivesseatravessadoessas transformações históricas, que redundaram no domínio da moralidadesecular, apenas para melhor moralizar e legitimar a opressão de sociedadesinteiras por interesses imperialistas. Toda a interpretação dominante sobre oBrasildehoje,porexemplo,advémdesseentendimentoequivocadoesuperficialdirigidocontraosprópriosnacionais.

NoteoleitorealeitoraqueanoçãodeindivíduocomocaminhoparaDeus,no sentido de santo Agostinho, primeiro para “dentro”, como um espaço deinterioridade, edepoispara “cima”, emdireçãoàdivindade, sofreuma radicalredefiniçãonoprotestantismo.Permaneceanoçãodeindividualidadecomoumespaçosubjetivo,masagoraconcentradanatransformaçãodarealidadeexteriorpormeiodotrabalho.

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Ser “racional” passa ser definido pela capacidade de autocontrole e dedisciplinadaspaixõeseinclinaçõesnaturaisdocorpo,emnomedeumobjetivoexterno ao indivíduo. A disciplina interior deve servir a um propósito, o queimplica anoçãode “responsabilidade” individual.É essa responsabilidadequeensejaumanovaformade“dignidade”doserhumano,elhegaranteorespeitotantodosoutroscomode simesmo.Os sereshumanos,queantesbuscavamajustificação de suas ações namensagem religiosa, agora passama se definir apartirdesuacapacidadedeautocontrolecomoumfimemsimesmo.

Essaéanovadignidade,agorasecularizada,doserhumanocapazdeexercerumacondução racionaldavida combasenumacombinaçãode autodisciplina,autocontroleepensamentoprospectivo.Acessívelatodos,enãomaisrestritaàhonra e glória aristocráticas, a nova dignidade é o que confere o caráter“democrático” da nova hierarquia de valores que passa a vigorar noOcidentecomaReformaprotestante.

Para servir a Deus, não é mais necessário recolher-se em orações nummosteiroevoltar-separadentrodesimesmo,esimtrabalharnapráticaparasuamaiorglórianestemundo.Comoissoimplicaabuscadobemcomum,anoçãode “trabalho útil” é pouco a pouco pensada em termos apenas seculares deutilidadeprática.Estapassaaserocentro,afontemoralporexcelência,quevaicomandar todas as avaliações e os julgamentos práticos acerca do valor oudesvalorrelativodosindivíduos.

Naépoca,osuportesocialprivilegiadodessamensagemreligiosafoi,antesdetudo,a“classemédia”–ouseja,acrescentepopulação,predominantementeurbana,deartesãosecomerciantes,abaixodanobrezaeacimadoscamponesespobres.Aideiacentraléqueapenasotrabalho,enãomaisaherançadesangueeosprivilégiosdeestirpe,deveserofundamentoeamedidadovalorindividual.Como se sabe, o sucesso dessa ideia foi estrondoso em todo o Ocidente. Elalegitimouumatransformaçãoradicaldetodososvaloresentãovigentes.

Do campo econômico e domundodo trabalho, a entronizaçãodo trabalhoútil como valor paradigmáticomigra para as outras esferas sociais. Na esferapolítica, a noção de “cidadania” – pela qual os indivíduos são portadores de

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direitos inalienáveis nos âmbitos econômico, político e social – revoluciona osentidodaslutaspolíticasesociais.Avalorizaçãodotrabalhocotidianocomoavirtude social máxima constrói um novo mundo simbólico em todas asdimensõesdavida.

Se inicialmente apenas a burguesia, a caminhode se tornar a classe socialdominante,apropriou-sedodiscursodotrabalhoútilparaobemcomumafimdedeslegitimarodiscursotradicionaldanobreza,logoasituaçãomuda.Tambémasclassestrabalhadoraspassamaexigirsuainclusãoeconômicaepolítica,epelasmesmasrazõesqueaburguesiaevocaracontraanobreza.Oaspectocrucialdosúltimosduzentosanosdelutasdostrabalhadoresfoiprecisamenteoesforçopeloreconhecimentodovalorsocialdeseutrabalho,enãoapenasdotrabalhodeseuspatrões.

Essa luta se deu em etapas. O reconhecimento da contribuição dostrabalhadoresabriuocaminhoparaaparticipaçãoemigualdadedecondições–pelomenosnosentidoformaldotermo–naesferapolítica.Emtodososlugares,inicialmente,odireitoaovotoerareservadoaosdetentoresderenda,ouseja,aosburgueses.Foiopaulatinoreconhecimentodacontribuiçãoeconômicadaclassetrabalhadora que levou à vitória do sufrágio universal nos principais paísescapitalistas.Nãoháprovamais irrefutáveldotrabalhoútilcomoofundamentovalorativocentraldassociedadesocidentais.

Oquepassaaserdefinidoepercebidoportodoscomo“virtuoso”,dignodevalorização e avaliação positiva,muda seu sentido histórico demodo radical.Uma vez que todos podem trabalhar, todos podem ser valorizados por suacontribuição à sociedade, e não apenas os filhos das famílias nobres quemonopolizavamaideiaaristocráticadehonracombasenalinhagemdesangue.Por outro lado, se a contribuição de muitos para a riqueza econômica ésocialmentereconhecida,entãoaideiadeumaparticipaçãopolíticauniversalsetorna irresistível.Esseéocontextodo surgimentoe a fontede legitimaçãodanoçãodeumademocraciafundadanosufrágiouniversal.

Aí está a importância de uma compreensão adequada dessas hierarquiasmorais,quetendemosanaturalizareacharinatas,oqueimplicanãopercebê-las

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conscientemente, tal como não percebemos o ar que respiramos. Afinal, sãoessashierarquiasqueexplicamnossocomportamentopráticonodiaadia.Eelasdecorrem de fatos históricos, que explicam a origem e a causa de tudo o quevalorizamos e consideramos digno de luta e defesa – como, por exemplo, aprópriaideiadedemocraciaededireitosindividuaisuniversais.

Essasfontesmoraissão,portanto,ofundamentodahierarquiamoralsobcujaégidevivemosnodiaadia.Porelasedeterminaquemtemdireitos,quemtem“lugardefala”equempossuiasjustificativasaceitasportodoscomoválidas.Apartir da generalização dessa nova hierarquiamoral a toda a sociedade,mudatambémo sentidodaprópriaautoestima individualde todosos indivíduosqueconvivemnessecontextosocial.

Issodemonstraqueosindivíduossãosubmetidosaumaordemsimbólicaemoral socialmente construída que determina até mesmo o próprio sentimentoquepossuemacercade simesmos.Essaeficáciadamoralidadeeda realidadesimbólica é tanto maior quanto menor a consciência que se tem dela. Semconsciênciadarealidadequenosmolda,somosvítimasaindamaisimpotentesdesuaforça.

Aforçaqueashierarquiasmoraishistóricaesocialmenteconstruídasexercesobre todos é difícil de ser percebida por duas razões que se combinam e seretroalimentam.Primeiro,nomundomoderno,temosadificuldadedenotartudoque seja simbólico nas dimensões cognitiva,moral ou estética. Presidida pelodinheirocomovaloreequivalenteuniversal,a sociedademoderna tendede talmodoaseconcentrarnomundodatrocaeaquisiçãodemercadoriasmateriaisepalpáveisqueissoaparece,paramuitos,comoaúnicarealidadeexistente.

Tudooqueexistesão“coisas”,quepodemsercompradasetocadascomasmãos.Omundosimbólicoemtodasassuasdimensõespermaneceirrefletido,eapenas os desejos e as justificativas da existência cotidiana ocupam o espaçopossível dopensamento.Somos, nesse caso, comoas formigasdisciplinadas econsumidoras, que não fazem qualquer uso efetivo da capacidade reflexiva ecríticaquecaracterizaadignidadeespecificamentehumana.

Combinado a este fato, e por ele retroalimentado, está a dimensão do

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narcisismo individual: o fato de nosso comportamento ter como principalreferênciaasatisfaçãodosdesejosea legitimaçãodavidaque levamos–algoque, de resto, caracteriza, emgradações distintas, todos os seres humanos.Noentanto,nograndenúmerodepessoasparaquemareflexãocríticaacercadesimesmoedomundonãodesempenhapapeldecisivo,essadimensãonarcísicaé“infantilizada”e“inflada”,ouseja,elassóaceitamouvirconfirmaçõesdesuaspróprias ilusõeseopiniões,evitandoa todocustoqualquerpensamentocrítico.Dessemodo,aprópriaideiadequesomos,emnossossentimentosmaisíntimos,determinados por umamoralidade social que semanifesta sem que tenhamosqualquercontrole,éalgoqueassustaeincomodamuitagente.

Paraessetipodepúblico,éconfortávelacharqueosindivíduosescolhemavida,criamsuasprópriasideiasmoraiseobedecemapenasasimesmos.Todo-poderoso,oegoinfladoeinfantilizadoépresafácildetodasaslegitimaçõesdaindústria cultural e da grande imprensa venal. Compreender omundo em suacomplexidadesimbólicaemoralnãoé,portanto,apenasumdesafiointelectual.Antes de tudo, é um desafio emocional, pois rompe com certezastranquilizadoras,baseadasnarepetiçãodechavõeseclichês.

Nãoéapenasosentimentoqueoindivíduotemdesipróprioquedecorredamoralidade social dominante. Desta também depende o valor relativo queatribuímosaosoutros,porexemplocomopessoasaseremevitadasnaruaouquemerecemapenasumcontatosuperficialebreve,emcontraposiçãoàquelascomasquaisforjamosamizadesduradourasouatécasamentos.

Nada disso é decisão individual apenas. A nossa concepção positiva ounegativadosoutrosestápermeadaporavaliaçõessociaisquefuncionamcomooestopim fundamental para qualquer afeto individual.Daí por que reconstruir agenealogia das hierarquias morais que nos comandam é tão importante efundamentalparaacompreensãodeumindivíduoedeseumundosocial.

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A

Ainvençãohistóricado“serhumanosensível”

lémdavalorizaçãodotrabalhoútilecotidiano,hánoOcidenteoutrafontemoral de origem histórica, que igualmente permeia todas as avaliações

acerca de nós mesmos e do mundo. Trata-se do que se poderia chamar de“expressivismo”oude“éticadaautenticidade”.

Se o desempenho no trabalho útil do ser humano produtivo constituía onúcleodadignidadeuniversalizáveldo trabalhador,naéticadaautenticidadeanoçãode“serhumanosensível”éonúcleodessaoutrafontemoralsingular.Oprocesso de aprendizado moral e histórico procurou associar o desempenhoprodutivo em benefício da comunidade ao desenvolvimento de umasensibilidadeúnicaemcadaindivíduo.

Além de produtivo, todo ser humano “deve” ser, também, consciente dossentimentoseemoçõesqueotornamdiferentedosoutros.Serautênticoéteracapacidadedeconhecerasimesmoeteracoragemdeseroqueseé.Se,antes,osdesejoseramoinimigodoespíritoedadisciplinaqueasseguramocontroleearepressão,agoradevemosnosreconciliarcomnossosdesejosenossosafetossequisermosnostornarsereshumanoscompletos.

Porexemplo,seantesoimpulsosexualtinhadesercontroladoereprimidopeloespírito,agoraeledeveserofundamentodomundoafetivosempresingulardecada indivíduo.Antes tidascomoperigosase incontroláveis,aspaixõessão

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renomeadas como sentimentos e elevadas a um patamar no qual unem, e nãomaisseparam,corpoeespírito.Comarevoluçãoexpressiva,ossereshumanossedefinemnãosópelo trabalhoquefazem,mas tambémpelaautenticidadedesuavidasentimental.

A revoluçãoda sensibilidade e do expressivismo tambémnasceuna classemédia.Nãonadosartesãosecomerciantesdos séculosXVIeXVII, comonocasodadignidadedotrabalhoprodutivo,masnaclassemédialetradadosartistaseintelectuaisdosséculosXVIIIeXIX.Oexpressivismoé,portanto,maistardio,esurgecomocríticaaoconteúdounilateralmenteprodutivistaeinstrumentaldomundo do trabalho.A ideia subjacente é a de que os seres humanos sãomaiscomplexosesofisticadosdoqueasprodutivaseordeirasformigaseabelhas.Avida“bemvivida”deveterocomplementodeumavidaemocionalesentimentalricaqueésempre,oudeveser,únicaeintransferível.

Emdecorrênciadasrevoluçõesprotestanteeexpressiva,todososindivíduosde todas as classes sociais vão definir o êxito ou o fracasso relativos de suasvidas com base não apenas no âmbito do trabalho, mas também no âmbitoafetivo. Tanto quanto o trabalho, ganham relevo, assim, a família e osrelacionamentoseróticoseafetivos.

Hoje em dia, se perguntarmos a qualquer um o que considera maisimportante,arespostamaisprovávelseráafelicidadenotrabalhoenafamília.Mais uma vez: isso não caiu do céu nem foi inventado pelo ego inflado deninguém.Éoresultadodeumaprendizadohistórico,moralesocial.Ehojenosdominaatodos,tantooumaisqueasconsideraçõesacercadedinheiroepoder.

Arelaçãodoexpressivismooudaéticadaautenticidadecomadignidadedotrabalhoútilé,aomesmotempo,decunhocomplementarecontraditório.Elaécomplementar na medida em que só se torna possível por meio da ideia deindividualismo e de uma noção de “interioridade” como espaço internoindividual–estaumaconsequência, comovimos,damensagemcristã.Assim,tanto a ética da autenticidade comoadignidadedo trabalhador útil são ambasversõessecularizadasetardiasdamensagemreligiosaocidentaleseconstroemapartirdamesmaconcepçãodoindivíduoenquantoconsciênciamoral.

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A fonte da moralidade, no entanto, muda em cada um dos casos. Oexpressivismo contradiz a dignidade do trabalhador útil, posto que nasce,historicamente,maistardeecomoreaçãoaumautilidadevistacomosuperficialemesquinhamenteeconômica.SeadignidadedotrabalhoútiléumamensagemquecomeçaaseuniversalizarnoséculoXVIdeLutero,oexpressivismoéumarealidade mais tardia, fruto do trabalho especulativo de elites intelectuais eartísticas em processo de secularização. Suas fontes históricas mais claras seencontramnomovimento românticoe expressivoalemãodaúltimametadedoséculoXVIII,quedepoissedifunderapidamenteportodaaEuropa.

Osentimentodeterminantedessemovimentovoltava-secontraummundodotrabalho percebido como repetitivo, desumanizador e alienante. A noção deindivíduo,pressupostanesseambientecomandadopelanoçãodeutilidade, é ade que o ser humano não passa de uma máquina destinada ao trabalho,desvinculadodeoutrasnecessidadeshumanasquenãoasnecessidadesmateriaisda mera reprodução econômica e animal da sobrevivência. Ou seja, anecessidade interna, inerente a todosos sereshumanosde todasas épocas, foipercebidaporessaselites intelectuaiscomouma interpretaçãoamesquinhadaesuperficialporserestringirapenasaotrabalhoprodutivo.

Jáaéticadaautenticidadeedoexpressivismodefendemqueoindivíduoeavidahumanasão–oudevemser–maisdoqueareproduçãodeumanimalquetrabalha para sobreviver materialmente. Portanto, o ser humano não deve serpensadoapenascomoinstrumento,mascomoumfimemsimesmo.Afinal,nocontextodomercadocapitalista,otrabalhoprodutivoeútiléummeioparafinspostospeloprópriomercado.Finsestesqueninguémescolheequesãoimpostosdeforaparadentro,obrigandoo indivíduoasesubmeterà lógicadomercado,sobpenadeficardesempregadoepassarfome.

Na verdade, essas duas leituras modernas sobre as fontes morais daexistência, asquais conferemsentidoànossavida, quer tenhamosconsciênciadisso ou não, espelham precisamente as duas vertentes mais importantes doprotestantismo. Embora ambas sejam influenciadas pela visão luterana, seussentidossãomuitodistintos.

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O chamado “protestantismo ascético”, influente sobretudo na Holanda, naInglaterra e nos Estados Unidos, apresenta uma visão do indivíduo comoinstrumentodetransformaçãodarealidadeexterior,sendootrabalhoprodutivoeútil o meio adequado para esta intervenção. Nesta versão da mensagemprotestante, o mundo interior está subordinado à ação transformadora darealidadeexterior.

Oquecontaaqui–paraoaumentodaglóriadeDeusnaterra,edepois,naversãosecularizada,dacontribuiçãoindividualparaobemcomum–éaefetivatransformaçãoda realidadeexterior.Esteéocritériopeloqualo indivíduovaiser avaliado, seja por si mesmo, seja pelo restante da sociedade. Como todamoralidade é social e nunca individual apenas, a fonte da autoestima não sedistinguedafontedoreconhecimentosocialdosoutros.

Em grande medida, formamos a nossa autoimagem em função da formacomoosoutrosnospercebem.Porissoécrucialadimensãosimbólicaemoral.Elapodenoshumilhareanularnossacapacidadedeaçãonomundooupodenosfortalecerenostornarativoseautoconfiantes.Tantoanossaautoimagemcomoavisãodosoutrossobrenósderivamdamesmafonteeavaliamodesempenhodoindivíduo segundo os mesmos critérios. Assim, a própria ideia, positiva ounegativa,quefazemosdenóséoresultadodeumaconstruçãosocial.

Já a versão mais emotiva do protestantismo, influente na Alemanha, naEscandinávia e na região central daEuropa, percebe o vínculo religioso antescomo um sentimento íntimo, no coração de cada um, e só depois comorealização no mundo exterior. Se no mundo religiosamente determinado oindivíduo se via como portador da divindade, como um sentimento que opreenchia e dava sentido à vida, na esfera secularizada tal concepção está naorigemdetudooquehojeassociamosaomundointerioresubjetivo.

Omerofatodequenospercebemoscomopossuindoalgo“dentrodenós”–umadimensãosubjetivasónossaequenãoseconfundecomomundosocialoucomomundoobjetivoforadenós–foiumaconstruçãohistóricaecontingentetardia em comparação com a revalorização do trabalho produtivo. Domesmomodo que o trabalho produtivo definia a virtude do indivíduo na dimensão

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anterior e pragmática nos termos do protestantismo ascético, com a versãoemotivadoprotestantismo,sãoossentimentosqueencontramosemnósmesmosquedefinemquemsomosecomodevemosviver.

O pensador alemãoMaxWeber argumentou que a noção de indivíduo noprotestantismoascéticosimbolizaaideiadeum“instrumentodivino”,visandoamaiorglóriadeDeusnaterra.Poroutrolado,aversãoemotivaseligariaàideiadoindivíduoquetrariaadivindadedentrodesi,comalgo“interior”aosujeito.As noções secularizadas de indivíduo e de suas fontes morais vão darcontinuidade a essas duas tradições, sob o império da nova linguagem agorasecularizada,semportantoapelarparaaideiadeDeuscomofonteprimeira.

Assim, a noção de dignidade do trabalho útil representa uma continuidadesecularizada da noção de instrumento divino, enquanto a ideia de ética daautenticidade e do expressivismo remonta à noção do indivíduo como vaso erecipiente da divindade. O fato da origem comum protestante não deve nosenganaracercadavalidadeempíricauniversal,pelomenosnoOcidente,dessascategorias.

Comodissemos,cabesalientarqueapenasaorigemhistóricaéprotestante.Depoisessasideiasacabaraminstitucionalizadas,nassociedadescatólicasenasprotestantes, bem como no resto do mundo, sob a forma da disciplina dasfábricas e das escolas, nas ideias difundidas pela arte e pela ciência, pelaindústriaculturaleassimpordiante.

Oentendimentodesseprocesso–peloqualumameraideiatorna-sepráticacotidiana e institucional – é decisivo. Aqueles que não compreendem issoacabamacreditandonastolicesracistasdoculturalismodominante,quesubstituio “branco” pelo “protestante”, o “negro” pelo “católico”, aqui e alhures, paraidealizar o americano perfeito e honesto – e estigmatizar, por exemplo, obrasileiro como estúpido e corrupto.O problema é que hámuitos intelectuaisqueseguemporessecaminho.

NoBrasil,aindanospensamoscomopaíscatólicoeibérico,nosopondoaosEstadosUnidoscomopaísprotestante,comosetaisdistinçõesfizessemsentido.E ainda se recorre a esse procedimento pré-científico para afirmar a

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superioridadee inferioridadedeumedeoutro,nãosóemtermoseconômicos,mas também morais. A vira-latice brasileira sobrevive por conta dessa visãomíope e rasteira do mundo, reproduzida por universidades, escolas, TVs ejornais.

Paraesclareceraquestão,cabedistinguirduasformasmuitodiferentesdeseperceber a influência da ideia de cultura. Primeiro, há o que chamo de“culturalismo conservador”, o qual imagina as sociedades concretas sendoregidas por concepções de mundo ainda religiosas e transfiguradas em mitosnacionais,decaráterpositivoounegativo.Nessesentido,predominaa ideiadeque os Estados Unidos até hoje são protestantes ascéticos e, por conta disso,maisprodutivosehonestosqueosoutros.Trata-sedeummitonacionalpositivopara os americanos, um mito que legitima o lugar dos Estados Unidos depotênciaimperialista,recobrindoofatomaterialdadominaçãocomapátinadeumasupostasuperioridademoralesimbólica.

No caso brasileiro, o mito nacional é negativo, uma leitura vira-lata dasociedade, onde o brasileiro, em grande medida devido à origem católica eibérica, é percebido como inferior, dominado pelas emoções e, portanto,animalizado,improdutivoeignorante,alémdemoralmentecorrupto.Vamosveradiantequeessasideiasnãovalemumtostãofuradodopontodevistacientífico.Massãoconvincentes,poisreproduzemaideiadesensocomumsegundoaqualatransmissãoculturalsedápelosangue.

Talmito serve unicamente para legitimar interesses inconfessáveis. Como,porexemplo,arapinadasriquezasnacionais,sobaalegaçãodeque,paraevitarocontroledepolíticoscorruptos,émelhorentregarosnossosrecursosnaturaisaos americanos e europeus “honestos”. É precisamente isso, apesar de serabsurdo,toloeridículo,queestáacontecendocomnossopetróleoecomamaiorempresabrasileira,aPetrobras.

A crítica desse culturalismo conservador, mero revestimento de interesseseconômicos inconfessáveis de uma elite da rapina, não implica negar arelevância da dimensão cultural e simbólica, desde que bem compreendida.Afinal,asideiasnãosetransmitempelosangue,muitomenospelascorrentesde

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ar. As ideias só são importantes na prática quando se transformam em “vidaprática”naesferainstitucional.

Um exemplo é o da educação familiar, que, em todas as sociedadescapitalistas,possibilitaumprocessodeintrojeçãoeincorporaçãoafetivaemoral,desde o nascimento, dos princípios de disciplina, autocontrole e pensamentoprospectivo (a percepção do futuro comomais importante do que o presente).Tais princípios vão ser fundamentais para moldar o indivíduo em trabalhadordigno, capaz de trabalho produtivo útil. A escola formal e a socialização dotrabalhovãoapenasarraigaretornarautomáticaeinconscienteessainfluência.

Desse modo, as ideias simbólicas e culturais, com sua história peculiar,constituem a base de nosso comportamento prático, quase sempre sem quetenhamosconsciênciadisso.Aliás,quantomenoraconsciênciadopúblico,tantomaior a eficácia manipulativa, dado que não podemos nos defenderreflexivamentedaquiloquenãopercebemosnemcompreendemos.

Osmitosnacionaisexistempara tornar invisívelessa realidadesimbólicaedistorcer a necessidade pública e privada de compreensão das questõesexistenciais e políticas. Para tanto, recorrem a explicações ad hoc, elaboradaspara justificar relações sociais injustas, que prejudicam o entendimento dopúblico e permitem sua manipulação em nome de interesses elitistasinconfessáveis.

A reconstrução da dimensão cultural e simbólica aqui proposta parte dadesconstrução e crítica desses engodosmanipulativos, demodo que possamosperceber a eficácia prática das ideias que determinam nosso comportamento.Semdistorceromundosocial,asclassesdirigentesnãopodemfazerotrabalhosujo de se apropriar da riqueza social. Daí que os intelectuais e a imprensafaçam,hojeemdia,otrabalhoqueosjagunçosfaziam–eaindafazem–paraoslatifundiários do passado: facilitar, por meio da violência, a apropriação dariquezacoletiva.

Adiferençaéqueaeliminaçãofísicafoisubstituída–desdequenãosesejapobre ou negro – pelo sequestro da inteligência e da capacidade reflexiva doshomens emulheres comuns, sob a forma de ideias que nosmanipulam e nos

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fragilizam e tornam nosso comportamento prático hesitante e confuso.Afinal,nossa principal diferença em relação aos animais é o fato de nossocomportamento ser possibilitado e influenciado por ideias. É isso que permiteque possamos aprender, desde que nos interroguemos acerca das ideias queinfluenciamnossocomportamentorealecotidiano.

A exposição acima demonstra que o Brasil não é um “planeta verde-amarelo”,comasingularidadevira-latadeumpovoburro,preguiçosoecorruptodominadopelasemoções.Ocapitalismonãopodesercompreendidoapenasporsuadimensãoeconômica,enquantofluxodecapitaletrocademercadorias,mastambémcomoumadimensãosimbólica,moraleculturalcomum.

Dimensãoqueosmitosnacionais–positivoscomooamericanoounegativoscomo o brasileiro – negam e tornam invisível, como as fontes morais aquiexaminadas. Qualquer americano, alemão, mexicano ou brasileiro possui asmesmascontradiçõeseosmesmosobjetivosdevida.Nesseterreno,aocontráriodoquesepensa,asdiferençasdeclasseemcadapaíssãobemmaisrelevantesdoqueasdiferençasnacionais.

Emqualquerpaísocidental–sejaqual foroseuníveldedesenvolvimentoeconômico–,aspessoasconcretasorientamasuavidapráticasegundoideiasevaloresmuito similares.Em todos–noBrasil, naAlemanha, naArgentinaounos Estados Unidos –, a dignidade do trabalho útil é parte fundamental daautoestima e do reconhecimento social. Em todos, a expressão daindividualidade cria laços de solidariedade entre aqueles que se consideramdetentoresdeum“bomgosto”noestilodevidaevaiproduzirpreconceitocontraosquesãovistoscomotoscoseanimalizados.

Avalidadeempíricadissoéóbvia.Afinal,essasduasfontesmoraisestãonocentro da esfera privada e íntima, tanto quanto no da esfera pública e social.Bastaindagarsobreascoisasquemaisdãosentidoànossavida.Qualquerum,seforsincero,vairesponderqueéotrabalhoeafamília(ouoamor).Umbomtrabalho,feitocomprazerebem-remunerado,eumavidaafetivaesentimentalfeliz – esses são os objetivos ou sonhos paradigmáticos de todo ser humano

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moderno, seja onde for.Não há outra coisa que se compare em importância aisso.

Quemnãotemumaououtrasofreelevaumavidaincompleta.Quempossuiasduassesabefelizecompleto.Quemnãopossuinemumanemoutralevaumavidamiserável,indignadessenome.Simplesassim.Eissovaleparatodos,poisa definição de infelicidade ou felicidade é compartilhada e social, e nãoindividual e particular, como alardeiam o liberalismo e as propagandas debancos.Claroqueháoutrascoisasquesãoobjetodonossodesejo.Masousãoderivaçõesdessesdoisobjetivosousãosecundáriasemtermosdeimportânciaeurgência.

A própria noção de amor moderno, como base da família e de uma vidasentimentalestável,foicriadapeloexpressivismoepeloromantismodofinaldoséculoXVIII.Elaestánocernedaéticadaautenticidade.Éaquiqueamulher,pela primeira vez, deixa de ser vista como ser humano de segunda classe e,portanto,deestarsubmetidaaoshomenseaoscostumes–como,porexemplo,aqueles que não levavamem conta sua vontade nos casamentos acertados pormotivoseconômicosepragmáticos.

NorbertElias, em seu livro sobreoprocesso civilizatório,8mostra comootratamento dispensado às mulheres, mesmo nas classes altas, era de umaviolênciahojeinconcebível.Seumnobrenãogostavadaintervençãodaesposanumjantarcomamigos,podiadesferirumsocoequebrar-lheonariz,semqueninguémachasseofatoincomumoudignodereprovação.

Assim, a própria ideia de que a mulher deve ser conquistada, e nãosimplesmente arrebatada com violência, é recente e fruto da revoluçãoexpressiva nas elites artísticas e intelectuais, um processo que tem início noséculoXVIIIedemoraaseimporparaorestodapopulação.Anecessidadedaconquista amorosa por convencimento, e nãopela força física oupela pressãoeconômica,criaumnovomundo,oda“esferaerótica”,emparte independentedasoutrasesferasdavidaecomregraspróprias.

A sublimaçãododesejo sexual, quedemerapulsãonatural se estende aossentimentos – sem com isso implicar negação da pulsão sexual, mas muitas

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vezesatéaumentandosua intensidadedevidoà introduçãodoelementoafetivo–, vai construir a ideia-forçaquedesignamoshoje emdia abstratamente como“amor”.

Depoisdessainvençãoculturalehistórica,querelasejavividacomoilusãoou realidade, nenhum de nós deixa de sentir o aguilhão do desafio que nos éimposto:umavidasemamornãopassadeumasubvida.Criaçõeshistóricas,asfontes morais, como nos dois casos aqui tratados, passam a comandar nossaexistência,enãoapenasmodificamaformacomopercebemosomundosocial.Elas nos transformam, “por dentro”, e conferem nova orientação aos nossosdesejos e emoções mais íntimas. Esta é a comprovação empírica da eficáciadessasideiasmorais.

Desde o século XVIII, essa revolução expressiva vem se expandindopaulatinamenteparatodasasclassesetodoomundo.Umgrandecatalisadorfoiomovimentodos jovens,doshippiesedacontraculturanadécadade1960.Apartirdaíeladeixadeserassociadaàselitesculturaisesetornaumvalorparaasgrandesmassas.Tambémultrapassaoslimitesdapoesiaedaliteraturaeavançapara a indústria cultural, virando conteúdo de novelas, filmes e revistas degrande vendagem.Surge assimumapoderosa indústria para ensinar o que é ecomoseconquistaafelicidadequevislumbramosnoamor.

Oexpressivismoeademandaporsensibilidadeinstauramumanecessidadeuniversal,quesustentaumaindústriacultural,umaindústriadabeleza,dobomgostoedoentretenimento–tudoparavenderaquiloque,pordefinição,nãosepoderiacomprar:asensibilidadeúnicaeoriginaldecadaum.Oquedeveriaseruma aventura de autodescoberta individual acaba por virar mercadoriamassificada.

Não apenas a percepção do amor e da vida familiar sofreu umamudançadrástica por causa do expressivismo. A própria ideia de trabalho produtivotambém mudou. No século XVIII começam as críticas ao trabalho igual erepetitivo, como sendo indigno da grandeza humana. Tal como a vidasentimental, igualmente o trabalho temde fazer sentido e, portanto, exibir umcomponentedeprazeredeautossatisfação,enãoapenasdeobrigação.Assim,

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em vários países depois da Segunda Guerra Mundial, a primeira geração dejovenscomacessoaeducaçãodequalidadevaiserograndesuportesocialdessaideia. Na França, esses jovens quase conseguem derrubar o poder instituídoquandoseunema7milhõesdetrabalhadoresemgreve.

Éentãoqueocapitalismosedácontadequegerouseumaiorinimigo.Nãomais a União Soviética, tão produtivista quanto o próprio capitalismo, mas oinimigo em casa, os filhos que se revoltam contra omundo bem-comportado,baseado na mesmice e na tradição acrítica representada pelas gerações maisvelhas. O capitalismo financeiro, essa etapa do capitalismo que se impõeglobalmente a partir da década de 1980, vai utilizar toda a semântica e ovocabulário do expressivismo da década de 1960 para produzir a versãoturbinadadodomíniodocapital:exploraçãomáximadostrabalhadorespormeiodapromessaexpressivistadecriatividade,invençãoesolidariedade,agoradentrodaprópriaempresa.

Parece ironia,maséapuraverdade.Tudooque foi inventadonosúltimosduzentos anos em termos de reflexão crítica e de luta política radical dacontraculturaacabouengolidopelocapitalismo,mastigadoedepoiscuspidodevolta em outros termos e com outros objetivos: o lucromáximo e infinito. Acriatividadedeixadeserainvençãoradicaldeumavidanovaeagoraéutilizadaafavordamaiorlucratividadeempresarial.

Comonasempresasosfinsjáestãodados–maximizarolucronomercado–, tudo se tornameio e instrumento para esse objetivo.Mas o expressivismosemprequisserumfimemsi,ouseja,umaescolhaúltimadecomoconduziravida, e nãoummeiopara se alcançar outra coisa.Ao transformar a revoluçãoexpressiva emmero instrumento de acumulação financeira, o capital retira-lhetodoosentidoeforçaefetiva.

Foiprecisamenteissoquefezocapitalismofinanceiro,aliciandoumexércitosimbólicode intelectuais e jornalistas, apropriando-se de todos os jornais e detodaa imprensa,subsidiandoemanipulandoaproduçãodefilmes,espetáculosmusicaisetodotipodeexpressãoartística.

Com isso, o terreno estava ganho para a redefinição da criatividade como

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gestãodepessoascomfinsempresariais,daoriginalidadecomomeiodesoluçãode problemas corporativos, da solidariedade como trabalho em equipe paramaiorprodutividadeorganizacional.Enfim,parafazerostrabalhadoresseveremnãocomoexplorados,mascomo“colaboradores”eempresáriosdesimesmos.Éassimquemuitos seconsideramhojeemdia.Somentedessemodopodemsersuperexplorados a tal ponto que nãomais separamo tempode trabalho do delazer, ficam à disposição via celular o tempo todo e ainda se acham muitoimportantesefelizescomanovaservidão.

Emsuaorigem,essasconcepçõesdeliberdaderadicaltiveramcomosuportesocial principal a classe média, por excelência a classe associada aoindividualismo. As ideias de trabalho com sentido e de vida amorosa feliz ecompletasedisseminaramparatodasasclassessociais,masénaclassemédia,como veremos nas trajetórias de vida na parte final deste livro, que vamosencontrá-lasemsuamaiordiversidade,profundidadeeforça.

Essa reconstrução das nossas bases morais é, portanto, fundamental. Sempercebê-lasadequadamente, imaginamosquenossocomportamentoémotivadoapenas por estímulos pragmáticos como dinheiro e poder. Imaginamos quesomospáginasembranco,semnadadentro,equenossarenda,odinheiroquetemosnobolso,explicanãosónossoconsumo,mas tambémonossomododevida. Para completar o absurdo, imaginamos que, como indivíduos, criamostudo, os valores e as ideias que seguimos. Aqui se chega ao ápice daimbecilidade: o indivíduo não sabe de nada, nem quem é, tampouco o que asociedadefezdele,eaindaimaginaquesabedetudo.

Oegomaisfrágileinseguroébemaquelequeprecisasepensarcomoomaisforteecapaz.Oegoinfladodoindivíduomodernoéofatordeterminantedeseuuso pelo mercado e pelos podres poderes para a reprodução de todos osinteresses daqueles que estão acumulando riqueza. Se alguém furar com umalfineteesseegoinflado,predominanteportodaaparte,massobretudonaclassemédia,oqueteremoséumflato,nãoobstantepercebidocomoperfumepeloseudono.

MaxWeber antecipou como ninguém este novo homem bifronte da nova

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época: composto pelo “especialista sem espírito”, que entende tudo de seupequenomundode trabalho,masnadada sociedadeao seu redor, tampoucoopapel que nela desempenha; e o “homem do prazer sem coração”, na buscacompulsiva por emoções intensas, sem a menor compreensão do que tantoanseia.A incompreensãodas fontesmoraisdenossocomportamentonos tornamesquinhos,pequenos,títeresdospoderesquecontrolamomundo.

Em nenhuma classe social este dilema émais acentuado do que na classemédia.Afinal,elaéaclassedoexpressivismoedaéticadaautenticidade,sejanaesfera do trabalho, seja na esfera íntima das emoções e dos desejos. Só apercepçãoadequadadadimensãoculturalesimbólicadavidasocialnospermiteuma compreensão mais profunda e verdadeira da vida que levamos comoindivíduos.

Ela permite também desmascarar e denunciar os usos perversos dodesconhecimento de um público indefeso, usos que promovem interpretaçõescujaúnica razãode ser é a legitimaçãodeprivilégios injustos.Permite, ainda,que possamos nos armar de uma compreensão mais justa e verdadeira dosconflitos sociais e existenciais de nosso tempo e de nossa sociedade.Percebercomo omundo social funciona de fato é omaior desafio para uma vida comsentido,autonomiaedireçãoprópria.

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O

Aprendizadomoralejustificaçãodeprivilégios

reconhecimentodasfontesmoraisquenosguiamsejanavidapúblicasejano âmbito mais íntimo é, portanto, um passo decisivo para nossa

autocompreensão.Comonãocostumamosterconsciênciadessesfatoresmorais,essereconhecimentomuda,deformaradical,omodocomopercebemosavidaprivada e pública. No entanto, essas fontes morais estão mescladas a finspragmáticos – que também influenciam o comportamento prático – como opodereodinheiro.

Normalmente, só levamos em conta essa ação do poder e do dinheiro naconduçãodavida,oqueéumgraveerro.Nossoentendimentodenósmesmosedo mundo se empobrece muito com isso. Porém, desde que percebidosconjuntamente com a dimensão moral, o dinheiro e o poder são igualmentedecisivosemnossavidaprivadaepública.

Éalutapolíticaquevaidefiniraimportância,paraasociedade,dodomíniorelativo da dimensão moral ou da dimensão pragmática. A percepção dadimensãomoralécognitiva.Oseudomínionavidacorriqueiradaspessoas,noentanto,éresultadodelutaspolíticas.Emsociedadesquerestringiramomundoda trocademercadoriasacertasesferasdavidasocial, issoocorreuàcustademuitosangueeluta,quasesempredasclassespopulares.

Aliondeodinheiroparecemandaremtudo,comonoBrasilenosEstados

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Unidos, isso também foi resultado de luta política, dessa vez decidida, semcompromissos, pelas classes dominantes, ou seja, pelos proprietários queimpõemsuamoeda–odinheiro–comosupremovalorsocial.

Como a interpretação humana domundo é sempremoral, ou seja, sempredecorrentedeumanoçãoimplícitaouexplícitadevirtude,dobemedaboavida,opredomíniododinheiroedopoderpuroesimplespressupõeumacolonizaçãoda esfera moral – num processo similar ao da colonização, pelo capitalismofinanceiro, da semântica e da linguagem da ética da autenticidade e doexpressivismo.

Osdonosdodinheiroedopodernãopodemsimplesmentedizeraorestanteda sociedade: “Nosso intuito é deixar todos vocês, otários, sem propriedade esem poder, apenas com a roupa do corpo, trabalhando nas condições maisfavoráveis para mim.” Não é assim que acontece. Caso contrário, teríamosrevoltaerevolução.Nãohádominaçãodepoucossobremuitossemorecursoàmentira e ao engano. Em consequência, a opressão precisa ser moralizada,difundindo-seailusãodequeointeressedodominadoélevadoemcontae,maisimportante,convencendo-odequeaprópriadominaçãoéparaoseubem.

Tão importante quanto notar devidamente a dimensão simbólica dasociedade é compreender a interconexão entre moralidade e poder, ou entreaprendizadoefetivoemerajustificaçãodeprivilégiosinjustos.Ainfantilizaçãoeo bloqueio da capacidade de reflexão se dão seja pela construção de mitosnacionaisvira-latas,contosdefadasparaadultos,sejapela instauraçãodeumaoposiçãosimplistaentreobememal.Oresultadoéadifusãodacrençadequeexistempessoasdobem,deumlado,epessoasdomal,deoutro.

Esseéomundodasnovelas,dosromancesbest-sellerrecheadosdeclichês,dostelejornaisdaRedeGlobo,dosprogramasderádiopatrocinadosporbancos,etc. Na realidade, não existem pessoas que incorporam unicamente a virtudeabsolutaouomalabsoluto.Algumaspodemsermuitoboaseoutrasmuitomás.Porém mesmo esses casos limítrofes são muito raros. A grande parcela dahumanidade, cerca de 99%das pessoas, é umamescla de ambas as coisas no

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comportamento concreto e cotidiano, e cada um de nós faz o que pode parasepararojoiodotrigo.

Obemeomal,portanto,estão“dentrodenós”,assimcomoestão“dentrodenós”asfontesmorais,historicamenteconstruídas,quedefinemoqueéavirtudee o que é o vício. Como vimos, na cultura ocidental o bem e a virtude sãodefinidostantocomocontroledasemoçõespeloespíritoquantopelaexpressãoverdadeira dessas mesmas emoções. Isso implica que ser virtuoso, segundonossos próprios termos, é uma aventura contraditória e conflituosa, seja nadimensãoexistencial,sejanadimensãopúblicadavidapolítica.

Usando a linguagem popular, viver a vida de todo dia “não é fácil paraninguém”. Essa dificuldade é, aomesmo tempo, existencial e política. Somosdilaceradospordemandasvalorativasconflitantes.Alémdisso,somoscoagidospela antiga demandamoral que caracteriza a tradição judaico-cristã ocidental:devemos,afinal,escolherseguirosvaloresmoraisouoptarpelointeresseegoístadeocasião?

Aprimeiradificuldadeécognitivaeserefereaodesafiodecompreenderasfontes morais que nos comandam. Como esses valores sociais comuns sãoinarticulados e inconscientes, imaginamos, infantilmente, que criamossubjetivamente os valores que nos servem de guia. As consequências disso,comoveremos,sãodefácilcomprovaçãoempírica.Apesardetaisvaloressereminvisíveis – ou melhor, apesar de serem tornados invisíveis à nossa reflexãoconsciente pelos podres poderes que nos dominam –, seus efeitos nocomportamentopráticosãofacilmenteobserváveisecomprováveis.

Bastaobservaromaisimportante,ouseja,ocomportamentoprático,enãoasopiniõesexplícitasqueaspessoasmantêmsobresimesmas.Aopiniãoexplícitaque temos sobre nós mesmos tende a ser a mera justificativa da vida quelevamosouamerarepetiçãodechavõesdamídiaedaindústriacultural.Comoamamosjustificaroquesomos,exatamenteporcontadissocostumamosodiaraverdade.

Misturadoeconfundidocomessedesafiocognitivo,háodesafiomoraldeviver ou não de acordo com esses critérios normativos. Essa é outra questão,

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distinta da primeira, ainda que relacionada a ela. Alcançar uma compreensãocognitiva daquilo que nos orienta em termos práticos não significa,necessariamente,umamudançaautomáticanavidaprática,emboraajudenessadireção. Ao se reforçarem mutuamente, essas duas dificuldades constroem ocontexto de desorientação, confusão e impotência que nos assalta a todos, seformossinceroscomnósmesmos,tantonavidaprivadacomonavidapública.

Antes de tudo, vamos examinar o conflito entre, de um lado, a dimensãomoral e instrumental e, de outro, a dignidade do produtor útil. Uma inegáveldimensão de aprendizado e evolução moral está associada à substituição dahonra medieval, acessível apenas à nobreza, por oposição a todos os outros,desprovidos de honra e fadados à submissão política e servidão econômica.Quando se substitui essa honra pela dignidade – ou seja, quando a restritanobrezade sanguedá lugar àdignidadedo trabalhodemuitos–, temosoquetalvez seja a maior conquista moral e política do Ocidente. Como empraticamente todas as ideias seculares, sua origem remonta à implantação dovalormáximodocristianismo,aolongodedoismilêniosdepregaçãoconstante,resultandonumaumentodaigualdaderealentreossereshumanos.

Precisamentearealizaçãodessevalormáximodenossaculturaestáemjogonapassagemdahonradepoucosparaadignidadedemuitos.Oganhomoraléinegável.Tanto a autoestima eo amor-próprio comoo respeitodosoutros e oreconhecimento social – coisasquebuscamosenecessitamos tantoquantoumpratodecomida–podem,agora, seruniversalizados,alcançando todososquetrabalham. Pelo menos potencialmente, todos os seres humanos podem teracessoaessadimensãoantesmuitorestrita.Afontemoraldetodoamor-próprio,prestígio social e reconhecimento individual– semosquais ficamosdoentesesomosapenasumasombradenósmesmos–passaaserreferidaaotrabalhoquetodospodemrealizar.

Se essa é a dimensão moral, de evolução e aprendizado valorativo, adimensãoinstrumental,sua irmãsiamesa,coloca-sededuasmaneirasdistintas.Primeiro,aospoucosvaificandoevidentequenemtodotrabalhotemomesmo

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valor. A quantidade e o tipo específico de conhecimento incorporado pelotrabalhadorvãocriar,tambémnestadimensão,distinçõessociais.

Todaaênfaseinicialdareligiosidadeprotestantenomodo,enãonotipo,detrabalho efetuado não evita que isso aconteça. Nas classes que reproduzemprivilégios positivos pela transmissão de um capital cultural mais valorizado,comonocasoparadigmáticodaclassemédia,adignidadeespecíficaresultantedo trabalho produtivo vai ser “mais igual” do que no caso do conhecimentoincorporadopelasclassestrabalhadoras.

Esse conhecimento diferenciado é o requerido para os cargos de direção,supervisão e controledos trabalhadoresnomercadoenoEstado.Tambéméotipodeconhecimentonecessárioàlegitimaçãodadominaçãosocioeconômicanaesfera pública e no imaginário social. Como recompensa, esse trabalho maisvalorizado vai proporcionar melhores salários e maior prestígio social ereconhecimentopúblico.Oseuâmbitoéolugarsocialporexcelênciadaclassemédia e do seuprivilégio específico.Mesmonos paísesmais avançados nesteaspectomoral e simbólico – e, portanto,mais igualitários –, tal diferenciaçãocrucialgeradistinçõessociaisperceptíveis.

Assim, na própria dimensão da dignidade do trabalho útil, potencialmenteuniversalizável para todos que trabalham e contribuem para a vida social,passamaexistirgradaçõesehierarquiasconformeotipodetrabalhoeotipodedesempenho. Há trabalhos e desempenhos individuais que são percebidos portodoscomomaisdignosqueoutros, implicandoumaformadeadmiraçãoedereconhecimentosocialdistintaecomparativamentemaior.Maiorsalárioemaiorprestígio social costumam ser os prêmios conferidos a essas modalidades detrabalho.

No entanto, essa combinação concreta e empírica de moralidade eaprendizado,deumlado,einstrumentalidadeedistinçãosocialpreconceituosa,deoutro,nãoéopiorproblemanessecontexto.EmpaísescomoaSuéciaouaAlemanha,aindaquetambémexista,nãoétãosignificativaadiferençaentreumtrabalhador qualificado e seu compatriota de classemédia queocupa cargode

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chefia. Em termos econômicos e prestígio social, todos são percebidos eavaliadossocialmentecomosereshumanosrespeitáveisedignosdeadmiração.

AocontráriodoqueaconteceurecentementeemSãoPaulo,apolíciaalemã,porexemplo,nãopodematarcommarteladasnacabeçaumadolescentepobre,9

mesmo se for de outra etnia, sem que haja consequência ou comoção social.Muito provavelmente, lá as consequências seriam sérias, tanto para o policialquantoparaosseussuperiores.

OmesmovaleparaaSuécia,aDinamarcae,eventualmente,aFrançaouaInglaterra.Sãotodassociedadesnasquais,apesardedistinçõessociaisinegáveis– ehoje, infelizmente, crescentes–, generalizou-seo respeito a todosos sereshumanos. Nesses países, uma parcela considerável do ideário cristão deigualdadefoidefatorealizado–semdúvida,apósmuitalutadetrabalhadoresecamponeses.

O ordenamento jurídico e formal que assegura a igualdade, ainda queimperfeito, tem como alicerce consensos valorativos construídos ao longo dahistória. Nele se articula um compromisso entre as classes sociais, segundo oqualtodososindivíduosdequalquerclassedevemdesfrutardeumnívelmínimode respeitabilidade – e de reconhecimento de suas necessidades sociais,econômicasepolíticas.

Porcontadisso,nessassociedadesmaisigualitáriashágrandeprobabilidadedequealeigeraldaigualdadeformalsejaaplicadaerespeitada,garantindoumaefetiva universalização da dignidade, não apenas em termos retóricos,mas danoçãoconcretadadignidadepotencialdetodotrabalhadorútil,evidentenodiaadia.

Nesses paísesmais avançados no sentidomoral e político, a desigualdadeentreclassessuperioreseclassespopularessemanifestadeformamaisclarapormeio da distinção estética.A obra-prima do pensador francês PierreBourdieunosdá a dimensão exata doquequeremosdizer.10De formagenial,Bourdieudemonstraque,mesmonospaísesmaisigualitários,comoaFrançadadécadade1970, existe uma dimensão da vida social invisível emais profunda do que o

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plano da igualdade jurídica formal, e nesse outro plano são recriadospreconceitosinabaláveisquelegitimamadesigualdadedefato.

Embora não reconstrua a gênese da fonte moral, aqui apresentada com aajuda da obra de Charles Taylor, Bourdieu compreende que a distinção entreespírito/corpoinstauraumalinhadivisóriaqueaspessoascomunsnãopercebemconscientemente, mas que, não obstante, dirige seu comportamento prático esuasescolhaseavaliações.Comovimos,ocomportamentopráticoéoquedeveser levado em conta, e não as ilusões comque justificamos o nossomodo devida.

Essa dimensão é tornada invisível porque, conscientemente, os francesesconsideravam,comjustificadoorgulho,queviviamnapátriadarevoluçãoedasgrandes lutas pela igualdade, além de ser a nação da escola republicana igualparatodos.Énessasociedade,naqualaslutasdeclassechegaramaopontomaisexplosivo, que Bourdieu demonstra a força prática de distinções sociais, asquais,precisamenteporquenãosãopercebidascomomecanismohierarquizador,constituemumnovoepoderosomecanismodelegitimaçãodadesigualdade.Osenso estético, seja real ou postiço, logra separar na vida cotidiana os sereshumanos sensíveis do restante da população, percebido apenas como massaignaracondenadaaotrabalhoprodutivoemanual.

Desse modo, o consumo de vinhos caros, roupas elegantes, iguariasrequintadas, acompanhado de formas específicas de comportamento social,expressasnomododeandar,defalaroudesedirigiràsoutraspessoas,criamosvínculosmais sólidos de solidariedade de classe, conferindo uma sensação desuperioridadeàquelesqueparticipamdesseestilodevida.Aclassedoprivilégiopode se reconhecer facilmente na rua ou numevento social, constituindo umaespéciedistantee,sobretudo,superiordeserhumano.

Asamizades,oscasamentos–99%daspessoascasamdentrodesuaclassesocial –, os relacionamentos pessoais e de negócio, tudo será facilitado pelapercepçãoimediatadocompartilhamentodeummesmoestilodevida,baseadonum gosto comum. Essa sensação de pertencimento de classe social não éconsciente nem explícita. É uma sensação prática, que transmite a certeza

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emotiva de se estar diante de um igual, “gente como a gente”, o que gerasimpatiaeempatiaimediatas.

Aclassemédiabrasileiranãosecomovecomamorteoumesmoomassacredemilharesdepobres,osquaissãovistoscomo“genteinferior”.Massecomovemuito com o drama humano de um único indivíduo de sua classe, quando ésequestradooumorto.

Esse tipo de solidariedade e empatia imediata entre os membros de umaclasse se contrapõe ao preconceito em relação aos que não fazem parte domesmomundo social.Assim, quemconsomecachaçaou cerveja barata, comebifegordurosonoalmoço,vestecamisetaregataebermudaefalacomerrosdeportuguês, sem demonstrar o menor senso estético, é percebido como sendo“menos gente” por todos das classes privilegiadas. Isso não exclui o contatosocial, quando, por exemplo, entram nas casas de classe média para fazer afaxinaouconsertaralgo.Mascomessagentenãosetravamamizadesreais,nãosecasam,nãosefazemnegócios.

Éassimqueomundosocialsemantémdesigualapesardapretensãoformalde igualdade jurídica entre as pessoas.É assimque o pertencimento de classeefetivamente atua em nosso cotidiano. E isso acontece em todas as atuaissociedades capitalistas, seja na periferia do sistema, como no México e noBrasil,sejanocentro,comonosEstadosUnidosenaFrança.

Aqui se nota como é idiota – não há termo melhor, pois faz de imbecisaquelesquenissoacreditam–anoçãodequeexistiriaumjeitinhobrasileiro,sónosso, um planeta vira-lata e verde-amarelo só dos brasileiros. Em todas associedadesmodernas, são essas ligações emotivas e personalíssimas que estãoportrásdetodotipodeprivilégio.

A concepção do ser humano sensível, que nos afeta a todos, mostra aambiguidade inexorável da vida social e humana. Por um lado, ela implicaefetivamenteumaprendizadomoral.Éimportanteseautoconhecer,saberquaissãoasemoções,osdesejosesentimentosquenossingularizamcomoprodutosdeumabiografiaque,apesardeobedeceratraçossociaisgerais,sempreémuitoparticular a cada indivíduo. Mesmo no interior de uma mesma família, as

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pessoasexpressamasuahumanidadedemodoúnico.Seossereshumanosnãosãoapenasanimaisquetrabalham,comordemedisciplinacomoasabelhaseasformigas,adescobertadasensibilidadeindividualdecadauméessencial.

Nessa descoberta, o papel desempenhado pela arte verdadeira – aquelaproduzidapelosgrandesescritores,pensadoreseartistas–éindispensável.Umavez que, em grande medida, aprendemos por comparação, as narrativassingulareseexemplaresdaexperiênciahumananospermitemtambémousaremnossa singularidade, ser criativos e transformar nossas vidas em aventuras dedescoberta.Adescoberta da sensibilidade é, portanto, efetivamente umgrandeavançodaideiadeindividualismocomoforçamoralesocial.

Ao mesmo tempo dor e delícia de tudo o que é humano, a ideia desensibilidade também é uma arma contra os outros na luta pela posse dosrecursos sempre escassos, tanto materiais, como roupa e vinho, quantoimateriais,comoprestígio,charme,admiraçãoourespeito.Emboratal lutasejadosindivíduos–quandoasclassesnãopercebemapolíticacomoarmadeclasse–,opontodepartidaparaoprivilégiopositivoounegativoédadopelaclassesocial.Daí a injustiça de todos os privilégios, uma vez que ninguémdeve sercondenadoatéofimdavidapeloberçoquenãoescolheu.

A ambiguidade da noção de privilégio estético não termina aí.Como todoaprendizado efetivo é muito difícil e exige enorme dedicação, numa buscasempreincerta,amaiorpartedaspessoassimplesmente“compra”aaparênciadesenso estético. Claro que isso não pode parecer mera compra, ou não seconsegueenganarosoutrosnem,muitoespecialmente,asimesmo.Odinheirocompraoqueestáàvenda,masnãocompranenhumaprendizadoreal,postoqueeste só se alcança com esforço. Mas é possível comprar a aparência deaprendizadoreal.

Quandoumprivilegiadopõenamesaumvinhoespecialde20miloude50milreais,nãoestáapenasexibindooseudinheiro.Oquelheimportaéprovocarnos outros e em si mesmo a sensação de que possui bom gosto, percepçãosofisticada e sensibilidade “inata”.O dinheiro tem que ser um detalhemenor,quaseumacasualidadefortuita.

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Como a mera aparência tende a produzir os mesmos efeitos públicos doaprendizadoreal,algunsdosmaioressetoresdenegóciosnomundoseformarampara atender a esse tipo de necessidade simbólica: a indústria cultural, a damoda,adosprodutosespeciais,orgânicos,sustentáveis,etc.Comosalientamos,a regraéaambiguidadee,emtodosossereshumanos,háumamisturadessasdimensõessobaégidedas ideiasmoraisquealçamasensibilidadeaumvalorsupremo.

A proporção do que é real aprendizado e do que é comprado para efeitopúblico varia, emmuitos, em quantidade, mas não em qualidade. A indústriaculturalproduzos seusefeitosem todosnós,pormaisdedicaçãoque se tenhatido no aprendizado efetivo da dimensão sensível. O contrário também éverdadeiro.

O decisivo aqui é constatar a forma pela qual se dá a legitimação ejustificaçãodosprivilégiosinjustosdaclassemédiaedaeliteemdetrimentodasclasses populares, seja dos trabalhadores, seja dos marginalizados. A“superioridade”dasclassesdoprivilégiopositivo,herdadadoberço,nãoprecisaestar escritana lei jurídica,pois está inscrita emnossocomportamentopráticocorriqueiro.Aleiformalizadanoscódigosnormalmentesecurvaàleipráticadeumasociedade.Maisainda,aparececomosuperioridadeóbviasemestarescritaemnenhumaparte,oquedificultasuacríticaefacilitasuadifusãoemtodasasclasses.

Assim, o sonho de toda criança das classesmarginalizadas é ter um tênisNikeouumiPhone,produtoscorriqueirosentreos filhosdaclassemédia real.Asclassessubalternasjásepercebemcomoinferiorespornãoteremacessoaosmesmossímbolosdestatusedebomgosto.Dessemodo,nemprecisaescreverna lei que essas pessoas são gente de menor valor, pois elas próprias estãoconvencidas disso, na prática cotidiana, pela impossibilidade de ter acesso amercadoriasquesãomaisumsímbolodedistinçãosocialdoquealgoparausoconcreto.

Nessesentido,asclassesmédiasnoBrasilusamdesubterfúgiosemelhanteao das classes médias de outros países – invalidando a sociologia do planeta

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verde-amarelo,corruptopornatureza,queherdamosdenossos“pensadores”.Aformadeexercíciodoprivilégioésemelhante.Aconcepçãovira-latadojeitinhobrasileiroserveparaoutrosfins,comoveremosadiante.Mas,semapelaraessevira-latismo, há de fato entre nós uma singularidade da dominação social narelaçãoentreasclassesprivilegiadaseasclassespopulares.

Comoo esforço daminha vida foi o de dotar a inteligência e a sociedadebrasileiras de uma concepção mais verdadeira e profunda do funcionamentoefetivodenossocorposocial,procureidesenvolverumaideiaquemeparecetãofundamentale relevantequantoadescobertada“gramática invisível”dosensoestéticoporBourdieu.Porcontadisso,meempenheiemelaborarteoricamente11

edepois comprovar empiricamente12 quenas sociedadesmodernas existe umadimensãoinvisívelelegitimadoradadesigualdadequesemanifestatambémnanoçãode(sub)dignidadedotrabalhoútil.

Essa dimensão nunca foi explorada por Bourdieu, a despeito de ele teranalisadosociedadessimilaresàbrasileira,comoéocasodaArgélia.Paramim,nem Bourdieu nem Taylor, os autores que mais contribuíram nessa minhaempreitada,desenvolveramouatentaramparaascaracterísticashierarquizantesejustificadorasdedesigualdades fáticasdessadimensãodo trabalhoútil. Isso seexplica pelo fato de que as sociedades de que respectivamente fazem parte, aFrançaeoCanadá,nãopossuem–oupelomenosnãopossuíam–contingentesexpressivosdemarginalizados.

Paramim, ao contrário, esse é o ponto a ser explicado para se entender asingularidade brasileira. Mesmo quando não compreendia o fenômenoteoricamente,ouseja,nãoidentificavaaformaespecificacomqueseproduzia,nem tinha a oportunidade de comprová-lo empiricamente, minha intuição de“brasileiro”dizia quenãohavia nadamais importante para entender o país demodomaisprofundodoquecompreenderaeternizaçãoentrenósdeumaparcelamarginalizadadapopulação.

É essa “ralé” de marginalizados, abaixo da classe trabalhadora, que, soboutra forma, dá continuidade à sociedade escravocrata dopassado.Portanto, omeudesafioeraentender, sobuma forma“moderna”, enãomaispela simples

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cor da pele, por que há neste país uma quantidade tão grande de pessoasdesafortunadas,abandonadasehumilhadas.Paramim,descobririssoeraachaveparaacompreensãodasociedadebrasileiracomoumtodo.Umachavecapazdeexplicar o fato de que, ainda que participando do mundo moderno e docapitalismo industrial, mantínhamos aqui uma sociabilidade violenta, bárbara,sádica,patológicaerepugnante.

Sobainfluênciadastolicesdopatrimonialismovira-lata,semprenosvimoscomo uma sociedade marcada pela corrupção do Estado, relegando aoesquecimentoomaisóbvio:somososherdeirosdamaiorsociedadeescravocratadoplaneta.Quemnãosabequeméjamaispodeaprender,equemnuncaaprendeestácondenadoàrepetição.

Comoseconstróia“ralédenovosescravos”edequemodoissoexplicaboapartedocomportamentodenossaclassemédia?Aquioessencialéconstataropapeldoconhecimentocomoumcapitaltãoimportanteparaofuncionamentodocapitalismo quanto o próprio capital econômico. O próprio dinamismoeconômicodocapitalismoadvémdeseuaproveitamentosistemáticodaciênciaedoconhecimentonosmeiosdeprodução.

Sem esse aspecto, o capitalismo perde a vantagem comparativa diante deoutros sistemas econômicos. Além disso, é o conhecimento incorporado nopróprio trabalhador que determina, em grande medida, a maior ou menorprodutividade do trabalho. A incompreensão disso nos condena a umainterpretação redutora e economicista do capitalismo, tal como o fazem osliberais, que reduzem a classe social à faixa de renda, ou ainda, como algunsmarxistas,quelevamemcontaapenasaaçãodocapitaleconômico.

Afinal, o capital econômico e a propriedade são concentrados em todo omundo. O potencial democrático do capitalismo sempre depende dageneralizaçãodoconhecimento,umafontededistinçãoereconhecimentosocialde acesso restrito nas sociedades pré-capitalistas.Ao contrário do escravismo,porexemplo,ocapitalismonãoexploraameraenergiamusculardotrabalhador,e sim o conhecimento incorporado que o capacita, por exemplo, a operarmáquinascomplexas.

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Aindaqueoconhecimentodaclassemédia real sejamaisvalorizado–emfunção de sua escassez e do tempo livre requerido para sua incorporação, umprivilégiodasclassesmédiasquepodemdispordo tempo livredos filhosedeboasescolas–,tambémostrabalhadorestêmacessoaconhecimentoútil.Aindaquemenos valorizado e legítimo, esse conhecimento é o que permite à classetrabalhadora lutar no mercado de trabalho por empregos melhores e maisestáveisdoqueosmarginalizados.

Estesestãoforadomercadodetrabalhocompetitivoporfaltadascondiçõespréviasmínimasparaa incorporaçãodequalquerconhecimentoútil.Essefato,obviamente, não significa que esta classe não seja explorada. Antes pelocontrário, por conta de sua fragilidade, ela é superexplorada, sobretudo pelaprópriaclassemédia.

Comoéaclassedosmarginalizadosqueherdaoabandono,oesquecimento,oódio,ahumilhaçãoeodesprezocotidianosquesedirigiamaoescravo, tudoparaelavaisermaisdifícil.Emvezdeajudaoureparaçãodoquelhefoiretiradocom violência, ela é humilhada e vítima do mesmo sadismo e prazer nahumilhação que animava os senhores brancos contra os negros no Brasilescravocrata.

Uma das consequências é a dificuldade para essas pessoas formaremfamílias, pois a tradição nesta classe é a ausência de família, dificultada noescravismo e depois reproduzida pela socialização familiar precária, uma vezqueospaisnãopodemdaraosfilhosoquenuncativeram.Sobtodasasformas,oabusodosmaisfortessobreosmaisfrágeiséodiaadiadessaclasseodiadaeesquecida.

Como o bom aproveitamento escolar exige pressupostos normalmenteinvisíveis – como atenção, foco, concentração, disciplina, autocontrole,pensamentoprospectivoecapacidadedeabstração–,osfilhosdaclassemédiajáentramcomovencedoresnosistemaescolar,aopassoqueosfilhosdaclassedosmarginalizados – e não por culpa deles, já que ninguém escolhe o berço –chegam como perdedores em tenra idade. Muitos saem da escola comoanalfabetos funcionais, incapazes de participar do mercado de trabalho

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competitivo.Restaaelesdependerdoempregodaprópriaenergiamuscular,talcomo no caso dos escravos. E a maioria acaba exercendo trabalhos físicosdesvalorizados,extenuantesemalremunerados.

A exploração econômica do trabalhobarato permite à classemédia não só“roubar”otempoda“ralédenovosescravos”–ocupadosnasfunçõesrepetitivasedesgastantesdoserviçodomésticoedoserviçopesadoeperigosoemgeral–,comousá-lodepoisemtarefasmaisbempagasembenefíciopróprio.

Essaopressãodeclassenuncaénotadaquandodefinimosasclassesapenasemfunçãodeníveisdiferenciaisderenda,comoseasrelaçõesdedominaçãoesubordinaçãoqueseestabelecementreelasnãofossemoaspectodecisivoparaentendercomoosindivíduosdecadaumasecomportamunscomosoutros.Oqueestáemjogonessasrelaçõeséumalutadeclassesmuitosingular:entreumaquetemtudoeoutraquenãotemnada.Oqueestáemjogo,naverdade,éumacovardeopressãodeclassequetendeaseeternizar.

Num país de passado escravocrata como o nosso, esse tipo de dominaçãonunca é apenas de caráter econômico.Não se trata de uma apropriação, aindaque legalizada, do tempo de outra classe, comprado a baixo custo, a fim dededicar ao estudo ou a atividades profissionais mais bem remuneradas evalorizadasotempoqueseriagastoemcuidadodosfilhos,nalimpezadacasa,no preparo de comidas, etc.Os privilégios de uma classe condenam a outra àprecariedade eterna, já que não lhe sobra tempo para nada. Enquanto isso, aclasse opressora tem cada vez mais oportunidades de avançar e obterconhecimentoeriqueza.

A este aspecto econômico se soma o sadismo, presente no cerne de todasociedade fundada no trabalho escravo. Ninguém escraviza o outro sem, aomesmotempo,negar-lheahumanidade.Comoooutronãodeixadeserhumanoeresistenamedidadopossível,nemquesejapormeiodepequenassabotagens,ahumilhação temdeser reforçadaacadadia.Éprecisomostrarqueooutroéinferioreestáaliapenasparaservir.

Comotempo,oexercíciodahumilhaçãosetornaprazeroso,multiplicando-sesobasformasdapiadasuja,dochisteaparentementeapenasdebrincadeira,

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doinsultodireto,dopreconceitodeclasseederaçae,nãomenosimportante,doabuso. Não apenas sexual, embora este seja a forma paradigmática de todoabuso.

Aclassemédiabrasileiraherdaoabusoeosadismodeseusavós,eumdosmotivos para isso é que nossa inteligência cooptada e colonizada nem sequerpercebeaescravidãocomoanossasementesocialmaisimportante.Abaleladopatrimonialismo,edacorrupçãocomose fosseatributoapenasdoEstadoedapolítica, assumeo lugar principal e subordina, relega ao esquecimento e tornasupérfluaessaherançamaior.Maisumavez:quemnãosabequeménuncapodese autocriticar, e quemnão se critica nunca aprendenada.Nossa classemédianão apenas explora economicamente as classes abaixo dela, ela humilhacovardementeosmaisfrágeis,osesquecidoseabandonadostantoporela,classemédia,quantopela“elitedoatraso”.

Piorainda,extraitantoprazerdessaopressãoquesaiàsruastodavezqueapolíticapretendediminuiraabissaldistânciaentreasclasses,aindaquecomopretextodomoralismodefachadacontraa“corrupçãoseletiva”sódapolíticaesó da “esquerda”. Somente contra os partidos das classes populares a classemédiarevoltadasaiàsruas,nuncacontraospartidosdaelitedosproprietários.Éissoqueafaztãodócilemanipulável.

Outras sociedades, como a francesa após a Comuna de Paris, em 1871,decidiram incluir, por meio do sistema escolar republicano, a parcela da suapopulação abandonada à própria sorte ou azar. A inclusão dos humilhadossempre é uma decisão política e moral, e nunca consequência apenas dodesenvolvimentoeconômico,comosecomprovanoBrasil.Entrenós,aeliteeaclasse média preferem ignorar essa situação secular e continuar explorando ehumilhandoosmaisfrágeis.

A causa de todos os golpes deEstado, em especial o de 2016, nunca tevenada a ver com a corrupção. Por que apenas a suposta corrupção petistaincomoda a classe média, e não a dos outros partidos, mesmo quandocomprovada em gravações exibidas na TV? Alguém viu a classe média emmassanas ruas, protestando contra a corrupçãodepartidosde elite?Nuncavi

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ninguém mostrar sua revolta nas ruas pela corrupção, por todos sabida, porexemplo,doPSDB.Evocê,leitorouleitora,jáviu?

Entãovamosteracoragemdeassumirqueoquedefatoincomodaaclassemédiaescandalizadanãoéenunca foiacorrupção.Umdosobjetivoscentraisdeste livro será precisamente explicar o que incomoda de verdade a classemédia. Até aqui mostramos o que ela tem em comum com as outras classesmédias domundo. Agora vamos demonstrar o que afasta a nossa das classesmédiasempaísesmoralepoliticamentemaisdesenvolvidos.

Paracomeçar,asingularidadedecadapaísnãosedeve,comopensamosatéhoje, a heranças malditas, como uma suposta corrupção herdada de Portugal.CritiqueiessaideiaimbecileimbecilizantenolivroAelitedoatraso.13Afinal,atradiçãonãosetransmitepelosangue,peloarnemporpicadademosquito.Sãoinstituiçõesconcretas–afamília,aescola,otrabalho,etc.–quenosfazemoquesomos. Somos filhos de instituições concretas, não de ideias supostamentetransmitidas noDNA. Isso é pseudociência e boa parte de nossa ignorância arespeitodenósmesmosadvémdessasbobagenspré-científicas.

Ora,noBrasil,ainstituiçãoqueinfluencioutodasasoutrasfoiaescravidão.Comosistemaeconômicoesocial,oescravismojamaisexistiuemPortugal.Aescravidão,portanto,ébrasileiríssima.Énossaverdadeiraherança.Visível,emprimeiro lugar, na família precária da “ralé de novos escravos” que nossasociedadevemreproduzindohá500anos,agravadapelosadismoeperversidadedas classes privilegiadas. O relacionamento dessas classes com osmarginalizados é a forma especificamente “moderna” que a herançaescravocrata,intocadanoseunúcleopatológico,assumeentrenós.

Paramim,quevenhotrabalhandonestetemateóricaeempiricamentedesdemuito tempo, tudo o que nos marca mais acentuadamente tem a ver com aabissal distância entre as classes sociais: tanto a distância absurda entre asclassesdoprivilégioeasclassespopulares,quantoaperpetuaçãodeumalegiãodeoprimidos,desprezadoseesquecidosqueperfazem,pelomenos,maisdeumterçodapopulaçãoefuncionam,entrenós,comouma“castadeintocáveis”.

Todasasquestõescentraisdodesenvolvimentoeconômico,políticoesocial

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brasileirotêmorigemnessadistânciaenessamarginalizaçãogigantesca,enadatêm a ver com as balelas e mentiras de patrimonialismo, jeitinho brasileiro epovo corrupto ou preguiçoso. A fim de entender direito esse aspecto crucial,teremosdereconstruiraformacomoseconstituíramasrelaçõesentreasclassessociaisnoBrasil,bemcomoopapelcentral assumidopelaclassemédianessecontexto.

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ACONSTRUÇÃODACLASSEMÉDIABRASILEIRA

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U

Agênesedaclassemédiabrasileira

mlivroespecialmenterelevanteparaoentendimentoadequadodagêneseda classe média brasileira é Homens livres na ordem escravocrata, da

professoraMariaSylviadeCarvalhoFranco.14Aindaquesejamuitodesiguale,na segunda parte, proponha uma discussão frágil do patrimonialismo – jácriticadapormimemoutroslivros–,15oscapítulosiniciais,poroutrolado,sãoalgumasdasmelhorespáginasdasociologiahistóricabrasileira.

Ao falar de “homens livres” no ambiente rural brasileiro do século XIX,Carvalho Franco obviamente não está se referindo à classe média como aconhecemos. Esse estrato intermediário de pessoas formalmente livres, entresenhores e escravos, é formado por homens e mulheres dependentes, tantomaterial quanto simbolicamente, dos proprietários de terras e de gente. Nosentido mais econômico e material, a dependência desse estrato social éinexorável.

Como a instituição da escravidão e do escravismo é a base econômica dosistema capitalistamercantil colonial, os homens livres, apesar de seu númeroexpressivo – para Carvalho Franco o setor mais numeroso, perfazendo doisterçosdapopulaçãoemmeadosdoséculoXIX–,literalmentenãotêmlugarnosistemaprodutivoprincipal.

Assimseconstituientrenós–comoformaeconômica,políticaesocial–afigurado“agregado”.Figurafundamentalnaliteraturaenasociologiahistórica

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brasileira, o agregado vai formar a primeira classe intermediária entreproprietários e despossuídos. Daí sua importância para nosso tema. Como écomposta por dependentes de forma objetiva, a maior parte dessa classe vaiconstituir a ralé de quatro séculos que vaga pelo nosso país, em vez de ser opredecessordeumaclassemédiamoderna.Váriosdentreelesvãosejuntaraosex-escravos, abandonados pela “abolição”meramente formal, e constituir umadasmaioresclassessociaisdoBrasilmoderno:araléestruturaldedespossuídoseabandonados.

Em termos individuais, a mobilidade ascendente, no entanto, eraperfeitamentepossívelnesseestratosocial.Eraoquesedava,porexemplo,nasocasiõesemquecumpriaeliminar,pormeiodaviolênciafísica,concorrentesdearrivistas e de poderosos já estabelecidos, que recorriam à abundantemão deobraarmadadeagregadosorganizadosemumaespéciedemilíciaprivada.

Talvez sejao escritorGracilianoRamosquemmelhor tenha compreendidoessadinâmica social e seus reflexosnos indivíduos.O romanceSãoBernardomostra,deformamagistral,oprocessodedesumanizaçãoqueumagregadoquese torna proprietário de terras tem que realizar num contexto marcado peloarbítrio e a violência. O assassinato como meio de resolução de conflitos, oconfinamento da amizade aos “cabras” e aos dependentes, a incapacidade deexpressar afeto que o faz perder a mulher amada, o definhamento de todadimensão afetiva e sentimental são o corolário do homem de sucesso nesseambiente. Não conheço crítica mais brilhante a esse contexto perverso dedominação.

Mas o destino mais comum dos agregados eram as franjas do sistemaprodutivo principal, baseado no trabalho escravo, sob a forma da dependênciapessoal em relação ao senhor de terra e gente. As formas mais comuns deagregadoserãoo tropeiro,ositiante,ovendeiroe,acimadetudo,o“cabra”,obraçoarmadodopatrão,dispostoamataroumorrerporele.

Comargúcia,CarvalhoFrancoressaltaaambiguidadedeumarelaçãoqueédedependênciaobjetiva–dadaainexistênciadealternativasdesobrevivência–,mas que aparece na consciência de ambos como um acordo voluntário, uma

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escolhaentrehomenslivres.Aliberdademútuanãopassavadeumailusão,dadoqueoagregadosempredependiadaboavontadedoproprietário.

Masa ilusãode liberdadevalemuito–naausênciadeoutraopção, restaafantasia–eaindapermitealiviarodesgastedoarbítrioedaautoridadeaberta.Maisque isso, convidao serviçal agradecido a adivinharodesejodopatrão eidentificar-secomseusinteressesevontades,abdicandodospróprios.Oconviteaseservirnamesadopatrão,relaçõesdeamizadeecompadrio,tudoserveparaproduzirnaconsciênciadodependenteumsentidodebilateralidadee,pormeiodela,arestituiçãodaautoestimaedadignidade.

Opressupostodoacordodecavalheirosentreosenhoreodependenteéqueoescravotrabalhaparaambos.Paranossotema,ofundamentalnesse“acordodeclasse” é que o reconhecimento da humanidade e da dignidade passa a ficarrestritoaaquelesquenãosãoescravos.FundamentalporqueiráperdurarcomoonógórdiodasrelaçõesentreasclassesnoBrasildesdeentão:apreservaçãodadistânciasocialdetodasasclassesemrelaçãoaosescravosasseguraumespaçode distinção social e privilégio que permite a fidelidade e subserviência dosestratosmédiosemrelaçãoaosestratossuperiores.

EssarelaçãovaiseperpetuarnoBrasildosséculosseguintesemrelaçãoaosabandonadosemarginalizados,ouseja,osatuaisdescendentesdosex-escravosdequalquercordepele,emboraamaioriacontinuesendonegra,mesmodepoisdaabolição formaldaescravidão.Oescravoé,portanto,aqueleemrelaçãoaoqualmesmoodependentedesvalidovaipodersedistinguiresesentirsuperior.Suasensaçãodeliberdadevemdesuacondiçãonãoescrava.

Este é um ponto crucial das relações de classe no Brasil: os escravos, edepoisseusdescendentes,formandoumexércitodehumilhadoseesquecidosdetodasascores,vãose tornarumaespéciedecastados intocáveis, tal comonaÍndia.A funçãodacasta inferiorna Índia–os“intocáveis”,nosentidodequequalquer contato físico com eles contaminaria a pureza relativa das castassuperiores – sempre foi precisamente o de possibilitar um sentimento desuperioridadeedistinçãosocialpositivaàscastasacimadela.

Por conta disso, historicamente, o sistema hindu era aberto à inclusão de

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novas castas, incorporadas ao sistema desde que ocupando as posições maissubalternas e realizando os serviços mais degradantes. Todas as outras castasganhavam em prestígio simbólico na hierarquia social em função do estigmalocalizadoeconcentradonacastamaisbaixa.16

Essaéprecisamenteafunçãoqueoescravodesempenhouentrenós–equeseusdescendentescontinuamadesempenharnanossasociedadeatual.Ohomemlivre,mesmoempobrecido–enãoefetivamentelivre,poisnãodispunhadeseusmeios de sobrevivência –, podia se sentir superior, se sentir “gente” ao serrecebido àmesa do senhor com dignidade, tratado como se fosse igual. Tudoissoapenasporquenãoeraescravo.

Quemnãoconsideraessesaspectosnãoeconômicosdadominaçãosocialnãosabe nada sobre a própria vida nem sobre a sociedade em que vive. Amanutenção do escravo e da distância social em relação a ele passa servalorizada,portanto,nãosópelosdonosqueexploramotrabalhocativo,comotambémportodasasclassesqueretiramsuadignidadeeautoestimasocialdessadistância em relação a um contingente de seres desclassificados edesumanizados. Essa situação se mantém ao longo do tempo como acaracterísticamais relevante da sociedade brasileira e, mesmo quando esta semoderniza, vaimarcar profundamente os estratosmédios, o nosso tema nestelivro.

Ao contrário da colonização norte-americana, feita em grandemedida porpequenos e médios proprietários de terra, no Brasil a colonização se deu pormeiodolatifúndiosemlei–naverdade,suaúnicaleiéadomaisforteedomaisinescrupuloso–,quesubordinaecomandatodaarealidadesocial.Essaéarealeprincipaldiferençaentreahistóriasocialdessesdoispaíses,enãoasbobagenspreconceituosas e racistas do “protestante divinizado”, quenossos intelectuais,colonizados no complexo de inferioridade até o osso, até hoje compram pelovalordeface.

Nocasobrasileiro,semapressãodeumacomunidademaiorcompostapeloconjunto de iguais em termos econômicos e sociais, o arbítrio e a violênciaaberta dos donos de terra e gente são o único critério que conta.O latifúndio

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baseadono rouboenagrilagemde terracriaumestadopermanentedeguerraentre vizinhos, no qual boa parte dos homens livres vai encontrar sustento erazãodevida:comoobraçoarmadodolatifundiário.EssaéumarealidadequeatéhojecaracterizaasrelaçõesnasáreasruraisdoBrasil,comomesmotipodegenteprestando-seafazeromesmotipodetrabalhosujo.Énacidadequeoutramodalidade de trabalho sujo, o da dominação social urbana e despótica, vaiassumirnovasformas.

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O

Ocamponacidade

domínio absoluto do latifúndio no campo não é o espaço propício àformaçãodeumaclassemédia.Aomonopolizaraterra–ofatorprodutivo

mais significativo –, o grande proprietário sufoca as outras formas depropriedadeedearranjoprodutivo.Alémdolatifundiário,queatudopresideeatudocomanda,sóexistemescravoseagregadosdependentes.

Asurradechicote–oude“rrrelho”,comopreferea senadoragaúchaAnaAmélia, que aplaudiu o fato17 – que fazendeiros gaúchos deram emmanifestantes pacíficos no Rio Grande do Sul mostra a continuidade daviolênciamaiscovardeeabjetaquemarcaasrelaçõessociaisnoambienterural.

Amudançadocampoparaacidade,quejáseprenunciacomapassagem,emtermosdedinamismoeconômico,daagriculturadeexportaçãoparaamineraçãona segunda metade do século XVIII, ao contrário, já contempla inovaçõesimportantesparaonossotema.

Oprocessodeurbanização transformaa realidademateriale simbólicadaspessoas e cria necessidades que não existiam no meio rural. Obviamente, atransformação de fato revolucionária se dá com o avanço do capitalismoindustrial, que repõe toda a reprodução social sob bases novas e sob seucomando. Mas isto só vai ocorrer no princípio do século XX e muitoconcentradodeinícionacidadedeSãoPaulo.

Mesmo assim, já com o advento damineração e, sobretudo, com as duas

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novidadesassociadasàvindadaFamíliaRealportuguesaaoBrasilem1808–adatadenascimentodoBrasilmoderno–,notam-semudançassociaisdevultonasociedade brasileira. Essas duas transformações são a abertura dos portos e atransplantaçãodoaparatodoEstadoportuguêsdeLisboaparaoRiodeJaneiro.

Emborarestritasaomarcodocapitalismocomercialdaépoca,taismudançasvãoreorientaromododevidaeaestruturasocialentãodominante.Énecessáriocompreendê-lasbem.Aaberturadosportossignificou,narealidade,aintroduçãodalógicadastrocasmercantisnasgrandescidadesbrasileiras,marcadamentenoRiodeJaneiro,comocapitaldonovoreino,mastambémemRecifeeSalvador.

Esseéumdadonovoquenãoexistiaantes.Comocrescimentodascidadesse criam novas necessidades e funções econômicas para dar conta doabastecimento de víveres, o surgimento de pequenas oficinas, amodernizaçãodosmeiosdetransporteedetudoomaisquetemavercomoatendimentodasinúmerasnecessidadesdeumapopulaçãoconcentradanumespaçodemarcado.Avinda da Família Real, por sua vez, se deu com a transplantação de parte doErário português e de milhares de funcionários e burocratas encarregados derefundaronovoEstadonostrópicos.

Dentro das limitações óbvias do capitalismo comercial, começa a brotar asemente de um Estado centralizado e de um mercado incipiente. Esses doisfatorescombinadosfazemsurgirumpequenomundoantesinexistente.Primeiro,começam a afluir estrangeiros de toda sorte se aproveitando das novasoportunidadescomerciaisedenegócios.

ChegamalemãesdaBaváriaparaproduzirasprimeirascervejasbrasileiras;francesesparavenderroupasebadulaquesparaasjovensesenhoras;echegam,sobretudo, ingleses, trazendo até as primeiras máquinas, viabilizandomanufaturaseoficinasvoltadasparaoreparoeaproduçãodeumsem-númerodeitens.

Oinfluxocomercialdáorigemacomplexosdecompraevendaporatacadoevarejoempraticamentetodososramosdocomércio.Esseprimeiromovimentode atividade econômica urbana anima a Colônia, que se torna Vice-Reinado.Surgemescolasehospitais,eaincipienteatividadefinanceiraestimulaummaior

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fluxomonetário. Surgem os primeiros profissionais liberais, bem como novosofíciosefunçõesprofissionais.Namesmaépocatambémaportamporaqui,emmissõesdeEstado,osprimeirosartistas,intelectuais,aventureiroseviajantes.

A transplantação do aparelho de Estado é o outro fator que explica asmudançasestruturaisnavidacitadina.Achegadadeumanovaburocracia realcria não só demandas de mercado, mas também aumenta a complexidade dasociedadecomoumtodo.Bancosestataisabremespaçoparaumadensamentodaeconomiamonetáriaedofluxodecapitaisemercadorias.AsnovasfunçõesdeFisco,Justiçaepoliciamentonãosóestimulamademandaporbenseserviços,mastambém,nadimensãosimbólicaepolítica,ajudamatornaroexercíciodopodermaisimpessoalegeneralizado.

O impactodessasmudançasnascidadesbrasileirasmais importantesnãoéirrelevante. Ainda que as mudanças não alcancem o interior, nas cidadeslitorâneas são evidentes as alterações no modo de vida. A influênciaeuropeizante passa a marcar o ambiente urbano, revolucionando tanto a vidaprodutivaecotidianaquantoogostoestéticoeospadrõesdemoralidade.

Tudo o que estivesse associado ao passado português e “oriental” (ocomércioantesrestritoàscolôniasportuguesasnaÁfricaenaÁsia)agoraétidocomo de mau gosto e inferior, e tudo associado às novas modas inglesas efrancesas passa a ser visto como de bom gosto e superior, merecedor deimitação.18

Aentradadainstituiçãoestatal,aindaqueprecária,nocotidianodaspessoastambémmuda hábitos, expectativas emodos de vida.A lei domonarca,maisampla e abstrata que a lei pragmática dos potentados locais, instaurapaulatinamenteumanovaformadeperceberevivenciarasrelaçõessociais.Paraasmulheres,omédicotomaolugardopadreconfessor.Figurascomoojuizeodiretor da escola materializam uma ordem, incipiente sem dúvida, mas queaponta as linhas de desenvolvimento opostas ao mero arbítrio concreto epragmáticodosenhordeterraegente.

Também o mercado, fomentado pelo impulso comercial, traz novidadesimportantesparanossotema.Aindaqueaospoucos,começaasurgirumasérie

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deofícioseprofissõesnovas.Amodista,oalfaiate,olivreiro,ocomerciante,oimportador de novidades europeias tendem a generalizar novos padrões deconsumoeummododevidaedecomportamentoquenãoexistiaantes.

É na esteira dessas transformações que podemos analisar melhor onascimentoentrenósdeumaprimeiraformade“classemédia”.Maisumavez,para evitar mal-entendidos: é óbvio que essas formas não refletem condiçõessociais amadurecidas como as atuais. A realidade não nasce pronta. Mas aslinhas de desenvolvimento essenciais e os fatores determinantes dodesenvolvimentofuturojásemanifestamdemodoclaroaquieali.

OpontocrucialparanossosfinséanovavalorizaçãodoconhecimentoquesecrianoBrasilnessaépoca.Nadaémaisimportantenemmaiscaracterísticodaclassemédia do que a valorização do conhecimento.Num contexto em que apropriedadeédetalmodoconcentradaempoucasmãos,oconhecimentoútiledeprestígiovaiseroúnicocapitalaoalcancedaquelesquenãosãoproprietários.Assimcomeça a se constituir umaclasseque, não sendoproprietária, tambémnãoédespossuída.

Afinal,ocapitalismonãoimplicaapenasavalorizaçãodocapitaleconômico.O próprio dinamismo da atividade econômica no capitalismo depende doaproveitamentosistemáticodatécnicaedaciência,ouseja,doconhecimento.Éissoquetornaocapitalismodinâmicoeprodutivo.Enãosãoapenasosmeiosdeprodução que requeremo uso intensivo de conhecimento aplicado.Não existenenhumaatividadeou função,noâmbitodomercadooudoEstado,quepossaserexercidasemconhecimentotécnicoespecífico.

Aclassequevaiseapropriardesserecursofundamental,comobasedesuareproduçãosocial,éprecisamenteaclassemédia.Comooquedefineumaclassesocial e assegura sua continuidade no tempo é a reprodução de privilégios,negativos ou positivos, no caso da classemédia o privilégio positivo que elareproduzéocapitalculturaldoconhecimentovalorizado.

Embora todas as virtualidades desse fenômeno só se desenvolvam nocontextodocapitalismoindustrial,mesmosobaégidedocapitalismocomercial

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háformasembrionáriasquenospermitemdiscutireexaminaragênesedeumaclassemédiaentrenósnesseperíododeformação.

NoBrasildoséculoXIX,quesemodernizasobimpulsoexterno,sãoduasasformas pelas quais se realiza essa fonte de classificação social, relativamenteindependente da propriedade econômica: de um lado, como conhecimentotécnico e útil dos novos ofícios mecânicos, e, de outro, como conhecimentohumanísticooupragmático.

Osofíciosmecânicos são realizadosporaprendizesdeoficinas inglesasnacondiçãoinformaldeaprendizadopráticoeimitativo.Noâmbitodocapitalismocomercial,essetipodeatividadetempoucarelevância,masindicajáumanovamodalidadedequalificaçãodo trabalho,que requer instrução, euma formadeincorporaçãodoconhecimentoparaalémdomerodispêndiodeenergiafísica.

Este é um fio genético importante. O que o capitalismo explora notrabalhadoré,antesdetudo,oconhecimentoincorporadoporele,enãoapenassuaenergiamuscular.Édessecontextoque,mais tardeentrenós,vaisairumadas novas classes sociais resultantes do capitalismo já industrial: a classetrabalhadora.

Aosabandonadoseesquecidos restamas tarefasdesqualificadas, típicasdaralé.Estas,emgrandemedida,comonocasodotrabalhodoméstico,serãoumacontinuidadedoescravismo,agorasobnovasmáscaras.Aexploraçãodiretadaenergiamuscular–quemalnosdistinguedeumcavalooudeumamula–,compoucoconhecimento incorporado, é a característicadistintiva, aindaquenãoaúnica,emrelaçãoaostrabalhadorescommaiorgraudequalificaçãotécnica.

Obviamente, há fluidez entre as classes sociais e, na realidade concreta, adeterminaçãodafronteiraexataentreestratossociaisésemprecomplexaeexigepesquisas empíricas muito bem conduzidas. Como grande parte dessa classemarginalizada será negra ou mestiça, a continuidade do preconceito contra oescravovai se dar sobretudonesse segmentodas classes populares.Não só ascamadas“superiores”,masaprópriaclasse trabalhadora,bemcomoa“massa”dabaixaclassemédia,vaiprocurardetodososmodosseafastaresedistinguirdaralédenovosescravos.

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Jáoconhecimentohumanísticoepragmáticomaisprestigiosoevalorizadovaiconstituiraprincipalbasegenéticadaclassemédiarealeestabelecida.Maisuma vez, obviamente a classemédiamoderna vai se desenvolver em todas assuasvirtualidadesapenascomocapitalismoindustrial.Nesteéquesegeneralizaanecessidadedenovasfunçõesdecontroleesupervisãodaproduçãoeconômicaem grande escala. Neste também vai surgir a necessidade do trabalho delegitimaçãoe justificaçãodanovaordem, tarefaqueseráassumidapelaclassemédialetrada.

NoBrasildoséculoXIX,porém,sãoasformasprototípicasdessefenômenoquenosinteressam.OEstado,maisqueaeconomia,seráo locusdessasnovasnecessidadesefunções.OnovoEstadoédeinícioumaexcrescência,impostadeforaparadentro.Poucoapoucodesenvolve-seaíumalógicadupla.

Primeiro,oEstado refleteopoderdomonarcaemsua lutaporabstraçãoegeneralizaçãodo impérioda lei, aindaquedemodo fragmentadoepontualnamaioriadoscasos.Nessesentido,aformaçãoestataladquireosentidoclássicodecombaterospotentadoslocais,impondo-secomoinstânciaabsolutadepoderem todas as dimensões. Sem êxito neste combate, o Estado centralizado nãosobrevive,umavezqueprecisadeteromonopóliodaviolêncialegítima.

De outro lado, ele instaura uma nova forma de luta, mais “pacificada” eregulada entre os poderosos, tendo em vista a expressão não violenta deinteresses conflitantes e regionalizados. Instaura-se, assim, a disputa reguladaentreospoderososcomvistaaocontroledoEstado“pordentro”.Ospartidoseas instituições políticas então criados têm esse sentido de instaurar canais deexpressão de interesses sob a sombra do Poder Moderador, exercido peloimperador.

Como as novas funções no Estado requerem conhecimento, sobretudo denatureza jurídica, para as funções de Fisco, organização de contratos eadministraçãodajustiça,sãoosfilhosdosproprietários,enãomaisseuspais–homensdoconhecimentoempíricoedaexperiência–,quedominamosnovoscargosdecomando.

São os filhos que vão estudar na Europa ou nas recém-criadas faculdades

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jurídicas em Recife e São Paulo, e irão compor aquilo que Joaquim Nabucochama de “neocracia”, expressão cunhada para expressar o poder dos jovensque,peloestudo,passamaocuparo lugardepodere comandoantesocupadoporseuspais.

Poucoapouco,aconsolidaçãodoEstado,oimpactoaindaquelimitadodocapitalismocomercialeosefeitosdaurbanizaçãoedoadensamentodasrelaçõessociaisnasgrandescidadesvãocriandoummundonovoemrelaçãoàviolêncianuaecruadolatifúndionointerior.ApartirdasegundametadedoséculoXIXsurge um público letrado, e os primeiros jornais e semanários satíricos,aproveitando-se da figura tolerante do imperador, passam a promover umincipientedebatepúblico.De início restritoàelite, essedebatepassaaatingir,crescentemente,tambémopúblico,aindalimitado,daclassemédialetrada.

Asduasgrandesbatalhaspolíticasdesseperíodo,aAboliçãodaescravaturaeoadventodaRepública,jásãolevadasacaboemgrandemedidacomoumalutapela hegemonia da opinião pública nos maiores centros urbanos. PolemistasbrilhantescomoJoaquimNabucoeJosédoPatrocíniogalvanizamascorrentesde opinião da época e ajudam a construir consensos sociais que permiteminterpretarasquestõescandentesdotempodeacordocomumanovahegemoniadeideias.

Esseéumfiocondutorfundamental,odabatalhadasideiasquelutampelahegemonia na sociedade, que vamos retomar adiante. Antes, temos quecompreender a inflexão que a Abolição significou do ponto de vista social eeconômico.

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A

Oadventodocapitalismoindustrial

Abolição representa uma transição fundamental. Abre-se com aemancipaçãodosescravos–aindaquemuitotardiamente,oquecomprova

o caráter arcaico e atrasado da elite dominante – o caminho para odesenvolvimentocapitalistaenquantotal.Otrabalholivrepermiteaformaçãodeum mercado interno capitalista que antes só existia de modo incipiente nascidadeslitorâneas.OsurtodaculturadocafénoestadodeSãoPaulo,combasenotrabalholivredoimigrante,équevaiserogermedessanovasociedade.

Por outro lado, omodo como ocorreu a transição entre os doismodos deproduçãoeconômicatambémdemonstraaonipresençadasideias,avançadasouatrasadas,paraesclareceraformasingularqueassumemosprocessoshistóricos.Oracismocientífico,predominantenaépocaenaelite,viuumaoportunidadedeembranquecimento da população por meio da importação de europeusempobrecidos pelo avanço do capitalismo nas áreas rurais do Sul da Europa,sobretudodaItália.

Por conta disso, o escravo negro – que havia séculos era explorado,enganado e humilhado – viu-se outra vez condenado à exclusão e àmarginalidade.Nenhumaajudalhefoioferecidaparaqueaproveitasseasnovasoportunidadesdescortinadaspelotrabalholivre.19

O negro e seus descendentes vão se somar, então, aos esquecidos ehumilhadosdetodasascoreseformarumaclasseespecíficaquesedesenvolve

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nocapitalismodaperiferia:oquechamode“ralébrasileira”.20Desdeo início,ela se forma para não ser incluída na sociedade competitiva capitalista, comooutrasclassesmaistardeoseriam.Emvezdisso,seformaparaserexploradaehumilhadadaformamaisvilecovardedemodopermanente.

Quem não entende isso e imagina que a sociedade é comandada porimperativos pragmáticos e econômicos, como pensam muitos liberais e atémarxistasacríticos,nãoentendeoprincipalsobreavidasocial.Osmecanismossimbólicos de distinção social são tão importantes quanto os estímuloseconômicos. Por isso, qualquer ajuda a essa classe vai ser bloqueada pelasclassesprivilegiadas,comomostramosrecorrentesgolpesdeEstado.

Obviamente, não existe uma exclusão total. Claro que as formas deexploração econômica dessa classe de despossuídos permanecem no novocontextoeatéseacentuam.Porém,seanteslheseradificultadooacessoàterra,agorasedificultaoseuacessoaoconhecimento,orecursomaisimportantedasclassesnãoproprietárias.

Ébemisso,enãomaisapenasacordapele–aindaqueestacontinueaseralvodeaçãoinsidiosa,sobaformadedesprezoeanimalização–,oqueexcluiessaclassedomercadodetrabalhocompetitivoeacolocaàmercêdeformasdeexploração pessoal que asseguram a continuidade da escravidão sob outrasvestes.

Esse ponto é fundamental, e só quando bem compreendido podemosentender a razão específica pela qual a escravidão continua entre nós,mesmoapós ter sido abolida formalmente. Ainda que as pessoas não sejam maisseparadaspelacordapeledesdeoberçoparaseremsenhoresouescravos,elassãoseparadasporprocessosinvisíveisqueproduzemefeitossemelhantes.

Dadoqueoacessoaconhecimentosúteis,aquiloqueocapitalismoexplorano trabalhador, tem como pressupostos a capacidade de se concentrar, oautocontrole,adisciplina,acapacidadedepensamentoabstratoedepensamentoprospectivo–desigualmentedistribuídosentreasclasses sociaisemfunçãodesuas formas específicas de socialização –, são as classes do trabalhosemiqualificadoedesqualificadoquevãoreceberaherançadaescravidão.

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Na parte inicial deste livro, vimos que quem não reúne tais condições éconsideradoindignocomoserhumanoepassaaterumstatusprático,nodiaadia,de“sub-humano”.Poressemotivo,essesexcluídosemarginalizadospodemserassassinados,porexemplo,semqueissocausecomoçãopública.Aindaquearalé seja a mais atingida por este mecanismo de desumanização, o mesmoocorre, em gradações diferentes, com todas as classes populares que realizamtrabalhosemiqualificado,ouseja,comamaioriadapopulação.

Ocortedalutadeclassesvaisepararesseuniversoecontrapô-loaouniversodasclassesmédiasedaelitedeproprietários.Aherançadaescravidãonão irácontaminarapenasaralé,negraemestiça,mastodasasclassespopulares.Eistoédecisivoparaseentenderaposiçãoeatitudedasfraçõesdaclassemédiaemrelaçãoàsclassespopulares.

Assim,agênesedocapitalismoentrenósdesdeoiníciocarregaseusegredoe sua mácula. Em São Paulo, na cidade e no estado onde tudo começaefetivamente, o mercado competitivo de trabalho será reservado ao imigrantebranco, sobretudo ao italiano.Osquase2milhõesde italianosquemigramaoBrasilacabamseconcentrandonoestadodeSãoPauloeemsuacapital.21

Entre1890e1900,oBrasil superaosEstadosUnidoseaArgentinacomodestino prioritário desses migrantes que fogem das consequências dodesenvolvimento tardio do capitalismo em seu país. Imigrantes de outrasnacionalidades seguem os italianos, e o Brasil como um todo recebe quase 6milhõesdeeuropeuseasiáticos.22

O desenrolar desse processo em São Paulo já manifesta todas as suascaracterísticas e prenuncia o que vai se repetir em âmbito nacional. Nãodesaparecem as classes formadas por ex-escravos: a “elite do atraso”, antesescravocrata, preserva intocado o seu poder econômico e político no novoarranjo da chamada RepúblicaVelha. Agora, sob a forma agrário-exportadoracom extensões comerciais e financeiras – e com a mesma ideologia liberalrestritivaeantipopular.

ARepúblicaVelhadáseguimento,praticamentesemqualquermudança,aoperíodo anterior. O domínio social da elite agrária continua irrestrito, com o

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sistema eleitoral sabotando qualquer veleidade de soberania popular. Além daquantidadeínfimadeeleitores,nuncamaisdoque5%dapopulação,asfraudesnaseleições“abicodepena”sãoaregra.Osorçamentosestaduaisefederalsãotratados como coisa particular dessa elite e de seus compromissos comoutraselites regionais. A violência monopolizada pelo Estado é usada contra seusinimigosdeclasse.

Os ex-escravos também continuam marginalizados, de forma aberta ouvelada, como prestadores de serviços pessoais. As classes modernas docapitalismo, tanto a burguesia industrial nascente quanto a moderna classetrabalhadora, são formadas pelos recém-chegados imigrantes. A outra classemodernadocapitalismo,aclassemédia,apresentaumacomposiçãodeorigemvariada, com prevalência do componente nativo, sobretudo os filhos da altaclassemédiadeprofissionaisliberais.

O influxodocapitalismocomercialagro-exportador,alicerçadono trabalholivre,passaaterumaconotaçãoindustrializantemuitoacentuadaemSãoPaulo,significativanoRiodeJaneiroedealgumaexpressãonoCentro-Sul.AsregiõesNordesteeNortepermanecemàmargemdesseprocessonoinício.

Este é o contexto de surgimento da classemédiamoderna, que obedece àlógica capitalista. Na fase inicial do capitalismo, temos dois tipos de classemédianodesenvolvimentoeuropeuenorte-americano:apequenaburguesiadepequenosemédiosproprietárioseaclassemédiadeprodutoresautônomosdeserviços,comonocasoparadigmáticodasprofissõesliberais.Juntas,constituema “antiga classe média”, para usar a terminologia consagrada do sociólogoamericano C. Wright Mills, em seu livro clássico sobre a classe médiaamericana.23

NoBrasil, a pequena burguesia jamais teve relevo tão grande – salvo emepisódiospolíticosisolados24–enquanto,porexemplo,naFrançaenosEstadosUnidos.Nocasofrancês,apequenaburguesiafoi,muitasvezes,ofieldabalançanas sangrentas lutas de classe entre os proprietários e trabalhadores quemarcaramoséculoXIX.NosEstadosUnidos,apequenaburguesiaatéchegoua

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ser,durantemuitotempo,aomenosatéaGuerradeSecessão,aclassedominantenasesferaseconômica,socialepolítica.

O núcleo do mito consubstanciado no self-made man é, por excelência,pequeno burguês, o que mostra quanto esta classe comandava o imagináriosocialnosEstadosUnidos.Eéummitoqueperdura,mantendo-seemparteatéhoje, atuante e fundamental, mesmo depois de o capitalismo monopolista dograndecapitaldominarasociedadeamericana.

Aexpressãoeconômicaepolíticarelativamentemenordapequenaburguesiaclássicanodesenvolvimentobrasileirodeve-se,antesdetudo,aofatodequeaprodução capitalista entre nós surge já sob o domínio do grande capitalcomercial e financeiro.25 Mas essa não é a única razão. Mais uma vez adegradação do trabalho manual, resultante do passado escravista, parece terexercido,tambémaqui,efeitofundamental.

Essefatotendeafacilitaraaproximação,aindaqueemposiçãosubordinada,dapequenaburguesiaclássicaemrelaçãoàelitedeproprietários,enão,comosedeu na França em várias ocasiões, levando-a a uma função diretiva damassaproletária. Também a origem estrangeira de parte expressiva da pequenaburguesia tradicional – em boa parte composta por portugueses nas cidadeslitorâneas,26sobretudonoRiodeJaneiro,osquaisdificultavamaascensãodosnacionais–ajudouamanteroisolamentoeaimpotênciapolíticadessaclasse.

Esseaspectoémuitoimportanteparaacompreensãodasrelaçõeshistóricasentre as diversas classes sociais no Brasil. Tanto a degradação do trabalhomanual–umaherançaperversadoescravismo–comoacomposiçãoestrangeiradapequenaburguesia tradicional–que impediaaascensãosocialdoelementonativodasclassespopulares–atuaramnosentidodeproduzirumaaliançadasclasses superioresemédias,bemcomoamanutençãodadistância socialdelasem relação aos elementos populares. Além de produzirem uma espécie deanteparo a qualquer veleidade de participação popular, os estratos médiosestrangeiros eram brancos, o que certamente desempenhou papel decisivo napreferênciadaelitenativa.

De qualquer modo, é verdade que a passagem do artesanato para a

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manufatura,edaíparaagrandeproduçãoindustrial,nãosereproduznoBrasiltal como no capitalismo clássico de outros países. Aqui o capitalismo sedesenvolve entre 1890 e 1930, já à sombra do grande capital comercial efinanceiro, constituído na esteira da valorização do café no mercadointernacional.

As grandes massas de trabalhadores imigrantes assalariados formam umcontingenteexpressivo,estimulandoumademandainternaporbensdeprimeiranecessidade que passam a ser ofertados pelas primeiras indústrias têxteis e dealimentos.27Naoutraponta,oslucroscrescentescriamumademandaporartigosdeluxoparaaeliteeaaltaclassemédia.

Antes de se tornarem grandes industriais, quase todos os grandesempresáriosimigrantes–osMatarazzo,Gamba,Crespi,Lundgren,Klabin,Jafet,Weizsflog – foram, de início, importadores de produtos destinados aoabastecimentodocrescentemercadointerno.28Afinal,sãoosimportadoresquesabemmelhor do que ninguém fazer o cálculo de custos que permite decidirsobreomaislucrativo:afabricaçãolocalouaimportação.

Identificadaaviabilidadefinanceiradeseproduzirinternamenteumproduto,asmesmasredesdenegóciosbancáriosvinculadasàcomercializaçãodocaféeatividadesafinspodemserutilizadasparaasinversõesnaindústrialocal.Alémdisso,váriosbancosinternacionaisintermediavamtaisnegócios,favorecendoosgruposétnicosquerepresentavam.

Estenãoémaisocapitalismo limitadodeentrepostocomercialeportuárioquehavianascidadeslitorâneasbrasileirasdoséculoXIX.Oinfluxoeconômicocom base em São Paulo, ainda que comandado pelo capitalismo agrário-comercial exportador, e dependente da vitalidade deste, possui uma base detrabalhoassalariadomaisamplaedinâmica,oquevaipermitiraconsolidaçãodeumcapitalismo industrial edeumaconsequentedinâmicaprópriadas relaçõeseconômicasesociais.

Em condições favoráveis, teria sido possível uma direção própria dasociedadeapartir dasnecessidadesdo capital industrial instalado.Noentanto,desde essa época, o industrialismo brasileiro procura se acomodar com a elite

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agráriaecomercial/financeiradominante.Emparte,talestratégiaserevestiadeinteresseprático.Afaltadeummercadodecapitais,porexemplo,faziacomqueosindustriaisdependessemdeinversõesconstantesdosprodutoresdecaféedosimportadores.Estesúltimosaindacontrolavamadistribuiçãodemercadorias.

OEstado não intervia demodo algumpara diminuir essas dificuldades.Oaumentoexponencialdariquezadosnovosindustriaisimigrantes,queassustavaa elite agrária-comercial, bem como o papel secundário dos industriais nosistemapolíticopoderiam terdesencadeado,entreas frações internasdaclassedominante,umalutapelocomandodoprocessoeconômicoepolítico.29

No entanto, os industriais preferiram sempre a acomodação e ocompromisso,nãoraropormeiodecasamentosvantajososcomosfilhosdaeliteagrária,emvezdoenfrentamentoabertoemnomedadefesadosseusinteressesde classe. No partido dominante, o Republicano, tinham papel secundário ecomportavam-semais comoclientes embuscade favoresdoque como sóciosquereivindicamdireitosemigualdadedecondições.30

Talvezaorigemestrangeiradessaclasseatenhapredispostoasubordinarumprojeto de classe de longo prazo, eventualmente transfigurado em projetonacional autônomo, a um projeto familiar de alcance menor. Alguns dessespioneiros capitães de indústria tinham mais relações e demonstravam maislealdade e apego aos seus países de origem do que ao país que os haviaenriquecido,comosecomprovanocasodosCrespiedosMatarazzo.

Alémdisso,haviainteressesmaisracionais.Paramuitosdessesindustriais,oseu destino econômico estava vinculado à pujança do setor comercial-agráriovoltadoparaaexportação.Ofatoéque,desdeentão,oindustrialismobrasileirotevedesecontentarcomuma“industrializaçãosemindustriais”.Boapartedoslimitesefracassosdonossodesenvolvimentoindustrialadvémdisso.Oinegáveléque,apartirdeentão,o industrialismobrasileirovaisemanifestarmaispelamão do Estado e, depois, das multinacionais, ou seja, mais de empresasestrangeiras com interesses próprios do que como projeto articulado de umaclassenativadeindustriais.

Esseponto é crucial.Em todososgrandes embatespolíticosnos100anos

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seguintes, nota-se o peso dessa origem politicamente subordinada da fraçãoindustrialdocapital.EmtodososgolpesdeEstado,comoosde1954(frustradoemsuasúltimasconsequênciaspelosuicídiodeVargas),de1964ede2016,foiumapolíticadeesquerda,realizadaemnomedocapitalindustrial,queredundouao fim em união de toda a classe proprietária, inclusive da fração industrial,pondofimaprojetosnacionaismaisinclusivos.

NumpaístãopopulosoquantooBrasil,apenasodesenvolvimentoindustrialpoderia proporcionar empregos mais qualificados e bem-remunerados e aformaçãodeummercadointernoforteedinâmico.Oprojetoliberaldasfraçõesagráriaefinanceiraconseguesubsistirpremiandoapenas20%dapopulaçãocomasbenessesdomundomoderno.Masoscustossociaisdissosãoelevadíssimos.

Uma industrializaçãomais autônomaenacional permitiria uma articulaçãocomasmassastrabalhadoras,asquaistambémsebeneficiariamcomoprocesso.Umfortemercadointernocomsaláriosdecentesquegarantaopoderdecomprados trabalhadores interessa, pelo menos objetivamente, a essas duas grandesclassesdocapitalismoclássico.Entrenós,porém,afragilidadeeavisãomíopeda classe industrial levaram essa fração a sempre tomar o partido da classeproprietária enquanto tal, mesmo objetivamente contra seus interesses,sufocandoassimqualquerveleidadedeascensãodasclassespopulares.

Foi o que ocorreu nos governos de Vargas, Jango e Dilma. Políticasindustrializantes, voltadas para o fortalecimento do mercado interno, foramboicotadaspelosprópriosempresáriosdosetor.Aesquerda,porsuavez,comasuaeternacrençanaexistênciadeuma“boaburguesia”–exatamenteessafraçãoindustrial –, deu com os burros na água em todas as ocasiões. Isso explica ainexistência no Brasil de um processo virtuoso de industrialização, como noJapão,naCoreiadoSulou,agora,naChina.

Comprova-seassim,maisumavez,ofatordeterminantedagênesesocialdeuma classe ou fração de classe em sua trajetória futura. Não se trata aqui,obviamente, de uma causalidade culturalista e vira-lata, remetendo a legadosculturais obscuros e imutáveis, que criticamos de modo recorrente.31 Pelocontrário,oquesedevesalientaréquecadaclassesocial realizaaprendizados

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históricosconcretos,oudeixaderealizá-los,noentrelaçamentoeconfrontocomasdemais.

Oresultadodesseprocessohistóricopráticodeaprendizadosfundamentais,oudainexistênciadestes,vaidotarcertasclassesdahabilidadedecomandodoprocessosocial.Ou,então,torná-lasdependentes,subordinadasehesitantes.Nocaso brasileiro, a ausência de aprendizado histórico de comando por parte dafraçãoindustrialvaitorná-lahesitanteesubordinadaemmomentosdecisivosdanossahistóriarecente.

DesdeoiníciodoséculoXX,quandocomeçaaseformarestaconstelaçãodeclasses,aaltaclassemédiasealiaàsfraçõesanti-industriais,representadaspelaeliteagráriaepelocapitalcomercial-financeiroexportadoreimportador.Nessecontexto, não caberia à indústria remodelar a sociedade de acordo com suasnecessidades, como em outros países industrializados. Ela deve permanecertópica e localizada, subordinada à lógica de reprodução das outras frações docapital.

Desdeessaépoca,aaltaclassemédiaconferegrandevaloràpossibilidadedeconsumirabaixocustomercadorias importadas,desdemanteigadinamarquesaatécarros importados.Assimcomoaeliteagrária,elaganhacomumataxadecâmbio que lhe possibilita manter um estilo de vida europeu nos trópicos, agrande marca de sua distinção social. Da República Velha ao governo deFernandoHenriqueCardoso,aspolíticasdecâmbioanti-industriaisserãomuitobemrecebidaspelaaltaclassemédia,enistotambémestábaseadooseuapoioàvelhaeliteagráriaeaoatualrentismo.

AreaçãoaoarranjodominantenaRepúblicaVelhaveiodeforadonúcleonopoder. De modo geral, todas as classes sociais não proprietárias se sentiamrelegadas a segundo plano num processo político tão restrito como o daRepúblicaVelha.Ojogodecartasmarcadaseobviamentefraudulentofezcomque até membros da alta classe média, que tendia a adotar o liberalismosuperficial das elites, sendo normalmente tão conservadora quanto estas, seenvolvessememlutasdefacçõesnointeriordaelitedominante.

O aparecimento do Partido Democrático em São Paulo, dissidência do

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Partido Republicano, o representante dessa fração de classe, é um exemplo.Alémdisso,fatoreseconômicoscircunstanciais,comoaaltadeprodutosdeluxoimportados,levaramtambémessaclasseacriticaro“câmbiovil”.

Todavia,eranamassadabaixaclassemédiaedaincipienteclasseoperáriaque a inflação, decorrente das constantes emissões de moeda para pagar osempréstimosestrangeiros–umavezqueogovernonãotinhaforçaparatributaroslatifundiários–,queasituaçãoeconômicasetornoupremente.Paraamassada classe média – empregada no setor terciário de comércio e serviços, emdecorrênciadiretadodesenvolvimento industrial,equesomacercade20%dapopulaçãoempregadaem1920–,32aexploraçãoeconômicasesomaàexclusãopolítica.

Aaltaclassemédiae,emmenorgrau,amassadabaixaemédiaclassemédiatêminteressenamanutençãodahierarquiadocapitalismoqueasprivilegiacomoclasses do trabalho nãomanual e relativamentemais prestigioso e valorizado.São as classes da educação e do conhecimento.Dentro desses limites, porém,todas as posições são possíveis, tanto as que as aproximam das classes dosproprietários, como aliados subordinados e inferiores, quanto as que asaproximamdasclassespopulares.

São situações ao mesmo tempo econômicas, simbólicas e ideológicas quevãodecidirapossibilidadedealiançasdeclasseacimaouabaixo.Issotambémvai depender, como veremos, da capacidade de convencimento e direção dasclassesdirigentesedasclassespopularesdeacordocomascircunstâncias.

A capacidade de organizaçãodas classes populares e trabalhadoras semprefora reprimida com violência e falta de escrúpulos pela elite dirigente.Acostumada ao cotidiano de truculência e humilhação que caracterizava aescravidão, a elite nativa reagiu às primeirasmanifestações de organização doprotestopopularcomasmesmasarmas.

Aprimeira grandegrevegeral de trabalhadores deSãoPaulo, lideradaportrabalhadores e trabalhadoras com passado anarco-sindicalista nos países deorigem,agrandegrevede1917, terminouembanhodesangueenatraiçãodetodososacordosassinadosporpartedospatrões.

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ComocontaJoséLuizDelRoioemseubelolivrosobreagrevede1917,33

os trabalhadores conseguiram vencer a resistência patronal após meses deparalisação, apesar de a força pública ter assassinado com sabres centenas dehomens,mulheresecrianças.Noentanto, logodepoisdaassinaturadoacordo,publicadoemváriosjornaisparagarantirseucumprimento,encerrandoagreveafinal vitoriosa para os trabalhadores, os patrões promoveram uma ferozrepressãoeperseguiçãodoslíderesdomovimento.

Algunssãoassassinadosoudeportados,enquantoamaioriaémandadapresaao Amapá, onde grassava uma epidemia de malária, para morrerem semcuidados.Essa era a forma como a elite lidava – e ainda lida, como se vê nacovarde repressão aoMSThoje em dia – comosmovimentos populares e detrabalhadores.

Dada a truculência com que a organização das classes populares foireprimidaentrenós,bemcomoaimpotênciarelativadomovimentooperárioqueseseguiu,aarregimentaçãodossetoresmédiosnãopodiamaispartirdebaixo.Por sua vez, a subordinação da fração industrial ao arranjo elitista agrário-comercialimpediaumaarregimentaçãodessesmesmossetoresporcima.Apesarde possuir osmeios para isso, se assim o quisesse, a fração industrial jamaisdesafiouoarranjoagrário-comercial-financeiroelitistaeantipopular.

Nesse contexto, é compreensível o apelo da pregação tenentista, sobretudoparaamassadabaixaemédiaclassemédia.Ostenentescaptamàmodamilitar,ou seja, a partir de cima e impondo autoritariamente uma ideia de Estadocentralizadoreforte,queregulaearbitradesdeoaltoarelaçãoentreasclassessociais.

O apoio das camadasmédias se baseia, antes de tudo, namassa da classemédia, que abraça o projeto da revolução tenentista e lhe confere apoio“popular”. E incluía até mesmo setores da alta classemédia, como se viu narecepçãoaVargasemSãoPaulo,organizadapeloPartidoDemocrático.

Até pela origem social de muitos tenentes, o tenentismo canalizou ainsatisfaçãocomapolítica“abicodepena”ecomumaconcepçãodeeconomiavoltadaparaosinteressesdeumapequenaeliteprivilegiada.Aideiaderefundar

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oBrasil,combateracorrupçãoeusaroEstadocomoinstrumentodemudançasconsideradas necessárias, na economia, na sociedade e na política, possui notenentismosuaprimeiragrandeexpressãoarticulada.

A chamada Revolução de 30 é, portanto, o resultado de uma bem urdidaarticulaçãoentre,deumlado,aselitessubalternasaoarranjoagrário-comercialpaulista e, de outro, os tenentes, como expressãomilitar do descontentamentodifusoquegrassavanamassadaclassemédiaqueseformavasoboinfluxodocapitalismoindustrial.

Nessereconhecimentodeanseiospopulares,eradecisivaatuteladasmassastrabalhadoras.Oobjetivoeraangariaroseuapoio–oquedefatoocorreu–como cuidado de acolher ambiguamente o sentimento antiproletário da massa daclasse média. Afinal, a tutela significava que as classes populares sebeneficiavam,masnãolideravamoprocessopolítico.

É interessante notar que a conjuntura de 1930 semanteve, em seus traçosmais gerais, pelos quase 100 anos seguintes, o que ajuda a esclarecer osmomentoshistóricosquechegaramaopontodeebuliçãoem1954, em1964eem2016.Porelaseexplica,porexemplo,boapartedoarcaísmoedosentimentoderepetiçãocompulsivaquehojenosafligenasituaçãosocialepolíticaatual.

Antesdetudo,ofatoinegáveléqueasrelaçõesentreasclassespreservaramuma posição muito semelhante em todo este tempo, sendo a ascensão doproletariadourbanocomoPartidodosTrabalhadores,oPT,nadécadade1980,o único ponto de inflexão e a única novidade real nesse período da nossahistória.

Todavia, o PT não consegue reconstruir o imaginário social a ponto deassegurarumarupturaefetiva,aindaquemodestaereformista,dadominaçãodeclassesedoacordovigente.Aocontrário,opartidopermanececolonizado,emboa medida, pelo discurso que fragiliza sua atuação, sobretudo o dopatrimonialismoedopopulismo.

Em segundo lugar, os imaginários sociais dominantes que disputam ahegemonia e a capacidade de orientar o comportamento prático das classessociaisforamconstruídosnessadécadade1930–aindaquesuamaturaçãotenha

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sedadoemumcontextodelongaduração–eatéhojeconstituemasideias-forçaquemovemasociedadebrasileira.

Igualmente interessantenotaréqueaRevoluçãode30poderia tersidoummeroepisódiopassageiro,nãotivessenosdeixadoumlegado,quedesdeentãoseconfundecomafiguracarismáticadeGetúlioVargas.Porexemplo,avocaçãoindustrializante impulsionada pelo Estado foi se cristalizando aos poucos e sóamadurece de fato durante a Segunda Guerra. Foi por ocasião deste conflitomundialqueumaparceladabasemilitardoregimeseconvencedaimportânciado desenvolvimento tecnológico e industrial para a segurança nacional numambientedeacirradacompetiçãointernacional.

Osgrandesinvestimentosnaindústriadebase–nosetorsiderúrgico,comainstalação da Companhia Siderúrgica Nacional, a CSN; na infraestruturaenergética,comaconstruçãodehidrelétricas;enaextraçãodopetróleo,comacriação do monopólio estatal da Petrobras – são consolidados nesse período.Comisso,foramsuperadosalgunsdosgargalosqueimpediamaentradadopaísnocapitalismomonopolista.

Na dimensão ideológica temos, também, a partir da década de 1930, aformaçãodosideárioseconcepçõesdemundodegrandeinfluêncianasclassesenosindivíduosqueatéhojedemarcamonossohorizontemental.Cabelembrarque o Brasil enquanto tal – como uma ideia totalizante e com um projetocoletivoarticuladoeinclusivo–simplesmentenãoexistiaantesde1930.Opaísera um agregado de potentados regionais frouxamente interligados, cada qualcomseumercadoregionalecadaqualcomsuatradiçãoideológicaepolítica.

Éimenso,portanto,odesafioquesecolocaaoEstado interventorde1930.Noplanomaterial,urgiaconstruireunificaromercadointerno,oque,porsuavez,requeriaumnovopatamardeinfraestruturaenergéticaeindustrial,alémdeumarededeinterligaçãoparaatrocademercadoriasentrediversasregiões.Essaredecomeçadefatoaserimplantadanessaépoca,tendocomocentrooeixoSãoPauloeRio.34

Nadimensãoideológica,prosperamdoisprojetosconcorrentes,osquaisatéhojecontinuamsendofundamentaisparaasconcepçõesquetemosdopaís.Um

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deles estavamais identificado com o Estado interventor e, comparativamente,era mais inclusivo; já o outro representava a legitimação possível do projetoliberalagrário-comercialelitista,conjunturalmentederrotadoem1930.

Afragilidaderelativadasclassespopulares,massacradasereprimidascomosempre, impedia que pudessem elaborar intelectualmente uma interpretaçãoalternativaeviáveldasociedade.Paraquemachaqueasideiaspoucoimportame ficam nos livros, basta pensar em como seria o mundo sem Cristo, semMaomé,semLuteroou,nocontextosecular,semMarx,semFreudesemWeber.

Maisumavez,naciênciaenapolítica,arepetiçãoétãoimportantequantonamúsica:todoonossocomportamentoestábaseadoemideias,quersaibamosdissoounão.E, senãosabemos,nãohácomonosdefenderdessas ideiasqueinfluememnossosatos,porvezesatéemsentidoopostoaosnossosinteresses.

Entãoquaissãoessasideiasecomoelasdeterminamonossoimaginárioeonosso comportamento? Sem uma contrapartida das classes populares quefuncionasse como anteparo à visão dominante, o que temos até hoje são duasvisões elitistas, ainda que distintas nos seus efeitos, acerca da sociedadebrasileira.Eambasforamconcebidasnadécadade1930.

Essamesma década émarcada por intensa agitação na esfera intelectual ecultural,comesforçosparadarcontadessenovodesafio:pensareinterpretaronovoBrasilqueentãosedelineava.

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S

Aconstruçãodosprojetosnacionais:ummaisinclusivoeooutroexcludente

eopaís, no sentido “material”,35 estava sendo gestado naquela época, ouseja, com a criação de um Estado centralizado e de um mercado

minimamente interconectado,nadamaisnaturalqueanecessidadedepensá-lotambémnosentidosimbólicoe“ideal”seimpusesseatodososespíritos.Afinal,quepaíseraessequeestavasendoconstruído?

Essa era a questão candente na época (questão, aliás, que hoje se repõediantedoesgotamentodasexplicaçõesdeentão)emobilizoutodaumageraçãode intelectuais.Mesmo para quem sabe que são os interesses, tantomateriaisquantoideais,quemovemomundo,elesofazemsemprepormeiodeideias,queorientam os interesses de outra maneira cegos. Por isso as ideias são tãodecisivaseimportantesquantoosprópriosinteresses.

O nó górdio crucial, o divisor de águas para a sociedade brasileira desdeentão, vai ser a questão da inclusão ou da exclusão das classes populares noprocesso de desenvolvimento capitalista. Tudo o que importa gira em tornodessaescolhafundamental,quevaidividirasociedadeeosespíritos.

Ostemascentrais–odesenvolvimentodeveserimpulsionadopelaindústriaou pela agricultura (a “vocação agrária”), o grau de maior ou menor

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inclusividadedosistemapolítico–derivamdessaquestãobásica.Dessemodo,osprojetosnacionaisque sepropõemamoldaro “imaginário social”donovopaís que se constituía também se distinguem pela importância conferida aoproblemadainclusãopopular.

A primeira dessas interpretações foi proposta por Gilberto Freyre na obraCasa-grande e senzala, publicada em 1933.36 Freyre – como, aliás, nenhumoutrointelectualbrasileiroantesdemeuprópriotrabalhocrítico–nãoenxergaoprincipal: a importância de fazer a crítica aos pressupostos racistas de toda areflexãodominantenaciência socialocidental–pressupostosquecondenamaAméricaLatinaeoutrasregiõesà“animalidade”dasemoçõesedacorrupção,aomesmotempoqueatribuemaosamericanoseeuropeus,supostamenteracionaisehonestos,asvirtudesdo“espírito”.

A noção de “corpo animalizado” contraposta a “espírito virtuoso” não éapenasofundamentodadesigualdadeentreasclassessociaisproduzidademodoirrefletido,automáticoe,portanto,invisíveleimperceptível.Elatambémestánabasedahierarquiaracista,agoraentreasculturas,umavezqueoracismoda“cordapele”é,comovimos,apenasaformamaisvisíveldesepararomundoentre“animalizados”e“espiritualizados”.

Míopes são aqueles que consideram apenas o racismo mais visível, emfunçãodacordapele,poisnãoconseguemperceberosoutrosracismos,quesemanifestam de modo mais sutil e mais subliminar. Afinal, o procedimentoracista,queconsisteemsepararontologicamenteo“humano”do“sub-humano”,ouseja,o“espírito”do“corpo”,semanifestadomesmomodoemtodosessescasos.

Apesardenãoterlevadoemcontaoprincipal,Freyrelutoubravamentenoterreno do inimigo, perpassado de racismo subliminar, para não falar doamericano–ou,maisprecisamente,omitoamericano,omaterialdecomparaçãode99%dosintelectuaisbrasileiros–emtermosdeumaoposiçãosimplesentreespíritoeanimalidade.

Ele consegue isso ao fazer o elogio da mestiçagem brasileira. Não vourepetir o que já escrevi, longamente, em outros livros.37 Aqui me interessa

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apenas examinar de que modo o elogio da mestiçagem funcionou comomecanismo arregimentador do varguismo, em contraposição à interpretaçãoliberalelitista.

Ainda que também seja de cunho elitista, relegando a segundo plano osconflitosdeclasseederaça,ainterpretaçãofreyrianarepresentounaépocaumgrandeavanço.Numcontextoderacismoexplícito,marcadopelaconcepçãodebranqueamento da população, o fato de reconhecer que o povo brasileiro émestiço,edever issocomovalorpositivo, foi revolucionário.Afinal, tantonaépocacomohoje,opovoéograndenãodito,ograndeausente.

Para a elite, pretos e mestiços, supostamente indolentes, deveriamdesaparecer e dar lugar a brancos de origem europeia. Para uma elite quepreferia – e ainda prefere – tornar invisível o povo brasileiro, dizer quem erarealmenteopovoe,aindaporcima,anunciarqueissonãoeranenhumproblemafoiobviamenteumenormeavanço.

Vargas reconhece o potencial aglutinador dessamensageme ressalta o seuconteúdo inclusivo – do povo, damassa da baixa emédia classemédia e dasclasses populares que apoiavam seu governo. A intenção então era organizar,articularedirecionaresseapoiodifuso,transformando-odemaneiradeliberadaeconsciente. A fim de evocar solidariedade e apoio ao seu projeto políticoinclusivo,nadamaiseficazdoquemostraraopovoqueelepodiaseorgulhardesimesmo.Afinal,avergonhadesimesmoeraoqueensinavaaelitedaépocaafim de melhor dominar os humilhados. O governo Vargas passa, portanto, acelebrar a mestiçagem, o que é revolucionário para o espírito reacionário eabertamenteracistadaépoca.

Além disso, a sociedade brasileira não apenas se industrializava e seurbanizava. Esses dois elementos combinados introduziram também a“sociedade de massas”. A industrialização e a urbanização criam o mercadotantodebensmateriaiscomodebenssimbólicos.Umaindústriaculturaldebenssimbólicossurge,assim,naesteiradaindústriadebensmateriais,comoroupasealimentos.Osídolosdorádioviramasprimeirascelebridades.Énessaépocaque

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osambadeixadesermúsicademorroedepreto,tornando-seamúsicanacionalporexcelência.

O futebol, antes restrito à elite, passa a ser reconhecido como esportenacionaletem,nessaépoca,seuprimeirograndeídolonacionalemLeônidasdaSilva,o“DiamanteNegro”,umnegro,portanto.OsterceiroscolocadosnaCopade1938sãorecebidoscomoheróisecomosetivessemconquistadootítulonoRio de Janeiro. Esse impulso inclusivo no imaginário social e na esfera dacultura tem um paralelo na inclusão política e econômica – ainda que “porcima”, a partir do Estado – do povo e dos trabalhadores, graças aoreconhecimento de direitos trabalhistas, da expectativa de salários dignos paratodosedoacessomaisamploàsbenessesdavidamoderna.

Diante disso, como reage a velha elite que comandava aRepúblicaVelha,com sede em São Paulo, ainda de posse de suas fazendas de café e de suasfábricas,mas,agora,semopoderdeEstadoesemahegemoniaideológicasobrea sociedade? De início, reage como sempre. Tenta a saída militar e fracassa,aindaqueessefracassoseja travestido,atéhoje,devitóriadademocraciaedaConstituição,paratodacriançapaulistaindefesanosbancosescolares.

Emseguida,porém,éarticuladaumareaçãodiabolicamenteinteligenteparapermitirqueessaelitesemantenhacomo“elitedoatraso”,aomesmotempoque“tira onda”de ser a “elite doprogresso”.Para que isso aconteça, é necessáriocooptarainteligênciaparaqueestafaçaoserviçosujodevenderoatrasocomosefosseprogresso.

OinstrumentodessaelitedoatrasoseráaUniversidadedeSãoPaulo,aUSP,fruto de seu dinheiro e de seu prestígio, que vai se tornar o think tank doliberalismo“vira-lata”brasileiro.Éaliquesegestaomitonacionalpaulista,ouseja, o arremedo de projeto nacional da elite paulista, que será o contrapontoconservadordoelogiodamestiçagem.

Aquiéolugarparadesfazerpossíveismal-entendidos.QuandosituoemSãoPauloamatrizda“elitedoatraso”,refiro-meàeliteregionalque,porsuaforçarelativa,vaiacabarcomandandoopaístodo,tantonadimensãomaterialquantona simbólica. Não me refiro, obviamente, ao povo paulista. Sou morador da

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capital paulista, onde fui, aliás, muito bem recebido, e sei, por experiênciaprópria, que boa parte de sua população odeia ou não se identifica com otrabalho sujo empreendido por essa elite. Ao localizar na USP a matrizideológicada legitimaçãodessamesma elite, nãodesconheçoquemuita genteboa,quenãoseidentificacomesteprojetomistificadoreexcludenteeatéajudouacombatê-lo,fezefazpartedessaimportanteuniversidade.

Ditoisto,éinegávelqueaUSPfoiapontadelançadeumesquemadepoderelitistaqueresultounaelaboraçãodaideologiahegemônicadoliberalismovira-latabrasileiro.Ovira-latismoresidenofatodeque,enquantoFreyreaindalutano terreno do inimigo para construir uma defesa, ambígua que seja, da“brasilidade”, Sérgio Buarque de Holanda vai ser o pai de uma interpretaçãointeiramentenegativado“caráter”dopovobrasileiro.

Trata-se de uma mistificação de proporções gigantescas. Uma vez queBuarque teria produzido supostamente uma crítica social – ao inverter, noregistro apenas negativo do “brasileiro cordial”, a balela do protestanteamericanohonestoebom–,suadefesadosideaismaiselitistasdasclassesdosproprietáriosfoivendidacomoboaciênciadevanguarda.Atéhojemuitagenteboacainesseengodo.

Narealidade,estamosdiantedeumembusteemtermoscientíficos.Comoaciência genuína sempre critica seus pressupostos irrefletidos, neste caso istosignificaria refletir e criticaro racismo implícitoem todasascomparaçõesnasquais o culturalismo não passa de equivalente funcional do racismo “racial”explícito. Não foi o que Buarque fez. Pelo contrário, ele engoliu todo opreconceitoracistatravestidodeciênciacomoverdadeabsoluta.

Estamosaquinadimensãodomitonacional,ouseja,deumcontodefadasparaadultoscomointuitodeexplicaraosleigoscomofuncionaasociedade.Éalutapelaconquistadomitonacionalhegemônicoquepermitecolonizaracabeçadapopulaçãocomoumtodoembenefíciodeumapequenaelite.Comoissosedeuentrenós?Vimosqueoapoiodamassadaclassemédiaurbana tinhasidodecisivoparaavitóriadeVargasedeseuprojetoinclusivo.Dadoquenoperíodo

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anteriornãohaviacomoconfiarnosresultadoseleitorais,foiesseapoionasruasqueconferiulegitimidadeebasepopularàRevoluçãode30.

A questão para a elite afastada do poder era, portanto, assegurar que arebeldia da classe média nunca mais se manifestasse espontaneamente e semcontrole, como se deu no apoio aVargas. E o que fazer para que, a partir deentão,essaclasseatuassesemprecomotropadechoquedospoderosos?Afinal,nãosepodechacinareespancarosintegrantesdaclassemédiacomoessaelitesemprefezcomostrabalhadoreseosmarginalizadosdasclassespopulares.

A elite precisa da lealdade da classemédia, pois esta é que representa osinteresses da restrita elite de proprietários, seja nomercado, no Estado ou naesferapública.Cabeaela supervisionaros trabalhadorese fazeragerênciadomercado para os proprietários. É ela que julga e condena de acordo com osinteresses da propriedade. É ela também que escreve editoriais e justifica elegitimaadominaçãodepoucossobremuitos.

Porcontadisso,aestratégiadaeliteemrelaçãoàclassemédiafoirecorreraousodaviolênciasimbólica,enãodaviolênciamaterial,comofazianocasodasclassespopulares.Aviolênciasimbólicaéaquelaquenãopareceviolência,quese vende como convencimento,mas que, na verdade, retira a possibilidade dereflexãoe,portanto,dequalquerautonomiadavontade.

A dominação econômica e política precisa dos intelectuais porque alegitimaçãodosprivilégiosinjustosprecisaparecerjustaedesejável.AreaçãodaelitepaulistanafoiestimularaelaboraçãodeummitonacionalconcorrenteaodeGetúlioedeGilbertoFreyre–ecomesteobjetivofundouaUSP,universidadebancadacomoseudinheiro.Jánadécadade1920,amesmaelitehaviamontadoo principal aparato estrutural de dominação ideológica das outras classes, ouseja, a imprensa. Todos os atuais grandes jornais de São Paulo, alguns comoutros nomes,mas com osmesmos donos, foram fundados nessa época e atéhojecumpremomesmopapeldedistorcerarealidadeemnomedos interessesdaelite.

Masaimprensaapenasdistribuiinformaçõeseopiniões.Nenhumjornaloujornalistacriaasideiasquedefende.Osbonsjornalistaspodemseapropriarde

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umaideia,oqueélouvável,masaproduçãodeideiassedáemoutrolugar.Sãoosintelectuaisquetêmoprestígioeaformaçãoparatanto.Daíaimportânciadeentendercomoasideiassãoelaboradaseemfunçãodequaisinteresses.

ComafundaçãodaUniversidadedeSãoPaulo,em1934,eapublicaçãodeRaízes do Brasil, em 1936, essas ideias começam a disputar a hegemonia nadécada de 1950, chegamàmaturidade na década de 1970 e se consolidamnadécadade1990,quandoFernandoHenriqueCardoso,omaisfamosoeinfluenteprofessordaUSP,ocupouaPresidênciadaRepública.Essahegemoniaéhojeemdiadecisivamesmonaesquerda,eexplicaboapartedesuahesitaçãoeconfusãoeofatodenãoterumprojetopróprioquandochegouaopoder.

Que ideias são essas tão eficazes e insidiosas que iludirame ainda iludemtanta gente boa? Para compreendê-las precisamos examinar primeiro a“santíssima trindade” do liberalismo vira-lata brasileiro, hoje hegemônico nadireitaenaesquerda.AsfigurasprincipaisaquisãoSérgioBuarquedeHolanda,o filósofo da santíssima trindade, posto que foi o criador das noções maisabstratas que estão hoje na cabeça de todo brasileiro, como personalismo,jeitinho,patrimonialismo,cordialidade,etc.Édelequevaisairaideiadequeacorrupçãoéumtraçoculturaldobrasileiro,oqualserianãosómenosprodutivoe inteligente que o americano, sempre infantilmente percebido como divino emaravilhoso,mastambémdesonestodesdeoberço.

Ohistoriadordesseliberalismovira-lataéRaymundoFaoro,queremontaaoPortugalmedieval a origem dessa roubalheira supostamente inerente à culturaluso-brasileira.Nãoparece ter incomodadoninguémo fatodeque a noçãode“soberaniapopular”–quevaipermitir,pelaprimeiraveznahistória,quesefalede“bempúblico”,passíveldeserprivatizadoindevidamenteporumparticulare,portanto,decorrupçãonosentidoqueconhecemos–sejamaterializadaapenasnofinaldoséculoXVIII,soboimpactodaRevoluçãoFrancesa.

O importante,noscasosdeBuarqueeFaoro, foiconstruiruma idealizaçãodo passado divinizado de ingleses e americanos a fim de lhes contrapor aimagemdemonizadadoBrasiledosbrasileiros.Assim,poucoimportaque,naIdadeMédia,avidanaCorteportuguesatenhasidoexatamenteigualàdaCorte

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inglesa.É preciso buscar a semente domal lá longe na história, como se estafossearazãodosproblemasbrasileirosatuais.Depoisparte-separaaelaboraçãodeconceitospseudocientíficosquedãoumcharmedeinteligênciaeerudiçãoàdominaçãosocialeeconômicadefato.

Paramim,noentanto,omaisirritantedissoéapretensãodesefazercríticasocial ao mesmo tempo que se legitima a pior tradição elitista. Daí vem obrasileiro como ser emotivo, o “homem cordial” que Buarque vai buscar emFreyre, mas sem reter nenhuma ambiguidade, apenas representando anegatividadedo“corpo”edasemoçõesditasprimitivas.

Apretensãoéademostrarquesomosinferioresaosamericanos,tidoscomo“puro espírito”, não só marcados por inteligência e produtividade, mas,principalmente, pasme o leitor, por “honestidade” e correção. As falcatruas eroubalheirasdocapitalismofinanceiroamericano,comprovadasnacrisede2008equecontinuamatéhoje–nosbalançosmascaradosdeempresas,noengododeclientes, na sonegação de impostos em escala planetária –, tudo isso foicertamente obra de umbrasileiro cordial que inoculou o veneno da corrupçãonessas almas tão honestas e puras. Tal concepção do americanismo há muitovinhasendogestadanainteligênciapaulista.

O impacto dramático da figura do self-made man americano parece serinesgotável e imortal por ter sido talvez a realização histórica ematerialmaispróxima de capitalismo igualitário funcionando como instância moralizante eedificadora. Uma força baseada na pequena propriedade que não oprime acomunidadenemadeixaàmercêdeforçaseconômicasincontroláveis.

Tão ampla foi a difusão dessa figura, agora transformada em mito, dopioneiroascéticoamericano,numaépocaemque jánãomaisexistiade formasignificativanosEstadosUnidos,queelavaiservirdebaseparaaentronizaçãodoliberalismoespecificamentebrasileiro.

O ponto de inflexão no desenvolvimento do capitalismo americano émarcadopelaGuerradeSecessão(1861-1865).Aformaçãodeumcapitalismoquepassadonívellocalparaoâmbitonacionalsignificatambémumgolpefatalno capitalismo baseado nos pequenos e médios proprietários. Com as novas

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linhas férreas interligando o país, surge um pujante mercado interno deprodutoreseconsumidores.

O estímulo ao avanço tecnológico da agricultura induzido pelo Estado, odesenvolvimento de uma indústria protegida por barreiras alfandegárias e oaproveitamento das riquezas do subsolo como o petróleo criam as grandesfortunas da época dos “barões ladrões” e da corrupção desbragada da grandepolítica.

A partir dessa época o pequeno empresário americano, protestante,destemido e livre, que, com seu suor e trabalho diligente, amealha umpatrimônio e cuida da vida da comunidade, deixa a vida real para se tornar omito americanopor excelência.O self-mademan vai continuar sendo o pontonevrálgicodaautoimagemdosamericanos,influenciandoasgrandesquestõesdopaísdesdemeadosdoséculoXIXatémeadosdoséculoXX.38

Na falta de um movimento de trabalhadores unificado e potente,enfraquecido em parte precisamente pela narrativa hegemônica do pequenoempresáriolivre,sãoosmovimentosdapequenaburguesiaacuadaeemextinçãoquevãofornecerosuportepopulacionaleanarrativacontraoavançoinexoráveldagrandepropriedadee seudomíniodavidapolítica.De1870a1930,avidapolítica americana vai ser polarizada menos pelo antagonismo entretrabalhadores organizados e grande capital do que pela oposição deste contraumapequenaburguesiaemlutapelasobrevivência.

Assim, essa figura mítica, que já não existia mais em seu próprio paísoriginalhavia80anos,foiassociadaaoutroembuste,noqualafiguramíticadobandeirantepaulistaeraassemelhadaaopioneiroamericanoprotestante,apesardoridículohistóricodessaaproximação.Foibemistoquepermitiutornaromitopaulista um adversário poderoso do mito nacional da mestiçagem. Vozes daépoca,comoViannaMoog,nãosedeixaramenganarpelafarsa:

[...]ajulgarpelaatoadadaliteraturanacionalemtornodosbandeirantes,dir-se-iaqueoSãoPaulomoderno,oSãoPaulodasindústrias,oSãoPaulodocafé,oSãoPauloqueconstróiemontaomaissoberboparqueindustrial

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da América do Sul, é obra exclusiva dos bandeirantes e do espírito dabandeira.Porquenistodeemprestaraobandeiranteatributoqueelejamaisteve, o paulista de quatrocentos anos é um perfeito ianque. Se, paravalorizar o símbolo que lhe é caro, for preciso atribuir ao bandeiranteatributosorgânicos,eleoatribuirá,separamagnificá-loforprecisotorcerahistória,eleatorcerá[...]39

Nãoobstante,atémesmopesquisadoressériosseentregaramaestaaventura.Durante todooséculoXX,essa ideiaanimouuma“excepcionalidadepaulista”nocontextodoBrasil,talcomooprotestanteascéticoamericanoalimentouumapretensa “excepcionalidade americana” no mundo.40 Simon Schwartsman, nolivroSãoPaulo e oEstado nacional, sumarizou a ideia geral que animava osconstrutoresdessemitopaulista.41

Como sempre, o pano de fundo, como em quase toda a produção dopensamento social brasileiro, era a história americana sendo contraposta comonarrativa de êxito para explicar o relativo atraso brasileiro. Se, nos EstadosUnidos, o Norte igualitário havia ganhado a guerra contra o Sul, o problemabrasileiroeraqueaparteatrasadadoBrasilhaviavencidoamaismoderna.

IssotudosupostamenteporcontadoEstado.PortersidocriadoàsombradoEstado, oBrasil tradicional era elitista, corrupto e sem energia. São Paulo, aocontrário,tinhasidoconstruídolongedoEstadoedesuasinfluênciasdeletérias,oquepermitiuaexpressãodoespíritodeiniciativaedeindependênciatípicasdobandeirante.Assim, teríamosaquiomesmoespíritoempreendedordoascéticoprotestante americano, ainda que com gênese secular. A reflexão tem algo depueril. O inimigo de toda iniciativa é o Estado, que inocularia o vírus dadesonestidadeedaapatianapopulação.

Nãosóahistóriadobandeirante–umtipoaventureiroeinescrupulosoqueprolifera sempre que a ausência de controles sociais permitem a ganância e aviolência desmedida – é distorcida e idealizada. Também a função do Estadoparaodesenvolvimentocapitalistaépostadeponta-cabeça.

Na realidade, não há nenhum exemplo histórico de desenvolvimento do

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capitalismosemoEstado.Foioprotecionismoalfandegário,porexemplo,queviabilizouomercadointernotantonaInglaterraquantonosEstadosUnidos,aspátrias do liberalismo econômico. Na Inglaterra, as políticas dirigidas peloEstadoéquepossibilitaramaindustrialização.42

Nos Estados Unidos, um conjunto de políticas estatais planejadas earticuladas permitiu a formaçãode um fortemercado interno e fomentouumaagricultura de exportação.43 O Estado como anátema do desenvolvimento docapitalismoéumaquimeraparausoideológicoquenãoresisteaosfatos.

Noentanto,omitopaulistavivedessaquimera.Etevedesercontrapostoaoutra,quesedifundenomesmoperíodohistórico:omitobrasileiropropostoporGilbertoFreyre.Umnãovivesemooutro,apesardeomitopaulistaoriginalterseperdidocomolembrançahistóricaviva.

Essa batalha ideológica refletia o fato de que a São Paulo do café, dotrabalholivree,logoaseguir,darápidaindustrializaçãoaprincípionãodetinhaemsuasmãosopoderpolíticobaseadonocontroledoEstado.Quandopassaater esse poder, durante boa parte da República Velha, temos um alinhamentoentrepodereconômico,poderpolíticoepoderideológico/social.

ÉaperdamilitardocontroledoEstadonaRevoluçãode30queafastaSãoPaulo e sua elite econômica do poder político direto, embora continue a serbeneficiadaeconomicamentepelaspolíticasestatais.Talacessoindiretoaopoderpolítico acabou por fomentar a demonização do Estado, com o objetivo deenfraquecê-losemprequenecessárioaessaeliteetorná-lomanipuláveldeforaparadentro,pormeiodascampanhasdesuaimprensavenal.

O núcleo da ideia é transformar o mercado, então dominado pela elitepaulista, na fonte e no fundamento de toda a virtude. Ao mesmo tempo,transformaroEstado,quandoestivernasmãosdosinimigospolíticos,emfontede todaavileza,corrupçãoe ineficiência.Pormais simplistaebanalqueseja,istoconvenceutodomundo,nãosónaépoca,masatéhoje,noBrasil.

Ninguémsedeuaotrabalhodelevantaraquiasperguntasmaisóbvias.Porexemplo,seopovoétodocordialecorrupto,porqueessacorrupçãosemprese

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manifestanoEstado,enuncanomercado?Afinal,omercadoeradominadoporbrasileiroscordiaistambém,não?

As lutas por hegemonia ideológica costumam ser de longa duração.Envolvemumprocessodeamadurecimentode ideiasedesuaarticulaçãocominteresses específicos. A luta da elite paulista por hegemonia é complexa epassouporváriasfases,poisnãoéfácilaarticulaçãodeinteressesherdadosdopassado. Não existe apenas o embate com elites subordinadas e interessesregionaisespecíficos.Hátambémoconfrontocomasclassespopulares,queiamseconsolidandocomodinamismodocapitalismopaulista.

ÉemSãoPauloquealutadeclassesnopaísemprocessodeindustrializaçãoadquireasuafacemaisviolentaesignificativa.Nessecontexto,aclassemédia,quetambémvaiassumirseustraçosmaisdistintivosemSãoPaulo,teráatuaçãodecisiva na vida política nacional. O papel das ideias não é meramenteexplicativo e pragmático. As ideias dominantes explicam omundo social e otornam compreensível para a multidão de leigos, mas, para serem bem-sucedidas,devemfalaraoimaginárioeaosdesejossocialmentecompartilhadosdeclassesespecíficas.

A questão aqui não tem a ver, e nunca teve, com a verdade. Como traçocultural brasileiro, a ideia de corrupção não passa de um instrumento paradominarecolonizaraspessoas,garantindoqueainferioridadesejamoralizada.Quem é colocado numa posiçãomoralmente inferior não pode se defender deseu algoz. Hoje em dia, por meio da repetição diária na imprensa, venal evendidadesdesempre,nasescolasenasuniversidades,essaautoconcepçãovira-latavirouumaespéciedesegundapeledobrasileiro.Todosseveemdestemodoesecompreendemapartirdessaperspectiva.

Pior, todos veem a simesmos através de uma autoimagem degradada queimplica perda de autoconfiança e de autoestima. A partir daí, 99,9% dosbrasileiros, sejam ou não intelectuais, vão identificar o grande problemabrasileiro como sendo apenas a corrupção no Estado e na política. Não poracaso,“patrimonialismo”éotermoprediletodosarautosdafarsadaLavaJatoemconluiocomaRedeGlobonamanipulaçãodopúblico.

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Para quem quiser saber em detalhes por que a noção de patrimonialismocarece de cientificidade, há um farto material de leitura nos meus livrosanteriores.44Aqui,vouapenasressaltaroóbvio.Lembremosdoquefoidito,queaelitedeproprietáriosdeSãoPaulo,em1930,haviaperdidoapossibilidadedeusar oEstado como seubancoparticular depois da ascensãodeVargas e seusaliados.

Ora,existesaídamaisperfeitaparaosinteressesdessagentedoquealardearqueapenasoEstadoéladrão?Assiméque,literalmente,torna-seinvisívelnãosó a roubalheira real da elite dos proprietários, mas, além disso, ela étransfiguradaemtrabalhoduroehonesto.Domesmomodo,criminaliza-se–ecomfacilidade,umavezquesetratadeumaideiapopularizadapeladivulgaçãoeruditaoujornalística–oinimigodeclassetodavezqueasoberaniapopularocolocaàfrentedoEstado.

Em seguida, basta atribuir a corrupção, suposta ou real, apenas aosadversários, comomostra a história desde 1954.Claro que isso só será usadocontraVargas,contraJangoecontraLulaeDilma.NuncacontraFHC,SerraouAlckmin, por exemplo. O ataque será seletivo e apenas contra aquelesempenhadosemutilizaroEstadoparadefenderosinteressesdamaioria,ouseja,os80%ou70%quenãodesfrutamdeprivilégiosdenascença.Esteésempreouso prático dessas ideias. Toda grande mentira tem de ter um grãozinho deverdade,senãonãoengananinguém.

Ogrãozinhodeverdadenabaleladopatrimonialismoéquetambémseroubana política e no Estado, ainda que infinitamentemenos que nomercado. Atéporqueosistemapolíticofoifeitoparasercompradopelomercado.Repete-se,nessaoposiçãoEstado/mercado,oengododaatividadepolicialqueconsisteemprendersempreosoldadodotráfico,queseexpõenasruas,masnuncaodonodabocadefumo,queépoderosoeintocável.

Se o liberalismo vira-lata tem como função ocultar a rapina da elite deproprietários, no que se refere à alta classemédia e a frações importantes damassadaclassemédia,omitovira-latapermitelegitimarosseusprivilégiosdeclassecomoexpressãodeumasupostasuperioridademoralinata.Foiporconta

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disso que frações importantes da classe média incorporaram como sua estaleituradasociedade.

Paraaclassemédia,otemadamoralidade,quelhepermitesevercomomaisvirtuosadoqueaeliteeopovo,torna-semaisevidenteemfunçãodamaioroumenor sensibilidade à questão da corrupção restrita aoEstado.Agora há boasrazões para se odiar e desprezar o povo: afinal, é graças à suposta conivênciadestequeexistem líderespopulistas corruptos e inescrupulosos.Apreservaçãodo abismo social da desigualdade mais injusta pode ser agora moralizada ejustificada.

Assim, as formas mais universais de preconceito de classe de qualquercapitalismo–analisadasnaseção inicialdeste livro–adquiremumadimensãonacional que permite legitimar a desigualdade mais cruel. Embora existadesigualdadeemtodoomundo,asingularidadedonossocaso,tãomonstruoso,deve ser buscada em contextos nacionais específicos, criados pela luta declasses,oumelhor,aqui,pelaopressãodeclasses.

Omitonacionalliberalevira-lataéoelementonecessárioparatransformaramaldade e o sadismo de classe em virtudemoral. Por conta disso, as fraçõesmajoritárias da classe média brasileira engoliram de bom grado o venenodestiladoporsuaeliteeseusintelectuaisorgânicos.

Oterceironomeda“santíssimatrindade”doliberalismovira-lataéFernandoHenriqueCardoso.SeBuarqueéseufilósofoeFaorooseuhistoriador,FHCéseu político, ou seja, aquele que vai realizar na prática o que os outrosidealizaram.FHCrepresentaomomentodehegemoniaabsolutadesseprocessodedominaçãodopovoedaclassemédia,queseconsolidanadécadade1990apartirdasideiasdoliberalismovira-lataquevinhaamadurecendodesde1930.

Entregar as empresas do Estado a preço de banana para os donos domercado,desfazeraherançadeVargas,encolheras funçõessociaisdoEstado,usaroorçamentoparaturbinarosetorfinanceirocomodinheirodetodos,jogara taxa SELIC nas nuvens para propiciar o saque da população inteira – essasforamas realizaçõesdogovernoFHC.E, acimade tudo, transformaroBancoCentral na boca de fumo da real corrupção brasileira, operando a gigantesca

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transferênciaderecursosdasociedadeinteiraparaosbancoseosrentistasquevivemdejuros.

O Plano Real – concebido antes de tudo como mecanismo do mercadofinanceiro, pois a taxade juro real é o que importaparao rentista e por aí seentende a defesa renitente da inflaçãobaixapor todosos jornais vendidos aosbancos–tevecomosubprodutolibertaropovodoflagelodainflaçãodiáriaefoioúnicomomentonahistóriabrasileiraemqueumrepresentantedaelitelogrouefetivoapoiopopular.

OgovernoFHCfechaocírculodadominaçãodessasideiasquesurgiramhá80 anos e agora se tornaram hegemônicas. Só de uma perspectiva históricapodemosaquilatarassuasconsequênciaspráticas.FHCrestabeleceoimpériodaRepúblicaVelha: uso doEstado comobancoprivado embenefício da elite deproprietários em um contexto em que o Plano Real permitiu, por um curtoperíodo pelo menos, um inédito apoio popular. De resto, as eleições e asoberaniapopular sempre foramo inimigodesseprojeto.Quantomenospovo,melhor.

Daí que a noção criminalizadora e estigmatizadora da soberania popularcomo“populismo”,untada tambémdeprestígioacadêmicouspianoapartirdadécadade1960,45tenhaseagregadoàsideiasde“personalismo”,ouseja,deum“povodeladrões”,ede“patrimonialismo”,ouseja,deumpaísnoqualoroubosóocorrenosâmbitosdoEstadoedapolítica,nuncanomercadoenaelitedosproprietários.

Para o populismo, tudo o que vem das classes populares é suspeito demanipulação,jáqueospobres,coitadinhos,nãofrequentaramaUSPouasoutrasuniversidades nela inspiradas e nada entendem do funcionamento do mundo.Como os pobres não sabem votar, a soberania popular, representada por elesenquanto maioria da população, pode ser mitigada, estigmatizada e criticada,obtendo-seassimocaldojustificadorparaosgolpesdeEstadoqueproliferamnahistóriapolíticabrasileira.

Dessemodo, aminoria constituídapela elite epela alta classemédiapodepretender legitimidade para interromper o jogo democrático toda vez que o

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populismo tiver conseguido “iludir” os pobres.ARepúblicaVelha descobre omeio–nãomaismilitarourecorrendoàviolênciamaterial,maslançandomãodeideias–deseapropriar tambémdainteligênciaedacapacidadedereflexãodosbrasileiros,afimdemanterindefinidamenteseupodereseusprivilégios.

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A

AoposiçãoentremercadoeEstadocomoexpressãodalutadeclasses–eaclassemédiacomofieldabalança

gêneseespecíficadomitolegitimadordadesigualdadebrasileira–omitopaulista,liberal-conservador,queconseguesetornarmitonacionalapartir

dos anos 50 do séculoXX– carrega em seu bojo e de certomodo eterniza amarca dessa época. Após a elite paulista ser afastada do controle direto doEstado,estepassaasercriminalizadotodavezquedespontaapossibilidadedeissovoltaraocorrer.Comoasclassespopularesforammassacradaseenganadase não conseguiram construir um projeto nacional a partir dos seus própriosinteresses, estes serão articulados por “interposta pessoa”, nomeadamente peloEstadointerventor.

Asclassespopulares, reduzidasaosilênciopelaviolência,assimcomoboaparte damassa da classemédia, serão representadas pela ideia de umamaiorintervençãodoEstadonaeconomiaenasociedade,comoobjetivodepromoverointeressemaisamploeoacessodessasclassesàsbenessesdomundomoderno.

AcriminalizaçãodoEstado, rotuladodepatrimonialecorrupto,vai ser,naverdade,oúnicodiscursodaselitesnalutapelahegemoniasocial, tendocomocontraponto o mercado, agora virtuoso e paradisíaco. Como não se podejustificararapinadiretadasclassespopularesedamassadaclassemédiapela

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elite, a criminalização do Estado e da política, vistos como o espaço dacorrupçãoedopatrimonialismo,écrucialparaneutralizaroúnico instrumentodedefesaeficazdessasclasses.

Trata-sedeumcasotípicodemoralizaçãodaopressão,quandoseretiradoadversário de classe, explorado economicamente, também a própriapossibilidadededefesapolíticaemoralcontraainjustiça.Comoaimprensaeamaioriadosintelectuaissãocooptadospelaelite,essediscursosetornará,comotempo, hegemônico. E em talmedida que até a própria esquerda, que deveriadefender as classesoprimidas, numaespéciedeharakiri, passa a enfiar a facaenvenenadadomoralismodefachadanaprópriabarriga.

Essemoralismopostiçodaselites,visandoocultararapinadapopulaçãopormeiodemecanismosdemercadoedeEstado,passaa ser aprincipal armadoblocoantipopularformadopelaeliteepelaaltaclassemédia,quesecrianestaquadrahistórica,paracombateralivreexpressãodasoberaniapopular.

O mito paulista, agora mito nacional, passa a perseguir a eternização daRepúblicaVelhaporoutrosmeios:mantendoosaquedoorçamentopúblicodoEstadocomobancoparticulardaeliteemitigando,diminuindoedistorcendoosentidodasoberaniapopular.

EssessãoosdoispilaresdadominaçãosocialdaRepúblicaVelha,osquaisdesnudam a continuidade visceral do escravismo. Esse é o projeto elitista domito paulista que, transformado emmito nacional, vai desde então impregnartodasasdisputaspolíticas.Quemconsideraospartidoscomoúnicossujeitosdadisputapolíticatendeaignoraraimportânciadosconsensossociais–nonossocaso, osmitos que disputamo imaginário social e que vão orientar a ação detodosospartidos,enãooinverso.46

A luta política no Brasil até hoje obedece, portanto, ao mesmo esquemadesde1930.Háquaseumséculo,essaéaverdadeiradisputapelocoraçãoeamentedopúblico,indefesodiantedeumamídiaquasesemprecorruptaevenal.Quandoodinheirodomercadoseuneàimprensaeaosintelectuaiscooptadoseservis aos poderosos, parte da massa da classe média e os setores populares

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acabam relegados à raiva pré-política e à indignação desarticulada, as armasfrágeisdosoprimidos.

Do ladodamaioria silenciada, aesperança surgecomoavanço, lentomascontínuo, do sufrágio universal, ainda que criminalizado pelas noções depopulismoedepatrimonialismo.Este será seuprincipal aliadonessa trajetóriadeumalutadeclassestãodesigual.Todasasconquistasdessasclassesoprimidasserãoresultantesdaintervençãoestatalfrutodovoto.

Aeliteeaaltaclassemédiavãodefenderomercadocomoúnicaformaderegulação legítima da vida social. Para tanto, a criminalização do Estadopatrimonialservecomoumaluva.Entrenós,alutadeclassesassumeaformadapreponderânciamaioroumenor,sejadomercado,sejadoEstado,comoagentederegulaçãodascontradiçõessociais.Éasemânticaealinguagempossívelnumcontextodequaseabsolutanegaçãodosdireitosdamaioriadapopulação.

Assim, a oposição entre mercado e Estado assume a forma da expressãopossíveldeumalutadeclassessilenciada.Estamosdesde1930sobaégidedessadialética, que se mostra como a semântica que torna inteligíveis os conflitossociais,aindaquesobumaformareprimidaedistorcida,paraasclassessociaisemdisputa.Paraosfinsdestelivro,valenotarafunçãodefieldabalançanesteprocesso,umafunçãodesdeoiníciodesempenhadapelaclassemédia,sobretudopelamassadaclassemédia.

Aaltaclassemédia,queocupaoscargosdedireçãonomercado,noEstadoenaesferapública,vaitenderquasesempreasealinharcomaeliteeseudiscursoao mesmo tempo pró-mercado e anti-industrial. O anti-industrialismo dessafraçãodeclasse,querefleteafragilidadedeumindustrialismosemindustriais,tem a ver com sua posição de consumidora de artigos de luxo importados e,portanto, na contramão de qualquer política protecionista para a indústrianacionale,consequentemente,detaxasdecâmbioqueinviabilizemoconsumoconspícuodebensimportados.Pois,afinal,adistinçãodaaltaclassemédiaemrelação aos segmentos abaixo dela está, precisamente, na manutenção de umestilodevidabaseadonaimitaçãodepadrõesdeconsumoimportados.

Nesse sentido, o ataque contra o “câmbio vil” unifica esse setor de classe

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médiadesde adécadade1920.47 Isso explica o apoiodecididodessa fração àpolíticadesindustrializanteedecâmbiofavorávelàsimportaçõeslevadaacaboporFernandoHenriqueCardosonadécadade1990.Essafraçãodeclasseéumaaliadadeprimeirahoradossetoresagrários,mercantisefinanceirosquelucramcom a importação e exportação em detrimento do crescimento do mercadointerno.

A alta classe média brasileira incorpora, assim, o sentido mais típico dodesterrado na própria terra, ansioso por imitar e se sentir um estrangeiro deprimeira classe, como o europeu, em terras tropicais. Por isso, a exibição demarcasestrangeirasde luxoeoconsumodealimentosebebidassimilaraodeeuropeus e americanos tornam-se a prova empírica de sua singularidade edistinção diante das classes abaixo dela, incapazes de manter tal padrão deconsumo.

Ofatodeaelitebrasileiranunca terdesenvolvidoumprojetonacionalquecontemplasseaparticipaçãodetodostemseucontrapontodeclassenavocaçãovira-latadaaltaclassemédia,queconsideramelhortudooquevemdefora.Obloco de poder formado por esses dois segmentos sociais atua com omesmomodusoperandideumapotência estrangeira colonial, explorandoeusurpandoas riquezas de outro povo, inferior e estranho – no caso, o restante do povobrasileiro.UmpoucocomoosbelgasfizeramcomoCongo,naviradadoséculoXIXparaoXX.

A elite e a alta classe média são os “belgas” que não se veem comoparticipantesdodestinodoCongoquedominam.Veem-secomointegrantesdeoutromundo,desvinculadodascircunstânciasconcretasqueos rodeiam.Daíaespoliação da riqueza coletiva e a sua acumulação no bolso de poucos.Daí aimitação basbaque do estilo de vida estrangeiro, chegando ao ridículo deimportarsêmendeamericanoloiroparaqueseusfilhos tenhamaaparênciadomodeloidealizado.48

Naverdade,aaltaclassemédiacomporta-seemrelaçãoàssuasclassesirmãseuropeiaseamericanastalcomoapequenaburguesiadessespaíses,ansiosaporimitarosgostosdaaltaburguesiadeseusprópriospaíses.Dessemodo,perdeseu

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centro, ou seja, sua capacidade crítica de avaliar o mundo de formaminimamenteautônoma.Àdiferençadasclassesdominantesnospaísescentrais,ela perde a “naturalidade” que lhe permitiria identificar vocações próprias einclinaçõesparticulares.

Assim desnaturada, condena-se à imitação compulsiva e acrítica – ocomportamento clássicodapequenaburguesia em relação à burguesia.O casodosprocuradoresejuízesdaLavaJato,quepromoveramadestruiçãodegrandesempresasbrasileirascomatuaçãointernacionalcompetitiva–embenefíciodosamericanos e à custa de empobrecimento geral e anulação da presençaeconômicamundial do Brasil, sem falar na perda demilhões de empregos –,ilustrabemoefeitopráticodessavira-laticeeobediênciacegaatudoquevemdefora,típicasdaaltaclassemédiabrasileira.

Semdúvida, alguns desses procuradores e juízes agiram como agiram, emalgumamedida, de “boa-fé”, imaginando combater a corrupção.Não entra nocérebrodesses lacaiosservisaos interessesdosseussenhoresestrangeirosque,no caso, a corrupção era seletiva e definidapelo algoz, o que explica por queapenasumladotenhasidoprejudicadoeooutroficadosócomasvantagens.

A imbecilidade objetiva é, portanto, o apanágio dessa fração de classequandoserelacionacomosseressuperiores,admiradosedignosdeimitaçãodospaíses ricos. Em relação à própria terra que exploram e humilham, por outrolado,sódemonstramdesprezo.

Dessemodo,aaltaclassemédia,comoseverámaisàfrentenastrajetóriasdevida,éumaespéciedeprolongamentoperfeitodaelitedeproprietários.Nelaconflui a defesa dos privilégios que mantêm a dominação social possível einvisível. Enquanto aos proprietários interessa reproduzir e aumentar suariqueza, à alta classe média interessa manter sua posição privilegiada nagerência, supervisão e justificação dos interesses da propriedade em todas assuasdimensões.

Adefesadocapitalculturalprestigiosocomplementa-seaquicomonívelderenda que permite investimentos de alto retorno na educação e nas relaçõespessoais.Aísetecem,demodoimperceptível,osvínculosentreesseestratoeos

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proprietários. Vínculos invisíveis, posto que afetivos e aparentementedesinteressados,oqueaumentademodoexponencialsuaeficácia.Astrajetóriasde vida reunidas na última seção deste livro mostram como isso ocorre nadimensãodavidacotidiana.

Emfunçãodeseusinteressesmateriaisedeseusideais,essafraçãodeclassese posiciona como uma espécie de delegada e representante dos interesses daínfimaelitedeproprietários.Porissoéquesevêcomopartedaelite.Comoosvínculos com a verdadeira elite de proprietários são orgânicos emuitas vezespessoaiseafetivos,aconfusãoéobjetivaedesempenhapapeldecisivonadefesaengajadadosprivilégioselitistas.

Nocontextodessafração,apossedeconhecimentosaltamentevalorizados,quepressupõemaltarendaetempolivreparaoestudo,temcomoresultadoaltossalários,prestígioerelaçõespessoaisvantajosas,abrindo-lheaportaparacargosefunçõestantonomercadocomonoEstado.

É outra a situação da massa da classe média, ou seja, aquela que vaidesempenharasfunçõesintermediáriasdesupervisão,controle,administraçãoedireção em todos os ramos, seja da esfera privada, seja da estatal.De longe amaisnumerosadaclasse,essafraçãotambémdesfrutadeumprivilégiobaseadosobretudo na reprodução de um tipo de capital cultural, comparativamente demaiorvolumeemaisvalorizadodoqueoincorporadopelasclassespopulares.

Sãoasfunçõestípicasdowhitecollar(colarinhobranco),ouseja,asfunçõesadministrativasetécnicasintermediáriasdossetoresindustriais,comerciaisedeserviçosqueseopõemaotrabalhomanualdasclassespopulares.Essaclasseseconstitui com o aprofundamento da industrialização, nos setores tanto deprodução quanto de distribuição, comercialização e transporte. Por outro lado,elatambémseformacomoresultadodaexpansãodasatividadesdoEstadonasáreasdeprevidência,saúde,educaçãoeinfraestrutura.

Asituaçãonamassadaclassemédiaébemdiferentedaaltaclassemédiaetendeaassumirposiçõesdiversasconformeaconjunturaeconômicaepolítica.Seaaltaclassemédiareverberaodiscursoliberal-elitista,aomesmotempopró-mercado e anti-industrial, a massa da classe média é mais complexa e

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contraditória, pois, espremida entre as classes altas e as classes populares, vairefletirasangústiasdessaposiçãoambígua.

Porumlado,amassadaclassemédiaanseiapelomesmoníveldeconsumoda alta classe média. Nesse sentido, parte dela vislumbra na ação do Estadointerventor o meio para a expansão do bem-estar e difusão do consumo dequalidade.Assim,o apoiopopular ao industrialismoconta como significativoinfluxodemembrosdestaimportantefração.Aindustrializaçãoeaampliaçãodomercadointernosãopercebidaspelamassadaclassemédiacomoumcaminhoalternativo para o consumode padrão europeu e norte-americano já alcançadopelaaltaclassemédia.

OapoioaVargase,depois,àsuapolíticaindustrializante,consubstanciado,porexemplo,nacampanhaemfavordaPetrobras,seráaquifundamental.Partedessa classe, portanto, percebe a industrialização como possibilidade deexpansãodeseubem-estarepadrãodeconsumo.Éessesegmentosocialqueotenentismo estatizante da “modernização por cima” – queVargas irá encarnarmelhordoqueninguém–representamaisquequalqueroutro.

Jáoutros setoresdessamesma fraçãode classe tendemadesenvolver umaposiçãoantipopularcomoreflexodeseumedodaproletarização,otemormaispersistente nas frações da massa da classe média e na pequena burguesia depequenosproprietários.Aindaqueessa tendência sejauniversal emsegmentosespecíficosdabaixaclassemédia,nocontextobrasileiroháumaspectoadicionalquedramatizaelevaessaposiçãoaoparoxismo:ainfluênciadoestigmalegadopeloescravismo.

Umavezqueodesprezopelotrabalhomanual,antesexercidopeloescravo,perdura entre nós, agora no ambiente capitalista, sob a forma de estigma queafeta as classes populares do trabalho manual como um todo, o medo dadesclassificação social atiça paixões radicais que flertam com o fascismo. Noperíodo de longa duração de quase um século que aqui nos interessa, essepúblicoseráarregimentado,emépocasdistintas,pelointegralismodeinspiraçãofascista, pela defesa da ditadura militar e, hoje em dia, pela pregação deviolênciaabertaporumJairBolsonaro.

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Na manipulação fascista e protofascista dos setores da massa da classemédia, o aspecto decisivo é sempre o terror despertado pela possibilidade dedesclassificaçãosocial.Entrenós,adesclassificação,oumarginalização,implicao temor tanto da desumanização nas relações interpessoais cotidianas comotambémdaperdaefetivadedireitos,àqualolegadodaescravidãocondenaosdesclassificadosehumilhados.

Essastendênciascontraditóriasnamassadaclassemédiatransformamessasfrações em redutos receptivos tanto à pregação de esquerda, a favor de lutasnacionalistas, sindicais e anti-imperialistas, quanto à pregação de direita, emprol, por exemplo,deumEstado forte e autoritário.A relaçãode forçasnesseembate será decidida pela força relativa, de um lado, da arregimentação e doconvencimento realizados pela elite, e, de outro, das organizações das classespopulares.

Na década de 1930, por exemplo, vimos o surgimento de dois poloscontrários, formados por esses mesmos campos antagônicos que compõem amassa da classemédia.De um lado, aAliançaNacional Libertadora, aANL,influenciada pelo Partido Comunista Brasileiro, o PCB, defendia a reformaagrária e a luta anti-imperialista e contava com quase 500 mil membros, emgrandeparterecrutadosnamassadaclassemédia.Deoutro,comogrossodesuamilitância arregimentada nos mesmos estratos, temos o integralismo deinfluênciafascistaeautoritária,quenoaugechegouacontartambémcomcercade500miladeptos.49

O tenentismoestatista eogovernoVargasvãode certomodounir asduastendências contraditórias no Estado Novo, inaugurado em 1937. Sua formacentralizadaeautoritáriarealiza,porassimdizer,oideáriointegralista,aopassoquesuaatuaçãoinclusivacontempla,poroutrosmeios,osanseiosmobilizadospela ANL. Durante o interregno democrático, de 1946 a 1964, o PartidoTrabalhistaBrasileiro–oPTB–eaUniãoDemocráticaNacional–aUDN–vão veicular, cada qual a seumodo, esses anseios contraditórios damassa daclassemédia.

Nessaquadrahistórica,jáoepisódiodosuicídiodeGetúlioem1954permite

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aveiculaçãododiscursomoralistadeumacorrupção restritaapenasàsesferasdoEstadoedapolítica–discurso,comovimos,gestadopelaelitepaulistanaeseusintelectuaiscomomitonacionalquesetornapoucoapoucohegemônico.

Em seu livromais recente,50 o cientista político André Singer discute umprocessosemelhantedelongaduraçãonocampodalutadeclasses.Noentanto,paraoautor,eleestariabaseadonospartidospolíticos,enãonareconstruçãodosconsensos sociais articulados, ou seja, nos mitos nacionais. Apesar deinteressanteedeser facilmenteassociadoaopontodepartidaquedesenvolvo,vejoalgumaslimitaçõesnessaabordagem.Antesdetudo,dadoqueospartidossão meras institucionalizações de visões de mundo prévias (ainda que com otempo possam modificá-las), não há como captar adequadamente, naargumentaçãodeSinger,agênesedosmecanismosdeconstruçãodeideologiasouvisõesdemundo.

Esãobemestesmecanismosquetornamcompreensívelaquemelasservem,umavezqueodispositivomaisimportantedetodopoderétornar-seinvisível.Aelitedominantepodeatuarcommaisliberdadeprecisamentequandosuaaçãosedáporinterpostapessoaepeloencobrimentosistemáticodeseusinteresses.

Nessesentido,Singeratribui,porexemplo,opartidodomoralismoàclassemédia,literalmenteescamoteandoaatuaçãodecisivadaelitedeproprietárioseadefesadistorcidadeseusinteresses–ofatorprincipalnoprocessodedominaçãopolítica.Ficaobscurecido,assim,todooprocessodeseduçãoemanipulaçãodaclasse média, conduzido em instituições de ensino cooptadas pela mensagemelitistaeinfluenciadaspelamídiamanipuladora.

A classe média aparece como capaz de escolher sua representação, o querelegaaumplanosecundárioasdistorçõesestruturais típicasdomonopóliodapropriedade material e dos meios de coerção simbólica. Não obstante, estedeveriaseroaspectocentral.Alémdisso,adiferenciaçãodasfraçõesdeclassedaclassemédiatambémnãoéobjetodeumtratamentoadequado.

AmesmainsuficiênciaserepeteaolongodaanálisedeSinger.Éocasodasdiferenças significativas entre o Partido Trabalhista Brasileiro e o Partido dosTrabalhadores, sendo este último decisivamente influenciado pela mensagem

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elitistamoralistade fachada. Isso,porsuavez,comprometesuacapacidadedemobilizaçãoearticulaçãodeumprojetonacionalalternativo–umaspectoqueétambémtratadodeformainadequada.

Oqueseimpõe,portanto,antesdetudo,ésaberquaishorizontessãoabertosoufechadospelasvisõesdemundodominantes.Sóassimpodemosentenderporquepartidos,indivíduoseclassessociaisagemcomoagem.Essasentidadesnãoatuam no vácuo, e sim num contexto pré-estruturado simbolicamente, o qualcondiciona tanto a substância como a amplitude da atuação dos agentesindividuaisecoletivos.

A construção do mito hegemônico e a ampliação progressiva do mitoregionalpaulistaemmitonacional,realizadaemgrandemedidacontraVargasesua política inclusiva das massas da classe média e das classes popularesurbanas, tinha, como se viu, o objetivo de dotar as elites de um discursolegitimadordeseusprivilégios.

DadoqueoEstadoeravistopelascamadasdamassadaclassemédiaedasclasses populares como o mecanismo de intervenção “de cima”, como únicomeio de materializar seus interesses sem outra possibilidade de representaçãodireta e autônoma, era necessário criminalizar e estigmatizar tanto o Estadocomoapolíticaenquantotais.

Os temascorrelatos–quecomeçamaganharumdiscursoarticuladonesseperíodo–depatrimonialismo,personalismo,populismo,jeitinhobrasileiro,bemcomoahisteriaemrelaçãoàcorrupçãopolítica–visavamcriminalizaroEstadosemprequeestesecolocassecomorepresentantededemandaspopulares.CarlosLacerda,grandeoradoredemagogodaUDN,vaiexercer,praticamentesozinho,pormeio da imprensa liberal, um papel semelhante, no episódio da queda deGetúlio, aodaRedeGloboà frentedamídiavenalnaquedadoPTenaatualperseguiçãoaLula.

Gestadaspor intelectuaisedifundidaspelasuniversidadesepela imprensa,as ideias começam aqui a ganhar força prática e articulada no sentido dearregimentaremamassadaclassemédiaeatédesetorespopulares,emfavordoprojetoexclusivodasclassesdoprivilégio.

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Alcançado este estágio, o privilégio, econômico e cultural, conseguemoralizar a opressão que exerce, tornando-a, em grande medida, invisívelenquanto tal. A dominação passa a ser então desejada pelo oprimido, que areconhececomoforçamoralefetiva.Porestemotivo,mesmosetoressociaisque,objetivamente, só têm a perder com esse moralismo de fachada acabamconvencidosporumdiscursoqueosdesarmaedebilita.

A partir dos ataques bem-sucedidos de Lacerda a Vargas, a corrupçãoadministrativadeixade serumdelito comoqualqueroutro eviraumahisterianacional,fomentadapelaimprensaasoldodaelite.Omitopaulista,agoramitonacional, celebra sua primeira vitória contra o projeto inclusivo de seumaiorinimigo,GetúlioVargas,levando-oinclusiveàmortefísica.

A comparação com a situação atual de Lula nos permite perceber comclarezaa continuidadedodiscursoedosmeiosutilizados.Omitonacionaldoelogiodamestiçagem,comparativamentemaisinclusivo,propostoporFreyreeassimiladoporVargas,sairá,apartirdaderrotadeste,docentrodaarenapolítica,aindaqueLeonelBrizolaeDarcyRibeirooreverberemtopicamentenasdécadasseguintes.

Omitofreyrianovaiserestringircrescentementeàesferacultural,perdendorelevância no debate político. Na cultura, porém, tornado impotente comomecanismodeinclusão,continuaaalimentarpraticamentetodasasleiturasnasdiversasartesacercadeumasuposta“originalidadebrasileira”,aopassoquenapolíticanadavoltaráaocuparefetivamenteoseulugar.

O surgimento do PT, na década de 1980, inaugura uma dinâmica nova eimportante, mas que será em parte neutralizada pela absorção, no âmbito dopróprio partido, do discurso elitista domoralismo.Não por acaso o PT nascecomoopartidoda“éticanapolítica”,comgrandepenetraçãonaclassemédia.Omito paulista-nacional passa a ser de tal modo hegemônico que influenciadecisivamente tanto o Partido da Social Democracia Brasileira, o PSDB, opartido da elite, como também o PT, o partido das classes populares, ambosnascidosemSãoPaulo.

O golpe de 1964 é o resultado de um contexto preparado desde 1954 e

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adiadoporumadécadapelotraumapopularcausadopelosuicídiodeGetúlio.Atentativa de mobilização de trabalhadores rurais e urbanos, encampando umprojetonacional-popularalternativoaoelitista,terminaporlevaraofimobreveperíododeredemocratizaçãoquedurou18anos,assimcomodasaliançasnelevigentes.Comosempre,a“boaburguesia”,aburguesiaindustrialquepoderiatersidoosuportedeumprojetonacionaleindustrializantedelongoprazo,mostraafragilidade do processo de “industrialização sem industriais” estimulado peloEstado.

Na verdade, na segunda metade da década de 1950, com JuscelinoKubitscheck, o presidente “bossa nova”, já se iniciava no Brasil o avanço docapitalismo monopolista da grande produção, um salto possibilitado peloinvestimento estatal do período getulista nos setores de infraestrutura. JKcumpre à risca seu programa de desenvolvimento rápido, superandoefetivamentedesafiosde50anosnoscincoanosdeseugoverno.51Entre1957e1962,porexemplo,aproduçãoindustrialaumentouemmédia11,9%aoano.52

A entrada do Brasil na fase de produção industrial dos bens de consumoduráveis,cujoramomaisvisíveleimportanteéosetorautomobilístico,sedáemassociação subordinada com o capital estrangeiro das multinacionais. Aindustrialização sem industriais se consumaemumcapitalismodependentedocapitalexterno,semconstruçãodematriztecnológicaprópria,empregandomãode obra barata e comomercado interno protegido para alavancar o lucro dosinvestidoresexternos.

A ditaduramilitar amplia o poder de intervenção do Estado na economia,comomeiodeexpansãodainfraestruturanummodelomonopolista,reforçandoassim a industrialização dependente e oprimindo as organizações populares esindicaiscomoformademanterossaláriosbaixos.Separaopovo,sobretudootrabalhadorpoucoqualificado,onovoarranjopiorasensivelmenteascondiçõesdevida,53naclassemédianãoocorreomesmo,emespecialnaaltaeemfraçõesda massa da classe média, a qual se diferencia internamente e se transformaqualitativamente.

Éaditaduramilitar,portanto,queconsolidaoapartheidbrasileiroqueopõe

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asclassesdoprivilégioeconômicoecultural–queincluem20%dapopulação,precisamente o tamanho da classe média real – aos 80% restantes dedespossuídos,estesemdiferentesgrausdeexclusão.54Essenovoarranjosocialeeconômicodasociedade,favorecendoos20%deprivilegiados,seadaptaaumnovo arranjo da divisão internacional do trabalho. Agora, a sua direção édeterminadapelograndecapitalestrangeiro,enãomaispelocapitalnacionaloupeloEstado.

O crescimento econômico passa a ser comandado por dois vetorescomplementares: a introdução de novos produtos de consumo duráveis, maiscaros e destinados ao restrito mercado interno dos 20% privilegiados; e aexportação de produtos manufaturados, explorando a mão de obra barata, nocontextorestritivodadivisãodetrabalhointernacionaldemarcadapelasgrandesmultinacionais.Issoimplicavaamanutençãodamatriztecnológicadepontanospaísesdeorigem,restandoaoBrasilaexportaçãodesafrasagrícolaseprodutosultrapassados.

Para a classe média, esse período consolida a internacionalização de seupadrãoderendaeconsumoemdetrimentodorestantedapopulação.Aindaqueacontenção salarial permanente seja precondição para tornar competitivos osmanufaturadosbrasileiros,essapolíticanãoatingeosescalõesmédiosealtosdasgrandes empresas manufatureiras e de serviços, cujos salários tendem aacompanharastendênciasglobaisdocapitalmonopolistainternacional.

Nas grandes empresas, os ganhos do pessoal técnico, administrativo e dedireção intermediária tendem a ser regulados pelos ganhos da cúpula deexecutivosmuitobempagos.Daíresultaumapolarizaçãosalarialqueserefletenadistribuiçãoderendadapopulaçãocomoumtodo.Assim,aparceladarendapessoal apropriada pelos 10% mais ricos passa de 39,66%, em 1960, para47,79% em 1970, inaugurando uma tendência que se consolida. No mesmoperíodo,aparceladarendaapropriadapelos50%maispobrescaiude17,71%para14,90%.55

O novo padrão de industrialização cria, assim, uma polarização social naqualsurgemnãosóestilosdevidamuitodiferenciados,comotambémmercados

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distintos, com serviços e mercadorias de qualidade muito diferente. Passa aexistir uma escola para os 20%mais ricos e outra para os 80% que ganhammenos,serviçosdesaúdedepadrõesvariadossegundoomesmomodeloeassimpordiante.

Essa tecno-burocracia de classe média, empregada nos novos setores daeconomiaprivadaetambémnocadavezmaioraparelhodoEstado,tendeaverseus privilégios como “merecidos” e construídos por “esforço pessoal”. Ameritocracia é um ponto nodal do mecanismo de identificação com as elitesnacionaiseestrangeiras,poistendeasantificarelegitimaroarranjoexcludentedominantecomosendodecorrentedeumacompetiçãosocial“justa”.

Narealidade,oqueaconteceéaconsolidaçãodeumpadrãodedesigualdadeabissalecruelquereproduzcomoutrosmeiosaantigasociedadeescravocrata.Nosdiasdehoje,éóbvio,nãosesegregamdesdeoberçoeemfunçãodacordapeleaquelaspessoasdestinadasaocativeiro.

Mas um tipo muito semelhante de segregação ocorre por meio demecanismos invisíveis, como costumam ser os de classe. Ainda que a raçapermaneça como indicador importante daqueles que podem ser desprezados ehumilhados impunemente, são mecanismos de classe que viabilizam a novaescravidãoeonovoapartheid.Issosetornaevidentequandotemosacoragemdecriticar anoção frágil, absurdae ridículaque reduzasclasses sociais aos seusrespectivos níveis de renda, impedindo a percepção do principal: entender oprocessosocialquetornapossívelqueunsganhemtantoeoutrostãopouco.

O fundamento mesmo desse apartheid está no processo específico desocialização familiar e escolar de determinadas classes sociais.Como estas sópodem ser compreendidas como a reprodução de privilégios, positivos ounegativos, precisamos apenas identificar os privilégios reproduzidos por cadaumaafimdeentendercomosemanifestaaluta,oumelhor,aopressãodeumaclassesobreaoutra.

O privilégio mais característico da classe média, responsável por sualegitimaçãomaiseficazsobaformadameritocracia,éoacessoaoconhecimentomaisvalorizadoquegarantealtossalários,bemcomoreconhecimentoeprestígio

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social.Como tendemos a considerarodinheiro eo capital econômicooúnicocapital a predeterminar as oportunidades dos indivíduos e classes sociais, essecapitalculturaltendeaserinvisibilizado.Ejustamenteissoohabilitaaserumajustificaçãoeficazdadesigualdadeproduzidaentre,deumlado,asclassesqueomonopolizame,deoutro, as classescondenadasao trabalho semiqualificadoedesqualificado.

Noentanto,veremosqueocapitalquedefatosedemocratizanassociedadesmaisavançadasmoralmente,eporissomaisigualitárias,éexatamenteocapitalcultural.Por todaparte,ocapitaleconômicoémaisexclusivoe restritoaumapequena elite de proprietários. O quemuda são os impostos pelos quais essariqueza retorna à sociedade – e que, no caso do Brasil, sempre foramescandalosamentebaixos.

Em países como Alemanha, Inglaterra ou Suécia, o capital cultural, emconsequência de lutas políticas das classes trabalhadoras, tem seu acessoefetivamente democratizado, favorecendo a imensa maioria da população. Nonossocaso,oconhecimentodepontamaisvalorizadoéapanágiodascamadasmédias,quenãoperfazemmaisde20%dapopulação.

Comesseconhecimento,essaclassepodemonopolizaroscargosbempagosdossetoresprivadoeestatal,criadosnodecorrerdodesenvolvimentocapitalistadependente. O privilégio começa no berço, como amarcamais irrefutável deinjustiça, uma vez que ninguém deve ser discriminado por nascer na “famíliaerrada”.Comonãoexisteafamíliaemgeral,massempre“famíliasdeclasse”,ou seja, processos de socialização familiar singulares, que se reproduzemdiferencialmente conforme a classe social, os privilégios resultantes dassocializaçõesfamiliaresespecíficassãoosmaisimportantes.

O acesso privilegiado ao conhecimento valorizado pressupõe uma rendacomparativamentemaiordafamília,demodoacomprarotempolivredosfilhospara que eles se dediquem apenas aos estudos. Reservado às elites e à classemédia, este já é um privilégio que invalida qualquer pretensão tola demerecimento e esforço próprio, dado que, no Brasil, os filhos das classespopulares sãoobrigadosdesdeaadolescênciaaestudare trabalharparaajudar

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emcasa–obviamente,naimensamaioriadoscasos,acabamnãofazendobemnemumacoisanemoutra.

A compra do tempo livre dos filhos está longe de ser o único privilégiopositivodaclassemédiaasercontrapostoaosprivilégiosnegativosdasclassespopulares. Tão ou até mais importantes são as heranças invisíveis e nãomonetárias. A capacidade de concentração, a percepção da leitura comoatividadeaserestimulada,aautodisciplinaeoautocontrole,apossibilidadedeincorporaçãodospensamentosabstratoeprospectivo–tudoissoérepassadoaosfilhos da classe média de forma imperceptível, como produto da merasocializaçãofamiliar.

Ofilhodasclassespopularesécondenadoareproduzirafaltadeaptidãodospais, reproduzida secularmente por práticas ativas de exclusão, exploração,humilhaçãoeabandono.Porcontadisso,muitosdosfilhosdessasclasses,aos5anos de idade, já entram na escola como perdedores, condenados aoanalfabetismofuncionale,depois,aotrabalhosemiqualificadoedesqualificado.

Ocotidiano familiar nas classesmédias é bemdiverso.Assim, um tio quesabe falar outra língua é admirado por todos e só isso produz na criança apercepçãodequeoaprendizadodelínguaséalgobomedesejável.Domesmomodo,amãequegostadelertransmiteaofilhooamorpeloslivros.Eassimpordiante. Esse aprendizado afetivo, baseado na imitação das pessoas amadas eadmiradas,fazcomqueumacriançadeclassemédiaentrenaescola,porvoltados5anos,comovencedora.

Otempolivreparaoestudoapenasaprofundaoprivilégioeadesigualdadedepontodepartida.Sabendodetudoisso,acharqueseuprivilégioé“merecido”ou“meritocrático”émuitacaradepau,nãoémesmo,caroleitorecaraleitora?Maséissoqueacontecetodososdiasemtodososlugares.

Oprocessosocialqueexplicatalestadodecoisasrefere-seaumaparticularcombinação dos preconceitos universais do capitalismo, examinados na parteinicial deste livro, com o mito nacional hegemônico aqui reconstruído. Narealidade, nos países mais igualitários do capitalismo social-democrata, oprivilégioestéticodobomgosto–sempremoral,poisdistinguequemésuperior

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ouinferior–éumaformadereconstruirumadesigualdademaissutilsoboplanopressuposto de direitos institucionalizados. Ainda que a diferença entre ossaláriossejamenornospaísessocial-democrataseuropeusdoqueentrenós,porexemplo,tambémláexistemdisparidades,queprecisamserjustificadas.

A sutileza do privilégio estético, separando as pessoas mais e menossensíveis,serveparajustificarumtipodeprivilégiolimitado,ouseja,funcionadesde que a diferença social não seja abissal. Tal tipo de justificativa é eficazporquenessassociedadesaenormemaioriadaspessoastemacessoaeducaçãoeasaúdedequalidade,alémdeumsaláriodecente,aindaquemenordoqueodeoutras. Além disso, a polícia não chega “esculachando” na casa de nenhumtrabalhador,pormaispobrequeseja.

Ouseja,paraaenormemaioria,todossãogente,comexpectativashumanasatendidaseapossibilidadedeimaginarumavidacomconfortoecomesperança.Nostermosdiscutidosnestelivro,aesferadadignidade,formadanasocializaçãofamiliareescolar,éefetivamentecompartilhadanessassociedades.

Comotodospodemcontribuircomseutrabalhoparaobemcomum–postoque tiveram boa educação e estímulo em casa para o estudo –, ninguém édesrespeitadonemtratadocomoanimalesubgente,comoocorrenoBrasil.Ditode outromodo:mesmo que existam pessoas “mais iguais que outras”, nessassociedadesninguémé jogadonavalacomumdaanimalidadeedahumilhaçãocotidianaimpostaporindivíduose instituições.EssaéadiferençafundamentaldoBrasilemrelaçãoaessassociedadesqueadmiramos,eéissoquetemdeserexplicado, não a baboseira, propagada entre os imbecilizados para legitimar oassaltodaelite,dequesomosumpovodecorruptos.

Emfunçãodessepontodepartida,todaahierarquiadasquestõesrelevantesparasepensaroBrasilmudadeformaradical.Primeiro,oculturalismovira-latadeumsuposto legadoportuguêsapareceagoracomoumapiadademaugostocomnossosirmãosportuguesesquenadatêmavercomohospícioquecriamosaqui.

Portanto,édaherançaescravocrata–quenãoexistiaemPortugal–quesedeve partir, e de sua continuidade até hoje sob outras máscaras, que não

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decorremmaisapenasdacordapele,masdosprocessosdemarginalizaçãoedeexclusãodeclassemostradosanteriormente.

Segundo,abaleladopatrimonialismoedacorrupçãorestritaàpolíticaeaoEstado, adotada tanto pela direita quanto pela esquerda colonizadaintelectualmentepeladireitaparaexplicaropaís,apareceagoracomooprocessode escamotear e ocultar o roubo e a rapina promovidos pela elite deproprietários.Comissoelaconseguemoralizareinverterascausasdaopressãosocial e, ao mesmo tempo, fazer de idiota toda a sociedade. Essa explicaçãoimbecilizadora é que toma o lugar da questão da desigualdade abissal quecondenaamaioriadapopulaçãoaumasubvidaeconômica,socialemoral.

Aindaqueocapitalismofuncioneaquidemodosimilaraodeoutrospaíses,todasasnossasmazelassociaisderivamdofatodeque jamaisalcançamosumpatamar de dignidade abrangente. Pelo contrário, perpetuamos o processodesumanizador da escravidão por outrosmeios. Portanto, tratar a todos comogente depende de processos de aprendizado coletivo, aqui nunca realizados, enadatemavercomovírusdoculturalismovira-lataobcecadocomojeitinhoeacorrupçãodopaís.

NoBrasil,enfim,nuncativemosumalutadeclassesdeverdade,naqualosinteresses das classes populares tenham se feito valer como direito. O quesempre tivemos aqui foi uma cruel e covarde opressão de classe, na qualqualquer tentativa de diminuir, por pouco que fosse, a abissal distância socialredundouemgolpesdeEstadoeemestadosdeexceção.

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N

Ogolpede2016esuasprecondições:ocapitalismofinanceiroeopapeldasclassesmédias

a década de 1980, o projeto da industrialização sem empresáriosindustriais vai mostrar claramente os seus limites, patenteando a

incapacidade do país para promover um desenvolvimento industrial comautonomiatecnológica,talcomoofizeramaspotênciasasiáticasretardatárias,oJapão,aCoreiadoSule,maisrecentemente,aChina.

O raciocínio de curto prazo da elite brasileira sempre boicotou qualquertentativa de construção de uma base industrial e tecnológica autônoma. Odesmonteda ciência eda tecnologiado atual governoTemer apenas reveladeforma caricata o pensamento indigente da elite e seu descompromisso com ofuturodopaís.

No governo Geisel, o II Plano Nacional de Desenvolvimento previa umareestruturaçãoprofundadosetorindustrialeplanejamentodelongoprazo,masfoi boicotado pela elite empresarial, avessa à presença estatal no comando doesforço.56 Por meio de sua mídia venal,57 começa então o ataque à ditaduramilitar,nãoporseusdefeitose restriçõesàdemocracia,masporcontadesuasvirtudes,ouseja,porseuempenhoemformularumprojetodelongoprazoparaopaís.Maisumavezaclassemédiasairáàsruas,nacampanhadasDiretasJá,

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imaginando-se protagonista quando na verdade cumpria um roteiro traçado deantemãopelaelite.

A década de 1990, noBrasil, émarcada pela consolidação do capitalismofinanceiro – que na década anterior iniciara seu arranque global a partir dosEstadosUnidosedaInglaterra.Ocapitalismofinanceironãoéapenasumanovaforma de acumulação capitalista. Para que essa nova forma de acumulação seimpusesse, implicando aumento exponencial da desigualdade social em todolugar,foinecessárioumgigantescoesforçocombinadonosentidodemudartodaaconcepçãodemundoatéentãovigente.

Essaconcepçãodemundo,construídaapartirde1945,eraalicerçadanumcompromisso de classes que implicava a participação dos trabalhadores nosganhos de produtividade. O Estado democrático e social estava fundado noEstado cobrador de impostos, o efetivo financiador da estrutura social eeducacional montada em praticamente todas as sociedades desenvolvidas. Oacesso das grandesmassas, pela primeira vez na história, a uma educação dequalidadeeinformaçãopluralensejouumradicalalargamentodasperspectivasdemocráticas.

Oquediscutimosanteriormentecomo“revoluçãoexpressivista”,quedesdeoséculo XVIII era restrita a elites intelectuais e artísticas, ganhou as ruas e asmassasde jovensestudantesnadécadade1960.Aprimeirageraçãode jovensbem-educados e com livre acesso à informação na Europa e na América doNortepassaaameaçaropoderconstituídonoseucerne.Aquestãodeixadeserameraparticipaçãonoslucrosdocapitalismoparaamaioriadapopulação.Agora,oqueestavaemjogoeraatomadadopoderpolíticoesocialafimdereformá-loapartirdedentro.

Ocapitalismoaindanãotinhaenfrentadoinimigotãopoderoso.Antestiverade lidar com os trabalhadores, que exigiam compensação financeira adequadapor sua contribuição. Porém, mesmo a participação de trabalhadores emcomissões de fábrica e mecanismos de cogestão (como na Alemanha, porexemplo)visavagarantirboascondiçõesdetrabalho,enãoredefinirotrabalhoprodutivoenquantotal.TambémosocialismodeEstado,aindaquemilitarmente

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poderoso, não significava uma crítica ao “produtivismo” enquanto princípiofundamentaldavidasocial.

Agora, os capitalistas viam-se diante de algo novo e verdadeiramenterevolucionário, um movimento cujo suporte social eram seus próprios filhosbem-educados. O objetivo da revolução expressivista era redefinir os fins davida social emodificar por dentro o uso do poder. A sociedade devia ser umexperimentoparaaautodescobertadosindivíduosedascomunidadessolidárias,eomeioparaalcançarissoeraocontroledopodersocial.

Nessecontexto,perdetodoosentidoomerolucrobaseadonatransformaçãode todos os indivíduos em autômatos produtivos e disciplinados. Aprodutividadetemdeserummeioparaafelicidadeindividualecoletiva,enãoofimdetodaaorganizaçãosocial.Airracionalidadedocapitalismo–noqualossereshumanosnãopassamdeinstrumentosdeumalógicaeconômicaimpessoal,voltadapara o lucro, e nãopara as reais necessidades humanas – nuncahaviasidoexpostademodotãoruidoso,massificadoebem-sucedido.

NaFrança–comosempreopaísondeaslutassociaisatingemseuclímax–,os estudantes conseguem a adesão de 7 milhões de trabalhadores e quaseobrigamopoderconstituídoa se render.Em todososoutrospaísesavançadosocorrem rebeliões e protestos em massa. Nos Estados Unidos, a suacontracultura, tradicionalmente mais individualista, une-se aos movimentoscontraaguerradoVietnãeafavordosdireitoscivisdosnegros,ganhandouminéditosentidopolíticoesocial.NaAlemanha,teminíciodefatooprocessodedesnazificação do país, quando a chamada “geração de 68” toma nasmãos odestino da sociedade alemã e denuncia a geração dos pais influenciada pelofascismo.

Mesmo no Brasil, onde não estavam presentes várias das precondiçõessociais europeias,o anode1968assinalao iníciode forteoposiçãoao regimemilitar,comgrandepesoestudantiledaclassemédiamaiscrítica,comoseviunocasodaPasseatadosCemMiledeumasériedeprotestosquetiveramcomorespostaoAtoInstitucionalno5eoendurecimentodoregime.

Oqueexplicaemgrandemedidaoêxitodocapitalismofinanceiroéofato

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de ele ter conseguido engolir o protesto expressivista e depois regurgitá-losegundoseusprópriostermos.Aantropofagiadofinancismolevouàredefiniçãoem termos instrumentais daquilo que o expressivismo definia como finsinalienáveis. Se a proposta da revolução expressiva havia sido tornar odesempenhoeaprodutividadeinstrumentosdacriatividade,daespontaneidadeeda originalidade individual e coletiva, a contrarrevolução do capitalismofinanceirodeveria,então,inverterostermosdaequação.

Assim,nadécadade1980,massobretudonasdécadasseguintes,umanovaonda perpassa todas as sociedades capitalistas no sentido de redefinir aprodutividade e a acumulação infinita de capital nos termos da revoluçãoexpressivista.Acriatividade,aespontaneidadeeaoriginalidadeagorapassamaserdefinidascomomeioeinstrumento,enãomaiscomofinsemsimesmas:elasse tornam um insumo da produção capitalista como outro qualquer, servindoparadiminuirresistênciaseaumentaratolerânciadostrabalhadoresàsdemandascrescentesdocapital.

A criatividade passa a significar não mais descobrir um caminho de vidapróprio,esimsaber“gerirpessoas”eobteromelhorresultadocorporativo.Comos atributos de originalidade, espontaneidade e autenticidade, ocorre amesmacolonização e inversão do conteúdo. O capitalismo financeiro se vende comoemancipação e realizaçãoprática, apropriando-se da críticamais profundaquehaviasofrido.

Nessesentido,aredefiniçãodotrabalhoedomundosimbólicoéacondiçãonecessária para a intensificação e aceleração do processo de acumulaçãocapitalista sobo capital financeiro.Essemovimentoabre espaçoparaqueesteretomeototalcontroledomundoprodutivoedahegemoniaideológicanaesferasimbólica.

Para arrematar a estratégia de dominação total, a divisão das classespopulares é conscientemente explorada sob a forma da oposição entre asdemandas por redistribuição, típicas dos movimentos dos trabalhadores nosúltimos200 anos, e as demandaspor reconhecimentodeminorias identitárias.

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Defendendo estas últimas contra as primeiras, o capitalismo financeiro pode“tiraronda”deemancipadorenquantoexploraatodosigualmente.

Na esfera política, esse domínio se reflete no parcial desmonte do Estadosocialpeloenfraquecimentode suabase,ou seja,de suacapacidadedecobrarimpostos. Controlado por grandes bancos e fundos de investimento, o capitalfinanceiroconseguesonegar impostosemescalaplanetária, fazendodoEstadocobrador de impostos um Estado acumulador de dívidas. Incapaz de cobrarimpostosdosmaisricos,oEstadoéobrigadoapediremprestado,aospróprioscapitalistas, e ainda acrescido de juros, o que antes recebia como impostodevido.Esseéorealsentidodaglobalização.

O capitalismo financeiro vai não só assumir o comando do processoprodutivo, como também seopor ativamente a qualquer formadeorganizaçãodostrabalhadores.Alémdisso,controlaavidasimbólicapormeiodaaquisiçãodosórgãosdeimprensaedosmeiosdecomunicaçãodemassa.Passaamanteremxequetambémopoderpolítico,baseadonasoberaniapopular,promovendouma gigantesca reorganização da vida social. Toda a vida social é, assim,submetida ao objetivo mais importante que distingue o capital financeiro docapitalindustrial,ouseja,olucromáximonomenorprazopossível.

NoBrasil, o “meninode ouro” do capitalismo financeiro vai serFernandoHenriqueCardoso.Comooleitorealeitorairálembrar,FHCéoterceironomeda“santíssimatrindade”doliberalismoconservadorbrasileiro,aoladodeSérgioBuarquedeHolandaeRaymundoFaoro.Nahistóriadesselongoperíodo,desdeadécadade1930,emqueseconsolidaoliberalismovira-latanoBrasileabalelada corrupção restrita ao Estado como nosso problema central, FHC é o eloprático e político da ideia que logra se tornar hegemônica na prática. Pois, naverdade,nãofoinaépocadesuaprimeiraformulaçãoporSérgioBuarquequeoliberalismovira-latasetornouideiahegemônicaeumaespéciedesegundapeledetodobrasileiro.

Isso só viria a ocorrer após décadas de luta política e ideológica pelaconsolidaçãodessavisãodemundo,nadécadade1990,esobabatutadeFHC.ÉcomelequesecompletaolongoprocessoquecomeçanaRevoluçãode30e

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representa a vingança da elite então derrotada. Essamesma elite que até hojeencarnaosprincípiosdaRepúblicaVelha:manteroEstadocomoinstrumentodeespoliaçãoecomobancoparticulardaelite;e,poroutrolado,mitigar,combatere enfraquecer sempre que possível a soberania popular. Como é a soberaniapopular que por vezes põe alguém ligado às classes populares no Estado, éevidentequeograndeinimigodaRepúblicaVelharedivivaésempreomesmo:opovobrasileiro.

Na década de 1990, FHC põe em prática a mesma política da RepúblicaVelha.Reduzidoedesmontado,oEstadopassaacontarapenascomoorçamento,aserdivididoesaqueadopelaelitedeproprietários.Osistemadadívidapúblicaé um dosmecanismos principais desse saque à população indefesa.Omesmoorçamentoque,emmedidacrescente,éfinanciadojustamentepelosmaispobres,dadaanãoprogressividadedosistematributário.

No governo FHC, a taxa SELIC chega ao patamar recorde de 45%,propiciandoumatransferênciadescomunalderecursosdetodaasociedadeparao rentismo dominante. Isso sem contar a forte suspeita de estudiosos de quedívidasprescritas tenhamsidofraudulentamenteinscritasnocadastrodadívidapública.58Ouseja,oEstadovoltaaserinstrumentoderapinadaínfimaelitedeproprietáriosedosestratossuperioresdaaltaclassemédia.Nomesmoperíodo,aindústriacomeçaaperderopapelrelevantequeantespossuía.Paralelamente,aalta classe média, aproveitando o câmbio anti-industrial, volta a consumirprodutosimportadosbaratos,comonaRepúblicaVelha.

Há,portanto,aconsolidaçãodopactoagrário-financeiro,anti-industrial,queexistia naRepúblicaVelha, como apoio dos setoresmais abastados da classemédia que, graças ao câmbio favorável, podem voltar outra vez a se sentir“europeus”econsumirmanteigadinamarquesaevinhofrancêstodososdias.

No entanto, FHC consegue recobrir esse pacote arcaico com o reluzentepapel para presente do imaginário do novo capitalismo financeiro. FHCdesmontaoEstadoepromoveatransferênciaderecursos,viamercadoeEstado,do povo para a elite, “tirando onda” de campeão das minorias oprimidas e

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defensor abstrato, já que sem recursos ou políticas públicas, dos direitoshumanos.

Como no capitalismo financeiro em todo o mundo, a defesa abstrata dedireitosdifusosedasminoriastomaolugardaefetivadistribuiçãoderiquezaepoder. FHC é, assim, a República Velha agora repaginada pelo discursopseudoemancipadordocapital financeiro,ecomocharminhoparisiense, livre-pensante,desuaorigemuspiana.

Entãose tornahegemônicoodiscurso liberal-chiquedaaltaclassemédiaedeamplossetoresdamassadaclassemédia.Avisãoliberal-chique–daqualoministroBarroso,doSupremoTribunalFederal,é,hojeemdia,umdosarautos–combina uma postura avançada na esfera dos costumes com uma posiçãoconservadoranapolíticasocialeeconômica.EFHCfezissomelhordoqualqueroutro.

Assim, coloca-se como moderninho e avançado, assumindo posturaslibertárias–comoproteçãodeminorias,liberaçãodamaconha,proteçãoaomeioambienteoudefesadodireitoaoaborto–,desdequeadistribuiçãoderiquezaepoder permaneça intocada.A alta classemédia, comovimos, identifica-se porcompletocomessediscurso,assimcomo,aomenosemparte,amassadaclassemédia.

Aarmadilhaaquiéasubstituiçãodequestõesclássicaseseculares,comoadefesadostrabalhadoresedasclassespopulares–pormeiodaredistribuiçãoderiquezaeconômicaepodersocial–pelanovaagendadocapitalismofinanceiro.Oquesecritica,paraquefiquebemclaro,nãoéa legitimidadedetodasessasreivindicaçõesdeminoriasefetivamenteoprimidascomoindicaçãoderespeitoàautonomia e à liberdade individual.Ninguémcomomínimodediscernimentoseriacontrárioaessaagenda.

O problema é a separação das agendas redistributivas, com o consequenteenfraquecimento da reação política ao rentismo, o qual pode assim vender aexploração de todos em igualdade de péssimas condições como se fosseemancipaçãoreal.Comisso,FHCviraumaespéciede“egoideal”daselitesedas classes médias brasileiras, em especial da alta classe média: bem-falante,

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articulado, bem vestido e “quase europeu”, um poliglota que “não passavergonha”noexterior.

Na prática, ele realiza o ideário articulado por Buarque, Faoro e tantosoutros. Com ele, o ideário da elite paulistana se torna imaginário nacional,unindoaelitedeproprietáriosdetodoopaísecontandocomo“apoiopopular”daclassemédiaeuropeizadaemtermosdeestilodevidaepadrãodeconsumo.UmavezqueoPlanoReal,concebidoparaassegurarmargensreaisdelucroaorentismo, tevecomocontrapontodecurtoprazoaliviaropesodainflaçãoparaos assalariados, esse foi o primeiro e único discurso elitista que conseguiugranjear,aindaqueporpoucotempo,verdadeiroapoiopopular.

A alta classe média está, assim, no melhor dos mundos. A progressivasubstituiçãoparcialdatecno-burocraciadocapitalismoindustrial,dominantenaetapa anterior, pela camada dirigente do capitalismo financeiro propicia umaconfusão real e objetiva com a elite de proprietários, que se torna,crescentemente,impessoal.

Comoveremos adiantenos exemplosde trajetóriasdevida, é a alta classemédiaque,cadavezmais,passaaincorporaroCEOdasempresaseadefenderointeressedoconselhodeacionistasnomercadoenasociedade.Asubstituiçãodoproprietário pelo CEO se dá de modo generalizado no novo capitalismofinanceiro. Assim, o atendimento às demandas de lucro exponencial no curtoprazo pode ser premiado combônusmilionários a cada ano.A linha divisóriaentreaelitedeproprietárioseaaltaclassemédiasetornacadavezmaisfluidaededifícildistinção.

Domesmomodo, uma tendência geral amplia crescentemente a separaçãoentreaaltaclassemédiaeamassadaclassemédia.Paraaaltaclassemédia,ocapitalismo financeiro significa ascensão social e multiplicação de ganhos. Acombinação de capital cultural especializado e rede de relações pessoaiscapilarizadatornaessafraçãodaclassemédiapermeávelaosconstantesdesafiose novas oportunidades de negócios lucrativos. Trata-se de uma classeverdadeiramenteflexível,poispodesetravestirnaquiloqueédemandadoacadavezpelomercadoemqualquerconjuntura.

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Poroutrolado,nocasodamassadaclassemédia,oriscodeproletarizaçãoéreal por vários motivos. O desemprego estrutural no novo tipo de mercado,motivadopelaabsorçãodenovastecnologias,atingeempesoessesegmento.Ainformatização da atividade bancária é um bom exemplo. Nas burocraciasestatais,emtodososníveis,apressãoécrescentenosentidodesucatearserviçospúblicosedeprimirsalários.

Não obstante, a massa da classe média, como vimos em outras situaçõeshistóricas, tende a reagir de forma diversificada a esses desafios, mesmo quesejam comuns. É nesse segmento social que vamos encontrar o apoio àintervençãodoEstadocomoagenteregulador,bemcomooapoioàradicalizaçãofascista,devidoaotemoràproletarização.

Oambientemundialneoliberaldáforçaaoliberalismovira-latacujagênesejá examinamos em sua relaçãomultiforme com os diversos estratos da classemédia.Ocontextointernacionalajudadecisivamenteatransformá-lo,apartirdadécada de 1990, num discurso preponderante a ponto de não existir umcontradiscursoefetivamentearticuladoedesenvolvido.

AascensãodoPTaopoderdeEstadomostraessefatosobejamente.Aindaque tenha desenvolvido políticas sociais fundamentais em um país dedesigualdadetãoperversa,oPTofezsemqualquerdiscursoarticuladoacercadoqueestavafazendo.Odiscursoeraconstruídopelomarketingeleitoralemcadaeleição,masnãohaviaanarrativadeliberadadeumprojetonacionalalternativoaoprojetoliberalantipopular.

Adificuldadedelidarcomodiscursomoralistadefachada,desdeochamado“mensalão”, mostra o PT prisioneiro da mesma visão de mundo de suacontraparte, o PSDB. Nada se construiu em substituição ao projeto damestiçagem, como signo da inclusão das massas populares, como se deu nadécada de 1930. O PT é, afinal, filho do mesmo ambiente pseudocríticoconstruídoemSãoPauloparatornarinvisívelolastroliberal-conservadorequedepois,emdecorrênciadaforçaeconômicaeideológicadacidadeedoestado,tornou-sehegemônicoemâmbitonacional.

Se pensarmos não apenas na USP como fábrica desse liberalismo chique,

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masemtodaacadeiaprodutivadadominaçãosimbólica,podemoscompreendermelhorcomoacoisatodafuncionademodotãoeficaz.OlugarespecialdaUSPé fundamental, como principal universidade do país e modelo para outrasuniversidades, moldando num mesmo sentido a formação de todas as elitesnacionais.

Ela também influencia as escolas do ensinomédio e fundamental do paíscomumavisãodistorcidadomoralismopostiçoedasupostaherançaportuguesaenquantoproblemaprincipal, comovimos.NoestadodeSãoPaulo, inclusive,criançasindefesasaindasãoexpostasàmentiradeslavadadarebeliãoelitistade1932,alardeadacomosefosseumareaçãodemocráticaepopularaGetúlio.

Mesmo assim, não se compreende o mecanismo inteiro dessa distorçãosimbólicadarealidadeapenascombasenasescolaseuniversidadesenadifusãoacadêmica dessa visão elitista. É preciso compreender o processo inteiro, acadeiaprodutivacompleta,queinclui,alémdaUSP,deuniversidadeseescolas,tambémaimprensa,aculturaeaindústriaculturalcomoumtodo.

Nesse sentido, cabe examinar, por exemplo, a ação de jornais liberais esupostamente bem pensantes e mais plurais que os outros, como a Folha deS.Paulo, que, no essencial, repetem amensagem conservadora; ou as revistas“charmosas”, que publicam brilhantes reportagens investigativas, mas evitamdebatesmaispolêmicos;oueditorasqueseguemomesmofigurino.Essacadeiaprodutivasimbólicaédepoisreproduzidaemredesparalelaselocaisemtodoopaís.

Por aí se entende como funcionam os mecanismos de consagração doprestígioedaautoridadeintelectuais–aomesmotempoimitaçãoereproduçãodocharminhoparisienseeimpotentecomsedeemSãoPaulo.Étodaumacadeiade poder, prestígio e consagração simbólica que permite, ao fim, que ideiasadquiram um sentido chique de supostamente emancipadoras, quando naverdadenãopassamdelixoevenenopara98%dapopulação.

Tendo como fundadores arautos do liberalismo chique, o PT cresce nesseambiente e reflete demodo contraditório o veneno subliminar e antipopular –isso num partido que deveria defender a maioria oprimida. Os temas

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pseudocríticosdopopulismoedopatrimonialismovãofazer,porexemplo,queoPTseafastedaherançavarguistae,duranteboapartedesuaexistência,tambémdadefesadasmaioriasdesorganizadas(queseriamincorporadasporBrizola).OPTnasce, portanto, comomais umpartido domoralismopostiço da elite e setorna o partido da “moralidade na política”, atraindo assim setores de classemédiaedossindicatosorganizados.

OfatodeoPartidodosTrabalhadoresterdesenvolvido,apartirdocarismado ex-presidenteLula, o “lulismo”, na expressãomarcante deAndréSinger,59

comopolíticadeamparoaosmaispobresemarginalizadosdeve-semaisaotinoe à astúcia política do grande líder popular do que a um projeto partidárioarticuladoeconsciente.Alealdadeconquistadanessessetores,antesosgrotõesmais conservadores da política brasileira, foi o ganhomais duradouro de umapolíticaque,apesardevirtuosa,nãosoubemobilizarnemseproteger.

Apesardasconquistashistóricasnalutacontraadesigualdadeabissal,afaltadeumprojetoalternativodeliberadoexplicaboapartedacolonizaçãodopartidopopular pelo discurso elitista do moralismo de fachada. Explica também boaparte do seu comportamento errático e hesitante em questões fundamentais,como,porexemplo,emrelaçãoaoaparatojurídico-policialdoEstado.

Muitos, até pessoas inteligentes e argutas politicamente, não entendemclaramente este ponto. A maioria acha que basta ter um projeto econômicoalternativo emais inclusivo que, espontânea oumagicamente, as pessoas vãocompreender seu significado e seu benefício. Não se percebe a importânciacrucialdeelaborarumanarrativa,ouseja,umprojetoarticuladoalternativoaoelitista.Semtalprojetoconvincentedelongoprazo,nãosesabeemquesentido,porexemplo,reformaroEstado,oJudiciárioouapolítica.

Ainexistênciadesseprojetoalternativoimpossibilitaumataqueaonúcleodorentismo e da expropriação elitista, como corajosamente procurou fazer a ex-presidentaDilma.NafaltadeumprojetoarticuladoedeumaTVpúblicacomconteúdoplural, apresidentaviu-se forçadaadeixarqueaRedeGlobo,braçomidiático do próprio rentismo, explicasse a luta política à população nos seusprópriostermos.

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Sem um projeto político de longo prazo, é possível promover a ascensãosocialdesetoressociaisinteiros,comoparcelasdospobresedamassadaclassemédia, mas se perde a narrativa da paternidade deste esforço para igrejas eoutros atores sociais nas cidades doCentro-Sul. Semumprojeto articulado sefaz,também,lastbutnotleast,oserviçoparaoinimigo,comofezoMinistérioda Justiça da ex-presidenta Dilma, urdindo o aparato legal para as leis deexceçãoutilizadasmaistardepelosinimigosparagolpearaprópriapresidentaeademocracia.

Aindaassim,temmuitagenteboaquenãovêaimportânciadesearticular,pontoaponto,talprojetoalternativo.Obviamente,essaincapacidademostraatéque ponto somos dominados pela hegemonia dessa visão de mundo liberal-chique, que se torna, com o golpe, uma visão de mundo crescentemente“neoliberal-tosca”.

A sociedade não é inteligível a olho nu. Sua compreensão é complexa edesafiadoraparaqualquerum,sobretudoparaosleigosquenuncaaestudaram,embora imaginem, apenas porque dela participam, que entendem seusmecanismoscomplexos.Semumprojetoalternativoclaroedelongoprazo,fica-serefémdasconjunturasedosacordosdeconveniência,comoocorreucomoPTemdiversasocasiões.

Nessecontexto,aquestãorealnãoéporquehouveogolpe,esimporqueelenão aconteceu antes. Foi essa fragilidade simbólica que facilitou o golpe de2016.OmoralismopostiçodaRedeGloboedaLavaJatocampeoupraticamentesem oposição discursiva e articulada que pudesse denunciar a trama no seunascedouro.Comofoidito,nopróprioMinistériodaJustiçadapresidentadepoisdepostamontou-seo arcabouço legal que funcionaria comocortinade fumaçaparaoataqueàdemocracia.

Boapartedaclassemédiaentrouno jogodecartasmarcadasdacorrupçãoseletiva.Aaltaclassemédia,algunspoucosmilhõesdebrasileirosnosgrandescentros, sobretudonacomparativamentemais ricacidadedeSãoPaulo,entrouna trama, em parte por motivos racionais, ou seja, economicamentecompreensíveis. Afinal, como se viu, ela ganha com o rentismo e a nova

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configuraçãoflexíveldomundosocialeparticipadosaqueeconômicoao ladodaelitedeproprietários.Nesseestrato,aimbricaçãocomaeliteeseusinteresseséreal.

Asituaçãodamassadaclassemédiaédistinta,poiselatemmuitoaperdercom o ataque ao intervencionismo estatal como mitigador de um mercadofinanceiro que rapina a economia popular e destrói a frágil rede de serviçospúblicosemconstrução.Cercade40%dadesigualdadesocialdeve-seaoacessodiferencialaserviçospúblicos–eistonadatemavercomarendafamiliar.Paraamassadaclassemédia,ainvestidadocapitalismofinanceirocontraoSUS,afim de vender planos de saúde de bancos e fundos de investimento, temconsequênciasimportantes.Oserviçoépioreocustoémaior.

Omesmoacontececomoataqueàsuniversidadeseaosistemadeciênciaetecnologia. A massa da classe média precisa da universidade pública dequalidade para que seus filhos tenham condições de competir nomercado detrabalho.Aaltaclassemédiapodemandare,naverdade, jámandaseus filhosparauniversidadesestrangeiras.

Issosemcontaroaumentodaviolênciaedadesigualdade,adegradaçãodascondições de vida social em todas as dimensões e o empobrecimento e odesempregoestruturalquepassamaatingirempesotambémamassadaclassemédia. Como saúde e educação são bens que todos precisam e valorizam, ocapital financeiro vai sucatear a prestação pública de serviços de qualidadeprecisamentenessasáreasafimdevendersaúdeeeducaçãopelosolhosdacara.AEmendaConstitucional95,porexemplo,veiopararealizaresteserviçosujo.

Expostaàaçãodeletériadamídia–oatualbraçoarmadodeumaelitequeantes recorria a jagunços e hoje usa amentiramidiática como instrumento dedominação –, a massa da classe média se divide em campos opostos. Essaoposiçãoésemelhanteàexistentenoperíodoposterioràdécadade1930,quandose digladiavam nas ruas integralistas e simpatizantes da esquerda e daintervençãoestatalnasociedade.Namassadaclassemédia,muitos,emespecialos estratos mais ameaçados de proletarização, se voltam agora ao voto doprotestodesesperadoeirracional,queébemosignificadodoapoioaBolsonaro.

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Comoascausas reaisdoempobrecimentonãosãocompreensíveis–aquiamídiacumpreseupapelmaiscanalha–,oprotestoassumeaformadaviolentarejeição ao pacto democrático e seus pressupostos humanitários, percebidoscomoacausade todomal.Dianteda invisibilidadedaviolênciaeconômicadaelite,oquesobraéaidentificaçãomaisrasteiraesuperficialdeuminimigoquepermiteaexternalizaçãododescontentamentoedodesespero.

OconluioentreRedeGlobo,àfrentedamídiavenal,eaOperaçãoLavaJatoconseguiu solapar as bases normativas da vida democrática, banalizandovazamentos ilegais e agredindo criminosamente a presunção de inocência.Quandoseatacaonúcleonormativodademocraciaedodireito,oquerestaéaviolênciaaberta.Oêxitodesteataquepodesermedidonaatualpreferênciademuitos,namassadaclassemédiaenasclassespopulares,pelocandidatofascistaeantidemocrático.

Umaparceladamassadaclassemédia,aocontrário,seengajounumacríticaao processo de golpe, emuitos se arrependem de terem se deixado usar pelamanipulaçãomidiática.Algumastrajetóriasdevidaestudadasaseguirmostrambemessefato,queabreumaoportunidaderealdeaprendizadocoletivoporpartedesteestratosocial,atémesmoparaacríticadodiscursoelitistahegemônico.

Essequadromostraquantoaclassemédiaédiversificadaepossuidentrodesi todas as gradações de sensibilidade política e social. Um sintoma daabrangência dessas colorações possíveis é a preferênciamuitas vezes divididaentreBolsonaroeLula,refletindoanovadivisãodopaíscomoumtodo.

Esse ponto nos ajuda a compreender a verdadeira diferença entre nossasociedadeeaquelas,maisigualitárias,queadmiramos.Emboraosmotivosdessadiferença não sejam os do culturalismo vira-lata que até hoje a explicou, estaexistedefato,mesmonadistinçãoentreasclassesmédiasbrasileiraseasdessassociedades.

Alémdeoprivilégioestético–quepermitelegitimaradistinçãosocialdasclasses do espírito em relação às classes do corpo – não possuir, entre nós, ocontrapontodeumaesferadadignidadeuniversalizada,tambémomitonacionalajudaaconsolidaropassadoescravocrataedesigual,eatacainsidiosamente,por

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dentro,apretensãodeumaesferadadignidadeuniversalizável.Aoestigmatizaro Estado e a política, o mito nacional dominante enfraquece precisamente asdimensõesquesãofundamentaisàuniversalizaçãodedireitos.

Nassociedadesmaisigualitárias–aindaqueahierarquiasocialbaseadanapersonalidadesensívelproduzaefeitosperversosaoconstruira“solidariedade”entreosiguaiseo“preconceito”contraasclassessociaisexcluídasdanoçãodesensibilidade –, o patamar de dignidade continua existindo. A dimensão dotrabalho produtivo e útil para a sociedade produz não só autoestima eautoconfiançaentreostrabalhadores,masreconhecimentoeapreçodasociedadecomoumtodo.

NoBrasil, ao contrário, o desprezo ao trabalhomanual, semiqualificado edesqualificadoquesedevotavaaoescravoperduranaatual sociedade.Paraosestratosdaclassemédia,sobretudodesuamassa,ameaçadadeproletarização,aviolênciafascistapassaasertentadora.Comoessessetoressão“meritocráticos”,aalternativaseriaadeveremasipróprioscomo“fracassados”eculpadospelopróprio fracasso. O fascismo permite “exportar” a agressividade que seriadirigida contra si mesmo – levando ao alcoolismo e a outras formasautodestrutivas–paraumbodeexpiatório.Nocaso,oantipetismocevadopelaimprensavenal.OmedoqueapredileçãoporBolsonaroexpressaéomedodadesumanização,umlegadodaescravidãoqueaindamarcaacondiçãoproletáriaemarginalnoBrasil.DescerdeclassenoBrasil,paraessepessoal,édeixardesertratadocomo“gente”.Daíaforçadapregaçãofascistaentrenós.

A elite da rapina social, sem discurso convincente e com dificuldade deconsolidar um candidato próprio, logrou, por outro lado, dividir a massa daclassemédiaedasclassespopulares.Paratanto,recorreuaoseuúnicodiscurso,velho de 100 anos: a corrupção seletiva só dos inimigos políticos. AcriminalizaçãodoEstado,comopatrimonialecorrupto,é,naverdade,oúnicodiscursodaselitesnasualutapelahegemoniasocial,tendocomocontrapontoomercadovirtuoso,transformadoemparaíso.

Como a espoliação das classes populares e damassa da classemédia pelaelitenãopodeserexplicitada,acriminalizaçãodoEstadoedapolíticapermite

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retiraraúnicaarmadedefesaeficazdessasclasses.Trata-seaídeumcasotípicode moralização da opressão, pela qual se retira do adversário de classe,explorado economicamente, a própriapossibilidadededefesapolítica emoral.Comotempo,essediscursosetornahegemônicoapontodeaprópriaesquerda,quedeveriadefenderasclassesoprimidas,passar,aomododosamurai,aenfiarnopróprioventreafacadomoralismopostiço.

Assim, se a fonte moral da ética do desempenho, aqui chamada de“dignidade”,sejuntacomafontemoraldoexpressivismoparacriaroconjuntotensional e contraditório que guia a nossa vida no capitalismo moderno, umpapel decisivo tambémédesempenhadopelomitonacional dominante.Vimosque todas as sociedades, até as mais igualitárias, possuem um aspecto delegitimaçãodadesigualdade,disfarçadapelamáscaradobomgostoestético.

Comotodaestéticatemumamoral,ouseja,serveparahierarquizarpessoasemmaisoumenossensíveis,oprivilégioestético–sejareal,compradoouumacombinaçãodeambos–cumpreumatarefadelegitimaçãodadesigualdadeque,porseropacoesutil,émuitomaiseficaz.Asutilezaresidenofatodequeestágarantida a estrutura de direitos universais exigida, pela ética do desempenho,paratodososquecontribuemparaobemcomumeotrabalhosocial.Mesmoquetal estrutura esteja cada vez mais ameaçada pela antropofagia neoliberal docapitalismofinanceiro.

Nestecontexto,osmitosnacionaisdepaísescomoaFrança,aInglaterraouaAlemanha ajudam a garantir o mínimo civilizacional assegurado pelauniversalizaçãodedireitosdaéticadodesempenhooudadignidade.NaFrança,atradiçãoderebeliãodasclassespopularesfoiconsagradanaRevoluçãocomoomito fundador do país e de sua solidariedade nacional. É isso que confereorgulho aos franceses. O mesmo se dá com os alemães e sua comunidadenacionaldesangueeespírito.NaInglaterra,équasemilenaranoçãodequeosinglesestêmdireitosinalienáveis.

Aindaqueestejamossobaégidedosmesmosprincípiosmorais,comotodasociedade capitalista moderna, o nosso mito nacional vira-lata predominanteimpedequeauniversalizaçãodadignidadeseconstruacomovalorefetivo.Sea

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ética do desempenho confere dignidade universalizável, ainda quecontrabalançada pela hierarquia “invisível” que a noção de personalidadesensívelmaterializa,arelaçãoentreessasdimensõesédiretamenteafetadapelomitonacionaldominante, ou seja, pela formacomoa sociedade sepercebedemodomaisoumenosconsciente.

Assim, a luta cultural e política pela hegemonia da forma dominante pelaqualsepercebeasociedade,emcadamitonacional,éuminstantedecisivoparaqualquer sociedade. É um elemento fundamental de seu processo deautoconhecimento,tantoquantoédecisivooprocessodeautoconhecimentoparacadaindivíduo.

O nosso mito hegemônico, talhado com precisão de alfaiate para osinteressesdaínfimaelitedeproprietários,nasceuassimparatornarimpossívelauniversalização da ética do desempenho e da dignidade para o conjunto dapopulação,comoocorrenaFrança,naInglaterraounaAlemanha.

Nesseprocessoéqueseformaumaaliançadeclasseantipopularentreaelitedeproprietárioseaaltaclassemédiaquejádura100anos.Elaébaseadatantonaexploraçãoeconômicacomonahumilhaçãocotidianadasclassespopulares.Esseéodadoarcaicoeatrasadodasociedadebrasileira,queimpedeopaísdeserpujanteeigualitário,apesardetantasriquezasnaturais.

Cabeanósrefazerestedestino,eestaéumaresponsabilidadequenadatemnada a ver com algum vírus cultural da corrupção ibérica e cultural quesupostamente teríamos herdado, como nos têm dito nossos intelectuaiscooptadospelospoderosos.

Dessemodo,saberquemsomosdeverdadeéoprimeiropassopararetomarumcaminhoquefoiconstruídoporgentee,portanto,podeserrefeitoporgente.Nesse sentido, a classemédia e suas frações têm um poder inédito entre nós.Para onde elas se inclinarem, toda a sociedade,muitoprovavelmente, tambémvaiseinclinar.Aaltaclassemédiaéaverdadeiradelegada,emnomedaínfimaelite incapaz de incorporar ela própria todas as funções de comando, para oexercíciodadominaçãosocialemtodasasdimensões.

Mas,poroutrolado,amassadaclassemédiatemapossibilidadedeser,num

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paístãodesigualecomclassespopularestãoperseguidasedesmobilizadas,umimportante vetor de mudanças sociais, como foi no passado. Oautoesclarecimento é um passo fundamental nesse desiderato. Se deixarmos ocomandodopaísnasmãosdaelitedoatrasoedaespoliação,corremosoriscode,embreve,nãotermosnenhumfuturo,nãosóparanossosfilhosenetos,masparaanossaprópriageração.

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TRAJETÓRIASDEVIDA

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Q

Aaltaclassemédia

uando nos recusamos a aceitar o ponto de vista míope e simplista quereduzomundosocialesuasdiferençasapatamaresdiferenciaisderenda,

constatamos a existência de um tipo de classemédia comumente associado àeliteporsinaisexterioresderiqueza,queganhamuitodinheiro–comonocasodoCEOdeumbanco–eentranessacategoriaporcontadesuaorigemfamiliar,dotipodecapitalincorporadoedomododevida.

Ainda que as fronteiras entre as classes sejam sempremuito fluidas, comcaracterísticasquesemisturamnarealidadeconcreta,écrucialsaberdistinguirentre,deumlado,ofuncionáriobempagodocapitale,deoutro,aincorporaçãoenquantotaldocapitaleconômicorepresentadapeloproprietário.

Sérgio:oCEOdeumbancoexplicacomosecompraomundo

SérgionãoéumCEOqualquer.Muitointeligente,culto,leitordepsicanálisenashorasvagas–amulherépsicóloga–,eleédessaspessoasquetêmprazernumasinceridadedesconcertante.Sérgiotinhaplenaconsciênciadequemeraedoquefazia. Se no passado teve algum problema com isso, agora não deixavatransparecernenhumincômodo.

Desde a adolescência, ele era grande amigo de João Carlos. Filho de

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banqueiros, havia acumulado fortuna própria na década de 1990, durante ogoverno de FHC, administrando fundos de investimento estrangeiros queganharam uma grana preta com as privatizações levadas a cabo no período.SegundoSérgio, JoãoCarloscomeçoucomoumhábil representantedebancosestrangeiroseabriuinúmerasportasdeinvestimentoparaosparceirospormeiodesuasrelaçõesnosmeiosfinanceirospaulistanos,bemcomonopoderpolíticoe noPoder Judiciário, tanto emBrasília como emSãoPaulo.Lucrou tanto seutilizandododinheiroalheioquefundouoprópriobanco.

Nessa época, Sérgio frequentava uma faculdade de Direito nos EstadosUnidos. Depois passou um ano em Londres, estudando finanças e ciênciapolíticae,porindicaçãodeamigosdopai,estagiandonumescritórioquelidavacom o mercado financeiro. Morou também em Sevilha, na Espanha, ondedescobriusuaáreajurídicadepredileção:odireitoadministrativo.

Noiníciodosanos2000,quandovoltouaoBrasildepoisdequatroanosdepós-graduaçãonoexterior,compoucomaisde30anos,oamigoJoãoCarlosjáera um multimilionário por “esforço próprio” e apenas naquele ano tinhaganhadomais dinheiro do que o pai durante toda a vida.Como o negócio dobanco–aliás,odetodososbancoshojeemdia–dependiadaintersecçãoentremercadoeEstado,Joãoprecisavadealguémdeconfiançaparacuidardapartejurídica, antes terceirizada em diversos escritórios. Sérgio recebeu então cartabranca paramontar sua equipe de trabalho. Hoje o departamento jurídico é ocentronervosodobanco,comtudopassandopelasmãosdeSérgio,eocupaumandarinteirodeumprédiomoderno,decoradocomluxoebomgosto.

Quandolhepergunteiqualeraseutrabalho,Sérgionãotitubeou.

O João é o gênio, sabe onde estão o dinheiro e as oportunidades, pensanissootempotodo.Eusófaçocompraraspessoasnecessáriasparaqueascoisasaconteçamcomoelequer.Nãofuieuqueinventeiomundocomoeleé,sóprocurosobreviverdamelhormaneirapossível.OmaisimportantenoDireito é conhecerosmeandrosda linha cinzenta entreo legal e o ilegal.

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Meutrabalhoéexpandiraomáximoamargemdalegalidadeaserviçodosinteressesdobanco.

Comojáexistetodaumalegalidadeparalelaquecuidadosinteressesdosetor financeiro,meu trabalhoé fazercomqueonossobanco fiquecomomelhor pedaço da torta. Nossa equipe tem mais de vinte advogadosescolhidos a dedo e bem pagos. Mas eles fazem o ramerrão do trabalhojurídico.Odiaadia.Eufaçooscontatoscomjuízes,políticosejornalistasecuido dos clientes estrangeiros. Com o serviço jurídico, no sentidotradicional,meutrabalhonãotemnadaaver.Émaisgestãodeclientes,dara eles o que querem, dizer o que querem ouvir, beber o que eles querembebereserdiscretoesóbrioemtudo.

Eoqueelesquerem?

AquiemSãoPaulooquemovetudoéodinheiroe todomundoquerviverbem. As pessoas são compradas com dinheiro vivo e com depósitos emparaísosfiscaiscriadosparaisso.Agentesabefazerbemfeito.Semdeixarrastro.Acidadeétodacomprada,nãoseiluda,todalicitaçãopúblicaetodonegóciolucrativo,semexceção,érepartidoenegociado.

Todomundo tem um preço. Até hoje não conheci quem não tivesse. Epara todo negócio é necessário uma informação privilegiada aqui, umamigonoBancoCentralali,umasentençacompradaaliouainfluênciadeumministroemBrasíliaacolá.

Alémdacompradireta,emdinheirovivooudepósitonoexterior,agentetem que paparicar constantemente os caras. Uma forma eficaz são ospresentesconstantes,semaexpectativaimediatadecontrafavores.Issogerasimpatia.Àsvezesvocêganhaatéum“amigo”.

Todo mundo adora vinhos caros, e as mulheres desses caras adoramessasbolsasquecustam50,60mil reais.Seéalguémcomconhecimentostécnicos,vocêpodepromoversemináriosepalestras,epagarmuitoalémdo

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que se paga nesse tipo demercado. Para cada tipo de cliente e de genteexiste um jeito mais conveniente de comprar sem parecer que estácomprando.

Não fazemos isso em troca de um serviço concreto. Isso é muitoimportante. O que construímos é um círculo de amigos. Temos uma listagrande de pessoas que simplesmente presenteamos no aniversário e emdiversas outras ocasiões, ano após ano. Presentes bons e caros. Nãoeconomizamos nisso. Aí, quando você precisa, pode contar com a boavontadedocara.Issoéoquechamodecriarrelaçõesdeconfiança.

Eopagamentodiretoporserviçosespecíficos?

Obviamente isso tambémexiste.Aípagamosemparaísos fiscais,pormeiode transferências sucessivas entre dezenas de empresas de fachada, de talmodoquenemSherlockHolmesconseguerefazerocaminhooriginal.

Hoje em dia existemmeios ainda mais eficazes de eliminar os riscos,masesteénossopulodogato,enãopossolhecontar.Masnãoficarastro,posso assegurar. Esta, afinal, é a nossa mercadoria: a segurança noinvestimento.E,sendoumbanco,tudoficamaisfácil.Nãoésónocasodonossobanco:todososbancos,inclusiveosmaiores,fazemamesmacoisa.

A mina de ouro de qualquer banco comercial ou de investimento é oBancoCentral.Alisóentragentenossa.EopaíségeridoapartirdoBancoCentral, que decide tudo de importante na economia. É lá que a zonacinzenta entre legalidade e ilegalidade define a vida de todos. Isso nãoapareceemnenhumjornal.

Podemos fazer qualquer tipo de especulação como câmbio, como nosswaps cambiais, por exemplo. Se der errado, o Banco Central cobre oprejuízo.Nãoexistenegóciomelhor.Sedererrado,ofamosoEráriopagaaconta. Quem controla toda a economia somos nós e a nosso favor, oCongressonemapitasobreisso.Quando,muitoeventualmente,decidesobre

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algo, apenas assina o que nós mandamos, essa é verdade que ninguémconheceporquenãosaiemnenhumaTV.

Claroque tudoé justificadocomomecanismodecombateà inflação,enãoparaenriquecerosricos.Paraquemvêissotudofuncionarapartirdedentro,comonomeucaso,éatéengraçado.

Essa é a estrutura legalizada pela opacidade doBancoCentral e da dívidapública.Maseosnegóciosilegaismesmo?

Nãoexistenegócioquenãosejaintermediadoporumbanco,sejalegalouilegal. Essa história de operador e doleiro é coisa da Lava Jato e daimprensa para desviar a atenção da participação dos agentes financeiros.Os bancos são completamente blindados porque inventaram um meioinfalível de distribuir dinheiro para quem já tem muito poder e dinheiro.Falamdetodomundomenosdenós,quecomandamostudo.

Paramim,aíéqueestáopoderreal,opoderdodinheiro.Naverdade,sãoosbancososoperadoreseosdoleiros,etodoodinheirosaidebancos,sejadinheirolimpo–narealidade,sempredinheiroquefoitornadolimpo–,sejadinheirosujo.Anãoserquevocêfabriquedinheiroemcasa.

Aliás, parte do lucro dos bancos vem de lavar dinheiro e intermediartransações. Mas o grosso da grana vem do Banco Central, dasremunerações de sobras de caixa – que são ilegais, mas sobre as quaisninguémdiznada–,dasoperaçõesdeswapcambial,dostítulosdadívida–enfim, o Banco Central é nossa mãe. É tudo escancarado, mesmo cominflaçãozeroeopaísnaruína.

Nosso lucro é legal, ou seja, legalizado, já que somos intocáveis eninguém se mete conosco. Boa parte dos juízes e ministros de tribunaissuperiores,comotodomundonomeiosabe,advogamporinterpostapessoa,enóssomososprincipaisclientesdealgunsedequempagamelhor.Sãoosbancos que pagam as eleições do Congresso quase inteiro. Aí você pode

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legalizar qualquer coisa, qualquer papel sujo que a gente mande aoCongresso os caras assinam. Nesse contexto, onde se pode tudo, asoperações abertamente ilegais são uma parte menor dos lucros, masobviamenteexistem.

Se ninguém imprime notas de dinheiro no quintal, é óbvio que todo odinheiro,inclusivetododinheirosujo,vemdosbancos,queretirampartedoseu lucro real intermediando essas relações e lavando esse dinheiro. Osbancoscontrolamoquevocêvaifazercomodinheiroetododinheiropodeserrastreado.

Todatransferênciabancáriatemumchipe,sevocêquisersaberdeondeodinheirovem,dáparasaber.Inclusivenastransaçõesinternacionais.Seatransferência é em dólar, tudo passa porNova York e recebe um número.Mas ninguém quer saber, essa é a verdade. Como os bancos mandam naimprensa,nosjuízesenospolíticos,aintermediaçãodetododinheiroilegaljamais é denunciada.E se for denunciar, você é que acaba preso. Isso eugaranto.

Comofuncionamandardinheiroparapropinasnoexterior,porexemplo,paracomprargenteemAngola,nacompanhiadepetróleo?

Vocêligaparaopresidentedeumbanco[ecita, testandominhareação,onomedopresidentedeumgrandebanco]eperguntaqualacomissãodeleparafazerremessa.

“Assim, na cara de pau?”, pergunto. “E como você acha que funciona?”,indagaSérgio,rindoesedivertindocomminhasurpresa.

Lembra daquelasmalas doGeddel?Como você acha que aquele dinheirochegou naquele apartamento? Dinheiro não dá em árvore. Quem tem a

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possibilidade de fazer o dinheiro circular de um lugar para outro são osbancos,maisninguém.

Nãohánenhumcasodecorrupçãoemqueodinheironãovenhadeumbanco.Ouseja,osbancossãoosintermediários,sempre.Aimprensanuncatocanissoporqueétabu.Afinal,aimprensaénossa.

Comoassim?

Voulhecontarumcaso.Assimquechegueinobanco,oJoãoCarlosestavacomproblemascomumjornalista,metidoainvestigador,quepublicavatododia umanotinha chata sobre negócios nossos aqui emSãoPaulo.O Joãoofereceumilhõesaocaraparaapoiarprojetosdele sealiviasseapressão,masocaranãoaceitou.Foiumcasoraro,poiseraumagranae tantonaépoca.O que fizemos?Compramos o jornal, um dosmaiores doBrasil, edemitimosofulano.

Agoradecidimosoquesaiounão,poissomososdonosdojornal.Nãoprecisamos pedir nada a ninguém. O jornal é literalmente nosso. Toda aimprensahojeemdiaéassim,deummodooudeoutro.Ouelesdevemosolhosdacaraaosbancosouosbancossãoosdonosdiretamente.Porissonão sai nada na imprensa contra os bancos. A imprensa é toda nossa:televisão,jornais,internet,oquevocêpensar.

Ecomospolíticoseosjuízes,comofunciona?

Com os políticos você paga a eleição do cara e o que sobrar, se sobrar,porquetodaeleiçãoémaiscaradoqueseimaginadeinício,eleembolsa.Aícobramos emontamos a agenda do cara.Ou então pagamos por serviço,como expliquei, normalmente uma parte em dinheiro vivo e outra emdepósitosigiloso.Àsvezes,numcasoououtromaiscomplicado,queprecisa

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ser resolvido para os negócios andarem, você faz umdepósito no exteriorparaváriosaomesmotempo.

A coisa funciona domesmomodo emBrasília e em SãoPaulo, e comtodosospartidospolíticos.AquiloqueaquelemalucodaOdebrechtfez,aocriar um departamento de propina, todo banco tem, é como os negóciosandam,nãotemoutrojeito.Masagentenãodeixarastrocomofizeramessesmalucos.Ninguémé“santo”[referindo-seàsupostaalcunhadeAlckminnolivrodaOdebrecht],podeacreditar.

EcomoPoderJudiciário?

Com os juízes os presentes funcionam que é uma beleza. O cara terminaincorporandoaosalário–afinal,éamaniadeles.Acoisaquemais irritaumjuizésaberqueumadvogadoganhamuitomaisdoqueele.Naverdade,quandooadvogadoémuitorico,podetercertezaquetambémenfiaamãonamerda.Comoadvogado,paraenriquecerdeverdade,vocêtemquesabercomprarpromotorese juízes,alémdeadvogadosdeoutrasempresas,paraqueescolhamoseuescritórioquandohouvernecessidade.ALavaJatoestácheiadisso.Canseideverumcolegafodendoooutroparadepoisficarcomacontadaempresa.Talentomuitagente tem,masconstruirumcírculodepoder e dinheiro e saber gerir isso,mesclando cuidado e ousadia, poucossabem.

Éporsaberemdissoquemuitosjuízesficamputoscomodinheiroqueoscaras ganham. Sempre achamquemerecemganhar aindamais do que osadvogadosmais bempagos, porque os riscosmaiores seriamdeles, e nãodosadvogados.Masaverdade,etodomundosabe,équeamaiorpuniçãoque um juiz recebe é aposentadoria compulsória, emesmo para chegar aissotemqueaprontarummonteefazermuitomalfeito.

Ecomovocêsrecompensamosjuízes?

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Éumpoucodiferente,porqueoscarassãomuitovaidosos,algunsseachamintelectuais.Quandoocaraémuitovaidoso,omelhormétodoépagarumapalestracom100,200ou300milreais,eaindafazocaraseconvencerdeque é por sua cultura jurídica.Ou fazemos seminários internacionais comgrandesjornaiserevistascomentandoefotografando–aíelespiram.Nessemeio, você temque saber comprar a vaidade dos caras, fazer comque sesintammais importantes do que são. Ou então compramos diretamente asentença.

Vocêperguntaopreçodasentençaepaga,assim,nacaradepau?“Comovocêachaquefunciona?”,retrucaSérgio,sempresedivertindomuito

porestardandoaulasdesociologiapráticadavidareal.

Voulhecontarumcasoquevaifazervocêentendercomotudofunciona.OJoãoqueriaabrirumacasanoturnaemFlorianópolis,sóparasedivertir.Odiabo é que encasquetou de construir a boate num lugar que era área deproteçãoambiental,oMP[MinistérioPúblico]localencrencoueahistóriavirou uma pendenga judicial. Aí tive que ir lá para acertar com o juiz.Quandodeixeitudocombinado,oJoãomandouumaloura–quefoifavoritadele durante um tempo e depois passou a trabalhar com a gente, dessasmuitobonitasede1,80dealtura,comosótemnoSul–levar,numabolsagrandedessasdemarca,ummilhãodereais,misturandoreaisedólares.

AordemdoJoãofoimaisoumenosassim:“PõeaquelevestidovermelhojustinhodaArmanique tedei,entregaamalae fazo juiz feliz.”O fulanopassouumfimdesemanacomaloura, ficoucomodinheiroeamala,eoJoão construiu a boate bem onde queria. É assim que funciona com oJudiciário.

Masnãofoiumaexperiênciaagradável,vouconfessar,jáqueamoçafoihumilhada de ummodomeio violento. Fomos ela e eu levar a mala comdinheirovivoparaojuiz.Começamosadiscutiromodusoperandi jurídico

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docasocomojuizemaisdoisauxiliaresnaprópriasaladojuiz,depoisdoexpediente.

Betina,eraassimqueamoçasechamava,eraestudantedeDireitoedevezemquandoarriscavaumpalpitesobreocaso.Acertaaltura,o juizseirritouedissequeelanãoeraadvogada,masputa,eestavaaliparaoutroserviço. Namesma hora, botou o pau para fora, naminha presença e deoutrosdois,emandouamoçachupar.

Depois mandou que fizesse o mesmo com os dois funcionários. Emseguidaentraumterceiroassistente,todosobviamentedeconfiançadojuizedesuaequipe“privada”.Aoveramoçaaindade joelhose jácomobelovestidomeiorasgado, lançaumolharentredivertidoe intrigadoàcena,eentãoojuizointerpela:“Quertambém?”Atocontínuo,amoçacumprepelaquartavezomesmoritual.Essepessoaladoraumabuso,quasetantoquantodinheiro.

Asmulheressempreparticipamdessejogo?

Nem todo mundo gosta de misturar putaria e trabalho, mas se você forcarenteecairnessa,estáfodido.Aíficanamãomesmo.Eodiaboéqueoquemais existe é gente carente afetivamente, que sem perceber cai nessaarmadilha. Eu, por exemplo, não participo. Como tenhomulher parceira,não tenhoeste tipode carência.Nãodigoquenão tenhaparticipadoumavezououtra,nessesquase20anosemquetrabalhoaqui,masnãoéaminhapraia.

Mas tem muitos que gostam. Os estrangeiros, por exemplo, adoram.PasseiumanoemLondrestrabalhandocomoestagiárionaáreajurídicadomercadofinanceiroe láaputariaémaispesada.Onde temmuitodinheirotemmuitaputaria.Pesadamesmo,todotipodecoisaquevocêforcapazdeimaginar.Tipoalugarcastelodo séculoXVIIparaum fimde semanacommuitadrogaemuitafestaparatodotipodegosto.

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Afinal,todasasmáfiasdomundoestãoporlá,russos,árabes,africanos,brasileiros.Londreséumagrandelavanderiaatrásdafachadadarealeza.Comparadoscomeles, somosamadores.MasoJoãosabe fazeresse jogo,não é nenhum amador. Por exemplo, para funcionar, não pode parecerputariabarata,eoJoãoéumgênionessejogo.

Outro dia tivemos um cara, um norueguês, da companhia de petróleodeles.Ocara sabe tudodeprospecçãodepetróleo.OJoão se encarregoupessoalmentedearmarafesta.EletemumailhaemAngrasóparaisso,comheliportoeum iate lindo.Tudoencobertopelamataatlântica,privacidadetotal.Éumfimdesemanadesonho.

Agentetemde15a20mulhereslindas,quepodemoschamaraqualquerhora,algumasganhampresentescarostodososmeses,outrasagentepagamesmo,enenhumadelasvocêdiriaqueéputa.Sãolindas,elegantes,sabemconversar, usam roupas caras, se comportam e não destoam em nenhumambiente.Algumasvocêdeve conhecer, aparecemna internet,mas isso eunão posso contar. O norueguês, por exemplo, ficou tão louco que querialevarumadelasparaaNoruega.

O João aproveita e chama ainda um juiz, um político, um amigo domercadoouumprocuradormaischegado,chamatambémalgunsdaquidobanco mesmo, que sabem criar o ambiente mais relaxado e agradávelpossível, tudo para criar um clima de festa normal. O segredo é forjar“amizades”.Àsvezesmontamosnegóciosinteiroscomtodososinteressadosparticipando, mas sem parecer negócio, como se fossem amigos sedivertindo.

Você tem que sabermisturar emontar para parecer diversão entre os“parça”,entende?Láasmeninassabemfazero trabalhodomelhormodopossível. Tudo parece a coisa mais natural do mundo, como uma festanormal e animada entre conhecidos. Nisso de criar uma relação deconfiança,oJoãoéimpagável.Eusófaçoomeiodecampo.Oastroéele.

Ecabeavocêcompraraspessoasparaosnegóciosandarem?

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Quemexistenestemundoquenãoécompradodealgumaforma?Compraralguémbemcompradonãoenvolvesódinheiro.Vocêtemquecomprarumarelaçãodeconfiança.Semisso,todoodinheirodomundonãoconta.Eissoéumtalento.

JoãocostumadizerquequemmandanoBrasil,aelite,nãosomamaisdoque800pessoas,equeeleeeuconhecemoscadaumadelas.Dessas800pessoas,600estãoemSãoPaulo,100emBrasíliae100norestodoBrasil.Temosumarelaçãoexcelentecomboapartedessepessoal,ediriaque,compelomenosumas100dessas800pessoas,temosumarelaçãodeconfiançaconstruídaaolongodosanos.

Umbanco,comoqualquerempresa,vivedeoportunidadesdenegóciosque a conjuntura econômica e política cria. Se você é realmente um bomempresário,nãopodeficarapenasesperandoqueaoportunidadesurjacomaconjuntura,poisaívaitermuitosrivaiseconcorrentes.

Um bom empresário ou banqueiro é o que percebe a oportunidadequandoelaaparece.Massevocêémuitobom,melhorqueosoutros,comonocasodoJoão,entãovocêtemquefazercomqueaoportunidadeaconteçasóparavocêouquevocêpossaaproveitá-laantesdosoutros.

Este é o segredo do nosso negócio. Se deixa passar uma janela deoportunidade,vocênãoébomnoquefaz.Masnóssomosmuitobonsnoquefazemos. Nós criamos a oportunidade de tal modo que ela caia no nossocolo. Para isso servem as relações de confiança cultivadas ao longo dosanos.

Antônio:ogerentedacadeiadelojasealutadeclassesnaclassemédia

AntônioBianchiégerente-geraldeumacadeiadelojasderoupasfemininascomsede em São Paulo. A cadeia possui 12 filiais em oito das maiores cidades

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brasileiras.BianchicuidapessoalmentedasdeSãoPauloevisita regularmentetantoasfranquiascomoaslojasprópriasforadoestado.LúciaAmaulfiégerentedeumdosdepartamentosdamatrizemSãoPaulo.

Por meio de Lúcia foi possível reconstruir tanto o estilo de gerência deAntônio como a forma pela qual ela, típica representante da massa da classemédia, reage a uma relação de trabalho abusiva. As entrevistas com os doisforamenriquecidascomaobservaçãoempíricadofuncionamentodas lojasemSãoPauloecombrevesentrevistascomoutrosfuncionáriosefuncionárias.

O cargo de direção deBianchi foi conseguido por intermédio das relaçõesfamiliares de sua mulher, parente próxima dos proprietários da rede de lojas,uma típicaempresafamiliarque logroucrescimentoexpressivoapartirdoano2000.Bianchi,comogostadeenfatizar,équemchegaprimeiroequemsaiporúltimonasedeadministrativa.

EleéadmiradordeFlávioRocha,donodeumagrandecadeiade lojas,emparteconcorrentemasemfaixademercadodistinta:as lojasRiachuelo.Eleseentusiasmou com a campanha deste à presidência da República (depoisabandonada).Naeleiçãoanterior,votaraemAécioNeves.

OqueBianchiadmiraemRocha,alémdesuatrajetóriapessoal,éaclarezadopensamento.

OFlávioRochaaumentoua riquezada família e não foi apenasmais umplayboyquegastaembobagensodinheiroqueospaisganharamcomsuor.O que acredito é no trabalho. Por conta disso, faço questão de ter umarelação próxima com meus funcionários, eles precisam saber que podemcontarcomigoetambémcontocomeles.Umbomambientedetrabalhoéachaveparaosucessodaempresa.

AchoqueoFlávioéohomemcertonoBrasilparaacabardevezcomapoliticagem e os privilégios dos funcionários públicos, por exemplo.Ninguém trabalhabem se sabequenãopode serdemitido.Hoje emdiaoEstado temque funcionarcomoumaempresa,oquenãodá lucro temqueacabar.OFlávioéohomemcertonahoracerta.OBrasiltemquedarum

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grandesaltoparaafrenteeagora,comtodososvagabundosecorruptosnacadeia,chegouahoradefazerisso.

QueméograndeinimigodoBrasil?

OPTquaseacaboucomoBrasil.Acrisequevivemosagoraéaherançaque esse pessoal deixou. Aqui em SãoPaulo esse pessoal nunca se criou.Aquiagentegostade trabalhoeninguémganhanadadegraça.Ninguémgostadetrabalharparaosoutros.

VocêserefereaoBolsaFamília?

Sim, mas não só. O PT queria criar uma nova Venezuela por aqui. Essepessoalgostadabagunça,docaos,oBrasilestavaindoparaoprecipício.Éonossofuturoqueestáemjogo,temosquedarumbastanisso.AcorrupçãoealadroagemdessepessoaliaacabarcomoBrasil.

Nãosoucontraajudarumapessoa,darumaoportunidade,masagentetem que ajudar a quem se ajuda, como faço aqui nas minhas [sic] lojas.Meuscolaboradoressabemquepodemcontarcomigoeseiquepossocontarcomeles.Somosumtimequejogajuntoeseconhece.

Ecomoapolíticadeveriasertocada?

Temosqueteromínimodepoliticagempossível.Opopulismoécomoumadoença,sevocêacreditanelevaiserenganadoorestodavida.Temosquedarespaçoagoraaosempresáriosbem-sucedidos,quenãoprecisamroubarporque já têmmuito dinheiro e sabem como tocar uma empresa demodoeficiente.OEstadotemquesereficientetambém,enãosóumamamataparaquem não tem a competência de ganhar dinheiro no mercado. O mundo

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modernomudoue temosqueacompanharessasmudanças.Ninguématuramaisserroubadoporessepessoal.

AdimensãopolíticaéimportanteparaavidadeBianchi–quasetantoquantosua dedicação à empresa. Na verdade, as duas coisas se misturam de modoindelével.LúciaAmaulfi,queentrevisteiváriasvezes,contouque,semprequesurgemassuntospolíticosimportantes,elemandaavisosaosfuncionários–quechamade“colaboradores”,namelhortradiçãoda“novalíngua”docapitalismofinanceiro, que pretende transformar o trabalhador em “colaborador” ou“empresáriodesimesmo”.Assim,quandodavotaçãosobreaprisãodeLulaemsegunda instância pelo STF, Bianchi disparou vários e-mails a todos oscolaboradores,pedindoquefossemàruadefenderquea“justiçafossefeita”.

Lúciamemostroualgunsdessese-mails.NelesBianchidizestarpensandono futuro dos próprios funcionários ao pedir que fossem à rua. Lula, porexemplo,deviaserpresoparamostrarqueexisteleinoBrasil.OfuturodoBrasildependeriadisso.Enãosãoapenase-mails.

Os funcionários de esquerda são sumariamente demitidos. Lúciame contaqueescondesuaspreferênciaspolíticasporqueBianchideixabemclaroquenãoadmitemilitante“esquerdopata”,comodiz,naempresa:“Domeubolsonãosaiumtostãoparamilitanteesquerdista.”

QuandooSTFnegouohabeascorpusaLula,Bianchifezfestanaempresaeemcasa.AbriugarrafasdeespumanteFreixenetparaosfuncionáriosecadaumtomouumapequenataça.Diantedetodomundo,abriutambémumagarrafadeMoët&ChandonImpérialparaeleeosassessoresmaispróximosdadiretoria,efez todos brindarem juntos. Lúcia nunca o viu tão alegre: “Estava exultante,parecia que tinha ganhado sozinho na loteria. Acho que nem lhe passa pelacabeçaquealguémpossaterumaopiniãodiferente.”

Masafestadearrombafoiemsuacasa,ànoite.Todososdiretoresegerentesforamconvidadosecomentaramdepois.“Nodiaseguinte,foiaprimeiravezqueovichegartardeaotrabalho”,contaLúcia.Ogritodeguerradafestaera“vivaa

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justiça”, ou “foi feita justiça”, como ficou registrado em filminhos feitos comcelulares.

Eu não consegui ir. Aquele foi um dos dias mais tristes da minha vida.Inventei um problema com minha filha pequena e não fui. Chorei muito,porqueminhafamíliafoidessasqueoPTeLulaajudaram.Agentesaiudamerdaporcontadissoeeupudeestudareminhairmãtambém.

VimdeLondrina,soudeumafamíliade imigrantespobresquehaviamsidoexpulsosdaterraporgrileirosnaregiãodeMaringá.EstudeinaUELeaprendi comminhamãe a não baixar a cabeça para ninguém.Como soumuitobrancaetenhocaradegringa,ninguémimaginaoperrenguequejápassei.

Aindapiordoqueele,segredaLúcia–queédeesquerdaevotanoPT,mas,como outros funcionários, esconde o fato no ambiente de trabalho –, é a suamulher,Maria Antônia, uma “peruaça arrogante” que adora bolsas enormes echamativasdaDolce&Gabbanaeroupascarascomapliquesdourados.

Certodia, ela entrouna loja eperguntouaumaempregada recém-chegadaporqueumadas luzesestavaapagadano teto.Amoçanem tinhaolhadoparacimaatéentãoefoiconfrontadacomofatocomosepessoalmenteresponsávelpeloerro.Eladissegaguejandoquenãosabiaresponderelevou,naexpressãodeLúcia, uma “mijada” da mulher, que a acusou de descompromisso e falta deiniciativa.Lúciaaencontroupoucodepoischorandonobanheiroetremendodemedodeserdespedida.

BianchieMariaAntônia,noentanto,gostamdeLúcia.Quandopergunteiomotivo,Lúciaexplicou:

Não dou pinta de pobre e pareço rica.Não compro coisas caras,masmearrumotododiaantesdetrabalhar.Depois,parasobreviver,aprendiadizer

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oquequeremouvir.Ficoouvindoessaperuadizermerdanomeuouvidootempotodoeaindadoutrela.Elameadora!

Lúciaémuitaviva, inteligenteeespontânea,eo fatodeserdesbocadaéodadomaisvisíveldesuaorigempopular.

Semprepensonaminhamãe,que,quandoeuerapequenae falavademaisnoouvidodela, dizia:“Émelhor ouvirmerdadoque ser surdo.” Issomeajudaatéhoje.Outrodiaelateveacoragemdemecontarquetinhaidoaocabelereiro,umdosmaiscarosaquideSãoPaulo,ocaraquefazocabelode todas as atrizes, e se recusou a lavar o cabelo com uma funcionárianegra: “Essa mulher não toca no meu cabelo!”, disse Maria Antônia nafrentedamoçanegra.

Quandoeudisse aLúciaqueeste tipodecoisahoje emdiadácadeia, elaretrucou:

Nãoseiemquemundovocêvive,masessepessoaldizoquequerefazoquebementende.Essamulhertemprazeremhumilharosoutros.Todavezquevisita a matriz uma onda de medo e angústia se espalha entre osfuncionários.PoucosdiasatráselaencrencoucomumamoçadointeriordeSãoPauloquetrabalhavanaseçãodecosméticos.

MariaAntôniaolhouparaelaedisse:“Vocêtemumrostomuitopálidoemanchado.Ponhamaquiagemparaesconderisso.Afinal,éoquevocêvendeaqui e tem que começar a usar em você mesma.” “Mas não gosto demaquiagem exagerada”, disse a moça. Maria Antônia então respondeu:“Façaoquemandei! Sónãomandovocê emboraagoraporque sei que éumamortadefomeeprecisadesseemprego.”

Seamulherpegapesado comos funcionários,Bianchi fazo tipo amigo e

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compreensivo,ogestordepessoasdocapitalismofinanceiro.Maseleé,segundoLúcia, tão controlador e “filho da puta” quanto a esposa: “Nunca me deixeienganarporestesdois.Sãounhaecarne.”AlémdeFlávioRocha,outropolíticodequeBianchigostaéGeraldoAlckmin.

Eleéumpolíticodiferente,honesto,levaumavidasemluxoseédedicadoàfamília.VocênuncaouvenadadeestranhosobreAlckmin.Avidadeleéumlivro aberto e, além de tudo, é um cara simples.Mas para a presidênciaprefirooFlávio[Rocha],quetemideiasnovas,édestemidoeousado.Seelenãoselançaràpresidência,meuvotoficacomoAlckmin.OutronomequegostoéoMeirelles,queentendeoqueomercadoquer.

SergioMoro é outro ícone de Bianchi. Para ele,Moro é destemido e temcoragem de enfrentar os poderosos. Quando perguntado acerca de quem sãoesses “poderosos”, Bianchi não titubeia: “Lula, JoséDirceu e EduardoCunhasão os chefes das quadrilhas mais importantes do Brasil.” EMoro conseguiu“botartodomundonacadeia”.“Issonãoéparaqualquerum.”

OsfuncionáriosefuncionáriasqueentrevisteirelatamqueBianchipartedoprincípio de que todos os funcionários pensam como ele. Em toda eleição,manda e-mails dizendo em quem vai votar e aconselhando em quem osfuncionários,paraoprópriobemdeles,deveriamvotar.

Excetoemnívelnacional,emqueaescolhaépelapessoa,noplanoestadualésempreoPSDB,comAlckmineSerraàfrente.Quandootemasãoquestõespolíticascandentes,eleconvidaosfuncionáriosairemparaaruaprotestaredizque espera encontrá-los por lá. Segundo Lúcia, muitos vão com medo de seindisporemcomeleeoprocuramnaruapara“seremvistos”.

Na última vez, como vimos acima, ele chamou os funcionários paraprotestarem“emdefesadoprópriofuturodosfuncionários,contraojulgamentodohabeascorpusquepoderia libertarLuladaprisão”.Bianchiescreveuume-mail em que pedia um “basta” e punição exemplar para os bandidos que

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acabaramcomoBrasil,emespecialparaLula.Meioenvergonhada,Lúciacontaquenãoconseguiuseesquivar.

Foi foda ver todas aquelas galinhas de classe alta cacarejandomerda nomeuouvido.Mastivequeirequasetodomundofoi.Esseéoúnicoempregoque tenho, meu salário não é ruim, e, se o perder, dificilmente encontrooutro. Aprendi a sobreviver neste ambiente. E ainda tive que procurar oBianchiporlá,paraqueelemevisse,afinalsougerentedaminhaárea.Nãoconseguiencontrá-lo,mas fuivistapormuitagentequeseiqueconta tudoparaele.

Ao topar com um colaborador nesses comícios de direita, Bianchi éespecialmenteefusivo.Abraçaecumprimenta.EleacreditaqueoBrasil estáàbeira de uma revolução importante e quer que todos participem dela com omesmo ardor e convicção que demonstra. Como sempre, “para o bem dosprópriosfuncionários”.

AfamíliaPrado

FuirecebidonacasadafamíliaPradoemduasocasiões.Aprimeiravezfoiumaentrevista tradicional com horário marcado e, a segunda, um almoço dedomingo,umdeliciosocozidonomelhorestilobaiano,feitopelacozinheiradafamília que trabalha na casa há mais de 10 anos. O almoço valeu por váriasentrevistas convencionais, sobretudo devido à interação espontânea entre osmembrosdafamília.

O ambiente descontraído leva as pessoas a revelarem mais o queefetivamente sentem e a esconder menos as opiniões que consideramcontroversas.Alémdisso,aobservaçãodoscomportamentosconcretoséopontomais sugestivo de todos. Afinal, não controlamos nosso comportamento tanto

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quantonossasdeclaraçõesetemospoucaconsciênciadaformacomoosoutrosnospercebem.

Discreto,afávelemuitobem-educado,LuizPradoéumengenheirodeminasmuitobem-sucedido,comumapequenaempresa,daqualéoúnicofuncionário,que presta assessoria a empresas internacionais interessadas na prospecção depedraspreciosasnoBrasil.AespecialidadedeLuizéa regiãoamazônica,queconhecebemporestudoseviagensfrequentes.Em2011,umanoespecialmentebomparaseusnegócios,Luizchegouaganhar2milhõesdereais.

Suamulher,Bibiana,tambémtemcarreiradesucesso,comoadvogadadeumgrandeescritóriodeSãoPaulo.AssimcomoLuiz,elaherdouaprofissão.Opaiera advogado conhecido, professor de universidade de renome e dono de umabanca respeitável. Os quatro filhos seguiram a carreira e, com exceção dela,todostrabalhamnoescritóriodeixadopelopai,hojeaposentadoecom91anos.

Bibianaconseguiuempregonoescritóriodeumex-professoradmiradoportodos.Elamecontaqueomaiororgulhodesuavidafoiquandoesseprofessoraconvidouparafazermestradocomele.

Ele é que escolhia quem orientar, pois todo mundo queria isso. Mas eraregranãoescritaqueninguémpodiapedir.Ainiciativatinhaquepartirdelee era a maior glória para um jovem estudante. Depois disso, ainda meconvidouparaoseuescritório.Assim,entreosfilhos,souaúnicaquenãocontinuoutrabalhandocommeupai.

Como o escritório é especializado em direito criminal e administrativo,Bibiana atuou num dos processos da Lava Jato, pois entre os clientes haviaempresasdeconstruçãocivilimplicadasnaoperação.Esseepisódiomudousuaformaseenxergarascoisaseavidapolíticanacional.

ConfessoquenãoeraexatamenteinteressadaempolíticaesóvoteinoPTounaesquerdanosmandatosdeDilmaRousseff.Sempreacheiimportanteter

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uma mulher presidente da República num país machista como o Brasil.Semprefuimeiofeminista,masnuncagosteidepolíticapartidária.Preferiaficar longe disso.Mas a patifaria que vi na Lava Jatome abriu os olhosparamuitacoisa.Hojevejo tudodeummododiferente.Tenhooutravisãopolítica.

Comoassim?

Issoétudoarmado,emuitossãounscretinos.Ajustiçaparaelesnãovalenada. São caras obcecados pelo ódio político, além de vaidosos. Tem juizque o pai era fundador do PSDB e que tem um ódio psicótico de classecontra oPT e contra Lula. E o pior é que usama blindagemque têm naimprensaparafazertodotipodepatifaria,comomandarvigiarilegalmenteo trabalho da defesa e perseguir advogados, porque sabem que nada vaiacontecercomeles.Éissoquemaismeincomoda.Eumetorneiadvogadaporque admiro o Direito, e hoje o Direito não existe mais no Brasil. E aculpaprincipalédelesedoestadodeexceçãoquecriaramnoBrasil.

Elesfazemescutasilegaisotempotodo,espionamotrabalhodadefesa,hojeagentesabedetudo,umnojo!Eaindaagemcomopromotorejuizaomesmo tempo, condenam as pessoas antes do processo, nunca levam emcontaasprovas,tudoporvaidadeeódiopolítico.Temgentequeépsicopataeninguémtemcoragemdeagircontraeles.

NãodigoquesejatodomundoigualnaLavaJato,masoSergioMoroéopior.OBretas, por exemplo, entrounamesmaondade aparecer paraaimprensae tudoomais,masnãoaliviaparaninguém,eleacreditamesmoqueestálimpandoomundo.Eleévaidoso,masestátentando,aomododele,fazer bemo seu trabalho. Já oMoro tem comomissão na vida destruir oLulaeoPTporpuroódiopolítico.

Elejogouoestadodedireitonalamaeaindaéhomenageadoporcontadisso. O país está doente e quando mais a gente precisava do STF para

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restabelecer o direito, mais a gente vê como as pessoas são covardes eegoístas.

PorqueoSTFtoleraessetipodeabuso?

Aíquemtemrazãoémeuvelhoprofessor,queéumapessoabrilhantealémde ótimo advogado. A melhor explicação para a covardia dos juízesindicados pelo PT foi ele quem deu. Esses caras, agora que o contextopolíticomudou, têmqueprovar quenãopossuemnenhuma relação comoPT. Exageram namão precisamente para afastar qualquer suspeita. Aí setornammais realistas que o rei e são tão parciais quanto oMoro.Mas ocircoestácaindo.Aspessoaspercebemque temalgoerrado.Essamentiranão convencemais. Fiquei tão chateada com tudo que tivemedo de ficardoente.Preferinãoatuarmaisnessescasos.Ojogosujoémuitopesado.

Na primeira entrevista apenas com os dois, Luiz permaneceu caladoenquantoBibianaemitiaasopiniões.Perguntei-lheoqueachavadetudoissoe,meioacontragosto,eledissequeentendeaesposa,masconsideraaopiniãodelaumpoucoradical.

Acha que a Lava Jato cometeu exageros, é verdade. TalvezMoro devessemesmotersidopunidoeafastado,masnemtudofoiruim.Afinal,pelaprimeiravezospoderososforampresosnoBrasil.Bibiananãoseconteveedisse:“Entãovocê nunca viu um poderoso de verdade, meu querido, esses continuammandandocomosempre.”QuandoLuizselevantaparapegarumajarradesucodeuva,Bibianameconfessa:

O Luiz não é muito interessado em política, nunca foi, lê os jornais eacreditanoquelê.Maseleéumbomcompanheiro,éloucopormimeótimopaidascrianças.Paramiméoqueimporta.OquenuncaentendiéqueeletenhaganhadotantodinheironosgovernosdoPT,quandoosnegóciosdele,

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comoosdequasetodos,iamdeventoempopa,eaindaassimtenhaapoiadoesse“golpeachment”.Achoqueelehojesearrepende,comcerteza,masnãovaimeconfessarnunca.

Oalmoçodedomingomedeuaoportunidadedeconhecerosdoisfilhosdocasal:Juliano,de21anos,eLeandra,de17.Julianotemamesmapersonalidadedopaieatéseustrejeitossãosemelhantes.Discretoecalado,sófaloueseabriumaisquandoprovocadoporLeandra.

Jáestaparecemaiscomamãe,comcertadosede rebeldiaevoluntarismoaindamaior.É falante, inteligenteecuriosa.Eraocentroeopivôde todasasdiscussõesàmesadealmoço.Apesardesedarbemcomoirmão,suaironiaeraferina, tanto comele como, emmenorgrau, em relaçãoaopai.Nessa casadaalta classe média paulistana, as opiniões e as visões de mundo se dividiamsegundoogênero.

Luizmecontaqueseu interesseemminériossedeveàconvivênciacomopai,quetrabalhounoMinistériodasMinaseEnergiaduranteogovernomilitaremBrasília.

Passei toda a minha adolescência em Brasília, numa casa no lago Sul, etínhamos churrasco com os amigos todos os domingos. Meu pai era altofuncionário, uma espécie de braço direito do ministro. Foi ele queprospectouboapartedosminériospreciososdaAmazônia.Aexploraçãodeminérioseraentãoumadasprioridadesdogoverno.

Quando saiu do governo, o pai fundou uma empresa que assessoravainvestidoreseempresasestrangeiras.Pegueioknowhowdele;desdejovemeuoacompanhavanasviagens.Sofrimuitoquandoelemorreu,foiomelhoramigoquetivenavida.Hojecontinuoolegadodele.Ficocontentequemeufilho estude engenharia de minas e possa trabalhar comigo depois. Massempreprocureinãoinfluenciarasescolhasdele.

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Existemrelaçõespolíticasnoseutrabalho?

Sempre tem, mas me defino como apolítico. Prefiro me concentrar noaspectotécnicoefazermeutrabalhodomelhormodopossível.Maséclaroquetodasaslicençasdeprospecçãoedeexploraçãosãoquestõespolíticas,queexigemesforçopolítico,eàsvezestenhoquetratardissotambém,masnãogostoneméomeuforte.Meufilhopensacomoeu,apolíticaaquiemcasaécoisadasmulheres.

Todos riram muito e Juliano confirmou o que disse o pai. Quandoadolescente,ojovemmorouumtemponosEstadosUnidosetemocostumedemisturarpalavraseminglêsemtudooquedizemportuguês.

Leandraparticipadetodotipodeatividadepolíticanaescolacomasamigaseassumeoprotagonismocomorgulho.

Aprendicomminhamãequeumamulher temquesedefender, temque teratitude,enãoaceitarcaladaascoisasquenãoconcorda.EujáliOsegundosexo,daSimonedeBeauvoir,eleiotodososlivrosevejotodososvídeosdaMarciaTiburi.TambémgostomuitodaManuelaD’Ávila.Querovotarnela.

Esses exemplos, alémdodaminhamãe, são importantesparaosmaisjovens.Elesmostramquenão sou loucaporme sentir comome sinto.Noano passado teve a maior treta no colégio porque os meninos ficavamassoviandoparaasmeninasdeshortinho.Eninguémfazianadaarespeito.

Eueminhasamigascompramosunsshortinhosbemcurtos,quenuncauso,naverdade,sóparaprovocaremarcarposição.Gravamosnocelularedesafiamos osmeninos envolvidos no assédio anterior, para ver se tinhamcoragem,agora,sendofilmados,denosassediar.

Deuamaior confusão e todomundo foi parar na sala dodiretor, tevereuniãoextraordináriacomospais,umaconfusãosó.Masganhamos.Não

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sóacabaramosassédios,comoocolégio instaloucâmerasnoscorredoresparacontrolarosabusos.Foiumavitórianossaporquemostramosatitude.

EnquantoJulianoouviaairmãcomumsorrisoirônicodeMonaLisa,ospais,sobretudoamãe,pareciamqueaqualquermomentoiriamexplodirdetantoorgulhodafilha.

RenataeRoberto:aclassemédiadeOslo

Renata Berger e Roberto Gouveia moram no Rio de Janeiro, num beloapartamentocomumavistaespetacularparaalagoaRodrigodeFreitas.Alifuirecebidopelocasalnumfinaldetardedesábado,eoentardecerfoibelíssimo.

Roberto é carioca, torcedor fanático do Fluminense e cirurgião-plástico.Renataégaúchae,apesardemorarnacapitalcariocahámuito,guardaintactoosotaquegaúcho.Pergunto-lhedequal ramoda famíliavemoBerger, eelameconta que da parte damãe, confirmando a tradição brasileira de preservar dequalquermodo o nome estrangeiro caso seja europeu,mesmo que não seja opatronímico, mais ainda se for alemão – “mais branco que os brancos”, diriaGilberto Freyre. O costume está arraigado também em outras etnias, como aitaliana.NoBrasil,issofuncionaumpoucocomoatestadodeorigem,umaportadeentradalateralàcasa-grande.

Renataéestilistademoda, temparceriacomuma lojaon-line,paraaqualdesenha as roupas, além de escrever para uma conhecida revista feminina. Éentusiasta do empreendedorismo sustentável. Durante a entrevista, ela sedesculpapara atender a ligaçãodeumamigo edepois comenta: “Esse cara, oRicky,ésensacional,temumafábricadesapatoquesóusamaterialupcycling.Éamarcadele,éumcaracommuitaconsciênciapolítica.”

Quandoperguntooqueéupcycling,Renataexplicaqueéumapalavraaindasem tradução em português – ou seja, o mero emprego dela já é um capital,revelandoocaráterde iniciadodequemausa–,masse refereaoprocessode

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transformar objetos já existentes em produtos novos, mas sem reciclagem.Renatacontinuacomentusiasmo:

Esse é o método mais eco-friendly que existe. Primeiro, não precisa deenergiaparatransformaroproduto,comonareciclagem.Depois,evitaquetoneladasdetecidosterminemnolixão,ondelevamanosparasedecompor.Ele morou um bom tempo nos Estados Unidos trabalhando e aprendendocom um cara que praticamente inventou o upcycling. Só usando materialdescartado pelo exército americano, ele fazia roupas lindas. O Ricky seconcentraemsapatosejávendeparaomundotodo.Eleéumadaspessoasquemaisadmironomundo.

AsroupasqueRenatadesenhasãocomercializadason-lineeconfeccionadascom material reciclado e upcycled, como redes de pescadores e malhasdescartadas, submetidos a processos de tingimento que usam menos água egerammenosdesperdício.

O mais legal disso tudo é que consigo criar uma nova história para ummaterialqueestavadestinadoao lixoeacausardanosaomeioambiente.Todas essasmalhas e essas redes de pesca têm uma história passada quepodemosrepassaredarnovavida.Épossívelunirovelhoaonovo,jáqueacrescentomalhasnovasàsantigas,ecriaralgoúnicoebonito.

Acho que meu trabalho permite essa continuidade do passado nopresente, porque cada peça simboliza a possibilidade de criar beleza comalgoquepensamosque já tinhadado tudoque tinhaquedar.Oquemaisgosto é preservar a história que os tecidos usados guardam. Por isso,misturoascoresdostecidosoriginaiscomtécnicasdegotejamentodetintasafimdecriarroupassuperestilosas.

Até então calado e bebericando uísque, Roberto entra na conversa: “A

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Renata já ganhou prêmios importantes de tecnologia sustentável de entidadesinternacionaisderenome.”Renataconfirmaeconta:

Oprêmiofoiporumacoleçãodevestidosquefiz,anosatrás,todabaseadanaobradepintoresimportantes.Sempregosteimuitodearte,especialmentede pintura. Assim, uso muito os motivos do Pollock, do Kandinsky e doMatissenasminhasroupas.Aroupapodeserartetambém.

Sevocêuneabelezadaarteàriquezadahistóriaquetodaroupausadatemparacontar,eissodemodosustentável,compoucodesperdício,quevaifazer feliz a quem usa, então você está tornando o mundo um lugar umpouquinhomelhor. Essa éminha forma de fazer política.Não acredito napolíticatradicionalnemnospartidos.Sevocêquiserajudaromundoaserumlugarmelhor,vocêtemquemakeadifferencenaquiloquefaz.

Emquemvocêvota?

Voto nas pessoas em quem confio. Já votei no Gabeira e no Freixo, masgostomesmoédaMarina,porqueachoqueelaindicaumcaminhodiferenteeaindasimboliza,napessoadela,ahistóriadospovosindígenasnoBrasil,queéumadasáreasemqueatuotambém.

Jáfizváriasmatériassobrepovosindígenaseadorooartesanatodeles,quetambémaproveitomuitocomoinspiraçãoparaminhasroupas.Alémdomeio ambiente, a causa indígena é a quemaisme comove.Faço parte deiniciativas como o fair trade, que ajuda na comercialização de produtossustentáveisusandoredesinternacionais.

Estou indo cada vez mais para a Suíça, a Alemanha e a Áustria, porcontadosmeusnegóciosedaminhafacilidadecomalíngua,queaprendinafamília, mas este é ummercado em expansão por toda parte. As pessoasqueremcadavezmaissealimentaresevestiresaberqueoprodutofoifeitosem agrotóxicos e produzido pela comunidade local. Acho que esta é a

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tendência do futuro. A gente tem que proteger o pequeno produtor e osmétodos tradicionais de cultivo. Esse pessoal é representante de umatradiçãomilenar.

Eu me vejo como mera ajudante, um elo nesse processo que une oprodutoreoconsumidor.Essaéumacausaqueabraceicommuitoamoremuita dedicação. Nós somos um país de assassinos de índios e hoje vejocomominhamissãodevidadivulgaraarteriquíssimadessespovos.

Usonasminhasroupasmotivosindígenasejáfizváriasreportagensnarevistasobreeles.Agoraestouusandominharededecontatosparaajudarnacomercializaçãodesseartesanato.Éumpoucodoqueposso fazerparacompensartantainjustiça.

Renatamemostradiversasobrasindígenasespalhadaspelasalaemeexplicaoquecadaumasignifica.“Éincrível”,dizela,“masosestrangeirosdãomuitomaisvaloraissodoquenósmesmos.”Edálucroessaatividade?“Antesdavamaistrabalhoquelucro,agoraestácomeçandoamudar.Eusóficocomapartequetemavercommeutrabalhodecomercializaçãoeprocurosempredarumaremuneraçãojustaaosprodutores.”

Comosurgiuesseinteresse?

EueoRobertofizemosumaviagempelaAmazôniaquemudounossavida.Qual país no mundo tem uma natureza como aquela? E como a gentevaloriza pouco! É um povo com cultura tão rica, apesar de tão sofrido.Depois passamos um tempo na ilha do Marajó e pude aprender sobre acerâmicamarajoara,queéoquemaisvendemosparaoexterior,masoquemaisgostosãoasmáscaras,comoessasaquiquetenhoemcasa.Sãofeitascomascascasdasárvoresetêmtodaumasimbologiamuitobonita.Eumeorgulhodeestarajudandonadivulgaçãodessaartenoexterior.

Comoeditorademoda,asreportagensdeRenata têmsempreesteperfilde

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aliar a moda ao espírito ecológico e à defesa da expressão artística decomunidades ameaçadas.Mas Renata é uma espécie de faz-tudo na revista etambémentrounasearadofeminismodeautoajuda.

Todoomercadoeditorialestápassandopordificuldadesdesdealgunsanos,tivemos que demitir muita gente e foi tudo muito penoso. Agora tenhotambémumacolunanaqualajudoamulheradaanãosedesesperar.

Voumaisnomeufeeling.Soumulherelidocommulheresotempotodo,e seiondeocaloaperta.Procuro fazercomqueaspessoasvejamaparteboa da vida que levam. É o velho lance do copo cheio e do copo vazio,dependecomovocêencaraascoisas.Usominhaprópriaexperiênciaparadarumpoucodeestímuloparaminhasleitoras.

ORobertonãotempaciênciaparasaircomigoecomminhasamigasdotrabalho,prefere jogar tênis e tomaruísque comosamigos.Cadaum temqueterseuespaço,eamaiorpartedasreclamaçõesdasminhasleitorastema ver com coisas assim, em exigir demais da outra pessoa e dorelacionamento. Eu uso as histórias que acontecem comigo e minhaexperiência para mostrar como a gente tem que ser inteligente paradescobriroladobomdascoisaseaceitarooutrotalcomoeleé.

Nessahora,chegaoadolescente filhodovizinhocomos trêscachorrosdocasal,quenãotemfilhos.EletinhasaídoparapassearcomelesnapistadalagoaRodrigodeFreitas.Robertomeolhaediz:VejacomoaRenataé.Enquantotodomundoficacomprandocachorrosderaça,supercarosinclusive,aRenatapegoutrêscachorrosnarua,sãotodosvira-latas,emborahojenãopareça,detãobemcuidadosque são.Mas estavambemdoentes e feiosquando chegaram.Comosempre,aRenatatransformouissoempolítica.Tantonasuacolunanarevistacomoaquinoprédio,comosamigosevizinhos,elaincentivaparaquecuidemdoscachorrinhosabandonados.Algunsamigosdoprédiojáaderiram.Tudoelatransforma numa causa política que possamake a difference. Não é muito a

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minhapegada,masadmiromuitoaRenata.Por issosouapaixonadoporessamulher.Elatemumcoraçãodeouro!

Caio:ogerentedefazenda

Conheci Caio Marcondes por meio de um colega, Sílvio, professor de umauniversidade no interior de Minas Gerais, com quem Caio fez o curso deagronomia,antesdeconcluiromestradoemeconomiaruralnauniversidadedePurdue,nosEstadosUnidos.

Atualmente,Caioadministraumagrandeempresarural,comváriasfazendasnoTriânguloMineiro e nos estados de São Paulo eMatoGrosso do Sul. Elemora numadelas, uma fazendade criação de gado e cavalos de raça perto dacidadedeUberaba.Paraaentrevista,CaioconvidouoSílvioeamimparaumchurrascodefimdesemananafazenda.

CaiotemverdadeiraadoraçãoporSílvio,queguiousuatrajetóriadeestudoseémeioumafigurapaternaparaele.SílviojáhaviamecontadoqueCaioéummilitante conservador no seu meio, com ligações familiares com o PSDBmineiro e, hoje, é admirador incondicional de Bolsonaro. A radicalizaçãopolíticadomomentoatualo jogouparaadireita,explicouSílvio.“Maséumapessoaboa,comovocêverá.”

CaiofoinosrecebernoaeroportodeUberlândiaenoslevoudecaminhoneteHilux, na qual havia dois banners com o nome de Bolsonaro. Seguimosdiretamenteparaochurrasconafazendabelíssima,comgadobonito,cavalosderaçamaisbonitosainda,todosdoharaslocal.OgadoeoscavalossãooorgulhoparticulardeCaio,queosrevendeparafazendeirosdaregião.

Os filhos e a mulher de Caio, além de alguns amigos, estavam bebendocervejaeuísquepuromalte.Assimquechegamos,amulhernoscumprimentouelogoseretirouparadentrodacasa.Eraevidentequeoclimaentreosdoisnãoestava bom.Depois, ficou claro que a desavença tinha a ver com o tema das“pescarias”.

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Boapartedaconversagiravaemtornodosacontecimentosepiadasacercadaúltimapescaria,supostamentedetilápiasetucunarésnobelorioGrande,aliperto.Na realidade, a pescaria, aindaque efetivamente realizada, eramais umpretextoparaumafarracomamigos,uísque,cocaínaeprostitutas.

Nasemanaanterior,Caioeamulherhaviamsedesentendidopelofatodeelater confiscado as chaves da caminhonete, para impedir que o marido fosse“pescar”. Caio, então, viu-se forçado a pegar as chaves na marra, dando umsafanãonamulher,cujosóculosforampararembaixodamesa.Muitomíope,elatevedeengatinhar sobamesapara recuperarosóculosemmeioàs risadasdetodos.

Pelovisto,aoserrelembrado,oepisódioaindaprovocavamuitasrisadasdosamigos,atémesmodopróprioCaioedeseufilhomaisvelho,de17anos.Comindisfarçávelorgulho,CaiochamavaJúnia,amulher,de“DonaOnça”,porseutemperamentoforte,epreviaquesóconseguiriaabrandarsuairaseaenviasseaSão Paulo para fazer compras, um programa que costumava fazer comregularidade,juntocomafilhamaisvelha,de16anos.

Asgarrafasdebebidas,queseesvaziavamcomrapidez,eramguardadasparaumadiversãoaquesededicariamdepoisdochurrasco.Emcasa,Caiotinhaumverdadeiro arsenal, com espingardas calibre 12, pistolas automáticas de váriostiposeatémesmoumfuzil.Asgarrafasdecervejaeuísqueeramdespedaçadasatiros, e cada rodada era motivo para apostas. Quando lhe perguntei se havianecessidadedasarmasparaproteçãodafazenda,Caiodissequeninguémserialoucoparainvadira“sua”propriedade.

Eu não ameaço ninguém, mas não venham mexer com quem está quieto.Comigonãotemconversa.Oagronegócioéaalmadestepaís,como,aliás,sempre foi. Isso aqui nunca teve indústria que não fosse protegida peloEstado, ou seja, nunca teve vocação industrial de verdade. Nós nuncaprecisamosdaproteçãodeninguém,etodaarealriquezadestepaísvemdocampo. As divisas que temos vêm do agronegócio. O Estado só vem aquiparacobraroimposto.

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A esquerda achamuito bonita essa história de reforma agrária com aterra dos outros. Gente que não sabe trabalhar a terra e que não saberetiraroqueelapodedar.Eaquinãotempolícianempatrulhamentoparanos defender. Só quem vive aqui é que sabe. A nossa proteção quem fazsomosnósmesmos,comotudoaqui.

Issoaquiépropriedadeprivada,frutodemeutrabalho,queacordocedotodo santo dia e acompanho tudo commeu olho, sem delegar nada paraninguém.Porissofunciona.Porissoogadomelhoraacadaanoeoslucrostambém.Sealguémvieraquiparatomaroqueénosso,euatiroprimeiroefaçoperguntasdepois.

EoBolsonaro,oqueachadele?

O que gosto nele é a capacidade de falar o que ninguém fala. Gosto dasinceridadedele.Eusempredigooquepensoeachoqueeleéúnicopolíticoque faz isso, que tem colhão para assumir o que pensa. Normalmente, opolíticoéaquelecaravaselinaquevocênuncasabeoqueestápensandodeverdade.OquenãoaceitoéoEstadoviraquisóparaatrapalharecobrarimposto.

Masnãohouveumaisençãograndequeogovernodeuaosdonosdeterra?

Mas não falo desse tipo de imposto. Nós temos uma fazenda de feijão nointeriordeSãoPauloeoutradesojanoMatoGrossodoSul.EmSãoPaulotiveproblemascomumpromotorzinhonovoqueencrencoucomumaguiaderecolhimentodeimpostoqueusávamosequisnosprocessar.Aímandeiumrecadoparaele.Estábemquietinhoagora,malsaidecasa.

OsamigosdeCaio,queestavampertodanossamesa,riramavaler.Sílviodepoismecontoucomofoiahistória.OscaminhõesdeCaiousavamamesma

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guia de venda de feijão, que vale por 24 horas, para todas as operaçõesrealizadasnaqueledia,enãoparaumaúnicaoperação,comomandaalei.Comousodeumaúnicaguiapara todosos carregamentosde feijão, a legislaçãoeraburladaepagava-seumapequenafraçãodoimpostodevido.

Entendi então que, para Caio, qualquer imposto é um abuso e que ele sesentiaespoliadopeloEstado.Ojovempromotorquequeriaaplicaraleisemeteucom ele e depois, no linguajar de Caio, “meteu o rabinho entre as pernas”.“Como você fez?”, perguntei. “Mandei dar um aviso. Ele entendeu.” Todosderamumasonoragargalhada.

NavisãodemundodeCaio,oEstadoéumagentedacorrupçãoqueespoliaquem trabalha. Ao indagar se apoiava a Lava Jato, Caio disse que sim, queSergioMoroeBolsonaroeramosmaioresemaiscorajososbrasileiros.Paraele,sóaeleiçãodeBolsonarovaiasseguraracontinuidadedaLavaJato.CaionãovianenhumacontradiçãonaameaçaaojovempromotorenoapoioàLavaJatocomosupostomecanismodecontroledacorrupção.

Pelo contrário, percebia a ameaça ao jovem promotor pela mesmaperspectiva do combate à corrupção estatal, uma vez que pagar imposto éalimentaracadeiadacorrupçãosistêmica.Assim,Caiosevêcomoumbaluartena luta contra a corrupção do Estado e a favor do valor do trabalho duro ehonesto.

Análisedasentrevistasdaaltaclassemédia

Aalta classemédia, ou seja, a camada superiorda classemédia, que combinaporçõesrazoáveisdetodososcapitaisimportantes–algumcapitaleconômicoemuitocapitalcultural,alémdecapitalderelaçõespessoais–,destinadaageriresupervisionarariquezadaelitedeproprietários,éumafraçãodeclassedecisivaparaocapitalismofinanceirohojedominante.

Entre os indivíduos dessa camada social existe uma confusão real que ostornaosperfeitosrepresentantesdosproprietários–representadossejaporuma

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pessoa ou família, seja por um conselho de acionistas. Tanto os gerentes docomércio de varejo, comoBianchi, ou de propriedades rurais, comoCaio, ouaindaosexecutivosdebanco,comoSérgio,seveemtodoscomoosresponsáveisefetivospelonegócio.

Edefatoosão,oquetornasuailusãopessoaluma“ilusãoobjetiva”,comodiriaMarx.Oprópriomecanismoimpessoaldavalorizaçãodocapitalfinanceirocriaas ilusões subjetivasda identificaçãopessoaleafetivadosgestorescomalógicadeacumulaçãodocapitalquerepresentam.Aprogressivasubstituiçãodosalárioporbônus,umaespéciedeparticipaçãonoslucros,facilitaaaproximaçãoentreogestoreopatrão.Aconfusãopassaaserrealeobjetiva,alémdedesejadapelogestor,poisrealiza,aparentemente,seussonhosmaisíntimos.

No caso de Bianchi, ele não só se refere a “minhas” lojas e “meus”colaboradores,comoseaempresafossedele,comopersonificacomperfeiçãoogestormoderno,identificadocomadefesadosinteressesdeseuspatrões.Issosópode ser eficaz quando o gestor se sente o “verdadeiro patrão” e extrai umagratificaçãoemocionaldessepapel.

EnquantoafamíliadonadacadeiadelojasdaqualBianchiéoadministradorrecebeapenasosdividendoselucros,cabeaeleempenhartodaasuaenergianãosó na administração do negócio, mas também no estabelecimento de relaçõespessoaiscomosempregados,demodoavê-loscomoextensãoecontinuidadedelemesmo.Todoo corpode funcionários, assimcomoele próprio, nãodeveapenascumprircomastarefas,masaindarepresentarpoliticamenteosinteressesdocapitaledosproprietários.

E tal esforço é recompensado pela absoluta lealdade de parte dosfuncionários. Muitos se identificam com o representante dos patrões. Isto sedeveadoisfatores:primeiro,ocapitalfinanceiroteveumêxitoretumbanteemsuaestratégiadetransformareminstrumentosdolucrocorporativoasdemandasdoexpressivismo–queanteserarevolucionárioaofazerdaeconomiaummeioparaabuscadafelicidade.

Daí que a reconstrução da ética da sensibilidade aqui proposta seja tãorelevanteparaaformacomosevêotrabalhohojeemdia.Entenderagênesedos

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fenômenos é o que nos impede de sermos enganados por eles. O objetivo docapitalismo financeiro foi confundir de modo objetivo, na personalidade dotrabalhador, sobretudo em sua dimensão irrefletida e automática, a ética dodesempenho e a ética da sensibilidade, definindo ambas como meiosinstrumentaisparaosucessotantodaempresacomodeseusempregados.

Foradavidanaempresa,nãodeveexistirmaisnada.Agora,oqueserequerdo empregado, rebatizado de “colaborador”, é que se dedique por inteiro aopatrão,atémesmonashorasvagas,eque tambémcomemore,ao ladodele,asvitóriaspolíticasdestecontraosinteressesdoprópriotrabalhador.

OcasodeBianchiéparadigmático.Todoseuorgulhoadvémdaimagemquetem de si mesmo como um gestor “humano”, genuinamente preocupado comseuscolaboradoresnocontextodeumagestãocompartilhadaesolidária.Alémdisso,eleseconsideraempenhadoemconduzi-losao“bomcaminho”,navidasocialepolíticaforadaempresa.ÉdifícilavaliarquantodocomportamentodeBianchiépurofingimentoecinismo,equantoéconvicçãosinceraepessoal.Aconfusãodessasduasdimensões,moralidadeecinismo,atémesmonopróprioBianchi,éinseparáveldeseusucesso.

Nem todos, porém, sedeixamsujeitar sem reação, comomostrao casodeLúcia. Por outro lado, ela paga um preço alto para preservar a própriaindividualidade,poistemdemanterumaespéciededuplapersonalidadenavidaenotrabalho,ocultandosuaspreferênciasexistenciaisepolíticas,atémesmonaspáginasprivadasdasredessociais.

Ao modo da figura do agregado, discutida anteriormente, ela precisa semostrar simpática com o gestor e até fazer de conta que não passa de meroprolongamentodas vontades dele. Pior ainda, é obrigada, para fazer carreira enãoserdespedida,a“seramiga”damulherdogestor,queela,naverdade,odeiaedespreza.

Lúciaéaincorporaçãoperfeitadalutadeclassesnoâmbitodaprópriaclassemédia,entreaaltaclassemédia–representadaporBianchi–eamassadaclassemédia – representada por ela mesma –, que se incumbe das funçõesintermediáriasdesupervisãoecontrole.

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A competência e o esforço pessoal de Lúcia, advinda de um contextofamiliarpobre,masestruturado,a levarammuitoalémdasexpectativasde suafamília original. Lúcia é uma vencedora, pois migrou para São Paulo econseguiuumbomemprego,noqualganhacercade6milreaislíquidos–maisdoquequalqueroutromembrodafamília.

Pelatrajetóriafamiliar,Lúciaseincluinamassadaclassemédiamaiscríticae de esquerda. Filha de posseiros expulsos por grileiros poderosos do Paraná,Lúcia sabe de quem é filha e tem orgulho da luta dos pais. Aprendeu a seacomodar e a disfarçar as próprias emoções para sobreviver. Mas suasolidariedade se dirige às vítimas das humilhações que conhece muito bem,porquetambémfoiumadelasnainfânciaeadolescência.

Emváriossentidos,portanto,arelaçãopessoaldeLúciaedeseuscolegasdegerênciaintermediáriacomospatrõesrefleteasrelaçõesdeclasseentreamassadaclassemédiaeaaltaclassemédia:há tantoapossibilidadede identificaçãocomopatrão,comoadeoposição,aindaquesilenciadadevidoàdisparidadedepodernasituação.

Arealizaçãodasentrevistasparaestelivromepermitiureconhecercommaisclarezaaimportânciadessafissuraverticalehierárquicanaprópriaclassemédia.Seaaltaclassemédiatendequasesempreaseidentificarcomosproprietárioseseusinteresses,namassadaclassemédiaatrajetóriafamiliarpodeserdecisivapara uma identificação com interesses populares e uma visão mais crítica dasociedade.

Jáaaltaclassemédia,ruralouurbana,tendeaserreflexodosinteressesdeseus patrões. Assim, se tomarmos os paulistanos Bianchi e Maria Antônia, adiferençanãoétãograndesecomparadacomaaltaclassemédiadointerioraquirepresentadapelafiguradeCaio.OódioaoEstadocomocobradordeimpostos,no caso deste, ou como “gastador social”, no caso de Bianchi, é bastantesemelhante,refletindoaidentificaçãocomosproprietáriosquemarcaaposturadeambos.Aofazeressasduasentrevistas,lembrei-medasanálisesbrilhantesdeMachadodeAssissobrenossaeliteeseucinismodeclasse.

Tudocontinuacomohá200anos.Caiosonegaimpostos,ameaçaumjovem

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ecorajosopromotor–dessesquenãoenvergonhamaclassecomotantosoutros–ese identificacomumaclassedeproprietáriosacostumadaa fazerda leidodinheiroedopoderarbitrárioaúnicadimensãoimportantedavida.

Elemostraque,emnossopaís,desdeachegadadedomJoãoVI,alutapeloimpériodaleiabstrataegeralcontinuainconclusa.Quemtemdinheiroearmasepode ameaçar com sucesso o representante da lei estatal – ou comprá-lo,dependendo do caso – exerce um poder sem freios, como vem ocorrendo háséculos.

Essepoder sempeias semostra tambémno âmbito familiar, sobretudo emrelaçãoàmulher.O“safanão”queamulherdeCaiolevaaoesconderachavedocarroeoridículoaquefoiexpostademonstramquantoaindaéaceitávelnoseumeioestetipodetratamentosocialhumilhanteparaamulher.ECaioaindaapoiaSergioMoroeBolsonarocomofiguraséticasqueenfrentamacorrupção.

ÉqueacorrupçãoseletivacombatidaporMoroéadoEstadoqueatendeàpopulaçãomaispobre,naverdadeoalvorealdaOperaçãoLavaJato,demodoqueessapopulaçãopossaservirapenasaosproprietáriosdocampoedacidade–como no atual governo Temer. Na verdade, o processo espúrio e sem provascontraLulaemnadadiferedaconcepçãotambémseletivadecorrupçãoadotadaporCaio.

Sejanaesferaestatal, sejanaesferadomercado– ruralnocasodeCaioeurbano no de Bianchi –, todos têm na “desfaçatez” de classe, como diriaMachado,ounacaradepaudomoralismopostiço,comoprefiro,suamarcamaisnítida.60

Para Caio, não há contradição entre fraudar o fisco e ameaçar agentespúblicosdeumladoe,deoutro,apoiarcruzadasmoralistascontraacorrupção.Para Moro, também não parece existir contradição em condenar alguém semprovas,desdequeseestejaconvencidodocrime.

Bianchiexpõeocrimeefetivomelhordoquetodoseles:ousodosrecursosdoEstadoafavordamaioriadapopulação.ParaBianchieCaio,oEstadodeveser uma empresa, confundindo a busca do lucro domercado com a busca dauniversalização da cidadania do Estado. O Estado é visto por eles como um

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bancoparticular–ouseja,umaempresa–dosproprietáriosedosseusdelegadosdaaltaclassemédia,comovimosnareconstruçãohistórica.

Ao contrário de Caio e Bianchi, que ainda recorrem ao moralismo defachada,Sérgio não recorre a nenhumadimensãomoral. Seu cinismo é aquiloqueopensadoralemãoGeorgSimmel, talvezomaiorestudiosodosefeitosdodinheiroedaeconomiamonetárianasemoçõeshumanas,chamariade“cinismoblasé”, no qual a redução de todas as avaliaçõesmorais àmera quantificaçãomonetáriasesomaàindiferençadiantedetudoqueéhumano.Sóporumefeitodeespíritodaépoca,tendemosaconsiderarSérgioumespíritomaissofisticadodoqueBianchieCaio.

ParaSérgio,oquefazéapenasseadaptaraomundododinheiro,oqualnãofoi inventadoporele.Aocompraraspessoas,estásomenteseguindoas regrasdessemundo.Elenãoavalia,portanto,oquefaz.Poroutrolado,oquedizmuitodesse mundo, a indiferença afetiva e blasé de Sérgio o faz especialmentecapacitadoparaatuarcomêxito.

Sérgio é tão confiante no poder do dinheiro, do qual é representante, quesequerescondeoumaquiaoquefaz.Elesepermitesercompletamentesinceroconsigo e com o entrevistador, numa postura bem diversa da hipocrisia e doautoenganodeumBianchi,porexemplo.Aoexplicarcomofuncionaosistemafinanceiro e como todo mundo pode ser comprado, ele ainda avisa: “Quemdenunciaréquevaipreso.”

Sérgio é amais perfeita comprovação da gênese histórica das relações declasse e poder entre nós como expusemos na segunda parte deste livro. Acorrupçãovisadapelomoralismode fachada, daqualSergioMoro é o grandecampeão,serveapenasparaencobriretornarinvisívelacorrupçãoreal.Estanãochamamosdecorrupção,poisélegalizadapelotipodeinfluênciaqueSérgioeomercado financeiro têm sobre políticos e juízes. Reproduzi em detalhes oepisódiodacompradojuizedasentença,narradoporSérgio,paramostrarotipode interesse seletivo e instrumental que comanda omoralismo de fachada emgeral,eodaOperaçãoLavaJatoemparticular.

Não pode ser mais evidente o tipo de interesse seletivo representado pela

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farsadaLavaJatoquandoseblindaprecisamenteosistemafinanceiro,aRedeGlobo, a mídia venal e o Poder Judiciário, tudo para melhor assegurar arecaptura do Estado pela elite dos proprietários. Como vimos, trata-se de umesquemaarmadodesdeadécadade1930,eéoúnicoroteiroqueaeliteeseuslacaiosnaaltaclassemédiapossuemcontraasoberaniapopular.Éóbvio,agora,omotivoquelevouaLavaJatoasefazerdesurdaquandoPalocciquiscontaroquesabiadomercadofinanceiroouquandoEmílioOdebrechtquisfalardaRedeGlobo.

Se é o sistema financeiro que faz a rapina legal e ilegal da população –utilizandooBancoCentralparaosaquedoorçamentopúblicoembenefíciodosrentistas por meio da dívida pública fraudulenta, da taxa SELIC, dos jurosextorsivosedoassaltodiretocomoremuneraçãoilegaletrilionária61dasobradecaixadosbancos–,restaàmídiacompradapelosbancos,assimcomoaosjuízesepolíticos tambémcomprados,apenasosilêncio.Umassaltae roubaà luzdodia;eosquedeveriaminformarepunirdistorcemarealidadeesilenciam.

A corrupção trilionária do sistema financeiro tem que ser ocultada eacobertadapelamídiaepeloPoderJudiciáriodemodoaenfraquecerapolíticaperante os ditames domercado financeiro – uma vez que o Estado é a únicainstânciaque,bemutilizada,podeservirdeanteparoaisso.PormeiodehomenscomoSérgio,aaltaclassemédiacobraasuagorjetapelotrabalhosujoexercidoemnomedosproprietários.Você,leitoreleitora,tenhacuidadoenãoesqueçaoaviso:quemdenunciaréquecorreoriscodeserpreso.

Masa alta classemédia também temseu lado radical-chique, representadopelo ideal estético da ética da sensibilidade. Vale a pena recuperar as basesmoraisdonossocomportamentoprático.Semisso,nãohácomosaberomotivodeaspessoassecomportaremcomosecomportam.NolivroAelitedoatraso,chameiessafraçãodaclassemédiade“classemédiadeOslo”,umaclassemédiaquemoranoBrasil,mastemumaagendapolíticaescandinava,típicadepaísesquesolucionaramadesigualdadeabissalentresereshumanos.

Anoçãodepersonalidadesensívelpode tervárias leiturase interpretações.Por exemplo, pode significar o acesso de todos os indivíduos a um tipo de

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sociedade que garanta tanto os direitos universais quanto o respeito àssingularidadesdecadaum,dadoqueumnãoexistesemooutro.Podeseraindaofundamentoparaaconstruçãodeumvínculoemotivocomomundosocialaoredor e o mundo subjetivo dentro de nós. Já que os dois são,também,inseparáveis.

Essa leitura interpretaaéticadadignidade,ou seja,do trabalhoútilparaasociedade, universalizável, como indissociável da ética da sensibilidade. Auniversalizaçãodedireitospara todosos trabalhadoresnão secontrapõeà lutapela expressão da singularidade individual. Pelo contrário, uma pressupõe aoutra, como um processo de aprendizado comum. Individual ou social, aprodutividadenãoseopõeaoaumentodasensibilidade.Esseeraprecisamenteosonhodasgeraçõesde68nomundotodo.

Masestasdeixaramdeserasleiturasdominantesemtemposdecapitalismofinanceiro.Naimprensa,naindústriaculturalenavidaintelectual,ocapitalismofinanceiro e suas forças não querem unir e vincular essas demandas a fim defortalecê-las,esim jogarumascontraasoutras,demodoaenfraquecê-las.Aopromoverumafalsaoposiçãoentreelas,ganha-seapossibilidadedecolonizarosindivíduosparaseusfins.

Se possível, o ideal é fazê-lo de tal forma que tudo se torne mercadoriacomercializável.Esteéomelhordosmundosparaodinheiroeosendinheirados:aforçapolíticadeideiasrevolucionáriaséencolhidaedirigidaparaacriaçãodeummercadolucrativocombaseemsimulacros.Essafoiexatamenteaapostadocapitalismofinanceiro.

Como o capitalismo financeiro destruiu esse potencial de aprendizagemindividual e coletiva? Primeiro, separando as questões da dignidadeuniversalizáveldotrabalhoútildaquelasatinentesaoexpressivismo,ouseja,doesforçoindividualdeautoconhecimentoedasformasdevidadecorrentesdesseconhecimento.Eporqueissoocorreu?Devidoànecessidadedeisolaredebilitarasdemandasemancipatóriascomoumtodoe,aomesmotempo,daraimpressãodeengajamentonumprocessoemancipador.

Assim,asdemandasporredistribuiçãoderiquezaepoder, típicasdaclasse

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trabalhadoranosúltimos200anos,acabamporserseparadasdasdemandasporlivreexpressão,típicasdaéticadaautenticidadeeligadasàsminoriasoprimidasporsuasescolhaseestilosdevida.Ocapitalismofinanceiroquerexplorartodomundo, indistintamente: mulheres ou homens, negros ou brancos, gays ouheterossexuais.

Desde que não se queira redistribuir riqueza ou poder, tudo pode seraceitável pelo capitalismo financeiro, que em seguida ainda se vende comoemancipatórioejusto.Naverdade,aslutasporredistribuiçãoepeladiversidadeestão intimamente ligadas. A divisão hoje existente foi construída paraenfraquecerasreaçõescontraodomíniodorentismoedocapitalismofinanceiro.Alémdafalsaoposiçãoentreredistribuiçãoderiquezaepoderediversidadedegênero, orientação sexual, etc., interessa ao capitalismo financeiro expulsar asdemandas do que reconstruímos aqui como ética da autenticidade e deexpressivismodaarenapolíticaesocial.

Adefesadomeioambienteapareceassimcomoaformamaisdiabólicadeseparar sociedade e natureza, como campos de luta indissociáveis para oaprendizado moral e político que ensejaria um expressivismo bemcompreendido. A ênfase na defesa do meio ambiente sem conexão com asquestões sociais das quais depende a proteção dessemesmomeio ambiente –pensemos nos rios utilizados como esgotos por falta de infraestrutura para aspopulaçõespobresdoBrasil–funcionatambémcomoumaespéciedefetiche.

Trata-se do fetiche de se perceber como um indivíduo avançado ereconhecidopelasupostadefesa,aindaqueinócua,detemasemvogaquetrazemdividendos simbólicos e, portanto, “agregam valor”. E ainda criam mais ummercadochiqueparaprodutosvendidoscomesserótulodistintivo.

É a esse gigantesco engodo que estamos submetidos, cara leitora e caroleitor. As descobertas morais e cognitivas, que deveriam levar a umaprofundamento da experiência humana, foram transformadas em mercadoriapara debilitar a crítica de ummundo social injusto e irracional e, além disso,proporcionarlucroscomacolonizaçãodadimensãomoraldaspessoas.

A força dessas ideias é evidente em Bianchi e na renomeação de

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trabalhadores como “colaboradores”, numa estratégia de domínio total dogerente sobre a vida dos subordinados, inclusive de seu tempo livre e de suasopçõespessoais.Essaéapenasumadas frentesdocapitalismo financeiroparacolonizareescravizaraalma,enãoapenasocorpodostrabalhadores.MasempessoascomoRenataessavisãodemundosetornatotalizanteeummecanismotantodedistinção social, enquantodefensoradecausashumanitárias, comodeaumentodelucroecriaçãodenovosnichosdemercado.

Comisso,háumverdadeiroobscurecimentodasquestõessociaisrelativasàpobrezaeàdesigualdade.E issonumpaísdedesigualdadecolossaleperversacomo o Brasil. Tudo parece merecer atenção, menos as maiorias oprimidas,relegadas a um abandono e descaso seculares. Este tipo de tendênciainternacional, macaqueada pela alta classe média brasileira, adquire aqui umsentidoperversoearcaico,permitindoareiteraçãodoódioedesprezoaospobreseabandonados,sobomantodopoliticamentecorreto.

ClaroqueocontextodessasquestõesempaísescomoAlemanhaeSuéciaémuitodistinto.Essespaísesconseguiram,emgrandemedida,elevaramaioriadapopulação a um patamar de equidade. Ali, as lutas pela preservação domeioambiente e de espécies ameaçadas, por exemplo, é desejável e compreensível.Aqui, são os miseráveis, abandonados e humilhados que estão ameaçados deextinçãopordescasosocialepolítico.

Essas questões sociais não possuem, porém, nenhum charme para a altaclasse média europeizada. Uma agenda escandinava – daí o título de “classemédiadeOslo”–entrenós,nosentidodesubverterhierarquiasóbvias,éumaexcrescência e uma patologia numa sociedade que naturaliza “escravosmodernos” e se ocupa com modas que “agregam valor” a mercadoriasvendáveis.

A família Prado, por sua vez, mostra que situações concretas de injustiçapodem produzir aprendizados possíveis mesmo na alta classe média. AexperiênciadeBibiana,baseadaemsuaparticipaçãoemprocessosdaLavaJato,afezcompreendereaprofundarumaatitudedecríticasocialraranasuaclasse

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deorigem.Eaexperiênciadafilhacomomachismoeopreconceitonaescolaresultounaconstruçãodeumaperspectivacríticasemelhante.

O fato de ambas seremmulheres e sofrerem, pelomenos numa esfera davida, o efeito de preconceitos renitentes, é facilitador de uma percepçãomaiscríticadarealidade.Aindaquelimitada,talpercepçãomostraqueoaprendizadomoral, social e político é possível em qualquer classe social. São essesaprendizados, afinal, quecomprovamqueaindahámuita coisaqueodinheironãocompra.

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Amassadaclassemédia

Ronaldo:publicitárionoRiodeJaneiro

Ronaldo é funcionário de umgrupo de publicidade com sede emBarcelona eagênciasemváriascidadesbrasileiras,entreasquaisBeloHorizonte,SãoPauloeRio de Janeiro. Inaugurado em 2012, durante o boom vivido pela cidade, oescritóriodoRiode Janeiro,onde trabalhaRonaldo, éumcartãodevisitasdaestéticaedasociabilidadedocapitalismofinanceiro.

ConheciRonaldoem2013porcontademeuestudosobreos“batalhadoresbrasileiros”,62noaugedamodasobrea“novaclassemédia”.Naépoca,Ronaldomediziaquetodasasempresasqueriamsabercomochegaraessenovotipodeconsumidor e que ninguém realmente os compreendia porque pertenciam àsclassespopulares.

O que mais chama atenção na agência é que mais parece uma residênciaacolhedora, com poltronas para as pessoas se aninharem, cozinha e uma salacommesas nas quais os computadores daApple são os únicos acessórios queindicamse tratardeum localde trabalho.Tudoaliestádestinadoaeliminaradivisãoentrelazeretrabalhonacabeçadosfuncionários.

Na primeira visita que fiz, anos atrás, o gerente espanhol do escritóriocarioca,Paco,pediuaRonaldoquemebuscassenoaeroportoemelevasseparajantar, jáavançadaanoite.Fiqueicoma impressãodequeelenãoachavaque

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estavatrabalhando,tendomelevadoaumrestaurantequaseàsonzedanoiteeaindameacompanhadoduranteojantar.

A ideologiadaempresaeraadeque todos formavamuma famíliaequeotrabalho eficiente tinha de ser criativo e divertido.Aome apresentar, antes daminhapalestra,Pacodisseatodos:“Hojenãoéumdiadetrabalho.Hojeéumdiadeaprendizadoedeaula,comonostemposdafaculdade.”Tudonaempresaera destinado a mostrar que ali não era um lugar de trabalho, ainda que setrabalhasseodiainteiro,sempausa.

A confusão entre tempo livre e tempo de trabalho era patente entre osfuncionários. Ronaldo me contou que Paco mandava e-mails à noite ou bemcedodemanhã,antesdoexpediente,eesperavasempreobterresposta.RonaldosesentiaescravodoWhatsAppenãopodiadesligá-lonunca.Masachava issonormaleumacondiçãodotrabalhoatual.

Comoossaláriosdosjovenspublicitáriosnãosãomuitoaltoseamaioriaésolteira, alguns deles decidiram alugar juntos uma casa confortável perto daempresa,nobairrodoJardimBotânico.Numaruacalmaesemsaída,acasatempiscinaejardim,eoaluguelédivididopelosquatromoradores,assimcomoastarefasdomésticas.

Ronaldo fala com evidente orgulho do bom relacionamento entre ele e oscolegas de trabalho e de moradia. E não lhe parece problemático oprolongamento do ambiente de serviço em casa e fora dos horários deexpediente. Pelo contrário, para Ronaldo, isso aproxima os colegas e faz otrabalhorendermelhor.

Ronaldo também se orgulha do fato de Jobson, o office boy da agência,negroeantesresidentenaFaveladaMaré,umaviolentacomunidadedoRiodeJaneiro,teridomorardegraçanacasadosjovenspublicitários.

Foiideiaminha,mastodosconcordaram.Nossacasatemquatroquartoseuma casinha que ficava vazia. Jobson mora na casinha confortável docaseiro que não temos. Chegamos, inclusive, a ficar seis meses com doisquartos vagos, quando quase metade da empresa foi despedida no ano

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passado por conta da crise e da retração dos negócios no Rio. FiqueicontenteempodermosajudaroJobson.Eletemumahistóriafamiliarmuitotriste,oirmãomaisvelhofoimortopelapolíciaeelenãosesentiasegurolá.Depoispassavahorasnoônibusparaviraotrabalhoevoltarparacasa.

Claroquenãotinhatemponemestímuloparaestudar.Hojeelepassaosfins de semana lendo e estudando. É só dar uma oportunidade que aspessoas aproveitam. Só pedimos a ele para não levar os amigos dacomunidadeemcasa, jáque issopoderiacomprometernossasegurança,eeleentendeumuitobem.Naverdade,elegostamesmoédeficarcomagentenapiscinanos finsde semana.Ele émuitograto ediz queaprendemuitocomagente.

Enãotratamoselecomoempregado,não,àsvezeselemesmoseofereceparafazerascomprasdecasaouiratéabancadaesquinaquandoalguémpede.Éumaformadeajudarumpoucoeretribuiroquefizemos,comoeleprópriodiz.Temumcolegaquemoraconoscoqueabusaumpoucoepedeparaeletrazercomida,tardedanoite,deumrestauranteaquipertonaruaJardimBotânico.Masjádeiumtoqueeelemelhorou.

Opróprio Jobsonéquenãoconseguedizernão.Comoopaísnão faznada para pessoas como ele, nós decidimos ajudar.O Jobson quer entrarparaauniversidadecomotodomundo,masagoranãotemmaisbolsanemajuda do governo. Não sei como ele vai conseguir. Pelo menos estamosajudandocomopodemos.

RonaldomecontaqueoescritóriodiminuiumaisnoRio,mas tambémfoidownsized,comopreferedizer,emBeloHorizonteeSãoPaulo.Ronaldotemdeviajarcomfrequênciaparaessascidadese,mesmosendomuitojovem,arotinaéexaustiva.

Gostodomeu trabalho,masasviagenssãooque temdepior.Primeiro,émuito cansativo enãogostodeandardeavião.Depois, terminoperdendo

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finsdesemanainteirosquandootrabalhoémaisdemorado.Édifícilmanterum relacionamento desse jeito. Já perdi namoradas de que gostavamuitopor isso. Aminha atual me compreendemais e, quando dá, até vai juntocomigo.Masissoporqueelaéjovemesóestuda.Quandoarrumaremprego,jáantevejodificuldades.

Édifícilconciliartrabalhoerelacionamentos?

Éaminhamaiordificuldadeatéhoje. Já fiz estágiosemBarcelonaváriasvezese,apesardeacidadeserlegal,issomefezficarsemrelacionamentosestáveis durante muito tempo. Se a viagem se estende por meses, éimpossívelmanterumrelacionamentoeserfiel.Ficomesentindocomoumarolling stone, sem parar em lugar nenhum e sem ponto de referência. Naverdade,nuncativeumrelacionamentodemaisdeseismeses.Nocomeço,quandoagente émuito jovem,até curte e aproveitaabalada.Depois vaicansando.Hojeoquemaisqueroéumacompanhiaestável.Nãoqueromecasar com o trabalho, até porque, mesmo trabalhando tanto e tendo aexperiênciaeasqualificaçõesquetenho,aindanãomesintoseguro.

EessacrisenacidadeenoestadodoRio,queacaboucomocrescimentodeatépouco tempoatrás, aquevocêcredita?AoataquedaLava JatoedaRedeGloboàPetrobras,queeraabasedaeconomiadoestadoedacidade?

A política aqui no Rio ainda consegue ser pior e mais corrupta que emoutroslugares.OqueoCabralfezaquinãotevecomparação.AchoatéqueaLavaJatoeaRedeGlobopodemterajudadoadestruiraempresa,masaresponsabilidade maior é do representante eleito por nós e que traiu apopulação.Políticoagentepodeescolher,oqueaRedeGlobofazoudeixadefazeragentenãotemcomointervir.

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Evocêtemcandidatoparaessaseleições?

Tenho, sempre votei naMarina, acho que ela tem este toque novo que agenteprecisa.AchoqueoLulafoipresoinjustamente,semprovas,eporissodeveria ter a chance de ser candidato. Mas não votaria nele. Voto naMarina.VoteinoFreixoaquinoRioeaindanãotenhocandidatoesteano.Talvez vote na Marcia Tiburi; no Romário é que não vou votar. Seria aprimeiravezquevotarianoPT.

Inácio:corretorimobiliárioqueviroumotoristadecarrosdeluxo

Quandooconheci,InácioeramotoristadecarrosexecutivosnoRiodeJaneiroe,depois, nos encontramos em outra ocasião. Partidário fervoroso de JairBolsonaro, Inácioacreditaqueaspessoasdevemsearmarpara sedefenderdebandidos,emespecialasmulheres,quecorremoriscodeestupro.ParaInácio,todosospolíticossãocorruptos.

Por conta disso, vota apenas em candidatos que já são ricos, poissupostamente não precisariam roubar doEstado.A exceção são os candidatosmilitares,comoBolsonaro,poisosmilitaresseriaminfensosàcorrupção.

Mas a crença mais surrealista de Inácio é a de que sabe onde Lula teriaescondido os milhões supostamente desviados da Petrobras. Embora muitosachem que tal dinheiro esteja na Suíça, Inácio tem certeza de que está naAlemanha,pelofatodeaprimeira-ministraAngelaMerkelsermuitoamigadele.Assim,Lulateriapelomenos60milhõesdedólaresenterradosemalgumlugardaAlemanha.

Penseicommeusbotõesqueaideianãoétãomalucacomoparece.Depoisde quatro anos martelando várias horas ao dia que alguém é ladrão, a mídiavenal, comandada pela Rede Globo, consegue convencer muita gente de quequalqueruméladrãooucriminoso.Aíésóacharosubterfúgiomaisàmão.

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Cada um pode construir a história que lhe parece mais verossímil. Acondenaçãojáestáfeita.Háatéhistóriasdeconflitosquecomeçaramdevidoamentiras deslavadas da imprensa, como a guerra entre os EstadosUnidos e aEspanhanofinaldoséculoXIX.Inácioémaisumentremilhõesqueseagarramaalgoquesoaconvincente.

Ináciocontaquechegouaganharumbomdinheirocomocorretorentre2010e 2014, período em que houve uma grande alta nos preços dos imóveis ealuguéis no Rio. Com o que ganhou, comprou um apartamento e quando aimobiliária faliu,em2016,comomuitasempresasnacidade,aindarestavaumdinheirinho,queinvestiunacompradedoiscarrosdeluxo,umqueeleprópriodirigeeoutroqueterceiriza.Àsvezestrabalhamjuntosparaalgumeventoqueaindaacontecenacidade.“Ganhoumterçodoqueganhavaanteseminhavidanãoéfácil,soudivorciadoetenhoquepagarpensãoparaosfilhos.Issotudoporcontadaroubalheiradapolítica.”

Na opinião de Inácio, a política acabou com o Rio de Janeiro. O velho esurradopatrimonialismocontinuasendoomaisperfeitobodeexpiatórioparaarapinadomercadoporseusdonos,quepermaneceminvisíveis.

Mas ainda que possa confundir omundo para as pessoas, a imprensa nãoconsegueelaborarumanarrativaquesejafavorávelaoscandidatosdaeliteedeseupartido,oPSDB.Assim,quemficacomosvotosdadireitaéBolsonaro,poistodos notam o comprometimento do sistema político como um todo. Ele épercebidocomoopolíticoquedesprezaapolítica,umacontradiçãoemsi,umpolíticoapolíticoequevaibotarordemnabagunça.EévistoporInáciocomoumaespéciede“vingadorpessoal”:

Oquegostono“Bolsomito”équeelediztudooqueeuqueriadizerenuncaninguémantestinhadito.Ocaraécorajosoesincero.Éissoquegostonele.Euapoiotudooqueelediz.Temquearmarapopulaçãomesmo.Porquesóobandidotemarma?Etemqueacabarcomasempresasestatais,quesãosócabidedeemprego.Omercadoéqueéeficiente,nenhumempresáriovaidarempregosópararetribuirfavor.

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Omercadoépensadoporelecomolivrecompetição,comonaspadariasdebairro,competindoparaverquemproduzopãomelhoremaisbarato.Assim,omercado não tem monopólios, não explora ninguém e os juros de 300% nocartãodecréditosãoumarecompensajustaàvirtudeinatadomercado.

QuandoperguntoseadestruiçãodaPetrobras–queinteressavaàspetroleirasamericanaseseussóciosnoBrasil,tendocomotropadechoqueaRedeGloboeaLavaJato–não teria sidoaverdadeira razãoprincipaldadecadênciadeseunegócio, Inácio não se deixa perturbar nas suas crenças. Na sua opinião,adquirida e bem administrada por estrangeiros, que são honestos por seremmerosempresários,enãopolíticos,aPetrobrasvoltariaafazerdoRiodeJaneirooqueera.Nestecaso,o lucronão iria todoparaoutropaíseparaasmãosdeumameiadúzia,enãomaisparaoRio?

AindaassimInácionãose fazde rogado: se issoacontecesseaculpaseriainteiramentedoPT,queteriausadoaPetrobrasparaenriqueceresemanternopoder. O antipetismo é a fórmula mágica para os que se encontram emdecadênciasocialeprecisamdeumbodeexpiatórionoqualjogaraculpa.ComoInácioacreditanameritocracia,semumbodeexpiatórioconvenienteaculpadasuadecadênciasocialteriadesertributadaàsuaprópriaincompetência.

Para ele, administrada por estrangeiros, a Petrobras contribuiria para criarmelhores empregos na cidade, pois teria maior produtividade. A oposiçãomercado/Estado aparece, assim, como a oposição entre o bem e o mal. AdistorçãomidiáticaafetapessoascomoInácioemseupróprioâmago.

Como se identifica como “alguém do mercado”, ele vê todo interesse domercadoassociadoe comoprolongamentode seupróprio.Perguntoa elequaleconomista ele costuma ouvir ou ler. No rádio, acompanha sempre oscomentários de Carlos Alberto Sardenberg: “Ele é um cara ponderado, quemostra como o Estado é um saco sem fundo e tira por meio de impostos odinheiroqueomercadoprecisaparainvestir.”

NocasodeSergioMoro,Inácioachaqueojuizébem-intencionado,masnãopodeirmaisfundonasinvestigaçõessobreospoderosos.Quandolhepergunto

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se acredita na história de queMoro é do PSDB, Inácio diz que não passa dementira.Eleseriaumjuizduro,masisento.PorémconcordaqueoPSDBsesaiubem.

ÉporcontadissoquegostodoBolsonaro.Elenãolivraacaradeninguém.Morotentou,masnãoconseguiuiratéofim.Éprecisoumcaraquetenhamuito colhão para fazer essa faxina, e isso o Bolsonaro tem mais quequalquerum.

Para Inácio,BolsonaroseriaumaespéciedeSergioMorocomumfuzilnamão.É,aliás,incrívelacontiguidadeentreessesdoispersonagensnoimagináriosocialdeváriaspessoasdeperfilmaisconservadorqueentrevistei.ÉcomoseoprestígiodeMoroaté2016,quandoaindaeratidocomooxerifedobairro,enãoapenaso“perseguidorpessoaldeLula”,tenhadebandadodepoisparao“mito”em torno de Bolsonaro. Como se Moro tivesse passado o bastão em plenacorrida de obstáculos para Bolsonaro, para que este concluísse o trabalho delimpezaqueeleteriacomeçado.

Taispessoassãocomoqueimunesaoaprendizado.OfatodeMoronãoterrealizadooqueprometeu–afaxinageraleirrestrita,enãosóaperseguiçãoaoPT–nãolevaaumacríticadessetipodepromessavazia.Nemàreflexãomaisprofundasobreomotivodeessetipodepromessasersemprevazioementiroso.Ao contrário, sempre se procura o cara que, afinal, vai fazer o que os outrosapenasprometeramemvão.EagoraBolsonaroéaboladavez.

William:oengenheiroqueviroumotoristadaUber

ConheciWilliamcomomotoristadoUbernoRiodeJaneiro.ElemecontaquefoiengenheirodaPetrobrase,comacrisenaempresa,acabousendodispensadocom vários outros: “Conheço mais seis engenheiros que foram demitidos na

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mesma época e hoje em dia são todos motoristas de Uber como eu”, contaWilliam.

Fiquei chocado com a derrocada econômica do estado fluminense e suasconsequênciasnorepentinoempobrecimentodaspessoas.Porém,aoperguntaraWilliamcomoexplicavaessacrisedacidadeedoestado,elemefaladapolítica,SérgioCabraleacorrupçãodopaís.

PerguntosenãoachaquehouveumesquemamontadoparaaRedeGloboeaLavaJatodemonizaremaempresaeentregá-lademãobeijadaaosestrangeiros.Williammerespondequeissotalveztenhaocorrido,masospolíticossãoquemagenteelege–eédospolíticosquetemosdecobrar.

Esse tipo de resposta é muito comum, revelando até que ponto, para aspessoas, só existiria interesse organizado no Estado e na política, nunca nomercado.É como se omercado fosse constituído de pessoas comuns, comoopadeirodaesquinaeindivíduoscomoopróprioWilliam,enãodecorporaçõespoderosas,oligopóliosemonopólioscompoderde imporsuasagendas.Orealpoderéinvisível.Éissoqueofazverdadeiramentepoderoso.

Quandoperguntadoseaindavotariaemalguém,elemedizquevotariano“mito”.“Emquem?”,perguntei“NoBolsonaro.”

Ele diz o que a gente acha dessa situação toda semmedo nem papas nalíngua.Edoaaquemdoer.OBrasilprecisaserrefeitoporinteiro.Aquitodomundo só quer roubar e tirar vantagem.Nenhum país avança desse jeito.Temqueterumaditaduraparabotarordemnascoisas.

Oquevocêsabesobreaditaduramilitar?

Não sei muita coisa, porque nasci depois da ditadura. Mas sei que osmilitares roubaram menos e que pelo menos não havia tanta bagunça einsegurança.Olhaparamim,deiumdurodanadoparaconseguirascoisase perdi tudo. E não sou o único, muita gente perdeu tudo por conta de

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corrupçãoedabagunça.Semprefiztudodireito,nuncafiznadadeerrado,equemlevatudoéobandido.Bandidocomgravataetudo,masbandidodomesmojeito.MinhamulherédentistaevotanoBolsonarotambém.

QuandoentreinapáginadoFacebookdeFlávia,mulherdeWilliam,antesdeentrevistarosdoisemconjunto,vioretratodeBolsonaroparapresidentejánacapadoseuperfil.ApáginaéatualizadaváriasvezesaodiaeFláviatemorgulhode sua escolha. Apenas Sergio Moro tem ali tanto espaço quanto Bolsonaro.Moroéretratadocomopaladinodajustiçaeoflagelodospoderosos.

Flávia compartilha tudooqueoMovimentoBrasilLivre, oMBL,divulganasredes.Éumalinguagembinária,baseadanaoposiçãoentreobemeomal,emqueasquestõesmaiscomplexassãoexplicadasemesquemassimplificadoseabertamente enviesados. Omercado é visto como a saída de tudo e o Estadosempreassociadoacorrupção.

Ela tambémfrequentaaspáginasdopessoaldaesquerdaparaprovocar.Setopa comuma foto da pessoa abraçandoLula num comício, dispara sempre omesmo comentário: “Ah, agora entendi!” O sentido da mera associação comLula faz parecer que a pessoa não é confiável e que tudo que vem dela écontaminado.Flávia repete compulsivamente estemesmoprocedimento, comoseparasejustificaresetranquilizardesuasescolhas.

Boa parte do Facebook de Flávia é dedicada a uma viagem que fez a umcongressonosEstadosUnidos,emAtlanta,noestadodaGeórgia,compassagemtambém por Miami. Ela conta para as amigas que levou “uma dura” de umpolicial porque estava encostada em monumento público. O episódio marcoumuitoFlávia,queoviucomoumademonstraçãodorespeitoqueosamericanostêmemrelaçãoaoqueépúblico.

Poroutro lado, também foiumdosmaiores constrangimentosde suavida.Elasesentiu“muitopequenininha”eenvergonhada.Emoutraviagem,destavezaAracaju,fezfotosdeturistasedecriançasemcimadonomedacidadenumaviacosteira,enoscomentárioscomparoua“faltadeespíritopúblico”noBrasilcomarigidezamericananoassunto.

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OencontrocomocasalfoinumbarnaTijuca,umbairroclássicodamassadaclassemédiacarioca.O local ficavabempertodeondemoram,eopaieamãedeFlávia,quemoramcomeles,tambémestavampresentes.Fláviaéafáveleumpoucotímidapessoalmente,maisinseguradoqueimaginavaemfunçãodaagressividadedesuapáginanoFacebook.

Após uma jornada de 13 horas dirigindo pela cidade, William estavavisivelmentecansado.Ocasal temuma filhapequena,deumanoemeio,quepassaodiasoboscuidadosdosavós.Williammeconta:

Malconsigoverminha filha,quandochegoemcasaela jáestádormindo.Quando planejamos ter um filho eu ainda era funcionário da Petrobras epretendiacurtirminhafilhacomumempregoseguroetempoparaafamília.Masdeutudoerrado.

HojeemdiaomeuempregoeodaFlávia,queganhamaisqueeu,nãochegam juntos a 10 mil reais líquidos ao mês. Antes eu sozinho ganhavaquaseodobrodisso.Eaindatemosquenosendividarummêsououtro.Ficomuitoputoque,porcausadeunsbandidos,eutenhaperdidomeufuturo.

Quandovoupodertrabalhardenovocomoengenheiro?Minharevoltaégrande. Mas existem milhares de pessoas na mesma situação que eu. Ouaindamuitopior.ORiodeJaneiroestánamiséria.Nãotemempregoparaninguém.Aviolênciaestáportodoladoetodomundotemmedodesairnasruas.Écadavezmaisraroverumcarrodapolícia.

A cidade está completamente abandonada. A gente ainda tem sorte denão passar fome. Tenho colegas de Uber que ainda pagam o aluguel docarroe trabalhamcomoumbichoparaganhar2milaomês. Issonãodánemparacomer.Eu,pelomenos,játinhacarropróprio.Oqueganhoémeu.

Nessaalturadenossaconversa,ospaisdeFlávia,namesaaolado,começamafalarmaisalto.Aposentadode77anos,Toninhoestárevoltadoporque,naqueledia,umameninade12anos teveocelular roubadonas redondezas.Amenina

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gritoueo ladrão foi cercadoporpopulares.Omotivode sua raivaéqueumapessoanãodeixouqueoladrãoapanhassedapequenamultidãoeficouaoladodeleaté a chegadadospoliciais.E se justificoudiantedosoutrosdizendoquetodomundotemdireitoshumanos.

EraistoquerevoltavaopaideFlávia.Toninhoquasegritavaparachamaraatençãode todos,masosoutros frequentadoresdobarnão lhedavamatençãonemsesolidarizavam.Emvistadisso,Toninhofalavaaindamaisalto:

Direito humano de bandido, que coisa é essa? Uma menina de 12 anos!Direitohumanotemosnósquetrabalhamos,pagamosimposto,nãofazemosmal a ninguém! Direito humano de bandido?! E nós, que trabalhamos efazemostudodireito,comoficamos?

A indignação de Toninho me parecia uma caricatura. Compreendi deimediato a filha Flávia, ao mesmo tempo insegura e agressiva. Medo eagressividade eramo verdadeiro oxigênio que a família respirava.Esse é o arquetodofascismorespira.

Mirtes:aaposentadaquefoiàsruasesearrependeu

OrelatodeMirtesmefoicontadoemumaentrevistapresencial,complementadapor conversas via Skype. Ela adorou ser entrevistada e saber que sua históriainteressavaaalguém.Mirteséviúvadesdeos50anosehojetem63.Contou-meque chegou a ir a alguns bailes para pessoasmais idosas,mas odiou a formacomooshomensabordavamasmulheresnesseslugares.

Euchoravatodavezquevoltavaparacasa.Apartirdecertodiadesistiemeconformei com minha vida. Hoje vivo bem com minha “escolha” e mededico apenas ao meu filho, que é cadeirante, professor universitário, e

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dependemuito demim. Ele sempre foi a coisamais importante daminhavida,mesmoquandoopaieravivo.

Mirtes me mostrou fotos das manifestações de que participou em PortoAlegre,comafamíliaeosamigos,contraoPTeacorrupção.“Aquelafoiumaépocadeouro”,relembra.“TudoindicavaqueiríamosrefundaroBrasileacabarcomtodaabandalheiraesujeiradapolítica.”Emtodasasfotos,estávestidacomacamisadaseleçãoebandagemnatesta,compalavrasdeapoioaSergioMoro,sorriso aberto, abraçada com as amigas, numa felicidade pública que se tementrenósapenasquandoopaísécampeãodaCopadoMundo.

Aquele foi um tempo diferente. Tínhamos um grupo de amigas e fazíamosencontros toda semana. Cada semana era na casa de alguém. A genterespiravapolítica.Foi a primeira vez queme senti importante e senti queminha opinião valia alguma coisa. A política sempre foi importante paramim.

Sempreprocureimemanter informadae lia todososdiasoZeroHora,parasaberascoisasdaquidaregião,etambémaFolhadeS.Paulo,parameinformarsobreopaíseomundo.AFolhatemgentedetodotipoescrevendo,por isso eu lia e ainda leio o jornal inteirinho. Meu filho só pensa emengenhariaenãolêoutrascoisas,maseuoforçavaaler.Àsvezesliaparaeleasnotícias.Umprofessornãopodeseralienadodascoisasedomundo.

Eu confesso que, entre 2013 e 2016, minha vida mudou inteiramente.PelaprimeiravezsentiquefaziadiferençaparaavidadoBrasilcomoumtodo. Sou muito ligada à família, e íamos juntos às manifestações, todosvestidoscomacamisadaseleção.Passeiaparticipardasredessociaisefizamigos no Brasil todo. Antes, quando usava as redes sociais, só postavafotosparaafamília.

Nosanosdasmanifestações,entreiemváriosdebatescommuitagente,sempre evitando a violência e a grosseria, mas tentando convencer as

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pessoasdomalqueoPTfaziaaopaís.Eurealmenteacrediteiquetudoiriaficarmelhor.Econseguiconvenceralguns.Tinhaamigosqueerampetistasfanáticos e que se decepcionaram com o partido. Eume via fazendo algoimportante para os outros e para o país. Era muito ativa nas redes,praticamenteodiatodo.

Minhamaiortristezaéasensaçãodetersidoenganada.Acorrupçãosófezaumentardesdeentãoeninguémmaisvaiparaacadeia.EurealmentepensavaqueoPTeraumaorganizaçãodecriminosos,eoLula,ummafioso,olíderdeles.Aquinoestado,semprevoteinoPMDB,nuncanoPT.E,parapresidente,semprenoPSDB.Mashojevejopelotrabalhodomeufilhoqueascoisasnãoerambemassim.

A universidade tinha dinheiro e ele sempre comemorava as pesquisasque ganhava do CNPq. Praticamente todo ano tinha pesquisa nova, e anossacasaviviacheiadeestudantesquerecebiambolsasparaosprojetosdele. Ele até viajou para outros países, para pesquisar, tudo pago pelogoverno.Agoranãotemmaisnada.

IssomostraquetinhacoisasboastambémcomoPTeissotudoacabou.Minhaaposentadoriaépequenaeminhastrêscasinhas,quemeumaridomedeixou,sãodifíceisdealugar.Ninguémtemmaisdinheiro.Baixeioalugueldetodas,masaindaassimédifícilconseguiralugar.

Meu filho hoje em dia se preocupa mais com a política. Diz que ogovernoatual quer acabar comapesquisa e coma inteligência nopaís equeninguémligaparanada.Eutambémachoisso.Auniversidadenãotemdinheiro nempara papel higiênico emuitos queremabandonar a carreiraporfaltadeperspectivas.

Issomerevoltaporqueseiqueapesquisaeraavidadele.Hojeosalunosdesaparecerameeleestásemmotivaçãoparaavidaeotrabalho.Éporissoquemesintoenganada.Tantoesforçoe tantalutaparaisso?Participeidetodososcomíciosdesde2013.

Nossaideiaeraconstruirumpaísdecente,botarnacadeiaoscorruptoseusarodinheiroparaobemdopaís,enãoparaobolsodospolíticos.Mas

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hojeemdiaorouboémuitomaiorenãosobradinheiroparanada.Algunsamigos das redes sociais agora apoiamoBolsonaro por conta disso.Nãoconfiammaisemninguém.

Easenhora,oqueachadele?

Sempreacheiessehomemhorrível.OqueelefezcomadeputadaMariadoRosário, aqui do RioGrande do Sul, foi um absurdo. Um desrespeito emrelaçãoatodasasmulheres.Euseioqueéissonapele,ser tratadacomobicho,semomenorrespeito.Temhomemqueachaquemulheréumpedaçodecarne.AquiloqueeledissenovotodelecontraaDilma,homenageandoumtorturador,foioutroabsurdo.

As pessoas perderam a noção das coisas e o ódio foi tomando conta.Esserapazéumdoente,nuncavotarianele.Aliás,tevemuitoexagerocontraDilmasópelofatodesermulher.Comissonuncaconcordei.UmsobrinhomeuatécolouumadesivonocarrocomaDilmadepernasabertasnolugarondeamangueiradagasolinaentrava.Convencielea tirar. Issoeraumaagressãocontratodasasmulheres,enãosócontraaDilma.

OqueafazianãogostardoPT?

Eusemprefuicontraopopulismo.Opovoémuitofácildeserenganadoporqualquer bobagem. Sempre desconfiei das propagandas que prometemmuito. Especialmente no interior do Nordeste, mas nas cidades maiorestambém. E os pobres querem imitar os mais ricos mesmo quando nãoprecisamequando isso lhes trazproblemas.Lembrodaépoca,anosatrás,emquetodomundoqueriaterumcarroe,derepente,asruasseencheramde carros, porque todo mundo, mesmo sem precisar, queria ter um carrocomosímbolodestatus.

O rapaz queme ajudava nos consertos dasminhas casas para alugar,

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porexemplo,comprouumdaquelescarrosquadrados,maisvelhos,deviateruns 15 anos de uso, e o carro quebrava tanto que nem dava mais paracontarcomele.Quandousavaoônibus,nãoatrasavanunca.

Depoispassouagastaroqueganhavaemconsertosparaocarro.Masapolítica estimulava isso. Isso eu sou contra ainda. Todo pobre queria tercarroparaterstatus.Mesmosempodermanter.Eotrânsitoficouhorríveltambém.

A minha empregada, que está comigo há muito tempo e tem quase aminha idade, nãodá contamais de fazer faxina.Entãoa filha dela de 20anosmeajudavatodosábado.Eusempredeitudoparaelas,enãoeracoisaruimnão.Roupaboa,queuseipoucasvezes,sempredeiparaamãeeparaafilha.Ajudavaemproblemadesaúdeporquetenhomédiconafamília.

Amãesemprelevavacomidaparacasa,paraafilhacomerbemquandovoltassedocolégio.Enãoerasósobradecomida.Doboloquefaziaparaasamigasdapolíticaeusempremandavaumpedaço.Enãoéqueafilhaderepentequeriamecobrarpelafaxinadosábado?Depoisdetudooquefizporelaepelamãe?Euajudeiessameninadesdequeelanasceu.

EaculpadessasituaçãoeradoPT?

AchoqueoPTcriouapolíticado“nós”contra“eles”eeraissoquemaismeirritava.Issoestimulouaingratidão,queparamiméomaiordefeitoquealguém pode ter. As pessoas, especialmente os mais pobres, ficarammaisegoístasenãodavammaisovalordevidoàscoisas.Issoeraumacausaderevoltageralentreminhasamigas.

FoioPTqueestimulouisso.Foipuropopulismo,sóparaganharovotodessaspessoas.Ovotodecabresto,comosediz.Emvezdeestimularapazea união, estimularam a divisão, o egoísmo e a ingratidão. Minha mãesemprediziaquenãoexistedefeitopiorqueaingratidão.Queméingratoe

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nãoreconheceobemquelhefoi feitoécapazdetudoderuim.Aspessoasestavamficandoegoístasepensandosónelasmesmas.

Eoqueasenhoranãoémaiscontra?

Hoje emdia, a educaçãonão vale nada, e na épocadoPT era realmentemelhor,tenhoqueadmitir.Sentiissonapelecomomeufilho.Elepassouavidaparaserpesquisador,ajudaropaís,eeleécompetentedeverdade,viveparaisso.Amaiorfelicidadedele,eaminhatambém,eraquandoganhavaos editais do CNPq. Usava tudo que tinha para estimular os alunos combolsadeiniciaçãocientífica.Todostinham.Compravalivrosparaosalunos,publicava os trabalhos nas revistas, toda semana tinha reunião aqui emcasa.

Sintomuitafaltadissoeelemuitomaisqueeu.Ogovernoqueestáaísóquerroubar,roubamaisqueoPTenãofaznadadebom.Estádestruindoopouco que a gente tinha. Não sei por que só a corrupção do PT eracombatida.Hojeémuitopior,nãosobradinheiroparanada.Lutamostantopor nada. É muito triste. Se soubesse não teria participado de tudo. Nãovaleu a pena. Simplesmente o que era ruim continuou e o que era bomacabou.Ficamoscomopiordetudo.

Lídia:comosetodotipoderacismofosseumacoisasó

LídiaénegraenasceunumafamíliapobredaperiferiadeNatal,noRioGrandedoNorte.Opai,mulato,eramilitar;amãe,negraenetadeescravos,trabalhavacomoempregadadoméstica.Lídiaéasextadeoitoirmãos.Opai,26anosmaisvelhoqueamãe,eraosenhorabsolutodacasaetinhanorigor,nadisciplinaenahonradecumprirapalavraseusmaioresmotivosdevida.

Amãe, por outro lado, trazia consolidadas em sua personalidade todas as

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feridasdoracismo“racial”brasileiro.Elaprópriarepetiaemcasaque“preto,senãocaganaentrada,caganasaída”,ediziaàsfilhaseaosfilhosqueosbrancoseram melhores em tudo. Também insistia que tinham de “clarear” a família,comoumaresponsabilidadepessoaldecadaum.

Na lembrança de Lídia, era como se o racismo penetrasse em tudo econtaminasse tudonaquela casa.Como seo racismoestivesse antesde tudooquesepensa,antesmesmododisparodequalquersinapsenocérebro.

Poralgumarazão,opaideLídiaaescolheuparaumatarefaque,emvezdeser um prêmio, virou um tormento. Desde os 8 anos de idade, Lídia eraencarregada de controlar o dinheiro que o pai deixava para toda a família,inclusiveparaamãe.EssainversãodeautoridaderendeuaLídia,enãoaopai,oódiodetodos,obrigando-aalidarcomtodotipodevingançaseressentimentos.

Tiravaodinheirodesuaprópriacotaparaabrandarosentimentodosirmãos.Maseradamãe,queachamavadefalsaefingidaediziaqueelanãoprestava,dequemrecebiaemtenraidadetodaaraivaquenãopoderiaserdirigidaaopai.Sua infância foi marcada pelas constantes ameaças da mãe por causa dessedramafamiliar.

Um militar nacionalista que depois seria perseguido pela ditadura, o paiprotegiaLídiaeasoutrasfilhasmaisqueosfilhos.Apesardeconservadornoscostumes,eleinsistiunaeducaçãodelas,afimdeque“nuncaprecisassemdeumhomemparasobreviver”.

Elemesmoseencarregoudealfabetizarosfilhos,etodoschegaramàescolasabendo ler e escrever.Depois do golpe de 1964, o pai foi preso e enviado aFernando de Noronha, sem soldo, o que agravou as dificuldades da família.Mesmo depois de solto e aposentado compulsoriamente, a redução dosrendimentoslevouafamíliaamudarparaSãoGonçalo,naperiferiadeNatal.

A infânciaatribuladadeLídiaaconvenceudequeseuúnicocaminhoparasobrevivereramosestudos,aosquaispassouadedicar todoo tempo livre.Naescolapública,foialvodomesmoracismoqueconheciaemcasa.

Decididaaseramelhoraluna,Lídialogocomeçouasedestacar.Masemseuboletimescolarsemprehaviaumanotadestoante,noitem“aparência”.Embora

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recebesse “excelente” em todas as matérias, em “aparência” não passava do“regular”. Ela nunca entendeu essa nota. Afinal, tomava banho antes de ir àescola,vestiaamelhorroupaquetinhaenemmesmobrincavanorecreioparanãosesujar.Nenhumacriançaeramaislimpadoqueela,masnãohaviacomomudaranotade“aparência”.

Tinhacriançaqueiadechinelo,enquantoeusempreiadesapatinho,masosoutrosrecebiam“excelente”pelaaparência,eeununcapassavaderegular,pormaisesforçoquefizesse.

EssaexperiênciainfantilfoiapenasaprimeiradotipodeembatequeLídiairia travar a vida inteira. Sem compreensão racional do racismo, difundido naprópriacasacomoumdadonãosónatural,maspercebidocomo“correto”,comoumpreconceitobemfundado,tevedelutarcontrauminimigoinsidioso.

Mesmo assim, para sobreviver, sabia que tinha de ser melhor que todos,comonaescola,mesmoquetalesforçonãofossereconhecido.Oestudotornou-seentãoumaarmanessalutainglória.Sóassimelapodiaser“algumacoisa”.Aobullyingconstante,Lídiaseopôscomaindiferença,lembrandosempredafrase“oquenãomematamefortalece”,ditacertavezporumdosirmãos.

Sem montar uma defesa psíquica, é impossível conseguir, porque tudoarrasta você para baixo. Todos os dias, eu repetia para mim mesma quesobreviverétudo.

Lídia continuou tirando asmelhores notas.Epassou emprimeiro lugar novestibular para o curso de engenharia zootécnica numa universidade federal.Comisso,conseguiuumavaganodormitóriodosestudantesepassouavenderdocescomumaamigaparasealimentarnorefeitóriouniversitário.

Paraseguiradianteeserminimamenteaceitanauniversidade,Lídiaassumiaamaiorpartedetodootrabalhoemgrupo.Emboratodosrecebessemamesma

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nota, era sempredelaomaior esforço. “Minhavida sempre foi assim. Jánemachavamaisestranho,simplesmenteeraassimqueascoisaseram.”

AsboasnotasacredenciaramparaumprojetodogovernofederalnoAmapá,onde, como agente de saúde pública, liderava uma das turmas volantes quepercorremointerior,cuidandodegentepobreedeseusanimais.

Tivequedesenvolverumaagressividadequenãoeraminha,senãocomoiriacomandarhomensepeõessemserridicularizada?Nãofoinadafácil.

DepoisfoitransferidaparaoRiodeJaneiro,ondetambémseocupavacomoatendimentodepopulaçõescarentes.ComooprojetocontavacomoapoiodeumnúcleodeestudosdaUniversidadeFederalFluminense,aUFF,constituídoporpessoasdeesquerdaeformaçãohumanista,essaexperiênciafoitransformadora.

Pelaprimeiraveznãomesentiexploradaporninguém.Pelocontrário,passeiaservalorizada.Nãohaviareflexãooudebatesobreracismooupolítica,eramsimplesmente pessoas que respeitavam os outros. Eu me sentia feliz comonunca,apesardeosaláriosermenordoqueeuganhavaantes.Lembrosóquemesentiafeliz,semsaberexatamenteomotivo.

Nósajudávamosaspessoasmaispobres,gentequenão tinhanada.Foiaíqueconhecipessoasquetinhamtidoaindamenoschancesdoqueeu.Essaspessoaseramculpabilizadaspelaprópriamisériaetambémseculpavamporisso, assim como na minha família nos culpávamos pelo fato de sermosnegros.

Vi uma mãe condenada por todos por não ter vacinado a filha, queterminoumorrendo. Ela nem sequer sabia que havia vacina ou que tinhaessedireito.Mastodosacondenavamassimmesmo,comoseelapudesseteragido de outro modo. E eu percebi que ninguém estava mais triste edesesperadadoqueelamesma.Essaexperiênciafoicomoumespelhopara

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mim: conheci o racismode classe, o racismo contra simplesmente quemépobreesemmeios.Foiaíquepercebiquetodoracismoéumacoisasó.

Foi também nesse grupo que Lídia conheceu seu atual marido. Michel ébranco, judeunão sionista, críticodaopressãodoEstado judeunaPalestina, eainda por cima de esquerda. A família se opôs ao seu casamento com umamulhernegra,masMichelnãodesistiu.Naverdade,foielequeajudouLídiaarefletiracercadesuavidanostermosdelutacontraoracismocotidiano.“Masalutaéárduaenuncatermina,nãovaiterminarnunca”,asseguraela.

Na época em que namoravam, Lídia sempre inventava uma desculpa paranãoirarestaurantes.Elatinhauma“fobia”,um“pânico”.

Naprimeiravezemquesaícomeleparajantar,sentitonturaenãoconseguificar.Nãoachavaqueserservidanumrestaurantefossecoisaparamim.Écomo se as coisas que minha mãe dizia sobre a inferioridade do negrotivessem se tornado uma reação corporal, antes mesmo de qualquerpensamentoouação.Sevocê forpensarna injustiça,nãoconsegueseguiradiante.Passaafazerpartedevocê,misturasentimentoerazão,evocêficasem defesa. Tenho até vergonha de contar, mas cheguei a comprar umaquentinha e comer na calçada e no frio, enquanto as pessoas lá dentrocomiamàluzdevelas.

Graças ao extraordinário esforço pessoal, Lídia conseguiu entrar para oquadro técnicodeumagrandeempresaestrangeiradoramofarmacêutico.Mastambém ali, no começo pelo menos, sentiu a mesma exploração e a mesmasensaçãodenãotervoz.

Nos últimos anos, as coisas mudaram para melhor. Entrou no comitê degêneroeraçadaempresa,oqueamotivoualereaprendermaissobreoassunto.Depois,apesardebrancoedaclassemédiaestabelecida,seuchefeégaye,alémdecompetenteejusto,sabeoqueéseralvodopreconceito.

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Mas isso não significa que acabe o racismo; como disse, ele não acabanunca.Quandovouacongressosdaempresacomoscolegas,todasasvezesacontecem coisas só comigo, e nunca commeus colegas brancos. Semanapassada, num congresso de funcionários da empresa em Belém, eu iaapresentarumpaineleseguiaparaumasalajuntocomosqueiriamrealizarpalestras.

Naentrada,amoçanãoparaninguém,sóamim,queestavachegandoporúltimo.Elamepedeocracháe,comoneleestáescrito“convidado”,enão “palestrante”, sou encaminhada a uma sala que não me permite teraceso ao painel que vou apresentar. Eu explico e não adianta nada. Sóquandovemumcolegabrancoeinsisteéquepossoirparaolugarquemepertence.

Ànoite,nojantardeconfraternizaçãodosparticipantes,asituaçãoserepete.Todosentramsemquetenhamdemostrarocrachá.Sóaela,Lídia,ocracháépedido.Comomuitos,elaohaviadeixadonoquartodohotel.Umcolegaquisajudar e chamar os organizadores. Mas ela já havia perdido a motivação ealegria, epreferiuvoltarparaohotel. “Issoaconteceo tempo todo,àsvezesagentecansadelutar.Oracismodesumaniza.”

Eapolítica?Ah,eusou13,eusouLula!Lulaécomoeu,nordestino,pobre,eissodesafia

a grande indignaçãobranca, rica e racista.Ummembroda ralé, portanto, semmerecimentonenhum,semdiploma,aprisãodeleéminhaprisão,edetodosospobres,dosquenão têmnemnunca tiveramnadanestepaís.EuvotoemLulaporqueLulasoueu!

Gisálio:avitóriasobreapobreza

Nascidonumafamíliapobre,Gisáliotem31anoseéprofessordaredepúblicade ensino em Brasília. Sua mãe era descendente de espanhóis que haviam

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migrado para o Brasil fugindo da guerra civil na década de 1930. O pai eranegro,nascidoemPernambucoebisnetodeumaescravaliberta.Criadanomeiorural, amãe deGisálio,Angélica, conseguiu estudar e arrumou emprego numcartório de Novo Horizonte, no oeste do estado de São Paulo. O pai eracaminhoneiro.ComoospatrõesdeAngélicaconseguiramumcartórionovonacapital, ela semudouparaSãoPaulo,ondeconheceue secasoucomopaideGisálio,contratadocomomotoristaparaamesmafamília.

Gisálio nasceu em 1987, num pequeno apartamento de três cômodos nobairro de classe média de Santa Cecília. Pertencente à família dos donos docartório,oimóvelfoialugadoapreçomódicoaospaisdeleparaquemorassemperto dos patrões e melhor os servissem. Gisálio teve uma infância de baixaclassemédia,semluxos,massemnecessidades.Afamíliacomia,porexemplo,carnetodososdias,aindaquequasesemprecarnedesegunda.

ElelembraqueopaigostavadelersobreaSegundaGuerraMundialesobretemasdegeografia.Umdeseuspassatemposeramontarcomofilhoumatlas,naépocavendidocomosuplementodojornalFolhadeS.Paulo.ParaGisálio,estefoiumdosmotivosqueolevaramagostardegeografiaehistória,amatériaquehoje ensina aos alunos da rede pública doDistrito Federal. Esse foi o grandelegadoimaterialdopaicaminhoneiroedepoismotorista.

Naviradado séculoXXI,ospatrõesperderamaconcessãodocartórioemSãoPaulo, e seuspaispassarama enfrentargravesdificuldades financeiras.Afamília voltou a Novo Horizonte, para viver de favor na casa dos pais deAngélica.Amãeajudavacomtrabalhoseventuaisnoorçamentodacasa,masopaitevedificuldadeparaenfrentarodesempregoecomeçouabeber.Forammaisdecincoanosconvivendocomoalcoolismodele,relembraGisálio.

Essesanosdeadolescênciaforamdurosparaele.Nãohaviamaiscarnenasrefeições,restritasaofeijãocomarroz,devezemquandoreforçadoporumovo.Gisáliotinhavergonhadopaiedanovasituaçãofamiliar.Alémdisso,aescolapública de Novo Horizonte era muito fraca e não preparava ninguémadequadamente.Elerelataqueváriosamigosdaépocacaíramnacriminalidadee

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acabaram presos. Mas havia um professor, o de literatura, que conseguiudespertarneleumnovoimpulsoparaoconhecimento.

No contexto de pleno emprego dos governosLula, o pai deGisálio afinalconseguiuempregocomomotorista.Asituaçãomelhorouumpoucoeoaumentodarendafamiliarfoiinvestidonumcursinhoparticularpré-vestibular.Orestodafamílianãoviacombonsolhosessetipodegasto.Umdostiosnãosecansavade cobrar: “Qual o problema em ser motorista como seu pai? Você não temorgulhodele?”EraquaseumaagressãoàfamíliamaiorqueAngélicainsistissetantonumaambiçãotãodesmedidaparaafamíliapobre.

Porém, tantopara o pai quantopara amãedeGisálio, o estudodos filhossemprehaviasidoumobjetivosonhadoemconjunto.Aos12ou13anos,quandooscolegasdeescola tinhamde trabalharmeioperíodo,ospais aguentavamaspontas para que ele e a irmã só estudassem. “Quero ver você juiz! Ou pelomenosqueváparaaMarinha”,costumavadizeropai.

EmSãoPaulo, quandoospais ainda trabalhavamparaodonodo cartório,Gisálio e a irmã frequentavam uma escolinha particular de classe média. Elesentiavergonhapelo fatodeopai sermotorista,ementiaaoscolegasdizendoque o carro do patrão pertencia a seu pai. Gisálio sentia na pele todas asambiguidades do agregado entre nós, tema já tratado neste livro. As questõesprincipaisaquisão:Quemeusou?Aquemundopertenço?

MasfoinocursinhoparticularemNovoHorizonte,pagocomesforçopelospais, que se manifestou o resultado concreto do estímulo ao estudo semeadopelos pais em meio a tantas dificuldades. É que lá Gisálio encontrou bonsprofessores que o estimularam. O professor de história lhe apresentou Marx,Gramsci ehistoriadoresmarxistas inglesespara interpretarocapitalismoe suaformação.

Ode literatura abriu-lheosolhosparaosgrandes autoresbrasileiros comoMachado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Gisálio descobriuentão uma inclinação política que nunca mais irá abandonar. Decidiu-se pelomagistério,afimdefazercomoutrosjovensoqueaquelesprofessoreshaviamlheproporcionado,abrindoosseusolhosparaomundo.

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Assim,entrouparaocursodehistórianaUnesp,emAraraquara,depoisdepassarnovestibularcomexcelentepontuação.Issosóreforçouasabotagemdafamíliaampliada,dosprimosetiosquenãotiveramamesmaoportunidade.Masonúcleofamiliarsemanteveaindamaisunido,agoraquesetornavarealidadeosonhodaformaçãouniversitáriadosfilhos.

Elelembradeveropai,pelafrestadajaneladoquarto,tardedanoite,nodiaemquesaiuarelaçãodealunosaprovadosnovestibular,lendoerelendonasalaseunome,comosenãoacreditassenoquevia.Nessanoite,pelaprimeiraveznavida,Gisálioviuopaichorar.

Enquanto estudava, se engajou no PT de Araraquara, participandoativamentedascampanhaspolíticasdoperíodo.Antesdetudo,queriaquemaisjovenstivessemamesmaoportunidadequeele,enãoavidasemfuturoesemesperançaquehaviaconhecidonaescolapública.

Mais tarde,graçasabolsasdeestudodogoverno federal,Gisálioe a irmãforamestudaremSãoPaulo,para fazermestradonaUSP,ultrapassandoassimtodasasexpectativasdamãe.Paraela,aUSPerauniversidadederico.Apesarde termoradodécadasnacapital,nuncasoubeonde ficavaaUSP.“Pobrenãosabe onde é a USP”, dizia, “para nem saber como chegar lá. Fazem depropósito.”

Agorao filhoestava fazendomestradoempedagogiana recém-inauguradaUSP Leste. Na universidade, Gisálio conheceu Aurora, professora no DistritoFederal,quetambémfaziamestrado.OsdoissecasaramehojedãoaulasnaredepúblicadoDF,quepagasaláriosdecentesaosprofessores,comonoMaranhãodogovernadorFlávioDino,poisláexisteumsindicatoatuanteeorganizadoqueconsegue eleger representantes para as câmaras estadual e federal. Gisálio eAurorahojefazempartedonúcleodosindicatoeparticipamativamentedavidapolíticadacidade.

Gisálio é o orgulho da mãe e o assunto preferido dela com as amigas.Influenciadapelofilho,amãeélulista.

PodemdizeroquefordeLulaquesóacreditonoquemeufilhomediz.Eo

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que ele diz é que, semLula, nem ele nemoutrosmilhões como ele teriamchegadoaondeelechegou.EaraivadaimprensadosricoscomLulaéporissomesmo.Ninguémquer pôr dinheiro na educação para pobre subir devidacomoelesubiu.Odinheirodeveirsóparaosricos.

PorissoestoucomLulaecomquemeleindicardepoisdessaprisãoqueos ricos arrumaramcontra ele.Mas os pobres como eu não vão esquecernuncaoqueelefez.Hojemeufilhotemumafamíliafelizeumavidadignacomonuncapudeter,porquepôdeestudarcombolsadeestudosdogoverno,asmesmasbolsasqueogovernoatualcortou.Essegolpefoidosricosparaacabarcomospobres.Hojenãopassamosnecessidadeporquenossosfilhosnosajudam.

MasofilhonãoconseguiumudaraopiniãodopaisobreLula.ParaGisálio,amentira damídia antipetista promoveuuma lavagemcerebral emmuita gente,mesmonospobresqueviramavidadelesedafamíliamelhorar.Masdesconfiaque há também outro motivo para o antilulismo do pai: ele nasceu emPernambuco,pertodacidadenataldeLula.

Acho que a raiva dele é inveja. Como um pobre como Lula chegou apresidenteeelenuncadeixoudesermotorista?Étristever issoatrasandoospobres,aindamaissendomeuprópriopai.

MasGisálioamaaverdade:melhorveromundotalcomoeledoqueficarnafantasia.

Análisedasentrevistasdamassadaclassemédia

Namassadaclassemédia,asvisõesdemundotendemasermaisdiversificadas,multifacetadas e polarizadas do que na alta classemédia. Não só amassa daclassemédiaébemmaisnumerosa,comonelaastrajetóriasdevida,ascendentes

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e descendentes, desempenham papel decisivo nas concepções de mundo e nocomportamentoprático.

Nesse segmento social, tende a ser maior a distância entre o discurso docapitalismo financeiro e a vida prática das pessoas. Se na alta classe médiavimos a confluência de vários tipos de capital – econômico, cultural e derelações sociais –, que permite uma extraordinária flexibilidade e oaproveitamento efetivo mesmo de circunstâncias adversas, a situação é bemdiferentenamassadaclassemédia.

Nesse sentido, Ronaldo é um caso exemplar. Encarregado da gestãointermediáriadaagência,Ronaldoéumaespéciedefaz-tudodePaco,ogerentedaempresanoBrasil,quenãohesitaemlhemandarmensagensdemadrugada,tratandode assuntos quehavia esquecidode organizar para amanhã seguinte.Para Ronaldo, a flexibilidade no horário de trabalho não é um recurso à suadisposição,comonocasodeprofissionaisdaaltaclassemédia,masumgrilhão.A servidão de Ronaldo dura as 24 horas do dia, pois está o tempo todo àdisposiçãodochefe.

Noprincípio,Ronaldotinhaprazercomasviagensatrabalho.OestágioemBarcelona foi muito compensador e divertido. Mas a constância dosdeslocamentos,sobreosquaisnãotemcontrole,oimpedeatémesmodemanterrelacionamentosduradouros.Apesardebem-apessoadoeafável,nuncateveumarelação de mais de seis meses. Ele se ressente disso, especialmente agora,quandoatingeumaidademaismadura.

Oempregoflexível,típicodonovocapitalismo,moldaasuavidaefazdeleoapêndiceindefesodavontadealheia.Aomesmotempo,foialealdadeabsolutaaPacoque,emsuasprópriaspalavras,permitiu-lheescaparàsinadodesempregoquehojeassolaopaís.Nomomentodereduçãodosquadros,elepermaneceunaempresa enquanto os colegas eram dispensados. A insegurança objetiva deRonaldootornapresadetodotipodesuperexploração.

Ronaldo demonstra razoável compreensão do contexto social e políticomaioremquevive.Mas,paraele,omundoéassimenãohácomomudá-lo.Ele

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fazopossívelparaseadaptar,conscientedequeaspectosfundamentaisdesuavidacontinuamirrealizados.

A própria residência de Ronaldo é extensão do trabalho. Ele mora comcolegasdaagência,justamenteparaficarmaispertodaempresa,eobviamenteotrabalho é o assunto dominante.Aqui, o capitalismo financeiro realiza amaisperfeitaconfusãodetempodetrabalhoetempolivre,deformaatransformaremtrabalho,imperceptivelmente,todaavidadoscolaboradores.

O capital financeiro também determina o quadro de referência social epolíticodeRonaldo,impossibilitando-odecriticaretraduziremtermospolíticossuaposiçãodefragilidadediantedochefe,odonodetodooseutempo.Nota-secom clareza a forma insidiosa pela qual o novo capitalismo manipula ostrabalhadores sem raízes políticas e sem atividade sindical. O domínio dotrabalhador é completo, até mesmo no âmbito de suas convicções e visão demundo.

Por outro lado, Ronaldo não deixa de constatar as injustiças sociais e apobreza,comoseviupelomodocomoinfluiunodestinodeJobson,oofficeboy.Paraele,porém,nãosetratadeumproblemaderivadodeumaestruturasocial,ouseja,elenãopercebeadesigualdadecomodecorrênciadeumainjustiçasocialestrutural. Sua ajuda concreta a Jobson reflete uma índole benévola e umacompaixão sincera. Mas suas ações se restringem ao estreito círculo dosrelacionamentos pessoais. Para ele, o máximo de engajamento político é apreservaçãodomeioambienteeaadoçãodeposturasfavoráveisàsminorias.

Dessa visão de mundo advém a preferência política por Marina Silva: adiversidadeeovínculoexpressivocomomeioambientesãopercebidoscomoalgoquetomouolugar–comosemprequisocapitalismofinanceiro,afimdedividireenfraqueceraslutasporemancipaçãosocial–dassecularesdemandasdo movimento dos trabalhadores e oprimidos em geral por redistribuição deriquezaepoder.

Oscasosde InácioeWilliamsão tambémparadigmáticosparaamassadaclassemédiabrasileira.AtrajetóriadevidadescendentedeInácio,queperdeumempregobomelucrativoetemdeseadaptaraumaocupaçãocommenosstatus

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relativoeumterçodosganhosanteriores,odeixaressentidoefrustrado.Elenãocompreende que sua situação atual decorre de uma configuração social eeconômicamuitomaisabrangente.Socializadonomercado,comumaconcepçãodemundoliberal,culpaasimesmopelofracasso.Eletentadesesperadoramenteabrandarumaautopercepçãodesvalorizada,quepoderialevá-lo,comotantos,aoalcoolismoeàdepressão,canalizando-aparaumobjetoexterno.

Oantipetismoéocandidatoidealparaassumiressepapel,porváriasrazões.Primeiro, este foiprecisamenteo sentidode todaa campanhamidiática, sobocomando da Rede Globo, para estigmatizar o PT e o ex-presidente Lula:colonizarosentimentoantipopular,secularmentecevadopelaelitenascamadasmédias,demodoamantê-lacomoaliadaetropadechoquedeseusinteresses.

Como sempre, o ódio e o desprezo ao povo, materializados naestigmatização da soberania popular travestida de populismo pelo ataquemidiático,sãoacobertadoscomovéudoódioseletivoàpolítica,desdequeestatenhaalgumavinculaçãocomosinteressespopulares.

Desse modo, o ódio que Inácio volta aos políticos e à política serve decoberturaeracionalização,protegendoasuaautoestima.Seumaautoimagemdeinsegurança, fracasso e impotência poderia ser autodestrutiva e, portanto,impossível de ser admitida por ele, o antipetismo passa a ser o pretexto edesculpaperfeitaparaasdesventurasdasuavida.

Assim, não é dele a culpa por seu fracasso objetivo, e sim de governospopulistas que acabaram com o país. A distorção sistemática da realidade,promovida pela imprensa venal, permite inverter a realidade social e tornarinvisíveisasforçasobjetivasdemercadoqueacomandamdedentroedeforadopaís.

Desinformação e desinteligência, produzidas pela imprensa, se combinamcomo pretexto ideal para voltar a frustração dessas pessoas contra um objetoexterno.Assim,aagressividadeeaansiedadequeefetivamentesentempodemsercanalizadasaumbodeexpiatórioexterno,paraexplicarseusupostofracasso,bemcomo,e talvezmaiscrucial ainda, impedir sua identificaçãocomosmaispobresque“precisam”dapolítica.

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Omedo da proletarização das camadas médias é um dos elementos maisimportantes das ideologias totalitárias e agressivas. A própria sensibilidademoral a uma suposta corrupção comprovaria como essas camadas seriam“superiores” a essa gente duplamente inferiorizada: porque não se escandalizacomacorrupçãoseletiva,porquesupostamentesobreviveàcustadoEstado.

Poraívicejaobolsonarismo.Omedodadecadênciaedaproletarizaçãoabrecaminho para a criminalização da esquerda, como forma de externalizar aagressividadenoódioaopobreeàsuarepresentaçãopolítica.Aameaçaefetivadedecadênciasocialdessascamadasmédias–agravada,noBrasil,peloestigmadadesumanizaçãodoescravo–éoquea tornaapresa idealdosdiscursosdeódio.É como se Inácio dissesse a simesmo: “Veja comonão pertenço a essagentalha.Nadatenhoavercomeles,tantoqueosodeiomaisquetudo.”

AssimtambémmostraaosoutrosquenãoéumdosvagabundosquevivemàcustadoEstado,transfigurandoodesprezoantipopularemvirtudemoral.Tudoisso,poroutrolado,ameniza,pelomenossuperficialmente,suaprópriasensaçãode fracasso: “Só não continueime dando bem por causa da roubalheira dessagente.”

EssepareceserodadoessencialdapregaçãoneofascistadeBolsonaro.Semexplicitarqualquertipodepropostapolítica,eleexpressaoódioeafrustaçãodeclasse dos ameaçados de decadência social. Na elite, como se vê no caso deCaio,oadministradordefazendas,acausaéoutra.Comoolatifúndiopraticajáaviolênciaabertaecínica,semadissimulaçãourbana,Bolsonaroaparececomoorepresentanteperfeitodessaelitearcaica,assassinaetorpe.

Portanto,namassadaclassemédia,éomedoobjetivodaproletarizaçãoquefuncionacomodeflagradordetodasascrençasantipopulares.OabsurdocaricatodacrençadeInácioacercadosupostodinheirodeLulaescondidonaAlemanhaapenasdemonstraquesãoasnecessidadesobjetivasdessastrajetóriasdevidaemcrise – eventualmente atémais do que o poder de convencimento intrínseco aessasideias–queaslevamaseagarrarataisopiniões.

Seassandicesdamídiaatual têmumretrospectohistóricoquasesecular,eaindacontamcomumexércitodeintelectuaisejornalistasoportunistasareiterá-

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las incessantemente, então aumentamuito o impacto de convencimento sobreaqueles que já possuem razões de sobra para acreditar em qualquer coisa quealivieopesodofracassopercebidocomopessoal.

No caso de Inácio, bem como no deWilliam, a predileção por Bolsonaroadvém do mesmo motivo: a necessidade de limpeza total da política. EmWilliam, a agressividade é menor. Apesar de considerar Bolsonaro o únicoantídoto à crisemoral do país, ele não é tão tosco e primitivo quanto Inácio.William acha que, na disputa entre latifundiários e sem terras, por exemplo, énecessário levar em conta ambos os lados. Não seria justo armar apenas oslatifundiários.Senãoéjustaainvasãodeterras,tambémnãoéjustoqueexistagentesemacessoàterra.

Pareceescapar completamente aWilliamo fatodequeBolsonaronão temnenhumasensibilidadeparaestetipodejustiçasocialequidistante.JásuamulherFlávia e os pais dela seguem um caminhomuito semelhante ao de Inácio. Oservilismo em relação aos americanos, tidos como modelo de moralidadesuperior, e o ódio aos pobres e aos direitos humanos é a marca central dapersonalidadeautoritária.

O modelo sadomasoquista parece ser o parâmetro aqui: a obediênciairrestrita aos modelos convencionais de moralidade é apenas o outro lado damoeda do ódio aos fracos e oprimidos, pois a fragilidade própria tem de sercuidadosamente afastada da consciência. Por aí se entende a agressividadedescontroladadopaideFlávia.

OpaideFláviasepercebecomomoralmentesuperioraosoutros,aosquaisnega a condição de humanidade. Como a base dessa crença é frágil, pelaproximidadesocialobjetivacomasclassespopulares,elaprecisasergritadaparatodos, dos quais espera a aprovação. Namassa da classe média, este é outrocontingentecativodeJairBolsonaro.

Seus seguidores transformam omedo e a insegurança social em zelo pelamoralidade, talcomoestaédefinidapelaeliteeamídia.A impotência real seconverte em potência messiânica compartilhada em nome da purificação

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absoluta. Eles não são permeáveis a argumentos racionais, pois não têmdistanciamentocríticoemrelaçãoàsprópriascrenças.

Sãoindivíduosqueacreditaramnomoralismodefachada,disseminadopelaselites para que pudessem sermanipulados. Com isso, abre-se espaço para ummoralismo radical, sempre em busca do herói incorruptível. O combate ao“populismopetista”vinhacorrendomuitobemcomopaladinoSergioMoroàfrente da perseguição político-judicial. Quando a seletividade do processotornou-seóbvia,comonocasodasmalassupostamenteendereçadasaTemereAécio,mostradasaopaísinteiro,começaramadespontaroquepodemoschamarde“viúvasdogolpe”.

As“viúvasdogolpe”sãoaquelesqueachavamqueacoisaeraparavaler,enão sóparaafastardaseleiçõesoPTeopovoqueeste representa.Paraessaspessoas,oproblemaéa“política”,enãoaroubalheiradosistemafinanceiroedeseusdonos.Assim,osmoralistasradicaisquenãosãocínicosouhipócritascomoosoutrosencontraramemBolsonarooseumessias.Elesqueremuma limpezatotal,“paravaler”,dapolítica,sepossívelpormeiodeumaditadura,comoseoregimemilitartivessesidoumprimordehonestidade.

Esse tipo de discurso encontra terreno ideal na classe média tradicional econservadora. Ele permite articular e expressar tanto o ódio aos pobres – que“viveriam” da política – como sua superioridade moral em relação às outrasclasses. Esse segmento seria o único de fato sincero e bem-intencionado, aocontrário tanto das elites hipócritas, que só pensam em dinheiro, quanto dospobresmanipuladospelopopulismo.Paraessepessoal,SergioMorosófoiatéametadedocaminho.Os“poderosos”nãoodeixaramirmaislonge.QuemdevecompletaratarefaéBolsonaro,oheróivingador.

Já o caso deMirtesmostra a reação de uma camadamais estabelecida damassadaclassemédia.Tambémelapossuiospreconceitosdeclassetípicosdeseuestratosocial.Ospobresestãoaíparaservircomoosescravosserviam:semdireitos e objetivamente frágeis a fim de possibilitar uma servidão voluntária,antecipandoosdesejosdos senhores.Pobrenãopode ter carro.Sóatrapalhaotrânsitoeatrasaaprestaçãodeserviços.

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Por conta disso, Mirtes nunca gostou do “populismo petista”. Ao mesmotempo, a trajetória do filho possibilitou-lhe um aprendizado importante. Acapacidade de aprender diferencia essa fração dos emparedados sociais queseguem Bolsonaro. No período dos governos lulistas,William tinha empregonuma instituição que ia muito bem. Também Inácio se aproveitou do boomimobiliário desencadeado pelo PT e pelos investimentos estatais no Rio deJaneiro.Masesteelocausalobjetivonemsempreélevadoemconta.

Mirtes se decepcionou com o moralismo de fachada da Rede Globo e daLavaJato.Masnãocainaarmadilhadeprocurarumheróivingador,queiriaporfimlimparopaís.Aocontrário,percebequefoienganada.Afelicidadedofilhopesquisador, nos anos do petismo, também era a sua felicidade, agoratransformadaemdesilusãoeressacadomoralismo.

Mirtessabequefoifeitadetola.Quemtemcoragemdeperceberissoescapadamanipulação e do fascínio da pregação fascista.Mais ainda, ela reconhecequehouvecoisasboasnogovernodoPT,partidoqueantesodiava.Mesmoaos63anos,Mirtesconsegueaprendercomarealidade.Portanto,aomesmotempoqueseacirraaradicalizaçãomanipuladoradofascismo,existeapossibilidadedeaprendizadosocialnanossaquadrahistórica.

Foi a ausência histórica de um contradiscurso, que se opusesse à narrativadominantedo liberalismovira-lata,que lançoua classemédianocolodaeliteconservadora. Na verdade, não houve sequer disputa narrativa. Por isso, osaprendizados,quandoocorrem,sãofeitosemcontatocomavidaconcreta,semaadequadaabstraçãoesemoencadeamentonarrativodocontextomaisamplo.Oriscodesseaprendizadoconcretoéodesemanterfragmentadoedescoladodeuma explicação totalizante, a única forma de reconstruir em pensamento arealidadedeformacrítica.

Há,ainda,as trajetóriasascendentes.SeoBrasilmantémperversamenteasclassespopularesnaimpotênciaenahumilhação,existesempre,poroutrolado,a possibilidade de ascensão individual. Em cada 100 pobres, um ou outroconsegue, superando obstáculos gigantescos e guiados por um extraordinárioinstintodesobrevivência,ascendersocialmentepormeiodoestudo.

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Sãopoucososquealcançamisso,vencendoresistênciasemnafamíliaeossentimentosdeinvejaedespeitodosmaispróximos,alémdoracismodeclasseederaçamaiscruéis.Agrandemaioriasucumbeàpressãofamiliaresocialparaquesemantenhamsubjugadoseimpotentes.

Daí o interesse do depoimento de Lídia, pois permite constatar a ação demecanismos que são invisíveis para os privilegiados, comoo racismo “racial”arraigadonaprópriafamíliaenamãedescendentedeescravos,ouaopressãodopreconceito “dentro do oprimido”, transmitido aos próprios filhos. Revela-seassim a ação insidiosa de todos os preconceitos sociais invisíveis.As vitóriascontraopreconceitosãosempreparciaisemomentâneas,poiselelogovoltaasemanifestar.Dessemodosesufoca,naquelesquetêmpoucoounada,avontadeeacapacidadedereação.

Igualmente notável, no depoimento deLídia, é a percepção central de quetodo racismo, de classe ou de raça, tem um núcleo comum, que serve paradesarmarooprimido,tantoonegroquantoopobre,eanularasuacapacidadedereação. Isto se consegue na prática quando o negro ou o pobre – e comfrequência ambos coincidem no mesmo indivíduo – é convencido de seudesvaloredesuasub-humanidade.Porcontadisso,poucosconseguemreagireascender. Não existe nada mais cruel do que a humilhação materializada naautopercepçãodohumilhadocomojustaemerecida.

Alguns dos que conseguem, no entanto, desenvolvem uma percepção domundo social antagônica à de seus colegas da classemédia estabelecida. ParaLídia, Lula é ela. O sofrimento do ex-presidente, preso sem provas einjustamente,éaexpressãodomesmosofrimentoqueelatevedeaturarcaladaavida toda.Émelhorvoltarparacasaenãoparticipardaconferênciaàqual foiconvidadaporqueaquelenãoélugarparaela.Seelaestivessealiparavarrerasala,ninguémlhepediriaocrachá.

Cara leitora e caro leitor, isto não significa que toda trajetória ascendentepredisponhaaspessoasapercepçõesmaiscríticasdomeio social.Pode sedarexatamente o contrário. Há aqueles que até mesmo esquecem as origens e

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incorporam,aomododoescravoPrudêncio,deMachadodeAssis,oespíritodoopressor.

Nas entrevistas, porém, foi recorrente o padrão de que as trajetóriasascendentestendem,emdeterminadascondições,aconscientizarpoliticamenteonovointegrantedasclassesmédiasqueveiodasclassespopulares.Dequalquermodo,comprova-seassimaimportânciaequivalentetantodopontodepartidadeclassecomodatrajetóriaespecíficaacadaindivíduoaosubiroudescernaescalasocial.

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E

Conclusão:Aclassemédiaemtemposdecapitalismofinanceiro

ste estudo sobre a classe média brasileira nos levou a uma reconstruçãohistórica tanto da moralidade da classe em geral quanto de sua gênese

especificamente brasileira. Começamos pelas questões essenciais de suacondição emqualquer lugar – pois oBrasil não é o planeta verde-amarelo dojeitinhovira-lata,tãoprezadopornossosintelectuaiscolonizados.

Assim, partimos do universal, ou seja, da hierarquia moral subjacente aocapitalismo moderno como um todo, a fim de entender o particular, suamaterialização singular na sociedade brasileira. A atenção aos elementosuniversaiséoque,afinal,nosmostraquenãoexistemdiferençasrelevantesnaforma pela qual a classe média constrói seus privilégios nas sociedadesmodernas.Taisprivilégiossempresebaseiamnaapropriaçãodocapitalculturalmaisvalorizadoeprestigioso–eistonãoécomoajabuticaba,algoqueexistesónoBrasil.

Tampouco há diferença significativa entre a forma como essa apropriaçãoinjustadecapitalculturalélegitimada,aquiouemoutrospaíses.Ameritocraciae o privilégio estético também estão na base de um processo que, nomundotodo,tornainvisívelejustificáveloprivilégiodascamadasmédias.

Essesfatosjádemonstramcomoésuperficialefrágilanoçãodeumplanetaverde-amareloedojeitinhovira-lata,disseminadapelainterpretaçãodominante.

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OBrasildojeitinho,dopatrimonialismoedacorrupçãosóserveparamoralizaradominaçãodepoucossobremuitos.

Oelementoespecificamentebrasileirovaiserdadopelaformadasrelaçõesde classe, ou seja, as relaçõespeculiares entre a classemédia e a elite, deumlado, e,deoutro, entreaclassemédiaeasclassespopulares.Omitonacionalhegemônico, que estamos chamando de “liberalismo vira-lata”, é que vaiexplicitaressarelaçãoeaformasingularqueassumeemnossasociedade.

Comotodomitoénacionaleespecífico–emborahajasemelhançasentreosmitosnacionaisdepovosculturalmentedominadoseentreosmitosdospaísesculturalmente dominadores –, é em função dele que toda sociedade modernaadquireaspectoscaracterísticoseúnicos.

Afinal, o mito nacional é o conto de fadas para adultos oficial, a formahegemônica pela qual a sociedade se percebe na dimensão simbólica maisarticulada e refletida. Todos nós introjetamos e incorporamos omito nacionaldominante, tenhamos ou não consciência disso, como parte de nossapersonalidadeedenossavisãodemundo.

Emboaparte,anossaautoimageméconstruídaapartirdaformacomonospercebemoscomomembrodasociedademaior,que,por suavez,é fortementeinfluenciada pela forma como percebemos nossa sociedade. Exatamente porisso,omitonacionalhegemônicoéuminstrumentopoderosíssimonasmãosdaelitedominante.Aindamaiseficaznonossocaso,emqueessemito logrouseinstitucionalizarevirarumasegundapeledetodobrasileiro,queninguémmaisdiscutenemcritica,atalpontoquesetornoualgo“natural”e“automático”.

Comoaclassemédiabrasileiraéosuportesocialmais importantedomitovira-lata da corrupção restrita à política, aí reside a peculiaridade dessa classeentrenós,enãoasbobagensdeumsupostojeitinhobrasileiro.

Alémdisso,igualmenterelevanteéo“instantehistórico”,o“diagnósticodaépoca”.Ocomponentehistóricoatualvai,decertomodo,misturar todosessesingredientes,conferindoaoresultadosabor,aromaeumcoloridoespecíficos.Eo que marca o atual momento histórico é a dominação simbólica, social eeconômicadocapitalfinanceiro.

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Vimos que o capitalismo financeiro cria não só uma forma específica deacumulação de capital, com ritmo e lógica peculiares, mas também umasemântica, uma concepção de felicidade e uma narrativa nova para o mundosocial. Essa narrativa se aplica aos trabalhadores,mas também aos gestores esupervisores,emníveissuperiorese intermediários,queperfazemboapartedaclassemédia,sejaaalta,sejaamassa.

Comoesseprocessoéobjetivoeimpessoal,todosnósacabamossendo,emmaior oumenormedida, influenciados por essa narrativa. Ninguém está livredela.Ousodalinguagemdaemancipaçãoparadominarmelhoredemodomaisimperceptível,paraalçaraspessoasàcondiçãodecolaboradorasegestorasdesimesmaseparapromoveradiversidade(masnuncaaredistribuiçãoderiquezaepoder)éonúcleodamensagemdocapitalfinanceiroentronizado.

Esseassaltodaconsciênciapúblicafoiplanejado,implantadocomdiabólicainteligência e com muitos recursos, aplicados na compra da imprensa, deuniversidades, de centros depesquisa e de empresas da indústria cultural e deentretenimento.Semacomplexaemultifacetadaofensivasimbólicaparamoldara concepção de mundo das pessoas, o capitalismo financeiro não poderia seapropriardosrecursosdoplanetainteiro,comovemfazendo.

Todaariquezanãoestariaconcentrando-secadavezmaisnasmãosdo1%maisricoseainteligênciacoletivanãotivessesidosequestradaerebaixada.Essamudançasimbólicatemcomoobjetivoviabilizargrausinauditosdeexploraçãodo trabalhador,deixando-osemproteçãosindicale isolado.Aomesmo tempo,issofazcomqueeleatribuaasimesmoascausasdeseusproblemas,sejadeseumedoeansiedade,sejadesuapobrezaeexploração.

A novidade da estratégia de poder do capitalismo financeiro é que ela sevendecomopromotorada liberdadeeda realizaçãopessoal.Acolonizaçãodetodoovocabulárioexpressivistaedaéticadaautenticidadeindividual,anulandoa sua dimensão ética e finalista em favor de resultados pragmáticos einstrumentais, serve precisamente a esse fim. O mecanismo de poder maiseficienteéoquesevendecomofavorávelàliberdadeindividual.

A redefinição do trabalhador como “colaborador” ou “empresário de si

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mesmo”escamoteia,assim,umarelaçãoobjetivadesubordinação.Alémdisso,como muitos são efetivamente “autônomos” – uma denominação que evocaliberdade –, inclusive na classe média, e contraíram dívidas bancárias paraviabilizar sua atividade ou negócio, o patrão se torna crescentemente abstrato,invisíveleimaterial.

Se revoltar contra quem, quando não se consegue pagar os jurosescorchantes, senão contra si mesmo, por não ter se esforçado ou sido maiseficiente? Ainda mais quando os juros arbitrariamente altos são legitimadoscomo“combateàinflação”porumaimprensacompradapelosprópriosbancos–ou, pior, quando tais juros são justificados pela maior inadimplência dosbrasileiros,sabidamentecorruptosemalpagadores,comopreganossomitovira-lata.

Sehojeemdiametadedasempresasbrasileiraseamaiorpartedapopulaçãoestáendividadaatéopescoço,issonãoprovocareaçãonemrebeliãoorganizadanas pessoas.63 Impossibilitada a externalização da agressividade contra o seuopressor de classe, como se dava antes, o indivíduo torna-se, em seu âmbitointernoepessoal,olocaldalutadeclasses,ondeopróprioindivíduoéseupioralgoz, exatamente como pretendido pelo capital financeiro hegemônico e suanovasemânticaeestratégianeoliberais.Aprópriavítimadaexploraçãopassaasevercomomaupagadore,emvezdeserebelar,seenvergonha.

Invisíveisparaasvítimas,essenovodispositivoeessasnovasestratégiasdepoderdocapitalismofinanceirosãodeextraordináriaeficácia.Éumpoderquese exerce de modo sutil e sedutor, vendendo-se como liberdade e autonomiaindividual.OFacebookéoexemploperfeitodessesnovostempos.

Todoomecanismodecomercialização,precisamenteconcebidoparaatenderaosdesejosenecessidadesdecadaum,éproduzidopornósmesmoscomnossas“curtidas”, sem qualquer custo para a plataforma comercial. E tudo sob aaparênciaingênuaeconfiáveldatrocadeinformaçõescomamigosefamiliares.Ninguémmais precisa invadir demodo ilegal nossa privacidade: agora nós adisponibilizamos,degraça,paraqueasempresaslucrem.

O Facebook é a metáfora acabada da estratégia neoliberal do capitalismo

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financeiro, que nos coloniza e nos explora de modo imperceptível enquantoparasita e manipula nossas relações e nossos desejos mais íntimos. Isso semcontar o aspecto abertamente político do acesso aos dados pelos serviços deinteligênciadepotênciasestrangeiras–comodenunciouEdwardSnowden–,osquaisnemsequerprecisamdedicaresforço,dinheiroetempoparanosespionar.Nósmesmosentregamostudodemãobeijada.

Vendendo-secomolibertária,anovaopressãodocapitalismofinanceironãocensura, não silencia, não impede, não proíbe. Não recorre a nenhum dosdispositivos de dominação normalmente associados ao exercício do poder.Aocontrário, ela nos estimula a contar nossa vida, a nos comunicarmos, a expornossos desejos e preferências. Isso tudo como se estivéssemos curtindo,gostando,fruindonossaliberdadeindividual.

Essa foi a real vitória da semântica e da prática de poder neoliberal docapitalismo financeiro. Sua principal diferença em relação ao capitalismoindustrial, em que burgueses e trabalhadores se opunham de modo claro unscontraosoutros,foitereliminado,daconsciênciadooprimido,avisibilidadedaopressão. Pois a visibilidade do poder é burra.Diante de um capataz que nosobrigaafazeralgo,sejacomumchicote,sejacomaameaçadodesemprego,émuitomaisfácilencontrarformasdereação.Aopressãoéreconhecidaesentidapor todos, o que lhes permite formar partidos e sindicatos e organizar a lutacontraoinimigo.Daíasconquistasdosmovimentosdostrabalhadoresemtodasassociedadesindustrializadas.

Porém, o que acontece quando o inimigo se torna invisível? Quando nãomaissemostraenquantotal?Equandonósmesmosfazemosotrabalhosujodadominação, sem cobrar nada por isso? Lembremos de Ronaldo, incapaz dedistinguiroseutemponaagênciaeforadela.

Por conta disso, a doença de nosso tempo – cada época tem a sua doençacaracterística – é a depressão ou o esgotamento. Como a agressividade e oressentimentopelavidaincompletavoltam-seagoracontraopróprioindivíduo,enãomaisaumobjetoexterno,umalgozvisível,omal-estardavidamodernaépercebidocomofracassopessoal.

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A depressão como patologia da nossa época é o sintoma evidente dessaagressividadeautodirigida, comprovandoquea suposta liberdadeéuma formaaindamaissofisticadadeopressão.Sofisticada,masdeconsequênciasconcretas,nosatingindoemnossoprópriocorpo.

Porquenãopercebemosopotencialpatológicodestenovocapitalismo?Paraesclarecer esta questão, cabe recorrer a uma reflexão fundamental de um dosmaiores filósofos do capitalismo: o pensador alemãoGeorg Simmel. Num deseustextosseminais,64Simmelnotaquea“sensaçãodeliberdade”sóépossívelquandoestamostransitandodeumasituaçãosocialparaoutra.Afinal,nãoexisteliberdade enquanto tal, ou seja, enquanto ausência de qualquer tipo deconstrangimento. Estamos sempre inseridos num contexto que nos limita, nosconstrangeenosobriga.

Asensaçãodeliberdade,portanto,épeculiaràsépocasdetransição,quandoas antigas limitações, vistas como aprisionamento, são substituídas por outrostipos de constrangimento. Nesse meio-tempo, enquanto esses novosconstrangimentosnãosãoaindapercebidosenquantotais,elespodemser tantopercebidosporsuasvítimasquantovendidosporseusalgozescomose fossemliberdaderealeefetiva.

Porcontadisso,osconstrangimentostípicosdocapitalismoindustrial,comoo trabalho sob estrita vigilância, quando substituídos pela autovigilância doprópriotrabalhador,produzememnósenosnossoscontemporâneosailusãodemaior liberdade.Na verdade, ocorre precisamente o contrário. Somos nós queinternalizamosocapatazemnósmesmoseaindaeconomizamosogastoemmãodeobraparacontroleesupervisãodotrabalhoemfavordocapital.

Deinício,porém,convertidasem“projetos”,aspessoastendemaacharquese libertaram de todas as amarras e de todas as prisões simplesmente porqueestasassumiramumaformamaisinternalizadaesutil.Éporissoque,apesardepatológicae insidiosa,a linguagemdocapitalismofinanceiroé irresistível.Elapodesevendercomoliberdade,postoqueaparentaserlibertadora,quandonãopassadeumaformaaindamaissofisticadadecontrole.

Inácio e William trabalham de 12 a 13 horas ao dia, sem patrão visível,

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crentesdequesãoempresáriosdesimesmos.AtéBianchi,quenãopertenceàmassadaclassemédiacomriscodeseproletarizar,seconsiderapatrãoeretiratodasas suasgratificaçõesealegriasdesse fato.Chegamaiscedodoque todomundo e estende o horário de trabalho em festas e reuniões que refletem apolitização e a amplificação dos interesses da propriedade contra osprópriostrabalhadores.

Mas quem é Bianchi, na realidade? Quais são suas preferências e seusdesejos verdadeiramente pessoais, aqueles que não se confundem com osinteresses do patrão invisível?Teria ele alguma ideia disso?Será que imaginaquealgoassimpossaexistir?ParaondefoiaautonomiaealiberdadedeBianchicomopessoa?

Éo casodeSérgio, oCEOdobanco.Sérgionão avaliamais nenhumadesuas ações. Não existe certo ou errado, bem oumal, amigos ou inimigos. Sóexistem operações visando o lucro do banco. Assim, tal como os“colaboradores”e“empresáriosdesimesmo”namassaenaaltaclassemédia,mesmo quem está no topo desse processo, como Sérgio, não é livre nemautônomo.Comovimos,aliberdadeeaautonomiaimplicamonãoisolamento,sãoumtipodeempreendimentocujoêxitodecorredesuadimensãocoletivaecompartilhada.

Mesmo uma esfera tão íntima quanto a de um relacionamento amoroso esexual só épossível a partir deum“nós”, de algo compartilhado.Só comumoutroaprendemosaperceberedesenvolveroquesomosedesejamos;ninguémsabequeménemoquedesejaisoladamente.

Issovaleparatodasasesferasdavida.Aamizade,aatividadepolíticaeatéoautoconhecimento–nadadissoépossível como isolamentoeoencerramentoemsimesmo.Levandoesteraciocínioaoseulimitelógico,sósomosgenteesósomos humanos quando estamos incluídos num conjunto de relaçõessignificativascomoutraspessoas.

Éissoqueocapitalismofinanceirosededicaadestruirparamelhordominarecolonizarosespíritos.Nãosãoapenasossindicatos,ospartidos,asassociações

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comunitáriaseosmovimentossociaisqueestãosobfogocerrado,masqualquerformaderelaçãosignificativaentreaspessoas.

Tanto Sérgio quanto Renata são operadores de um sistema cuja lógica oulhesescapa,comonocasodeRenata,ou,nodeSérgio,éassumidaporseuvalordeface,comotarefaasercumpridaecomaqualnãocabequalquerrelaçãoouavaliaçãopessoal.

Oexpressivismo,amesquinhadosobaformadecomércionocasodeRenata,domina por completo sua vida, suas escolhas, seus sentimentos e emoções.Ocharme que envolve esse tipo de atividade na verdade coloniza a ética daautodescoberta,dacriatividade,daoriginalidadeedaautenticidade, convertidaagoraemfacilitadoradeumnichodenegócios.

Todasassuasescolhaseopiniõessãopresididaspelasemânticaexpressivatravestidademarketingemseuramodeatividade.Aincapacidadedeenfrentarodesafiodaautodescobertaefetivaedeestabelecerosvínculossociaisensejadospelaéticadaautenticidadeésubstituídapela“compulsãoa repetir”,patentenapadronizaçãodemercadoriasdestinadasàfunçãodesimulacro.

O capitalismo financeiro assumiu o desafio de converter pessoas em“projetos”,65 cujosobjetivos, finalidades, conteúdos, limiteseatéemoções sãodefinidos antecipadamente pelo próprio capital. O caso de Sérgio éparadigmático.Eleafirmaalgocomo:“Nãofuieuqueconstruíestemundo,sóatuoneledomodomaiseficientepossível.”A lógicadocapital éde talmodotransformada em sangue, músculo e emoções que não há mais distânciasignificativaentreoegodeumCEOeomovimentodotipodecapitalqueelerepresenta.

Sérgiotambémnãosepercebecomolacaiodeumaordemqueotranscende.Os rituais do poder – que envolvem adulação, obediência, antecipação dedesejos pelos subordinados – ajudam a obscurecer a obediência cega a umavontadeimpessoaleheterônoma.Todos,afinal,estamosnos tornandoescravospor escolha, livremente. Sérgio está tão isolado de qualquer contextosignificativo–aindaquesendoumpoderosoCEOdaaltaclassemédia–quantoInácioeWilliam.

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Mas,seesteéocontextohistóricoemqueestamos todos inseridosecujosefeitos sofremos igualmente, ele não se manifesta do mesmo modo em todolugar.O capitalismo financeiromudou o sentido da liberdade e da autonomiaindividual como forma de aumentar amargem dos proprietários no excedentesocialglobal.

O“financismo”representaumaofensivapolíticaporpartedosproprietárioscontratodoorestodasociedade.Oimpactodessamudançanãoéigualemtodasas sociedades. Naquelas com forte cultura democrática, construída, antes detudo, pelas lutas secularesdos trabalhadoresdo campoeda cidade– como sedeu na Alemanha, na França ou na Inglaterra –, o impacto, ainda quesignificativo,nãotendeadestruirporcompletoosacordosmaisimportantesdademocraciasocial.

JáempaísescomooBrasileosEstadosUnidos,ondeosmovimentosdostrabalhadoresforamsistematicamenteperseguidosedeliberadamentedivididos,o impacto é suficiente para ameaçar a cultura democrática. Mas ainda aí hádiferençasimportantes.

A cultura da democracia, ainda que individualista, nos Estados Unidos éincomparavelmentemaisfortedoqueanossa.ASupremaCorteamericana,porexemplo,nãosedeixouacanalharpelapressãodeumaimprensavenal,comooSupremoTribunalbrasileiro.Porisso,ocasobrasileiroémuitomaispassívelderegressõesacentuadasdoqueoamericano.

Assim, se o contexto geral é similar em todas as sociedadesmodernas, asconsequências variam de um país para outro. Trata-se, então, de entender porqueoBrasilestásendodestruídoesaqueadodemodotãoinauditoeopapeldaclassemédianesseprocesso.

Como a classe média se distingue pela relação que entretém com a eliteacima e com as classes populares, temos que esclarecer sua posição, primeiroexaminandoessaelitequenãosódesprezaoprópriopaíscomoovêcomofontederiquezasaseremsaqueadasnocurtoprazo.

Paraa elite americana,por exemplo, convémquea elitebrasileira seja tãocanalha.Exemplo disso foi o recente episódio emque figurões deWall Street

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elogiaram a promessa de Bolsonaro de entregar a Petrobras aos estrangeiros.Indagado sobre o eventual impacto de um fascista na presidência doBrasil, ofinancista respondeu: “Meu trabalho é garantir que os títulos sejam pagos nadata.Quantoaoresto–cabeaosbrasileirosdecidir.”66

Essa mesma elite americana não age assim em relação ao próprio país.Nenhumamericano entrega as riquezas dopaís degraça aos estrangeiros.Éovira-latismodaelitebrasileiraquepermitetalatitudesubalternadiantedaselitesdeoutrospaíses, asquaisobviamentenão têmnenhuma responsabilidadepelonossodestino.

Sobaégidedorentismo,aelitedeproprietáriostemcomoaliadadeprimeirahora, como vimos, a alta classemédia, que é sua verdadeira emais fiel basesocialepolítica,quenãosó“sente”comoaelite,masseimaginapartedela.

A adoção por essa alta classe média de um estilo de vida europeu ouamericanonostrópicos–sejacombasenasprofissõesliberaisou,maistarde,natecno-burocraciadossetoresprivadoeestatal–é,comoseviu,acontrapartidaobjetivadesualealdadesocialepolíticaàelite.Hojeemdia,aissoseacrescentaaparticipaçãonoslucrosdiretoseindiretosdorentismo.

Além dos multimilionários que ficam com a parte do leão, existe umacamada superior de rentistas também na alta classe média. Alguns poucosmilhõesdeindivíduosentrenósparticipamdosmecanismoslegaiseilegaisdeseapropriardariquezacoletivaedoorçamentopúblico.

Para esse segmento social, funciona com perfeição a “boca de fumo” daverdadeira corrupção brasileira, institucionalizada no Banco Central – cujopresidente é indicado pelos bancos – e efetiva materialização do poder docapitalismo financeiro. A corrupção dos soldados do tráfico, ou seja, a dospolíticos, por mais execrável que seja, é apenas um apêndice menor daintermediaçãodosnegóciosdosdonosdomercadonaesferaestatal.

Os políticos não passam de lacaios nesse esquema. O episódio das malassupostamentedirigidasaAécioeTemer,mostradasnaTV,comprovaisso.Erampagamentode serviços prestados aos patrões dos políticos: as corporações e osistemafinanceiro.

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Tal como no combate ao tráfico de drogas, a polícia prende apenas ossoldadosdo tráfico, enquantoospoderososdonosdabocade fumocontinuamem liberdade. Foi exatamente o que fez a Lava Jato. A operação não seinteressou pelas denúncias que Palocci queria fazer do sistema financeiro.Afinal,nãovinhamaocaso,queerasóprenderLula.

Precisadesenharmaisainda,caroleitorecaraleitora?Palocciqueriamostraras irregularidades de um esquema para drenar a riqueza da sociedade embenefício da elite e da alta classe média rentista. Não mais do que 2% dapopulaçãobrasileira.Nuncavamos saberdosdetalhes, porqueospaladinosdajustiçaseletivasóqueriamouvirasdenúnciasquelheeramconvenientes.E,naoutrapontadoesquema,estáaimprensa.

Esteéomecanismorealdacorrupçãoentrenós:osistemafinanceiroroubaeaimprensamente, invertendocausaeefeito, tornandoinvisíveloassaltorealedistorcendo sistematicamente a realidade. A justiça seletiva apenas confere oselodaautoridadeestatalaesseacordo.

Comoomitovira-lataé talhadodepropósitoconformeos interessesdessaelitedomercado,bastaapontarodedoparaossoldadosdacorrupçãopolíticaelançar uma cortina de fumaça sobre o assalto real dos bancos em benefíciopróprio e dos rentistas daqui e de fora. Esse é o trabalho da grande imprensaamigaedevidamentecomprada.

Nemsequer é necessário apelar paraosnegóciosdesonestos, comoosquePalocci sedispôsa revelarparaosouvidosmoucose seletivosdos justiceiros.Bastaanalisarmososnegócioslegais.Ocapitalismofinanceironãosócolonizoua liberdade e a autonomia das pessoas, como também criou uma legalidadeespecífica,ouseja,emportuguêsclaro,umacorrupçãolegalizada.

Como entre 300 a 400 deputados no Congresso têm como única funçãointermediaroassaltoaoEstadopelaeliterentistaevenderseuvotoaquempagarmais,osbancospodemmandarqualquerpapelhigiênicosujoqueelesassinamsemolhar.FoiexatamenteoqueaconteceunosúltimosanosdegovernoTemer.

Assim se estabelece a corrupção legalizada. Por que não chamar esseprocedimento de corrupto? Porque foi legalizado pela compra de deputados

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venais? Então a mera aparência de legalidade do procedimento é maisimportante do que seu resultado: a rapinamultibilionária da sociedade inteira,inclusivedamassada classemédia?Umasociedadeenganadadestemodo tãopuerilfoirealmentefeitadeimbecil,nãoconcorda,caroleitorecaraleitora?

Comofuncionaoesquemacriminoso?Vamosconsiderarprimeirooassaltopor meio de mecanismos de mercado. Quando o Brasil crescia a altas taxasanuais, nos governos petistas, o que fez o sistema financeiro e bancário paraapropriarparasiariquezacoletiva?Ora,aumentouosjurosdetalmodoque,seem2005adívidadasfamíliasequivaliaa18,42%desuarendamensal,em2013essaproporçãosubiupara43,86%,chegandoaatingir46%em2015.67

Umavezque apopulação comoum todoestava aumentando seupoderdecompra,osbancosdecidiram–apartirdeseubunkernoBancoCentralecomadesculpadecombaterainflação–botarnobolsodosrentistas,eliteealtaclassemédia, a riqueza que era coletiva. A dívida cresce na medida em que tarifasabsurdas, comoos 5%de toda compra a crédito no cartão, vão enforcando asfamílias até que, em 2018, chegamos a 64milhões de pessoas no cadastro deinadimplentes.68

SegundoaAssociaçãoNacionaldosExecutivosdeFinanças,AdministraçãoeContábeis(ANEFAC),aspessoasfísicaspagavam,emfinsde2017,jurosde132,91% em artigos do lar nos crediários, 65,35% nos empréstimos pessoaisjuntoaosbancos,297,18%nochequeespeciale326,14%norotativodocartãodecrédito.NaFrança,comoinformaLadislauDowboratítulodecomparação,oempréstimopessoalaosbancoscusta5%aoanoeoscrediárioscercade10%aoano.69

Como justificativa desse assalto legalizado, os bancos culpama propensãodosbrasileirosanãosaldarsuascontas,ouseja,aovelhomitovira-latadeumacorrupçãoinataecultural.Tudocomoseaaltainadimplêncianãodecorressedosjurosabusivoseescorchanteseoculpadofosseaprópriavítima.

Astaxasdejurosparaaspequenasempresasfamiliares,típicasdamassadaclassemédia,tambémsãopornográficas:emmédia,65,92%,sendo31,37%para

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capital de giro, 37,67% para o desconto de duplicatas e 149,59% para contagarantida.70

As grandes empresas têm o BNDES ou os 5% de juros quando contraemempréstimosno exterior.Aspequenas são tão exploradasquantoo restantedamassadaclassemédiaedapopulaçãocomoum todo.Acadaano,apenaspormeio da cobrança de juros, a transferência de renda dessa grande maioria dapopulaçãoparaaaltaclassemédiaeaselitesdeforaededentrodopaís,soma1trilhãodereaisou16%doPIB.71

Neste contexto é que a imprensa alardeia que a corrupção política está naraizdetodososmalesdoBrasil.Bastacompararamerrecadecercade2bilhõesde reaisque aLava Jatodiz ter recuperadoparaos cofrespúblicos, depoisdequatro anos vasculhando a corrupção política, para saber qual é a verdadeiracorrupção.Claroqueacorrupçãopolíticaérecrimináveleprecisasercombatida.Ninguémdiscute isso.Mas esta é a corrupçãodospés de chinelo e encobreoassaltorealdaeliteedaaltaclassemédia.

Precisamosdesenharmaisumpouquinho,caroleitorecaraleitora,paraquefiquebemcompreendidocomoeporquemsomossaqueadosdeverdade?

EntãovamosaoassaltorealizadopormeiodemecanismosdeEstado.Aquiéprecisocompreenderdequemodooorçamentoestatal–quasetodoobtidopelacobrançade impostos,osquais,porsuavez, sãopagosmajoritariamentepelosmais pobres72 – é transferido também para as mãos da elite e da alta classemédia.

Osmecanismosdessesaquesãomúltiplos,masoprincipalédívidapública.Emprimeiro lugar, como é possível pagar umadívida que a gente não sabe aquempaga?Vocêaceitariapagarumadívidadessasnasuavidaprivada?Umadívida literalmente secreta, pois não se sabe a quem se deve nem quanto sedeve?Poiséexatamenteoqueacontececomadívidapública.Comoveremos,ela não é nem dívida nem pública. Uma “dívida” pressupõe umacontraprestação, que no caso da dívida pública não existe. E a suspeita dosestudiososéqueelaécompostadedívidasprivadasinclusiveprescritaseilegais.

Osbancosesuaimprensanuncapermitiramumaauditoriadadívidapública.

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Se a dívida fosse legal, por que não aceitar uma auditoria?Afinal, quem nãodevenão teme.Seé secreta, éporque tempatifaria,não?Essaéexatamenteaopiniãodequemestudaadívidapúblicabrasileira.

Maria Lúcia Fatorelli, uma importante pesquisadora, comanda uma equipede auditores fiscais que tomou como tarefa cívica realizar uma auditoria dadívida pública a partir de dados oficiais. Segundo ela, “o setor financeiro foimuito esperto ao escolher a dívida pública para ser o veículo do roubo derecursos públicos, pois o próprio termo ‘dívida’ está ligado a valores morais,comohonraeresponsabilidade”.73

O esquema criminoso é simples: na conta da dívida pública também sãoincluídas dívidas privadas, sobre as quais há forte suspeição de que estejamprescritas.Emseguida, joga-senamesmacontapassivosbancárioseprejuízosdoBancoCentralcomaremuneraçãoilegaldesobrasdecaixasdosbancos.Porfim, acrescentam-se os prejuízos com a cobertura da variação de dólar nasoperaçõesdeswapcambial,demodoaremunerarespeculadorescomodinheirosuadodopovo.LembramasdeclaraçõesdeSérgiosobreoBancoCentralcomoamãedosbanqueiros?

Mas a desfaçatez não termina aí.No saque dos recursos da população, osmecanismos privados se combinam aos estatais: a todo esse conjunto de“dívidas”,semqualquercontraprestaçãoaoEstadoouàsociedade,aplicam-seasmesmas taxas de juros abusivas que vimos anteriormente. E não apenas jurosescorchantes,mas juros sobre juros, comatualização automática e cumulativa;contabilização de juros como se fosse amortização; polpudas comissões eencargos; resgates antecipados em benefício de bancos e especuladores compagamentodeágio.74

Aideiasubjacenteaesseesquemacriminosoéqueadívidapúblicatemqueaumentarsemprepormaisquesepague.Em2015,porexemplo,adívidainternacresceu 732 bilhões de reais, ao passo que todo o investimento estatal embenefíciodasociedadeficouemapenas9,6bilhõesdereais.75Todaaeconomiaentrouemretração,oPIBcaiu,apopulaçãoempobreceuaolhosvistos.Nesse

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contextodesalentador,o lucrodosbancosatingiu96bilhõesde reais, comumaumentode20%.

Teriasidoumlucrode300%seasexageradasprovisõesde187,7bilhõesdereais tivessemsidocontabilizadas,postoquesãoutilizadasparaqueosbancospaguemaindamenosimpostos.76Estábemclaro,caroleitorecaraleitora?Pormeiodesseesquema,todoesse“lucro”étransferidodamassadaclassemédiaedapopulaçãocomoumtodoparaaaltaclassemédiaeaelite.

Eporqueaimprensa,aparentementetãosensívelàcorrupção,nãodenunciaisso?Ora, os donos da imprensa fazemparte damesma elite que vampiriza asociedadeeamassadaclassemédia.Iriadenunciaroquê?ApresidentaDilmacaiuprecisamenteporquetentoudiminuirosjuros.77Aeliteseuniucontraela,aalta classemédia saiu às ruas, “escandalizada”, e a imprensa foi em busca dealgummalfeitodapresidentaparaderrubá-la.Esseesquemacriminosoéaraizeonúcleodoassaltodaeliteedaaltaclassemédiaemcimadamassadaclassemédiaedapopulaçãocomoumtodo.

Eleéorealvampiroquesuganossosanguesemdarnadaemtroca.Emvezdeumassalto amãoarmada, que constrangeria a todos, o esquemaé feitonoBanco Central por gente engravatada e séria, com doutorado em Chicago eoutrasparagens.Eaimprensaaindadizqueopagamentodestetipode“dívida”éoquerestoudesagradonestemundoprofano.

AEmendaConstitucional95congeloutodososgastospúblicoscomsaúde,educação, ciência e tecnologia, para assegurar a continuidade desse esquemafraudulentoquesóbeneficiaaelitenacionaleinternacionaleaaltaclassemédia.É por conta dessa “dívida” que a imprensa comprada pelo mesmo capitalfinanceiropropalaqueogastosocialnãocabenoPIB.

Essa é apenas a forma atual de uma expropriação de classe que dura pelomenos100anosemnossopaís.Umesquemaqueuneeliteealtaclassemédia,os nossos “belgas”, na espoliaçãodos “congoleses”, nós todos, deste grande ericoCongochamadoBrasil.

Desde a defesa do câmbio anti-industrial nas décadas de 1920 e 1930,passandopeloapoioàditaduramilitar e sua tecno-burocracia,privilegiadapor

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altossaláriosinternacionalizados,atéoatualrentismo,aeliteealtaclassemédiacolonizam o espírito da população para assaltar o bolso da massa da classemédiaedorestantedapopulação.

Amassadaclassemédiaéexploradademodo racionale irracional.Comoseu privilégio de classe decorre do acesso restrito a um conhecimentocomparativamente mais valorizado que o das classes populares, o sentimentoantipopulardaeliteedaaltaclassemédiaprocuraaomáximomanipularotemorda massa da classe média de perder seus privilégios. Por conta disso, parteexpressiva da massa da classe média é cativa de sentimentos protofascistas,expressos tanto no integralismo da década de 1930 quanto no apoio a JairBolsonarohojeemdia.

Partedamesmamassadaclassemédia,noentanto,percebesuadependênciadaintervençãoestatalcomoúnicofreiopossívelaummercadodesregulado,queassumeaformadelivresangriavampirescaderecursosparaosprivilegiados.Éessapartedamassadaclassemédiaquepodeassegurarumaluznofimdotúnelaoreconhecersuasituaçãodeexploraçãoesualigaçãoumbilicalaodestinodasclassespopulares.

Estelivroseencerraantesdasdramáticaseleiçõesde2018.Comoascausasreais do empobrecimento do país, que vimos ao longo do livro, são tornadasinvisíveis,oódiocegotomoucontadegrandepartedaclassemédiaedesetorespopulares. Jair Bolsonaro surfa nessa onda de ódio e violência irrefletidos. Oantipetismo, construído pelamídia, é o bode expiatório da vez para canalizarfrustraçõeseressentimentossociaissemdireção.Apopulaçãose torna incapazde articular causa e efeito e compreender as causas reais do empobrecimentocoletivo. Meu desejo é o de que, mais cedo ou mais tarde, as vítimas dessefraudulentoesquemadeviolênciamaterialesimbólicaquemarcouasociedadebrasileira nos últimos 100 anos percebam essa violência como ela é: umaviolência irracionalemesquinha,masquepodeserdetidaevencidapor todosaqueles que a sofreram, incluindo a massa da classe média. Basta querecuperemosnossainteligênciasequestrada.

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NOTAS

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Introdução

1. NERI,Marcelo.A nova classe média: o lado brilhante da pirâmide. SãoPaulo:Saraiva,2012.

2. SOUZA, Jessé.Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou novaclassetrabalhadora?JuizdeFora:UFMG,2010.

3. A pesquisa “Radiografia do Povo Brasileiro” somou 600 entrevistasqualitativas de longa duração com indivíduos de todas as classes sociais eteveaparticipaçãode25pesquisadoresemtodoopaís.Afinalidadeinicialera perceber a relação entre socialização familiar e socialização escolar,visando capacitar a escola a perceber e mitigar os efeitos deletérios dasocialização familiar precária. O projeto foi pensado como subsídio aoprojeto Pátria Educadora, programa central do segundo governo DilmaRousseff,interrompidopelogolpeparlamentarde2016.

4. A principal diferença reside no fato de a base do cálculo ser a rendaindividual ou familiar. https://thiagorodrigo.com.br/artigo/faixas-salariais-classe-social-abep-ibge/

Aclassemédiaeaconstruçãodoindivíduomoderno

5.EstadefiniçãoperpassatodaaimensaobradosociólogoalemãoMaxWeber.

6.TAYLOR,Charles.Asfontesdoself.SãoPaulo:Loyola,2009.

7. Ver, sobre Max Weber, o livro clássico de Gabriel Cohn. Crítica eresignação.SãoPaulo:MartinsFontes,2003.

Ainvençãohistóricado“serhumanosensível”

8.ELIAS,Norbert.Oprocessocivilizador.2vols.RiodeJaneiro:Zahar,1993.

Aprendizadomoralejustificaçãodeprivilégios

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9.SILVA,SérgioeSALVADORI,Fausto.“JovemmortonaFaveladoMoinhofoi torturado a marteladas, diz família.” Ponte. https://ponte.org/leandro-morto-moinho/

10. BOURDIEU, Pierre. A distinção: Crítica social do julgamento. PortoAlegre:Zouk,2011.

11.SOUZA,Jessé.Subcidadaniabrasileira.2aed.RiodeJaneiro:Leya,2018.

12. SOUZA, Jessé.A ralé brasileira:Quem é e como vive. 3a ed. São Paulo:Contracorrente,2017.

13.SOUZA,Jessé.Aelitedoatraso.RiodeJaneiro:LeYa,2017.

Agênesedaclassemédiabrasileira

14. FRANCO, Maria de Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordemescravocrata.SãoPaulo:UNESP,1997.

15.SOUZA,Jessé.Subcidadaniabrasileira.2aed.RiodeJaneiro:Leya,2018.

16.WEBER,Max.HinduismusundBuddhismus.Tübingen:J.C.B.Mohr,1997.

Ocamponacidade

17.DORNELLES,Claiton.“AnaAméliaelogia‘atirarovos’e‘levantarorelho’contra apoiadores de Lula.” Jornal do Comércio.https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/2018/03/politica/618542-ana-amelia-elogia-atirar-ovos-e-levantar-o-relho-contra-apoiadores-de-lula.html.Acessoem01/10/2018.

18.FREYRE,Gilberto.Sobradosemocambos.RiodeJaneiro:Record,1991.

Oadventodocapitalismoindustrial

19.FERNANDES,Florestan.Aintegraçãodonegronasociedadedeclasses.2vols.PortoAlegre:BibliotecaAzul,2017.

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20. SOUZA, Jessé.A ralé brasileira:Quem é e como vive. 3a ed. São Paulo:Contracorrente,2017.

21. PATARRA, Neide. “Dinâmica populacional e urbanização no Brasil”, emHistória geral da civilização brasileira – República. Rio de Janeiro:Bertrand,1992.

22.PATARRA,Neide,ibid.

23.MILLS, C.Wright.White Collar: The AmericanMiddle Classes. Oxford:OxfordUniversityPress,2002.

24. Como no caso da Revolução Praieira em Pernambuco. Ver SAES, Décio.“Classe média e política no Brasil: 1930-1964”, em História geral dacivilizaçãobrasileira–República.RiodeJaneiro:Bertrand,1992.

25.DEAN,Warren.“AindustrializaçãoduranteaRepúblicaVelha”,emHistóriageraldacivilizaçãobrasileira–República.RiodeJaneiro:Bertrand,1992.

26.SAES,Décio,op.cit.

27.DEAN,Warren,op.cit.

28.DEAN,Warren,ibid.

29.DEAN,Warren,ibid.

30.DEAN,Warren,ibid.

31. SOUZA, Jessé.A tolice da inteligência brasileira. Rio de Janeiro: LeYa,2015.

32.SAES,Décio,op.cit.

33.DELROIO,JoséLuiz.Agrevede1917:Ostrabalhadoresentramemcena.SãoPaulo:Alameda,2017.

34. SINGER, Paul. “Interpretação do Brasil: Uma experiência histórica dedesenvolvimento”,emHistóriageraldacivilizaçãobrasileira–República.SãoPaulo:Difel,1984.

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Aconstruçãodosprojetosnacionais:ummaisinclusivoeooutro

excludente

35.Narealidade,nãoexisteseparaçãopossívelentre“matéria”e“ideia”.Todarealidadematerialéperpassadaporideiaevalores,evice-versa.

36.FREYRE,Gilberto.Casa-grandeesenzala.RiodeJaneiro:Record,1991.

37. SOUZA, Jessé.A tolice da inteligência brasileira. Rio de Janeiro: LeYa,2015.

38.MILLS,C.Wright,op. cit.Ver também,domesmoautor,o excelenteThePowerElite.Oxford:OxfordUniversityPress,2000.

39.MOOG,Vianna.Bandeirantes e pioneiros – Paralelo entre duas culturas.Lisboa:LivrosdoBrasil,s/d,p.227.

40.Porexemplo,LIPSET,Seymour.AmericanExceptionalism:aDouble-EdgedSword.NovaYork:W.W.Norton,1997.

41.SCHWARTZMAN,Simon.SãoPauloeoEstadonacional.SãoPaulo:Difel,1975.

42. GULLO, Marcelo. A insubordinação fundadora. Florianópolis: Insular,2014.

43.GULLO,Marcelo,ibid.

44. SOUZA, Jessé.A tolice da inteligência brasileira. Rio de Janeiro: LeYa,2015.

45.WEFFORT,Francisco.Opopulismonapolíticabrasileira.SãoPaulo:PazeTerra,2008.

AoposiçãoentremercadoeEstadocomoexpressãodalutade

classes–eaclassemédiacomofieldabalança

46. SINGER, André.O lulismo em crise. São Paulo: Companhia das Letras,2018.

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47.SAES,Décio,op.cit.

48. Época Negócios. “Procura por esperma americano aumenta no Brasil.”Disponível emhttps://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2018/03/procura-por-esperma-americano-aumenta-no-brasil.html.Acessoemoutubrode2018.

49.SAES,Décio,op.cit.

50.SINGER,André,op.cit.

51.SINGER,Paul,op.cit.

52.SINGER,Paul,ibid.

53. SINGER, Paul, ibid.Na indústria de transformação, entre 1964 e 1967, osaláriomédiodos50%maismalpagosfoireduzidoem14%.

54.BACHA,Edmar.Osmitosdeumadécada.SãoPaulo:PazeTerra,1976.

55.LANGONI,Carlos.DistribuiçãoderendaedesenvolvimentoeconômiconoBrasil.RiodeJaneiro:ExpressãoeCultura,1973.

Ogolpede2016esuasprecondições:ocapitalismofinanceiroeo

papeldasclassesmédias

56.PEREIRA,LuizCarlosBresser.Ocolapsodeumaaliançade classes.SãoPaulo:Brasiliense,1978.

57. Os artigos saíram a partir de 1983 no Jornal da Tarde, sob o título “ARepúblicaSocialistaSoviéticadoBrasil”,sereferindoaogovernoGeisel.

58. FATORELLI, Maria Lúcia. “O sistema da dívida pública: Entenda comovocêéroubado”,emResgataroBrasil.SãoPaulo:Contracorrente,2018.

59.SINGER,André.Ossentidosdolulismo.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2012.

Aaltaclassemédia

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60. Ver a análise de SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia docapitalismo.SãoPaulo:34/DuasCidades,2012.

61.FATORELLI,MariaLúcia,op.cit.

Amassadaclassemédia

62. SOUZA, Jessé.Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou novaclassetrabalhadora?JuizdeFora:UFMG,2010.

Conclusão:Aclassemédiaemtemposdecapitalismofinanceiro

63. ABDALA, Vitor. “Percentual de famílias endividadas sobe de 59% para62,2%”. Agência Brasil. Disponível emhttp://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2018-01/percentual-de-familias-endividadas-sobe-de-59-para-622.Acessoemoutubrode2018.

64. SIMMEL, Georg.Das Individuum und die Freiheit. Berlim: Wagenbach,1992.

65. HAN, Byung-Chul. Psychopolitik: Neoliberalismus und die neuenMachttechniken.Frankfurt:S.Fischer,2018.

66.WINTER,Brian.“PorquetantagenteemWallStreettorceporumavitóriade Bolsonaro?” Folha de S.Paulo. Disponível emhttps://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/09/por-que-tanta-gente-em-wall-street-torce-por-uma-vitoria-de-bolsonaro.shtml. Acesso em outubro de2018.

67. DOWBOR, Ladislau. “O fim da farsa: o ciclo financeiro integrado”, emResgataroBrasil.SãoPaulo:Contracorrente,2018.

68.Ibid.

69.Ibid.

70.Ibid.

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71.Ibid.

72. HORTA, André. “Imposto é coisa de pobre”, em Resgatar o Brasil. SãoPaulo:Contracorrente,2018.

73.FATORELLI,MariaLúcia,op.cit.

74.Ibid.

75.Ibid.

76.Ibid.

77.SOUZA,Jessé.Aradiografiadogolpe.RiodeJaneiro:LeYa,2016.

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Sobreoautor

JesséSouzaégraduadoemdireitoemestreemsociologiapelaUniversidadedeBrasília, a UnB, doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg, naAlemanha, e fez pós-doutorado empsicanálise e filosofia naTheNewSchoolforSocialResearch,emNovaYork.

Éautordemaisde20livrosedeartigoseensaiosemváriosidiomas.Entreseus maiores sucessos, se destacam A tolice da inteligência brasileira, Aradiografiadogolpe,SubcidadaniabrasileiraeAelitedoatraso(LeYa);Aralébrasileira (Contracorrente); e Os batalhadores brasileiros (Editora UFMG).AtualmenteéprofessortitulardesociologiadaUniversidadeFederaldoABC.

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EstaçãoBrasiléopontodeencontrodosleitoresquedesejamredescobriroBrasil.Queremosrevisitarerevisarahistória,discutirideias,revelarasnossasbelezasedenunciarasnossasmisérias.OslivrosdaEstaçãoBrasilmisturam-secomocorpoeaalmadenossopaís,eapontamparaofuturo.Eonosso

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