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1 “Coração artificial” – A produção de corações não humanos e seus pressupostos 1 2 Marisol Marini 3 USP - SP Abstract Importante órgão do corpo humano, “máquina” fundamental para o funcionamento do corpo, sede da alma e dos sentimentos em determinadas elaborações culturais, o coração é o objeto dessa pesquisa, sobretudo o desenvolvimento tecnológico e científico de máquinas denominadas “corações artificiais”. O intuito da pesquisa é reconstituir o desenvolvimento de um artefato denominado "dispositivo de assistência circulatória uni ou biventricular", desenvolvido por engenheiros brasileiros, mergulhando nas controvérsias presentes ao longo do processo. Usualmente chamado de "coração artificial", principalmente pelos médicos e pela imprensa em geral, o mecanismo é baseado no "modelo natural" e no funcionamento do órgão em condições normais, constituindo-se de uma bomba produzida a partir de materiais compatíveis (biocompatibilidade) com o corpo humano. Órgão “nativo” e máquina elaborada em laboratório são ambos complexos; as partes do corpo, assim como as máquinas construídas possuem agenciamentos nas relações; o sangue é visto como uma substância complexa, formada por partes líquidas e sólidas, o que torna sua circulação e bombeamento uma tarefa problemática; a incompatibilidade de materiais e a relação entre humanos e objetos está posta nesse campo. Trata-se, portanto, de investigar se essas elaborações e tecnologias modificam as concepções sobre o corpo e se produzem formas híbridas capazes de superar as oposições entre natural e tecnológico, problematizando as fronteiras e a divisão a priori entre natural/ social, humano/ não humano e ciência/ sociedade. Palavras-chave: Corpo. Natureza e Cultura. Tecnociência. 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. 2 Agradeço à Fapesp pelo apoio fundamental à pesquisa. 3 Doutoranda em Antropologia Social na Universidade de São Paulo. Orientada pela Profa. Dra. Heloísa Buarque de Almeida e coorientada pelo Prof. Dr. Stelio Marras.

“Coração artificial” – A produção de corações não humanos e seus

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Page 1: “Coração artificial” – A produção de corações não humanos e seus

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“Coração artificial” –

A produção de corações não humanos e seus pressupostos1 2

Marisol Marini3

USP - SP

Abstract

Importante órgão do corpo humano, “máquina” fundamental para o funcionamento do

corpo, sede da alma e dos sentimentos em determinadas elaborações culturais, o coração

é o objeto dessa pesquisa, sobretudo o desenvolvimento tecnológico e científico de

máquinas denominadas “corações artificiais”.

O intuito da pesquisa é reconstituir o desenvolvimento de um artefato denominado

"dispositivo de assistência circulatória uni ou biventricular", desenvolvido por

engenheiros brasileiros, mergulhando nas controvérsias presentes ao longo do processo.

Usualmente chamado de "coração artificial", principalmente pelos médicos e pela

imprensa em geral, o mecanismo é baseado no "modelo natural" e no funcionamento do

órgão em condições normais, constituindo-se de uma bomba produzida a partir de

materiais compatíveis (biocompatibilidade) com o corpo humano.

Órgão “nativo” e máquina elaborada em laboratório são ambos complexos; as partes do

corpo, assim como as máquinas construídas possuem agenciamentos nas relações; o

sangue é visto como uma substância complexa, formada por partes líquidas e sólidas, o

que torna sua circulação e bombeamento uma tarefa problemática; a incompatibilidade

de materiais e a relação entre humanos e objetos está posta nesse campo. Trata-se,

portanto, de investigar se essas elaborações e tecnologias modificam as concepções sobre

o corpo e se produzem formas híbridas capazes de superar as oposições entre natural e

tecnológico, problematizando as fronteiras e a divisão a priori entre natural/ social,

humano/ não humano e ciência/ sociedade.

Palavras-chave: Corpo. Natureza e Cultura. Tecnociência.

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. 2 Agradeço à Fapesp pelo apoio fundamental à pesquisa. 3 Doutoranda em Antropologia Social na Universidade de São Paulo. Orientada pela Profa. Dra. Heloísa Buarque de Almeida e coorientada pelo Prof. Dr. Stelio Marras.

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Meu coração Bate sem saber

Que meu peito é uma porta Que ninguém vai atender

(Arnaldo Antunes / Ortinho)

Introdução

O “coração artificial auxiliar” e/ou “dispositivo de assistência circulatória uni e

biventricular” é o objeto/sujeito da presente pesquisa, bem como os pressupostos e

concepções biomédicas presentes em seu desenvolvimento. Trata-se de uma tecnologia

produzida para ser utilizada em humanos, destinada a ser aplicada em indivíduos que

apresentam cardiopatias graves e precisam substituir o órgão “nativo”. O “coração

artificial” é uma bomba e seu projeto foi pensado e desenvolvido para auxiliar o coração

“nativo” nos casos em que há falhas no seu funcionamento.4 Seu principal propósito,

portanto, é proporcionar sobrevida aos pacientes que aguardam na fila de espera por um

coração saudável e compatível que possa ser transplantado.

O artefato foi desenvolvido na divisão de bioengenharia da Fundação Adib Jatene,

localizada no Instituto Dante Pazzanese, em parceria com outras instituições, como parte

de um projeto temático da FAPESP que envolve pesquisadores de áreas diversas, e entre

eles alunos de pós-graduação.

Apesar de ter sido inspirado em modelos já existentes,5 o “coração artificial”

brasileiro traz especificidades e foi apresentado em tom de inovação e avanço em termos

4 São diversas as patologias que atingem o coração a ponto de demandar sua substituição. De maneira geral todas elas tornam-se uma insuficiência cardíaca, que caracteriza-se como o comprometimento da capacidade do coração de suprir as necessidades do organismo. A dificuldade de bombear quantidades adequadas de sangue para o corpo são consequências de alterações no músculo cardíaco e podem ser de tipo concêntrica ou excêntrica. Elas podem se caracterizar como uma miocardiopatia, na qual o músculo do coração está comprometido, ocorrendo a deterioração da função do miocárdio, provocando arritmia. Há diversas condições enquadradas no que se chama de miocardiopatia. As cardiopatias também podem ser caracterizadas como uma decorrência ou evolução de doença isquêmica, valvar, congênita, entre outras. 5 O “coração artificial” foi inspirado em diversos modelos, de diferentes empresas, mas principalmente no modelo Abiocor, desenvolvido pela empresa americana Abiomed, com o qual ele se parece sobretudo em termos estéticos. O modelo da Abiomed já era um produto aprovado e comercializado quando o coração artificial brasileiro foi aprovado para avaliação em humanos. Conhecido como o primeiro coração artificial do mundo, o Abiocor substitui totalmente o coração “nativo” e funciona a partir de um motor interno, movido por um sistema pneumático, capaz de produzir fluxo sanguíneo aos pulmões e todo o corpo, “simulando” o batimento cardíaco, de acordo com a própria descrição da empresa (http://www.abiomed.com/products/heart-replacement/). A especificidade da tecnologia brasileira é a implantação direta no coração “nativo”, que continua conduzindo o ritmo cardíaco, além dos diferentes mecanismos. Em termos de mecanismo o modelo brasileiro é bastante similar ao Novacor N100PC LVAS, da Baxter, que surgiu no mesmo contexto da tecnologia brasileira, no Baylor College of Medicine, no qual o bioengenheiro Aron José Pazin de Andrade fez seu estágio de doutorado. Ambas são tecnologias eletromecânicas, que geram um fluxo pulsátil. Elas se assemelham também ao modelo Heartmate XVE, da

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de produção nacional de “tecnologia de ponta”. Além da redução de custos, uma vez que

a perspectiva é que o modelo nacional custe entre US$ 30 mil e US$ 60 mil, enquanto os

modelos americanos chegam a custar R$ 500 mil, o modelo brasileiro é o primeiro a

conjugar certas características, agregadas a partir de diversas tecnologias, como o fato de

ser uma bomba eletromecânica, pulsátil, implantada no próprio órgão, sendo acoplado ao

coração. 6 Os desenvolvedores do projeto defendem que por não substituir o coração

natural, a vantagem dessa tecnologia é que a cirurgia de implantação é mais simples,

rápida e menos invasiva. Além disso, os riscos e falhas inerentes ao funcionamento do

dispositivo são menores, pois o ritmo cardíaco continua a ser dado pelo coração “natural”,

que é apenas auxiliado pelo “artificial”, ou seja, em caso de falha do dispositivo o coração

“natural” ainda está presente. Os argumentos dizem respeito a uma maior facilidade,

diante de uma intervenção menor, que parece alterar menos a “natureza” do corpo

biológico e sua fisiologia.

“Coração artificial” desenvolvido na Fundação Adib Jatene utilizado em testes.

O “coração artificial” desenvolvido no Brasil está em fase de teste, onde a

tecnologia foi aprovada pela Anvisa, mas ainda não está sendo utilizada em humanos.7

Entretanto, pesquisas desenvolvidas em todo o mundo com dispositivos de assistência

circulatória diversos, chamados ou não de “corações artificiais”, apontam para diferentes

usos possíveis. Essas tecnologias podem ser programadas para serem usadas continua ou

empresa Thoratec, que apesar de aprovada pelo FDA e antes comercializado, atualmente não consta mais como um produto disponível no site da instituição. É possível que ele tenha sido tirado de linha. Ambas não possuíam patente no Brasil, o que possibilitou desenvolver o “coração artificial”. 6 Informações extraídas de matéria publicada pela revista Fapesp, uma das instituições que financiou o projeto (acessado em 18/03/2014: http://revistapesquisa.fapesp.br/2011/07/12/cora%C3%A7%C3%A3o-auxiliar/) 7 Atualmente o projeto aguarda aprovação de alterações referentes aos nomes dos pesquisadores responsáveis pelo projeto para que passar pela fase de avaliação em seres humanos, buscando pacientes que se enquadrem num perfil adequado para receber a tecnologia em caráter experimental.

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provisoriamente. Uma das aplicações é utilizá-los como pontes para transplantes, ou seja,

recuperação de pacientes que não possuem condições para receber um novo coração

humano saudável. Nesse caso, pacientes que aguardam na fila de espera por um órgão

podem receber um coração artificial temporariamente, até que consigam um coração

humano e tenham condições de recebê-lo. Essa técnica diminuiria a mortalidade na fila

de espera por transplante de órgãos. Porém, há pesquisadores que defendem a utilização

continuada desses dispositivos, substituindo, de fato, o coração humano. São tecnologias

diferentes, destinadas a propósitos e aplicações distintas. As diferenças dizem respeito

sobretudo à duração da utilização: temporária ou permanente. Além disso, as diferenças

se caracterizam também pela total substituição ou apenas auxiliar o coração “nativo”.

O dispositivo brasileiro tratado aqui foi pensado para ser empregado em

implantações temporárias, junto ao órgão nativo. Entre as expectativas de alguns

membros da equipe de pesquisadores, entretanto, está a possibilidade de que o dispositivo

auxilie o coração “nativo” a ponto de devolver seu funcionamento normal, prescindindo

do aparelho e mesmo de transplantes cardíacos.8 Sua originalidade parece estar mais

relacionada à possibilidade de desenvolvimento local de uma tecnologia, caracterizada

por um processo de bricolagem.

Breve histórico das instituições

A fundação Adib Jatene, onde o projeto está sendo desenvolvido, foi criada em

19849 e desde então tem desenvolvido tecnologia e produtos que são vendidos para

manter a própria instituição e novas pesquisas, que também contam com outros

financiamentos. Alguns dos produtos comercializados e produzidos ao longo de sua

existência são: máquina de circulação extracorpórea, oxigenadores de sangue artificial,

8 Ao defender as vantagens de não se retirar o coração “nativo”, o seguinte relato foi dado à revista Galileu: “Existe ainda uma quarta vantagem, mesmo que seja, segundo alguns médicos, pouco provável. Por estar no corpo do paciente sem ser exigido e mantendo sua frequência por meio do dispositivo artificial, cogita-se que o órgão natural possa ser recuperado depois de um bom tempo de uso. “É mais uma pretensão que possibilidade”, diz Luis Carlos Bodanese, chefe de cardiologia do Hospital São Lucas PUC-RS. “ Em tese, o artificial pode diminuir a deterioração e até regredir os danos do original, mas é difícil que restaure a ponto de funcionar normalmente outra vez”.” (http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,ERT307120-17773,00.html, acessado em maio de 2014). 9 Apesar de ter sido oficialmente criada em 1984, a história da instituição é contada desde a chegada do cirurgião Adib Jatene ao Dante Pazzanese, em 1959, quando este ainda era chamado de Instituto de Cardiologia do Estado (informação extraída do site da fundação Adib Jatene: http://www.fajbio.com.br/historia.aspx, acessado em abril de 2014).

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desfibriladores, instrumentais cirúrgicos para procedimentos de circulação extracorpórea,

marca-passos internos e externos e válvulas cardíacas implantáveis.

Em sua trajetória, com a transformação e surgimento de componentes descartáveis

e inovações para a produção de máquinas e materiais, houve uma reformulação

tecnológica desses equipamentos, que demandam, para além do conhecimento da

engenharia, um entendimento anatômico, fisiológico e biomédico sobre o corpo e seu

funcionamento, o que deu origem a um programa interdisciplinar e um intercâmbio de

conhecimento entre as áreas biomédica, a bioengenharia, a física e etc, representados

sobretudo pelo Programa de Pós-graduação em Medicina/Tecnologia e Intervenção em

Cardiologia do Dante Pazzanese e da Universidade de São Paulo (USP).

A interdisciplinaridade é entendida como fundamental para o desenvolvimento

dessas tecnologias, porque para criar uma bomba centrífuga capaz de impedir a formação

de microbolhas prejudiciais para o paciente, por exemplo, não bastaria ser capaz de

desenvolver um equipamento formulado a partir do conhecimento da engenharia, mas

seria necessário compreender o comportamento do fluxo do líquido (no caso o sangue,

considerado muito complexo) visando eliminar pontos de estagnação, o que envolve

conhecimentos da física e da anatomia humana.

Adib Jatene10, médico que esteve envolvido desde a primeira iniciativa de

desenvolvimento de um “coração artificial”, na década de 1960, revelou que naquele

momento foi necessário abandonar o projeto, pois ainda não havia condições técnicas

apropriadas e nem a disponibilidade de materiais biocompatíveis necessários para seu

desenvolvimento no Brasil. 11 Ele considera que foi necessário o estabelecimento de uma

divisão de bioengenharia desenvolvida para que o projeto pudesse ser realizado. Embora

tenha ocorrido uma subdivisão em áreas e a criação de uma fundação particular, há um

interesse de que as áreas médicas e bioengenharia trabalhem conjuntamente na produção

de tais técnicas e tecnologias para seu maior sucesso.

10 Adib Domingos Jatene é médico, professor universitário, inventor e cientista. Conhecido e respeitado internacionalmente por suas inovações no meio médico, como a cirurgia do coração que leva seu nome, utilizada para tratamento da transposição das grandes artérias em recém-nascidos. Desenvolveu o primeiro coração-pulmão artificial do Hospital das Clínicas. Além de sua contribuição na área médica, Jatene foi secretário estadual de Saúde no governo Paulo Maluf e duas vezes ministro da Saúde, durante o Governo Collor e no governo de Fernando Henrique Cardoso, no qual instituiu a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira), que deveria ser um recurso destinado à saúde. 11 Informações obtidas no II Simpósio sobre Dispositivos de Assistência Circulatória Uni e Biventricular ou Coração Artificial, no Instituto Dante Pazzanese, em 26 de Outubro de 2012.

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O Instituto Dante Pazzanese destaca-se no desenvolvimento de cirurgias e

transplantes cardíacos, a fundação Adib Jatene destaca-se na produção de equipamentos

e instrumentais necessários para a prática de intervenções cardíaca e, ao lado de outras

instituições, como a USP, desenvolvem o “coração artificial”, representante do avanço

tecnológico e da capacidade brasileira de produção de “tecnologia de ponta”.

Diante desse quadro, interessa-me investigar se e como essas elaborações e

técnicas aplicadas ao corpo modificam as concepções sobre ele e se, de certa forma, essas

tecnologias produzem formas híbridas capazes de superar as oposições e fronteiras entre

natural e tecnológico, natureza e cultura, humano e não-humano. Trata-se, portanto, de

problematizar as concepções de humano presentes nesse contexto.

Pressupostos dos projetos (os meus e os deles)

Com intuito de mapear as controvérsias e reconstituir o desenvolvimento do

“coração artificial”, a perspectiva do ator-rede e os chamados Estudos Sociais da Ciência

e da Tecnologia servirão de grande inspiração. Busca-se, portanto, descrever a rede

sociotécnica dos actantes (LATOUR, 2006) envolvidos na produção desse dispositivo,

bem como as concepções postas em jogo relativas ao humano e ao corpo.

Ainda que a tecnologia seja um tópico clássico nos estudos antropológicos12, na

modernidade o tema ganhou novos contornos e significados, tornando-se, ao lado da

ciência (as quais não se pode distinguir ou diferenciar)13, uma das principais instituições

da contemporaneidade, justificando-se, assim, como importante objeto-sujeito de

pesquisa.

12 Tecnologia é um tema clássico na antropologia desde sua fundação, como demonstra Kuper (1978) ao elencar os principais títulos que compunham o programa de estudos para obtenção de diploma em Antropologia da Universidade de Oxford, em 1906. O programa de estudos distinguia a antropologia cultural da antropologia física, composta por arqueologia, tecnologia, etnologia e sociologia. 13 Em The Social Construction of Technological Systems (1993) os autores problematizam a noção de tecnologia, demonstrando ser este um termo escorregadio. Por isso, ao invés do esforço de distinguir ciência e tecnologia ou qualquer outra atividade, consideram preferível trabalhar a partir de um conjunto de casos empíricos e colocar os termos em contexto. Pinch e Bijker (1993) argumentam que tanto ciência quanto tecnologia são social e culturalmente construídas e que os limites entre elas é uma questão de negociação, não representando, portanto, uma distinção fundamental. Thomas Hughes (1993) considera que os rótulos de ciência e tecnologia são imprecisos, pois há cientistas que desenvolvem tecnologia, assim como engenheiros que fazem pesquisa, recolocando as distinções, que apesar de não serem eliminadas são problematizadas. Para Michel Callon (1993) definir quem é cientista e quem é engenheiro (ou tecnólogo) é uma questão negociada de acordo com as circunstâncias. Além disso, considera que não se deve classificar os elementos em um sistema quando esses elementos estão permanentemente interagindo, sendo associados e testados pelos atores, que são todas aquelas entidades heterogêneas que constituem uma rede.

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Para além da abordagem construtivista da tecnociência, especialmente aquela

focada no ambiente social e na maneira como este molda as características técnicas do

artefato – dando ênfase ao social, recusando um determinismo tecnológico14 – trata-se de

olhar para esses artefatos, concepções e processos como objetos/sujeitos que ameaçam as

divisões ocidentais entre humanos e não-humanos.

Antes mesmo da formulação cartesiana que reduziu o corpo às propriedades

mecânicas e geométricas, seu funcionamento já era objeto da anatomia desenvolvida por

Vesalius (1543), considerado o pai da anatomia moderna. Vesalius introduziu uma

imagem autonomizada do corpo, e também representou como autônomas as partes

resultantes de sua desmontagem dissecatória. A partir da dissecação anatômica,

procedimento que enfatiza o caráter fragmentário da constituição corporal, Vesalius

constituiu uma imagem maquínica do corpo. A máquina anatômica de Vesalius representa

a imagem do corpo separado da alma e objeto da razão humana.

A noção dualista de corpo e pessoa comumente atribuída a Descartes é tributária

de concepções desenvolvidas por Vesalius. A concepção cartesiana de pessoa abstrai a

existência do eu de seu corpo, expresso no cogito elaborado por Descartes: “penso, logo

existo”.15 Nesse sentido, a existência do eu torna-se independente do corpo e está

circunscrita à coisa pensante. Desde então, em termos gerais, a representação do humano

na cultura ocidental moderna é marcada pelo dualismo entre corpo e mente.

Entretanto, para alguns autores contemporâneos, normalmente tidos como pós-

estruturais ou pós-sociais, há outros dualismos amplamente reproduzidos na

modernidade: natureza e cultura, natural e artificial, humano e não-humano, organismo e

máquina, primitivo e civilizado, público e privado. Donna Haraway (2000), no entanto,

considera que os diversos dualismos modernos estão sendo todos “canibalizados” ou

“tecnodigeridos” (nos termos de Zoe Sofia Sofoulis, segundo Haraway). Bruno Latour

(1994), além de apontar para um dualismo fundante na sociedade ocidental, procura

desnaturalizar a grande dicotomia criada pelo pensamento moderno entre natureza e

14 Recusar um determinismo técnico, no qual os humanos são meros intermediários, não implica adotar um determinismo social, no qual os objetos são apenas intermediários. Busca-se aqui analisar de que maneira intermediários tornam-se mediadores, buscando dar conta do entrelaçamento entre humanos e não-humanos, considerando intermediários e mediadores duas diferentes formas de existência tomadas por humanos e não-humanos. (Prigogine & Stengers, 1984; Latour, 1012). 15 Embora haja na literatura autores que atribuem a Descartes a fundação de um dualismo entre corpo e mente (Ingold, 2008; Le Breton, 2011), outros criticam essa apropriação por considerar que trata-se de uma incompreensão. Se por um lado ele pode não ter sido o primeiro, por outro a ideia de “Penso, logo existo” pode ser traduzida como “penso existindo”, o que transformaria as concepções e atribuições feitas à Descartes (ver Harrison, 2009).

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cultura, apresentando a noção de “híbridos”, que estariam localizados no império do meio

– que são as redes ou tramas de enunciados – uma vez que sua proposta é reatar a

segmentação, e não produzir novas dicotomias.

Nesse sentido, nos perguntamos: estaria ocorrendo uma ruptura fundamental em

relação aos paradigmas da modernidade? Estaríamos, de fato, superando a dualidade

moderna de corpo e mente? Teríamos, por acaso, em algum momento vivenciado tal

dualismo? Estaríamos vivenciando um rompimento com os dualismos modernos ou o

estabelecimento de novos dualismos? Essas são justamente as questões que mobilizam a

pesquisa aqui apresentada.

O “coração artificial” parece nos colocar diante de uma permuta ontológica entre

coisas e pessoas, não como polos purificados, categorias estabilizadas, ou entidades

prontas, mas como agentes mediadores, nos quais a causalidade está distribuída e o que

se passa é uma ativação mútua de interesse entre humanos e não humanos (Latour, 1994;

Stengers, 2002).

Atualmente parece predominar a concepção de coração como bomba muscular na

biomedicina, passível de ser retirada, substituída, reconstruída e remodelada. A despeito

dessas concepções, no entanto, sobrevive no senso comum uma concepção do coração

como sede da alma16, procurando resistir à centralidade do cérebro atualmente e aos

desenvolvimentos da neurociência. Segundo Rogério Azize:

O cérebro é um órgão fundamental na representação de pessoa que atravessa a cultura ocidental moderna. Ele possui uma posição hierarquicamente superior a outros órgãos do corpo humano, e, de certa forma, ao corpo ele mesmo. Além disso, a noção de mente aparece, em um certo conjunto de representações, como um epifenômeno do cérebro, uma consequência da atividade neuronal. Uma ideia bastante divulgada hoje é a de que cada indivíduo se confundiria com o seu cérebro. Aquilo que somos e sentimos seria um produto direto dessa complexa rede de aproximadamente 100 bilhões de neurônios. (AZIZE, 2010, p.1)

Azize considera que vivemos sob um novo cogito: não mais "penso, logo existo",

mas sim uma espécie de existo porque tenho um cérebro que pensa. Para ele o cérebro se

caracterizaria como uma “última fronteira” do conhecimento sobre o corpo humano, uma

espécie de “bio-fronteira final”. Ao analisar a chamada neurociência ou ciências do

16 Para Vaysse (2005), apesar de ser considerado uma bomba pelo discurso biomédico, o coração é também um dos lugares do corpo mais investidos de certos valores da vida social, espiritual e afetivo-emocional, onde se situam simbolicamente importantes elaborações culturais.

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cérebro, Azize considera que a noção dualista do formato cérebro/mente, ou corpo/mente,

passa a conviver com um dualismo fisicalista do formato cérebro/corpo.

Entretanto, parece que apesar do reinado do cérebro na biomedicina e na ciência,

que produz novas dualidades, há ainda uma importância do coração do ponto de vista das

representações e de seu valor simbólico não apenas no senso comum, mas também no

“coração artificial” desenvolvido na Fundação Adib Jatene, uma vez que os argumentos

elaborados pelos seus produtores apostam na tecnologia que preserva o funcionamento

derivado da pulsação, apontando para a resistência de constituir humanos sem batimentos

cardíacos.

Apesar da dificuldade de reproduzir os movimentos do coração, atualmente seu

movimento e funcionamento são bem conhecidos e controlados, diferentemente do

cérebro, que se caracteriza como o novo “mistério” da ciência e biomedicina atualmente.

Entretanto, ainda assim, a complexidade do coração dificulta a produção de tecnologias

e intervenções que buscam melhorar falhas e erros de uma suposta natureza perfeita.

Ainda que conhecido, é difícil reproduzir os movimentos e funções do coração com

tamanha sofisticação. Por isso, duas entre as diversas soluções tecnológicas existentes –

o “coração artificial”, que é uma bomba pulsátil, eletromecânica, implantável junto ao

órgão nativo (sem extraí-lo), e a bomba de fluxo contínuo, axial, na qual se extrai (ou

não) o coração biológico e insere uma bomba sem pulsação e batimento cardíaco –

apostam em recursos alternativos aos sofisticados movimentos do coração. No primeiro

caso o batimento do órgão nativo é mantido e “aproveitado” pelo dispositivo artificial,

enquanto no segundo não há batimento, a lógica da bomba é contínua, alterando o

funcionamento fisiológico do corpo. Para além das distinções técnicas podemos

considerar que há entre essas tecnologias diferentes concepções sobre a natureza: no

primeiro caso uma natureza a qual se deve associar, e no segundo uma natureza que se

pode transformar. Ao sustentar a existência de batimentos cardíacos o “coração artificial”

parece estar investido da ideia de natureza que deve ser preservada, pouco alterada, cujo

funcionamento é perfeito e que, mesmo quando apresenta falhas, deve ser mantida.

Seu mecanismo é baseado no modelo fisiológico e no funcionamento do órgão em

condições “normais”, constituindo-se de uma bomba produzida a partir de materiais

compatíveis com o corpo humano (biocompatibilidade), não havendo riscos de rejeição,

como ocorre com órgãos naturais e substâncias orgânicas, embora haja risco de

coagulação do sangue.

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Anatomia do coração Coração Artificial Auxiliar

As imagens acima apontam para a semelhança física e estética entre o modelo de

coração descrito em termos anatômicos17 e o “coração artificial”. Para aqueles que ainda

não se convenceram com a semelhança existente apresento, a título de comparação, um

modelo desenvolvido pela empresa americana Thoratec:

Dispositivo denominado Heartmate II-LVAS®, “coração artificial” de fluxo contínuo

O dispositivo Heartmate abstrai esteticamente a referência ao modelo anatômico,

correspondendo apenas às funções das partes do coração “nativo”, reproduzindo parte de

seus movimentos e funcionamento, uma vez que gera fluxo contínuo, e não pulsátil. O

“coração artificial” desenvolvido na fundação Adib Jatene, além da relativa semelhança

física visível, pode ser aproximado do coração “nativo” na medida em que procura

reproduzir sua estrutura, uma vez que o coração “nativo” é constituído por duas porções,

compostas por duas cavidades. Elas se organizam de maneiras diferentes, mas em ambas

17 É preciso ressaltar que trata-se de um modelo que nem sempre corresponde à realidade. Como todo modelo, ele baseia-se em descrições fisiológicas médias, tidas como normais, porém há patologias que podem alterar a aparência do coração. Houve uma situação em que um dos engenheiros observava uma tomografia de um paciente e comentou que a artéria dele devia parecer-se com a artéria de um E.T. Ou seja, sua estrutura era tão diferente do modelo humano, que até se parecia com algo não humano, extraterrestre.

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podemos perceber duas partes subdividas em outras duas. Na metade direita, ou coração

direito, circula o sangue venoso e na metade esquerda circula o sangue arterial. Cada uma

dessas metades possui duas cavidades, uma superior – a aurícula (ou átrio) – e outra

inferior – o ventrículo.

Um inspirador estudo de caso estabilizado

Para compreender o que se passa diante da implantação de um artefato mecânico

em comparação a um orgânico, podemos aproximar essa intervenção àquelas realizadas

nas válvulas cardíacas, que são estruturas que possibilitam o fluxo sanguíneo num único

sentido, impedindo seu retorno. Quando essas válvulas falham ou não funcionam

adequadamente precisam ser reparadas ou substituídas. Tratam-se de patologias diversas,

especialmente uma denominada insuficiência ou estenose da válvula (mitral ou bicúspide,

tricúspide, pulmonar ou aórtica)18, que prejudica a abertura ou fechamento do fluxo do

sangue, provocando refluxo. Nota-se que é preferível sempre seu reparo à substituição,

que é, portanto, o último procedimento ao qual recorre a convenção biomédica. Quando

não mais é possível reparar, substitui-se.

Há dois tipos de válvula protética utilizadas para substituição: a biológica e a

mecânica.19 Se por um lado a biológica, feita com tecidos de válvulas cardíacas suínas ou

com tecido cardíaco bovino pode provocar reações imunológicas ou rejeição, além de

apresentar um desgaste ao longo do tempo, demandando troca, a mecânica pode provocar

coagulação, e, para prevenir, é necessário o uso de medicamentos anticoagulantes. Ainda

que as próteses tenham sofrido transformações e modificações visando seu melhor

funcionamento, tanto as atuais próteses biológicas como as mecânicas não estão livres de

18 A válvula mitral ou bicúspide separa o átrio esquerdo do ventrículo esquerdo. A válvula tricúspide separa o átrio direito do ventrículo direito. Na fase da diástole, que é o período de relaxamento do coração, ambas as válvulas se abrem e o sangue enche os ventrículos. Quando ocorre a contração – a sístole – as válvulas aórtica e pulmonar se abrem e o sangue é ejetado do ventrículo esquerdo para a aorta e do ventrículo direito para a artéria pulmonar. Como podemos notar, as válvulas desempenham uma importante função no ciclo cardíaco e seu movimento é responsável por produzir os sons característicos do batimento cardíaco, que podem ser percebidos através da auscultação, com o auxílio de um estetoscópio. Os sons correspondem a dois movimentos: ao fechamento das válvulas aurículo-ventriculares e ao fechamento das válvulas semilunares. São, portanto, quatro válvulas, localizadas nas quatro câmaras do coração. Qualquer uma dessas quatro válvulas cardíacas ― aórtica, mitral, pulmonar ou tricúspide – podem ser substituídas por uma prótese valvular. 19 Em uma cartilha de apoio médico e científico ao judiciário, produzida pela Unimed Fesp, Federação das Unimeds do Estado de São Paulo, as próteses são relacionadas à origem da produção, sendo as biológicas descritas como de fabricação nacional e próteses mecânicas como importadas (http://www.unimedfesp.coop.br/caju/capitulo_85.html).

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apresentarem problemas estruturais. Além disso, a válvula mecânica tem um custo maior

do que a biológica, uma vez que não é produzida no Brasil. Por isso considera-se que a

decisão sobre qual válvula utilizar deve ser tomada caso a caso, considerando-se as

condições clínicas e hemodinâmicas de cada paciente, o estado de sua doença, a

expectativa de vida, sua condição geral de saúde, o estilo de vida e a possibilidade de

utilização de medicamento.20

Embora hoje estejam relativamente estabilizadas, não provocando grandes

controvérsias, exceto pela escolha entre dois modelos, ambos oferecendo vantagens e

desvantagens (ou seja, ainda não são ideais, uma vez que necessitam ajustes de ordens

diversas, ainda que sejam funcionais), as próteses passaram por um longo processo de

desenvolvimento e estabilização.

Desde o início do século XX, quando as primeiras intervenções em válvulas

cardíacas ocorreram, há um esforço por parte de médicos e cirurgiões em solucionar o

que se chamou de estenose mitral, que provocava o refluxo de sangue. Apenas nos anos

1950 algumas próteses foram idealizadas e experimentadas, porém sem grande sucesso.

Um dos grandes desafios desde então era a obtenção de materiais “resistentes” e pouco

“trombogênicos” para a confecção das válvulas. Nos anos 1950 e 60 foram produzidas as

primeiras próteses que possibilitaram resultados funcionais, como a prótese de bola,

composta por uma estrutura rígida de "teflon" ou de "lucite" (polímeros), que continha

uma bola de "lucite" ou de aço.21 As dificuldades a serem administradas diziam respeito

à dificuldade de gerar um bom fluxo sanguíneo e à qualidade trombogênica dos materiais,

20 Mulheres grávidas, por exemplo, que não podem tomar anticoagulantes, não poderiam utilizar a válvula mecânica. 21 De acordo com artigo publicado na Sociedade Brasileira de Cardiologia essas próteses de bola experimentais foram testadas em cães, porém foram também as primeiras utilizadas em humanos (acessado em maio de 2014: http://publicacoes.cardiol.br/caminhos/013/).

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13

que provocavam trombos, ou seja, a coagulação do sangue no interior do vaso sanguíneo.

No Brasil a prótese de bola foi produzida por incentivo do Dr. Dante Pazzanese, com

intuito de que o modelo nacional custasse menos do que a importada.22

Prótese de bola fabricada no Instituto Dante Pazzanese

Outros modelos existentes eram a prótese de folheto de plástico e de disco, que

eram consideradas pouco resistentes, trombogênicas e funcionalmente deficientes.23

Inúmeros modelos foram desenvolvidos e aperfeiçoados ao longo dos anos 1960 e 70,

quando surgiu a prótese de tecido biológico. Em seguida, nos anos 80, surgiram os

modelos elaborados com carbono ou metais (como o carvão pirolítico), mais resistentes,

duráveis e pouco trombogênicas, conhecidas como válvulas de disco pivotante. 24

É interessante ressaltar que tanto a prótese biológica como a mecânica parecem

não ser vistas como “naturais”, uma vez que representam intervenções que podem trazer

decorrências no organismo. Natural mesmo apenas a válvula original, que, entretanto,

deveria funcionar correta e perfeitamente. Apesar de biológica, a válvula elaborada a

partir de tecidos animais precisa passar por procedimentos e intervenções. É necessário

que o tecido removido do animal passe por um tratamento químico que o preserve. Além

disso, este tratamento químico evita reações imunológicas no corpo do paciente. Ainda

que não seja trombogênica, uma vez que seu funcionamento é muito semelhante à válvula

“natural”, a prótese biológica pode ocasionar reações imunológicas, uma vez que se trata

de um corpo estranho, uma substância externa ao corpo. Ambas podem ou não ser

compatíveis, mas o fato é que cada uma delas promove efeitos no organismo receptor.

22 Informações extraídas do site da Sociedade Brasileira de Cardiologia, acessado em junho de 2014 (http://publicacoes.cardiol.br/caminhos/003.asp). 23 A prótese de folheto era considerada pouco resistente porque os folhetos plásticos, no decorrer de um ou dois anos, rompiam-se ou eram destacados em decorrência da pressão exercida pelo fluxo sanguíneo. 24 Essas são as atuais válvulas, que substituíram os modelos anteriores, mas que, no entanto, não são mais produzidos no Brasil.

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14

Analogamente ao que ocorre com as válvulas protéticas, o “coração artificial”, por

sua constituição mecânica e seu modo de funcionamento, apresenta riscos de formação

de coágulos no sangue, além das dificuldades técnicas relativas ao fluxo sanguíneo.25 Por

isso, grande parte do esforço dos (as) engenheiros (as) responsáveis por essa tecnologia

diz respeito a um menor impacto e alteração no corpo, buscando produzir um mecanismo

que alcance o menor risco de formação de coágulos, para que a associação com o

dispositivo não provoque destruição das células e dificuldades adaptativas aos pacientes

receptores.

Os diversos corações, bombas e dispositivos

Apesar do enfoque e interesse na comparação entre o “coração artificial” e os

dispositivos de fluxo contínuo, convém apresentar alguns outros dispositivos existentes,

que compõem uma diversa gradação de arranjos, tanto desenvolvidos na fundação Adib

Jatene, como em outras instituições. Trata-se, portanto, de descrever outros projetos

desenvolvidos, buscando iluminar suas especificidades e pressupostos comparativamente

O que defendem e argumentam os cientistas a favor das tecnologias que

produzem? Quais seus pressupostos e expectativas? Que concepção de natureza está

presente em seu projeto? Para tentar responder a essas questões (e lançar outras) buscarei

seguir e descrever as tecnologias desenvolvida pela equipe do Dante Pazzanese, buscando

recuperar as controvérsias relativas aos “corações artificiais”. A hipótese proposta é a de

que a tecnologia desenvolvida para auxiliar o órgão natural é pensada como menos

invasiva por alterar menos o funcionamento fisiológico, orquestrando-se com a própria

natureza, sem caracterizar-se, portanto, como um artifício descolado do corpo.

De acordo com o próprio site da instituição, são 3 os principais projetos de

pesquisas desenvolvidos na instituição: o Coração Artificial Auxiliar (CAA), a Bomba

Centrífuga para Circulação Extracorpórea e a Bomba Centrífuga Implantável.26 Há outras

pesquisas em desenvolvimento, porém de certa forma associadas a essas três pesquisas

principais. A seguir constam todas elas descritas27:

25É importante destacar que apesar da aproximação, o “coração artificial” está em fase de testes e ainda não foi utilizado em humanos, enquanto a substituição da válvula cardíaca é um procedimento relativamente comum, realizado na maior parte dos grandes hospitais brasileiros, graças aos avanços da tecnologia e à melhora da técnica cirúrgica e do design da válvula. 26 http://www.fajbio.com.br/projeto001.aspx (acessado em junho de 1014). 27 Há um protocolo científico que determina certos procedimentos pelos quais cada projeto deveria passar, quando apropriado e possível. Nem todas as pesquisas desenvolvidas na instituição envolvem produção de

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dispositivos para intervenções cardíacas. Alguns deles abarcam desenvolvimento de instrumentais de controle e simulação, que não necessariamente passam por todas as etapas de pesquisa. Mas quando são necessárias, as etapas principais são: avaliação in vitro, que consiste em testes de bancada com materiais, análise de fator de coagulação do sangue e etc; avaliação in vivo, que se trata de testes em animais para avaliar a eficácia da tecnologia testada; avaliação clínica, que se caracteriza pelo uso experimental em seres humanos, antes de ser patenteado e se transformar em produto comercializável. Nem todas as tecnologias passam por todos os processos e principalmente nem todas viram produto, que é um processo bastante complexo em termos burocráticos e que muitas vezes exige certos investimentos, como por exemplo investimento em estrutura, uma vez que são tecnologias que exigem condições especiais de produção, dado que são materiais implantáveis que demandam rígidos critérios de esterilização, sendo produzidos em ambientes controlados, projetados de forma a reduzir a introdução de contaminantes. Porém quando se trata de uma tecnologia destinada a aplicação em humanos os procedimentos in vitro e in vivo são fundamentais, bem como a avaliação clínica, que pode ser tomada como diversa dos testes em animais e decorrente das duas primeiras fases (a ideia de testes em humanos pode ser inaceitável).

Projeto Início Fase atual Aplicação Mecanismo

Bomba de sangue

Spiral Pump® 65 1992 Comercialização/ recall

Circulação Extracorpórea

– CEC

Centrífuga/ axial

Coração Artificial Auxiliar

(CAA) 1998

Aprovação para

aplicação em 5

pacientes como ponte

para transplante

Terapia de destino/

Dispositivo uni ou

biventricular

Pulsátil/

Eletromecânico

Bomba de Sangue Ápico Aórtica

(BSAA) 2011 Avaliação in vivo Terapia de destino Centrífuga/ radial

Bomba de sangue centrífuga para

suporte circulatório temporário 2011

Avaliação in vitro/

Prototipagem de 3

novos rotores

Ponte para transplante -

Suporte pré e/ou pós-

cirúrgico

Centrífuga

Bomba de sangue centrífuga

implantável (BSCI) 2006

Avaliação in vitro/

Confecção do protótipo,

teste de desempenho

hidrodinâmico

Terapia de destino/

Dispositivo de assistência

uni ventricular implantável

(DAV)

Centrífuga

Simulador Híbrido do Sistema

Cardiovascular 2008

Ferramenta validada em

2013

Controlador para bomba

centrífuga Não se aplica

Controlador BSCI 2011 Teste de bancada Controlador para bomba

centrífuga Não se aplica

Estudos da fluidodinâmica

sanguínea em sistemas

extracorpóreos de bombeamento

centrífugo

2013 Não se aplica Simulador Não se aplica

Estudo do revestimento de

protótipos de stents coronários

bioabsorvíveis de PLLA/PLGA

com ácido hialurônico e

moléculas bioativas.

2013 Não se aplica Stents Não se aplica

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16

Diferentemente das bombas implantáveis, as bombas de circulação extracorpórea

são utilizadas durante procedimentos cirúrgicos e não são inseridas diretamente nos

pacientes, mas sim numa máquina de circulação extracorpórea, que executa as funções

dos órgãos, principalmente do coração e do pulmão, enquanto estes estão inoperantes.28

A máquina na qual a bomba é acoplada é operada por um profissional chamado

perfusionista, responsável por manter as funções cardiorrespiratórias do paciente durante

o procedimento, além do seu equilíbrio bioquímico, hematológico e hidroeletrolítico.29

Modelo de máquina de circulação extracorpórea que substitui as funções vitais

A bomba de sangue centrífuga para suporte circulatório temporário é uma espécie

de aprimoramento, sofisticação e desenvolvimento da bomba de sangue Spiral Pump,

modelo que foi reformulado em 2007.30 Enquanto a Spiral Pump é destinada a uso de

curta duração, o modelo em desenvolvimento poderá ser utilizado até em procedimentos

de média duração. Além disso, a bomba centrífuga para suporte circulatório temporário

destina-se à oxigenação extracorpórea por membrana ECMO (Extracorporeal Membrane

Oxygenation), que difere-se da circulação extracorpórea convencional (CEC).

28 A circulação extracorpórea também é conhecida como CEC, Perfusão, Perfusão Extracorpórea, Perfusão Cardíaca, Assistência Circulatória Mecânica e etc. 29 Na década de 1950 surgiram de forma alargada (e não experimental) as máquinas de circulação extracorpórea, que permitiram prolongar artificialmente a vida, redefinindo o que é considerado morte. Para Vaysse (2005), a redefinição legal da morte – considerada como a morte clínica cerebral – autoriza a retirada do coração e de outros órgãos para que sejam transplantados, transformando-os em objetos que podem ser destacados, desconectados, isolados e subordinados à medicina técnica. 30 O modelo passou por um recall, pois apresentou trincas na base externa.

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Bomba de sangue Spiral Pump® 65

Entre as bombas implantáveis desenvolvidas na instituição, o “coração artificial”

é a única que funciona por mecanismo pulsátil. Este é um dos principais motivos pelos

quais ela foi escolhida como principal objeto/sujeito da pesquisa, além de toda a

repercussão que alcançou, o que me permitiu chegar até a instituição e conhecer os

projetos. O fato de ser pulsátil significa que respeita a pulsação arterial, que corresponde

às variações de pressão sanguínea na artéria durante os batimentos cardíacos (ciclo de

expansão e relaxamento das artérias do corpo). Entre as bombas desenvolvidas por outras

empresas e instituições, há apenas dois tipos pulsáveis: eletromecânica ou pneumática.

Em termos gerais, os chamados dispositivos de assistência ventricular (DAV)

podem se diferenciar pelo tipo de fluxo – pulsátil ou contínuo; as pulsáteis podem ser

movidas por mecanismos pneumáticos ou eletromecânicos; as contínuas podem ser axiais

ou centrífugas. Além disso, as bombas podem se diferenciar pelo posicionamento:

paracorpóreo ou intracorpóreo. O dispositivo paracorpóreo permanece fora do corpo do

paciente, conectado ao coração por cânulas transcutâneas, que atravessam a pele,

enquanto o intracorpóreo é instalado no interior do corpo, posicionado na cavidade

torácica ou na cavidade abdominal abaixo do diafragma.

Destaco novamente que o “coração artificial” teve grande repercussão midiática,

sendo descrito como um avanço tecnológico, principalmente por representar um

progresso da capacidade brasileira em produzir “tecnologia de ponta”. Obviamente, em

relação às outras bombas desenvolvidas na instituição, todas elas representam avanços

tecnológicos, embora apresentem dificuldades, desafios e contribuições diversas. Vale

destacar também que o “coração artificial” é o projeto mais antigo de dispositivo de

assistência circulatória, e que se encontra em estágio mais avançado de desenvolvimento.

Pode-se considerar também que tal destaque possa ter sido alcançado pelo apelo

do nome, que diferentemente da ideia de dispositivo ou bomba, que muito pouco diz ao

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público leigo, remete a fantasias robóticas de humanos movidos por energias mecânicas.

Independentemente de seu destaque para além dos muros acadêmicos, o coração artificial

destacou-se no campo científico por ser uma bomba eletromecânica, que superaria

algumas das dificuldades das bombas pneumáticas, como os riscos e dificuldades

inerentes à sua utilização. No entanto, quanto maior a quantidade de componentes e

complexidade a bomba eletromecânica possuir, maiores são as chances de ocorrer falhas

no sistema. Nesse sentido, seria coerente argumentar a favor de bombas centrífugas, que

teriam mecanismos mais simples do que as pulsáteis, que apresentariam, portanto, menos

riscos. Entretanto, tais dispositivos produzem fluxos sanguíneos contínuos, e não

pulsáteis, o que pode alterar o funcionamento fisiológico do organismo.

De acordo com Bruno Utiyama da Silva, um dos responsáveis por desenvolver

uma bomba centrífuga: “O coração natural funciona como uma bomba pulsátil. Por isso,

as primeiras bombas que começaram a ser desenvolvidas também eram pulsáteis porque

se imaginava que o sistema vascular era todo adaptado para este pulso. Mas, de uns

tempos para cá, estudos vêm demonstrando que a assistência pode ser feita também com

uma bomba de fluxo contínuo”.31 A despeito dessa concepção, no entanto, há indícios de

que a longo prazo a bomba centrífuga possa alterar o funcionamento do organismo. Ainda

que não existam estudos conclusivos sobre a questão, principalmente pelo curto período

de existência e o número reduzido de testes com bombas centrífugas de fluxo contínuo a

longo prazo, um dos argumentos contrários é o de que estes mecanismos alterariam as

propriedades do sangue, uma vez que este estaria acostumado com o fluxo pulsátil.

Assim como os responsáveis pela bomba centrífuga tem argumentos favoráveis à

essa tecnologia, são muitos os argumentos formulados pelos responsáveis pelo “coração

artificial” em sua defesa. Um deles passa pela questão de ser o primeiro mecanismo a não

extrair o coração natural, nem eliminar o movimento pulsátil, o que ofereceria vantagens

em termos de não alterar o ritmo cardíaco, o que traria mais segurança.32 Aron José Pazin

de Andrade, um dos responsáveis pelo desenvolvimento do “coração artificial”, considera

que essa tecnologia é uma tecnologia menos invasiva, e busca sua segurança no

31 Declaração dada ao Jornal da Unicamp, Campinas, 08 de outubro de 2012 a 14 de outubro de 2012 –

ANO 2012 – Nº 541 (http://www.unicamp.br/unicamp/ju/541/bomba-para-o-coracao-pode-salvar-pacientes-na-fila-de-transplante, acessado em maio de 2014) 32 “O nosso coração artificial é o primeiro do mundo com essa concepção de trabalhar junto com o órgão natural”, declaração dada pelo engenheiro mecânico especializado em bioengenharia Aron José Pazin de Andrade à revista Pesquisa Fapesp (Edição 185 - Julho de 2011, http://revistapesquisa.fapesp.br/2011/07/12/cora%C3%A7%C3%A3o-auxiliar/, acessada em maio de 2014)

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funcionamento do próprio órgão “nativo”. Segundo ele: “A gente criou um dispositivo

para ser um auxiliar ao coração porque, se o aparelho falhar, o paciente ainda terá o seu

coração funcionando e terá tempo de ser socorrido" (Revista Pesquias Fapesp, 2011).

Todos os mecanismos são passíveis de falhas: o biológico, o pulsátil e o

centrífugo. Nem a natureza escapa de falhas, apesar de ser “incomparavelmente mais bem

organizada e capaz de movimentos mais admiráveis do que qualquer uma das (máquinas)

que possam ser criadas pelos homens” (Descartes, 1973, p.31). No entanto, as falhas das

máquinas precisam ser prevenidas, evitadas e amenizadas. A justificativa do modelo

centrífugo diz respeito à busca de mecanismos mais simples (em comparação aos

pulsáteis), que apresentam menores chances de falhas. A justificativa do modelo pulsátil

é poder contar com o funcionamento do próprio órgão, que mesmo deficiente deve ser

considerado. Faz-se necessário ressaltar, no entanto, que tanto o argumento contrário à

utilização de bombas centrífugas de fluxo contínuo, como o favorável à utilização de

bombas pulsáveis parecem acionar explicações decorrentes da menor intervenção e

interferência no funcionamento fisiológico. Se por um lado as bombas não pulsáteis

(centrífugas) podem não ser recomendadas por sua possibilidade de alterar as

propriedades do sangue, por outro lado as bombas pulsáteis podem ser preconizadas por

seu atributo de se associar à natureza fisiológica, buscando uma alteração mínima do

corpo biológico, compondo uma relação mais harmônica entre organismo e máquina,

reformulando a ideia de organismo natural como aquele composto por artifícios (não uma

natureza isolada, perfeita e funcional, mas compassada e conectada com suas

intervenções).

Embora haja uma defesa de determinados projetos e argumentos, ambas as

tecnologias e pesquisadores fazem parte da mesma instituição. Há também outros

pesquisadores na instituição, em geral todos envolvidos em todos os projetos, ainda que

normalmente sejam diretamente responsáveis por apenas um.33Ainda que trabalhem

coletivamente, no entanto, as convicções a respeito da funcionalidade de cada uma das

tecnologias variam. Há aqueles que apostam nas bombas pulsáteis e outros que defendem

o uso de bombas centrífugas34 (não pulsáteis). No entanto, a orientação da instituição

33 Embora cada um trabalhe em sua própria pesquisa de mestrado ou doutorado, parece não haver uma divisão rigidamente estabelecida. Como há contribuições diversas e quase sempre os autores responsáveis pelos artigos são múltiplos, parece haver uma espécie de criação mais coletiva, que considera todos os parceiros associados aos projetos não exatamente como responsáveis, mas colaboradores. É preciso ressaltar, no entanto, que há posições hierarquicamente superiores e outras inferiores. 34 De acordo com a Wikipédia as bombas centrífugas são os equipamentos mais utilizados para bombear líquidos, funcionando a partir de elevação, pressurização ou transferência de líquidos de um local para o

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20

acena para a busca de produção de tecnologias diversas, com aplicações também distintas,

que podem ser profícuas diante da diversidade e especificidade dos problemas surgidos

na prática médica e cirúrgica. Em termos gerais, a eficiência das tecnologias não pode ser

definida a priori, mas depende da aplicação e do caso a que se destinam. Como não só os

conceitos e mecanismos variam, mas também a técnica de aplicação no procedimento

cirúrgico35, a funcionalidade depende de cada caso, o que torna útil a disponibilidade de

tecnologias diversas para que os cirurgiões possam tomar decisões particulares, como

ocorre com as próteses de válvulas, descritas anteriormente.

A produção coletivizada característica da instituição implica que um

bioengenheiro que argumente a favor de uma bomba centrífuga em sua pesquisa possa

também contribuir nos testes e desenvolvimento da bomba pulsátil eletromecânica, e

vice-versa, por exemplo. Além do mais, ainda que haja uma defesa da diversidade de

modelos e aplicações, não estão estabilizados os argumentos sobre essas bombas, que

ainda estão em disputa e em processo de construção de dados que possibilitem consolidar

concepções mais consensuais sobre elas. Como vimos no caso das válvulas, são

necessários anos de pesquisa e desenvolvimento de inúmeros projetos para que se alcance

um modelo ideal ou aceitável, bem como para que alguns modelos sejam descartados ou

tomados como ineficientes. Obviamente os diversos tipos de bombas de assistência

circulatória podem continuar coexistindo, mas muito pouco se sabe sobre a eficiência

delas a longo prazo, o que significa que mais alguns anos de pesquisa possam redefinir o

campo.

*******************

Seria o dispositivo desenvolvido no Dante Pazzanese um artefato natural ou

artificial? Assim como Latour (1994, 1997, 2004, 2012), considero haver um

entrelaçamento entre as entidades tradicionalmente vistas como exclusivamente naturais

ou sociais. Nesse sentido, o coração artificial pode ser visto como um artefato produzido

com materiais biocompatíveis, inspirado no funcionamento do corpo biológico, cuja

finalidade é solucionar problemas de saúde pública, relacionadas à gestão da vida e da

outro. Alguns exemplos de aplicação são: no saneamento básico, na irrigação de lavouras, nos edifícios residenciais, na indústria em geral. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Bomba_centr%C3%ADfuga acessado em maio de 2014). 35 Há bombas implantáveis externas e internas, ou mesmo bombas confeccionadas para serem utilizadas em ambas as posições. A decisão de como ou qual utilizar dependeria do estado e das condições do paciente, pois cada procedimento traz efeitos específicos.

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morte (Foucault, 2006, 2007). Tratam-se, portanto, de questões políticas que envolvem

um conhecimento sobre a natureza para a produção de tecnologias de intervenção no

corpo.

Embora toda a ciência moderna possa ser vista como um híbrido, descrita através

de um vocabulário de “composição”, “coprodução”, e “construção” (Latour, 2004), o

“coração artificial” parece ser um profícuo objeto/ sujeito de análise por estabelecer

entrelaçamentos específicos entre humanos e máquinas36, fenômenos e objetos

supostamente naturais e sintéticos, concepções biomédicas, bioengenharia e outros

saberes. Assim, ao inspirar-se e associar-se ao modelo fisiológico, que dá origem a um

artefato híbrido, baseado em certa “natureza” reproduzida e destrinchada em laboratório,

nos perguntamos se o “coração artificial” estaria desestabilizando as dualidades e

rompendo com os paradigmas da modernidade, transformando a existência material do

corpo e a própria concepção de humano

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