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Juan Del Diablo 01 Caridad Bravo Adams C C O O R R A A Z Z O O N N S S A A L L V V A A J J E E (Caridad Bravo Adams)

Coração Selvagem I

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Juan Del Diablo 01 Caridad Bravo Adams

CCOORRAAZZOONN

SSAALLVVAAJJEE

(Caridad Bravo Adams)

2

Disponibilização, Pesquisa e Tradução: Jo Slavic

Revisão: Vânia Gusmão

Formatação: Karina Rodrigues

IInnffoorrmmaaççããoo ddaa sséérriiee

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TTooddaa aa sséérriiee sseerráá ddiissttrriibbuuííddaa ppeelloo ggrruuppoo PPééggaassuuss

LLaannççaammeennttooss.. AAgguuaarrddeemm..

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CCapitulo 1

A tormenta de outubro ruge sobre o inquieto Mar das Antilhas... É de noite, e as rajadas de um furacão fazem estelar-se contra os escarpados de rochas as ondas

gigantescas, que caem logo, em ebulição o manto de espuma, sob o açoite da chuva... Negro está o céu; e a terra, como sobressaltada. São a costa Brava que se abre,

primeiro em pequenas enseadas, em apartamentos estreitos, e logo, uns poucos metros mais à frente, converte-se em selva espessa... Terra antilhana sobre a que ondeia a bandeira da França...

Um navio entra no porto do Saint-Pierre, a despeito dos elementos desencadeados... E unindo-se ao concerto do vento e das ondas, a salva de honra de

vinte e uma armas lhe saúda do forte de São Honorato...

Ao mesmo tempo em que a fragata, que já se acolha à enseada do Saint-Pierre, um pequeno bote desvencilhado ganhou milagrosamente a areia de uma diminuta

praia próxima a circundam, e seu único tripulante salta, metendo-se na água até a cintura, para arrastar a frágil canoa, liberando-o da fúria renovada dos elementos...

A luz muito viva de um raio iluminou dos pés a cabeça ao audaz marinheiro,

que em noite tal acima à enseada. É forte e ágil; com flexível soltura de felino dá uns passados afastando-se do mar, para erguer-se depois, como calculando o perigo do

lugar em que deixou seu bote. Tem a pele torrada pela intempérie; largo e forte o pescoço; os ombros, quadrados;

Os quadris, estreitos; as mãos, calosas, e os pés descalços, que parecem aferrar-

se como garras à terra que pisam. .Pode ter apenas uns doze anos...

O detestável estampido de um trovão agitava sombras não alterna... O moço, dominando seu primeiro movimenta de temor instintivo, olha de frente ao firmamento

escuro, onde marcam os raios as chicotadas de sua vivida luz, e exclama:

— Santa Bárbaral

Por um momento parece vacilar, mas não é por temor. A horrível noite não lhe produz espanto... Só calcula, com olhada certeira, que caminho deve seguir para chegar mais rápido à cidade próxima, cujas luzes se apinham ao redor da baía.

Apalpa o pequeno sobre que como um tesouro leva entre suas roupas molhadas, olha de novo ao bote que deixou sobre a areia e põe-se a andar com passo silencioso e

rápido...

— Se não se der você pressa, chegaremos tarde à festa do Governador, amigo D'Autremont.

— Pressa? Nunca me dava pressa por nada nem por ninguém, amiga Noel; sem contar com que chove muito. Poucos serão os convidados que não se atrasem esta noite, e, além disso, o Marechal Pont-merce chega nessa fragata que viu você entrar

faz vinte minutos escassos. Ele é o convidado de honra...

— Não mais que você, meu amigo. A festa é em honra de ambos, e o carro está

aguardando há muito tempo.

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— Está bem, amigo Noel... Vamos, pois... Francisco. D'Autremont se pôs em pé

com gesto de elegante chateio... Deu uns passos através da luxuosa estadia, e se detém no meio do vestíbulo, com gesto de estranheza ao ouvir os fortes barulhos que

repentinamente quebram o lugar com seus ecos... Aborrecido, interpela altivo o seu criado:

— Quem chama desse modo, Batista?

— ia vê-lo neste momento, senhor — responde o criado. — Não sei quem possa ser o atrevido...

— Pois ponha em seu lugar — ordena cortante, D'Autremont. Uma rajada de

vento e chuva faz irrupção, assobiando, no elegante vestíbulo; e irado, D'Autremont grita:

— Fecha essa porta, estúpido!

Antes que o criado consiga fechá-la, o inoportuno visitante penetrou de um salto; os revoltos cabelos molhados sobre a frente, o corpo semidesnudo jorrando água

sobre os tapetes... Tão surpreendentemente atrevido e audaz, que Francisco D'Autremont e Pedro Noel retrocedem ao lhe ver, apagada a indignação pela

surpresa...

— Caramba! — exclama Noel.

— Mas o que é isto? — indaga D'Autremont.

— Procuro o senhor Francisco D'Autremont... — explica o moço com decisão.

— Deve ser um louco, senhor... — intervém o criado — Vou A...!

— Agora, deixa-o em paz! — atalha imperativo D'Autremont.

— É você dom Francisco D'Autremont? — pergunta o moço — É você, senhor?

— Sim, sou eu... Mas você, quem é? E que diabos te passa para te atrever a

chegar a minha casa desta maneira?

— Meu nome é Juan. Venho do Cabo do Diabo para lhe trazer esta carta. O senhor Bertolozi está morrendo e disse que tinha você que chegar antes que ele

acabasse. Se for você seriamente o senhor D'Autremont, venha comigo... Trouxe meu bote para levá-lo... Vamos...?

O moço deu um passo para a porta, mas se deteve observando o rosto do Francisco D'Autremónt, que o olha estupefato, na mão o molhado envelope da carta que acaba de lhe entregar. .É um homem alto e distinto, que viu com extraordinária

elegância... “O seu lado” Pedro Noel, seu amigo e notário; rechoncho e bondoso move a cabeça como se não pudesse dar crédito ao que está vendo e escutando, e com. surpresa e desgosto de uma vez, pergunta: '

— Levar ao senhor D'Autremont em seu bote?

— Quando digo eu que é um louco...! — O melhor será chamar alguém para que

o levem — insiste o criado.

— Quieto! — ordena D'Autremont. Logo, como recordando, murmura — Bertolozi... Bertolozi...

— Disse que fosse você em seguida, que ele, por desgraça, não podia esperar muito. Se sairmos agora mesmo, ao amanhecer estaremos lá.

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— Bertolozi está morrendo... — sussurra D'Autremont.

— Isso assegurou o curandeiro... Que não chegará a manhã... — E lhe deixou um remédio, mas ele não o quis tomar e me mandou com esta carta... Disse que você

tinha que ir lá...

— Pois está completamente equivocado. Não conheço nenhum Bertolozi... — exclama D'Autremont, carrancudo.

— Não é possível, senhor! Se for você dom Francisco D'Autremont...

— Não conheço nenhum Bertolozi! — repete ele. Voltando-se para seu amigo lhe convida — Vamos, Noel?

— Mas, senhor... — se lamenta o moço, saiu seguido do notário, sem voltar-se para olhar ao moço, e salta o chofer da boléia para lhe abrir a porta da carruagem. Por

um instante contempla a molhada carta, afunda-a logo em seu bolso, e entrando no carro ordena com voz forte:

— Ao palácio do Governador. Logo!

O moço se aproxima, gritando implorante:

— Senhor... Senhor... Senhor...!

Tudo é inútil. O carro se afastou; o moço vacila um instante, e logo se põe a andar sob a chuva que açoita a rua...

Pedro Noel, o notário da família D'Autremont, com as grosas mãos apoiadas

sobre o punho de prata de sua bengala, olhar de esguelha ao homem que vai a seu lado. Apesar da brusca resposta dada ao moço, apesar de seu gesto glacial, Francisco D'Autremont parece profundamente comovido, profundamente preocupado. Tem os

lábios apertados e as bochechas pálidas... As inquietas mãos trocam a cada insistentemente e muda de posição e com freqüência apalpam o úmido envelope

guardado em seu bolso... Ao fim, o notário, depois de olhar e olhar arrisca uma palavra:

— Não vai você ler essa carta? Pode tratar-se de algo realmente Importante.

Quando se obriga a um menino a vir do Cabo do Diabo até a cidade, para trazê-la em uma noite como esta... Será porque esse Bertolozi, a quem você não conhece, tem

absoluta necessidade de lhe dizer algo... — Baixa a voz e, em tom insinuante, explica — Bertolozi... A mim esse nome soa...

— Como...?

— De momento não pude recordá-lo, mas agora vou fazendo memória... Andrés Bertolozi chegou a Martinica fará uns quinze anos. Pertencia a uma das mais distintas famílias de Nápoles... Trouxe dinheiro para comprar uma fazenda, e adquiriu uma

bem extensa ao Sudeste da ilha, com grandes plantações de café, tabaco e cacau. Logo se converteu em um homem opulento, alegre e liberal, franco e expressivo, como a

maior parte dos italianos, e trouxe consigo a sua esposa: uma muito bela moça de laqueie estava loucamente apaixonada...

— Basta! — atalha-lhe, irado, D'Autremont.

— Perdão... Não acreditei lhe importunar. Surpreende-me que não recorde ao Bertolozi. “Você estava no Saint-Pierre quando os dias de sua desgraça...”

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— A que chama você sua desgraça?

— O princípio de sua desgraça foi à fuga de sua esposa...

— O que trata de insinuar?

— Não insinuo amigo D'Autremont... Lembro-me. Bertolozi jurou publicamente matar ao homem que a tinha levado, mas o nome daquele ficou no mistério. Ela desapareceu para sempre e Bertolozi se deu a todos os vícios: bebia, jogava, procurava

a companhia das piores prostitutas do porto... Ao fim perdeu o imóvel e, totalmente arruinado, desapareceu ele também. Mas recordando, recordando, vem-me à memória algo que me disse um amigo...

O carro se deteve frente à porta da casa do Governador, mas Francisco D'Autremont não se moveu... Tenso, crispado, voltado para o notário, parece esperar

seus ultima palavras, que Pedro Noel pronuncia como a inapetência, com uma sutil insinuação escorregando de cada frase:

— Parece que o último pedaço de terra que ficava era essa nua rocha do Cabo do

Diabo. Sobre ela, por suas próprias mãos, fabricou uma cabana, e ali é onde certamente agoniza e de onde lhe mandou chamar. Não lhe parece?

— Tem você uma boa memória mais abominável que conheci jamais.

— Por Deus, amigo D'Autremont, é meu ofício...! São tantas as histórias que se escutam quando se dirigem papéis de família, que com freqüência são o reflexo de

dramas de quarto. Pelo resto, Bertolozi foi um homem interessante... Seus assuntos se deram muito que falar, e sua desgraça...

— Não me interessa sua desgraça. Nunca fui seu amigo!

— Às vezes, sendo inimigo basta para interessar-se.

— O que quer me dizer. Noel?

— Autoriza-me para que fale francamente?

— Acaso não estou lhe pedindo que o faça?

— Pois bem... Acredito que deveria você ler essa carta, e ir ver seu inimigo

Bertolozi, ao Cabo do Diabo...

Francisco D'Autremont, nervoso ouviu as palavras do notário, e com gesto de

raiva espreme em seu bolso aquela carta que o moço lhe entregou momentos antes. Logo sorri, tratando de vestir de ironia a inquietação que logo que pode já dissimular:

— Não tinha tanto empenho em que chegássemos cedo à festa do Governador?

— Até há meia hora era o mais importante que tinha você que fazer.

— E agora, o quê? Parece-lhe mais importante que o Governador e sua festa, recolherem o último fôlego desse vicioso, desse bêbado, desse desventurado cansado

em todos os vícios, só porque uma mulher lhe enganou?

— Era sua esposa e ele a amava — responde Noel com suavidade. — O cobriu de

vergonha e ele não obteve jamais encontrar-se com o agressor.

— Não o encontrou porque não quis buscá-lo! — salta D'Autremont, com ira concentrada.

— Talvez o outro soubesse ocultar-se bem...

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— Pensa você que era um covarde?

— Não, claro que não posso pensá-lo. Sem dúvida, era capaz de confrontá-lo todo tudo, menos o escândalo. Pelo resto, tinha obrigações graves, e Gina Bertolozi

não o ignorava. Era casado... Sua esposa estava a ponto de lhe dar um filho... Eu não culpo a esse homem, amigo D'Autremont... São pecados de homem... Mais grave me parece não ir à chamada de um moribundo...

— Basta, Noel! Irei lá.

— Por fim me Perdoe por ter insistido tanto. O conheço um pouco, amigo D'Autremont, e sei que há coisas que não as perdoaria você jamais.

— Então, quer você apresentar minhas desculpas ao governador?

— Com verdadeiro gosto, meu amigo.

— Pois vá. — de repente D'Autremont exclama — Um momento!

— Não é preciso que me recomende à discrição mais absoluta — esclarece Noel, pormenorizado. — É... Meu ofício, amigo D'Autremont.

CCapítulo 2

A tormenta amainou. O mar está quase tranqüilo, e um vento fresco, quase.

Frio, chega com a proximidade da alvorada, varrendo as nuvens.

O frágil bote, que resistiu a tempestade, encalha na areia de uma profunda

greta, esculpida na rocha viva pelos golpes do mar, e outra vez salta o rapaz metendo-se na água para tirar terra à casquinha, deixando-a a salvo. Logo, seus pés descalços, endurecidos pela intempérie, sobem pelos penhascos afiados, primeiro com agilidade

de felino, depois mais lentamente, como se não queriam chegar até o lugar aonde vão... Já no alto do penhasco de rochas, parece como se fossem de chumbo... Detêm-

se cada instante, tremem como se fossem a tomar outro rumo, e ao fim chegam até o oco sem porta, entrada da mísera cabana que é a única habitação, humana no Cabo do Diabo.

Uma voz de doente, carregada de rancor, pergunta:

— Quem é?

— Sou eu: Juan...

— Juan do Diabo!

Da cama onde jaz com febril esforço se há incorporado um homem que mais

parece, um despojo humano: a pele sobre os ossos; as bochechas afundadas; sujas,

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crescidos e revoltosos o cabelo e a barba... A boca, um oco crispado de dor... Por

vestidos, uns sujos farrapos. Inspiraria compaixão profunda se não fosse por seu olhar: ardente, audaz, desafiadora, carregada de ódio, lhe relampejem de rancor, como

carregadas de ódio e amargura soam cada uma de suas palavras.

— E o cão que te mandei procurar? Vem contigo? Onde está? Onde está o maldito Francisco D'Áutremont? Corre... Chama-o! Três, lhe diga que demorou... Um

pouco mais e não posso lhe aguardar!

— Não veio comigo — se desculpa o moço.

— Não...? Por quê? Não fez o que te disse, maldito? Não chegou a sua casa? Não

me obedeceu, né? Agora verá. .

Tratou que levantar-se, mas caiu de novo sem forças, para ficar imóvel,

extenuado, os olhos frágeis... O moço o olha impassível, se aproxima passo a passo, com uma excreção estranha em seus profundos olhos altiva, e afirma:

— Sim; cheguei a sua casa...

— E lhe deu a carta?

— Sim, senhor, na mão.

— E não veio depois de lê-la?

— Não a leu. Disse que não conhecia ninguém que se chamasse Bertolozi...

— Disse isso o cão?

— E se foi de carro a uma festa onde o estavam esperando.

— Maldito! E você o que fez então? O que fez?

— O que ia fazer? Nada.

— Nada... Nada! Sabe que me estou morrendo. Sabe que necessito que venha, e não faz nada! Tinha que ser quem é.

— Mas, pai...! — suplica o moço.

— Não sou seu pai! Quantas vezes tenho que dizer Não sou seu pai. Quando essa maldita voltou a me buscar, quando precisou buscar meu amparo, já te trazia

nos braços. . Não é meu filho! Se ela, além de me enganar, tivesse-me roubado meu filho, eu a teria matado. Mas não, voltou com o filho de outro, com o filho desse

canalha... Contigo!

— Filho de quem?

— De quem... De quem? Quer sabê-lo? Para dizer-lhe mandei-o chamar. Filho

dele, disso, do que se ia de carro a uma festa enquanto eu vejo aproximar-se da morte. Do que me tirou isso tudo, do que me roubou isso tudo, para me dar, em troca, a ti.

— Não entendo... Não entendo!

— Pois o entende! Esse senhor que te voltou às costas, esse senhor que te disse que não me conhecia... É seu pai!

— Meu pai... Meu pai...? — balbucia o moço no paroxismo da surpresa.

— Mas não se preocupe... Tampouco te conhecerá Que asco!

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— Senhor Bertolozi... Repita-me isso. Meu pai...? Disse você que meu pai...?

— Seu pai é Francisco D'Autremont. Diga-lhe a todo mundo, grita-o em todas as partes! Seu pai é Francisco D'Autremónt... Deve-lhe toda sua desgraça. Deve-lhe a

miséria, deve-lhe a vergonha, deve-lhe sua nudez e sua fome... Deve-lhe o insulto que têm que te jogar à cara quando for homem, porque ele manchou a sua mãe! Todo isso lhe deve... E agora, quando o chamo porque estou morrendo, porque vais ficar

sozinho, vai a uma festa onde o estão esperando.

— Um soluço se quebra em sua garganta, deixando passo a ternura. — Juan... Juan, filho meu...

— Senhor...!

— Aborreço-te porque é filho dele, mas há algo com o que pode te limpar te

lavar essa mancha... Quando for homem, procura o Francisco D'Autremont e faz o que eu não fiz o que não tive o valor de fazer: mata-o. Mata-o! — E como se nestas palavras tivesse posto o último hálito de sua vida, cai desabado ao chão.

— Senhor... Senhor, senhor me Responda! Sacudiu-o em vão. Andrés Bertolozi não responderá mais!

Ninguém na costa; ninguém na funda greta, entrada da estreita praia; ninguém nos imponentes farallones de rochas nos que rudemente se estrela o mar; ninguém no alto. Do promontório do Cabo do Diabo; ninguém em tudo que sua vista inquisitiva

alcança... Nem alma vivente nem habitação humana... Só uma cabana miserável ao amparo do negro promontório que entra no mar: o Cabo do Diabo.

Bem posto tem o nome à abrupta paisagem, agora mais desolado sob as

espessas nuvens cinzentas que envolvem as montanhas... Tão baixos, tão perto da terra, como se quisessem também tragar-lhe Com passo firme. Francisco D'Autremont

vai para aquela cabana e chama com voz estrondosa:

— Bertolozi!

O nome soa oco na nua estadia sem portas, sem janelas, sem móveis quase... No

camastro se acha a forma rígida de um corpo que se destaca sob um lençol, incrivelmente limpa naquele lugar... Impressionado, D'Autremont murmura:

— Bertolozi...

De um puxão Baixou um pouco o lençol para ver aquele rosto no que a morte pôs já sua máscara, e pouco pode reconhecer nele ao homem Jovem, são e arrogante,

que foi seu rival... Há manchas de cãs entre os revoltos cabelos escuros, entre a espessa barba que cobre as bochechas emagrecidas, e há também uma sombra de suprema paz sobre as pálpebras fechadas... Estremecendo-se, Francisco D'Autremont

cobre aquele rosto, e retrocede um passo... .

Chegou tarde, muito tarde... Aqueles lábios lívidos já não lhe entregarão o

segredo que guarda... Calam para sempre... Mas a mão do Francisco D'Autremont apalpa nervosamente em seus bolsos e extrai o enrugado sobre daquela carta que incluso não tem lido... Guardou como pode guardar um veneno, uma arma, uma

dormida serpente venenosa. Mas agora, frente a aquele cadáver, rasga o sobre e dá um passo para a janela sem folhas, pela que penetra a luz leitosa do dia que nasce...

"Com minhas últimas forças te escrevo, Francisco D'Autremont, e te peço que

venha a meu lado. Vêem sem medo... Não te chamo para tentar uma vingança. É tarde

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para que eu me cobre em sangue todo o mal que me tem feito e que fez a ela. É rico e

feliz, amado e respeitado, enquanto eu, fundo na abnegação e na miséria, Olho chegar à morte como a única liberação possível. Não tenho que te repetir quanto te odeio.

Você sabe. Se te matasse com o pensamento, te teria aniquilado; mas só eu mesmo me consumei pouco a pouco na fogueira deste rancor que me cobre à alma...

Por um instante. Francisco D'Autremont interrompeu a leitura para contemplar

a forma rígida que destaca sob o tecido branco, sentindo que a angústia lhe invade, que lhe é difícil respirar sob o teto daquele cabano onde todo preze rechaçá-lo, e outra vez voltam seus olhos à leitura...

"Mata-me o ódio mais que o álcool, mais que o abandono... E por ódio calei durante muitos anos. Hoje quero te dizer algo que acaso possa te interessar. Esta

carta a porá em suas mãos um moço. Tem doze anos e ninguém se ocupou jamais de batizá-lo. Eu lhe chamo Juan, e os pescadores da costa lhe dizem algo mais: Juan do Diabo... Pouco tem de ser humano. É uma fera, um selvagem... Criei-o no ódio... tem

seu coração malvado, e eu dei, além disso, rédea solta a todos seus instintos. Sabe por quê?" lhe vou dizer isso se por acaso não te decide a vir a me escutar: É seu filho...

A carta tremeu em suas mãos... Com olhos aumentados de angústia olha a todas as partes, mas os artigos desiguais lhe atraem como letreiros de fogo, e bebe de um sorvo ele subtraio de veneno daquelas palavras...

"Se o tiver diante, olha-o à cara... Às vezes é seu vivo retrato... Outras se parece com ela... A ela... a maldita... É teu... Toma-o... Tem o coração envenenado e a alma danificada de rancor. Não sabe mais que aborrecer... Se o levar contigo, será o pior

castigo que possa ter... Se o abandona, será um assassino, um pirata, um salteador de caminhos, que acabará na forca... E é seu filho... Tem seu mesmo sangue... Essa é

minha vingança!"

— Pálido de primeiro espanto, vermelho de indignação um instante depois, Francisco D'Autremont espremeu aquela carta, última mensagem de seu rival vencido,

de seu inimigo imóvel para sempre já; triunfador na morte, tanto como na vida foi derrotado... Com súbito impulso de irrefreável cólera, foi até o camastro, descobrindo

o rosto do Cadáver, e o espeta tremente de horror e de raiva:

— Acorda! Isto não é verdade! .Por que não me esperar com vida para te obrigar a confessar! Embusteiro! Covarde! Como sempre foi, tinha que te levar, até o final!

Covarde, sim... Covarde! Jamais me buscou cara a cara... Jamais, como homem, pediu-me contas... E agora... Por que não está vivo? Por que não me aguardou? — retrocedeu cambaleando-se, cegado por um bafo vermelho que forma em torno dele.

Como uma atmosfera de irrealidade. — É o mais vil dos embusteiros, mas não vais alcançar-me com seu torpe veneno! Não! Não!

— Senhor D'Autremont! — chama suave, a voz do Pedro Noel

— Isso não é verdade! Isso não é verdade!

— D'Autremontl — insiste Noel, aproximando-se — D'Autremont!

— Covarde... Canalha...! — Amigo meu... Mas está você louco?

— ha? O que? — reage, por fim, D'Autremont. Está você doente, transtornado... Volte para a realidade... — Noel... Amigo Noel...

— Acalme-se, por favor... Acalme-se...

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Francisco D’Autremont se conteve com tremendo esforço, afastando do camastro

onde jaz o cadáver, enquanto Pedro Noel se aproxima respeitoso.

— É um embusteiro... Um embusteiro e um canalha...! — sentença D'Autremont

com voz surda.

— Já não é nada, meu amigo, mas sim um triste despojo. Deixe-o, e vamos...

— Como está você aqui? — interroga D'Autremont, saindo do marasmo de seu

estupor.

— Pareceu-me conveniente vir a buscá-lo... Batista me disse o caminho que havia você seguido. Acredito que cheguei a tempo... E você, em troca, muito tarde.

Mas venha, vamos...

— Aguarde... Aguarde... Onde está o moço?

— Que moço?

— que levou a carta... Onde está?

— Não sei... Não vi a ninguém. Suponho que o desditado Bertolozi vivia na mais

absoluta solidão.

— O menino vivia com ele... Onde está?

— Repito que não vi a ninguém, mas se você se empenha... OH, olha...! D'Autremont se tornou com viveza'... Muito perto do camastro, sentado no chão, depois dos desvencilhados móveis da casa — uma mesa e um par de cadeiras rotas, —

está o moço que foi até o Saint-Pierre levando aquela carta, e ardem com um estranho fogo seus olhos escuros sob o cabelo emaranhado que lhe cobre a frente...

— O que faz aí escondido, moço? — indaga Noel. — levante-se... Levante-Te, que

o senhor te está procurando...

Juan se levantou lentamente, sem deixar de olhar ao Francisco D'Autremont,

que sente avermelhar suas bochechas baixo aquele olhar... É um olhar que acusa que condena... Acaso que pergunta...

— Estava aí? Estava aí desde que eu entrei? — quer saber D'Autremont. —

Responde!

— Sim, senhor — responde o moço. — Aí estava...

— por que te escondia? — pergunta Noel.

— Não estava escondido... Estava aí...

— Sem dizer uma só palavra... — queixa-se D'Autremont.

— E o que tinha eu que dizer?

O moço se pôs de pé. É ânus para sua idade, magro e jogo a rede, inquieto e ágil como um animalzinho montês, e D'Autremont se volta para ele, sujeitando-o

bruscamente pelos braços...

— Estiveste-me espiando, ouvindo minhas palavras... Sim, verdade? Conhecia

você o conteúdo da carta que levou?

— Como? '

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— Que se tinha lido essa carta...! Responde! — a minha pergunta D'Autremoht,

irado.

— OH, me solte! Eu não o estava espiando... Solte-me! Não tem por que me

sujeitar... Tampouco li a carta. Não sei ler...

— Naturalmente, amigo D'Autremont — intervém, conciliador, Pedro Noel. — que ocorre! Como vai saber ler este pobre moço!

— Havia-te dito ele o que me escreveu nesta carta? Responde a verdade! — D'Autremont se dirige ao moço, em tom ameaçador.

— Já hei dito que não — responde o moço.

— Por favor, amigo D'Autremont — aconselha Noel — Calma. Calma...

Francisco D'Autremont se afastou uns passos, apertados os punhos e trêmulos

os lábios, enquanto o notário olha bondosamente ao moço imóvel, duro e áspero, e lhe pergunta:

— A que hora morreu. O senhor Bertolozi?

— Não sei... Faz tempo já...

— Não avisaste a ninguém?

— Cheguei até as cabanas de lá abaixo... Ali me deram esse lençol... Depois me disseram que viriam os da justiça... Mas eu não estava espiando a ninguém... — insiste com teima. — Esse senhor diz...

— EI senhor D'Autremont está nervoso por tudo que passou. Sua atitude lhe pareceu estranha, mas nada mais. Vêem para cá... Aproxime-te um pouco... Compreendo que você também se sente mal. O que foi você do senhor Bertolozi?

Amigo? Parente? Criado?

O moço se ergueu. Seu olhar, como uma flecha, cravou-se no Francisco

D'Autremont, que volta já sobre seus passos, olhando-o de frente. Um instante se cruzam no irei àquelas duas olhadas estranhamente iguais... E o notário, depois de lhes contemplar, indaga com suavidade:

— Não sabe o que foi do senhor Bertolozi? Provavelmente, vizinho nada mais... É da aldeia de pescadores que está lá abaixo?

— Não... Eu vivo aqui... O senhor Bertolozi era... Era meu: pai...

— Efetivamente — suspira D'Autremont. — Acredito que este menino é filho do Andrés Bertolozi e de sua desafortunada esposa. A enfermidade e o álcool deveram

enlouquecer ao Bertolozi em seus últimos tempos... Deve dizer tantas coisas estranhas, que o pobre moço está transtornado...

Sua mão tremente quis posar-se na cabeça do Juan, que com um brusco

movimento o esquiva. Logo, com gesto de desalento, D'Autremont sai lentamente da cabana, e Noel vai atrás dele. Uns passos mais adiante se detém e o notário interroga

a seu amigo:

— Permite-me lhe perguntar o que vai você a fazer?

— Farei que sepultem ao Bertoíozi com decência. Quereria ocupar se disso? —

responde D'Autremont com tristeza, sereno, já dono de suas emoções.

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— Naturalmente, se você o dispuser...

— Penso sair para minhas terras amanhã, de madrugada...

— E o moço?

— Levarei-o comigo.

— Ah... Mas quererá ir-se?' Não acredito que vocês tenham simpatizado.

— Confio em sua boa máfia para conquistá-lo. Noel.

— me perdoe uma última pergunta. Leu, por fim, a associação de famosa carta?

— Li-a e a rompi no ato. Só dizia loucuras e disparates. Por isso sei que Andrés Bertoíozi estava completamente louco. Absolutamente transtornado!

Pedro Noel se levou a moço, afastando-o um tanto da cabana, rumo ao caminho que por outra via comunica com a cidade aquela paragem desolada. Passaram as

horas, e os escuros e rotineiros trâmites para dar sepultura ao corpo do Bertolozi tocam já a seu fim. Só fica aquele último ponto delicado que Francisco D'Autremont encarregasse a seu diplomático amigo e notário.

— O senhor D'Autremont vai levar-te com ele. Sabe o que isso significa? Levará-te a sua casa, onde vão tratar-te bem, onde há toda classe de comodidades. Sua vida

vai mudar...

— Não... Não quero! — protesto o moço, anti-social.

— Que não quer? Não posso acreditá-lo. Certamente não obtive que entenda

minhas palavras... O senhor Bertoíozi morreu. Não fica nada o que fazer por para cá.

— Não quero ir!

— Não seja teimoso... Vai a uma formosa casa onde gozará de todas as

comodidades, onde viverá como um ser humano. O senhor D'Aütremont quer te amparar, é muito bom...

— Não! Não! Não é verdade! Não quero ir com ele!

— Pois terá que fazê-lo, por bem ou por mau Não vão fazer-te nenhum dano... Ao contrário... Mas será pior para ti que lhe levem a força, metido em um saco como

um macaco selvagem.

— Si me levam a força, escaparei-me!

— E lhe voltarão a apanhar... — diz o notário, afetuoso. — Mas, por que é tão teimoso moço? Olha... Quer que façamos um trato? Eu vou com vocês; passarei dois ou três dias em Campo Real, que é a fazenda do senhor D'Autremont. Se não quiser

ficar ali, quando eu retorne para o Saint-Pierre, trago-te.

— Por que não me deixa com você a partir de agora? Eu sei trabalhar em muitas coisas: cortar lenha, cuidar cavalos... Eu...

— Perfeitamente. Ocupar-te-á de todo isso quando voltarmos a casa. Mas, no momento, tem que agradar ao senhor D'Aütremont. Equivoca-te ao pensar que não é

bom; é bom e generoso, possui uma linda casa de campo, sua esposa é uma bela dama, distinguida e amável, e tem um fio que pouco mais ou menos terá seus mesmos anos. Certamente te quererá para que esteja com ele, para que lhe acompanhe em

seus jogos e seja algo assim como seu pequeno lacaio. O vais passar bem, Juan.

14

— Eu prefiro ficar com você... Ou que me deixem sozinho.

— Só não vamos deixar-te. Eu te levo e...

— E me traz... Traz-me depois... Dá-me sua palavra... Eu não quero ficar lá!

— Bem, homem, bem. Levo-te e te trago. É um ingrato com o senhor D'Autremont. Ao menos, tem que tratar de mostrar sua gratidão por sua boa vontade. Anda, vê para o carro, que ali vem ele e tenho que lhe falar.

— O que acontece, amigo Noel? — pergunta D'Autremont.

— Resistiu o bastante, mas consegui amansá-lo com a promessa de ir eu com vocês e lhe trazer de volta se não se achar a gosto. O prefere ficar comigo, e não você

tome a desprezo. É um moço estranho, mas me temo que extraordinariamente inteligente apesar de seu aspecto rude e selvagem.

— Temer? Por quê?

— É uma maneira de falar. Ao fim e ao cabo, sempre é preferível tratar com inteligentes que com brutos. Este nos provou ser um valente. A viagem que fez ontem

à noite nesse bote, e com essa borrasca, precisa uma têmpera que muitos homens não tivessem tido. Parece, além disso, altivo, reservado, com certa dignidade natural. Nada

disso é comum em quem vive como um mendigo. Lhe vê certa casta...

— Deixe em paz sua casta! Recolho-o porquê suponho que era o que queria me pedir Bertolozi, mas nada mais. A minha esposa não temos por que lhe dar detalhes

de nada disso. A imaginação das mulheres todo o enreda. Esperou que não se você surpreenda muito se me ouça contar alguma história distinta referente ao moço.

— Temo-me que é você quem vai enredar a, porque apenas penteie isso e se lave

a cara, esse moço não poderá passar por nenhum mestiço. Fixou-se em que é um bom moço? Seus grandes olhos italianos recordam extraordinariamente aos da

desafortunada Gina Bertolozi. Não se fixou?

Noel lhe observou, lhe vendo empalidecer, apertar os lábios... Logo, Francisco D'Autremont encolha os ombros, forçando o gesto despreocupado, ao comentar:

— Não tive tempo de lhe olhar bem à cara. De um modo ou de outro, já se arrumarão as coisas. E. No pior dos casos, (ainda sou eu o que manda em minha

casa).

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CCapitulo 3

— Mama. Mamãezinha. Por aí vem já papai. Por aí vem. .

Brilhantes os olhos de alegria, um momento acesas pela emoção as bochechas, habitualmente pálidas que emolduram os murchos cabelos loiros, um moço como de

doze anos entrou no quarto da senhora D'Autremont, que abre os olhos, incorporando-se lentamente na ampla rede em que descansa.

— Já? É possível? Mas se não o esperava eu até no sábado!

Sofía D'Autremont tem uma beleza delicada e frágil... Grandes olhos de cor turquesa, cabelos loiros, suaves e murchos como os do moço, e, como este, pálidas

bochechas de cor âmbar.

Um momento desapareceu seu gesto enfermo ante a notícia que acaba de lhe

trazer seu filho. E já de pé, dá uns passos apoiando-se nos magros ombros de este.

— Está seguro que é seu papai quem chega?

16

— Pois claro, mamãe, Sebastián veio correndo a avisar. Disse que desde i o alto

da colina viu papai em seu cavalo branco, e detrás os três carros da caravana. Talvez venham cheios de presentes...

— Para ti?

— Para ti, mãezinha. Se tiver chegado navio da França, papai te trará de tudo: tecidos de seda, perfume, bombons e todas essas coisas que sempre te traz. Eu lhe

pedi um relógio de bolso. Trará-me isso?

— Certamente, filho. Mas chama a minhas donzelas, A... Isabel, a Ana... A primeira que encontre. Tenho que pentear-me, que me vestir...

— Senhora, senhora...! Dizem que o senhor está chegando por aqui — exclama Ana, a donzela, irrompendo no quarto.

— Você vê? Você vê mãezinha? Já. Está aqui

— Jesus! Ajude-me a me pentear. Ana. De me mudar de roupa não há tempo, mas

— A senhora está, como sempre, linda e arrumada. Não minta a donzela mestiça. Como sempre, a; senhora D'Autreimont está impecável. Um fino traje branco

adornado com amplos encaixes, meias de seda, sapatos de salto Luis XV e um fino enfeite com o que muito bem poderia apresentar-se em qualquer centro elegante de sua terra natal. Entretanto, só está na grande casa, centro das plantações de Campo

Real, mansão enorme e sólida, de amplíssimas estadias suntuosas, grandes abajures e pisos brilhantes como espelhos; tão luxuosa, tão senhorial, com suas luas de Veneza e seus consoles dourados, que resulta anacrônica no coração daquela ilha americana,

tórrida e selvagem; mas é digna morada, de a frágil dama que balança passo a passo sobre o gentil parque, uma mão apoiada no braço de sua donzela favorita, outra sobre

a dourada cabeça daquele filho único tão extraordinariamente emparelhado a ela.

— Aí está papal — grita o moço, afastando-se alegre. Correu ao encontro do cavaleiro que já se detém frente à entrada principal e desmonta de um salto do brioso

cavalo, arrojando as rédeas à meia dúzia de serventes que foram para lhe atender e lhe saudar. E da semipenumbra da larga galeria, Sofía D'Autremont contempla, com

olhos de ciumenta apaixonada, a figura varonil, altiva galharda, ante a que todos se inclinam, porque ele é o amo de Campo Real é soberano indiscutível da terra que pisa.

— Trouxe-me o relógio, papai?

— Não; filho. Não tive tempo de buscá-lo.

— E a caixa de cores? E as cordas para meu bandolim?

— Sinto muito, mas nesta viagem não houve tempo para buscar nada.

— Francisco... — murmura Sofía, aproximando-se de seu marido.

— Sofía... Como está? — indaga D'Autremont, afetuoso e tenro.

— Como sempre... Mas deixemos meus achaques. Como é que retornaste tão logo? Ainda não lhe esperávamos...

— Suponho que não te desgosta o que tenha adiantado minha volta — responde

D'Autremont em tom jovial.

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— Me desgostar? Que coisa diz! É uma surpresa gratíssima; mas uma surpresa,

ao fim e ao cabo. O que aconteceu? Não chegou a fragata que esperavam? Suspenderam as festas preparadas em honra do Marechal Pontmerce? Ou acaso lhe

traz você?

— OH, não, não!Nem sequer vi ao Marechal Pontmerce.

— O que passou? Alguma desgraça? O tempo esteve terrível estes últimos dias...

— Não, nenhuma desgraça. A fragata entrou sem novidade e as festas devem estar-se celebrando.

— Mas...

— Não me interessou ficar a elas, Sofía. Isso é tudo.

— Pensei que te agradaria conversar com um compatriota ilustre. Certamente

trará coisas interessantes o que contar. Poderíamos ter notícias...

— Intrigas de salão ou intrigas políticas? Para que pode nos servir aqui, querida? Estamos a sete mil milhas da França e até o sol ilumina a distintas horas.

— Não por isso podemos esquecer a nossa pátria — o reprova Sofía.

— Minha pátria é esta, querida. Porque aqui está minha casa, está. Meu filho e

está você. Nesta ilha, que só para sua saúde foi inóspita. Mas não sente curiosidade em ver o que, trago-te? .

— tornou-se fada o maciço de flores que envolve a calinata, entrada principal

daquela mansão, onde acabam de detê-los três carruagens que formam a caravana que lhe seguia. Um totalmente vazio, do outro descendem já seus serviçais particulares, e do terceiro, que é o mais próximo, baixa Pedro Noel quase arrastando

ao áspero moço que foi seu companheiro de viagem. As finas sobrancelhas da senhora D'Autremont se juntam em um gesto de estranheza que é quase, quase de disposto, ao

comentar:

— Pedro Noel... Mas a quem traz?

— A alguém que pode entreter seus momentos de ócio e os de nosso filho Renato

— explica D'Autremont.

— Um moço! — salta, alegremente, Renato. — Me trouxe um amigo, papai!

— Justamente. Há dito a palavra exata. Trouxe-te um amigo. Agrada-me muito que o tenha entendido no primeiro momento. Um amigo, um companheiro...

— Mas o que está dizendo. Francisco? — interrompe Sofía, com desgosto

reprimido.

— Você traga ao Juan, Noel — indica a este, D'Autremont.

— Senhora D'Autremont — saúda Pedro Noel, aproximando-se — é uma grande

honra para mim o poder lhe apresentar meus respeitos. — Logo, dirigindo-se ao Renato, exclama — Olá, bom moço!

— Bom dia, senhor Noel — corresponde Renato.

— Este é Juan... — explica D'Autremont, apresentando-o.

— Juan? Juan o que? — quer saber Sofía.

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— No momento, Juan a secas. É um órfão desamparado, para o que espero não

falte um canto nesta casa tão grande.

— Juan... A secas, né? — recalca Sofía, com desconfiança.

— Também me chamam Juan do Diabo — esclarece o áspero moço, imperturbável.

— Jesus, Maria e José — se escandaliza a donzela benzendo-se.

— Há um momento de estupor geral, e também alguma risada afogada, quando Noel, mundano, intervém:

— Desculpe-o, senhora. O diamante ainda está sem esculpir.

— Já o vejo... E sem separar o da folha seca — diz Sofía, em tom mordaz. — Os cavalheiros são uma verdadeira calamidade. A nenhum dos dois lhes ocorreu banhar

a este moço antes de colocá-lo no carro.

— É um esquecimento que pode remediar-se — explica D'Autremont, contendo seu manifesto desgosto. — te Faça carrego dele, Ana. Leva-o a banho, arruma-o,

penteia-o e lhe ponha roupa poda do Renato.

— Do Renato? — se estranha Sofía.

— Não acredito que já possa usar a minha.

— Nem cabe na de meu filho.

— Tudo pode reunir-se — intervém Noel, conciliador. — Certamente não faltará

roupa de alguém, que possa servir-lhe.

— A negra Paula é a encarregada da roupa dos empregados — esclarece depreciativa a. senhora D'Autremont. — lhe Peça uma camisa-e umas calças para este

moço. Ana.

— Eu tenho um traje que fica grande, mamãe — oferece Renato. — Ainda não o

estreei, precisamente por isso: É o de pano azul...

— Mandaram-no de presente seus tios da França — se opõe Sofía com crescente desgosto.

— O ofereceu que boa vontade — comenta D'Autremont em tom suave, mas com determinação. — Não lhe corte o impulso generoso, Sofía; Nosso Renato tem; roupa

para vestir a dez moços. Vá com o Juan e com a Ana, filho, e pensa que, para ele este é um mundo novo pelo que você. Vai guiá-lo. — Voltando-se para sua esposa, suplica-lhe com amabilidade — Você vem comigo, querida. Eu também vou pôr-me um pouco

mais apresentável. — E elevando a voz, chama o criado — Batista... Leva ao senhor Noel à habitação que está acostumado a ocupar e encarregui-se de que nada lhe falte.

— Por mim não se incomodem — se desculpa Noel. — Me considero da casa.

— E o é. Dentro de meia hora, Sofía nos fará servir um aperitivo que tomaremos juntos antes de nos sentar à mesa, verdade? Hoje te vejo muito bem, tem muito boa

cara, Sofía. , Certamente poderá nos acompanhar e será. Um grande prazer para nós. A mesa é outra quando você nos acompanha...

Saiu Pedro Noel, seguido pelo criado, e ficou só o casal D'Autremont. Sofía não

pode ocultar os ciúmes que lhe corroem a alma, ao perguntar:

19

— Quem é esse moço?

— Sofía querida, te acalme...

— E você me responda... Quem é esse moço? De onde o tirou e para que lhe

trouxesse aqui? Por que não me responde?

— Vou responder-te, mas por partes. Chama-se Juan e é um órfão...

— Isso já o disse — lhe interrompe Sofía, nervosa — e é quão único sei. Chama-

se Juan do Diabo... Uma resposta bastante insolente de sua parte, quando ninguém lhe perguntava nada.

— Não há insolência em sua resposta, Sofía. Trata-se do apelido que certamente

lhe davam os pescadores, pelo lugar em que estava localizada a cabana de seus pais.

— Que lugar era esse?

— Bom... Perto do que chamam o Cabo do Diabo. — D'Autremont tenta lhe subtrair importância. — Há ali uma aldeia de pessoas muito humildes, muito pobres, que remendam redes e compõem navios. Entre essa pobre gente...

— Entre essa pobre gente há muitos órfãos, há muitos moços mendigos e miseráveis nos subúrbios do Saint-Pierre. Jamais te ocorreu trazer para nenhum, e

muito menos dar-lhe a seu filho como amigo... Como irmão, diria eu.

— Sofia!

— É a forma em que trouxeste esse mendigo! — exclama Sofía, arrebatada já

pela ira. — E acredito que tenho direito a te perguntar: por que o traz assim? O que tem você o que ver com ele? Por que não pode vestir-se com roupa dos empregados, e pretende que estréie os trajes do Renato? Por que tem que ser nosso filho quem tem

que lhe dar a bem-vinda, e é nesta casa onde temos que lhe encontrar um rincão, havendo cem barracões de jornaleiros onde sempre cabe um mais?

— Sempre te tive por mulher de nobres e generosos sentimentos cristãos, Sofía.

— Não me falta à caridade para tosse desgraçados, e mais de uma vez te pareceu excessiva.

— Quando se tratava de desmoralizar A. os que são meus servidores, aos que por força tenho que fazer que me conheçam como senhor e amo. Não pode dirigir uma

fazenda, que é como uma província, sem o respeito absoluto a uma autoridade, sem disciplina e sem castigos que obriguem a respeitá-la. Por isso discutimos em mais de uma ocasião. Neste caso...

— Neste caso, tudo é diferente. Sei, vejo-o e o apalpo. Não é uma obra de caridade o que está fazendo. É uma obra de reparação. Esse moço te importa por ti mesmo. Você leva muito...

— Pois bem, Sofía... Sim... Vou dizer-te à verdade. Esse moço é o filho de um homem com o que eu me levei mal. Um homem que se arruinou por minha culpa.

Morreu deixando-o na mais espantosa miséria. Acredito um dever de consciência. Ampará-lo. — Dúvida um momento. — O que passa? Por que me olhas desse modo? É que não me crie?

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— Parece-me muito estranho. Arruinaste a muitos, e não trouxe suas filhas a

casa... Melhor caberia pensar a história de outro modo. Esse moço é o filho de uma mulher a que você amou

Com essa acusação reta e precisa, como uma bala disparada contra a fria couraça de indiferença com que em vão pretende revestir-se Francisco D'Autremont, foram às palavras da Sofía dando justamente no branco. Por um momento há parado

a ponto de estalar em um de seus arranques de violenta cólera. Logo, lentamente, dominou-se, porque aquela mulherzinha loira e frágil, enfermo como uma flor de estufa é a única pessoa que parece ter a faculdade de amansar nele os ímpetos

bravios, de resolver suas tormentas em um sorriso ou em um gesto ambíguo que coalha depois em forçada atitude galante.

— Por que te empenha em pensar sempre o que mais possa te mortificar? — Penso mal para acertar... E acerto, por desgraça.

— Neste caso, não.

— Neste caso mais que em nenhum. De que amor é o fruto essa criatura? Por que não tem nome? Esse homem a quem arruinou a quem quer satisfazer lhe

recolhendo o filho, que sobrenome tinha? Como se chamava?

— Bom, o caso é que o moço é filho natural deste homem de que falo que não chegou a lhe dar o sobrenome... Descuidou-se, são coisas que passam. Ao lhe

prometer me fazer carrego dele, tranqüilizava, além disso, sua consciência. E não quererá que falte à promessa que fiz a um homem que morreu me benzendo, só porque nessa linda cabecinha lhe entrou uma idéia tão descabelada como a que acaba

de manifestar.

— Não vais abrandar-me com histórias sentimentais...

— Então terei que concretizar as coisas: prometi, jurei ajudar ao moço. Não acredito que possa te incomodar no mais mínimo. Eu mesmo me encarregarei de educá-lo...

— Como a outro filho...? — insinua amargamente Sofía.

— Como um amigo e leal servidor do Renato — curta, cortante, D'Autremont. —

Lhe ensinarei a querê-lo, a defendê-lo, a prestar-lhe sua ajuda e seu amparo quando chegar o caso.

— Seu amparo?

— Por que não? Nosso filho não é forte nem audaz.

— Joga-me isso em cara como se eu fosse à culpada.

— Não, Sofía não quer levar esta discussão adiante, mas se tivermos que

considerar a verdade, nosso filho, por um excesso de cuidados e mimos de sua parte, não é o que devesse ser para as lutas e responsabilidades que cairão sobre ele o dia do

amanha. Já lhe disse isso antes: falta-lhe valor, força, audácia. Tempo é que comece às adquirir quanto antes'.

— Meu filho irá educar-se na Europa. Não quero que se faça homem neste meio

selvagem.

— Tenho para ele projetos contrários: quero que se faça homem aqui, que conheça a fundo o terreno em que tem que desenvolver-se, que saiba governar, o dia

21

de amanhã, o pequeno reino que vou legar-lhe. Se tivéssemos tido uma menina, seria

você a que disse sobre ela a última palavra. F.S um moço e necessito que se faça um homem. Por isso falo e mando,

— E esse menino que trouxe...?

— Esse menino é quase um homem já, e servirá às mil maravilhas para meu empenho. Encarregarei-me de lhe ensinar que todo o deve ao Renato e que é seu dever

dar a vida por ele se for preciso. Essa será minha vingança!

— Vingança do que?

— Do destino, da sorte, ou como quer lhe chamar. Rogo-lhe que não falemos

mais do assunto, Sofía. Deixe a eu arrumar as coisas.

— Me jure que o que me há dito é verdade!

— Lhe posso jurar isso Não te hei dito nada que seja mentira. Além disso, não estou fazendo nada com caráter definitivo. Só trato de dar ao moço uma oportunidade de provar que vale a pena ajudá-lo. Pelo que ele me demonstre ser, dependerá seu

futuro. Se tiver nas veias o sangue que diz que tem, saberá demonstrá-lo.

— Que sangue?

— Dá vocês sua permissão? — É Pedro Noel, que chega ao preciso instante em que a situação se faz já insustentável entre o casal.

— Adiante, Noel — convida D'Autremont, aspirando profundamente e

agradecendo em seu foro interno a chegada de seu amigo. — Chega você no momento oportuno de que tomemos esse aperitivo de que falei antes. Não te incomode, Sofía. Eu mesmo ordenarei que o traga. — E ao dizer isto se afasta, deixando só a Sofía e ao

Noel.

Sofía fez um vago gesto de lhe deter, tensa a alma na resposta não obtida as

suas últimas palavras, mas fica imóvel, turvada por aquele olhar com que Pedro Noel parece envolvê-la, adivinhando até seus mais recônditos pensamentos.

— Às vezes vale mais não afundar muito nas coisas, verdade? Admitir, sem

aprofundar muito, que até os melhores homens têm, caprichos, debilidades e cometem enganos lamentáveis, que com um pouco de indulgência podem dissimular-se, -

evitando maus maiores.

— O que trata de me dizer, senhor Noel?

— Em concreto nada, senhora. Falava por falar, como falo muitas vezes; mas

enquanto cruzava esta preciosa casa, para me aproximar aqui, pensava que são vocês uns matrimônios realmente ditosos e que conservar essa felicidade merece qualquer pequeno sacrifício de amor próprio.

— Para que me está preparando. Noel?

— Para nada, senhora... Que ocorrência! É você muito sensata para necessitar

de meu conselho, mas se por acaso me perguntasse qual é em minha opinião a melhor forma de levar-se com o senhor D'Autremont, eu lhe responderia que esperasse. Meu pai, que foi notário dos D'Autremont, na França, dizia-me sempre: "A cólera de um

D'Autremont é como um furacão: violenta, mas passageira". Opor-se a ela no momento do arrebatamento, é uma verdadeira loucura. Mas logo passa, e então é o momento de reparar o que destroçaram...

22

CCapitulo 4

— Vê que bem está? Parece outro. Olha -te no espelho — diz Renato ao Juan.

23

— O espelho... — O espelho, claro... Aqui. Olha-te. Não tinha visto alguma vez

um espelho?

— Tão grande, não. É como um pedaço de água quieta.

— Não lhe passe a mão, que o empana — proíbe Batista, o criado. — haverá visto o selvagem.

— lhe deixe em paz. Papai disse que não o incomodasse ninguém.

— E quem o está incomodando? Que mais quer ele? Juan retrocedeu um passo para olhar-se de pés a cabeça no espelho que tem diante. É, efetivamente, como uma grande parte de água quieta que lhe devolve inteira sua imagem... Uma imagem em

que parece outro, embora seja a primeira vez, nos doze anos de sua vida, que pode contemplar-se como agora o está fazendo. Há um grande assombro de se mesmo no

escuro olhar. Embora tenha a mesma idade que Renato D'Autremont, é bastante mais alto; seu corpo, magro e musculoso, tem agilidade de felino; suas mãos são largas e fortes, quase como as de um homem; sua frente é ampla e altiva, e seus frisados

cabelos negros, agora penteados para trás, deixam-na livre, dando um vago parecido com o senhor de Campo Real; o nariz é reto; a boca, firme e apertada em gesto

amargo, que faria muito duro aquele rosto infantil sem os grandes olhos negros, aveludados... Aqueles admiráveis olhos italianos, igual os da Gina Bertolozi.

— Agora, vêem para que lhe vejam papai e mamãe.

— Com o senhor...? Com a senhora...?

— Pois claro! O senhor e a senhora são papai e mamãe.

— Para ti, mas não para este — intervém Batista, depreciativo. — Eu acredito

que não deve levá-lo a salão.

— Por que não? Papai me disse que tinha que lhe mostrar toda a casa, meus

livros, meus cadernos, meus utensílios de pintar, meu bandolim e meu piano.

— Insígnia o tudo o que goste, mas se não querer desgostar à senhora, 'não o leve a salão, nem a seu quarto, nem aonde ela possa lhe olhar. Entendeu? E você,

entende-o também: se quiser ficar nesta casa, não ponha por diante à senhora.

Sozinho, naquela isolada habitação que é de uma vez biblioteca e despacho,

Francisco D'Autremont tornou a ler a carta que afundasse enrugada, em seus bolsos. Tem-na lido lentamente, esmiuçando-a, detendo-se em cada palavra, tratando de penetrar até o fundo cada uma de suas frases. Depois vai para a parede central e,

apartando uns livros, procura no fundo de uma prateleira a porta dissimulada de uma pequena caixa de ferro, e arroja ali o papel, como se lhe queimasse as mãos.

— Né! Quem anda ahi? — indaga ao ouvir fechar-se, cautelosamente, uma

porta.

— Eu, papai.

— Renato, o que faz te escondendo em meu escritório?

— Não estava me escondendo, papai. Entrava para te dar a boa noite...

— Em todo o dia não havia tornado a verte. Onde estava?

— Com o Juan...

— Podia te haver aproximado com o Juan. Como ficou, por fim, seu traje?

24

— Como feito para ele. Ficava grande, muito grande. O que não lhe serviram

foram meus sapatos. O mandei dizer a mamãe com Batista, mas ela disse que não importava que estivesse descalço. Mas isso é feio, verdade?

— Sim, muito feio. Onde está agora Juan?

— Mandaram-no deitar-se.

— Onde... — No quarto último do pátio dos criados — explica o moço, em tom

compungido. — Batista disse que assim o mandava mamãe.

— Já! E por que não te aproximou de mim em todo o dia?

— Porque andava com o Juan, e Batista disse que mamãe não queria que Juan

lhe pusesse pela frente. E como você há estado todo o dia com mamãe... Claro que você me havia mandado levá-lo por toda a casa, mas como disse isso Batista... Fiz

mal?

— Não. Tem que obedecer a sua mãe, como é natural.

— E a ti não?

— A mim mais que a ninguém — responde D'Autremont, cortante — Amanhã nos poremos de acordo sua mãe e eu. Agora, vá deitar-se. Boa noite.

— boa noite, papai.

— Aguarda... O que te parece Juan?

— eu adoro.

— Divertiste-te com ele? Jogaste? Ensinaste-lhe suas coisas?

— Sim, mas não gostou. Estava muito sério e muito triste. Depois saímos ao jardim... Fomos mais à frente, e então começou o bom: Juan sabe montar nos cavalos

sem ensiná-los, e atirar pedras, tão forte e tão alto, que alcança aos pássaros que vão voando... E caça lagartixas e sapos. Agarrou viva uma serpente com uma bifurcação

que fez de um pau, e lhe deu volta e a meteu em uma caixa. E não o mordeu, porque ele sabe como agarrá-la. Disse-me que se tivéssemos um bote ia eu a ver como se pesca... Porque ele sabe atirar as redes e pescar peixes.

— Me imagino. Suponho que esse foi. Seu ofício.

— Seriamente, papai? Não é mentira que ele pode andar sozinho em um bote

pelo mar?

— Não é mentira... Mas segue me contando. Que mais fez com o Juan?

— Burlaram-se dele no barranco porque andava descalço e com meu traje de

pano azul... Deu-lhe uma trombada ao que estava mais perto, o qual era maior que ele, e o atirou de costas. Outros se foram. Mas não vai castigá-lo, verdade, papai?

— Não. Fez o que eu gostaria que você fizesse se rirem de ti alguma vez.

— Mas de mim não ri ninguém... Tiram-se o chapéu quando passo, e se o sotaque beija-me a mão.

D'Autremont se pôs que pé com gesto estranho. Acariciou a loira e murcha cabeleira de seu filho; empurra-o suavemente até a porta do despacho e o despede:

— Vate a dormir Renato. Até manhã.

25

Francisco D'Autremont cruzou sua enorme casa, levando na mão um pequeno

abajur de petróleo, atravessou o pátio dos criados até chegar à entreaberta porta daquele último quarto, onde sobre um jergón de palha, rendido pelas duras emoções

do dia, dorme o pequeno Juan.

Um instante eleva a luz, iluminando-o. Olha o peito, a cabeça bem formada, o rosto de nobres e regulares rasgos... Assim, com, os olhos fechados, parece apagar-se

nele o parecido maternal, e os duros rasgos da raça paterna deste cão no rosto infantil...

— Filho! Meu filho...? Possivelmente... Possivelmente... Uma dúvida sutil e

penetrante, uma dúvida que ao brotar parece romper em seu coração algo duro e frio, subindo do peito à garganta, como pode subir a língua lhe queimem de uma chama,

alagou a alma do Francisco D'Autremont. Sozinho, contemplando a aquele menino que dorme, sentou por fim o impulso procurado em vão desde antes... Pode que Bertolozi não mentisse, pode que fossem verdade suas últimas palavras... E, pela

primeira vez, não é um sentimento indefinível, mescla de curiosidade e rancor, o que lhe enche a alma. É como um fundo orgulho, como uma profunda satisfação, um

violento desejo de que, na verdade, seja de seu próprio tronco aquele ramo robusto, arruda e audaz, síntese ardente de seu espírito de aventura e de combate. Qualquer homem poderia estar orgulhoso de pensar seu filho a aquele moço extraordinário,

endurecido como um homem frente à desgraça, e a pergunta se fazem afirmação em seus lábios:

— Meu filho! Sim! Meu filho...!

Com emoção que lhe faz tremer, descobre os rasgos iguais: a frente reta e altiva, as sobrancelhas largas e povoadas, o enérgico queixo quadrado e duro, os largos

braços musculosos, o peito alto e largo... E, por contraste doloroso, pensa no Renato, loiro e frágil, mesmo que brilha em seus olhos claros o olhar de uma inteligência superior; no Renato, tão igual a sua mãe, herdeiro legal de sua fortuna e seu

sobrenome, seu único filho ante o mundo...

— Francisco! — interpela-lhe Sofía com voz alterada, penetrando no humilde

recinto. — O que passa? O que faz aqui? O que significa isto?

— Sou eu o que posso te perguntar — diz D'Autremont, refazendo-se da surpresa. O que significa isto, Sofía? Por que não está já descansando?

— Posso acaso descansar, quando você...?

— Quando eu, o que? Acaba!

— Nada... Mas queria saber desde quando vai você, com um abajur,

comprovando e velando o sonho dos criados.

— Não é um criado!

— O que é? Diga-o de uma vez! Diga

— Né? O que? — é Juan que acorda por causa das alteradas vozes. — O senhor D'Autremont... A senhora...

— Não te mova... Fique onde está... Dorme... Descansa... E amanhã vá me buscar assim que te levante — lhe aconselha D'Autremont.

— Para que me faça o favor de levar-lhe o desta casa!

26

— Cala! Não vamos falar diante do moço! Bruscamente a tirou pelo braço,

obrigando-a a sair ao pátio, abertos os olhos com aquele arrebatamento de cólera violenta que lhe é tão peculiar, e com ira com muita dificuldade contida, acusa-a:

— É que perdeu o julgamento, Sofía?

— Crie que me falta razão para perdê-lo? — exalta-se Sofia. — Crie que não tenho motivos para estar desesperada? Estavas aí, vendo dormir, lhe contemplando

como nunca olhou a nosso Renato!

— Basta, Sofía, basta...!

— Esse menino é seu filho! Não pode negá-lo. É seu filho. Seu filho... E de

alguma dessas perdidas com as que sempre me enganaste. De que charco o tirou para trazê-lo para meu lar, para dá-lo por companheiro a meu filho?

— Vais calar-te?

— Não! Não me calarei! Que me ouçam os surdos! Porque não vou tolerar! É teu filho e não o quero aqui! Tira-o desta casa! Tira-o, ou serei eu a saia com meu filho!

— Quer dar um escândalo?

— Não me importa! Sairei para o Saint-Pierre! O Governador...

— O Governador não faz, mas que a minha vontade! — assegura D'Autremont baixando o tom de voz, que o volta mais ameaçador. — vais fazer o ridículo!

— O Marechal Pontmerce foi amigo de meu pai, conhece meus irmãos... O terá

que me amparar! Porque eu...!

— Cala! Cala!

— Papai. O que faz a mamãe...? — grita Renato, acercando-se angustiado.

D'Autremont soltou o pescoço branco que já loucamente apertavam suas mãos; retrocedeu cambaleante, enquanto seu filho lhe faz frente com impulso feroz:

— Não a toques! Não lhe faça mal, porque eu... Eu...!

— Renato! — repreende D'Autremont.

— Eu lhe Mato se você pegar a mamãe!

D'Autremont retrocedeu até mais, apagada de repente sua raiva, totalmente desconcertado... Um momento olha suas mãos que chegaram até o pescoço da Sofía,

logo; bruscamente, volta às costas e se perde entre as sombras...

— Renato!... Filho!... — exclama Sofía, rompendo a chorar.

— Ninguém te fará mal, mamãe. Ninguém vai fazer-te nunca dano. Ao que te

faça mal, eu o Mato!

27

CCapítulo 5

— Que é isso? O senhor D'Autremont...? É Noel, o notário, quem faz a pergunta a Batista, o criado.

— Sim... É o cavalo branco do amo... O diabo anda solto nesta casa desde que chegou esse maldito moço.

— Rua! Rua! Algo teve que acontecer...! Pedro Noel saiu apressadamente do

luxuoso quarto onde lhe instalaram. Não lhe basta olhar pela janela. Sai ao largo portal que rodeia a casa, baixa as escadas de pedra, segue com olhos surpreendidos a

branca silhueta daquele cavalo que à luz da lua se perde já sobre os campos, E exclama:

— Senhor... Senhor...! Mas que barbaridade!

Outros olhos viram afastá-la arrogante figura que é Francisco D'Autremont sobre seu cavalo favorito. Outros olhos infantis, abertos de surpresa, acaso de espanto. É Juan. Tudo o ouviu desde aquele último quarto do pátio dos criados, e

agora, fora já da casa, corre como transtornado até que uma mão cai sobre seu braço, lhe retendo rudemente...

— E você, aonde vai? — inquire Batista.

— Aonde vai, estou-te perguntando...

— Eu ia... Eu...

— Não tem que ir a nenhuma parte alem à cama, onde lhe mandou faz já duas horas...

— É que o senhor D'Autremont...

— Não te importa o que faça. O senhor D'Autremont.

— Mas a senhora Sofía...

— Essa menos te importa o que faça.

28

— É que eu vi, eu ouvi... Eu não quero que por minha culpa...

— No que acontecer tua culpa, tampouco te tem que colocar. Você não te governa nem te manda. Trouxeram-lhe para que obedeça e para que te cale. Anda a

seu quarto. Anda a sua cama, se não querer que lhe diga isso de outra maneira. Anda! — Deu-lhe um rude empurrão, colocando-o no quarto, e fechando-o com chave.

— Me abra! Abra-me! — grita o moço, golpeando com torça a porta.

— Te cale, condenado! Já te abrirei quando vier o amo. Cale-se

— Ana precisa falar imediatamente com a senhora.

— A senhora não quer ver ninguém, senhor Noel. Tem enxaqueca... E quando a

senhora tem a enxaqueca, não quer ver ninguém.

A voz lenta, sem modulações, enjoativa e recarregada da donzela favorita da

senhora D'Autremont, se estende como branda barreira detendo o ímpeto do notário, que ia cruzar já sob os cortinados que dão entrada às habitações privadas da Sofía.

— O que tenho que lhe dizer é importante — insistência Pedro Noel.

— A senhora não ouve ninguém quando lhe dói a cabeça. Diz que quando lhe falam, dói-lhe mais. Além disso, é muito cedo.

— Me anuncie lhe diga que é urgente, e já verá como me fará passar.

A donzela mestiça sorriu mostrando sua dentadura branca, enquanto move a frisada cabeça adornada com uma diminuta touca de encaixe na moda francesa.

Suave e teimosa, teimosa e mansa, parecem ter o dom de esgotar a paciência do notário.

— Não ouviste que avise a sua senhora? Por que fica aí parada?

— Para lhe avisar à senhora tenho que lhe falar, e a senhora não quer que lhe falem quando lhe dói a cabeça...

— O que acontece... — interrompe Sofía, saindo de seu quarto.

— Me perdoe senhora, mas é necessário que falemos uns minutos... É importante.

— Muito deve sê-lo quando vem você às seis da manhã.

— É que o senhor D'Autremont não retornou desde ontem à noite em que saiu a

cavalo.

— Não retornou?

— Não, senhora, e ninguém sabem aonde foi nem por que saiu desse modo. Eu

lhe vi passar como alma que leva o diabo e perguntei aos serventes, mas nenhum pôde me dar razão.

Sofía fez um leve gesto de cansaço, apoiando-se em sua donzela. Nem as

lágrimas longamente choradas, nem. A noite de insônia troca em nada seu aspecto sempre igual: pálida, frágil como uma flor de estufa semi asfixiada entre estufas, dá a

impressão de escutar sempre pela primeira vez até as coisas que melhor sabe. Neste caso, seus lábios se apertam levemente e um breve e vermelho relâmpago de rancor cruza por seu olhar.

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— O que é o que pretende você que eu saiba. Noel? .— Dizem que saiu depois de

falar com você. Eu sei que estes dias sofreu emoções muito desagradáveis, que se encontrava em um desastroso estado de inquietação, de naufraga, de violência

contida...

— Pois sabe você mais que eu. Pelo visto, é o triste destino das mulheres: que não nos inteire de nada. Veio você ao pior lugar a informar-se...

O notário procurou ao menino, com o olhar inquieto, para Renato aproveitou a oportunidade para sair do quarto de sua mãe. Já do outro lado das cortinas, detém-se um instante para ouvir com interesse as palavras do notário.

— Atreveria-me a lhe pedir um pouco de paciência para o senhor D'Autremont nestes dias, senhora. Você é a única pessoa que pode aliviar sua carga ou fazê-la mais

pesada; porque, até que talvez você haja chegado a duvidá-lo, seu marido a adora, Sofía.

— Pois tem uma estranha maneira de me adorar — se lamenta Sofía, com

amargura. — Mas isso, certamente, é um assunto pessoal e privado. Concretizando: não sei aonde foi Francisco nem por que aconteceu a noite fora de casa. E agora,

desculpe-me, estou muito ocupada: preparo minha viagem ao Saint-Pierre, com o Renato. Pode dizer-lhe a meu marido se for ele quem lhe enviou a informar-se de meu estado de ânimo. Saio para o Saint-Pierre. E já enviei uma carta ao Marechal

Pontmerce para que me faça o favor de me receber logo que eu chegue à capital.

Livre da companhia de sua mãe e da vigilância da Ana, Renato se afastou a bom passo. Sua cabeça arde... As idéias e os sentimentos parecem girar dentro dele em

revolta amalgama. Aquelas duras palavras que jamais escutasse entre seus pais, aquela violência do Francisco D'Autremont, a que fez frente por amor de filho e por

instinto de cavalheiros, todo o amontoado de sucessos estranhos que parecem girar em torno dele, amontoam-se sobre o céu azul de sua feliz infância, lhe fazendo sentir-se, pela primeira vez em sua vida, terrivelmente desventurado. Não quer falar com os:

serventes, não quer aumentar com comentários a pena de sua mãe... Mas precisa confiar a alguém a angústia, que enche seu coração de menino. Pensa em seu amigo...

Por isso busca ao Juan. Mas o quarto no que lhe acreditava encerrado, está vazio. Da janela aberta sobre o campo, falta um barrote o que deixa ao descoberto o oco por onde Juan escapasse... Busca-o.com um anseia nunca sentida, com a amarga

sensação de desamparo de quem vê vacilar, pela primeira vez, aos que fossem para ele evangelho e oráculo: seus pais...

Pela mesma brecha que abrisse Juan, Renato se desliza também, saltando ao

pendente ao mesmo tempo em que chama gritos ao fugitivo:

— Juan... Juan...!

Acaba de vê-lo, já bastante longe da casa, junto a aquele arroio de leito pedregoso que baixa a saltos da montanha, impetuoso e violento como o é tudo naquela ilha surta dos mares ao sopro de um vulcão, e chega até ele, sufocado pela

carreira.

— Juan, por que não respondia?

Devagar, Juan se pôs que pé, olhando-o quase com desagrado. Sente por ele

uma espécie de rancor. É tão distinto a todos os moços que ele visse até então... Com aquele loiro e murcho cabelo muito comprido, o apertado calção de pena, a camisa de

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seda branca... É como um boneco de porcelana que se escapou de um dos adornos do

salão. Mas Renato lhe sorri de um modo varonil e franco, e os claros olhos lhe olham afetuosos, sinceros, em uma corrente de irresistível simpatia, a que "Juan do Diabo"

resiste encolhendo os ombros...

— Para que anda gritando? Quer que me apanhem?

— Acaso te escapou?

— Claro! Não me vê?

— Humm... Batista disse a Ana que te tinha encerrado para que não incomodasse; e eu, assim que pude, escapei-me do quarto de mamãe para ir abrir-te a

porta.

— Para não incomodar, me comprido.

— Te largar? Quer dizer que vai?

— Pois claro. Mas não sei por onde... Não quero estar aqui mais!

— Mas papai quer que esteja, e eu também. É meu amigo e não vou deixar-te.

Não vá, Juan. Eu, agora, também estou triste... O senhor Noel disse à mamãe que você tinha sido muito desgraçado, que tinha sofrido já muito para seus anos, e eu,

então, não o entendi bem, porque não sabia o que era sofrer de verdade.

— E agora sabe?

— Sim... Porque agora estou triste. Papai, de repente, se voltou mal.

— De repente? Alguma vez tinham brigado antes?

— Não... Alguma vez. Mas como sabe que brigaram? Estava acordado ontem à noite?

— Eles despertaram...

— Quais? Papai e mamãe? Pois a mim, não. Eu estava acordado. Papai me tinha

mandado dormir, mas eu, às vezes, não faço conta. De repente o vi passar e pensei que ia arreganhar-te pelo que eu lhe tinha contado que fez na tarde. Depois passou mamãe, então esperei um momento, até que ouvi que gritavam, e quando cheguei...

Bom, se estava acordado o ouviu tudo. Papai... — a voz se quebra em sua garganta. — Papai se comportou mal com mamãe.

Agora é ele quem foge a 'olhar do Juan, como se lhe envergonhasse pensar que este tinha escutado a cena passada. Mas Juan aperta os lábios sem responder, sentindo-se homem frente a Renato, com a instintiva consciência de que deve calar

seguir discretamente aquele segredo lhe torturem que não sabe se for mentira ou verdade...

— Eu não sei como começou a briga. Ouvi que mamãe queria ir ao Saint-Pierre e

que papai não queria deixá-la. E ficou furioso quando ela disse que iria de todos os modos a ver o Governador e ao esse Marechal... Que não sei nem como se chama, mas

que era amigo de meu avô... E então... Se o ouviu, já sabe. Tive que me colocar para defender a mamãe e papai e eu estamos brigados. O se foi a cavalo e ainda não voltou para a casa. Por isso estou triste...

Renato aguardou uma resposta, um comentário, mas nada responde Juan, carrancudo e silencioso, por isso interroga com suavidade:

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— Você crie que papai não voltará mais? Eu sei que há homens que se zangam

muito e se vão para sempre de sua casa.

— Seguro que volta.

— Crie que volte? De verdade? — exclama Renato, com alegria. Mas ato seguido invade-lhe a preocupação. — Mas seguirá brigando com mamãe se voltar? E a mim, Juan? A mim, crie que papai não vai querer-me mais?

— Querer...

— Não sabe o que é querer? Alguma vez lhe quiseram? Alguma vez quis a ninguém? Nem a sua mamãe?

— Eu não tive...

— Todos têm. Será que não te lembra. As mamas são muito boas e quando a

gente é pequena o cuidam muito e dormem nos braços. Todos têm. Até os, mas pobres, os que vivem nos barracos... Alguns não se lembram, mas todos tiveram mãe... — de repente se volteia e exclama: — OH! Olha essa gente que vem por lá.

— Aí Sim... Parece como que trazem um morto...

— Um morto?

— Não sabe o que é um morto? Alguma vez viu um morto?

— Não, nunca o vi. Mas... Isso não é um morto... É uma maca de ramos. Trazem para um homem deitado.

— Ferido ou morto...

— É papai! — quase grita Renato, com o espanto refletido em seu branco rosto. — É papai!

CCapítulo 6

— Que acontece — alarma-se Sofía.

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— Até vive, senhora — responde Pedro Noel, triste, mas serena de uma vez. — E

enquanto há vida, há esperança.

Aniquilada, derrubada pela brutal impressão da noticia, Sofía se desabou sobre

os almofadões de um sofá, cobrindo o rosto com as mãos, enquanto murmura:

— Francisco... Francisco...!

— Desde que lhe vi sair dessa maneira, temi um acidente. Por isso fiz que lhe

buscassem por toda parte.

— Mas, o que ocorreu? Como foi? — quer saber, em seu angustia, a senhora D'Autremont.

— Suponho que, em sua cólera, fez galopar ao cavalo até desbocar-se por atalhos muito escarpados. Naturalmente, foram dar ao fundo de uma ravina. Saiu

louco, cego de ira... Nem sequer permitiu que lhe selassem o cavalo!

— Onde está? Quero vê-lo!

— Agora lhe trazem. Adiantei-me para acautelá-la, e já enviei um homem com o

cavalo mais rápido, a trazer um médico da capital. Caiu de uma grande altura... Aí estão já!

— Francisco... Meu Francisco pode ver-me? Pode ouvir-me?

Inclinada sobre o leito amplíssimo, contendo com esforço as lágrimas que se amontoam em suas pálpebras, Sofía D'Autremont espera com ânsia a palavra que

possam pronunciar os lábios trementes do Francisco; mas são inúteis, só as pálpebras se elevam com esforço e o olhar vago se fixou nela: olhos de uma alma que se desprende já das ligaduras terrestres.

— Ouve-me? Entende-me? Francisco... Meu Francisco!

— Acredito que é inútil... — expressa Noel tristemente.

— Não... Não diga isso! — desespera-se Sofía. — Esse médico, esse médico que mandou você procurar, quando estará aqui?

— Temo-me que tarde bastante. Por desgraça, há-se perdido muito tempo. O

acidente deve ter acontecido há várias horas já... E logo, trazê-lo até aqui...

— Ré... Nato — sussurra, com esforço, D'Autremont.

— Sim... — É Sofía que sente bater as asas em seu coração um hálito de esperança.

— Renato... — volta a murmurar D'Autremont.

— Há dito Renato — comenta Sofía.

— Sim; chama a seu filho — explica Noel. — O chama, quer lhe ver, quer falar com ele. Onde está? — Renato... Filho! Vêem para cá!

Sofía elevou a voz e foi para a porta, onde os dois moços, mudos, tensos, agarrados da mão, contemplam a dolorosa cena, e de um brusco puxão os separa

arrastando a seu filho até o leito do moribundo, cujas pálpebras tornaram a elevar-se e em cujas pupilas tremem a luz de um anseia, de um desejo imperioso...

— Aqui o tem, e aqui estou eu também. Meu Francisco.

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— Renato... Vais ficar em meu lugar...

— Não diga isso — interrompe Sofía. — O médico virá em seguida e te porá. Bem.

— Logo será você o amo desta casa... — Fez um enorme esforço, levantando a cabeça para olhar o grupo que formam, junto a ele, o filho e a mãe. E sua mão se eleva até tocar a frente infantil rodeada de cabelos loiros. — Sei que cuidará de sua mãe...

Que saberá defendê-la quando eu já não esteja. Disso estou bem seguro... Mas há algo mais... Que quero te pedir: cuida do Juan Cuida do Juan, Renato... Quê-lo e ajuda-o... Como se fora seu próprio irmão!

— Francisco... Francisco! — angustia-se Sofía.

— Me perdoe Sofía... E não impessa que Renato cumpra minha última vontade.

OH...

— Senhora... Senhora! O médico está chegando... O médico da capital está chegando — anuncia Batista, que se aproxima pressuroso e sufocado. — Já o viram

sair do desfiladeiro, já vem para cá...

— Tarde... Tarde... Muito tarde! — grita Sofía, atendo-se nas garras do

desespero.

CCapítulo 7

Os funerais do Francisco D'Autremont duram já três dias. A viúva não quis que fosse transladado ao Saint-Pierre, e é na pequena igreja de Campo Real, aquele imóvel

com honras de povo, onde seu corpo foi posto em capela ardente entre círios e flores, e aonde chegam a lhe render a última comemoração, dos mais humildes homens que

trabalham suas terras, até as mais importantes personalidades da capital: o Governador, os altos funcionários do Estado, o Marechal Pontmerce e a alta oficialidade da fragata, que só por isso atrasou sua hora de zarpar. Na amplíssima

casa, nos jardins, nos caminhos, é o ir e vir silencioso e constante: uma agitação sem sorrisos nem alegria, que, trançada de dor a alma, com um fundo e conteúdo tortura que não transborda em soluços nem em lágrimas, preside a frágil mulher que lhe

sobreviveu, contra o que todo mundo poderia esperar.

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Esquecido de todos os luxuosos trajes de pano azul quebrado e manchado, os

cabelos revoltos e os pés refugos, rondam Juan a pequena igreja branca com uma ânsia irresistível de aproximar-se ao que jaz para sempre, ao que lhe mandaram

aborrecer os lábios do Bertolozi, e ao que estranhamente, entretanto, ama com um sentimento contuso, surdo, profundamente doloroso, que lhe faz sentir uma sensação de desamparo como não a sentiu nunca em seu abandono, e murmura para si:

— Pai! Era meu pai... Era meu pai... Já está junto ao féretro, na capela lotada de flores, onde milagrosamente não há ninguém neste instante... Só a frágil forma enlutada de uma mulher a quem o moço não viu uma mulher que se aproxima

tremendo de cólera, apenas lhe vê apoiar as mãos no bordo da caixa mortuária. É Sofia que. Com ira logo que contida, grita-lhe:

— O que faz aqui? Por que entraste aqui? Não tem nada que procurar! Vate! Largue-te! Vate onde eu não te veja mais! Vate para sempre, maldito!

Cega de uma cólera que em vão trata de afogar em sua garganta, Sofía assinalou

ao Juan a porta da capela, mas depois do moço retrocede trêmulo, sentindo que o gesto e as palavras daquela mulher lhe ferem e lhe ofendem como ninguém lhe

ofendeu jamais. Aí, muito perto, para sempre imóvel e gelado em sua luxuosa caixa, está o homem que lhe deu a vida, o pai que com tardio arrependimento tratou de lhe amparar. E é a primeira vez em seus doze anos, que em seu coração áspero e

selvagem está a ponto de florescer um sentimento de ternura... Mas de um golpe, a voz e as palavras daquela mulher o hão destroçado. Retrocede a olha de frente e sai como um sonâmbulo, enquanto Renato D'Autremont se aproxima pela porta contraria,

indagando:

— Mamãe, o que aconteceu? Por que joga ao Juan?

— Deixa tranqüilo ao Juan! Fique aqui, ao lado, junto ao féretro de seu pai... Onde deve estar.

— Mas papai mandou...

— Cala!

Apertou-lhe o braço, lhe obrigando a calar, enquanto na porta do frente, de par

em par aberta sobre o campo, aparecem já às figuras imponentes do Governador e do Marechal Pontmerce

Começa à hora mais solene dos suntuosos funerais. Os dedos da Sofía se

afrouxam soltando o braço do Renato, as lágrimas vão a seus olhos, e um soluço amarguíssimo estala ao fim em sua garganta, enquanto Renato escapa dali...

— Juan... Juan!

— Me deixe Renato. Vou agora mesmo...

— Não pode ir!Papai não quer que vá!

— A senhora me jogou.

— Já o ouvi... Mas não importa. Papai me mandou que te cuidasse.

— Você? Cuidar-me você?

— O que te crie? Depois de papai e mamãe, sou eu o que manda.

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— Agora seu papai está morto e quão único manda é a senhora. Ela não quer

ver-me mais... Disse-me que me fora...

— Que fosse da igreja, mas não de Campo Real. Saint-Pierre está muito longe.

Tem que ir de carro ou a cavalo. Ademais, não vão deixar te sair.

— Quem não vai deixar-me?

— Os criados, os trabalhadores... E os soldados. Não viu quantos soldados há?

— Sim... Mas não têm nada que ver comigo.

— Sim têm que ver. Papai não queria que fosse. Todo mundo sabe. Se lhe virem, seguraram-lhe, prenderam-lhe...

— E escaparei!

— Não sabe o caminho...

— Sei que caminhando pela borda do mar, sempre chega um ao Saint-Pierre.

— Bom... Se encontrar um bote, chegarei antes.

— E pescará no bote?

— Claro, posto que tenho que comer.

— Come-te o pescado que pescas, assim, igual ao tira?

— É melhor que morrer de fome.

— Me leve contigo, Juan!

— A ti? Está louco?

— Me leve contigo! Eu quero aprender a pescar e a manejar um bote. Quando for grande, serei marinheiro e mandarei uma fragata, como o Marechal.

— Quando for grande, irá de viagem. Agora não.

— Vou e logo volto como fazia meu papai. O sempre disse que quando ele chegasse a faltar, eu mandaria na casa e séria tanto como ele. Agora, quero ir contigo

e tenho dinheiro para comprar um bote...

— Tem dinheiro? Teu dinheiro? Teu? — Juan se mostra interessado.

— Pois claro. Tenho muito dinheiro em uma caixa...

— Menino Renato! — chama a voz de Batista, o criado.

— Já lhe estão procurando — sorri Juan, depreciativo. — Figura o que fariam se

fosse.

— Vamos com todo meu dinheiro se me esperar de noite. Sabe onde? Lá abaixo, ao lado do arroio...

— Menino Renato! — volta a soar a voz do criado, já mais perto.

— Agora tenho que ir. Escapei-me nada mais para te dizer que não fosse. Mas se me leva contigo, não importa... Vamos e cuidarei de ti como quer que faça meu papai.

— Mas está surdo, menino? — diz Batista, aproximando-se onde se encontram os moços. — Sua mamãe me mandou a procurar-te. Já tem idade para entender que

deve estar a seu lado...

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— Já vou, Batista. Não tem que gritar...

— Não grito, mas a senhora se desespera — responde o criado baixando a voz. Mais em seguida, em tom áspero, exclama — Ah! Também me disse que buscasse a ti

e que não te deixasse partir. Entendeu? Espera por aí a que a senhora disponha de sua sorte, porque agora é ela, e só ela, a que manda nesta casa.

As horas aconteceram lentamente. O corpo do Francisco D'Autremont se acha já

clandestinamente; os importantes funcionários que foram da capital retornaram a ela detrás render seus respeitos à viúva, e um silêncio espesso, tanto de pena como de esgotamento e de cansaço, cai sobre a suntuosa morada, sobre os férteis campos,

sobre os cem barracos dos trabalhadores, como se um braçadeira de luto de luto flutuasse sobre o céu que já envolvem as sombras na opulenta fazenda do campo

Real.

Entretanto, há luz nas habitações da Sofía, a cujas portas chegam Batista, o mais fiel e antigo de seus servidores, trêmulo e mudado.

— Senhora... O menino não aparece por nenhuma parte.

— O que?

— Quarto por quarto procuramos Isabel, Ana e eu, por toda a casa. Mandei a percorrer os campos e a perguntar pelos barracos. Mas tampouco está.

— Era o único que faltava!

— Senhora D'Autremont... Disse-me Ana... — É Pedro Noel, que irrompe na quarto da Sofía.

— Renato desapareceu — explica, angustiada, Sofía. — Não o encontram, não

dão com ele. Procuraram-no por toda parte.

— Por favor, acalme-se... Não pode ter ido muito longe. Estava junto a você faz

uma hora escassa. Escondeu-se em algum rincão, como fazem os meninos quando têm pena...

— Se meu filho tiver pena, deve estar a meu lado.

— Efetivamente; mas são reações estranhas das criaturas. Que razão dele dá Juan?

— Essa é outra — intervém Batista. — O primeiro que fiz foi buscá-lo para lhe perguntar se sabia do menino, mas o tal Juan tampouco aparece por nenhuma parte.

— Pois devem estar juntos — supõe Noel.

— É o que temo. Que o tal Juan arraste ao menino, quem sabe a que extravagâncias. É pior que uma fera o tal menino. É um verdadeiro selvagem...

— Quando eu digo... — queixa-se Sofía.

— Basta, Batista. Não alarme à senhora mais do que está — ordena o notário.

— Você sabe que tomamos por louco no Saint-Pierre — recorda Batista —

quando entrou em lhe levar a senhor aquela carta...

— O que? Que carta? — interrompe Sofía, corajosa e alarmada.

— Rogo-lhe que se acalme — suplica Noel brandamente. — Quando acontece

uma desgraça, tudo são prognósticos trágicos. Mas não há verdadeira razão para

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alarmar-se. Estou seguro de que não os procuraram bem. Em uma hora não pode

percorrer-se, como pretendem, o imóvel e a casa. Permita-me que eu seja quem me encarregue do assunto, senhora...

— Eu tenho já em movimento a toda a servidão, mas tomara que o tal Juan não tenha levado muito longe ao menino. Não me esquecimento de que pretendia levar em seu bote ao senhor, aquela noite em que caíam cassetetes de ponta e choviam raios...

— Aonde queria levá-lo? — pergunta Sofía, intrigada.

— Sofía, por favor, acalme-se. O moço chegou com uma carta de seu pai, que se estava morrendo, para lhe pedir ao senhor D'Autremont que o amparasse. O assunto

não tem nada de particular. E agora, vamos procurar ao Renato!

— Juan... — chama fracamente Renato.

— Aqui estou. Traz a prata?

— Pois claro. Olha-a. Com tudo e caixa...

— A caixa não serve; joga as moedas em seu lenço, e joga a caixa.

— Meu lenço?

— Eu não tenho. Joga-me isso no teu e me faz o favor completo. Anda!

Rudemente, como se aquele velho rancor contra o mundo inteiro, que Andrés Bertolozi derramasse em sua alma, despertou-se naquelas últimas horas, ardente e total, Juan quase arrebatou que mãos do Renato o lenço repleto de moedas, as

aproximando, para melhor as olhar, à clara luz da lua e, surpreso, confirma:

— São moedas de prata...

— Pois claro. E há dois de ouro. As olha... Cada uma destas vale por cem de

prata. Papai sempre dava de presente uma moeda de ouro o dia de meu aniversário... Muitas as gastei. Compram muitas coisas com uma moeda de ouro... Teremos um

bote grande, grande, desses com velas, e navegaremos nele por todos os mares...

— Ouve? — alerta Juan, aguçando o ouvido.

— Sim — afirma Renato com a maior tranqüilidade. — Nos estão procurando,

mas não por este lado. Pensam que lhe temos medo ao arroio crescido...

— Eu não lhe tenho medo a nada. Vou agora mesmo. Atou fortemente as

moedas no lenço, atando-o logo a sua cintura. Rapidamente se despoja da jaqueta, subindo-as pernas da calça e as mangas da camisa, enquanto Renato lhe contempla fascinado.

— Renato... Menino Renato...! — De longe chega à voz de Batista.

— É a ti a quem procuram — explica Juan, em um murmúrio.

— Juan... Juan...! Onde está? — ouça-se também, te chama à voz do Pedro

Noel.

— Também lhe buscam Por aonde vamos? — indaga Renato.

— Eu, pelo arroio — diz Juan, ao tempo que chapinha na água.

— Juan... Juan...! Espere-me! Ajude-me... Juan não responde, não volta à cabeça. Saltando sobre as pedras, entre o arroio que se despenha em pequenas

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cascatas, vai curso acima, roda às vezes, quando lhe falta o pé, até o fundo de uma

poça, mas volta a levantar-se, eleva-se se agarrando aos ramos, subindo pelas cordas naturais que caem sobre a água, e assim se perde no íngreme monte...

— Renato! Renato!

A voz de sua mãe paralisou ao pequeno Renato, disposto já a seguir ao Juan. Abraçado à jaqueta do traje azul que este deixasse em suas mãos, os pés afundados

no barro da borda do arroio, sustenta sua primeira luta terrível entre a voz da aventura que lhe chama e o tenro amor que sente por sua mãe, e por fim, a contra gosto, responde:

— Aqui estou...

— Filho! Meu Renato! — grita Sofía, muito nervoso, abraçando a seu filho. — O

que fazia aqui? Por que saiu a estas horas de casa?

— Arrumado a cabeça a que o surrupiou o tal Juan — assegura Batista.

— Mas onde está ele? — alarma-se o notário. — Onde se colocou? Terá que

seguir procurando...

— Estava com o menino, posso jurá-lo. Olha... Olha... Deixou-lhe a jaqueta nas

mãos! Aqui há uma caixa... Uma caixa de prata...

— É minha! — informa Renato.

— Aqui é onde você guarda suas moedas, Renato. O que significa isto? —

interroga Sofía.

— Nada, mamãe...

— Como nada? Onde está Juan? Responde a verdade! A verdade!

— Pois sim, mamãe... Íamos escapamos... Eu queria que me ensinasse a navegar e a agarrar pescados, mas ele se foi sozinho... Não quis me esperar...

— Foi, mas levando-se seu dinheiro. É um trombadinha! — afirma Batista. — Mas se a senhora me permitir que eu saia para buscá-lo...

— Não, Batista. Deixe-o. Que se vá... Que se vá para sempre! É o único que

ganhamos! Vamos a casa, filho...

Sofía D'Autremont se ergueu, e um instante sua cabeça altiva se volta para

aquele arroio por onde Juan escapasse saltando entre a água e as pedras, enquanto sua mão branca, de dedos nervosos, aprisiona a de seu filho Renato. Ferozmente o atrai para ela, em um gesto que é ternura e domínio, e o arrasta, afastando-se daquele

lugar.

— Não lhe tivesse vindo mal ao tal Juan receber uma boa lição antes de largar-se — comenta como para si, Batista, resmungando com irritação.

— por que lhe tem tão má vontade ao moço, Batista? — pergunta Noel com sua voz suave.

— Como para não ter-lhe senhor notário. Desde que aparereceu no horizonte, não trouxe mais que calamidades e dê obrigado. Porque o que lhe passou ao senhor D'Autremont...

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— Mais vale que não insista muito sobre quem possa ter uma boa parte de

culpa pelo que lhe ocorreu ao senhor D'Autremont.

— Vai dizer que foi a senhora, senhor notário? — se escandaliza Batista.

— Vou dizer que um menino não é culpado das circunstancias em que lhe traz para o mundo; que lhe maltratar a conta dos pecados de seus pais é uma covardia e um crime.

— Todo isso é com a senhora, senhor notário?

— Todo isso é com você, Batista. E vou acrescentar algo mais: a senhora deu ordem de que se deixe em paz a menino. Não você tente ir atrás dele, porque tropeçará

comigo... Além disso, a última vontade do senhor D'Autremont foi que se amparasse a esse menino.

— Eu o ampararia com uma estaca! É um ladrão, um trombadinha! Começou por lhe roubar seu porquinho ao menino Renato e tivesse acabado por roubar-lhe tudo se o deixam crescer nesta casa.

— Essa é sua opinião...

— E muito bem encaminhada. Conheço o mundo e não é o primeiro caso... A

senhora sabe... Quão mesmo você e que eu. Não vale nos fazer os parvos quando estão ao cabo da rua.

— Nunca me faço o parvo, mas jamais afirmo mais que o que posso provar; e

neste caso...

— Não há provas, nem falta que fazem. Não serviriam, mas sim para que você enredasse as coisas.

— Sabe que sua insolência passa da raia, Batista?

— Pois se lhe agrada, dele você- queixa-as à senhora. Ela sabe que não tem um

criado mais fiel nem um servidor mais leal que eu. Pela senhora e pelo menino Renato dou meu sangue. E quanto a esse bastardo...

— Silêncio! Terá que ver quão alto ladram os cães assim que se apaga a voz do

amo!

— Senhor notário... Senhor notário... — chama Ana, aproximando-se onde

discutem os dois homens.

— O que acontece?

— A senhora está esperando-o em seu quarto, e me mandou que o buscasse e

lhe dissesse que fora para lá logo, logo, porque tem que lhe falar. Que se fora em seguida...

Foi-se, procurando conter seu desgosto, enquanto a donzela nativa contempla

aos dois homens com sua expressão panaca e jovial, dando, voltas entre os dedos ao avental de encaixe, como se a cólera de ambos lhe divertisse, e comenta com ironia:

— Quantas coisas vão passar! A mim gosta que passem coisas. Aborreço-me quando não passa nada.

— Anda a suas obrigações, Ana!

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— Caramba. Batista! Saiu-te a voz igual à do amo. Claro, como vai para

maioral... — ri zombadora.

— Do que te ri, tola? — resmunga Batista, lhe aflorando a ira ao rosto.

— Das coisas que vão passar...

— Aqui me tem senhora, atento a seu chamado e disposto a lhe servir em tudo, como sempre — se oferece Noel a Sofía. E em seguida, aconselha-lhe: — Mas se minha

modesta opinião vale de algo, acredito que quão único deve você fazer é descansar, tomar umas boas horas de repouso...

— Sobrará tempo para descansar depois... Tenho entendido que todos os papéis

da casa D'Autremont estão no cartório de você, não?

— Exato. Partida de nascimento, ata de matrimônio, o testamento de nosso

nunca bem chorado amigo D'Autremont... Que por outra parte quase é inútil. Tudo que há é, naturalmente, de você e de seu filho Renato.

— Sei que tudo está em ordem... Mas quero guardar esses papéis em minha

casa. Todos. 'Absolutamente todos! Há algum inconveniente para que os ponha em ordem e me entregue isso, para que eu os guarde?

— Absolutamente — assente Noel com surpresa e desgosto. — estarão preparados em uma hora se você o mandar. Sairei imediatamente para o Saint-Pierre, e amanhã, se assim o desejar, farei-lhe a entrega oficial de tudo em meu escritório.

— Batista irá por eles... É o mais antigo e o melhor de meus servidores. Nomeei-o Administrador general da fazenda, e ele fará que as coisas partam.

— Mas é absurdo, totalmente absurdo! E eu quisesse aconselhar-lhe...

— Não vou a ouvir nenhum conselho dele. Noel. Não perca o tempo em me dar isso

— Lamento profundamente sua estranha atitude, senhora D'-Autremont.

— Não é estranha, posto que defendo a meu filho...

— Seu filho... — surpreende-se o notário.

— Senhora... Senhora... — É Ana que irrompe na habitação, agitada e gaguejando.

— O que acontece. Ana? — pergunta Sofía.

— O menino Renato... Como que está mau... Isabel me mandou lhe avisar...

— Mau? Quer dizer, doente?

— Sim, senhora. Como que tem febre e diz coisas estranhas...,

— Renato, filho... Renato... I

Sofía tem cansado de joelhos frente ao pequeno leito branco, onde Renato,

abertos, sem ver, os grandes olhos, úmido de suor gelado o loiro cabelo, agita-se no delírio de uma alta febre. Depois dela, pálido, mudado, chegou também Pedro Noel que

se detém sob o arco da porta, entre as duas donzelas assustadas.

— E o médico? Onde está o médico? — inquire Sofía.

— Foi, senhora... Como todos.

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— Que corram ao Saint-Pierre para lhe buscar! Renato, filho...!

— Juan... Juan...! — murmura Renato em seu delírio — Juan... Não me deixe... Me leve contigo... Me leve a navegar... Eu cuidarei de ti... Papai o mandou! Papai

disse... Como a um irmão... Como a um irmão... Juan...

— Deus meu! — exclama Sofía, em um lamento. Há retrocedido cambaleando-se, sentindo como se a terra que a sustenta vacilasse. Ira e dor se cravam ao mesmo

tempo em sua alma, e voltando-se para o Noel, espeta-lhe: — E até se estranha você por que defendo a meu filho? Tenho que defendê-lo com os dentes, com as garras!

— Senhora D'Autremont... Ninguém lhe atacou. Está você cega, e em seu

egoísmo maternal...

— Basta! — interrompe-lhe Sofía. — Nenhuma palavra mais! Você saia desta

casa de campo Saia! Saia! E não volte jamais!

CCapítulo 8

A enfermidade do Renato foi larga. Durante muitos dias teve febre alta, e cem vezes pronunciou em seu delírio, como os unindo para sempre, os nomes do Juan e de

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seu pai. Ao fim, uma manhã amanheceu espaçoso, reconheceu a sua mãe e chorou

em seus braços... Aquela tarde...

— Vai você mesmo ao Saint-Pierre, Batista.

— Sim, senhora. Como você mande. O menino já não está em perigo e diz o médico que muito em breve poderá levantar-se.

— Apenas se reponha, mandarei-o a França. Por isso quero que recolha os

papéis de casa do Noel e entregue esta carta em própria mão ao Governador. O me ajudará.

— Não tenho palavras com o que lhe agradecer o grande favor que vai você a me fazer, senhora Molnar. A moléstia de levar consigo ao Renato...

— Por Deus, amiga minha. Se essa não for moléstia; ao contrário. Que mais posso querer eu, para este viaje no que vou sozinha com minhas duas garotinhas, que a companhia de um moço como Renato, que é quase um homenzinho?

— Confio em que saiba ser um cavalheiro.

— Repito-lhe que estou encantada. E terá que ver o bem que se leva com

minhas pequenas, e mais ainda que com a maior, que é tão suave, com essa revoltosa da pequenina...

É no despacho do capitão do porto do Saint-Pierre, junto aos moles em que

aguarda um navio preparado a partir rumo à França. Ali é onde conversam Sofía D'Autremont e a parenta do Governador, Catalina Molnar, uma mulher Madura, tímida e bondosa, de gestos suaves, que olha com ternura ao grupo que formam a

curta distância, ao outro lado da larga porta aberta, Renato D'Autremont e as duas pequenas Molnar, de nove e sete anos. A maior é magra e fina, inquieta e nervosa, de

grandes olhos claros. A menor, de rosto rosado e olhos ardentes, tem em seus poucos anos a exuberância dos frutos do trópico.

— Meu Renato precisa esquecer muitas coisas desagradáveis. Esta viagem é o

melhor remédio para ele...

— É você muito valorosa separando-se assim de seu único filho.

Repito que a adoto. Além disso, suponho que tratará de cumprir com isto a última vontade de seu marido...

— Efetivamente... — Forçada a mentir, Sofía D'Autremont se mordeu os lábios;

logo sorri com esforço, trocando o espinhoso tema da conversação: — Suas meninas são preciosas. Falou-me muito delas o primo de você, o Governador. Qual é Aimée?

— A menor...

— A maior é Mônica, verdade? Já sei que, por empenho de seu pai, vão educar-se a França.

— Mas eu não sou tão heróica como você, e não as sotaque ir sozinhas mesmo que tenha que me separar de meu marido. Mas acredito que buscam a você...

— Ah, se! É Noel... Com sua permissão...

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— Tudo está em ordem, e o navio a ponto de zarpar. Acabo de entregar ao

comissário de bordo os últimos papéis de. Renato e, portanto, minha missão está terminada — explica o notário.

— Muito obrigado. Noel. OH, aguarde! Não quer acompanha-me até deixar no navio o Renato?

— Será uma grande honra — acata Noel, mas o tom com que o diz é

francamente seco, quase hostil.

— Compreendo que está aborrecido comigo. Tratei-lhe bruscamente a última vez que falamos — tenta desculpar-se Sofía.

— Esqueça esse assunto, senhora. Não tem a menor importância.

— Então, permite-me lhe fazer uma pergunta indiscreta?

— Certamente, embora não lhe prometo lhe responder.

— Agradecerei-lhe muito que me responda. Procurou você a esse moço que meu marido queria recolha r? Tem alguma notícia do Juan... Do Diabo?

— A notícia que tenho é boa para você, ainda quando a mim, sinceramente, me causar pena. — Espero que não lhe terá ocorrido alguma desgraça...

— Ainda não, mas será muito estranho que voltemos ouvir dele.

— Por quê?

— Depois de muito averiguar, tive notícias de que embarcou como grumete em

um veleiro de carga que zarpava rumo à Jamaica. Não souberam me dar o nome do veleiro nem de seu capitão, por isso considero totalmente perdida a pista do moço. Sinto muito... Sinto muito... Tinha-me pedido que o deixasse em minha casa como

servente e, depois de tudo, tivesse sido o melhor. Mas quem podia adivinhar... Enfim, você olha por onde os dois pequenos vão estar ao mesmo tempo cruzando o mar... — A

sereia do casco de navio, que está logo a zarpar, interrompe-lhe com a estridência de seu Esse som é o navio que leva a seu filho. Vamos?

O navio que se leva ao Renato deixou atrás o promontório de rochas no que se

eleva o farol, e, com a proa apontando para alto mar, apressa a marcha. De pé junto à branda de coberta, acreditando sentir até sobre o. Rosto os beijos e as lágrimas de sua

mãe, Renato olha aquela terra que se afasta, tendo a cada lado a uma das pequenas Molnar: Aimée sorri, enquanto Mônica se seca uma lágrima. E como uma promessa a aquela tumba que deixasse no cemitério de Campo Real, como um grito de seu

coração de doze anos. Renato oferece:

— Voltarei logo, papai. Voltarei... Para procurar o Juan.

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CCapitulo 9

E passaram-se os anos...

Esta é uma história que só poderia passar onde passa... Na Martinica, terra

florida e convulsa, ilha vulcânica surta ao impulso de uma fervura de fogo, terra de amores' e de ódios, de paixões sem freio, de abnegações e de crueldades... Terra sobre a que teriam que chocar aqueles quatro corações apaixonados: Mônica, Aimée,

Renato, Juan...

Entre as quatro paredes de uma cela há uma mulher em quem a vida intensa parece palpitar. Um mundo de paixões arde no cerco de seus grandes olhos e parece

escorregar sob a pele de suas pálidas bochechas. Suas mãos finas, sensitivas, se enlaçam como para uma súplica, como para uma oração, mas há nelas um crispar-se

desesperado. Essa mulher sofre, essa mulher ama, é como uma fogueira que se consumisse iluminando. Por sobre seu corpo grácil há um hábito, um branco hábito

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de noviça, e pendura de sua fina cintura um rosário. Seus passados trêmulos a levam

ante o crucifixo, e ali se desaba soluçando...

— Mônica, minha filha, falou já com seu confessor?

— Sim, Mãe, abadessa.

— E qual foi seu conselho? Suponho que o mesmo que eu lhe dou.

— Sim, Mãe... — convém Mônica Molnar, com um sotaque de tristeza.

— Vê você? É muito logo para professar, para fazer os votos definitivos.

— Desejo-o ardentemente, Mãe. Com toda minha alma!

— Embora assim seja... Não é um arranque, não é um arrebato o que tem que

nos levar a vestir para sempre estes Santos hábitos. É uma verdadeira vocação, e terá que provar a sua, Mônica. Prová-la, não aqui, não nesta Santa casa, mas sim na luta,

no mundo, frente à tentação...

— Eu não quero voltar para mundo. Mãe. Eu quero fazer meus votos. Não me tirem daqui... Não me rechacem!

— Ninguém a rechaça. Se algo decidimos por fim contra seu gosto, é por seu bem. Agora mesmo vou falar com seu confessor. Enquanto isso reze e aguarde, filha.

Reze e eleve seu coração a Deus. — E dizendo isto, a abadessa se afasta com passos suaves.

— Meu deus! Meu Jesus! Não permita que me rechacem — implora Mônica

Molnar aparecendo às lágrimas a seus lindos olhos. — me Admita entre suas esposas... Dê-me a paz e o amparo de sua casa... Que se fechamento a ferida de meu coração... Que esse amor que me humilha e me envergonha se acabe... Jesus, limpa

meu coração do amor humano e me chame a Ti!

Um homem cruza as largas terras férteis. Monta no mais arrogante cavalo árabe

que pisasse na terra americana, e viu finas roupas de cavalheiro. Altivo e galhardo, com a fina mão sustenta as rédeas, enquanto a espora de prata se crava nos flancos do bruto. Seus cabelos são loiros e lados, seus grandes olhos claros abrangem em um

olhar de domínio toda a terra até onde alcançam: terra da que é amo e senhor. A seu passo se inclinam as costas, tiram o chapéu as cabeças humildes dos trabalhadores,

desfolham-se, como flores-de-laranja crioulas, as flores brancas dos cafezais... Mas ele não sorri... Seu olhar é inquieto, convulso a dobra que apura seus lábios. É um homem que busca... Que procura sem encontrar jamais...

— Batista! Batista!

— Aqui estou menino Renato. O que lhe passa?

— Venho dos cafezais, e já te falei disso o mesmo dia que cheguei — lhe reprova

Renato D'Aútremont, aborrecido, contendo com muita dificuldade a cólera que lhe envenena. — Não é possível que essa gente siga trabalhando na forma em que o faz. É

absurdo, desumano... A jornada de quatorze horas não é para homens, não é para seres humanos e você tem aí meninos e mulheres. Por quê?

— Sai mais barato... Além disso, assim levam quinze anos e não aconteceu

nada...

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— E também detentos do cárcere do Saint-Pierre, que trabalham encadeados.

Como é possível?

— Ai, ai, menino Renato! Você traz a cabeça cheirando a Europa. Já não sabe

como são as coisas por para cá. Em tempos de seu senhor pai...

— Meu pai era severo, não desumano — lhe atalha' Renato, francamente molesto.

— As fazendas renderam o dobro desde que eu as administro — afirma Batista em forma muito insolente.

— Não me interessa acumular mais dinheiro! Quero que trate aos que

trabalham para mim, com justiça e bondade.

— A senhora está de acordo com quanto eu faço...

— É justamente o que vou averiguar. Mas esteja ou não conforme minha mãe, eu sei o estou, e tenho que remediá-lo — resmunga Renato, afastando-se.

Uma mulher sorri ao vaivém da rede. Balança-se suave, sob o beijo de fogo do

meio-dia tropical. Do arroio próximo chega um murmúrio de água, e não é de flor, mas sim de fruto doce e amadurecido, o aroma que em seu torno exala. Parece descansar,

mas não descansa: treme, arde, sente rugir peito dentro, como o vulcão enorme, suas paixões inconfessáveis. É uma mulher que espera que aguarda como pode aguardar a pantera em espreita, como lentamente, através da terra, cresce a lava que tem que

transbordar-se...

— Aimée! Mas o que é isso? Deixa esse piano! Basta! Basta! Como te atreve... — repreende Catalina Molnar a sua filha.

— A tocar um cão? Deixa que me veja dançá-lo... É a última moda em Paris. Olha esta revista...

— Me tire de diante esse papelucho! Chegou seu noivo... Se te visse Renato lendo uma coisa semelhante.

— Por favor, mamãe — protesto Aimée em tom zombador. — Eu, com o Renato e

sem o Renato, farei sempre o que me dê vontade.

— Muito mal caminho para uma futura esposa... E para uma noiva, muito mais.

Se Renato soubesse...

— Basta, mamãe! — atalhe-lhe Aimée com brutalidade. — Não saberá nada se você não o conta, e espero que não vai a contá-lo. Renato está muito longe... Graças a

Deus, o bastante longe para me deixar em paz enquanto nos casamos.

— Santa Bárbara! Virem a estibordo! Baixem o foque! Três homens a bombordo

para esgotar a água! A estibordo... A estibordo...! Tire-te, estúpido, deixe a mim o leme! Não vê que vai contra as rochas? Logo!... Fora!...

Saltando sobre os escolhos, desafiando os elementos desencadeados, um veleiro blusa de marinheiro cruza frente ao Cabo do Diabo, gira com assombrosa rapidez entre as rochas aguçadas e os bancos de areia, e enfia ao estreito canal que lhe leva a

uma pequena e segura enseada. Negro está o céu e áspera a terra, mas o homem que leva o leme não vacila frente à fúria do céu e o mar, salva o último escolho, vira em

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redondo, alcança milagrosamente o amparo dos farallones e logo, com gesto

orgulhoso, deixa a roda em mãos de seu segundo, saltando sobre a úmida coberta.

— Joguem a âncora... E um bote para tomar terral

Saltou sobre a areia de uma praia, metendo-se na água até a cintura, para arrastar para dentro a frágil barco que até ali lhe levou desafiando a tormenta que está em seu apogeu. Com flexível soltura de felino dá uns passos afastando do mar, e

logo se volta para contemplá-lo, como contemplava também o céu escuro: com gesto desafiante. À luz do relâmpago se ilumina de pés a cabeça a figura do robusto capitão da nave. É forte e ágil; os pés descalços parecem agarrar-se como toupeiras à terra

que pisa; tem a pele torrada pela intempérie, o pescoço forte e largo, alto o peito, as mãos calosas, e o rosto altivo possui um diabólico resplendor triunfante. É como um

filho da tormenta, como um proscrito que se elevasse contra o mundo inteiro, e contra o mundo inteiro se sentisse capaz de lutar... Tem vinte e seis anos e é o mais audaz navegante do Caribe. As gente lhe chamam: "Juan do Diabo"...

CCapítulo 10

A velha casa dos Molnar se eleva solitária e isolada ao final de uma das largas ruas dos subúrbios, que, como todas as do Saint-Pierre, termina no mar. Seus sólidos

muros; pintados de cal, abrem amplas estadias frescas e ventiladas, mobiliadas com luxo um pouco antiquado. É uma dessas casas nas que se sustenta com esforço a aparência de uma posição que foi melhor, em que se remendam as cortinas e se lavam

os velhos pisos até fazê-los brilhar. Tem muitos quartos desocupados, e a rodeia um jardim, descuidado e selvagem, em cujo fundo se agrupa uma espessa arvoredo... Detrás desta se encontram os escarpados, e logo o mar... O mar imponente e bravateio

daquelas costas sempre castigadas por ventos e furacões, sempre destroçadas, e renovadas sempre pelo sopro vital de uma terra feraz.

Aimée do Molnar cruzou uma habitação sem móveis, tem aberto uma janela que dá sobre o fundo do jardim, e ficou aguardando, tensa, ardente, indiferente às rajadas e vento, às gotas de chuva que de quando em quando golpeiam com violência seus

cabelos escuros, sua frente limpa, suas bochechas moréias, agora pálidas de desejo, seus lábios ávidos e sensuais, que se crispam em gesto de impaciência quando entre

os ruídos da tormenta destaca um ruído mais: o de uns passos firmes. Alguém chega até aquela janela, chapinhando no tango, indiferente à fúria do furacão... Como ela, tenso e ávido. Alguém chega para estreitá-la em um abraço brutal, para beijá-la nos

lábios, trêmulo e ofegante...

— AI fim! Desde ontem te esperava, Juan. O que fazia? Onde estava? — indaga Aimée.

— No mar... Cheguei, contra todos os ventos. Estive cem vezes a ponto de estelar o navio por entrar esta noite... E ainda vais queixar-te?

— É que não posso viver sem ti! Não o compreende? Quando faltas a sua palavra, penso que está com outra e me volto louca. E queria te destroçar, te matar...! E você?

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— Fera... — repreende Juan, satisfeito e sorridente. — Eu também, às vezes,

queria te matar! Sai, vêem comigo...

— Está louco? Com esta noite? — Melhor... Assim não terão que nos espiar. Sai

ou vou...

— Não... Não vá... Sairei... Tirano... Juan do Diabo.

Satisfeito, Juan tornou a beijar a Aimée, a sujeitá-la, abraçando-a através dos

barrotes que lhe cravam no peito duro e largo. Logo a empurra, ardente o olhar de paixão e domínio:

— Vêem... Vêem logo... Espero-te entre as árvores. Se demorar muito, não me

encontrará...

A hora de amor passou, e também amainou a tempestade. O vento empurrou as

nuvens, as rasgando, e nas partes escuras, como farrapos de celeste veludo, titilam as estrelas qual claros diamantes.

A funda gruta abre à estreita praia a larga boca eriçada de facas cortantes Sobre

a branca areia que cobre o piso da cova, reclinada no homem que está a seu lado, ainda se estremece Aimée pela doçura do instante passado. Os negros cabelos

desarrumados lhe caem sobre os ombros, arde sua boca sensual e úmida e são seus olhos, na escuridão, como outras duas estrelas que brilhassem nas sombras... E é o aroma de seu corpo jovem, como o rugido daquele mar áspero, incitante, que em

festões de espuma se estende pela praia...

— Volta-me louco, Aimée. É como esta terra, sabe? Sempre terá que ganhá-la em uma batalha, mas não há outra mais linda, que cheira mais a flores, que dê frutos

mais doces... Como você... Como sua boca. — tornou a beijá-la. Logo, bruscamente, separa-a para olhá-la muito fixo o rosto endurecido. — por que me fez esperar tanto?

— Meu Juan... Meu Juan...! — sussurra Aimée vibrante de paixão. — Te digo a verdade? Quis ver se era certo que foi se demorava...

— Ah, sim? Seriamente demorou por me desesperar?

— Ai, selvagem! Não me aperte assim, faz-me mal... Que bobo é! — ri satisfeita. — Demorei porque mamãe começou a me falar. — Quando você quer, bem sabe cortar

uma conversação.

— Claro... Mas não quis: falava-me de minha irmã.

— A monja?

— Não tenho outra irmã. Mas, além disso, ainda não é monja. Noviça nada mais. Mamãe não quer que professe.

— Mas ela sim, e o fará.

— Claro. É teimosa como eu, parecemo-nos em muitas coisas, e nisso mais que em nada.

— Parecer-se... — Juan estala em uma zombadora gargalhada. — Terei que verte com toucas monjas

— Pode que de repente me dê à rajada de vento, como deu a ela.

— E lhe foram aceitar?

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— Por que não? O que te crie? Pensa que sou algo, que não valho nada? Pensa

que não valho nada porque me dignei te olhar?

— Algo mais que me olhar... Parece-me. . — insinua zombador Juan.

— E por isso? Os homens não agradecem nada...

— Eu te agradeço ser formosa, ter a pele de raso e o coração malvado. Assim é e por isso eu gosto. Ri-te?

— Rio-me porque falas como eu. Também detesto aos sentimentais. Quero-te porque não o é; por rude, por selvagem, por diabo... Juan do Diabo... Quem te pôs esse nome?

— Qualquer... Que mais dá? Para mim é bom... Para mim é boa algo.

— É certo, para ti é boa algo má. Também eu gosto por isso. E te quis sem te

perguntar nada. Nem sequer sei a ciência certa, quem é...

— O que pode te importar?

— Nada... Mas às vezes sinto curiosidade. Onde nasceu? Quais foram seus pais?

Qual é seu nome verdadeiro? O que foi antes de ser capitão de um navio, que não se sabe o que carga nem de que porto vem, nem a que porto vai? O que é agora?

Responde!

— Sou daqui; sou o mesmo que meu navio, e meu nome é Juan. Se você não gostar de Juan do Diabo, pode me chamar Juan do Juan. Além do diabo, só a mim

mesmo pertenço.

— E a mim um pouquinho, não?

— Claro! A ti, como você a mim... Por um momento — ri divertido e zombador.

— Sabe que às vezes me resulta muito brutal? Não te ria desse modo. Sua risada é má! Não sei por que te quero, não sei por que me aproximo de ti, nem de que

meios te valeu para me apaixonar...

— Foi você a que me apaixonou, querida. Não te lembra já? E foi nessa praia. Você passava com sua sombrinha de encaixe;

Eu chegava a meu bote. Ficou me olhando... Sem dúvida pensando: Formoso animal. E te propôs me amestrar... Mas não é tão fácil. Foi uma boa decepção...

— por que falas assim? É muito mau... — E com a paixão refletindo-se em Seus negros olhos, Aimée exclama: — Te quero Juan. Quero-te e eu gosto mais que nada, mais que ninguém... Beije-me, Juan! Beije-me e me diga que você também me quer...

Diga-me isso muitas vezes, embora não seja verdade...

Juan não responde com palavras. Volta a beijá-la, louco, apaixonado, enquanto as pálpebras dela se entreabrem cobrindo as pupilas ardentes, e, na linha imprecisa

do horizonte, aparece à claridade do alvorada;

— Mônica, minha filha, recorde que é a obediência o primeiro voto que tem feito você ao vestir esses hábitos.

— Quero levá-los toda a vida. Mãe abadessa. Quero obedecer sempre e para

sempre, mas...

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— Seu, mas está de mais. Nosso caminho é renúncia e sacrifício. Como pode

segui-lo, rebelando-se à primeira ordem que lhe desagrada?

— Não é que me rebele, é que peço rogo, suplico...

— Suplica não ter que obedecer? Suas súplicas são vãs.

— É que só neste refúgio achei um pouco parecido à paz.

— Para que essa paz seja duradoura, necessitamos uma segurança absoluta,

total, de sua vocação religiosa. Você saiu vitoriosa de todas as provas do claustro. Tem que passar pela prova do mundo.

— Passarei Mãe, mas mais adiante... Quando as coisas andem, quando minha

irmã esteja já casada...

A noviça se mordeu os lábios, inclinando a cabeça sob o olhar docemente severo

da abadessa. É naquela cela de paredes branqueadas, cujas altas janelas dão ao mar. O velho convento se eleva sobre uma colina, dominando quase a cidade do Saint-Pierre, a baía redonda e larga, as buliçosas ruas centrais, os subúrbios quietos e

dormidos; mais à frente, o mar azul, e pelo lado oposto, as montanhas, as enormes montanha que se elevam tão perto da cidade, os pitones do Cabet, o mais alto dos

quais afunda em suas nuvens levantada acima: o monte Brigue o enigmático vulcão quieto desde cinqüenta anos atrás... O colosso dormido...

— Além disso, há outra razão para enviá-la por um tempo a sua casa — explica

a abadessa.

— Outra razão? Que razão pode ser essa. Mãe?

— Sua saúde delicada. Isso salta à vista, minha filha. Aqui não há espelhos e

não pode ver sua cara. Mas você mudou tanto...

Mônica do Molnar inclinou a frente, pensativa. .Que estranhamente formosa luz

neste instante, ao último reflexo dourado do sol da tarde! Sob as brancas toucas, são como flor de madrepérola sua frente altiva, suas bochechas pálidas, e entre as negrissimas pestanas tremem seus olhos como gemas cambiantes. As finas mãos

sensitivas se enlaçaram como para uma suplica reservada, como para uma oração, naquele gesto que já é nela familiar, e logo caem. Como flores truncadas...

— O que importa a saúde de meu corpo. Mãe? Ansiosamente busco a saúde de minha alma.

— Achara-a filha tomará definitivamente as toucas até havê-la encontrado. Eu

estou segura que achará você as duas muito em breve, justamente nesse mundo que se empenha em fugir. Aceite a prova de obediência, minha filha, e cuide também de seu corpo. Necessitamo-lo são e disposto para servir a Deus. É a última palavra de seu

confessor... E a minha.

— Está bem. Mãe — aceita Mônica, afogando um suspiro. — Quando poderei

voltar?

— Por que não pergunta primeira, quando deve partir?

— Preciso saber antes quando me permitirão voltar para meu refúgio.

— De sua saúde depende. Ponha empenho em curar-se, em recompor e sua ausência de nosso lado será menos larga. Se não ocorrer nada de particular, deve

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esperar nosso aviso. Se ocorrer algo, minha filha, se sentir você realmente só e

desamparada, se lhe faltarem às forças, então não espere nem vacile: volte, volte em qualquer momento. Esta é a casa de Deus, e esta será sua casa...

— Obrigado, Mãe. Devolve-me você a vida com essas palavras — assegura Mônica, comovida e feliz.

— Mas pense que só em um caso de verdadeira, de absoluta necessidade, deve

retornar antes de ser chamada.

— Assim o farei. Mãe. E agora, se você me permitir isso, acredito que devo escrever a minha casa... Minha mãe ignora a resolução de vocês. Devo acautelá-la...

— A senhora Molnar foi já acautelada, e lhe aguarda no locutório. Veio a procurá-la. Reze um momento na capela diga adeus momentaneamente a suas irmãs

de claustro, e vá ao locutório. Ali a estaremos esperando...

CCapítulo 11

— Quer entrar Em ver se posso falar com minha mãe, Ana?

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— Sim, menino. Como não! Eu sim posso entrar, mas resulta que a senhora

está com sua enxaqueca, dói-lhe a cabeça, e quando à senhora dói à cabeça não quer falar com ninguém, porque quando fala com alguém lhe dói mais.

O olhar do Renato D'Autremont, um momento antes incendiada de cólera, adoçou-se contemplando a escura e familiar figura da Ana. Nada parece ter mudado em sua antiga casa natal, e menos que nada aquela pitoresca faxineira nativa que

cuidou sua infância. Como quinze anos atrás, seu rosto de cor de cobre, é fresco e terso; viu o alegre traje típico das mulheres daquela terra, atado o lenço de coloridos sobre a cabeça mulata de cachos apertados, e há, como então, uma luz plácida e

ingênua nos grandes olhos infantis e um sorriso panaca e doce nos carnudos lábios...

— Desde quando está doente mamãe?

— UE! Quem sabe! O menino como que já não se recorda, mas à senhora sempre dói algo. Por isso sempre terá que estar em silencio nesta casa...

— Ai, Ana... Você não muda... — afirma Renato, contente e sorridente. — Vá...

Vá! Vá avisar a minha mãe, pois é absolutamente necessário que eu lhe fale e que comece a arrumar o que está mau.

— O que você mande menino. Vou em seguida... — acata Ana, penetrando na quarto da Sofía D'Autremont.

Passaram apenas uns segundos quando Ana reaparece. Apressando ao Renato,

ao tempo que se afasta corredor adiante:

— Passe, menino, passe. A senhora o está esperando. Para você, como que não lhe dói nada. Passe... Passe...

Meigamente, Renato D'Autremont se inclinou para pegar as mãos de sua mãe, tão brancas e tão suaves como quando ele era um moço. Agora é um homem de

esplêndido corte: fino, magro, flexível, nem pequeno nem alto. Tem os claros olhos da Sofía; os cabelos, como os seus, cor de linho claro; e o porte arrogante daquele Francisco D'Autremont que foi seu pai. Tem como aquele, a frente limpa e altiva, o

olhar profundo e penetrante, e arde nela, mais viva ainda que nos dias de sua infância, aquela chama de inteligência superior, de sensibilidade generosa e inquieta,

que lhe faz de uma vez compreensivo e singelo, tenro e humano, apaixonado e sonhador.

— Mamãe, sente-se realmente mal? Dói-me ter tido que te incomodar, mas...

— Como se pode usar essa palavra tratando-se de ti, filho?

— Ana me disse que sua saúde seguia sendo delicada. Muito me temo que não a tenha atendido como é devido, mas agora. . Agora se for fazê-lo, verdade?

— Deixemos minhas enxaquecas. Vêem aqui, te aproxime... Quero voltar a te olhar de perto, uma e outra vez. Mentira me parece ter-te já a meu lado. Não se

saciam de ti meus olhos, meu filho... Meu Renato...

Depois de lhe contemplar com orgulho, olha Sofía a pequena vara que até sustenta na mão, e as finas esporas de prata que calça sobre as botas brilhantes...

— Já vejo que vem de percorrer o imóvel.

— De um extremo a outro...

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— Muito tiveste que galopar. Não te cansaste mais da conta, filho?

— Só me cansei que ver injustiças, mamãe.

— Como? O que diz Renato?

— Pois... A verdade. Sinto muito, mas eu sempre sou sincero. Acredito que há muitos males aos que terá que pôr remédio em Campo Real. E, certamente, quero te advertir que não estou conforme, absolutamente, com a administração de Batista.

— Mas, filho! O que queixa pode ter de um homem que vive por inteiro entregue a seu trabalho?

— É duro e cruel com os trabalhadores, mamãe... Mais que duro desumano com

os que aumentam nossa riqueza com seu suor e com seu trabalho... E não estou conforme. Há coisas que não podem seguir ocorrendo, mamãe. Não espero, mas sim

sua permissão para tratar de remediar. São coisas com as que estou seguro que você não pode estar de acordo, que não é humanamente possível que você tenha autorizado. Ele diz que sim, mas...

— Ele? Então, falaste-lhe, discutiste com Batista?

— Naturalmente, mamãe.

— Mau feito, filho. Temo-me que tenha sido ingrato com ele. E lhe devemos tanto...

— Mais devemos aos trabalhadores, mamãe, a essas centenas de

desventurados... Não podemos seguir explorando-os na forma em que Batista o faz! Vivem pior que se fossem escravos.

— Passam de dois mil, filho. Não pode dirigir-se os sem um respeito, sem uma

disciplina, sem uma autoridade... Não confie na primeira impressão. Batista sabe como tratá-los. Sabe que nossas terras, com ele, rendem o dobro do que rendiam em

tempos de seu pai e do Pedro Noel? Sabe que se hão adquirido a rede imóveis novos, as unindo todas a Campo Real, e que quase meia ilha te pertence? Olha, vêem aqui. Hoje é 15 de maio de 1899. Eu nomeei administrador a Batista ao dia seguinte de

morrer seu pai: em 6 de maio de 1885. Em quatorze anos, nossa riqueza se duplicou. O que podemos, em realidade, reprovar a um administrador semelhante?

— Sigo achando impróprio o trato que se dá aos trabalhadores em nosso imóvel, mamãe. Sigo considerando desumanos os procedimentos de Batista, embora tenham dobrado nossa fortuna...

— Já vejo que é um sonhador... Mas não um homem qualquer... Um D'Autremont... Com direitos, por ser quem é a viver como rei nesta terra que os D'Autremont honram pisando. Esta terra selvagem...

— A que amo com todo meu coração! — atalha Renato, com gesto decidido e orgulhoso. — Não só sou o amo desta terra, também sou seu filho. Sinto que lhe

pertenço e tenho que lutar porque, sobre ela, os homens sejam menos desventurados. Não queria chocar contigo, mamãe, mas...

— Está bem. Se não querer chocar comigo, não fale neste momento. Tempo

haverá. Falaremos mais adiante, quando te tiver feito um pouco ao ambiente. Quando puder vê-lo tudo com mais claridade, será fazendeiro... Mais tarde. Sei meu filho uns dias, um par de semanas. Não acredito que seja te pedir muito, depois de uma

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ausência tão larga. Ao fim e ao cabo, tudo se fará como você diga. É o amo, e assim

quero que o sinta. Mas, no momento, falemos de coisas mais gratas. Pareceu-me entender que tinha noiva, que estava apaixonado, não?

— Sim, mamãe — responde Renato em tom suave e tenro. — estou apaixonado pela criatura mais adorável da terra, da melhor das amigas de minha infância... Sensível como uma mulher, travessa e alegre como uma chicuela, mimosa como uma

criatura que deseja ser levada sempre entre os braços, exuberante como só pode sê-lo uma filha desta terra...

— Uma filha desta terra? — surpreende-se Sofía — Pensei que sua noiva estava

na França...

— Na França estava, mas agora está muito mais perto. Nasceu como eu, na

Martinica. Viveu aqui até os sete anos. Retornou faz seis meses.

— A que família pertence? Espero que não tenha posto os olhos em quem não seja digna de ti, por sua casta e por seu sangue.

— É o mãe. É o em todo sentido. E se chama Aimée do Molnar...

— Ah...! — surpreende-se gratamente Sofía — É possível? Aquela garotinha...

— Aquela garotinha é hoje a moça mais formosa que possa imaginar mamãe. Parece-te bem? Agrada-te minha eleição?

— Caramba... Caramba! — comenta divertida e com agrado Sofía — Olha você

por onde... Confio em que me agrade à moça. Da família, e outros detalhes, não há nada que objetar. Quer dizer, algo que em realidade tem pouca importância. E olha você o que são as coisas... Tem pouca importância, graças aos bons serviços de

Batista.

— O que diz mamãe?

— Os Molnar estão quase arruinados, mas não importa. Você é o bastante rico para esquecer esse detalhe. Traga-me quanto antes a sua noiva... — tornou a cabeça e de repente, surpresa, exclama: — Ah... E Aninha...! Aproxime-te. É Aninha Renato,

sobrinha de Batista e minha afilhada. Mas devo te acrescentar algo mais: minha enfermeira, minha companheira nesta solidão, minha filha quase...

Renato D'Autremont tornou a cabeça, também surpreendido, para olhar à moça que está de pé atrás dele. Há chegado silenciosamente, sem um gesto, sem uma palavra... Tem um rosto moreno ao que servem de marco muito negros cabelos

murchos, uns grandes olhos escuros, rasgados, enigmáticos, que acusam claros rasgos mongólicos... Umas bochechas morenas e pálidas, onde abrem os lábios vermelhos e frescos, embora pregados em um gesto estranho de amargura, de

desencanto, enquanto vibra contida e tensa, sua estranha personalidade.

— De maneira que sobrinha de Batista... Recorda-me?

— Não é de seu tempo. Veio a esta casa quando você já havia partido; mas tem dez anos junto a mim.

Sofía se pôs que pé, apoiando-se na moça, que bem pode ter uns vinte anos, e

sorri seguindo o olhar de seus grandes olhos, fixos, como deslumbrados, no rosto do Renato.

— Acredito que não tinha chegado a ver meu filho de perto, E Aninha...

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— Não, não, senhora. Quando chegou ele, não estava eu em Campo Real, já você

sabe. E logo não tive ocasião...

— Não, efetivamente. O que te parece?

— O senhor é magnífico. Todo um grande senhor, como é natural! ...

— Por Deus, mamãe! — salta Renato. — Que maneira de forçar um elogio!

— Não é forçado — nega Sofía jovialmente. — E Aninha não diz alguma vez, mas

sim o que sente verdade? Desde menina a hei ensinado a ser totalmente sincera comigo, absolutamente franca.

— Uma maravilhosa qualidade — aceita Renato sorrindo e murmurando à moça

um pouco desconcertado. Sem saber por que, aquela criatura não lhe é simpática... Acaso a associa demasiado com seu tio.

— O que queria, Aninha? Para que entrou? — pergunta Sofía.

— Meu tio esperava que o senhor o chamasse depois de falar com a senhora. Mandou dizer que estava, fora, aguardando...

— Pois lhe diga... — começa a dizer Renato: mas sua mãe lhe interrompe:

— Me perdoe que eu seja quem toma a palavra, Renato. — E dirigindo-se à

moça, adverte: — lhe Diga que, no momento, não vamos necessitá-lo. Mais adiante falaremos de tudo... Agora temos outra coisa mais grata no que nos ocupar. Logo teremos hóspedes, verdade, Renato? A senhora Molnar e suas filhas... Digo suas filhas

porque tenho entendido que a maior ainda não se casou...

— Nem acredito que se case mamãe. Repentinamente despertou nela a vocação religiosa. Empenhou-se em tomar os hábitos e esteve um ano de lhe postulem em um

convento do Burdeos. Logo foi transladada aqui, ao Saint-Pierre. Está no noviciado das mães do Verbo Encarnado e, naturalmente, não sai, nem é de supor que

acompanhe a Aimée e a sua mãe. Foi, na verdade, algo estranho... — Renato fica de repente pensativo, como rememorando tempos passados.

— Estranho? — interessa-se Sofía.

— Sim, porque ninguém suspeitava nela nada parecido. É também uma criatura encantadora, cheia de vida, de espiritualidade. Advirto-te que eu me levava

maravilhosamente com ela... Quase poderia te dizer que era mais amigo da Mônica que do Aimée. Ela se ocupava de mim sempre, resolvia meus pequenos apuros de estudante e era a meu lado como uma irmã boa.

— E está contente com tudo isso a senhora Molnar?

— É o bastante religiosa para não opor-se a uma vocação sincera.

— Bom, filho, ela saberá... Quer vir agora comigo a dar uma volta pelas

habitações que estamos acostumados a usar para os hóspedes? Preciso mandar arrumar de novo as duas melhores, o mais rapidamente possível, porque quero

conhecer seu Aimée quanto antes. Muito tenho que querer à mulher que vai ser sua esposa para lhe perdoar o que me tenha roubado a metade de seu coração... Porque penso, faço-me a ilusão ao menos, de que é tão somente a metade o que me roubou.

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— Mamãe querida... Não te roubou nada! Meu coração inteiro te pertence, como

também pertence a ela. Aos que sabem querer, o coração lhes alarga e deixa lugar para muitos afetos.

Afastaram-se juntos, meigamente apoiada Sofía, no braço do Renato, enquanto imóvel, tensa, os grandes olhos fixos neles, E Aninha os contempla afastar-se...

— Eu gostaria que ordenasse mudar essas cortinas, mamãe, por um pouco mais

alegre, mais claro, mais tropical... Aí, e que pudesse abrir essas duas janelas, que não sei por que estão trancadas...

— Mandei-as cravar, filho, porque às vezes o vento as abre e entra por elas

muito sol.

— Toda a luz do sol é pouca para iluminar a minha noiva, mamãe — afirma

Renato em uma exaltação de entusiasmo e de paixão. — Ela adora a luz, a cor, o céu azul e o clima desta terra de eterna primavera.

— Dava melhor, de eterno verão.

— Pelo calor, sim, certamente... Mas não esse seco verão da Europa no que a terra parece que morre de sede, mas sim este verão fecundo, de aguaceiros torrenciais,

no que as novelo crescem como por arte de magia, no que as flores não vivem mais que um dia, mas abrem por milhões cada 'amanhã. Seu não sabe o que falávamos Aimée e eu desta terra, lá na França, e com que ânsias desejávamos retornar...

— Pois já está aqui. . . Em seu Campo Real...

— E aqui é onde quero vê-la a ela. Este é o marco que corresponde a sua beleza... Sua beleza cálida, exuberante, um pouco tempestuosa às vezes, mamãe.

Bom, não lhe quero adornar isso muito... Meu Aimée tem seu gênio e seus arrebatamentos... Até nisso se parece com esta terra que, me gostando de tanto, às

vezes me dá uma sensação de terror... É como um temor surdo de que, repentinamente, sobrevenha uma catástrofe. Houve tantas...

— Já passaram esses tempos, e me atrevo a pensar que definitivamente.

— Oito vezes foi destruída Saint-Pierre pelos terremotos, não? Mais ou menos destruída, verdade, mamãe?

— Por sorte, não vi nenhum. Tenho entendido que sim, que desde que se tem memória da ilha, além de muitos pequenos houveram oito grandes terremotos. Mas o diabólico vulcão que os engendrou tem já sessenta anos de absoluta calma. Não é fácil

que volte a repetir as velhas façanhas, e também me atrevo a pensar que os arrebatamentos de sua linda noiva passarão na paz do lar que vais proporcionar lhe, no desejo de te ter por marido. Você a quer, e isso basta para que eu a aceite como

filha... Mas vale tanto você, meu Renato, que, para meu coração de mãe, não há no mundo mulher capaz de te merecer.

— Não me elogies assim, mamãe — ri Renato. — Vai converter-me em algo insuportável.

— O sangue, gota a gota, daria por verte feliz... Plenamente feliz... Amado,

respeitado, reverenciado pelos teus...

— Com o que possuo sou já plenamente feliz... Só tenho um desejo: que outros também o sejam um pouco... Repartir algo desta sorte, para me sentir com mais

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direito a desfrutá-la... Fazer um pouco de obra de justiça, de bondade... E me vais

perdoar que toque um tema que antes, a ti, não era. Agradável...

— Como? — alarma-se, sem saber por que, Sofía.

— Que te pergunte por alguém a quem nunca quis muito. Suponho que seu amor de mãe tinha sua influência nociva em mim, quando eu era um moço...

Sofía D'Autremont apertou os lábios, empalideceu, enquanto sem olhá-la, sem

dar-se conta de sua confusão, segue Renato falando com a alma nos lábios:

— Mamãe, lembra-te daquele moço que papai trouxe para a casa o dia antes da desgraça que lhe custou a vida? Recordas seu interesse por ele, sua recomendação

última de que eu lhe amparasse?

— Quem poderia esquecer isso, Renato? — observa Sofía, seca e tensa.

— Soubeste algo dele? O que foi de sua vida? Inutilmente te perguntei em algumas de minhas cartas e me temo que ninguém possa me dar razão, que ninguém haja tornado a saber dele depois de escapar...

— Todo Saint-Pierre sabe desse homem — explica Sofía com marcada dureza na voz e no gesto. — É um aventureiro repugnante, um jogador de vantagem, uma

espécie de pirata. Deveria estar no cárcere, mas anda solto gabando-se de suas façanhas. É muito conhecido nos botequins, nos bordéis, nas casas de jogo do porto, e ainda seguem lhe chamando... Juan do Diabo!

Como se cuspisse as palavras, como se trêmula de rancor as mordesse, Sofía D'Autremont fala, enquanto Renato a escuta franzido o cenho, quase consternado. E é de pena, não de condenação nem recriminação, a frase que sobe a seus lábios:

— Pobre Juan! Que vida tão dura deveu ter! Quanto terá sofrido e lutado para chegar a isso!

— Se tivesse querido ser um homem de bem e o tivesse obtido, compreenderia suas palavras: teria o mérito de seu esforço. Mas o que é o que tem feito? Nascer no vício, seguir no vício e afundar-se nele mais e mais.

— É certo... Mas quando desde menino se vive com a alma envenenada...

— Por que tinha que estar ele envenenado? Por que não tratava com mais

justiça que levava o vício e a maldade em "a massa do sangue?

— Não acredito que meu pai tivesse tanto empenho em protegê-lo se tivesse sido assim.

— Não o crie? Ai, Renato! Já é um homem e posso te falar claramente... Seu pai estava muito longe de ser um santo.

— Sei perfeitamente como era meu pai — salta Renato, impetuoso, como se lhe

tivesse picado uma víbora.

— Eu não quero menosprezar seu respeito nem seu carinho de filho — adoça

Sofía. — Mas as coisas não são como imagina. Se você pudesse recordar...

— Lembro perfeitamente, mãe, e há algo que tenho parecido no coração como um espinho. A última vez que falei com meu pai, foi com insolência, com rebeldia...

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— Defendeu-me de sua brutalidade, filho — pretende desculpar Sofía. — Não

tinha mais que doze anos. Nada mais doloroso e humilhante para mim que a atitude do Francisco aquela noite;

Mas nada mais formoso que a lembrança de sua atitude, Renato. Se te dói havê-lo feito, se te pesar como um remorso...

— Nunca, mamãe — a interrompe Renato com decisão e firmeza. — Fiz o que

tinha que fazer o que quisesse eu que meu filho fizesse, até contra mim mesmo, se, em um momento de cólera e loucura, chegasse a esquecer o respeito que devo a sua mãe... E ele o compreendeu assim, e seu gesto, sua atitude daquela noite, todo me

demonstrou isso... Sentiu a vergonha daquele momento de violência, fugiu ocultando-se a meus olhos, tomou como um louco aquele cavalo, e em seu desespero, em sua

angústia, sobreveio o trágico acidente que lhe custou à vida. E quando voltei a vê-lo, quando me falou por última vez, sua mão se estendeu para me acariciar e houve um elogio em suas palavras quando me disse: "Sei que saberá defender a sua mãe e velar

por ela". Não recorda?

— Sim... Sim... — sussurra Sofía, com um fio de voz afogada.

— Mas também houve um mandato que era como uma súplica reservada — persiste com firmeza Renato. — Me disse que amparasse ao Juan, que lhe desse meu apoio de irmão... Era um órfão, sei. O filho de um amigo que morreu na miséria. Meu

pai, moribundo, transpassou-me a súplica de outro moribundo, sua vontade que não pôde cumprir.

— Esquece as palavras de. Seu pai, Renato. Estava quase inconsciente quando

as pronunciou. Não tinha, mas sim a obsessão, a idéia fixa pela discussão que tínhamos tido horas antes a causa do maldito moço...

— Por causa do Juan foi à discussão de vocês? — se surpreendeu vivamente Renato.

— Naturalmente... Todo meu afã era te defender da vergonha que seu pai se

empenhava em trazer para a casa, e me agradece isso te pondo de parte dela... — lamenta-se Sofía, com despeito. — Eu sofri imensamente mais do que imaginas. Como

pensa que vivi durante quatorze anos de solidão, doente, isolada, em um país hostil, em um clima que me faz mal? Pois vivi pensando em ti, lutando por ti, defendendo todo o teu: sua fortuna, seu futuro, sua casa, seu nome imaculado...

— Sei perfeitamente — acata Renato, como em uma desculpas.

— Pois se sabe, não deveria me mortificar por um...

— Está bem, mamãe — a interrompe Renato, com o desejo de cortar a

desagradável cena. — Esqueçamos tudo isto... Amanhã mesmo irei ao Saint-Pierre. Farei que Aimée e a senhora Molnar se preparem para vir quanto antes. Sei que Aimée

vai gostar muito, e entre os dois vamos tratar de te compensar todas as penas que sofreste... Já verá...

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CCapítulo 12

A poderosa voz do Juan penetrou ressonante, até o fundo da gruta, banhada com aquele nome que é mel em seus lábios:

— Aimée... Aimée!

Mas não há resposta a sua chamada. Rapidamente dá uns passos afundando

os pés na areia branda. Logo retrocede e volta a sair à deserta praia. Com a agilidade de um felino salta sobre as pedras cortantes e sobe pelo atalho quase inviável, através dos ásperos escarpados.

Chegou até o apertado grupo de árvores que formam o fundo do jardim dos Molnar. Muito perto, as inquietas águas de um regato saltam entre as pedras, refrescando o ar, e dos grossos troncos das árvores pende uma trancada maca de seda

de cores: trono, agora vazio, da perigosa mulher a quem ama. Junto à rede, no chão, há uma flor, destroçada por aqueles dedos nervosos e ardentes, um leque, um

diminuto frasco de perfume e o último número da mais picaresca revista parisiense... Juan do Diabo aparta com o pé aquelas nadarias, e com seu passo cauteloso, de tigre em espreita, vai aproximando-se da velha casa, enquanto sussurra com a voz em

diapasão:

— Aimée... Aimée...!

— Não te alegra de estar de novo aqui, filhinha?

— Sim, mamãe, me alegro de estar outra vez a seu lado. Mônica do Molnar acaba de chegar do convento e até viu as toucas engomadas e o hábito branco das

noviças do Verbo Encarnado. Um coração de prata aceso ao peito, polidos e brilhante como uma jóia, completa o religioso adorno que tão maravilhosamente realça seu porte senhoril.

— Foi tão amargo voltar para esta casa sem ti — se lamenta Catalina Molnar, com um soluço flutuando em sua garganta. — Te joguei tanto de menos!

— Já irá te acostumando, mamãe...

— Nunca, filha, nunca. Se mudasse de idéia, minha Monica... Em todas as partes se pode servir a Deus.

— Já sei mamãe; mas também sei que muito em breve, apenas te farei falta. Aimée se basta por si só para encher a casa... Além disso, logo se casará, e então viverá com ela, como é natural. Eu seguirei meu caminho... Mas, onde está Aimée?

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— Saiu com umas amigas desde pela manhã. Nem ela nem eu podíamos

suspeitar que foram chamar-me para permitir que deixasse o convento. Já verá que contente fica quando voltar e te encontre aqui. Sua irmã é amalucada, mas muito boa.

E te quer muito, filha, me acredite.

— Assim acredito mamãe...

Com passos inseguros, Mônica vai cruzando as grandes estâncias daquela

antiga casa de grossos muros caiados, com paredes grossas e bem cuidados móveis, e largas janelas abertas ao jardim selvagem, única herança que o defunto senhor Molnar deixasse.

— Suponho que te poderá tirar os hábitos, não?

— Certamente, embora pretenda conservá-los.

— Está bem... — aceita Catalina com gesto de resignação. — Não serei eu a que queira outra vez te contrariar... Este é seu antigo quarto. Quer voltar a ocupá-lo? Acredito que é o melhor, que tem mais luz e ar... Espere-me aqui um momento

enquanto vou dispor as coisas para que o arrumem. Vou chamar à criada...

Mônica do Molnar ficou sozinha, mas não se detém naquele quarto de largas

janelas e paredes empapeladas. Sente uma angústia que surdamente a oprime, uma inquietação que a sacode, que a arrasta... Bruscamente põe-se a andar sem rumo fixo. Segue cruzando a larga fila de amplas habitações... Move-se como uma autômato,

impulsionada por uma força estranha, enquanto treme seu coração emocionado baixou o teto da antiga morada paterna. Ao fim chega ao quarto último, sem móveis, o qual tem uma única janela com as grandes folhas entreabertas; mas atrás. Delas

como uma sombra que se agita um instante... Logo, uma mão audaz que, lhes dando um empurrão violento, fez abrir-se de par em par, e uma voz masculina que exclama:

— Aimée... Por fim...

Mônica retrocedeu estremecida, tremendo, porque um rude rosto masculino apareceu atrás das grades daquela janela. Por um momento, como dois aços

chocaram no ar as duas olhadas; depois, as pupilas da Mônica se dilatam para fazer-se mais duras, mais fixas, mais altivas Pela primeira vez em sua vida, Mônica do

Molnar está olhando ao Juan do Diabo...

Juan não retrocedeu, não tratou que dissimular seu surpresa. Leva uma calça descuidada, arregaçado até debaixo do joelho, e uma tosca camiseta a raias. Poderia

ser o último marinho de qualquer navio de cabotagem; mas seu gesto é muito altivo, seu porte muito arrogante, pisam com muita firmeza seus largos pés descalços, está muito seguro de si mesmo... E sorri... Sorri com leve e fina risada zombadora,

enquanto examina com calma o muito belo rosto de mulher que emolduram as toucas engomadas, e exclama, desculpando-se:

— Caramba! Não se assuste tanto... Não tem diante a satanás...

— Não me assusto — responde Mônica, serenando-se pela metade.

— Já o vejo... Nem sequer se fez o sinal da cruz para ouvir o nome do inimigo, o

qual é estranho na gente de sua classe.

— Posso saber o que deseja você, senhor? — indaga Mônica, visivelmente molesta.

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— Com você, nada — expressa Juan com certa insolência burlona, mas sem um

indício de aspereza na voz.

— Com quem, então? — inquire Mônica com gesto altivo.

— Já disse o nome da pessoa a quem procurava a quem esperava ver chegar...

— Aimée? Procura você a minha irmã? — assombra-se Mônica sem ocultar seu desgosto.

— Assim parece... Não está ela?

— Não tenho por que lhe informar! — encrespa-se Mônica, já sem poder dominar-se.

— Altiva né?

— E você, insolente! Chama-me altiva e me está faltando ao respeito desde que

empurrou essa janela.

— OH! Por pouca coisa se ofende a abadessa...

— Não o sou nem estou disposta a tolerar suas estúpidas brincadeiras.

— Caramba! Fala forte Santa Mônica... Não é esse seu nome? Não... Não se vá! Está-me você dando uma grande surpresa. Eu pensei que as monjas eram mais

amáveis E... Menos bonitas... OH, não se ofenda tanto. Em certo modo, é uma adulação. Além disso, não estou dizendo mais que a verdade...

— vou chamar a um criado para que lhe obrigue a retirar-se!

— Pobre homem! — ri Juan, realmente divertido. — Não ponha esse compromisso a ninguém, nem queira aparentar comigo o que não é... Em sua casa não criou.

— É o cúmulo! — exaspera-se Mônica, abandonando o quarto.

— Mônica... Santa Mônica...! Escute-me...! — chama Juan. E ao não lhe fazer

caso esta, exclama rendo: — Terrível cunhada!

— Mônica, filha, o que te passa? Sente-se mau? Está de muda de roupa. Por quê?

— Por nada, mamãe... Onde está Aimée? — indaga Mônica. Sentou-se, afogando-se quase: tão bruscamente pulsa seu coração, tão apressadamente corre

pelas veias seu sangue, subindo a sua garganta em fervura de ira incontrolável.

— Já te disse antes que tinha saído com umas amigas desde pela manhã...

— E onde foi? — apressa Mônica a sua mãe. — Que amigas são essas?

— Bom, filha, dos nomes não me lembro muito bem. São moças daqui, amigas da infância... Sua irmã reatou alguma? Gratas amizades... Aborrece-se sozinha neste casarão e, naturalmente, entra e sai...

— Minha irmã está comprometida para casar-se com um homem muito digno!

— Já sei; mas não acredito que tenha nada de particular. .

— Nunca vê nada de particular no que Aimée faz! Com sua excessiva indulgência, fomentou sempre todas suas loucuras, todos seus caprichos... — reprova Mônica a sua mãe, sem poder dissimular sua indignação.

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— Mas, filhinha... Por que me fala assim? — alarma-se Catalina Molnar.

— Não é o tom que devo empregar contigo, mamãe. Sei muito — se suaviza Mônica, arrependida de seu arrebatamento. — Mas às vezes não é uma capaz de

conter-se, e neste caso... Bom, manda a procurar Aimée em seguida. Que lhe digam que eu a chamo, que a necessito... Que venha... — Observa que sua mãe vacila, e indaga: Ou é certo que não há em casa nenhum criado? Responda-me a isso, mamãe.

— Está a moça que cozinha, lava e prancha... Mas não se trata disso... O que passa...

— O que passa é que não sabe onde está; que, como sempre, Aimée faz seu

capricho; que entra e sai sem que você saiba aonde vai nem com quem anda. E, entretanto, deste-a em compromisso, permitiste que um homem como Renato...

Mônica se mordeu os lábios furiosamente, até que a violenta dor a faz reagir e calma o arrebatamento de cólera que a sacudiu como uma descarga... Até que baixa a cabeça juntando as mãos, naquele gesto com que se força à oração, enquanto solícita,

a mãe pergunta:

— Filhinha, o que te passou? Por que te puseste assim de repente?

— Nada, mamãe — tenta desculpar-se Mônica. — Os nervos... Estou fora de mim... Essa é minha enfermidade...

— Vá, Por Deus! A Prioresa me falou de tristeza e debilidade, não de seus

nervos. Mas, enfim, tudo irá remediando-se. No fundo, acredito que tem razão, um pouco de razão ao menos. Sua irmã é caprichosa, amalucada... Não me obedece... Faz-nos muita falta seu pobre pai...

— Dele também se burlava — se queixa com amargura Mônica. — dele e de todos; mas não vai burlar se do Renato... Ela prometeu fazê-lo feliz.

— E o fará. Claro que o fará... Se o pobre moço estiver mais apaixonado. . Cada dia recebe sua irmã atenções e seus presentes, e em qualquer momento o verá por aqui...

— Como? — alarma-se Monica. — Não está em sua fazenda de Campo Real?

— Está; mas já se escapou duas vezes nos dez dias escassos que leva na

Martinica. Não há caminho comprido quando se quer tanto, e Renato está louco por sua irmã. Não há mais que olhá-lo frente a ela... Tudo troca: sua expressão, seus olhos... Ela, a seu modo, quer-lhe. O representa para ela tudo o que necessita na vida

para triunfar, além de ser uma boa moço. O que eu desejo é que se casem quanto antes e, uma vez casada, já verá como as coisas trocam. Sem contar com que em Campo Real não haverá muitos galãs para que sua irmã exerça a paquera.

— Tema-me que a paquera do Aimée pode exercitar-se em qualquer parte e até com o homem mais repugnante. Acredito capaz de olhar a um gabam, a um mendigo...

— Cala! — ordena Catalina visivelmente desgostada. — Agora sim está ofendendo gratuitamente a sua pobre irmã. Parece mentira, Mônica...

Desde fora chega o ruído característico de um carro que se detém, e um estalar

de vozes e risadas juvenis.

— Acredito que aí está sua irmã — informa Catalina. — Já verá que contente fica ao te encontrar. Quer-te mais que você a ela, Mônica.

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— Crie isso? — observa Mônica com um matiz de amargura na voz.

— Me estava demonstrando isso com suas palavras de faz um momento. Ela não te critica nunca... Sempre está de sua parte. Foi primeira em tratar de convencemos, a

seu pai e a mim, de que lhe deixássemos fazer seu gosto e tomar os hábitos. Quer-te mais que você a ela... Muito mais...

— Adeus, Gustavo Até manhã! Não deixe de vir você também, Ernesto... E

tragam o Carlos... — ouve-se a voz do Aimée, despedindo-se alegremente.

— São essas seus amigas? — inquire Mônica com mordacidade.

— Amigas vieram a buscá-la — assegura Catalina. — Estavam em um grupo...

Agora vieram a deixá-la os moços... Não acredito que tenha nada de particular.

— Que cega está! Anda, lhe advirta que eu cheguei a casa.

— Quieta!

— Oh. — assusta-se Aimée; mas em seguida sussurra: — Juan...! Mas, Juan...

— Hei dito que quieta — insiste Juan com energia. Bruscamente, sujeitando-a

pelos ombros das costas, obrigando-a a jogar para trás a cabeça para beber com ânsia o mel de seus lábios, Juan beija longamente a Aimée, surpreendendo-a no momento

em que ia recostar-se na suave cortinas de malhas de seda. Um instante a saboreia também avidamente a carícia, para rechaçar depois, falsamente indignada:

— Pirata... Selvagem...! Que maneira de me tratar é essa? Ai! Solte-me! E não

levante a voz. Podem ouvir-te da casa.

— Não acredito. Está muito longe... Fabricou-te um bom canto entre estas árvores. Mas é melhor minha cova na praia. Esta noite te espero ali.

— Esta noite não pode ser! — nega Aimée vivamente.

— Esta noite te espero, e esta noite irá.

— Não sei se posso...

— Poderá. Estarei te esperando. Já verá que fácil te é arrumar as coisas quando pensar que eu te estou esperando lá associação Americana de Advogados, e que se

demorar...

— Já sei. .Irá... — sentencia Aimée em tom zombador.

— Não. Virei a te buscar, e te levar embora nem que seja a arrastada.

— Não seja bárbaro. É quase seguro que irei à cova esta noite.

— É absolutamente seguro que irá. Meu navio sai de madrugada.

— Até onde? Por que não me diz isso? Não vou a delatar-te...

— Perderia o tempo. As leis são malhas muito ásperas. Os peixes vivos de minha índole, que sabem coletar, não ficam nunca entre essas redes.

— Ah! Logo é certo que há um mistério em suas viagens? Até onde vai seu navio? Diga-me isso Anda... Dominicana? Guadalupe? Chegará até Trindade, ou porá

proa à Jamaica?

— Voltarei dentro de seis semanas...

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— Seis semanas? É uma enormidade!

— Talvez cinco... Sentir-me-á falta?

— Chorarei por ti todos os dias. Juro-lhe isso, Juan! Não sei o que tem...

Transtorna-me... Às vezes amaldiçôo a hora em que te conheci, em que te escutei...

— Esta noite não a amaldiçoará. Espero-te...

— Irei... Irei! Mas agora te esconda vate, alguém vem. É minha irmã. Vate...

Vate, por caridade! — suplica Aimée, nervosa. — Se nos vir juntos, estou perdida.

— Perdida? Por quê?

— Vate, Juan! — ordena mais que roga Aimée, desesperadamente. De um

brusco empurrão lhe apartou, e corre ao encontro da Mônica.

— Mônica... Irmãzinha! — exclama Aimée, sufocada, mas tentando ser jovial.

— De onde vem? — indaga Mônica, severo.

— De onde tenho que vir? Do jardim... Não o vê? Por que não te tira os hábitos? Não sei como resiste com o calor que está fazendo... Por que me olha desse modo? O

que te passa?

Mônica apoiou as mãos finas e nervosas nos ombros do Aimée para olhá-la

lenta, fixamente, como lhe penetrando os pensamentos. Estão à entrada daquelas últimas habitações do casarão dos Molnar, e o coração do Aimée bate apressado, temendo, como dos dias de sua infância, aquele olhar sagaz de sua irmã maior, a que

sua alma logo que pode ocultar secretos.

— Não respondeste a minha pergunta, Aimée. De onde vem?

— Já te disse que do jardim. Que mais quer que te diga? Se for começar como

antes, a me arreganhar logo que chega...

— Eu não queria voltar aqui. Outra vontade mais forte que a minha me obrigou

a fazê-lo. Agora penso que talvez foi um intuito da Providência.

— Ai, ai, ai! Agora sim estou aviada. Assim que você nomeia a Providência...

— Não te faça à inconsciente, porque não o é. Está muito criada também para o

papel de menina mimada...

— Em definitiva, o que é o que quer? — revolta-se Aimée, presa da ira. — Não

me estorva o que esteja aqui, se não te meter em minhas coisas.

— Tenho que me colocar Aimée. Entre nós há um pacto... Um pacto solene. Jurou Aimée... Jurou com lágrimas nos olhos, e tem que cumprir seu juramento.

— Não estou fazendo nada de particular.

— Seriamente? Com a mão no coração, sinceramente, crie estar cumprindo seus deveres dê prometida do Renato?

— Já saiu Renato!

— Tem que sair, posto que vais casar-te com ele, posto que prometeu lhe fazer

ditoso...

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— Que o seja... Eu não lhe estou fazendo nada. Mas já vê... Em dez dias o vi

duas vezes. Isso, depois de seis meses de ausência... Seis eternos meses metida neste casarão que é uma tumba.

— Uma tumba muito freqüentada... Chegou com amigos, sai há todas as horas lhe devem buscar e lhe conhecem por seu nome tipos que...

— O que? O que está dizendo? — atalha Aimée francamente alarmada.

— Ouvi-te falar no jardim... Com quem?

— Com ninguém.

— Não minta! Não minta, porque é o que mais me irritava de ti. Entre essas

árvores soava claramente a voz de um homem, e a esta janela veio a te buscar um homem e te chamou de seu nome. Um homem imundo, repugnante, insolente. A

espécie de marinheiro...

— Ah! O pobre Juan... — comenta hipócrita e ladina Aimeé — Falou com ele? O que te disse? Advirto-te que não anda muito bem da cabeça. É um infeliz, mas.

— Infeliz? Louco? Pobre? Mas a forma em que falou de ti...

— O que pôde te dizer o muito canalha?

— Não é o que disse, mas sim como o disse. Já vejo que o conheces... Quem é esse homem?

Aimée sorriu, tranqüilizando-se totalmente, outra vez segura de si mesmo, outra

vez disposta a fazer de seu cinismo a arma que nunca lhe esculpiu, e sem dar valor a suas palavras, explica:

— É um pescador. Tem um barco e se vai longe... Às vezes traz muito bom

pescado. Eu o compro, e nesta solidão, neste absoluto aborrecimento, tive a debilidade de falar com ele... Sobre detalhes de seu ofício. Aqui não se guardam distancias, não

se vive com tanta etiqueta como em Paris ou no Burdeos. Não posso me interessar no que faz um pescador? Não posso nem sequer falar com as gente? Vais converter-te em meu goleiro? Vais faze-me a vida impossível por?

— Cala Aimée

— Está bem. Calaremo-nos as duas... Compreenderá que não vou ser eu a que

se cal sempre para que você diga o que te dê a vontade. Se falar você, falarei eu também, e direi ao Renato...

— Não dirá uma só palavra — exclama Mônica com violenta ira logo que

contida. — Não dirá nada a ninguém! Entende? Esquecer-se-á do que, por desgraça, sabe. Calará para sempre, porque como te atreve...

— Mônica, faz-me mal! Ai. — queixa-se Aimée.

— me desculpe. Não quis te fazer dano. Não quero ter que te fazer dano nunca, irmã. Mas há um pacto entre as duas, e é preciso que o respeite. Nele vai mais que a

vida. Entende? Mais que a vida!

— Mamãe nos está chamando — indica Aimée; pois, em efeito, chega até elas à voz da Catalina, as chamando. — Por favor, Mônica, não ponha dessa maneira! Não

tome assim as coisas. Não passa nada... Não vão bem esses arrebatamentos com o traje que leva... Todo toma pela tremenda... Não sabe viver no mundo, irmã.

66

— Aimée, filhinha! Aqui está Renato! Vêem... — é a voz da senhora Molnar que

se vai aproximando em busca de sua filha.

— Renato... Renato agora. Ouviu isso, Mônica? — indaga Aimée em tom

zombador. — te Acalme te serene. Renato sempre teve o dom dê chegar a tempo. Não te parece?

Mônica não responde. Imóvel, apertados os lábios, brancas as bochechas,

parece repentinamente uma estátua de cera sob as toucas imaculadas. Aimée a contempla um momento, sorri forçada, e sacode o braço de sua irmã com gesto afetuoso:

— te acalme e ponha boa cara ao Renato. Vai ter uma grande surpresa ao te encontrar aqui. Certamente tem muito que conversar contigo, Mônica. Seja boa e

entretém. Já sabe que o te aprecia. Não serei egoísta e lhe emprestarei isso um bom momento para que arrumem o mundo em teoria, como têm por costume fazê-lo. E não se preocupe que Renato é feliz e o será enquanto me queira.

Junto à alta janela da sala colonial, por onde penetram os últimos raios dourados do sol que morre Renato D'Autremont. Estreita as mãos do Aimée no

empenho pueril e apaixonado por lhe roubar um beijo. De longe, fingindo um ir e vir oficioso. Catalina Molnar lhes observa complacente. O que recatada e pura parece agora à ardente amante do Juan do Diabo! Outras são seus olhares, seu sorriso; outro

seu gesto, perfeita imitação de noiva íntima, apaixonada, ingênua...

— Aimée... Meu amor, minha glória, minha vida. — exclama Renato, apaixonado.

— Te acalme... Não te aproxime tanto... Mamãe nos observa... — paquera Aimée, rendo. — Me assusta com esses arrebatamentos.

— Me perdoe. Adoro-te, Aimée, adoro-te e' não vejo o momento em que por fim seja minha esposa!

— Para isso falta muito tempo...

— Só o que você queira. Por minha parte, tudo está disposto. Mamãe sabe já. Está conforme, ditosa... Só espera o momento de te conhecer, de te dar sua bênção e

de fixar a data das bodas.

— O que está dizendo? A senhora D'Autremont...

— Doce minha mãe... Já te quer, só sabendo como te quero eu. Como pensei em

ti estes dias, minha vida! Como sonhei com verte ali, em minha casa, entre esses campos que serão seu reino! Porque ali será como uma princesa, como a soberana de um conto de fadas...

— Mas, Renato! — protesto Aimée. — Me prometeu que viveríamos no Saint-Pierre...

— Bom... No Saint-Pierre temos uma velha casa. Mais adiante mandarei repará-la; mas te asseguro que quando vir Campo Real, nada te parecerá mais grato, porque se o Paraíso esteve em alguma parte da América, é nesse cerque ao pé das montanhas,

onde não é possível já reunir mais beleza: flores, paisagem... E você... Quando você esteja, não será um paraíso terrestre, será o próprio céu...

67

— Que bonita falas, Renato! Claro que perde o tempo... Mamãe leva cinco

minutos ausente e não me deste um beijo.

— Minha vida.

Beijou-a com ternura, com respeito, contendo seus anseios, sujeitando a paixão que arde em suas veias, fazendo loucura e rendimento daquela labareda de desejo que provocam os lábios sensuais, a pele aveludada, os olhos profundos, o perfume

exuberante de flor tropical que emana da carne daquela mulher.

— Agora, te esteja quieto. Mônica vai sair de um momento a outro...

— Mônica? É certo... Sua mamãe me disse que estava em casa, que tinha saído

por umas semanas do convento. Será muito grato saudá-la. Embora não sei... De algum tempo a esta parte, sua irmã me retirou toda sua amizade, todo seu afeto. A

mamãe não o disse, mas se visse como me preocupa isso... Que recorde, eu não lhe tenho feito nada... Conscientemente, ao menos, eu...

— Que tolice! — interrompe-lhe Aimée. — Claro que não passa nada. Isso forma

parte de sua vocação religiosa e do estado de seus nervos. Mônica se tornou tão estranha... Está muito mal de saúde. Delicada, nervosa, excitável... Por qualquer coisa

faz uma tragédia. No próprio convento não sabem o que fazer-se com ela. Por isso se empenharam em que saísse um par de meses. Às vezes rói pergunto se não estará um pouquinho transtornada...

— O que diz? Vá uma ocorrência! Mônica é uma criatura excepcionalmente inteligente, equilibrada, inteira... Uma mulher admirável por todos os conceitos.

— Parece-te admirável? — diz Aimée em tom zombador. — E por que não te

apaixonou por ela?

— Da Mônica? — assombra-se Renato, divertido. — Não. Sei... Qualquer pode

apaixonar-se por uma criatura encantada como ela o é sem disputa, mas estava você e foi de ti quem me apaixonei, e é a ti a quem adoro a quem quererei sempre... Definitivamente... Até o dia de minha morte!

— Diga-me isso outra vez, Renato. Diga-me isso muitas vezes. Querer-me-ás sempre, aconteça o que acontecer? Quer-me?

— Quero-te, Aimée! — afirma Renato, arrebatado de paixão. — Te quero tanto, tão total, tão profundamente, que se um dia... O que é loucura pensar, claro está... Que se um dia fosse indigna...

— Perdoar-me-ia?

— Não, Aimée! Não poderia te perdoar nunca uma traição, mas tampouco poderia te deixar viver para que fosse de outro. Mataria-te, sim! Mataria-te com estas

mesmas mãos que te adoram, que tremem ao estreitar as tuas! Mataria-te, embora com a dor de lhe matar se acabasse minha vida também!

Bruscamente, Aimée se levantou, arrancando suas mãos às do Renato. Junto a eles, muito perto, chegada bem a tempo de ouvir as últimas palavras, está Mônica, silenciosa e serena, não é só o sobressalto de seu presencia o que sacode a sua bela

irmã.

É também o gesto feroz, o olhar ardente que tem descoberto no rosto do Renato D'Autremont, a careta quase feroz com que seus lábios se distenderam. Mas a

68

presença da Mônica lhe transforma de maneira absoluta. Respeitosamente pôs que pé

para saudá-la, aguarda em vão a que sua mão se estenda, e ante a imobilidade da noviça, inclina a frente em uma saudação que mais tem de cortês que de carinhoso:

— A seus pés, Mônica. Quanto gosto de vê-la! Como está você?

— Bem. E você, Renato? — corresponde Mônica em forma amável, mas fria.

— No melhor dos mundos, naturalmente — exclama Renato com jovialidade —

Tanto que, confesso-o, às vezes me dá medo.

— Medo do que? Se alguém merecer a sorte no mundo, é você.

— Agradeço-lhe a afirmação. Com freqüência penso que a vida me dotou em

demasia, e me atormenta a impaciência de realizar as boas obras, a que suponho estou obrigado para não, ser ingrato com meu destino feliz.

— Você sempre procede nobremente, e faz ditosos aos que dependem de você. Não acredito que tenha em realidade essa dívida que pretende...

— Pois eu sim acredito Mônica, e não sabe como me alegre de que a casualidade

me permita contar com você, algumas coisas que desejo fazer e que considero muito urgentes.

— Contar comigo? Não compreendo...

— Claro. Não perdi o cacoete que me dirigir você mais de uma vez. Começo a referir as coisas pelo final. Não pode me compreender, posto que não conhece o

princípio. Mas aqui chega a senhora Molnar... Por favor, doa Catalina... Aproxime-se... Há um convite para toda a família e quero que toda ela me escute. Vim por vocês...

— Como? Para que? — indaga à senhora Molnar.

— Para uma visita ao paraíso. Perdoem-me a jactância de chamar desta maneira a minhas terras de Campo Real. Necessito que preparem suas coisas e que saiamos

para lá imediatamente.

— A Campo Real nós? — assombra-se Catalina Molnar.

— Eu sei que o mais correto seria que minha mãe viesse primeiro, e que o

convite fora feito pessoalmente; mas confio que a desculpem ao saber o que faz mais de dez anos não abandona o imóvel. Sua saúde é bastante delicada para não fazê-lo.

Ela me roga que a perdoem por não vir, por enviar somente esta carta com seu melhor emissário, que sou eu mesmo. É para você, dona Catalina. Quer me fazer o favor de lê-la?

— Sim, filho, mas... — começa a protestar Catalina.

— Acredito que não há nenhum inconveniente para que vá com o Aimée a Campo Real, mamãe — intervém Mônica. — Eu, como é natural, voltarei para meu

convento, e à volta...

— De maneira nenhuma, filha. Saiu do convento porque sua saúde é delicada.

Justamente, tanto seu confessor como a abadesa me disseram que séria magnifica para ti uma temporada no campo, e posto que a mamãe do Renato convida às três...

— A senhora D'Autremont não contava comigo — a interrompe Mônica.

— Com você se conta sempre para tudo, Mônica — assegura Renato. — E se para que se convença é preciso que minha mãe faça essa viagem e venha

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pessoalmente a lhe pedir que nos acompanhe um par de semanas em Campo Real,

fará-o. Estou seguro disso. Além disso, me deixe lhe dizer agora o final, porque antes comecei. Conto com sua ajuda e seus conselhos para remediar muitas coisas que não

estão a meu gosto lá em minhas terras.

— Comigo? Mas se eu... — começa a protestar Mônica.

— Você era em outro tempo minha melhor amiga, Mônica. Vou prescindir de

seus hábitos, da barreira de frieza que se empenhou em elevar entre nós dois, para lhe dizer... Para dezer-te, Mônica, como naqueles tempos em que fomos como dois irmãos, como dois sonhadores imaginando um mundo novo, melhor e mais generoso... Como

quando sonhávamos sendo reis de um mundo de sorte, de bondade, no que ninguém sofresse, no que tudo fora paz e justiça... Pois bem, Mônica , esse mundo o tenho, é

meu... Mas não é um mundo de bondade, de doçura, nem sequer de justiça. Na beleza de meu paraíso há cantos escuros, amargos; gente tratadas cruelmente; tem os que necessitam de um futuro melhor. Eu quero remediar todo isso e necessito a meu

lado... Como o que foi naqueles anos de adolescência: meu guia, minha companheira, minha professora muitas vezes...

Mônica do Molnar cala, inclinada a frente, trementes os lábios, cheios os olhos de lágrimas que só com enorme esforço consegue conter. Assim, frente a frente, não se atreve a rechaçar as palavras de Renato; chegam-lhe muito profundamente, há uma

sorte muito intensa em meio de sua dor profunda, ao lhe escutar falar dessa maneira. Não poderá lhe negar nada que lhe peça assim. Sabe que não poderá negar-lhe e, entretanto, balbuciai uma última resistência:

— Necessitaria a permissão de meus superiores...

— Hoje mesmo o teremos — afirma Renato, decidido. — Irei ao convento, farei

que mamãe escreva à Abadessa...

Mônica se serenou totalmente, como se de repente houvesse puxado dentro de si a força que necessita, e clava no rosto do Renato sua poda olhar valoroso, ao aceitar:

— Irei Renato. Irei com vocês...

— É uma sobremesa deliciosa, tem no feito você, Aimée?

— Sim; claro... Com uma receita de Mônica, que aprendeu a fazer maravilhas na confeitaria do convento, e ajudada um pouquinho também por mamãe.

— Certamente, suas mãos lhe põem algo angélico... Renato sorriu olhando a

Aimée que lhe devolve o sorriso com esforço, tensos os nervos, fixa toda sua atenção não naquela mesa familiar, sobre cuja toalha branquíssima refugam os últimos restos da baixela de prata dos Molnar, mas sim no antigo relógio cujos ponteiros de relógio

avançam implacáveis, cujo sino cantarina apregoa a hora de uma encontro a que não sabe como acudir. São as oito, e o ardente coração lhe desboca peito dentro... São oito,

e claramente sua imaginação lhe mostra a robusta figura varonil do homem que naquele momento salta sobre a praia e penetra, procurando-a até o fundo da cova... O mar que ruge, os braços atléticos que pudessem estar estreitando-a, a areia branca

como um áspero leito perfumado de algas, e Juan do Diabo junto a ela, com seus olhos de abismo, com seus beijos de fogo, com seu corpo maciço como o de um urso e ágil como o de um tigre... Com seu atrativo irresistível de tritón de fera...

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— Esta sobremesa é o único especial que pudemos fazer para ti, filho — explica

Catalina, como se desculpando. — Como não te esperávamos, e apenas nos deu tempo...

— Fui até o centro procurando um velho amigo de meu pai: o notário Noel. Mas não tive a sorte de achá-lo em sua escrivaninha. Quando sair daqui irei a sua casa. Tenho empenho em falar com ele. Foi notário dos D'Autremont durante muitos anos.

Não sei por que motivo se afastou de minha casa, mas quero que volte para ela. É um homem bondoso e honrado, meu pai o apreciava enormemente...

O velho relógio do comilão lança ao espaço o som vibrante de suas badaladas, e

Aimée se alarma:

— 0h...!

— O que tem Aimée? — indaga Renato, solícito.

— Uf! Nada... O que quer que tenha? Calor. Faz um calor terrível aqui dentro — se queixa Aimée.

— Querem que passemos à sala a tomar o café? — propõe Catalina.

— Não pode entreter muito ao Renato, mamãe — repreende Aimée jogando um

olhar ao relógio. — Já ouviu que tem que ver esse senhor...

— Há tempo... Depois de falar com ele, talvez empreenda a volta a Campo Real esta mesma noite — explica Renato — O caminho é bom. Gozamos de uma lua

esplêndida, e estou impaciente por lhe dizer a minha mãe o resultado satisfatório de seu convite. Além disso, quanto mais logo vá, mais logo volto por vocês. Quando poderão estar preparadas? Na sexta-feira? No sábado?

— Eu acredito que na sexta-feira, verdade, moças? — solicita Catalina.

— Eu estou preparada em qualquer momento — assegura Mônica.

— E você? — pergunta Renato a sua noiva; mas ao não receber resposta desta, insiste: — Aimée... Não me ouve?

— 0h! Sim, sim, naturalmente... O que dizia? — exclama Aimeé, vacilando e

como saindo de uma letargia.

— Renato falava de voltar por nós na sexta-feira, mas você está como nas

nuvens... — explica Mônica, com uma velado recriminação na voz.

— É que estou me asfixiando de calor. Quando acabam de trazer esse café?

— Em qualquer parte é igual — aceita Renato. — Tomaremos aqui mesmo, já

que o trouxeram, e abreviarei a sobremesa, embora não conheço nada mais difícil que ir-se desta casa.

Tornou a sorrir olhando Aimée, cujo sorriso é agora quase uma careta. Não pode

mais, está desesperada, e aos mesmo tempo treme, teme, recorda a ameaça do Juan: ir por ela se não ir a encontro.

Na porta, duas mulheres olham partir ao Renato. Logo, Mônica se aparta deixando cair, como sem forças, sobre uma poltrona de vime, enquanto a senhora Molnar entreabre brandamente o portinha procurando com a vista a sua filha menor,

e pergunta a Mônica:

— Onde foi sua irmã?

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— Não sei. Tinha calor... Ao jardim certamente.

— Que encantado é Renato, verdade?

Mônica não responde; baixa a cabeça como se afundasse seus pensamentos no

agitado mar de sua alma em tortura. A senhora Molnar entra lentamente a seu quarto, enquanto cruzando a casa, cheia de impaciência, irrompe Aimée na habitação de sua irmã. Sobre uma cadeira está o manto negro com que, para sair cobre seu hábito de

noviça Mônica. Sem deter-se se apodera dele e segue seu caminho cada vez mais depressa. Ao chegar ao jardim se envolve de pés a cabeça no escuro tecido, e como uma sombra se desliza para as árvores, escondendo-se neles rumo ao caminho da

praia.

— Mônica... Que estranho! Que estranho que saia assim! Que estranho é tudo nela

Renato D'Autremont pensa em voz alta, à força de desconcerto, de surpresa.

Está de pé, a cinqüenta metros escassos da casa das Molnar, cujas brancas paredes ilumina com sua luz muito claro a lua cheia. Deteve-se naquela esquina, pela que

deve dobrar perdendo de vista a vetusta residência. Parou com esse impulso irresistível dos apaixonados, de olhar uma vez mais, embora só sejam as paredes do sítio em que vive o objeto de seu amor. Deteve-se ansiosamente, esperando ver a

figura do Aimée recortar-se atrás das grades da janela, mas ninguém há na janela nem na porta. Só viu cruzar a uma sombra... Sente-se estranhamente inquieto. Passo a passo voltou para a casa e dá uma volta em torno da mesma. Há luz em duas

habitações. Duas das três mulheres que habitam essa casa estão acordadas, pensa Renato. Como se colocasse um sacrilégio, penetra no jardim de sombras.

Chegou ao centro daquele 'maciço de árvores espessas, onde uma rede pendura de dois troncos. Agora, a lua, filtrando-se entre os ramos, põe facas de prata sobre a malha de seda e brilhante de estrelas nas águas do arroio próximo. Muito devagar se

inclina a recolhe do chão um lenço perfumado de lilás, um espelho que ficou abandonado junto à rede. Reconhece esse espelho. É o brinquedo preferido de Aimée,

viu-o entre suas mãos cem vezes, há-o' visto refletir sua beleza, como agora, qual terso lago diminuto reflete as estrelas, e com uma ternura que invade sua voz, sussurra:

— Aimée... Minha vida...

Beijou o cristal gelado, aquele que refletisse tantas vezes a boca breve, doce, cálida, fonte de vida para ele. Logo, baixa a frente. Há sentido uma súbita vergonha. Está ali quase como um ladrão. Inquieto, olha para a casa. Das duas janelas

iluminadas, alguém se apagou já. A outra segue brilhando com luz reduzida.

— Aimée. Você não dorme verdade? Pensa em mim, sonha acordada? Ou Reza?

Acaso espera com ânsia, como eu, o dia de amanhã para ver-me de novo?

Brandamente desliza o espelho em seus bolsos, e se afasta com passo rápido.

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CCapítulo 13

— Cristo, me ouça... Cristo me ampare... Senhor sustente-me dê sua força na

agonia, me dê sua luz nas trevas... Ouça-me.

De joelhos, frente à imagem do Crucificado que preside a quarto em que

correram os anos puros de sua infância, Mônica reza... Reza com as mãos juntas, travadas, com os abertos olhos fixos naquele de quem todo o espera, com os pálidos lábios trêmulos, com o apaixonado coração lhe golpeando surdamente o peito...

— Por que me levar até o último extremo Senhor? Por que me pôr de novo frente a ele? Por que me arrastar, à tentação? Por que fazer que despertem as lembranças

mal dormidos apenas? Por que, Senhor? Por que é tão dura a prova?

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Tudo é silêncio no casarão, menos sua voz que é como um leve soluço. Tudo é

quietude, menos a alma torturada que se retorce querendo escapar de sua tortura, para aceitá-lo ao fim:

— Cristo... Em sua noite de agonia, você rechaçou o cálice também. Em sua Horta dos Olivos, derramou suor de sangue, chorou amargamente, e lhe pediu ao Pai que tivesse piedade de sua fraqueza. Hoje sou eu quem te pede piedade... Piedade ou

forças para triunfar de mim mesma, para afogar os batimentos do coração de meu coração, para domar minha carne rebelde... Não há piedade, Senhor? Tem que ser? Responda-me em meu coração! Responda-me! — Um soluço atende sua garganta, lhe

impedindo de seguir a reza. Mas logo uma sensação de conformidade a invade, e exclama: — Faça-se sua vontade. Senhor... Mas não me abandone na prova.

— Juan! Meu Juan! O que fazia aqui?

— Sim ali está Juan. É ele, e são seus braços os que a estreitam e é sua boca, de lábios ávidos e sensuais, a que beija a sua com ânsias de sedento. Encontrou-o no

alto dos escarpados, muito perto já das últimas árvores de seu jardim...

— Ia te buscar. Acautelei-te que o faria. Jamais muito ameaço em vão, Aimée, e

é bom que saiba. Não vais burlar-te de mim. Não me interessava, não queria cair em suas redes... Se bem o que pode esperar-se das mulheres de sua classe...

— OH, Juan meu lobo apaixonado!

— Apaixonado eu?

— Como se chama, pois, o que sente? Não te interessava, mas me busca há todas as horas. Não queria te aproximar de mim, e agora morre se me atraso em um

encontro. Se isso não for amor, como se chama?

— Não sei, nem me importa saber — responde Juan com frieza. — Mas me ouça

até o final. Não queria sentir por ti, mas te propôs fazê-lo e o obteve. Agora, entende que não dirigirá a seu desejo por isso. Quando vier, terá que me aguardar, terá que me receber, terá que acudir quando te chamar buscarei-te onde quer que esteja. Isso é o

que ia fazer agora.

— Sem te importar o prejuízo que com isso me cause?

— Te cuide você de que não tenha que fazê-lo. Eu não fui procurar a sua casa... Você baixou a meu mar, a minha cova. Divertiu-te o selvagem, teve a curiosidade de saber como era o amor do Juan do Diabo. Pois bem, já sabe. Não é algo que possa

agarrar ou rechaçar como te agrado. Não serei seu brinquedo, não serei o boneco de nenhuma mulher. As mulheres se fizeram para os homens...

— Eu inverto os términos: opino que os homens se fizeram para as mulheres —

responde Aimée, sutilmente zombadora, e contendo com muita dificuldade sua irrefreável paixão.

— Os homens como eu mandam sempre, e a mulher que está a seu lado, mesmo que fosse uma rainha, não é mais que sua mulher. Entende?

— Entendo que é um tirano, um déspota, um bárbaro, um pirata e, além disso,

um ingrato. Mas eu gosto mais que ninguém. Quero-te!

74

Juan se tornou a beijá-la com ânsia, fazendo escorregar o fino manto negro com

o que Aimée se envolve de pés a cabeça, e elevando-o com sua larga e dura mão, pergunta:

— O que é isto?

— O disfarce que tive que me pôr. Havia visita em casa... Um convidado a comer que prolongou muito a sobremesa. Ainda não acabava de cruzar a porta, quando eu

corri para cá. Podiam lombriga de longe, mas o negro todo o tampa, todo o iguala e todo o dissimula.

— Hum... Quem era seu convidado?

— Qualquer. Um amigo de mamãe e de minha irmã.

— Como se chama?

— Que mais dá se não o conhece? Um antigo amigo da Mônica, que veio a vê-la pela tarde e ficou para o jantar. Ela entrou na cozinha e, com suas brancas mãos de abadessa, preparou uma sobremesa deliciosa.

— Ah, sim? Santa Mônica tem esses cuidados para alguém?

— Santa... A propósito, temos que arrumar uma conta. É possível que te tenha

atrevido a falar com minha irmã?

— Contou-lhe isso ela?

— Está indignada com sua grosseria, indignada com que eu trate a tipos como

você. Tive que lhe dizer que foi um pescador com o que eu conversava algumas vezes porque me interessava seu ofício: a forma em que se dirigiam o anzol e as redes... Fez muito mal, Juan. Minha irmã é má inimizade.

— Má inimizade? E o que pode me fazer? Tem influência lá encima? Ordenará ao mar que se trague meu navio? — burla-se Juan, na verdade divertido.

— É um monstro de egoísmo, Juan do Diabo. Seriamente não te importa nada, nada, o que possa me acontecer a mim por tudo isto?

— A ti é a que não pareceu te importar. Essas coisas se pensam antes. Aimée.

Quando eu me empenho em entrar em porto em pleno temporal, sei bem o que me jogo: o navio e a vida... E lá o inferno se os perder.

— Contigo não se pode...

— Não vais dirigir-me. Hei-lhe isso dito mil vezes... Bom, já vou. Zarpo ao amanhecer, e ficam muitas coisas o que fazer ainda.

— E está seguro de não voltar em cinco semanas? Isso é muito tempo...

— Eu também te jogarei; de menos, Aimée — afirma Juan com sinceridade.

— Mas não quererá sofrer, empenhará-te em me esquecer, e me esquecerá nos

braços de outras mulheres. Sei perfeitamente. Para ti há amores em todos os portos!

— E a quem lhe faltam? Mas não se preocupe... Voltarei. Logo e te trarei um

presente... Um presente digno de ti... Como para uma rainha.

Beijou-a com um beijo de fogo, beijo comprido com o que parece lhe sorver a vontade e a vida. Logo a separa de se, com suavidade...

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Agora é ela quem se prende a seu pescoço, ela a que lhe beija apaixonada,

louca, cega, como se ao jogar-se em braços daquele homem se afundasse em um abismo e nada lhe importasse, mas sim o gozo supremo em que se fundem a vida e a

morte...

— Achar-me-á quando voltar, Juan. Juro-lhe isso... Aconteça o que acontecer, estarei aqui, esperarei-te. Encontrará-me igual à agora... Encontrará-me assim

sempre que me busque, até quando tenha que afundar o mundo inteiro para isso...

— me anuncie ao senhor Pedro Noel. É tarde, mas tenho a esperança de que me receba. Diga-lhe que Renato D'Autremont tem absoluta necessidade de lhe ver.

No vestíbulo da muito modesto casita do que fora notário de seu pai, Renato dá seu cartão a um servente e fica pensativo, esperando. A pesar dele, há uma imagem

que lhe acompanha. Sem propor-lhe uma e outra vez cruza por seu imaginação aquela sombra que envolta no negro manto das noviças do Verbo Encarnado, visse cruzar o jardim para ocultar se entre as árvores. Nem um instante pensou que aquela mulher

possa ser outra que Mônica; mas, a que podia ir já de noite a aquele rincão do jardim, e por que aquela forma furtiva, aquele passo apressado, aquele correr quando ele logo

que cruzava a rua, como se tivesse esperado sua marcha, impaciente para correr lá?

— Renato! Mas é você realmente? — exclama Pedro Noel aproximando-se com alegria comovida. — Renato D'Autremont, me dá você a surpresa e a alegria maior que

tive em muitos anos.

— Me perdoe o inoportuno da hora. Já vejo que...

— Sim... Ia deitar-me; mas, em bata e tudo, baixei correndo. Dê-me você um

abraço, meu filho. Que alegria lhe ver! Que maravilhosamente se transformou! É você um real moço, caramba. Bastante parecido a sua senhora mãe, mas com todo o ar,

com toda a magnífica imagem dos D'Autremont. Ditoso o que não desmente a casta... Mas sente-se... Sente-se. Tomaremos algo. O que gosta? Genebra? Conhaque?

— Nada... Nada, meu amigo. Vim só a conversar um momento.

— Pois esse bate-papo terá que celebrá-la, e também sua volta a Martinica. Faz já vários dias, verdade?

— Quase um par de semanas...

— Agradeço-lhe que tenha vindo tão logo a ver-me, e já sei o que vamos tomar. — Pedro Noel se levantou e, mancando um pouco, levanta a voz para chamar: —

Serapio... Serapio! Prepara dois runs-ponche com todas as da lei. — Logo, retornando onde se encontra Renato, exclama: — Não vai você a me desprezar a bebida nacional, verdade?

— De maneira nenhuma...

— Renato, o pequeno Renato que retorna feito todo um senhor engenheiro. Mas

que bem está você, Renato! Encontrará-me velho, acabado... E, além disso, pobre. Quase, quase pobre de solenidade. Minha carreira é como a política: crescem pouco nela os homens honrados, e eu não pude me curar dessa enfermidade hereditária.

Honrado foi meu avô, honrado foi' meu pai, e se eu tivesse tido um filho, estou seguro de que seria mais estrito e mais pobre que eu, o qual é quase, quase, impossível — ri jovialmente.

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— Se seu mal não for mais que esse, logo vamos remediar o tenho muito

trabalho para você — oferece Renato, afetuoso e magnânimo.

— O que? Como? Espero que não você ande envolto em um enredo de papéis —

se alarma o bom Noel.

— Não ando envolto em nada, mas acredito que há muitas coisas que arrumar e que você pode me ajudar.

— Para isso, conte comigo sempre e a qualquer hora.

— Acaba de me demonstrar isso e, além disso, já me dizia isso o Coração. Por algo chamei com tanta confiança às portas de sua casa. Não sei por que tinha a

segurança de que teria que receber-me a qualquer hora, e abusei de sua bondade. A verdade é que logo que estive no Saint-Pierre. Passei estes dias em Campo Real ao

lado de minha mãe.

— E a propósito, como está à senhora D'Autremont? — interessa-se, sempre atento, o velho notário.

— Com seus eternos achaques, mas melhor que nunca, parece-me.

— Sabe ela que você vinha a me visitar? — pergunta Noel com manifesta

vacilação.

— Bom... Não exatamente...

— Mas deu sua aprovação? Quero dizer... Está conformada com essa ajuda que,

segundo você, tenho que lhe emprestar?

— Está-lo-á quando o souber, naturalmente. Logo que tive tempo de falar com ela de dois ou três assuntos, e são tantos os que temos que tratar...

O notário Noel olhou para outra parte, enquanto seu único servente põe entre ambos os copos de rum-ponche em uma bandeja de estanho. É a bebida típica das

pequenas Antilhas Francesas, doce e aromática como a terra que a brinda. Como sete anéis de cores, as sete raias dos sete distintos licores que ficam nela sem mesclá-los: o verde esmeralda da hortelã, o guloso marrom da nata de cacau, o vermelho rubi do

coração, o amarelo topázio do chartreuse, o branco transparente do anis, a opala clara do beneditino e o dourado do rum perfumado e quente. Salvando com um gesto sua

confusão, o ancião levanta seu copo:

— Por você, meu amigo. Por você e por sua feliz volta a estas lareiras.

— Por você, e por nossa Martinica, Noel.

— Nossa? Dela, meu filho, sua — comenta Noel em tom jovial. — Acredito que, pelo menos, na metade de sua extensão territorial, e acaso fico curto. Mas não vale orgulhar-se nem ruborizar-se. Até agora não tem você o mérito do bom nem a culpa do

mau.

— Mas aceito ambas as coisas, como aceito meu sobrenome.

— Assim se fala. Eu gosto de sua firmeza. Sim tenho que lhe ser franco, causa-me você uma surpresa muito grato sendo como é: D'Autremont... D'Autremont de pés a cabeça... E acaso o melhor dos D'Autremont.

— Humildemente, sem jactância, aspiro a merecer essas palavras. Mas antes de entrar em matéria mais complicada, necessito de seus lábios uma informação clara,

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fidedigna, imparcial. Tenho entendido que, por sorte, não é difícil. Trata-se do Juan...

Juan do Diabo. Acredito que seguem lhe chamando assim, e agora com verdadeira razão.

— Sim, Renato. Por desgraça, nosso Juan do Diabo lhe tem feita honra a seu mote, que hoje é tristemente célebre nos bairros baixos da cidade. Não sei se saberá que nos desapareceu mesmos dias em que lhe embarcavam para a França, e que

todas minhas investigações foram em vão. Durante um bom tempo não se soube nada dele. Logo, tive eu que me ausentar... Assuntos de trabalho e de família me levaram a Guiana, onde permaneci vários anos. Quando retornei, já corria o rumor... Surgiram

vários pequenos escândalos... Então, busquei-lhe fui ver lhe...

— E o que? — quer saber Renato, vivamente impressionado.

— Não havia absolutamente nada o que fazer. Juan não quis lombriga nem me escutar. Nada me devia, é certo; nem sequer consideração. Em realidade, ninguém fez nunca nada por ele, quando ele podia necessitar de alguém. Hoje é dono de sua vida,

rude e selvagem como um pirata dos séculos passados. Tem um barco sinistro, uma espécie de balando atrelado, por não sei que concessão estranha que conseguiu do

Governador da Guadalupe, com o que toma parte assim que negocio turvo, assim que enredo de contrabando ou de clandestinagem vem às mãos... Por temporadas é como um terremoto o tal Juan. Não há rixa de botequim, não há briga nem extorsão, nem

dor nem escândalo, no Saint-Pierre, no que não ande mais ou menos enredado, mas com uma sorte ou uma habilidade tão endiabradas, que, todavia não pôde ninguém lhe pôr frente a um tribunal.

— Incrível — murmura Renato, pensativo. — Juan... Juan. .E pensar que meu pobre pai...

Pôs-se de pé sem terminar a frase e dá uns passos pela vetusta estadia, franzido o cenho, o gesto teimoso e preocupado... Pedro Noel se aproxima, apoiando a mão em seu braço, e trata de lhe aconselhar:

— Neste mundo há coisas que não têm remédio, e essa é uma delas. Se quiser ouvir meu conselho, esqueça-se do Juan, Renato. Esqueça-se do Juan...

— De onde vem?

— Né? O que?

Surpreendida, tremendo. Aimée se ergueu e dá um passo atrás ante a mesma

porta da quarto de sua irmã, aonde silenciosamente chega para deixar cair sobre uma cadeira aquele manto negro no que se envolveu duas horas antes. Há-lhe aceso o brusco elevar-se da cabeça de Mônica; surpreende-lhe também a mão crispada de sua

irmã sujeitando seu braço, mas é muito ardilosa, muito mundana para deixar ver essa surpresa... E sorri, sorri conseguindo dar a sua voz o tom frívolo das palavras sem

importância:

— Assustei-te? Pensei que dormia...

— Você é a que te assustaste.

— Eu? Por quê? Que tolice... Entrei A...

— A deixar aqui meu manto, já o estou vendo. Por isso te pergunto de onde vem... Para que tomou. Quer me responder?

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— Naturalmente. Não há por que adotar esse tom dramático. Venho,

Simplesmente, do jardim, de tomar um pouco o ar... Levava horas me afogando... Detesto as visitas longas, sob o abajur da sala, com os olhos de mamãe e os teus

cravados em cima como se queriam me fulminar assim que o sorrio ao Renato.

— Ninguém te reprovou jamais sorrir ao Renato — replica Mônica com firmeza agressiva.

— Como quer; não vou discutir. É muito tarde e mais vale que as duas tratemos de dormir. Aqui tem seu manto, e perdoe-me por havê-lo tomado sem sua permissão.

— Para que tomou? Como estava te afogando de calor...

— Bom, filha, me dispense — se desculpa Aimée de mal falante. — Não tomarei a liberdade de usar para nada seus trapos. Não voltarei a fazê-lo mais. Está conforme?

Pois durma em paz, e boa noite. A outras as suaviza o convento; mas te tornou insuportável. Mais ainda que antes, que já era o bastante...

— Aimeé — protesta Mônica com uma recriminação na voz.

— Boa noite, irmã — aviso Aimée, afastando-se. — te Tranqüilize e durma. Não tenho vontades de discutir mais...

Mônica ficou imóvel, com o negro manto entre as mãos, olhando inquieta e desconfiada para o lugar que através da porta seguiu sua irmã. Depois das horas de oração e de lágrimas se sente mais tranqüila, mas seus dedos apalpam o enrugado

manto. Está frio e úmido, tem o áspero aroma da praia, cheira a salitre, a iodo, ao perfume selvagem e as algas, e, sem saber, por que, pensa no rosto varonil que visse aparecer depois dos ferros da janela, naquela frente altiva, naqueles olhos audazes,

naquela boca sensual, e murmura:

— Esse homem... Esse homem horrível... Para que veio esse homem a esta casa?

Para que procurava a minha irmã? Para o que. Deus Santo?

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CCapítulo 14

As rajadas violentas que empurra o vento desde mar fazem girar o abajur de

petróleo que pulveriza como em um bato as asas, sua luz amarelada e trêmula sobre as cabeças dos jogadores reunidos em um botequim do porto do Saint-Pierre.

— Dá cartas! Vou com tudo o que tenho para ver a dama de diamantes. Por que não acaba das jogar? — apressa Juan ao rude homem que se encontra sentado frente a ele.

— Aguarda... Aguarda, porque meu resto não é igual ao teu. Tem que completar — observa o jogador contrário.

— Retira o que sobra. Não tenho mais.

— Primeira vez que te ouço dizer isso, Juan do Diabo. Não tem mais nem de onde tirá-lo?

— Voto a Satanás! Você arrumado o Lucifer contra sua barco! Os vivos rostos dos jogadores se inclinaram mais sobre a mesa imunda, de mal unidas pranchas, e os robustos punhos se fecham em gesto violento. Estão na última mesa do pior botequim

do porto, ninho de jogadores profissionais e de prostitutas, de contrabandistas e de bêbados... Ao redor da mesa, aonde dois brancos o jogam tudo, há rostos de cor de

betume e de cor de âmbar, cabeças lanzudas de africanas e mechas murchas que caem sobre as testa bronzeadas dos hindus... Negros, chineses, índios, mulatos... É o fermento do Saint-Pierre, a espuma amarga e venenosa que vai ficando como resíduo

de todas as impurezas, de todos os vícios, de todas as misérias, de todas as degenerações humanas.

— Aceita ou não aceita? — insiste Juan.

— Meu resto vale mais que o teu — responde com teima seu rival.

— Por isso chá nivelo a aposta. Meu Lúcifer vale mais que seu barco

desvencilhada. Mas não me importa, aceito-a. Joga as cartas! Ou é que tem medo depois de me desafiar?

— Os navios não podem jogar-se assim... Terá que trazer papéis...

— Ao inferno os papéis! Há dez testemunhas... Meu barco Lúcifer contra seu barco

O círculo se estreitou mais. Já os olha erros estão quase em cima daqueles dois homens dispostos a jogar-lhe tudo à imunda carta que saia. Ninguém reparou na fina figura de um cavalheiro que, depois de observar de longe a cena, aproxima-se muito

devagar. É jovem, até está por volta dos trinta anos, e o parece muito mais por seu rosto imberbe, por seus cabelos loiros e murchos, por seus olhos claros, vivos e inteligentes como os de um moço precoce. Um velho marinheiro que lhe acompanha

assinalou ao Juan, e a ele se aproxima para ficar lhe olhando com expressão indefinível...

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— Vai a aposta! — decide-se por fim o rival do Juan.

— Então, joga a última carta. Pronto

O competidor do Juan do Diabo se há posto muito pálido. Suas mãos hábeis, de

comprimentos dedos, suas mãos de jogador profissional, de ardiloso jogador com vantagem, baralham muito depressa o largo maço de naipes, passando os de uma mão à outra com destreza inigualável. Diria-se que os acaricia que os enfeitiça que os

domina, e ao fim, rapidamente, vai arrojando-os um a um, formando dois montões, enquanto cantarola:

— Dois de trevo... Seis de coração... Quatro de diamantes... Cinco de espadas...

Uma dama... Mas de trevo... Rei de espadas! Ganhei!

— Mentira! Fez armadilha! — uiva Juan. Rápido como um raio, a faca do Juan

tem caído, cravando na mesa a mão do trapaceiro, que fica cego de dor e de raiva... Um de seus companheiros se lançou sobre o Juan, este o derruba de um golpe brutal... Forma-se uma bagunça de golpes e de gritos:

— Tem razão! É um trapaceiro! — afirma um.

— Mentira... Mentira! Não fez armadilha! — rebate outro.

— A polícia! Logo! A polícia! Corre Juan, vem à polícia!

— Sujeitem-no! Não o deixem escapar! Que não saia! A confusão é indescritível, mas Juan não perdeu um instante. A punhados mete em seus bolsos o dinheiro que o

pertence, derruba a mesa de um golpe, salta sobre o corpo cansado de seu rival, e vontade a janela do fundo, que dá sobre o mar.

— Quieto! Se der um passo mais, cravo-o! Quieto, policial! — ameaça Juan a um

homem que lhe seguiu, interpondo-se em sua fuga.

— Guarde essa faca ou disparo! — ordena Renato; pois não é outro o homem

que Juan tem frente a ele.

— Aponta bem, porque se errar... Haverá um guarda menos! Tira! Por que não atira?

— Porque não venho a te deter, Juan. Venho como amigo. A surpresa tem feito vacilar ao Juan, mas a aguda ponta de sua faca, manchado de sangue, aproxima-se

mais ao peito do Renato, que em gesto decisivo afunda em seu bolso o revólver com que lhe ameaçava, e o olha aos olhos com olhar intenso, lhe buscando a alma.

— Não sou seu inimigo, Juan, não estou tratando de te deter.

— Não te aproxime, por que...

— Já não tenho a arma na mão. Guarda você a tua e falemos.

Estão ao bordel farallón de rochas. Longe, entre os barracões do porto,

confundem-se as luzes e os gritos do botequim que ambos acabam de abandonar. Atalho a pico, a costa acanelada fecha o passo ao Juan, mas a lua banha totalmente

com seus últimos raios a nobre figura de Renato, e, depois de um instante de vacilação, o dono do Lúcifer abate a arma, ao tempo que indaga:

— Falar? Não é polícia nem amigo disso... Trapaceiro?

— Não, Juan do Diabo.

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— Para que correu detrás de mim? Quem demônios é?

— Tem má memória, Juan. Não acredito ter trocado tanto. Acalme-te e me olha bem. Não tome cuidado, porque não lhe perseguem. Não era certo que a polícia

chegasse. Não está acostumada a ser tão oportuna. Alguém quis acabar a rixa, E...

— Não chegou à justiça? Esse cão me vai pagar isso.

— Já lhe pagou isso. Perdeu a aposta e o dinheiro, deixaste-o inútil de uma

mão, quem sabe por quanto tempo, e ainda não te parece o bastante?

— Já vejo que não é polícia, mas sim frade. Mas te guarde seu sermão.

— Não te interessa recordar quem sou Juan?

— Pelos traçados, um que quer me despenhar, mas...

— Sou Renato... Renato D'Autremont — lhe atalha este, mantendo sua

serenidade. — Tampouco meu nome te diz nada? Não recorda? Uma noite, um arroio, um moço a quem lhe levou as economias e o lenço, e a quem baixou sonhando fazendo sua primeira viagem por mar... Sim... Sim recorda... Vai recordando...

Sim, Juan recorda. Por um instante lhe olhou de outro modo, como se não lhe olhasse ele, mas sim aquele moço desgraçado e áspero que quinze anos antes

escapasse de Campo Real. Deu um passo para o Renato, mas de repente parece reagir, outra vez trocam seu gesto e seu gesto, outra vez volta a ser o rude capitão de um malandro pirata.

— Não tenho tempo para essas criancices. Zarpo ao amanhecer e não me entreterá para que me agarrem. Outro dia que jogue com mais sorte, devolver-te-ei seu punhado de reais...

Juan fugiu que o Renato, lhe esquivando, saltando para o lado em que os farallones terminam em uma estreita praia, e desaparece atrás daquele salto incrível...

E como antes de menino, frente ao arroio fervente, Renato D'Autremont o vê afundar-se nas sombras, como se a escuridão o tragasse...

— Meu querido Renato... Você outra vez? Eu o fazia caminho de Campo Real —

se estranha Pedro Noel.

— Efetivamente, devia ter empreendido ontem à noite o caminho, mas não o fiz e

empreguei umas horas em desobedecer seu conselho.

— Procurou você ao Juan, né? Estava seguro de que o faria. É muito estranho que um D'Autremont atenda os conselhos de ninguém.

— E o encontrei. Pude comprovar, por mim mesmo, que seus informes eram exatos. Achei-o em uma imunda taberna do porto, presenciei uma de suas rixas, vi-lhe defender seus diretos com a lei do mais forte e abrir-se passo entre inimigos...

Lamentável, é certo; mas lhe confesso que não pude evitar o lhe admirar.

— Você a ele?

— Paradoxal verdade? É curioso, mas há nele algo estranho, uma força estranha que arrasta irresistível simpatia...

— Sim... A vida tem coisas estranhas e casualidades curiosas — afirma Noel,

pensativo. — Eu acredito que há uma força misteriosa, ignorada, que nos governa sem que nos demos conta... Providência, casualidade, fatalidade... Falou você com o Juan?

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— Tratei de falar e não quis me escutar. Acredito que guarda para mim o mesmo

sentimento de absoluto desdém que quando tinha doze anos.

— É provável, embora debaixo desse desdém aparente haja, sem dúvida, algo

mais, muito mais. Mas voltemos para a casualidade. Neste momento acabo de me inteirar que nosso turbulento Juan foi posto à disposição das autoridades... Detiveram seu navio a ponto de zarpar. O homem a quem feriu em uma rixa de botequim perdeu

muito sangue e está grave. Há muitas testemunhas de que Juan perdeu uma aposta e não quis pagá-la. O devedor ferido lhe acusa de intento de assassinato.

— Mas não foram assim as coisas! — assegura Renato com veemência.

— Quando estes tipos escorregadios, que sempre saem bem sacados, caem sob o peso da lei, os juízes revistam cobrar todas as velhas contas em uma sozinha.

— Considero-o injusto! — protesto Renato, e em seguida, com gesto decidido, exclama: — Noel, você é amigo de todos: juízes, autoridades, magistrados... Ofereceu-me sua ajuda e vou usar a imediatamente. Quero, preciso ajudar ao Juan!

Pedro Noel olhou ao Renato com certa surpresa sobressaia e logo com indisimulado agrado que destrói o gesto falsamente severo com que tivesse querido lhe

responder. Parece Como se de repente estivesse a ponto de lhe estreitar as mãos, de lhe dar as obrigado. Em seguida recolha velas, com a prudência dos que viveram muito, para sair do passo com uma exclamação corriqueira:

— Impulsivo né? Não desmente você a casta. Mas meu conselho foi exatamente o contrário.

— Me perdoe que uma vez mais desdiga seus conselhos. Conto com você?

— Naturalmente, moço. Até onde alcancem minhas pobres forças. Mas lhe advirto que não vai ser fácil nem barato.

— Não me importa o dinheiro que custe, Noel.

— Pois, em marcha.. — finaliza o notário, gratamente impressionado.

— Aimée... Assustei-te?

— Naturalmente.. . Anda sem fazer ruído... Com surdo rancor, Aimée olhou os pés de sua irmã, calçados de suaves e silenciosas sapatilhas de feltro, e olhou depois

com expressão interrogadora o rosto belo e pálido que emolduram as toucas branquíssimas. Estão fora dos limites o jardim da casa, ao bordo dos farallones de rochas, de onde por um abrupto e estreito atalho se baixa até a praia próxima. O sol

da manhã de maio cai como um banho de ouro e fogo sobre a paisagem realmente soberba, que se divisa da pequena eminência. A um lado da cidade, o campo;

E fechando a paisagem, os três Montes gigantescos. Ao outro, a pequena baía

redonda, as rochas abruptas contra as que eternamente se estrela o mar, e afastando-se da cidade, a costa bravateia semeada de salientes, gretas e terrenos baixos, praias

diminutas e promontórios que entram ou que surgem improvisadamente, como um molho de facas negras, entre as águas azuis e espumosas. Como sempre que se acham a sós, o olhar profundo, interrogadora e penetrante da Mônica parece

incomodar a Aimée, e sua suave palavra a estremece de mau humor.

— Surpreendeu-me que te levante agora tão cedo... Madrugar não entrava em seus costumes, Aimée.

83

— Os costumes trocam com freqüência. Agora madrugo e eu gosto de estar

sozinha.

— Já vou deixar-te, não se preocupe. Vim porque mamãe me pediu que te

chamasse. Deseja começar a dispor a bagagem e... Mas, o que te passa?

— Absolutamente nada — se impacienta Aimée. — olho o mar. Também vais criticar-me porque Olho ao mar?

— Não. O mar é muito formoso. Mas segue surpreendido... Nunca pensei que lhe interessassem as paisagens. Que buscas no mar? De repente te puseste muito pálida?

— Se te interessar tanto sabê-lo, direi-te que a vela de um navio.

— Qual? A daquele balando? Não está desdobrada...

— Já o vejo, não sou cega. O Lúcifer não zarpou nem tem traçados de zarpar.

— O Lúcifer? — se estranha Mônica. — Se chama assim esse navio?

— Sim, irmã, chama-se o Lúcifer, e pode te benzer se crie que por nomeá-lo vai

levar-te o diabo — responde Aimée, desanimada e com certo rancor.

— O Lúcifer — repete Mônica, pensativa. — É um belo nome, ao fim e ao cabo.

Além disso, guarda um grande ensino. Lúcifer era o mais formoso dos anjos e perdeu o céu por um gesto de soberba. Seu caso é mais freqüente do que parece. Que fácil é comprometer, por uma ligeireza, por um capricho, todo um paraíso de felicidade!

Pensaste nisso, Aimée?

— Sabe que é muito cedo para escutar parábolas?

— Não é uma parábola, mas sim um conselho.

— Também, é muito cedo para escutar conselhos ou máximas morais.

— Sinto muito. Agora não tinha a menor intenção de amoralizar-te. Mas, o que

te ocorre? O que te passa? Você não é quão mesma com os olhos cheios de lágrimas me jurou que Renato D Áutremont era sua vida inteira, que foi capaz de matar e de morrer para conservá-lo... Mudaste... Mudaste muito. Neste momento, embora me

negue isso, está fora de si.

— Neste momento, estou-te aborrecendo! — salta Aimée, exasperada. — por que

tem que me perseguir e me perseguir da maneira que o faz? É como minha sombra. Uma sombra agoureira que não sabe me prognosticar mais que desgraças!

Neste momento, uma barco carregada de soldados acaba de aproximar-se ao

flanco do Lúcifer, e Aimée dá um passo até o bordo do escarpado, trêmula de uma emoção, de uma angústia que não lhe é possível conter mais. Mas a mão da noviça se aferra a seu braço com força insuspeitada, obrigando-a a lhe emprestar atenção,

quando volta a interrogá-la:

— O que te passa? O que acontece esse navio?

— É o que eu queria saber.

— Queria saber...? Por quê? Por que te importa tanto?

— Se soubesse como te odeio neste momento... Deixe-me em paz!

84

Soltou-se bruscamente daquela mão que a detém, afastando-se rápida. Um

instante vacila, mede a distância que a separa da praia, dá uns passos como se fosse descer pelo atalho estreito, lavrado a pico entre as rochas, mas se detém, vira em

redondo e põe-se a correr para a casa próxima...

Mônica a viu afastar-se, e volta logo à cabeça para olhar ao mar... O Lúcifer... Apesar da distância, vê de longe a quão soldados chegam já à coberta, esparramando-

se para liberar um combate. Mas nada indica resistência; nenhuma forma humana, além daquelas que vestem uniformes azuis, agita-se sobre as lisas pranchas. Recolhidas as velas, arremessou a âncora, com seu arboladura grafite de vermelho e

seu casco de negro brilhante, o Lucifer só pode associar-se, na imaginação da Mônica, com aquele homem de largura assumo nu, olhar insolente e sorriso audaz.

— O Lúcifer...

Repetiu o nome para recordá-lo, para gravá-lo em sua memória, como gravado está para sempre aquele rosto só visto uns instante atrás das grades de uma janela.

Logo, muito devagar, volta ela também ao casarão dos Molnar.

— Espere aqui um momento, Renato. Deixe-me que eu seja o primeiro em lhe

falar. Aguarde um momento...

Renato D'Autremont se deteve, obedecendo ao velho notário, sob o maciço arco de pedra que dá acesso ao corredor das celas. É um lugar negro, sujo, sombrio,

apenas ventilado pelas muito estreitas janelas abertas a modo de aspiras nos largos muros que olham ao mar. Entranha de um castelo outros séculos, que é quartel, fortaleza e cárcere... Da sombra que o oculta, Renato olha ao Juan, duro, erguido,

arrogante, sem pressas por cruzar a porta que lhe franqueia, com um leve sorriso desdenhoso nos lábios quando Pedro Noel se aproxima o bastante para ser

reconhecido, enquanto se afasta o carcereiro.

— Pode sair Juan — convida Noel. — navegaste com mais sorte que Sebastián El cano, que deu a volta ao mundo em redondo, em um navio de vela, e viveu para

contá-lo... Não entende? Está livre...

— Por quê? Por quem? — indaga Juan com visíveis gestos de estranheza.

— Por alguém que não reparou em moléstias nem em gastos com tal de te tirar do apuro. Não, eu não. Nem tenho dinheiro nem acredito que mereça sair tão bem sacado de uma aventura semelhante. Por mim, podia te haver apodrecido neste rincão

e haver ficado sem navio. E muito perto estiveste que te passe todo isso. Já pode lhe agradecer a sua boa estrela...

— A minha boa estrela não agradeço nada, mas a você sim. Noel. Você é o único

homem sobre a terra a quem eu tenho que lhe agradecer algo... E o único que me dirigiu uma boa palavra quando eu era um moço.

— Eu? Eu? — foge Noel com falso mau humor. — Está totalmente equivocado...

— Eu não gosto de retornar ao passado, mas vou voltar, por um instante, para recordar o último carro de uma caravana onde, como uma animália caçada em rede,

levavam a um menino selvagem... Um moço tão duramente tratado pelos homens e por. A vida, que quase não era um ser humano. Era quase insensível, os golpes ricocheteavam em seu corpo como os insultos em sua alma... Não tinha mais lei que

seu instinto... Sabia que comer era necessário e, para comer, trabalhava ou roubava... Mas naquela viagem, naquela longínqua e extraordinária viagem, o menino

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tinha medo. Um medo que era angústia e espanto por haver sentido a morte muito

perto pela primeira vez, um medo ao mundo estranho ao que era levado pouco menos que à força...

— Bom... Bom... Vamos deixar isso, Juan — pretende atalhar o notário, comovido muito a pesar dele.

— Em uma aldeia se deteve o carro — persiste Juan, fazendo caso omisso à

súplica do velho Noel. — O chofer e os criados foram até um posto vizinho para satisfazer sua sede e sua fome. De longe, alguém chamou o notário. Ninguém pensou na figura humana, muito orgulhosa para pedir, mas o notário desceu do carro,

comprou um grande cartucho de laranjas e o pôs nas pequenas mãos imundas, com um sorriso. Era a primeira vez que alguém sorria a esse moço, como se sorri a um

menino. Era a primeira vez que alguém punha um presente em suas mãos. Era a primeira vez que alguém comprava para ele um cartucho de laranjas.

Profundamente comovido, lutando em vão por não deixar ver sua emoção,

escuta Noel as palavras do Juan, tão inacreditavelmente sinceras e tenras, tão tristemente delatoras da dor e o abandono de sua infância... Várias vezes o notário

tentou lhe fazer calar, com o rubor do homem honrado que recebe um pagamento enorme por um favor insignificante; mas Juan segue falando, a larga mão apoiada no débil corrimão do cocho os duros olhos audazes estranhamente agradecidos, e da

penumbra em que o escuta, sob o arco em trevas, Renato D'Autremont recolha cada uma daquelas palavras, como se os pecados daquele mundo, em que ele obteve todos os privilégios, pesassem repentinamente sobre sua alma. E com brutalidade, mas em

tom afetuoso, exclama, adiantando-se:

— Juan... Juan...

O rosto do Juan se transformou, desvanecido a visão infantil, quebrado o encanto, e outras são sua voz e seu olhar ao indagar:

— O que é isto?

— O senhor D'Autremont... Deve-lhe que se haja arregalado todo — esclarece o velho notário. — É o amigo que se incomodou em te ajudar.

— Pois o sinto muitíssimo — responde Juan com frieza. — Não era preciso que se tomasse esse empenho. Minha prisão era injusta, e eu...

— Sua prisão não era injusta, e te haveria apodrecido aqui dentro — lhe atalha

Pedro Noel.

— Quer você me dizer que o senhor D'Autremont há subornado às autoridades em minha honra? Tenho entendido que também isso é um delito. Se tivermos que

guiamos por essas leis que você pretende que eu respeite, também o senhor D'Autremont deve estar entre grades. Certamente, podem justificá-lo legalmente com

meia dúzia de palavras cerimoniosas. Meu delito era dolo, fraude, descumprimento de palavra, intento de assassinato. O dele pode chamar-se cumplicidade por ajuda a um criminoso, suborno a funcionários públicos e abuso de autoridade moral. Se rebuscar

você um pouco em seu código, notário Noel, saem-lhe vários anos de cárcere...

Sem separar os lábios, Renato lhe observa, acaso trata de descender, de chegar até o fundo daquela alma, como lhe Dêem em sua viagem aos infernos, e escorrega,

sem lhe ofender, todo o sarcasmo amargo que transborda nas palavras do Juan.

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— Então, você entra e eu saio — proclama Juan em tom irônico.

— Basta de brincadeiras estúpidas — curta Noel com severidade

O senhor D'Autremont pagou a indenização que exigia o homem a quem feriu,

para retirar sua acusação, e liberou seu navio da ordem de embargo que sobre ele pesava.

— Caramba! Mas todo isso deve lhe haver custado um bom dinheiro. Pelo

menos, o sangue de dez escravos — persiste Juan em seu tom irônico.

— Eu não tenho escravos, Juan — esclarece Renato, conciliador — e gostaria que falássemos como amigos, como irmãos, como meu pai me pediu que...

— O que?

O gesto do Juan foi tão violento, seu olhar há brilhado com tão atroz relâmpago

de velho rancor, que a palavra fica trunca nos lábios do Renato. Por um instante parece que fora a prorromper em injúrias, mas logo cala, cala, Limitando-se a sorrir com sorriso de hiél. E mordaz deixa escapar a recriminação:

— Seu senhor pai. Francisco D'Autremont e da Motta-Valois... Sangue de reis, né?

— Não sei que tratas de me dizer com isso, Juan.

— Absolutamente nada — ri desagradavelmente Juan. — mas se meu navio estiver livre graças a sua generosidade, devo sair quanto antes. Agora tenho que

trabalhar mais que nunca. Sou devedor de uma quantidade importante. Um bom montão de bolsas de ouro devo cobrar esse canalha trapaceiro pelo adorno que lhe pus na mão e pelas gotas de seu porco sangre. Um bom punhado de onças que,

naturalmente, devolverei-lhe em quando possa senhor D'Autremont. A maior brevidade, e unido a nossa velha dívida: o famoso lenço de reais que serve primeira

campanha...

— Bom, Juan, o teu é... — intervém o velho Noel.

— Deixe-o falar. Noel — lhe interrompe Renato com serenidade. — Que diga o

que queira. Depois vai ter que escutar-me.

— Sinto muito, mas não me interessa o que um senhor como você possa me

contar. Não tenho tempo para escutar historias. Desculpem-me... E muito boa tarde.

Juan se afastou com passo rápido pelo comprido corredor em cujo fundo se abre uma porta sob a luz do dia. Um momento se detém deslumbrado quando o sol lhe

banha; logo se torna à frente o gorro de marinho e cruzamento altivo ante os sentinelas que guardam a entrada.

— Não é como para voltar a pedir que o encerrem? — irrita-se o bom Noel. —

Não merece esse cárcere dê a que se empenhou você em liberá-lo? Espero que compreenda agora a razão de meus conselhos. E se com toda justiça está você

indignado ou arrependido de havê-lo ajudado...

— Não, Noel. Está você de ter comprado aquele cartucho de laranjas?

— Como? Ouviu você...

— Sim, Noel. E penso quão mesmo você certamente está pensando, apesar de sua indignação exterior: que não pode ser mau, essencialmente mau, o homem capaz

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de recordar, como ele recorda o primeiro sorriso e o primeiro presente que foi

outorgado... Enfim, tudo saiu como foi pedido...

Deixaram atrás o sombrio corredor do cárcere e, como ao Juan, deslumbra-lhes

um instante a corrente de sol que banha o largo pátio: ao longe, pela ruela inclinada, alta à frente e firme o passo, afasta-se Juan do Diabo.

CCapítulo 15

— Aimeé se sente mal... Dói-lhe a cabeça e teve que recostar-se. Roga-te que a

desculpe.

A senhora Molnar tem envolto em um olhar de profunda gratidão a sua filha

maior, de cujos lábios acaba de sair à mentira que desculpa a sua irmã, enquanto contendo seu gesto de desgosto, Renato põe nas mãos da mãe o buquê de flores e a grande caixa de bombons que acaba de tirar das do servente que lhe acompanha ao

que despede com um movimento de cabeça.

— Dona Catalina, quer lhe dar você isto em meu nome a Aimée?

— É obvio filho, é obvio. Mas que flores mais linda! São uma preciosidade. Quer

as pôr em um floreiro, Mônica? Para isso tem você mais graça que ninguém.

— Porei-as em água e a deixarei a Aimée o gosto de levar ela mesma nos

floreiros de seu quarto.

Um momento tremeram as mãos da Mônica ao tomar aquele ramo, acaso menos branco que suas toucas de noviça, que suas pálidas bochechas, e o oprime até sentir

os espinhos.

— Aguarda Mônica — roga Renato com certo acanhamento. — Se Aimée estivesse um pouco melhor e me deixasse vê-la por um minuto nada mais... Se não lhe

incomodasse muito sair um momento... Digo, se não sofrer muito...

— Vou perguntar se o Estava mau, mas vou a perguntar — acessa Mônica,

afastando-se.

Catalina e Renato ficam sozinhos e silenciosos por uns instantes na velha sala da casa dos Molnar, abstraídos cada um em seus próprios pensamentos, até que a voz

da Mônica , que retorna, devolve-lhes à realidade:

— Aimée te roga que a desculpe. Não se sente com ânimos de levantar-se.

— Tão mal está? Se me permitirem isso, em um momento vai meu criado e lhe traz para o doutor Duval.

— Por Deus, não é para tanto. Verdade, Mônica? — explica dona Catalina com

verdadeira angústia.

— Em efeito, Renato, não é para tanto — assegura Mônica. — Aimée estará bem logo; se seguir mal, eu mandarei pelo médico do convento. Mas não se preocupe,

porque não tem nada... Ao menos, espero que não seja nada.

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Tornou-se para sua mãe com um olhar que pretende tranqüilizá-la,

aproveitando um momento em que Renato, demasiado impaciente, dá uns passos pela larga sala para voltar depois a insistir:

— Não sabe como sinto não vê-la, embora só seja um momento, antes de partir, Mônica.

— A ausência será curta se voltar por nós na sábado.

— Reconheço que é curta, mas me faz eterna, e como nunca esteve apaixonada... Enfim, me despeça de sua irmã, quer?

— por que não dá uma volta e volta filho? — intervém Catalina. — Acaso neste

tempo...

— É o que estava pensando. Vou até o centro por um último encargo de mamãe

e antes de sair voltarei a passar por aqui. A verdade é que não estou tranquilo partindo enquanto Aimée fica má. Se não ter melhorado, com permissão de vocês trarei o médico. Perdoem-me que tome essa liberdade, mas a quero muito. Ri por mim

se quiser Mônica. Você certamente pensará que chego ao pueril em minha ternura...

— Não penso nada, e embora o pensasse o que importa? O mundo, para ti,

chama-se Aimée, verdade?

— Isso certamente, e não acredito que me possa reprovar isso, mas me doeria lhe parecer risível a uma irmã como você, que eu respeito à inteligência tenho em

tanto.

— Deve me ter por um crítico muito severo, Renato.

— Tão severo como o leio em seus olhos, Mônica. E não sabe o que me dói não

ser santo de sua devoção. Mas, enfim, paciência. Agora sim me despeço... Até logo...

Renato D'Autremont saiu que a casa, onde ficam sozinhas mãe e filha. Catalina

Molnar, com a angústia refletida no rosto, interroga a Mônica:

— Viu-a? Encontrou-a? Onde estava? Pôde avisar? Estará aqui para quando ele volte?

— Não sei absolutamente nada, mamãe. Não está na casa. Não sei onde foi. Mas vou procurar a... Vou procurá-la por todos os lugares e, como não a encontre, direi a

verdade a Renato: Que sai de casa há todas as horas!... Que você nunca sabe onde está!

— |Aimée... Aimée...! 0h...!

Mônica se deteve, retrocedendo logo um passo, presa. Pelo atalho estreito,

aberto em rocha viva, que é o caminho da próxima praia, surgiu a figura do Juan, acaso mais arruda e descuidada que nunca. Este não perdeu mais que uns minutos

para chegar até seu navio e ver de longe o movimentos de quão soldados voltam para bote que os levasse. Logo que cruzou umas palavras com seu segundo, lhe mandando reunir a dispersa tripulação, e correu em busca daquela mulher que lhe obceca, foi a

procurá-la, quase surpreso do impulso que o move assim, mas se detém e sorri... Sorri mascarando burlonamente seu desgosto, acaso divertido ao ver que as bochechas da

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noviça se voltam até mais pálidas, que toda ela se estremece a um vento de emoção,

tensa e sensível baixo aqueles hábitos que em vão querem ser uma barreira contra o mundo, e pergunta com ironia:

— O que lhe passa. Santa Mônica? Anda perdida por aqui?

— Estou procurando a minha irmã. Você poderia me dar alguma notícia dela? Sabe onde está?

— Quer me dizer com isso que não está em sua casa? — pergunta a sua vez Juan.

— Não quero dizer nada — responde Mônica, impaciente. — Estou

perguntando...

— E eu estou respondendo. Não, não a vi. Santa Mônica.

— Quer parar de me chamar assim? A que vem essa brincadeira? Deixe-me passar!

— Dizem que é pecado ter mau gênio, irmã. Tem livre o caminho... Bastante

mau para tanto tecido como você usa — observa Juan, fazendo-se a um lado.

— Ah...! Jesus! — exclama Mônica, assustada.

— Vê você? — sorri zombador Juan, estendendo suas mãos para sujeitá-la.

Espantada, Mônica tornou a cabeça para não olhar a profunda greta aonde esteve a ponto de cair, ao escorregar sobre o bordo mesmo do escarpado. Logo se

separa bruscamente, esquivando as mãos do Juan que, ao lhe impedir de cair, apertaram seus braços um instante mais dê o necessário, e lhe reprova:

— Como se atreve...

— A impedir que se mate? A verdade é que eu mesmo não sei. Fiz mal em estirar a mão. Siga seu caminho e estrele-se se esse é seu gosto.

— É você todo um caipira!

— E você tem arrestos que não são de monja precisamente. Mas adiante. Santa Mônica.

— Não sou Santa, nem abadessa, nem sequer Irma ainda. Pode economizar as brincadeiras — protesto Mônica visivelmente molesta.

— Não são brincadeiras — responde Juan com ironia. — Sou um ignorante, falo pelo que salta à vista. Você tem ares de abadesa mitrada. Não é assim como se chamam? Conheci uma em um convento de Trindade. Houve um incêndio no convento

e as monjas escaparam pela praia. Tinham tanto medo, que se meteram em meu navio. Quando as pessoas têm medo, lhes acaba tudo: a soberba, o empacotamento, o ar de superioridade... E pedem a gritos que alguém as salve, mesmo que seja o mesmo

diabo. Mas adiante... Siga seu caminho... Não a detenho mais...

Tirou-se a boina, saudando-a com uma reverência zombeteira, e acaso espera

vê-la de novo escorregar, mas Mônica recolha levemente seus largos hábitos e cruzamento rápido e seguro sobre as rochas escorregadias, enquanto ele sorri a pesar dele.

— Aimée! De onde vem?

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— OH, Juan! De te buscar como uma louca. O que é o que te passou? Não

zarpou, tinha soldados em seu navio, alguém me disse que estava preso... Por quê? O que fez?

— Tudo se arrumou já. O atraso foi só de umas horas. Mas se não sair em seguida, não chegarei a tempo aonde tenho que chegar.

— Em que empresas anda Juan?

— Que mais te dá? Não te meta em meus negócios...

— É que pode te acontecer algo, e eu não quero que te passe nada. Quero que volte que volte sempre... E melhor ainda, que não vá, ao menos tão logo. Fica até

manhã, Juan. Esta noite falaremos, agora não posso. Vi a Mônica. Sei que me está procurando...

— E o que? Por que lhe tem tanto medo a sua irmã? Diga-lhe que se vá ao convento e que nos deixe em paz.

— É o que eu queria: que voltasse para convento, que fizesse seus votos, que

não saísse mais.

— Te está acontecendo algo estranho. Antes não era assim.

— Antes não a tinha metida em casa...

— É só por sua irmã? — Há um tom violento na voz do Juan quando ordena que: — Jura-o!

— Crê já em juramentos? Quando nos conhecemos me disseste que não acreditava em nada... — responde Aimée, suave e ardilosa.

— Às vezes penso que me está enganando — afirma Juan em tom rancoroso. —

É livre, pode fazer o que quiser, mas não me minta, não me engane.

— De maneira que posso fazer o que quiser? — paquera Aimée, provocadora.

— Agora quer me desesperar, né?

— Ai, bruto! Solte-me essa mão... — Um forte assobio interrompeu sua queixa e, sobressaltada, indaga: — O que é isso, Juan?

— Nada... Chamam-me. É meu segundo. Tenho que zarpar esta tarde, aproveitando os ventos do Poente.

— E por que não amanhã ao amanhecer? Não pode perder uma noite? — Outro forte assobio se escuta já mais próximo, e Aimée lhe apressa: — Anda... Chamam-lhe... Seu negócio parece muito importante.

— E o teu também, porque está morta de impaciência. O que acontece?

— OH! — surpreende-se Aimée, mas em seguida reage e, dissimulando sua confusão, responde: — Não sei... Chegou visita a casa.

— Já vi cruzar a rua a dois cavaleiros: amo e criado. São esses os que esperas?

— Eu não espero a ninguém, mas há visita e tenho que ir. E também lhe estão

chamando. — Em efeito, novos e insistentes assobios se deixam escutar, e Aimée quase ordena mais que irritada: — Anda que esse homem está impaciente.

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— Não vá! Espere-me dentro de dez minutos. Esperam aqui mesmo... Aguarde-

me ou te arrependerá! — sentencia Juan, afastando-se com rapidez.

— 0h, Juan! Estava aqui ainda?

— Demoraste quase uma hora, Aimée.

— Me perdoe, não pude sair antes. Mônica..

— Não diga que foi por sua irmã! Foi por esse tipo que estava de visita em sua

casa! — assegura Juan, encolerizado. — Foi por ele... Vi-te despedi-lo na janela.

— Está louco? Foi Mônica a que...

— Aproximei-me o bastante para ver que foi você e para ver quem era ele.

— Um amigo... Um bom amigo de minha família, de minha casa. Desde meninos, Juan... Juro-lhe isso... Olha... Quando mandaram ao Renato a França, foi a

cargo de mamãe. Eu, como compreenderá, era muito pequena. Depois, naturalmente, visitava a casa. Entrava e saía... Eu o Olho como a um irmão Ao voltar para o Saint-Pierre, é lógico que nos visite. É amável, atento...

— E milionário. O homem mais rico do Saint-Pierre. Suponho que sabe... O homem mais rico da ilha.

— Tanto como isso? — finge surpreender-se Aimée.

— E um dos mais ricos da França. Importa-te muito isso? Agrada-te? Você gosta do dinheiro, verdade?

— E a quem não gosta Juan?

— Mas a ti mais que a ninguém. Vi como lhe brilhavam os olhos. Sim, Renato D'Autremont é muito rico, pode dar o luxo de atirar suas onças ao mar, de arrojar

uma esmola quantioza, como se arroja uma pelanca, para sentir-se superior frente a um pobre diabo, para lhe humilhar com sua esplendidas e com sua generosidade.

— Por que falas desse modo, Juan?

— Me ouça, Aimée. Se for do dinheiro você gosta, eu logo vou ter muito dinheiro. Voltarei rico desta viagem — afirma Juan, violento e apaixonado. — Não me olha

assim... Não me estou zombando... Digo-te a verdade. Trarei dinheiro, muito dinheiro, para comprar todo isso que às mulheres agrada: jóias, vestidos, perfume, casa com

cortinados... Muito dinheiro para satisfazer seus caprichos, e para arrojar-lhe ao Renato D'Autremont à cara!

Brusco, exaltado, sacudido por uma paixão violenta e repentina, Juan fala

inclinando-se quase ao ouvido do Aimée. Que vermelho relâmpago de ciúmes, que violenta labareda de rancor, de desejo de desforra, provocou nele a presença do Renato D'Autremont na casa das Molnar! Não sabe nada, mas pressente; não pode

adivinhar, mas intui a verdade, a feia e áspera verdade nua, frente à alma daquela mulher que para ele não tem segredos, porque lhe entrega sem reservas, livre de

recato e de farsa... Mas Aimée do Molnar não crie suas palavras, não recebe a adulação a sua beleza, que delas se desprende... Treme só temendo a represália do amante brutal, busca uma desculpa, uma forma para acalmá-lo, e sussurra:

— Mas se eu não quero nada... Se eu não pedir nada...

92

— Você o quer tudo. Mas sou eu, não ele, quem tem que lhe dar isso Te

iluminou o rosto de alegria quando te disse que Renato D'Autremont era o homem mais rico da ilha. Agradou-te... Agradou-te muito, sentiu-se orgulhosa de que

rondasse sua casa E...

— Não a ronda por mim.

— Jura!

— Bom... Juro-lhe isso...

Vacilando, jurou' em falso, tremendo mais por superstição que por imperativo de sua consciência. Mas o duro rosto do Juan se suaviza e suas largas mãos crispadas se

abrandam para acariciá-la.

— Não o quer a ele? Não te importa que seja milionário?

— Não, Juan. Por que tem que me importar? E agora que penso de onde conhece você ao Renato? Tem algum negócio com ele?

— Com D'Autremont? — ri Juan. — Por quem toma? Além disso, ele não tem

negócios: faz recolha r com seus capatazes o sangue e o suor de seus escravos, e o vende a peso de ouro em forma de café, cacau, cano, tabaco... São navios completos os

que saem do Saint-Pierre carregados de sua mercadoria, e barris de moedas de ouro que caem em suas arcas. É que não sabe? Não diz que é seu amiga desde menina?

— Amigo da casa... Muito mais amigo da Mônica que meu...

— Não vais fazer me acreditar que vem pela monja. Essa é uma arpía vestida de branco. Olha-me como a um cão sarnento. Hoje me deu vontade de lhe gritar...

— Está louco? O que fez?

— Te tranqüilize. Não lhe disse nada. Ela sim me insultou porque lhe dava a mão quando escorregou ao bordo dos farallones.

— Por que não a deixou cair?

— Mataria-se.

— E o que — salta Aimée com ira que não pode dissimular.

— Queria vê-la morta? Por que a odeia tanto? — pergunta Juan desagradavelmente surpreso.

— Não é que a odeie... É minha irmã, mas... Às vezes falo sem saber o que digo... É que Mônica chega a me desesperar.

— por que quer meter-se a monja?

— Como quer que eu saiba? Além disso, o que pode interessar?

— A mim? Claro que nada. Você sozinha me importa, e tenho que voltar por ti e te fazer minha para sempre.

— Sou tua para sempre, Juan!

— Não deste modo: minha de verdade. Levar-te comigo aonde eu queira, que

ninguém tenha o direito de te olhar, que não olha a ninguém... Darei-te tudo o que o mais rico possa te dar: terá casa, terras, serventes...

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— Logo que posso acreditar o que ouço... Está-me oferecendo matrimônio,

Juan? — pergunta Aimée com brincadeira sutilmente contida.

— Matrimônio... — surpreende-se Juan, desconcertado.

— Quer-me para ti sozinho, com todos os direitos legais... Voltará rico para me oferecer uma casa opulenta...

— E anéis, e colares, e trajes como não os tem a mulher do Governador, e uma

casa maior que a do Renato! E tudo conseguido por mim, ganho por mim, arrancado ao mundo por estas mãos...

— Com que negócio? — inquire irônica Aimée. — Não é grata uma lua de mel no

cárcere...

— Pensa que sou um imbecil? — encrespa-se Juan.

— Não, Juan — responde Aimée, agora sincera de verdade. — Penso que você gosta que me quer que me deseja mais que nada, que voltará por mim já que tanto te importo. E isso me faz feliz, muito feliz...

Apaixonado, Juan a beijou nos lábios com um daqueles seus beijos com os que parece arrebatá-la à realidade... Robustos beijos de fogo que são como o bater do mar

contra as rochas: imperiosos, apaixonados, quase brutais.

— Para voltar como quero voltar, demorarei algo mais de seis semanas — indica Juan. — Terei muito que fazer no mar, e pobre de ti se não ser capaz de me aguardar!

— Como! Mas é você, minha filha?

— Sim, Pai, esperei que todos terminassem. Tinha tanta necessidade de lhe falar a sós...

— Mandei-lhe dizer que manhã a escutaria junto com as outras noviças...

— Não pude esperar a manhã. Perdoe-me Pai, mas me senti desesperada.

Os últimos raios do sol da tarde se filtram atrás dos vitrais de cores do largo vitrô que respalda o altar da Virgem dos Desamparados, e o Pai Vivier, miúdo, nervoso, de cabelos brancos, faz um gesto à pálida noviça, sinalando a porta da

sacristia e convidando-a a entrar:

— Passe, filhinha. Falaremos agora mesmo, já que o deseja tanto. Diga-me...

— Necessito que se revogue a ordem que me deu. Quero voltar para Convento, Pai. Que se abram para mim, outra vez, as portas do noviciado... Quero professar quanto antes.

— Não acredito que sua saúde tenha melhorado o bastante como pensa — murmura o Pai Vivier, lento e grave.

— Estou perfeitamente bem, Pai. Minha saúde não tem importância...

— Talvez a de seu corpo..., mas a de sua alma, minha filha?

— Quero salvar minha alma! Quero me esquecer do mundo, apagá-lo, afundá-lo

Estou se desesperada... Tenho medo de cair na tentação!

— Não é esse o estado de ânimo em que pode você escolha r seu caminho. Até luta com seu amor humano?

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— Sim, mas luto em vão e me sinto desesperada. Tudo é inútil... Não posso

matá-lo, vive, renasce, afoga-me... Às vezes tenho o desejo de gritá-lo, de proclamá-lo. Atormentam-me o ciúmes, o ódio...

— Você pode, acaso, oferecer a Deus uma alma em semelhante estado?

— Quero morrer para nascer de novo; quero ouvir as cantigas que dobrem pela triste mulher apaixonada que fui até hoje, e as vozes que digam: morta para o mundo!

Morta, sim, morta, e que seja esse convento como a tumba em que se afunde para sempre Mônica do Molnar...

— Quanta paixão, quanta soberba há ainda nesse coração! Esse coração que

precisa desencardir-se para oferecer-se ao divino sedimento, esse coração que não há sentido ainda a chamada da Vocação verdadeira, esse coração tão apegado ao mundo,

a esse mundo para o que pretende morrer...

— Pai... Pai, não me abandone!

— Ninguém a abandonou. Indicou-lhe a prova necessária e você a rechaça.

— É muito horrível, muito humilhante estar junto a ele, vê-lo... Seu sorriso, seu olhar, sua palavra, tudo para a outra... Não, não. Pai quero ficar aqui, professar...!

— Não é possível. Não é o rancor humano, é o amor divino quão único pode fazê-la digna de vestir esses hábitos E o único atalho que leva até ele é o que você pretende abandonar: o da humildade.

— Quer...

— Não diga mais essa palavra — lhe atalha o Pai Vivier, com severidade. — Lhe pediu prova de obediência. Cumpra-a. Se realmente quer tomar o caminho que diz,

não pode rechaçá-la. Deus lhe dará torça, se é que a escolha u para pertencer a seu rebanho. — E suavizando-se, oferece: — Se necessitar de minha ajuda espiritual, pode

voltar cada manhã.

— Vejo que não sabe você todo o duro de minha prova. Pai. Se continuo em minha casa, devo me afastar do Saint-Pierre amanhã.

— Muito bem. Quanto mais só esteja, mais força achará em se mesma mais claro poderá ver no fundo de sua alma. Eu sigo acreditando que você nasceu para o

mundo, minha filha. Há em sua alma costure que na vida podem ser qualidades, mas que o convento não perdoa nem admite. Por que não esperar a que passe essa tempestade, sem comprometer-se em um caminho do que regres ar será muito meus

duro e mais difícil? Além disso, sua prova tem um término, um prazo. Como pode ter resolvido tudo em uns dias? Necessita você meses, talvez um ano...

— E se dentro de um ano volto a chegar como hoje. Pai Vivier? — suplica

Monica com veemência. — Se houver lágrimas em meus olhos e desespero em minha alma... Se como agora chego buscando-o porquê me sinto enlouquecer, se como agora

caio a seus pés de joelhos, junto às mãos como frente a um altar, e chorando com lágrimas de sangue, rogo-lhe: Pai, me ajude, quero salvar minha alma... Ajudará-me você. Pai? Preciso sabê-lo, preciso ter a segurança... Dentro de um ano, posso

retornar?

— Retorne quando tiver encontrado a paz, minha filha, quando souber que sua vocação é verdadeira — murmura o bom sacerdote profundamente comovido. — Volte

então, filha. Se dentro de um ano segue pensando igual à hoje, nada poderei lhe dizer:

95

esta será sua casa. Abrirão-se para você as portas do convento, e se fecharão para

sempre depois que tenha entrado.

— É tudo o que peço Pai. Obrigado!

Mônica do Molnar tem cansado de joelhos, inclinada a frente, juntas as mãos. Por um instante parece que sua alma se afunda mais e mais naquele desespero, sem nome que a envolve e a abrasa; logo levanta a cabeça, e a mão do sacerdote se estende

para ajudá-la a levantar-se:

— Levante-se, minha filha, e volte para sua casa. Vá em paz... Ah, um detalhe! Deixe os hábitos em sua casa. Volte para mundo como se fosse viver nele. E recorde

que ainda não há pronunciado nenhum voto que a obrigue a fechar seu coração. Amar, para você, ainda não é pecado, como não o séria encontrar outro caminho.

Todos podem levar a Deus...

— Eu voltarei por este. Pai. Que a misericórdia de Deus me faça encontrá-lo aberto...

Mundano, galante, Renato D'Autremont sorriu à senhora Molnar, dissimulando a leve impaciência que lhe sacode. Correm as primeiras horas da manhã daquele

sábado em que têm que empreender a viagem a Campo Real. Há uma hora se colocou no carro a bagagem e, em mãos de serventes nativos, dá coices impaciente o magnífico cavalo do Renato.

— Não tem você idéia do gosto com que os espera minha mãe, Catalina.

— É muito amável... Muito. Espero que não a incomodemos muito. Esperava a dois, e vamos três...

— alegrou-se muito de que Mônica possa acompanhar-lhes. Minha mãe as conhece e as quer como se as houvesse tratado. Falei-lhe tanto de vocês em minhas

cartas! E olha que coisa: da Mônica mais ainda que de Aimée. Éramos tão bons amigos durante aqueles inesquecíveis anos da adolescência... Confio em voltar a sê-lo em Campo Real. Ao fim e ao cabo, eu não tenho outra irmã...

— Aqui tem a seu Aimée... — atalha-lhe a senhora Molnar ao ver que sua filha se aproxima deles.

— Fiz-te esperar muito, Renato? — pergunta Aimée.

— Agora já não importa... — desculpa Renato. — Sairemos imediatamente — afirma Catalina.

— Não acredito que possa ser mamãe, pois as duas portas do quarto da Mônica estão fechadas. Duas vezes lhe falou a garota e respondeu que a esperassem, e como a ela não há modo de ajudá-la...

— Bom por mim já não há pressa...

Renato tem envolto a Aimée em um olhar ardente, intensa, olhar de devoto e de

apaixonado, enquanto ela sorri com paquera sutilíssima. Apesar de seu amor pelo Juan, diverte-lhe Renato, acha um encanto, um incentivo especial provando nele a sugestão de sua beleza... Sorrisos, caretas, olhadas lânguidas, gestos encantadores,

todo seu arsenal de mulher formosa e mundana, tão habilmente envolto, para o jovem D'Autremont, em perfis de ingênua...

96

— Tomaria uma xícara de café acabado de passar, filho? Vou trazer isso

enquanto aguardamos a Mônica — oferece Catalina ao tempo que se afasta, deixando sozinhos aos noivos.

— Aimée, tem um ar estranho e delicioso, completamente inusitado em ti. Juraria que choraste — diz Renato, recriando em seus olhos a linda figura de Aimée.

— Chorar eu?

— Não lhe vou reprovar isso Sua sensibilidade de mulher lhe coloca fazê-lo, ainda por uma criancice, já que espero que só criancices possam te ocorrer, e que só por capricho tenha que chorar.

— Tão seguro está de me fazer ditosa?

— Agora não, claro. Mas quando estiver ao meu lado para sempre, tudo será

maravilhoso. Pressinto tanta felicidade para nos dois...

— Nem que fosse tão bom... — paquera Aimée, mimosa. — A outra noite te despediu cedo, segundo você para empreender a volta a Campo Real, mas não foi até o

outro dia pela tarde. Posso saber no que passou a noite e a manhã?

— OH! Atrasei a viagem, mas vim a verte antes de partir, por certo duas vezes.

— Responde ao que te perguntei. No que passou a noite e a manhã de segunda-feira à terça-feira?

— Fiz uma pequena diligência para ajudar a um amigo em desgraça... Um a

quem não conhece, embora não sei por que confio em que algum dia o conhecerá. É um amigo estranho, um amigo que se empenha em não sê-lo meu, embora eu o sou dele com toda minha alma.

— Que coisa mais estranha! E por que tem esse empenho? Na Martinica não há ninguém que seja mais que você. Não tem por que procurar e forçar a amizade de

ninguém...

— Neste caso, sim, e te asseguro que vale a pena. Trata-se de um personagem extraordinário e, além disso, de um velho empenho de meu pai.

— Fala em forma misteriosa... Não te entendo...

— Para que me entendesse teria que falar muito.

— É absurdo que nos faça esperar assim — se queixa Aimée com desgosto. — Que demônios estará fazendo para demorar tanto?

— vestindo o hábito, certamente. Mas não lhe impacientes, já não pode

demorar. E estando contigo, que mais dá como corra o tempo! Sou o homem mais feliz da terra quando estou a seu lado. Que tarde quanto queira! Que mais dá.

Catalina Molnar irrompeu na sala de jantar levando em suas mãos uma

fumegante xícara de café que oferece ao Renato. Este, depois de saborear uns sorvos, afirma galante:

— Diria-lhe que é o melhor café que provei em minha vida, dona Catalina. Mas até tem você que tomar o que cultivamos em Campo Real. Não é vaidade de asseguro, palavra. Já imagino o que será nosso café, preparado por suas mãos...

— Lisonjeador! Por boas palavras não ficará.

97

— Não são só boas palavras, falo-lhe sinceramente...

— Já sei filhinho, já sei — assente Catalina ante a adulação. O velho relógio da sala de jantar deixa ouvir sete pausadas badaladas e a senhora Molnar se escandaliza:

— Jesus, as sete já e nos propúnhamos sair ao amanhecer! Vou ver o que acontece com Mônica...

— Acredito que aqui vem a, mana — a interrompe Aimée; e com visível surpresa

exclama: — Mas, caramba..

— Tiraste-te os hábitos, filha! — surpreende-se também Catalina.

— Pensei que era mais cômodo para a viagem — explica Mônica com certa

reserva.

Chegou até o centro da sala de jantar, baixa a frente, sem olhar a ninguém. Leva

um traje negro de pescoço alto, de mangas largas, de ampla saia que em tudo recorda o ar das roupas monges, mas o pescoço fino se eleva nu sustentando a graciosa cabeça, os loiros cabelos penteados em duas tranças, que se enrolam logo sobre a

frente realçando-a como uma diadema de ouro velho. Com os sapatos de salto Luis XV parece mais esbelta, mais alta, mais flexível, mais ágil...

— Que Deus te benza, filha de minha alma! Não sabe a alegria que me dá. Parece-me como se te tivesse recuperado — expressa Catalina com emocionada alegria.

— Que mais dá um traje ou outro, mamãe? Nem tem importância nem muda em nada minha resolução.

— Está muito linda — intervém Renato, que também se expressa gratamente

surpreso. — Fica muito bem esse penteado e esse traje...

— São quase de monja as duas coisas. Acredito que não valia a pena que

mudasse — reprova Aimée, mordaz e despeitada.

— Esse era meu desejo: não mudar.

— Difiro da opinião de vocês — opõe Renato. — Não te parece em nada a "Irmã

Mônica”, e menos ainda à linda e alegre moça que saiu para o convento, lá na Marsella. Mas a mudança foi para melhorar.

— Obrigado pela galanteria, mas não a repita. Já o disse com razão sua noiva: isto é quase um hábito. E em nada varia minhas idéias e meus sentimentos. Olha-me sempre como o que sou: uma noviça que deseja professar e que não gosta de

adulações mundanas.

— Me perdoe, mas não quis te adular: fui sincero — se desculpa Renato, um pouco talhado pela atitude da Mônica. — Já vejo que, além disso, fui torpe. Bom,

como só esperávamos por ti, e o carro está disposto, se não dispor vocês de outra coisa...

— Em marcha, filho, em marcha — ordena Catalina. — vamos conhecer, por fim, seu Campo Real.

O largo e cômodo carro fechado, bem preparado para a jornada que lhe aguarda,

vai recebendo às viajantes: Catalina e Mônica... Aimée se deteve na porta do casarão como se o sopro espesso do ar que chega do mar, carregado de salitre e iodo, fora uma sacudida irresistível para seus nervos. Largo e azul se divisa o oceano, safira

98

fulgurante cuja presença quase humana a estremece com a lembrança do Juan o

pirata... Assim lhe chama em sua imaginação do momento em que lhe visse partir lhe prometendo a riqueza...

— Não sobe Aimée? — apressa Renato.

— Oh, sim! Naturalmente. Mas olhava o mar... Hoje está muito inquieto...

— E quando é tranqüilo em nossa costa?

— Nunca, claro está... De Campo Real não se vê o mar, verdade?

— Não. Da casa não, pois o tampam as montanhas. Mas está bastante perto. Terá que sair pelo desfiladeiro que fecha nosso vale, porque a parte central da fazenda,

o que fora Acampo Real primitivamente, é só um vale entre montanha muito altos, uma espécie de mundo isolado de outros. Por isso lhe chamo o paraíso. Está

totalmente protegido de furacões e ventos fortes, cruzado por mais de cem arroios que descem das montanhas. Por isso não há terreno mais fértil... Quantas flores e que frutas mais deliciosas! Enfim, acredito que mais vale que não fale já de Campo Real,

posto que vais ver o.

— Mas não se vê o mar de lá — se queixa Aimée, em um suspiro.

— Vê-se o cano, que é um mar verde, doce em lugar de amargo, e sem perigos de nenhuma espécie. Não crie que é preferível?

— Direi-te... Talvez o mar é belo por suas coisas más também: sua força, sua

violência... E seu sal... Alguma vez te enjoaste a força de mel, Renato?

— Confesso-te que não. Sou um guloso incorrigível. Mas, por favor, vamos, pois já Catalina se impacienta, e bastante a fez esperar Mônica.

— Mônica... Mônica é um desastre sem os hábitos. Já sei que você a encontra preciosa, e eu ridícula. Não sei para que tinha que deixar o convento.

— Sua mamãe me explicou que sua saúde não andava muito bem. Mas em Campo Real vai repor-se. Estou seguro...

— Aimée...! — chama a voz da Catalina do interior da carruagem.

— Vamos. Estamos abusando da paciência de sua mamãe, que é muito boa — diz Renato; e logo, elevando a voz, ordena a seu servente: — Meu cavalo. Bernardo.

Separou-se uns passos, deixando Aimée, que até voltou à vista ao mar, percorrendo-o com olhar inquieto, um instante apagada sua suave máscara de dissimulação. Nada espera ver nele, bem sabe que a branca vela do navio com que

sonha está muito longe. Um golpe de amargura lhe sobe à garganta, mas já Renato, D'Autremont está outra vez frente a ela, e o gesto de amargura se transforma em um sorriso, ao aceitar:

— Vamos quando você queira...

99

CCapítulo 16

— Meu Renato!

— Mamãe...

Ansiosamente, como se as poucas horas de ausência tivessem sido largos anos,

Sofía D'Autremont estreita. A seu filho contra o peito, separa-lhe depois um pouco para lhe olhar com aquele sorriso de emoção e de orgulho que sobe a seus lábios cada

vez. Que lhe vê, e se interessa:

— Fizeram boa viagem? Demoraram muito. Eu já estava inquieta...

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— Viemos devagar para não as fatigar mais da conta. E, além disso, olhávamos

a paisagem... Aqui estão. Não acredito que seja preciso uma apresentação...

— De maneira nenhuma — nega Catalina aproximando-se. — Estou encantada

de voltar a saudá-la, Sofía.

— Bem-vinda a esta casa, Catalina. Melhor dizendo: Bem-vindas. Qual é Aimée?

Olhou com anseia a Mônica, como medindo e valorando sua casta beleza. Que

linda e señoril parece sob seu traje negro! A frente pura sob as tranças loiras, profunda a olha e o gesto doce e grave. Sofía a contempla deliciosa, perfeita, mas Mônica sorriu tornando-se brandamente a um lado, ao esclarecer:

— Sou Mônica, senhora D'Autremont. Aqui tem você a Aimée.

— Oh! — reage Sofía, surpreendida. — Também é muito bela, — logo, afetuosa,

exclama: — minha Filha... Acredito que posso chamá-la assim, verdade?

— Naturalmente, mãe — intervém Renato em tom jovial. — E meu único desejo é que, quanto antes, possa fazê-lo com todos os direitos. Cada dia que passa modifico

o projeto de apressar as bodas, lhe dando maior brevidade à espera.

— É o que eu digo. Para que esperar? — afirma Catalina.

— Mamãe... — reprova fracamente Aimée.

— Não te ruborize, filhinha — desculpa Sofía. — A senhora Molnar há dito exatamente o que eu penso: Para que lhe dar prazos à felicidade? Meu filho te quer e,

segundo seus informe, você corresponde a seus sentimentos. Não há nada, pois, que se oponha a que essas bodas, que todos desejamos, celebre-se em seguida.

— Em seguida? — quase se escandaliza Aimée.

— Bom, é uma forma de dizer. Refiro-me ao tempo indispensável para preparar as coisas, já que o único inconveniente que está acostumado a haver nestes assuntos,

que é o não conhecer-se bem, é impossível em um caso como o de vocês, pois são amigos desde meninos. — Logo, dirigindo-se à senhora Molnar, afirma — São muito belas suas filhas. Catalina. Muito belas ambas. Cada uma em seu tipo parece-me

perfeita.

— É você muito amável Sofía — agradece Catalina.

— Amável foi à natureza sendo tão pródiga com elas. De Aimée já tinha muitas notícias pelo Renato, mas Mônica me surpreendeu extraordinariamente, e logo que concebo que você queira encerrar em um convento semelhante encanto... Ah!

Aninha... Aproxime-te...

Da semipenumbra da larga galeria, com suavidade de sombra, surgiu E Aninha, aproximando-se lentamente. Viu o mesmo que as outras donzelas que, de perto ou de

longe, olham às via jantas: a saia amplíssima, o sutiã ajustado, o redondo decote rematado por um largo encaixe e o típico lenço dê Madras cobrindo sua cabeça, na

moda das mulheres nativas. Mas são de ouro maciço as argolas que pendem de suas orelhas, de filigrana coral e pérola os colares que cobrem seu pescoço. Usa meias de seda e vai primorosamente meio-fio. Também suas mãos, cuidadas com esmero,

revelam seu verdadeiro lugar naquela Casa opulenta, e sua presença silenciosa faz que apareça a curiosidade aos olhos da Catalina e do Aimée. Dando-se conta disso, Sofía explica:

101

— Aninha é minha afilhada. Minha filha adotiva, como quem diz. Ela se ocupará

das tratar com atenção vocês mais que eu mesma, já que, por desgraça, tenho tão pouca saúde que tudo na casa está em mãos dela. — Logo faz a apresentação oficial:

— Aninha, esta é Aimée...

— Tanto gosto... — saúda Aimée em forma muito fria.

— É meu o gosto e a honra. Como estão vocês? Fizeram boa viagem?

— Excelente, filhinha, excelente — agradece Catalina a deferência da mestiça. — Mas confesso que não posso mais... São muitas horas nesse carro.

— As leve a suas habitações, Aninha — ordena Sofía. — mas, espera um

momento. Acredito que eu também posso ir com vocês.

— Te apóie, pois em meu braço, mamãe — oferece Renato.

— Não é preciso que se incomode... — começa a desculpar-se Aimée.

— Ao contrário, filhinha — a interrompe Sofía. — É um prazer do que não quero me privar. Oxalá e esses quartos sejam do agrado de vocês. Pusemos o maior

empenho. Vamos?

— Isto é o que chamamos um plantador; e é, para mim, a melhor bebida da

terra depois do famoso rum-ponche — explica Renato com entusiasta jovialidade. — E até ainda me parece melhor e mais apropriada para o clima. Mas, sobre tudo, é coisa do campo. No Saint-Pierre se bebe pouco. É suco de dente com rum branco, e o

complemento ideal para algo que vamos comer imediatamente: os acres da amizade. Quer você fazer que os sirvam, Aninha?

Aninha respondeu só com um movimento de cabeça, desaparecendo depois da

ampla porta. Estão naquele lado da larga galeria anexa ao comilão, onde, segundo costume martiniquenha, passa-se comprido momento tomando aperitivos ou cocteles

antes de passar à mesa. Criadas cor de ébano, vestidos de branco, movem-se levando e trazendo carrinhos carregados do Licores e garrafas. Em grandes jarras de cristal se servem as bebidas frescas, sucos de frutas reforçados com rum, e em bandejas de

prata, entre outras guloseimas, as pequenas frituras carregadas de espécies, símbolo de amizade e bem-vinda nas antilhanas ilhas francesas do Guadalupe e a Martinica.

— Isto, suponho que sim o comeram já — adverte Renato.

— Naturalmente — replica Aimée. — Nos está tratando como a estrangeiras.

— Faço coro a uma soberana que pisa pela primeira vez seu pequeno reino

quisesse eu te tratar, Aimée. Tenho a pretensão de que Campo Real é um mundo novo, um mundo em miniatura, mas um mundo ao fim, e esse mundo lhes está saudando, neste momento, com o melhor que tem. Aqui há um novo coctel de minha

invenção.

— O que é? — indaga curiosa Aimée.

— Uma variedade do plantador: suco de dente, mas com champaña em vez de rum. O que te parece?

— Fantástico! O melhor que tomei em minha vida.

— Nesse caso, poremo-lhe seu nome, Aimée, e brindaram por ti nossos netos cada vez que o bebam. Há um estalar de murmúrios e risadas de aprovação, enquanto

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a uma indicação da Sofía passam todos ao luxuoso comilão da mansão de Campo

Real.

A suntuosa comida toca a seu fim. Já passaram a um salão próximo para tomar

os licores e o café, e a compartilhar estes, assim como a conhecer as Molnar, chegaram proprietários de imóveis vizinhos. Aproveitando o momento em que ninguém a olha, Mônica escapou que todo isso, baixou as escalinatas de pedra, cruzou o jardim

e se afasta da casa, como se fugisse. Parece que se asfixia que se afoga sob os artesanatos do teto, entre as luxuosas paredes estofadas como para outro clima, como para outro mundo. Não pode mais. Aos vapores daquelas cálidas bebidas traiçoeiras

se acendem em sua mente mil imagens atormentadoras, e é fogo, em vez de sangue, o que circula sob sua pele. Não pode já suportar a presença do Renato. Não pode vê-lo

junto a Aimée, acesos os olhos de amor e de paixão. Não pode suportar o hipócrita sorriso com que ela parece responder a aquele amor que ele brinda apaixonado e cego.

Cruzou um bosque de cacau, um platanal espesso, e se detém contemplando,

entre os troncos flexíveis das Palmas de coco, a enorme fogueira acesa frente a um barraco. Também há festa naquele mundo baixo e longínquo; também, como lá

encima, os aromáticos licores circulam aqui. De emano em mão, e os grossos dedos negros tamborilam sobre os emplastros. É uma música selvagem, monótona e ardente: música arranco ao coração da África, música que na terra antillanha tem, entretanto,

um novo sentido, um bafo de natureza primitiva, de paixões desatadas, a cujo ritmo se agitam em danças lúbricas os negros corpos. E a alma torturada da noviça, estremece-se. Tremendo, as brancas mãos se juntam para a oração:

— Senhor... Senhor... Dê-me valor, me dê forças. Arranque-me a tudo isto. Volte-me para meu convento. Volte-me para meu convento, Senhor...

— Mônica! — exclama Aimée aproximando-se surprendidísima Á sua irmã.

— Aimée! O que faz aqui? Que buscas? — alarma-se Mônica saindo de sua momentânea abstração.

— Caramba... É o que ia perguntar eu precisamente: O que faz aqui? Não é este seu lugar. — Logo, com a ironia transbordando em suas palavras, comenta: — Seria

fantástico que você gostasse de tudo isto...

Tornou a cabeça para olhar, através das árvores, a larga fila de mulheres negras, que se tranca e retorce ao redor da fogueira, como uma enorme serpente. Vão

semidesnudas. À luz avermelhada brilha o suor sobre as carnes escuras. De repente, entram os homens. Levam, também, os torsos nus, em alto os facões de trabalho em cujas folhas treme como sangue, o resplendor da fogueira,

— A mim isto fascina e, ao fim e ao cabo, somos irmãs — recalca Aimée sem abandonar seu tom irônico. — Temos pontos de contato, alguns muito notáveis. Este

pode ser um de esses.

— Para que deixou ao Renato? Onde? Por quê? — pergunta a Mônica, fazendo caso omisso da mordacidade de sua irmã.

— Não se preocupe por ele. Está encantado da vida bebendo seus refrescos com champanha. Que infantil, que ridículo me resulta Renato às vezes! 0h, mas não te incomode em te indignar. De todos os modos, casarei-me com ele. Não se despreza um

partido semelhante. É, efetivamente, o homem mais rico da ilha.

— E só por isso...

103

— Por isso e por todo o resto. Santa Mônica...

— Não me chame assim! — estala Mônica, agora indignada de verdade.

— Já sei que não o merece. Você gosta deste espetáculo selvagem, prefere-o à

contemplação do Renato... Seu Renato.

— Nem é meu nem tem por que chamá-lo dessa maneira!

— Claro que não é teu. Isso já sei. Nunca foi teu. Deu-te o luxo de me ceder isso

ou de fazer que me cedia isso; mas, em realidade, nada me deu, porque não tinha nada que me dar. Que escolha u foi ele, e me escolha u. O que quer irmã? Malote sou e... Mas, vamos... Mamãe te sentiu falta. Perguntou-me onde estava e eu saí para te

buscar. Por uma vez me tocou o papel de fazer voltar para redil à ovelha desencaminhada; mas se demorar muito, sentirão falta das duas.

— Volta você, que é a que importa que esteja ali!

— Não o cria. Até há dois vizinhos de visita. Renato te agradecerá que os entretenha... Tudo o que obrigue a não ocupar-se só de mim lhe incomoda. Claro que

não me interessa, pois eu preferiria ficar aqui. É a primeira coisa interessante que vejo em Campo Real, porque o que é a múmia de minha sogra e o casarão pintado de

purpurina é para morrer de aborrecimento. — Aimée ri brandamente e objeta com soma: — Não me olha com cara de espanto. As coisas são tal como as pensei. Isto se pode suportar um mês ao ano... A maior parte do tempo o passaremos no Saint-Pierre.

Asseguro-te que o acerto da casa da capital vai começar imediatamente e completamente a meu gosto. Já tenho a palavra do Renato. Surpreende-te?

— De ti não me surpreende nada. Mas me ouça, Aimée: não vais fazer

desventurado ao Renato. Não o consentirei!

— Farei o que me dê à vontade, e nem você nem ninguém.. .

— Aimée... Aimée... — interrompe-a a voz do Renato que a chama de longe.

— Aí está. Saiu para me buscar — assinala Aimée, plenamente satisfeita. — Não pode estar sem mim... Não pode viver sem mim. Compreende? Ele, e não você dá-me

com isso todos os direitos.

— Aimée... Aimée.. . — volta a chamar Renato, agora já mais perto do lugar onde

se acham as duas irmãs.

— Aqui estou Renato...

Solicitamente acode Aimée ao encontro do Renato, andando, a favor da

escuridão, Mônica retrocede, procurando passar inadvertida sob a sombra das grandes árvores. Não, não poderia suportar nesse momento a presença dele, essa presença que chegou a ser como um martírio: martírio dos sentidos, aos que

atormenta sua voz e suas palavras para outra mulher;

Martírio de sua alma, crucificada em cada palavra de ternura, em cada gesto de

solicitude, em cada amostra de amor com que tanto sonhasse em vão...

— Aimée querida, o que vieste a procurar aqui? — reprova Renato carinhosamente.

— Nada especial querido. Saí sem rumo a tomar um pouco de ar, ouvi de longe a música, vi o resplendor das fogueiras e me aproximei, mas não muito...

104

— Não é para ti isso, Aimée. — Renato a tirou que braço, deixando escorregar

sua mão de cavalheiro sobre a fina pele, sentindo em alma e carne a influência da noite, do ambiente, da terra doce e selvagem; a sugestão daqueles corpos brilhantes e

semidesnudos que se destacam ao longe, na mais lúbrica das danças, e propõe: — vamos daqui, Aimée.

— Você não gosta de vê-los dançar? Espera um momento. Não sabe o que

significa essa dança? Eu sim. Tive uma nodriza negra. Desde muito menina dormia me arrulhando com canções como essa. Uma canção primitiva e monótona com sabor a mundos longínquos, a natureza exuberante: uma canção de amor e de morte...

Aimée pensou no Juan com um anseia que lhe acende os lábios, com um sacudimento que é o escorregar de um calafrio sobre sua pele: Juan... Selvagem como

o mar bravateou que abraça a ilha ardente, estreitando-a, envolvendo-a em seus feras carícias, como se queria sepultá-la, afundá-la, acabar com ela para sempre, para ao fim destroçar-se sobre seus faralones de rochas ou beijá-la em suas breves praias

loiras... Juan, o louco, o pirata, que se foi jurando voltar com a riqueza, para pagar, com a moeda comprada em sangue, seu resgate de um mundo a outro...

— Vamos, Aimée — roga Renato com amorosa suavidade. O braço dele oprime seu talhe docemente, seus lábios a buscam para um beijo contido e tenro, carícia vazia que ela está a ponto de rechaçar e que, ao fim, aceita fechando os olhos, como

algo que escorrega sem deixar rastro.

Vão muito juntos sob as árvores e atrás deles parte Mônica, tão leve o passo que nem sequer rangem sob seus pés as folhas secas, crucificada a alma em sua tortura,

enquanto cada vez ouça mais tênues as roucas vozes da festa negra, as que ela também escutasse do berço em uma canção de amor e de morte.

— Está contente, Aimée? — inquire Renato com acanhamento.

— Pois claro, tolo, não o vê?

— Casaremo-nos em seguida. Minha mãe o deseja e a tua também. Não há

nenhuma razão para esperar mais tempo... Ou é que não está segura de seu amor?

— Está você do teu Renato? Olha, eu sou caprichosa, não sempre estou de bom

humor. Pode que algumas vezes goze te fazendo zangar um pouquinho. É minha maneira de querer às pessoas...

— Então, tenho que traduzir por amor seus caprichos?

— Naturalmente. Quanto mais te exija e mais te incomode, será porque te quero mais. Quanto menos lógica encontre a meus raciocínios, será que estou mais e mais apaixonada. Mas, claro está; tem que me querer você da mesma maneira para

suportar isso. Se não estar louco por mim...

— Estou louco, Aimée — assegura Renato com veemência.

— E é por isso que eu te adoro...

Agora é ela quem joga os braços ao pescoço, quem busca seus lábios uma e outra vez. Deixaram atrás a arvoredo espessa, pisam já as veredas de areia dos

jardins, quando uma sombra inquieta surge frente a eles com umas palavras iniciais de desculpa:

— Perdão por interromper...

105

— Aninha... — estala Renato visivelmente aborrecido.

— me desculpem. A senhora me mandou que os buscasse. As visitas se vão... Perguntam por vocês... Devo dizer que não lhes encontrei?

— Não tem por que dizer nenhuma mentira — responde Renato contendo com muita dificuldade seu mau humor. — Vamos imediatamente a nos despedir deles.

Com passo rápido se dirigiram para a casa. Aninha os olha um instante,

vacila alta a cabeça, e seus olhos escuros distinguem uma forma entre as sombras. É Mônica do Molnar, que dá uns passos até chegar ao banco de pedra, se desabando nele como sem forças e cobrindo o rosto com as mãos. Sem o menor ruído, Aninha se

aproxima dela, indagando com frieza:

— Sente-se mau? Não pode suportar o espetáculo?

— Sim? O que está dizendo?

— Você vinha detrás deles... Não, não se incomode no negá-lo, vi-a perfeitamente. Se não se sentir muito mal, deve ir ao salão. Também notaram sua

ausência... E pode haver comentários...

— E a você o que lhe importa? — encrespa-se Mônica, movida por uma ira

repentina.

— Pessoalmente, nada, é obvio — responde Aninha com suave ironia. — Só cumpro com meu dever de velar pela tranqüilidade da senhora D'Autremont. O médico

proibiu, para ela, as emoções fortes. Precisa viver em paz e sentir-se feliz. Em Campo Real pode arder a casa, com tal do que ela não se inteire. Tudo que eu faço é para, isso, e o senhor Renato sabe. Aqui não importa ninguém mais que a senhora

D'Autremont. Compreende?

Mônica se ergueu pálida e fera, com um relâmpago fulgurante nas pupilas. Mas

frente a sua cólera, a ponto de estalar violentamente, a mestiça baixa a cabeça em gesto submisso, e oferece sincera:

— Pelo resto, senhorita Molnar, embora suponha que não lhe interessa, quero

lhe dizer que conta você com todas minhas simpatias e com meu sincero desejo de ajudá-la se alguma vez o necessita.

— Jamais contei, mas sim comigo mesma, senhorita.. — recusa colérica Mônica.

— Aninha, simplesmente — esclarece à mestiça, suave e dócil. — Não sou, mas sim uma criada de confiança, de absoluta confiança e absoluta lealdade para os

D'Autremont. Agora, com a permissão de você... Eu sim preciso estar junto a minha ama quando as visitas se despeçam.

Mônica arde de ira, mas se secaram suas lágrimas, ergueu-se seu talhe, há-se

sentido, de repente, forte e altiva, e com passo firme vai para a escalinata de pedra.

— Seis meses são uma enormidade, querida — objeta Renato.

— Parece-te... — titubeia Aimée com astúcia.

— Claro que sim, e apelo ao critério de nossas mães. Por que não começamos a prepará-lo tudo imediatamente? Se Correm as admoestações, se reúnem os papéis

precisos e, quando tudo esteja preparado, casamo-nos santamente.

— Quanto demorará todo isso?

106

— Não sei. Quatro semanas, cinco, acaso seis...

— Nada mais? Pois não é possível, Renato querido. Em cinco ou seis semanas não pode estar lista meu enxoval de bebê de noiva. Até que nos voltássemos loucas

costurando, necessitaríamos pouco mais ou menos os seis meses de que falei antes...

— Por seu enxoval de noiva não se preocupe — intervém Sofia. — Era uma de minhas surpresas pró já que chegou o caso, mais vale que os diga de uma vez. Seu

enxoval de bebê de noiva, a mais linda que possa sonhar-se, estará aqui justamente nesse tempo: quatro semanas, cinco, no máximo seis...

— Mamãe querida, acredito que te compreendo — exclama Renato

profundamente contente.

— Certamente, filho — convém Sofía. Logo, elevando a voz, chama: —

Aninha...

— Chamava-me você, madrinha? — pergunta à mestiça, acercando-se.

— Sim; traz à caderneta onde apontamos os encargos feitos a França, quer?

— Sim, madrinha, em seguida.

Silenciosa, rápida, diligente, com aquela eficiência que é sua característica e

aquela discrição que tanto tem de disposta Aninha se apressou a pôr em mãos da senhora D'Autremont a caderneta pedida. Passaram já vários dias desde que as Molnar chegassem a Campo Real, e estão juntos em grupo familiar: Renato,

apaixonado; Aimée, defendendo-se entre refugos e paqueras; a senhora Molnar, humilde e sorridente, tratando de fazer o milagre de dar a razão a todo mundo;

Pálida, silenciosa, tensa, Mônica do Molnar, pendente de cada palavra, de cada

gerou, como espiando o pulsar dos pulsos daquele pequeno mundo que Sofía D'Autremont presida com seu lânguido gesto de doente, com a falsa condescendência

de sua educação deliciosa...

— Exatamente. O pedido se fez faz quase um mês — fala Sofía, depois de consultar a caderneta. — O mesmo dia que me falou de Aimeé, de seu amor por ela.

— É possível, mamãe? — comenta Renato gratamente surpreendido. — É que me adivinhou o pensamento! Isso era o que eu queria.

— Já é quase quão único fica como mãe amorosa de um filho único: te adivinhar o pensamento — observa Sofía em um arrebatamento de ternura. Logo, dirigindo-se a sua futura nora, pergunta: — E bem, Aimeé, ficaste-te pensativa? Já não há problema

para seu enxoval de bebê. Era essa sua única preocupação, o só motivo para esperar seis meses o feliz dia de seus bodas?

— Talvez Aimeé não esteja segura de seus sentimentos — sugere Mônica sem

poder dominar este ato impulsivo.

— O que diz Mônica? — se estranha Sofía.

— Digo que bem pode ser isso o que a faça duvidar. Às vezes faz falta tempo para damos conta de um equivoco... — insinua meigamente Mônica.

— Você é quem se equivoca totalmente! — salta Aimeé com gesto agressivo. —

De meus sentimentos não há dúvida nenhuma. Nem a tenho eu, nem Renato pode tê-la. E para que não siga interpretando as coisas a seu desejo, dito-me neste momento:

107

Casaremo-nos quando quiser Renato, quando você queira! Dentro de cinco semanas?

Pois bem, dentro de cinco semanas serei sua esposa!

Relampagueantes as pupilas, como um felino a ponto de saltar para lutar com

todas suas forças, respondeu Aimeé às palavras de Mônica, enquanto um sopro tempestuoso cruza sobre a reunião familiar. Sofía D'Autremont a olha surpresa, desconcertada; Aninha deu um passo colocando-se detrás dela, como se dispusera a

respaldá-la, enquanto Renato, pálido de ira, contém sua expressão com esforço, e Catalina do Molnar acerta por fim a balbuciar as palavras que o espanto afogou em sua garganta:

— Mônica, Mônica, mas perdeste a razão, filha? Por que diz isso?

— Por que tem que dizê-lo se não porque me odeia? — não pode conter-se

Aimeé. — Me odeia, aborrece-me!

— Em minha opinião, nenhuma das duas sabe o que diz — intervém, conciliadora, Sofía. — Se acaloraram sem razão de nenhuma espécie. Certamente

Mônica cedeu a um rapto involuntário de impaciência.

— Acredito que lhe deve uma explicação a sua irmã, Mônica — aconselha

Renato, categórico e severo.

Mônica não pode agüentar a tensão que a absorve e domina, e sem dizer uma palavra abandona o grupo, afastando-se correndo.

— Mônica! — a chama Renato profundamente estupefato.

— Não vá com ela, Renato. Não tome em conta. Não é suficiente que eu esteja disposta a te agradar? Deixa-a... Deixa-a...!

— Sua noiva tem razão, meu filho. Escuta-a e lhe atenda a ela, que bastante mortificada está pela intemperança de sua irmã.

— Quero lhes recordar a todos que Mônica está doente, e justamente dos nervos — intercede Catalina com o louvável afã de subtrair importância ao ato tão desagradável. — Estou segura que não quis dizer o que disse, nem incomodar a

ninguém. Mas a pobrezinha está mau não come, não dorme...

— Você sim deveria ir atrás dela, Catalina, e lhe dizer o que faz ao caso.

Certamente, sem ser muito severa — aconselha Sofía com benevolência. — "Em efeito, sua linda filha maior não se vê saudável, e nossa adorável Aimée se estava fazendo de rogar muito. Não te parece, filhinha, que além de sua rudeza, sua irmã tem feito bem

em te ajudar a que lhe ditas?

Aimée fez um esforço para conter-se, para sorrir, para recuperar a máscara Angélica que um momento a fizesse abandonar a ira, e com falsa modéstia responde:

— Eu estava decidida já, dona Sofía. Não discutíamos, mas sim uma data. Eu sou tão feliz sendo noiva do Renato, que não quero nem necessito nada mais.

— As flores são belas, mas dar fruto é a função natural da árvore. O noivado é como a primavera. É ainda muito menina para compreender certas coisas. Entretanto, pensa que estou doente, que não sou jovem, e que o último de meus sonhos é dormir

em meus braços a um neto. Que seja quanto antes essas bodas...

Renato tomou entre as suas a mão do Aimée, mas não sorri. A olha gravemente, com um olhar profundo, como se queria penetrar até o mais íntimo de seus

108

pensamentos, como se pela primeira vez achasse um mistério naquela alma de

mulher, em que cifra toda sua esperança de sorte. Mas não é uma pergunta, mas sim uma promessa, o que por fim escapa de seus lábios:

— Viverei para procurar sua sorte, para. Te fazer feliz, Aimée.

Juntas as mãos, inclinada a frente, de joelhos ante o altar do Crucificado que preside a pequena igreja de Campo Real, Mônica procura em vão palavras para sua

oração, e não as acha. Eleva só um pensamento dolorido e rebelde:

— Perdão, Senhor, perdão...

Uma espuma amarga, de rancor e de ciúmes, mescla-se à oração em seus lábios

e, como relâmpagos, passam sentimentos diversos iluminando o negro céu de seu mundo interior, enquanto segue sua reza:

— Não foi por ódio.. Foi por amor... Mas meu amor é culpado também. Meu amor é pior que o ódio...!

Está sozinha sob a única nave do diminuto templo, casa de Deus de largas

paredes branqueadas de cal, de toscos arcos Coloniais nos que cravam seus caules presos as frescas trepadeiras tropicais. Perto do altar estão os genuflexórios de

terciopelo dos D'Autremont: logo, os largos bancos de madeira para os jornaleiros e serventes. Mas nem amos nem servidores passam neste instante por suas altas portas. Só a frágil mulher vestida de negro que reza e chora com as mãos juntas, e,

como uma sombra, Renato D'Autremont que de longe a contempla...

— Senhor, não permita que minha língua volte a mover-se torpemente. Me dê à força de calar e a humildade de baixar a cabeça frente à injustiça...

Suas lágrimas correram um instante, mas se secam ao contato de sua pele ardente. Algo como um pressentimento a estremece. Há sentido que o calor de um

olhar a envolve. Alguém a observa, alguém está perto dela. Bruscamente, volta à cabeça e um calafrio a sacode...

— Renato! Não... Não...!

Mônica foge. Pretende fugir, esquivar ao Renato. Não se encontra com forças de resistir agora seu olhar frente a frente, de escutar suas palavras que adivinha

carregadas de recriminações. Quer escapar a essa tortura, mas não pode. O a seguiu, cruzou também o pequeno templo e a detém lhe fechando o passo logo que pisa nos quadros do jardim que o rodeia, reprovando-lhe:

— Foge como se tivesse visto o demônio. Por quê?

— Não te tinha visto. Terminei de rezar E...

— Não minta! — interrompe-a Renato. — me Perdoe se te parecer brusco e rude,

mas temos confiança de irmãos. Olhei-te e te considerei sempre como a mais fraterna das amigas, e logo seremos irmãos realmente.

— Não se é irmãos, mas sim pelo sangue! — protesto Mônica, doída pela recriminação de Renato.

— Já vejo que de mim não quer sê-lo, e é justamente por isso meu empenho em

te falar.

109

— Não vale à pena. Incomodarei pouco. Acredito que amanhã mesmo posso

retornar ao Saint-Pierre e esperar em minha casa a mamãe e a Aimée.

— Tão mal se sente na minha? Tão desagradável lhe resulta minha presença?

Porque suponho que não será a de minha pobre mãe, que te encheu de cuidados, que até hoje estava encantada contigo, o que... — interrompe-se e, adotando um tom afetuoso, pergunta: — Mônica, o que tem? Enquanto rezavas te vi chorar. Seria mister

estar cego para não me dar conta que agora mesmo está lutando com suas lágrimas. Sofres... Vejo que sofre... Mas, por quê? Por quem?

Com que terrível esforço sujeita Mônica o coração que lhe desboca. Com que

alarde de vontade suprema traga o nó de lágrimas que lhe enrosca na garganta como uma serpente, e apura as mãos cravando as unhas na pele, depois o pálido rosto se

serena, enquanto acha milagrosamente a suficiente força para responder fria e cortesmente.

— É muito amável preocupando-se por minhas lágrimas. Mas não lhe dê mais

importância que a que tem: um pouco de excitação nervosa e um pouco de nostalgia pela paz de meu convento. Asseguro-te que não é mais que isso.

— É que antes te expressou de uma maneira que... — rechaça Renato.

— Que não podia ofender a ninguém — se rebela Mônica, alterada, mas contendo-se mediante um supremo esforço. — Me limitei a lhe perguntar a minha

irmã se estava segura de seu sentimento. Acredito que no matrimônio é preferível arrepender uma hora antes que um minuto depois.

— Em efeito; mas, por que havia Aimée de arrepender-se? No que pode te apoiar

para pensar que não sou digno dela?

— Eu jamais hei dito isso! — nega Mônica vivamente.

— Não é preciso dizer o que se dá a entender com toda clareza a rede — se queixa Renato com certa amargura. — Há algo em mim que não gosta para sua irmã. Trocou totalmente, deixou de ser minha amiga desde que te deu conta de que a

amava... É a verdade. E falemos claro de uma vez: desde que saiu do convento, as poucas vezes que nos vimos me trataste com frieza, com antipatia... Quase poderia te

dizer que com aborrecimento. Por quê? Que mal te tenho feito? Nenhuma verdade? O que pode ter contra mim, mas sim o medo de que não faça feliz a sua irmã? Que enguiços vê em mim? Quantos defeitos me encontra?

Outra vez Mônica lhe olhou em silêncio, contendo suas emoções. Outra vez tem feito o milagre de permanecer fria e serena, afogando aquela verdade que com o pulsar de seu coração parece lhe golpear as têmporas. Outra vez conseguiu responder

cortesmente, com um pouco parecido a um sorriso:

— O que diz é pueril, Renato. Quem pode encontrar em ti um defeito? É o

homem mais rico da ilha, o mais importante depois do Governador, e até antes que ele para a maior parte das gente. Tem nome, fortuna, juventude e talento. Á que coisa melhor que a ti pode aspirar uma mulher?

— Ultrapassa-te no elogio, ou é cruel em sua brincadeira. Se eu tiver todo isso, o que tem você contra mim?

— Nada, Renato. O que posso ter? Vivemos emmundos diferentes, e este não é o

meu; por isso resulto incompreensível aos olhos de muitos, de ti o primeiro. Te

110

esqueça de mim, que se esqueçam todos. Me permitam voltar para o Saint-Pierre, e

você seja feliz, tão imensamente feliz como desejo que chegue a ser. Te esqueça de mim, Renato. É tudo o que tem que fazer.

— Mônica... Mônica.. — chama Renato ao ver que esta se afasta com passo pressuroso.

— meu Renato, o que te passa? O que tem? — pergunta Aimée, aproximando-se

solícita a seu noivo. — Está alterado, muito pálido, e não acredito que valha a pena. Não deve fazer o menor caso de quanto te há dito...

— Falava com a Mônica...

— Já sei. Vi-a passar correndo. Saí para te buscar, porque imaginei que viria detrás dela e não podia consentir que me caluniasse...

— te caluniar? — surpreende-se Renato. — Nada disse de ti. O que podia me dizer? Eu sou quem, pelo visto, não satisfaço seu ideal para cunhado...

— Disse-te isso? — exclama Aimeé no cúmulo do assombro.

— Está muito claro para que não o entenda. Acredito que não me acha digno de seu amor e que lhe incomoda ver como me quer.

Aimée fez um esforço para conter um sorriso zombeteira que brinca já em seus lábios, e respira depois profundamente, sentindo-se segura de si mesmo, desfruta como nunca da situação, com força e poder para decidir três vistas seu desejo e,

condescendente, reprova-lhe:

— Meu querido Renato, é incrível que confie tão pouco em seus próprios méritos, que lhes dê tanta importância às bobagens da Mônica

— Você a deu primeiro que eu. Se forem tolices, por que te alterou dessa maneira?

— Eu, não sou mais que uma débil mulher. Você, em troca, é o homem forte, sábio, inteligente... O melhor é que se afaste dos arrebatamentos da Mônica.

— É precisamente o que me pediu ela: que a esqueça que a deixe voltar amanhã

mesmo ao Saint-Pierre para esperar ali a volta de vocês.

— Parece-me muito acertado, mas não que se ela vá sozinha. Será melhor que

retornemos as três, que arrumemos lá as coisas enquanto você as acertas aqui, que mande a reparar a toda pressa a casa da capital, que é o lugar indicado para que passemos nossa lua de mel, e quando tiverem transcorrido essas cinco semanas

indispensáveis para tudo isto, casemo-nos enquanto Mônica volta para seu convento, que é o lugar que lhe corresponde. Que tome ao fim os hábitos, que professe. — E com uma jovialidade que, mas bem é ironia, declara: — E que reze por nós, que reze por

nossos pecados, já que escolheu esse caminho para chegar ao céu.

— Ir você também? Me deixar?

— Por uns dias somente, meu parvo querido. É indispensável. Se tivermos que nos casar, há mil coisas o que dispor. Se estivermos oficialmente comprometidos para nos casar, não é muito correto que viva eu em sua casa, que durmamos sob o mesmo

teto. Não te parece?

111

Beijou-o com um comprido beijo ardente, fechando os olhos, acaso sonhando

que é outra boca a que beija, e um insistente miserável por aquele torvelinho, responde Renato a seu beijo de fogo, sussurrando:

— Aimée... Minha vida...!

— E agora, formalidade — aconselha Aimée, reagindo. — vá dispor as coisas para que amanhã cedo nos levem ao Saint-Pierre. Eu vou dizer se o ai mamãe e... —

interrompe-se ao ver uns passos deles a Aninha, e não pode menos que lançar uma exclamação de surpresa — Ah...!

— A senhora Sofía aguarda senhor Renato em seus aposentos — avisa à

mestiça, adotando um tom humilde. — O pede que vá imediatamente.

— Com você não ganha um para sustos, Aninha — brinca Aimée com intenção

avessa. — O que é o que fica nos pés para pisar como os gatos?

— Meu desejo de servir aos D'Autremont, senhorita. Como até agora não houve nesta casa nada o que surpreender nem ocultar...

— Nem o há tampouco agora, Aninha — repreende rudemente Renato. — Pode você omitir as reticências.

— Perdão, senhor. Eu só disse...

— Ouvi perfeitamente o que disse. Não quero seguir falando do assunto, já que esclareci o ponto total e absolutamente. Não há mistérios, mas não tudo pode falar-se

diante da servente.

— O que? — surpreende-se agora Aninha.

— Será muito saudável que o recorde — recalca Renato. Logo, trocando a

expressão, dirige-se a Aimée -- Com sua permissão, vou ver o que quer mamãe.

— E eu também vou acautelar a minha gente. Até agora mesmo, verdade?

— Até sempre, minha vida...

Inclinou-se, levando-se aos lábios a mão do Aimée e beijando-a com tenro respeito. Depois se afastam ambos por distintos rumos, enquanto, inclinada a frente,

ardendo às bochechas como sob a ofensa de uma bofetada, E Aninha permanece imóvel, tensa, até que o olhar áspero e sereno do homem que se aproxima se fixa nela

e observa:

— Aninha o que faz aqui?

— Nada, tio... — responde à mestiça fazendo um verdadeiro esforço.

— A isso se aplicam todos nesta casa: a não fazer nada. E o que é no campo, se não estivesse eu sempre atento, com a vara na mão, não haveria tampouco quem se movesse. A vida vou deixar-me nas novas plantações de cana que estamos fazendo!

Araram-se quatro parcelas em degrau, quase até o alto do monte. Eu gostaria que o senhor Renato o visse. Deveriam dar uma volta por lá. Ouve-me? — resmunga Batista.

E ao observar atentamente a estranha expressão de sua sobrinha, indaga: — Mas o que é o que tem? Ao que parece, vais chorar. O que te passou?

— Nada. O senhor Renato se dignou me recordar que não sou aqui mais que

uma faxineira. Incomodou-lhe que ao me aproximar o visse beijando a essa Molnar... A essa Aimée que não é mais que qualquer...

112

— Mas como te atreve...?

— Qualquer pode vê-lo. Basta olhando-a. Mas o senhor Renato é surdo e cego, porque não quer nem ouvir nem ver. Bom, mais vale que eu me cale, tio.

— De acordo. Acredito que mais vale que te cale se for dizer disparates. A senhorita do Molnar será nossa proprietária dentro de cinco semanas conforme me disse.

— Em Campo Real não haverá nunca mais que uma proprietária: a senhora Sofía. A outra, que não venha... Que não venha, porque irá muito mal se vier!

— Mas o que diz? Muito mal?

— E eu serei a que me ocupe disso!

— O que faz Mônica? Vejo que apressa as coisas... A voz de Aimée chegou até a

Mônica golpeando seus nervos em tensão, detendo-a, para deixá-la imóvel frente à pequena mala que está pondo em ordem. Acham-se no amplíssimo quarto que lhe destinaram naquela espécie de palácio campestre, a mais singela das três, não

obstante os ricos cortinados, polido-los pisos, os luxuosos e bem cuidados móveis...

— Pode me deixar um momento em paz, Aimée?

— Não se preocupe. Não devo discutir nem a te reprovar. Ao contrário. Não teriam razão de ser. Estou encantada por sua magnífica iniciativa de voltar quanto antes para o Siant-Pierre. A idéia é, certamente, de meu mais absoluto gosto.

— Me imagino. Sei quanto desejas me perder de vista.

— Neste caso, perder de vista a meu futuro palácio, a minha futura família e a meu futuro reino...

— A que vem todo isso?

— Compreenderá que mamãe e eu vamos também. Já o hei dito a ela e se ficou

pouco mais ou menos que com um ataque de nervos. Seria conveniente que a acalmasse você que sabe fazê-lo. A pobre mamãe tem um santo horror a que nos escape Renato, mas eu não. Sei que o tenho bem seguro e embora lhe aduela ouvi-lo

lhe quero afirmar isso uma vez mais.

— Não me dói. Lamento muitíssimo haver dito o que disse. Por isso quero

retornar ao Saint-Pierre; mas retornar eu sozinha. Não que por mim se interrompa a visita de vocês.

— Por ti não se interrompe nada, irmã. Te acalme. Eu sou a que quero ir, eu sou

a que estou farta de tudo isto.

— E, entretanto, pretende te casar com o Renato — refuta Mônica sem poder suavizar o tom violento de sua voz. — por que não é leal com ele? Por que me obriga a

fazer o que não quero fazer? Se seguir como está, obrigará-me a lhe falar claramente.

— Não acredito que te atreva. Hoje perdeu uma ocasião estupenda. Tivesse

podido te justificar lhe falar de seu amor, mas único que te ocorreu foi lhe dar a entender que não lhe gostava para cunhado. Porque, certamente, disse-me isso. O me conta isso todo. Até seus mais recônditos pensamentos me pertencem. E é um

menino, sabe? É um menino tolo... E suponho que o bastante bom para seguir sendo parvo até o fim de seus dias.

113

— Se soubesse como me repugna quando fala assim! Como te odeio quando...!

— Que ato de sentimentos te faz irmã! — a interrompe Aimée com uma risada suave. — Me odeia porque está ciumenta, e está ciumenta porque o quer.

— Quer te calar de uma vez? O que é o que pretende? Me voltar louca?

— Te acalme, Mônica, e não grite. Acertou ao dizer que não estou segura de meus sentimentos e, naturalmente, quero está-lo antes de me casar.

— O que diz Aimée? — esperança-se a noviça.

— Procurar minha verdade em uns dias de repouso e de isolamento. Quero voltar para o Saint-Pierre para isso: para estar sozinha. Para me dar conta de como

são as coisas realmente; para decidir se me caso com o Renato, ou se não me caso. Vou fazer o que você chamaria exame de consciência. Pode que me case. São

demasiadas as vantagens que Renato me oferece. Pode ser que não me case que prefira a liberdade à riqueza. No segundo caso... — Sua voz não pode disfarçar a ironia que a invade: — No segundo caso, minha querida irmã, darei-te uma prova dessa

generosidade minha que tanto puseste em dúvida. Devolverei-lhe isso!

Como um relâmpago de esperança cruzou sobre a alma da Mônica, embora as

últimas palavras de sua irmã a ferem e a ofendem. Dúvida, luta, vacila, retorce-se naquela dura batalha empenhada contra si mesmo, enquanto quase afável, quase sorridente, goza Aimée da desforra de vê-la tremer. Talvez um momento cruza a

compaixão pelos olhos escuros de Aimée, mas se apaga ao grito de seu egoísmo, ao benévolo prazer de dirigir outras almas a seu desejo, enquanto a palavra violenta estala nos lábios da Mônica:

— Não tem nada o que me devolver! Mas não cria que vais seguir te divertindo, jogando com ele!

— Por que não? Quando entrega o coração sem condições, não podemos nos queixar muito do que acontece. E ele me entregou seu coração. Quer-me mais que a si mesmo e sem rodeios me confessa isso.

— Porque está cego, porque não sabe quem é. Se lhe conhecesse realmente, se eu lhe dissesse de ti... — adverte friamente Mônica — E muito bem sabe o que poderia

lhe dizer.

— Você é quem não sabe — se enfurece Aimée. — Não pode me acusar, mas sim de tolices, de criancices, de bobeiras. Não tem uma prova contra mim, e lhe desafio a

que me acuse sem provas. Já verá se te crie, já verá contra quem se volta...

— Contra mim, por desgraça — aceita Mônica com profunda dor.

— Me alegro muito que o compreenda. Mas embora fora verdade, embora

conseguisse lhe demonstrar que sou indigna, sabe o que conseguiria com isso? Que te odiasse! Porque matar sua fé em mim é lhe condenar a sentir o mais desventurado dos

homens!

— Disso te aproveita...

— Não faço, mas sim me defender. Boa é você para não fazê-lo. Se desde menina

não tivesse estado eu alerta... Comigo não te faça a boa. Quereria lombriga morta...

114

— Com quanta injustiça fala Aimée! Eu quereria verte feliz, mas fazendo feliz a

ele também. Saber que foi capaz de ser honrada, digna, reta, de lhe ser leal, totalmente leal...

— Seriamente? Só estando segura disso te consideraria ditosa? Que seja leal, verdade? Que seja sincera... Pois bem, vou ser. É justamente o que te prometo: não me casarei com o Renato sem estar segura de poder lhe brindar essa felicidade que

você quer para ele e que eu desejo para mim mesma. Mas quando me casar, se me dito a fazê-lo, fará-me o favor de me deixar tranqüila. É todo um pacto. Aceita? Selamos com um beijo?

— Aceito... Mas não é necessário o beijo.

— Rancorosa né? — ri zombadora Aimée. — Eu sou a que deveria estar zangada.

Boa punhalada traiçoeira quis me dar. Mas não me importa. É a ovelha branca das duas irmãs: aplicada, a nobre, a prudente, a boa... Eu tenho algumas manchas, mas sou a mais forte e não te guardo rancor de nenhuma espécie. — E dizendo e fazendo,

beija a sua irmã.

— Filhinhas... Vá, menos mal. — É Catalina, que chega junto a elas. — Temi

que seguissem discutindo. É tão doloroso para eu vê-las dessa maneira, uma contra a outra... Doe tanto no coração de uma mãe essas desavenças... Ai, se os filhos soubessem... — Um suspiro enche o coração da mãe.

— Mamãe, Por Deus, não fique romântica — rechaça Aimée com alegre jovialidade. — Já passou tudo; foi uma nuvem do verão. Verdade, Mônica? Mas já verá como não volta para suceder. De agora em diante, minha irmã e eu vamos levar-

nos maravilhosamente: eu em minha casa e ela em seu convento. A situação ideal para não nos desgostar. E se andando os anos me sai uma filha cabeça-de-vento e

coquete, se a envio a sua tia a abadessa para que a exorte E...

— Aimée! — interrompe-a a voz do Renato que a chama do corredor.

— Acredito que me chama Renato — comenta Aimée; e logo, elevando a voz,

responde: — Aqui estou querido. Entra.

— me perdoem vocês — se desculpa Renato do umbral. — Sem dúvida,

interrompo uma conversação familiar, mas é o caso que mamãe quer te falar em seguida, Aimée. A pobre lhe tem recebido bastante mal a notícia da viagem de vocês.

— Em dois minutos o arrumo eu tudo e a convenço de nossas magníficas razões

— assegura Aimée. — Não vem comigo; Renato?

Este se ficou olhando a Mônica, imóvel frente à pequena mala aberta, tão pálida, tão frágil, com uma expreção tão dolorosa nos lábios, que um irresistível sentimento

de amistosa compaixão o aproxima dela, e suplica:

— Não queria que fosse desgostada comigo, Mônica.

— Não o estou, Renato, nem haveria razão para isso. É o melhor dos homens...

— Não o sou, mas desejo sê-lo, para lhe brindar a sua irmã toda a felicidade que merece, para que um dia possa me olhar como irmão, embora não tenhamos o mesmo

sangue...

Com rápido gesto tomou a mão dela, levando-lhe aos lábios, e logo marcha detrás o Aimée...

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— Que bom moço. Senhor — exclama Catalina. — Não o há melhor no mundo

inteiro. Eu também vou preparar as malas.

Mônica ficou sozinha, imóvel, sentindo sobre a pele de sua mão direita a doce e

ardente sensação daquele beijo, o quente deleite daquela carícia que acende de rubor suas bochechas... E furiosamente se crava as unhas, apagando com sangue o rastro daquele beijo...

CCapítulo 17

— É uma grande honra sua visita para mim, senhorita, mas francamente não

recordo...

116

— Não fatigue sua imaginação, doutor Noel. É a primeira vez que nos vemos...

De perto. De vista lhe conheço o bastante. No Saint-Pierre, mais ou menos, todos nos conhecemos, verdade?

— Eu não acredito ter tido o gosto até agora.

— Meu nome é Aimée... Aimée do Molnar...

— Agora sim. Acabamos! Depois de tudo, não falta a você razão. De vista, mais

ou menos, todos nos conhecemos. Conheço a senhora sua mãe, e seu senhor pai, que em paz descanse, foi amigo meu também. Mas, no que posso servi-la? Em primeiro lugar, sente-se... Sente-se...

— Não faz falta; minha visita será muito curta... Dominando seus nervos, olhando furtivamente às janelas e às portas daquele velho e desmantelado despacho,

Aimeé parece decidir-se a jogar a perigosa carta de seu empenho. Leva já vários dias no Saint-Pierre inquirindo inutilmente, perguntando em vão, deslizando-se ao bordo dos ambientes em que poderia recolha r alguma informação, e ao fim se há decidido a

visitar velho notário que agora, ao contemplá-la entre curioso e agradado, afirma:

— Vi você algumas vezes de menina, mas se há transformado

maravilhosamente. No que posso servi-la, minha filha? Vejo-a nervosa...

— OH, não! No absoluto... Minha visita é uma tolice... Quero dizer que não é para nada sério. Passei perto e pensei: Pode que o senhor Noel saiba algo derme

encargos. Não me entende, claro. Me perdoe. É um enredo... Resulta que eu lhe tinha dado umas moedas ao patrão de certo veleiro para que me trouxesse da Jamaica perfume ingleses.

— Perfumes ingleses? Não nos envia a França os melhores perfumes do mundo? — escandaliza-se o bom Noel.

— Sim, sim... Claro... Mas não se trata disso. Era um perfume especial o que eu queria... Um perfume para cavalheiros... E algumas camisas. Algumas dessas admiráveis camisas inglesas que não se parecem com nenhuma. Trata-se de um

presente que quero fazer. Um presente para meu prometido. Estou de noiva, doutor Noel. Casarei-me muito em breve...

— Pois felicito a seu futuro. Mas siga seu conto: Você deu umas moedas ao patrão de um veleiro...

— Para que me trouxesse perfumes da Jamaica. Mas o homem não voltou...

— E quer você demandá-lo. Tem recibo?

— OH, não! Absolutamente. Acredito que se trata de uma pessoa de confiança. Recomendaram-me isso como tal. Mas ninguém me dá razão dele, e como alguém me

informou que era amigo de você...

— Amigo meu um patrão de veleiro? Como se chama?

— O sobrenome não sei. Seu navio se chama o Lúcifer

— Juan do Diabo! Mas é fantástico o que você me conta. Juan do Diabo, conexionista de perfumes!

— Bom... Era um favor particular o que ia fazer-me. O roguei, acessou lhe dava o dinheiro, disse-me que logo estaria de volta, mas ninguém sabe nada dele.

117

— Em efeito, senhorita Molnar. Ninguém sabe nada dele, nem acredito que

saberá em muito tempo. Vejo-me na obrigação de ser sincero, porque conheço seu prometido: conheço e quero ao jovem cavalheiro Renato D'Autremont.

— Doutor Noel... — engasga-se Aimée com o nervosismo da surpresa refletida em seu lindo rosto.

— E não sei por que imagino que é ele quem a envia.

— O que diz? — apressa Aimée já no cúmulo do assombro.

— Renato pertence à estranha casta de homens muito generosos, muito bons. Lhe preocupa extraordinariamente a sorte de Juan do Diabo, e não lhe bastou tirando

o de um apuro recebendo sua ingratidão em pagamento. Agora se empenha em saber o que foi que ele, verdade? E como teme um sermão de minha parte a manda a você...

— Eu... Eu... — balbucia Aimée, sem acertar a compreender.

— Minha linda senhorita Molnar, muito me temo que Juan, pelo que confesso que sinto afeto apesar de tudo, esteja metido em um assunto bastante feio. Não ouça

conselhos. Empenhou-se em fazer fortuna de repente. Com segurança não sei o que está fazendo, mas me temo que as autoridades se achem já sobre aviso com respeito a

ele. Não acredito que possa retornar, não acredito que voltemos a lhe ver pelo Saint-Pierre em muitos anos. Porque se voltasse, é quase seguro que iria parar ao fundo de um calabouço, e Juan do Diabo não é tão parvo para isso!

Pedro Noel falou deixando-se levar por seus sentimentos sem reparar apenas no efeito que suas palavras fazem na linda moça que lhe escuta consternada, juntas as mãos, aumentadas as pupilas, contendo milagrosamente a faz ondas de desespero que

a envolve. Ao fim, Aimée do Molnar fica de pé e, mais que falar, seus lábios balbuciam:

— Está você seguro disso?

— Naturalmente. Lhe diga ao Renato que não se preocupe mais dele, que o deixe correr sua sorte. Bem ditosos podemos estar com que não o enforquem um dia destes ou lhe partam o coração, de uma punhalada, em uma rixa de botequim. Que se até

agora saiu bem de todos os enredos, não quer dizer que essa sorte vai durar lhe sempre. Um dia lhe acaba, e zás! Um moço a menos... .

— Você crie que está louco?

— Acredito que foi muito desgraçado de menino e que essas coisas sempre deixam rastro. Nasceu com uma estrela negra... É uma história larga e confusa... Mais

vale que não dela fale. Para que?

— É que eu queria saber... Se você me disser isso, dou-lhe minha palavra de não repeti-lo a ninguém... Nem ao Renato sequer. Bom, a verdade é que ele não sabe

que vim. Eu vim por minha conta, inquieta ao lhe ver preocupado. E também o dos perfumes é certo. O me prometeu voltar... Voltar em cinco semanas.

— Espere-o cinco anos... E acaso volte. Seus encargos eram presente para o Renato?

— Sim, mas não quero que ele saiba.

— Meu conselho é de que se esqueça de todo isso você também.

— Esquecerá-se também você de minha visita?

118

— Bom... Se você o desejar...

— O rogo. Tem-me feito você um grande favor... Um enorme favor...

— Sim, Renato, vá as buscar. Parece-me muito boa idéia. Vá buscá-las e apressa as coisas. Guía-te sempre por sua razão, por seu critério, que é o que deve prevalecer no matrimonio. Mau é que um homem acesse em tudo aos caprichos de

uma mulher. Já sei o que pensa: que como te falo deste modo, sendo eu mulher. Pois, porque é meu filho, Renato, e te sei brando, complacente, tenro, muito generoso, acaso muito apaixonado...

— Mas, mamãe... — Há uma repulsa na voz do Renato pelos conceitos de sua mãe.

— Ninguém nos ouça. Acredito que posso te ser absolutamente sincera. —Você sabe que ninguém te quer mais que eu. Ninguém!

— Aimée me quer...

— Certamente, filho. Nisso confio. Quer-te, não tem por que não te querer. Bem contente pode estar com sua sorte. Quer-te, mas, além de te querer, deve te respeitar,

entender que seu destino é estar sujeita a ti, que seu primeiro dever é obedecer-te. Aimée, que é deliciosa, parece-me, entretanto, um pouco inquieta, consentida e mimada ao extremo. Uma mãe muito branda, um pai ausente primeiro e logo morto...

Sua irmã maior parece muito descontente com ela. E Mônica, apesar de seus arrebatamentos, parece-me uma pessoa excelente, sólida e reta.

— Sempre a tive como tal, mas agora, seus nervos...

— Qual é a origem dessa enfermidade nervosa?

— Não sei mamãe. Às vezes me parece que tal enfermidade não existe que é uma

forma de desculpar, de explicar um estado de ânimo áspero e hostil com todo mundo, ou ao menos comigo. Não lhe queria dizer isso, mas já que leva as coisas por esse caminho, mais vale que saiba: Mônica não é minha amiga desde que empreendi as

relações com o Aimée.

— Atirava já para monja quando isso?

— Não; sua vocação religiosa apareceu depois. Por que me pergunta isso?

— Por nada. Às vezes a imaginação vai muito longe e mais vale não deixá-la voar. Em definitiva, Renato, amanhã sai para o Saint-Pierre e as traz. Pode ficar ali

dois ou três dias, o necessário para ativar os papéis dela, que certamente não tomará mais tempo. Quando voltar, tudo estará disposto. Quero que te case aqui, em nossa velha igreja, onde lhe batizamos, onde velamos a seu pai, onde um dia me velará

também... É nossa tradição. Nunca amei muito a esta terra. Agora acredito que fiz mau. Aqui está minha vida, posto que está a teus e estará a de seus filhos. Quero que

me dê muitos netos! Quero vê-los crescer sãs e alegres em seu Campo Real, e que a linda mariposa, que é hoje sua noiva, se converta na mulher forte e serena que eu sonhei a seu lado. Quê-la, mas não a abandone a seu desejo. Guiá-la, sustentava fá-la

a seu modo, modela a alma para que seja sua mulher, não a linda borboleta em que ameaça converter-se. Que seja digna de seu amor, e estará em Campo Real como uma rainha.

119

— Em Campo Real...

— Claro. No que pensa?

— Aimée sonhava vivendo no Saint-Pierre, e eu lhe tinha prometido mandar

reparar nossa velha casa... É tão jovem, tão alegre... Temo-me que se aborrece muito no vale.

— Que loucura é essa? Pouca confiança tem em ti mesmo sim pensa que pode

aborrecer-se sua mulher estando a seu lado. Bom, nenhuma palavra mais dessa tolice. As obras que mandei fazer na asa esquerda da casa estarão a tempo para que passem ali uma deliciosa lua de mel. Ao Saint-Pierre poderá ir quando você a leve de

passeio. Este é o lar dos D'estas Autremont são suas terras e é aqui onde tem que viver a mulher que se case contigo.

— Eu penso como você, mamãe, naturalmente. Mas é duro começar por discutir com ela. Não cria que me falta caráter. Tudo que diz era também meu propósito. Mas a quero tanto! Tenho tal desejo de vê-la feliz!

— Já sei. E é contra a debilidade de seu grande amor contra a que te acautelo. Enche a de amor, mas lhe exija que lhe corresponda plenamente. E se não estiver

seguro de poder fazê-lo, não te case com ela.

— Sim, mãe. Casarei-me e será tal como você o deseja: minha esposa, minha companheira em tudo. Farei-o, mãe. Tenho que fazê-lo, porque eu não poderia viver

sem ela, porque a quero mais que a minha vida, e como a minha própria vida defenderei o direito de que seja minha totalmente.

— Juan, Juan!

O nome escapou, como um soluço, da garganta trêmula do Aimée. Está sozinha

na praia. Só frente ao mar sempre inquieto que banha as costas martiniquenhas. Só frente à tormenta de sua alma, frente à marejada brutal das lembranças, e murmura:

"Não voltará; não voltará nunca talvez, e eu... eu...

Retrocedeu até chegar à entrada da cova, aquela gruta profunda, de piso de areia, que cheira a iodo já salitre... Aquela gruta, tálamo de seu amor tempestuoso,

que brindou a suas horas de loucura o verde veludo de suas algas e a frágil cortina de seus cantos. Entrou com passo cambaleante. Seus joelhos se dobram, seu corpo se inclina até que as mãos trêmulas cobrem o rosto e tocam outro sal: a de suas

lágrimas. É como uma despedida dolorosa e cruel...

O nome de Aimée soa ao longe, como a chamada de outros mundos, como o grito da razão que chega até a morada do Juan, despertando seu instinto de combate,

seu egoísmo, sua soberba, seu desejo de triunfar, sua ânsia de luxo, sua sede de prazeres:

— Aimée... Aimée...

Ao só lembrança de sua irmã, eleva-se a cabeça de Aimeé, ergue-se seu torso com brusco gesto altivo. Não quer que a encontre assim: humilhada, vencida,

chorando frente ao amor que se foi. Não há respondido a sua chamada, mas já Mônica se aproxima. Viu o caminho lavrado a pico do acanelado de pedra e desceu por ele até

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a praia, procurando com seus grandes olhos ofegantes até descobrir a entrada da

cova, e corre a ela como impulsionada por um pressentimento...

— Aimée, o que te passa? Não me ouvia? Por que não me contestas? O que tem?

— Nada. Estou farta de que me persiga sempre!

— Merecia que não o fizesse... Te levante, vêem... Renato te espera na casa. O que tenha decidido, o dirá a ele...

Aimée se levantou que um salto, trêmula de surpresa. Há sentido como se o próprio Renato a surpreendesse ali, naquele santuário de seu amor pelo Juan, como se aquela mulher, ciumenta rival mesmo que corra o mesmo sangue por suas veias,

fora capaz de adivinhar seu pensamento... Não, não perderá ao Renato. Não o perderá tudo, depois do golpe cruel de haver perdido ao Juan, e ali está Mônica disposta a

arrebatar-lhe decidida a lutar quem sabe com que armas... Mônica, em cujos olhos arde a enorme força de seu amor e de sua vontade. Mas Aimée está bem decidida, será mais ardilosa, mais rápida, mesmo que a surpresa sacuda-a neste momento, e

serenando-se depois de um esforço supremo, inquire:

— Que Renato está em casa...?

— Veio a resolvê-lo tudo para as bodas, mas se como me prometeu tem feito exame de consciência...

— OH, me deixe!

Aimée cruzou já a praia, sobe pelo atalho aberto entre os penhascos, enquanto Mônica a olha afastar-se como se uma força estranha a detivera sob o tosco arco natural que dá entrada à cova. Seus olhos percorrem esta com surpresa. Com passo

cambaleante se interna nela. Jamais pensou que a natureza pudesse brindar ao homem uma estadia natural como aquela, e qual um torvelinho cruza uma imagem

por sua mente: a do Juan do Diabo... Recorda seu rosto curtido, seu sorriso desdenhosa, seus olhos altivos, seu ar de uma vez atrativo, natural e selvagem como daquela cova. Pressentiu, adivinhou quase, mas rechaça aquela idéia aguda, como

quem rechaça um mau pensamento, e fazendo o sinal da cruz sobre sua frente, sai seguindo os passos do Aimée...

— Então, minha vida; não há nenhum inconveniente?

— Nunca houve nenhum inconveniente, Meu Renato. Hoje mesmo pensava te escrever, procurar um próprio com quem te enviar umas linhas te dizendo que por

mim tudo estava disposto.

Suave, tenra, sorridente, com aquela paquera mimosa um tanto pueril com que está acostumado a dirigir-se a ele, Aimée cortou as possíveis pergunta do Renato

dizendo que sim a cada palavra, a cada petição.. .

— Mamãe deseja as ver em Campo Real quanto antes...

— Iremos quando quiser querido. Já te disse que todo o deixamos disposto, aos estúpidos mamãe e eu. Da Mônica não sei e mais vale que seja mamãe a que lhe pergunte. Está tão nervosa e tão estranha nestes dias... Não estranharia que não

quisesse assistir a nossas bodas, que se empenhasse em voltar para seu convento... — Aimée se interrompe ao ver sua irmã que há chegado junto a eles e, com voz quase melosa, exclama: — Ah, Mónica! De ti falávamos precisamente...

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— Já te ouvi — assente Mônica com serenidade. — Ouvi tudo que disse.

— Não queria que interpretasse mau... — começa a desculpa-se Aimée, mas Mônica a interrompe e particulariza com toda claridade:

— Não acredito que o que há dito se empreste a ser interpretado. Está mais claro que a luz do dia: esperas que volte para o convento e que não assista a suas bodas...

— Não espero; temo.. .

— Ia fazer a modificação, Mônica — intervém Renato. — Te asseguro que me daria um grande desgosto te negando a estar junto a nós em um dia que tanto

significa, e não acredito que as regras de nenhuma ordem, por severas que sejam você ninguém a permissão de assistir às bodas de sua irmã.

— No momento estou fora de todas as ordens e de todas as regras do convento. Tenho licença por tempo indefinido. . .

— Mas, Mônica querida — comenta Aimée — isso é algo completamente novo.

Ao menos, nunca o havia dito.

— Não houve ocasião. Estamos acostumados a falar tão poucas vezes... Mas

sim, irmã, estou livre. Posso ir aonde me agrade e fazer o que desejar inclusive decidir não voltar para convento. Por algo se dá tempo as gente antes que façam os votos definitivos. Há coisas que requerem ser pensadas e meditadas muito seriamente antes

de decidir-se a elas. Sobre tudo, o matrimônio e as ordens religiosas, pois é irreparável o dano que se faz a outros, e a si mesmo, indo a eles indevidamente, sem uma absoluta segurança de nossos sentimentos.

Aimée apertou os lábios, sentindo que o sangue sobe as suas bochechas, mas é muito ardilosa para deixar escapar uma palavra imprudente, para não desconfiar

frente à gelada serenidade da Mônica, que se dispõe a sair do vetusto salão com uma desculpa:

— Com sua permissão, Renato. Tenho ainda algumas coisas o que dispor. Fica,

naturalmente, na melhor companhia.

— Menos mal. Sua irmã parece sentir-se melhor — comenta Renato sentindo

certo alívio.

— Não sei o que dizer — fala Aimée com ira contida. — Das pessoas lunáticas não é possível confiar-se. Sempre saem por onde menos se espera. Permite-me

também um momento? Deixarei-te sozinho um minuto nada mais...

Saiu com passo rápido, viu a Mônica que se afasta para o jardim, com passo moderado, e corre atrás dela, chamando-a:

— Mônica! Mônica quero que falemos em seguida.

— Estava-te esperando precisamente para isso. Ia chegar até um lugar do

jardim onde pudéssemos fazê-lo a sós sem que ninguém nos ouvisse.

— Aqui ninguém nos ouve e preciso saber, imediatamente, o que é o que te propõe.

— Nunca me tenho proposto mais que uma só coisa: impedir que faça desventurado ao Renato, te sair ao passo assim que faças contra ele que não seja

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claro, leal e diáfano. Posso me apartar de seu caminho, te ceder o campo, pisotear

meu coração, afogar meus sentimentos, anulá-los até que desapareçam, mas não entregarei-te ao Renato para que o converta em um farrapo com suas mentiras e suas

astúcias.

— Não sou mentirosa nem ardilosa como supõe. Eu o quero também.

— Isso jurou e isso acreditei um dia que lhe amava; que, a sua maneira, queria-

lhe, mas que havia verdadeiro amor em ti e que foi capaz de viver por ele e para ele. E decidi me apartar. Pensei que minha única missão era essa, que tinha o direito de viver só para mim mesma, de procurar, no convento, a paz que me faltava. Mas agora

as coisas mudaram. Não percamos o tempo em repetir o que as sabemos. Renato te quer com loucura e, te amando como te ama, está em suas mãos desamparado e

cego...

— Bom quão único quero saber é o que te há proposto. Não cria que vais fazer-me viver sob a ameaça de soltar a língua dizendo tolices.

— Pois assim tem que viver, embora não queira. E não serão bobagens as que eu conte... De ti só dependerá minha atitude, Aimée. Prometeu-me refletir, ser sincera,

fazer exame de consciência, pesar as coisas na balança de seu coração...

— Prometi-te resolver, e resolvi... Eis resolvido me casar com o Renato, lhe dedicar minha vida inteira, ser proprietária absoluta de minha família, de minha casa,

de minha vida e a sua, e não permitir que nem você nem ninguém intervenha no que não lhe concerne. Prometi-te tomar uma determinação e é essa. Está claro? Pois vate já a seu convento e me deixe em paz de uma vez!

— Irei quando estiver segura de que cumprirá sua promessa, mas não antes, Aimée. É meu último direito, e não o entrego, não renuncio a ele. Há muitas coisas

escuras em sua vida... Mas pode estar tranqüila, porque o passado não vou levá-lo em conta.

— O que sabe você de meu passado?

— A ti não lhe vou dizer isso Aimée. Seria tanto como ficar indefesa e é uma inimizade muito perigosa. Não farei nada, não direi nada enquanto lhe Portes

corretamente com o Renato. E em último caso, tomo para mim o papel mais ingrato: o de recolhimento, o de adicionada. Queira ou não, serei junto a ti como a imagem viva de sua consciência.

— Se pensar que vou suportar...

— Suportá-lo-á. E, além disso, não será por toda a vida.

— Menos mal que lhe põe prazo a sua espionagem — comenta Aimeé com

raivosa ironia.

— Precisamente. Quando lhe tiver dado um filho ao Renato, apartarei-me para

sempre de vocês. Confio em que sua consciência de mãe te baste a partir desse momento. Confio...

— Me perdoem — interrompe Renato, que se aproximou silenciosamente. —

Pressenti que estavam discutindo e não pude ficar na sala. Suas últimas palavras me pareceram muito interessantes Mônica. São as únicas que escutei e eu gostaria de saber a que se referem. Disse algo assim como: "Confio em que sua consciência de

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mãe te baste a partir desse momento". A que consciência te refere? Eram dirigidas

diretamente a Aimée suas palavras?

Um gesto grave invade o rosto do Renato, lhe dando uma expressão diferente a

que nunca tivesse frente à Aimée. Apesar de sua astúcia, apesar de seu cinismo, ela tremeu. Mas Mônica sorri... Sorri com perfeito sorriso cordial, enquanto apóia brandamente sua branca mão no braço de sua irmã para falar com tranqüilidade:

— Sim; mas não fique tão sério, homem. Tratava-se só de uns quantos conselhos de irmã maior, acaso um pouco muito espirituais. Aimée é muito jovem para casar-se, e essa foi à única razão de meus temores até este momento. Desgosto

muito que interpretaste mal as coisas por minha culpa, mas ela me jurou uma vez mais que te adora e que viverá para ti. Eu acredito em suas palavras, acredito nela... É

a maior garantia de felicidade para os dois. Nada no mundo me importa tanto como a felicidade de vocês, e acabo de lhe prometera Aimée velar por ela...

— O que diz a isto, Aimée? — interroga Renato voltando-se para esta e

contemplando-a com ternura.

— O que posso dizer? Absolutamente nada... Irei arrumar as malas...

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CCapítulo 18

— Colibri, Colibri!

— Aqui estou meu amo. O que me manda a fazer?

— Vêem ensaiar os agradecimentos com que vais mostrar no Saint-Pierre.

Na porta da cabine do capitão, ágil como uma ardila, negro como o betume, alegre como uma cascavel, o novo tripulante do Lucifer se contorsiona na mais graciosa de suas caretas. Pode ter doze anos, e os grandes olhos brilham como

luzeiros sobre a pele escura e lustrosa. A redonda cabeça, em que o muito negro cabelo finge granitos de pimenta, excursão como pudesse fazê-lo a de um boneco, e o

flexível talhe se dobra em uma burlesca reverência de corte, que acompanha o mais picaresco dos gestos.

— Perfeito — aprova Juan, rindo. — Assim tem que saudar sua nova

proprietária, e como para então te terá posto seu traje novo, tudo de veludo vermelho...

— Seriamente, meu amo? — entusiasma-se o chamado Colibri. — Me vai dar de

presente um traje novo? Um traje avermelhado, com cortes caiba?

— Claro que sim. Quando te hei dito eu mentiras?

— Nunca, meu amo. Disse-me que me ia trazer para seu navio, e a seu navio trouxe. Que aqui todos os dias ia comer, e todos os dias estou comendo. Que já não ia ter que carregar mais lenha, e nenhuma lasca carrego. Mas também me disse que ia

dar um ramo de uvas, grande, grandote... E isso sim que...

— Bandoleiro...! Está aprendendo a pedir muito pronto, e isso eu não gosto. Mas o ramo de uvas, aqui o tem. Toma-o e te largue.

Rindo, Juan do Diabo lançou ao ar o mais formoso cacho de uvas de quantos há em uma bandeja sobre a tosca mesa, e o garoto o apanha com um de seus rápidos

movimentos, fugindo depois alegremente, como pudesse fazê-lo um pequeno colibri.

— Está você embevecido com esse garoto, patrão — comemora o segundo do bordo. — Não serve para nada no barco, mais que para distrair às pessoas. É forte e

ágil. Pudesse ser um bom grumete...

— Não quero grumetes. Não fazem falta em meu navio. Recruto homens a quem

lhes romper o cangote se não cumprirem. Não meninos a quem maltratar quando a cada qual venha em vontade fazê-lo.

Está bem — aceita o segundo; e em seguida, trocando de tom, solicita: - Posso

me jogar um gole, patrão?

— Para que? Não crie que bebeu suficiente?

— Já nem beber se pode neste navio.

— Muito em breve beberá até cair, quando for você o patrão.

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— Mas é seriamente que vai você a ficar no Saint-Pierre? É a sério?

— Quando te disse eu algo que não fora seriamente? Lentamente, Juan se pôs que pé detrás de preencher sua pipa de tabaco loiro e a acende, aspirando pensativo o

fumo azul e espesso. Leva sete semanas no mar, sua pele parece até mais curtida que antes de empreender aquela viagem definitiva, seus cabelos frisados e escuros se encrespam rebeldes sobre a sua frente, seu queixo é quadrado, firme, voluntarioso...

Mas há uma expressão diferente em seus grandes olhos italianos, e os carnudos lábios ardentes e sensuais sorriem levemente a imagem longínqua de uma mulher.

— Terá que ver como mudou você, patrão.

— Mudar eu? No que?

— Em tudo. Como se fé tivessem dado a beber uma dessas beberagens que

preparam no Haiti, quem sabe com que ervas.. Essas beberagens com que roubam a uma a alma... Deles se diz que são mortos...

— E eu estou muito vivo, segundo. Além disso, sou rico. Não te dá conta?

— Humm! Acredito que você confia muito nesse pouco de dinheiro que tem.

— Não é pouco. Basta e sobra para o que quero fazer.

— Deixar o Lucifer, meter-se terra adentro — resmunga o segundo — Quem viu isso?

— Nunca falei de me colocar terra adentro. Sobre as rochas do Cabo do Diabo

farei minha casa, robusta como uma fortaleza. Comprarei as dez léguas de terra que ficam detrás, uma carruagem com dois cavalos, quatro barcos para a pesca... Comprarei depois todas essas coisas bonitas que gostam às mulheres: espelhos,

vestidos, perfume...

— Só pensa nisso. O que pode mudar um homem, Senhor.

— E o que? Quero-a e será minha para sempre. Ninguém vai olhá-la quando for minha. Ninguém porá os olhos nela. Eu lhe darei todo que queira, todo lhe que peça, tudo o que sonhe...

— Com uma mina de ouro não basta para ter contente a uma mulher, se for das que gostam do luxo.

— E eu tenho uma mina: esta... O Lucifer. O Lucifer seguirá no mar, contigo de patrão. Já sabe o caminho das boas, colheitas....

— Mas às vezes as coisas ficam muito más. Não se confie neste viaje em que

tudo saiu bem. Teve você muita sorte, patrão.

— De agora em diante a terei sempre. A estrela do Juan do Diabo não vai apagar-se.

— Mas pode ficar vermelha de repente....

— Para que faz o papel de agoureiro? — reprova Juan francamente enfurecido.

— Queria que pensasse um pouco mais, patrão. Não séria bom voltar pela Martinica em alguns meses. Às vezes a polícia fica muito curiosa, e tendo você inimigos como os que tem...

126

— Diz-o por emano atalho? Esse cão ladra, mas não morde. A esse lhe tampa a

boca com umas moedas. No Saint-Pierre, quão único ficou foi uma dívida... Uma dívida com o ilustre Renato D'Autremont... A pagarei até o último centavo e ficarei em

paz com o filho de dona Sofía.

Mordeu a pipa enquanto se fecha seu robusto punho. Talvez um te queimem recordo da infância roça sua alma, trazendo a amargura a seus lábios, mas outro mais

recente volta de novo, suavizando-o tudo, e exclama:

— Que surpresa vai levar-se ela! Imaginará que volto, mas não como vou voltar levando-lhe tudo... Tudo... E um presente especial... Colibri — chama imperioso.

— O que me manda meu amo? Aqui me tem.

— Como vais saudar sua nova proprietária? A ver faz a reverência. — Juan não

pode conter as gargalhadas — Magnífico! Perfeito! Comeu-te as uvas? Toma outro cacho, e te largue.

O segundo baixou a cabeça. Juan deixa atrás a única cabine de sua nave,

cruzando a coberta, apóia-se na amurada e seu olhar de águia distingue, na delineia imprecisa do horizonte, o alto topo daquela montanha de ladeiras inacessíveis que

afunda nas nuvens seu pico de fogo. Logo, sua mão cai sujeitando ao garoto negro, lhe mostrando com estranha emoção a sombra daquele topo que se vê ao longe, e explica:

— O Mont Brigue. Esta noite estaremos no Saint-Pierre...

— Mas que preciosidade, que coisa mais linda! Que sedas, o que bordados, o que encaixe! — exclama Catalina com incontável entusiasmo.

— Sim, mamãe, tudo está precioso — convém Aimée com certa frieza.

— Você gosta seriamente seu enxoval? — pergunta Sofía.

— Claro dona Sofía, tem que me gostar, posto que se tomou você a moléstia de fazê-lo trazer da França para mim...

— Não, filha, não por isso...

— Por isso também, além de que tudo é muito lindo. Minha filha agradece em tudo o que vale seu interesse e seu carinho por ela Sofía.

Empenhada como sempre em demonstrar até o limite minha satisfação e sua gratidão, a bondosa e assustadiça senhora do Molnar se desfaz em elogios frente a aquele enxoval de bebê de bordados verdadeiramente magnífica, que estendem sobre o

largo leito do futuro casal, as brancas mãos da Sofía D'Autremont.

Tudo está preparado, já para aquelas suntuosas bodas, acontecimento máximo nas terras dos D'Autremont em toda a ilha da Martinica. Durante a última semana, os

serventes não se deram repouso. Até os trabalhos do campo se hão suspendido para atender aos acertos e embelezamento do enorme imóvel, que luz agora como nunca:

grafite e decorada de novo, relembrados os jardins, renovados adornos, pendurados, cortinados, brilhantes como espelho os pisos polidos. Ate os caminhos que conduzem ali foram reparados. Tudo o que é alguém na Martinica assistirá a essas bodas: do

Governador, com foros de padrinho, até o Bispo, que será o encarregado de benzer a união.

127

— Não seria bom ir guardando tudo isto no armário? — propõe Catalina.

— Suponho que a donzela nova pode fazê-lo — observa Aimée.

— claro que sim — corrobora Sofía — Cedi a Ana, porque é magnífica: a melhor

auxiliar que pode ter para o cuidado de sua pessoa.

— foi muito amável de sua parte, dona Sofía, mas não era preciso. Ana era sua donzela...

— Eu tenho a Aninha e com ela me basta. Ana te será mais útil a ti. Quero cuidar pessoalmente de todos os detalhes de sua comodidade, quero que seja feliz nesta casa, filha.

Aimée respondeu sorrindo com vago sorriso. Cada dia, cada hora que se aproxima daquelas bodas suntuosa, vai sentindo mais intranqüila, com um surdo

pressentimento de angustia, com uma espécie de violência contida para quantos lhe rodeiam. Odeia a atitude de sua mãe, a generosidade da Sofía, a solicitude dos serventes, o rosto pálido e sorvete de Mônica, cujas mãos se movem em atitude febril

tomando por elas todas as iniciativas.

— Deixem aí a roupa. Eu a porei no armário.

— Não, Mônica, arrumá-la-ei eu mesma.

— Você tem que te arrumar para esperar ao Renato. Já vai ser à hora em que está acostumado a vir.

— Eu acredito que sua irmã tem razão, filhinha — intervém brandamente Sofía. — Nós arrumaremos o armário. Vá a seu quarto e te ponha muito linda para quando retornar meu filho.

Aimée obedeceu por Rio replicar violentamente a Sofía. Como uma autômato abandona o quarto que arrumam para ela, sai à amplíssima galeria e se detém frente

à balaustrada para olhar ao longe aqueles três picos do Cabet que dividem em duas a ilha, encerrando a Campo Real naquele vale que é como uma poça profunda e florida. E um anseia repentina de fugir, de cruzar a varrerá daqueles Montes e aparecer ao

mar aberto e limpo que se vê de acima, sacode-a com um desejo de liberdade, com um desejo violento de rebelar-se contra a nova vida que parece lhe impor seu destino. E é

o lembrança, como seta de fogo transpassando sua alma...

— Aimée, minha vida! O que te passa? O que tem?

— Né? O que? Renato... Você...

— Não me esperava? Assustei-te?

— Não te esperava. Mas, por que tinha que me assustar? — retruca reservada Aimée, dominando-se. .

— Por nada, minha vida, mas pôs uma cara estranha. Por isso lhe perguntei isso. No que pensava? Parecia angustiada e, pela expressão de seus olhos, tivesse

podido jurar que seu pensamento ia muito longe. E sabe o que senti de repente? Ciúmes...

— Mas que louco é, Renato! Ciúmes de quem? — refuta Aimée, pretendendo

aparecer alegre.

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— Não sei e espero não chegar nunca a concretizar meu ciúmes contigo.

Acredito que seria um tortura superior a minhas forças. Junto a ti, vivendo o um para o outro como já vivemos, basta-me verte como agora, o olhar perdido, franzido o

cenho, para ter a absoluta necessidade de saber em seguida aonde voou •seu pensamento.

— Aonde tem que voar meu tirano? Me fazem eternas as horas em que me deixa

sozinha. Onde estava? Por que te passa tanto tempo por aí. Deus sabe onde?

— Deus... E você sabe também. Hoje cruzei o desfiladeiro para ir às terras do outro lado, onde estão as plantações de cana e o engenho.

— Sim. Ouvi-lhe falar disso a dona Sofía. Parece que é uma obra de muito mérito que empreendeu Batista. Não se chama Batista o administrador de vocês?

— Sim, certamente. Batista se chama. Mas não estou de acordo com a forma em que se feito as coisas.

— Sua mãe disse que isso estava deixando dinheiro.

— Talvez. Mas as condições de vida desses infelizes não são adequadas. Dormem amontoados em uns barracões sem luz e sem ar, trabalham de seis a seis,

com apenas meia hora para o comer, neste clima exaustivo. Compreende? Há alguns enfermos, verdadeiramente doentes, e nem sequer estão isolados de outros. É preciso fazer moradias novas, canalizar um arroio... Mas te estou aborrecendo, verdade?

— Não — responde Aimée em tom indiferente. — Mas pensei que nestes dias, você não estaria te ocupando de nada disso, mas sim de cumprir quanto me prometeste. Começaram já as reparações na casa do Saint-Pierre?

— Não houve tempo, mas a casa do Saint-Pierre será reparada.

— Quando? Não estará a tempo para que passemos ali a lua de mel.

— Não será só uma lua de mel o que você e eu vivamos Aimée, mas sim muitos anos de felicidade. Já verá. De momento, não podíamos desprezar a mamãe que mandou arrumar, especialmente para nós, a asa esquerda do edifício. Não lhe gosta

nosso apartamento?

— Sim, certamente. Ao fim e ao cabo, para veranear está bem. Porque, conforme

me prometeu, onde viveremos é em Saint-pierre. Ou é que não te lembra?

— Lembro-me de tudo, Aimée, e haverá tempo para falar disso. No momento, se me permitir isso, vou saudar mamãe. Depois tenho que falar com Batista. É urgente,

terá que resolver algo com esses doentes. Tinha querido te falar deles, Aimée...

— Não, Por Deus. Era o único que me faltava. Mas aí tem a Mônica; por ahi vem... A ela pode lhe descrever todas as doenças de seus cortadores de cana. Tem a

paciência que se necessita para o caso. Eu te confesso que não a tenho. Quando tiver esgotado o tema, tomaremos juntos uma taça de chá.

— Aimée... — reprova Renato, sentido saudades da atitude despreocupada de sua noiva.

— Até mais tarde — saúda Aimée, afastando-se. E a sua irmã, que vai

chegando, adverte-lhe: — Mônica, fala-te Renato.

— Queria algo de mim, Renato? — pergunta Mônica.

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— Segundo sua irmã, abusar de sua paciência. Tratava de lhe falar de uma

espécie de epidemia que se apresentou no vale menino, onde estão as plantações novas e o engenho, mas não quis me escutar. Incomodam-lhe os doentes, e é natural.

Então, essa linda boneca travessa, burlando-se um pouco de nós, enviou-me a te incomodar a ti ao ver que te aproximava.

— Pois se posso te servir em algo, Renato, fala. Não me incomoda. Ao

contrário...

— Sei que é o bastante bondosa para me escutar: mas se Aimée não quis fazê-lo...

— Somos diferentes. Além disso, ela só pensa em suas próximas bodas, o qual é natural, não te parece?

— Sim; naturalmente. Fui inoportuno tratando de tocar com ela esse tema, mas te confesso que nestes assuntos me encontro um pouco sozinho. Minha mãe não compartilha minhas idéias, está cega com respeito de Batista, crie quanto ele diz e

aprova quanto ele faz.

— Mas você é aqui o verdadeiro dono, o amo, que tem que dispor.

— E assim o farei, embora de momento prefiro fazê-lo sem violências para não desgostar a minha mãe. Pensei em outro administrador para a fazenda; Melhor dizendo, em repartir entre dois o trabalho de um. Para fazer contas e calcular gastos e

fretes, quão mesmo para os assuntos legais, pensei no doutor Noel: um homem honrado a carta cabal, inteligente e • bondoso. Para estar no campo, lutando com os trabalhadores, necessito outro tipo de homem: jovem, enérgico, decidido, mas com

idéias liberais, com generosidade para os que trabalham, com compreensão para os que sofrem...

— E tem também candidato para esse posto?

— Há um que pudesse sê-lo se quisesse, mas terei que conquistá-lo. Trata-se de um amigo da infância que cresceu áspero, rebelde como um gato Montês. Além disso,

é muito pouco provável que aceite. Penso me ocupar disso mais adiante.

— Mas antes disse que tinha um problema urgente.

— Sim os doentes. Suspeito que as condições sanitárias em que vivem e trabalham são pior que más. Há uma espécie de epidemia entre os cortadores de cana e os trabalhadores do engenho. Queria, pelo menos, separar os de outros, prestar-lhes

um pouco de assistência médica. Enfim, não sei, não sei. Pensei deixá-lo tudo para depois das bodas, mas temo que o mal sei estenda muito.

— Quer que me eu ocupe disso? Onde é o assunto?

— Parece-me excessivamente duro para ti, pois o lugar se acha a mais de três léguas e os caminhos estão endiabrados pelas últimas chuvas. Não acredito que um

carro possa passar até ali. Eu tive que ir a cavalo.

— Pois a cavalo posso ir eu também. Quer dispor um para mim?

— Disporei um cavalo, um servente para que te acompanhe e uma ordem escrita

para que lhe obedeçam em tudo que ordenes — apóia Renato alegremente. — Que boa é, Mônica! Como lhe agradeço isso!

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Estreitou suas mãos, afastou-se depois com passo rápido e alegre, enquanto

Mônica sorri, saboreando a hiél de seu martírio, cravando-se mais fundo o espinho, que lhe fere, como se apertasse a seu coração as cordas de um silício cruel, e

sussurra:

— Passará todo o dia junto a ela. Dará-lhe, há todas as horas, seu amor e seus beijos. Assim será. Assim o quero...

CCapítulo 19

Monica se deteve pálida de angústia, frente ao oco, que é a porta daquele barracão enorme e fétido, que bafo insuportável a obriga a deter-se. Logo que pode

acreditar o que seus olhos vêem, tão rude é o contraste que oferecem o pacote magnífico e o fundo sórdido daquela moradia miserável. Talvez aquele que chamam pequeno vale seja mais lindo e risonho que o fundo e perfumado que é centro de

Campo Real. A um lado se agrupam os bosques de aloés, caobos e cedros; ao outro, o lenço verde da cã se perde até onde a costa, atalho de repente, rompe-se bruscamente para afundar-se no mar azul. À frente, com suas paredes de tijolos, seu atividade

febril e suas fumegantes chaminés, o pequeno engenho primitivo que faz tilintar as moedas de ouro nas repletas arcas dos D'Autremont.

Mônica fez um esforço para cruzar sobre aquele umbral, e logo que pode acreditar o que seus olhos vêem: o teto e as paredes são de Palmas mal unidas; o chão, de terra; não há mais móveis que algumas gavetas e banquetas rústicas;

penduram de alguns postes balança destroçadas e imundas, e atirados sobre sujas esteiras, pior que bestas, as largas filas dos trabalhadores doentes, sem luz, sem ar,

sem um cântaro de água fresca ao alcance de sua mão, sem uma sombra de piedade humana que seja capaz de penetrar naquele inferno...

— Senhorita. Mas aonde vai você? Saia... Saia, que se vai a sufocar. Isto não o

agüenta toa à gente.

Um ancião de pele cor carvão e encrespados cabelos quase brancos se aproximou dela, entre tímido e assustado. Apóia-se em uma espécie de muleta rústica

e arrasta com dificuldade as inchadas pernas, mas em seu olhar triste, de humilhado

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de séculos, há uma faísca de bondade ingênua que se ilumina contemplando a frágil

beleza daquela mulher que não retrocede.

— Não vá mais para dentro, senhorita. Estas coisas não são para ver. Aqui não

pode entrar. Eu lhe contarei o que acontece, lá fora...

— Quem é você?

— Quem tenho que ser? Saul, o curandeiro.. Chamaram-me para que os

curasse com minhas ervas, mas o mal não há quem o pare. Ontem havia como quarenta homens doentes, e hoje passam de oitenta.

— Naturalmente, posto que estão junto com os sãs. Isto não pode ser,

necessitam médico, remédios, gente que os atenda, ar, espaço... Mas, por que estão neste abandono? Não têm família? Não há uma mulher que o ajude a você?

— Ao Valle vieram os homens sozinhos; as mulheres e os moços estão recolhendo Café no outro lado. O senhor administrador proibiu que venham,, diz que fazem muita falta por lá, E...

— O que é isto? — interrompe Batista, aproximando-se.

— O senhor administrador! — assusta-se o negro Saúl. Um silêncio profundo se

feito repentinamente no largo barracão. Até os mais doentes calaram, contendo o fôlego. Alguns se incorporaram, outros tornaram com esforço a cabeça para olhar o duro rosto do capataz, que os percorre com um olhar de desprezo e de ira, para voltar-

se logo impaciente à inoportuna visitante e ordenar:

— Quer me fazer o favor de sair daqui, senhorita Do Molnar?

— Não, Batista. Vim para ver isto... E para tratar de rémediá-lo. Já vejo que é

imensamente pior do que pensei.

— E como quer você que seja, se a estes ociosos deu de fingir-se doentes? —

resmunga Batista com ira. Depois, elevando a voz, ameaça: — Lhes descontará o jornal aos que não trabalhem! Vamos preguiçosos!

Mônica empalideceu ainda mais, percorreu com o olhar as largas filas de

desventurados que apenas se agitam um momento sob a furiosa voz do capataz. Alguns têm feito o esforço de incorporar-se, para voltar a cair. Perto da porta há um

imóvel, com as mãos cruzadas com os olhos abertos, e nele se detém com espanto o olhar da Monica, para voltar lhe relampeje de ira para Batista, lhe espetando:

— Pretende você que se levantem também os mortos? Você não tem coração

nem consciência!

— Está-me você insultando! Basta, senhorita! Você saia daqui... Aqui sou eu o que manda. Não tem você direito...

— você olha se esta ordem, escrita por mão do Renato, serve de algo! Aqui manda o que me obedeça e não vou ficar com as mãos cruzadas. O que vou ordenar

que é em nome dele!

— A mim não tem nada que me ordenar!

— Pois a quem ouça! Esta ordem abrange a todo o pessoal do engenho.

— Por que não chama você aos capatazes, senhorita? — insinua o velho negro.

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— Quer te calar, imbecil? — ordena Batista, furioso. — Se voltar a abrir a boca,

lhe...

— Faça o favor de reportar-se, Batista! — atalha Mônica com gesto severo.

— Farei algo mais, senhorita Molnar. Darei conta disto à ama imediatamente. E se ela sustentar as loucuras de seu filho, não estarei nenhuma hora mais em Campo Real.

— Se as coisas forem dessa maneira, acredito que não falta razão a Mônica.

— Mas é possível que a senhora diga isso? — encrespa-se Batista, dominado pela surpresa e a ira.

— Algum dia tinha a senhora que dar-se conta dos procedimentos de você! — estala Renato em um arrebatamento de fúria.

— Pois nesse caso, estou de mais em Campo Real!

— Naturalmente! — aceita Renato.

— te acalme, Batista, e você também, Renato. Rogo-lhe isso...

— intervém Sofía em tom conciliador.

— A senhorita Molnar me insultou, há-me desautorizado diante de mais de cem

homens! — queixa-se Batista. — Terei que fazer espancar a todos se quiser, que, de hoje em diante, respeitem-me!

— Terá que te calar, e é o melhor que pode fazer

— aconselha Sofía com gesto severo. — É magnífico para nos, Batista, já sei... Mas acaso extremas a dureza com os trabalhadores, e a isso é ao que meu filho se refere.

— Ao que eu me refiro... — começa a dizer Renato; mas sua mãe lhe interrompe, para suplicar:

— Te rogo que me deixe acabar sem te enfurecer, Renato. Estamos somente a horas de suas bodas... Por que não postergar esta discussão para mais adiante?

— Desde dia que cheguei estou postergando-a — protesto Renato.

— Se o senhor Renato quiser que eu vá imediatamente... — indica Batista com hipócrita humildade.

— De maneira nenhuma— rechaça Sofía. — Te estimo demasiado para te perder, Batista. Acredito que muito bem podemos compaginar as coisas.

— Não te dá conta, mamãe, de que Mônica foi muito boa, muito abnegada,

aceitando realizar o que eu devi fazer por mim mesmo?

— É certo. Teve um rasgo formoso, que lhe agradeço profundamente. Tivesse-me encantado que esse rasgo fora de sua Aimée; mas, ao fim e ao cabo, é igual — aceita

Sofía; e dirigindo-se a seu servente, suplica: — Batista rogo-te que obedeça em tudo a Mônica, no que se refere aos doentes.

— Mas ordenou uma série de loucuras... Quer que se fabrique para eles um barracão à parte, com janelas ao longo das paredes, camas com lençóis, mesinhas de noite onde pôr a água e as frutas dê que, segundo ela, devem alimentar-se esses

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preguiçosos, e também mandou a procurar um médico ao Saint-Pierre e pretende que

o tenhamos para sempre em Campo Real.

— É uma idéia que tenho eu faz tempo que — assegura Sofía.

— Também pretende me tirar meia dúzia das mulheres que trabalham nas plantações para que cuidem deles, e tem feito uma lista de dez folhas com os remédios e as coisas que diz necessárias.

— Tudo que ordenou Mônica se cumprirá ao pé da letra. Não te parece bem, Renato?

Renato não responde. Cruzados os braços, frio e duro o rosto, parece conter-se

para não estalar com muita violência. Sem aguardar a resposta, a senhora D'Autremont se volta para Batista:

— Me faça o favor de fazer quanto hei dito Batista. Ah! E não esqueça de apresentar suas desculpas à senhorita Molnar por ter sido descortês com ela. É uma ordem e, além disso, um rogo.

— Como à senhora ordene — acessa Batista detendo o freio e afastando-se.

— Bom... — suspira Sofía. — Solucionado o lamentável impasse. Não te parece,

filho?

— Não, mãe. O mal está muito mais dentro, e mais adentro tenho que chegar para curá-lo. Entretanto, você mesma o disse antes: estamos só a horas de minhas

bodas. Acredito que, efetivamente, é preferível aceitar esse último prazo.

— Como você queira. Não penso interromper seu caminho. Quero te sentir e verte como amo e senhor de Campo Real.

— Sê-lo-ei, mãe. Tenha a absoluta segurança de que o serei.

— Neste momento ia sair para as plantações, Mônica.

— Seriamente? Suponho que já chegou por aqui Batista.

— Sim. Chegou, falou com minha mãe e perdeu a primeira batalha.

— É possível, Renato? Obteve...

— Minha mãe te dá à razão e te agradece imensamente o que tem feito. Como quando fomos adolescentes, deste-me a inspiração, a norma, marcaste-me o caminho

do que terá que fazer. Já sabia eu que, com sua ajuda, tudo poderia arrumar-se. E obteremos a transformação absoluta, total... Sim, Mônica. Graças a ti, o paraíso dos D'Autremont não terá já rincões de inferno.

Sem que ela possa evitá-lo, Renato levou aos lábios as mãos da Mônica, as beijando com gratidão, com ternura, com um entusiasmo juvenil e ingênuo que a estremece toda, fazendo retroceder vertiginosamente o tempo até os dias já longes da

adolescência nos que ela fora, para ele, irmã, amiga, guia e conselheira... Em os que ele fora para ela o sonho sublime de um amor ideal. Entretanto, bruscamente aparta

as mãos quando a linda figura de Aimée aparece atrás deles, e aproximando-se comenta em tom de brincadeira algo picante:

— O que é isto? Meu senhor prometido parece sentir verdadeiro entusiasmo por

minha irmã abadessa...

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— Nem sequer sou monja, irmã. Ainda não... Certamente, as duas seguiremos o

caminho que nos riscamos...

— Dava as graças a Mônica com todo o entusiasmo de meu coração, Aimée —

explica Renato. — Graças a ela vai ser realidade a primeira obra de humanidade e de justiça de quantas desejo introduzir em Campo Real. Mas não temos tempo o que perder. Tenho que vigiar que se cumpram em seguida todas as coisas que mandaste

Mônica. Você deve estar cansada e é conveniente que tome umas horas de repouso.

— Não estou cansada. Seria o cúmulo que tão logo me cansasse. Em efeito, há muito que fazer e não penso me dar um ponto de repouso até que a maior parte, ao

menos, realizou-se. Quero falar com dona Sofía e voltar imediatamente às plantações.

— Como quer Mônica. E agora, me perdoem as duas, mas tenho que ir. Até mais

tarde...

— Pouco estiveste comigo, Renato — se queixa Aimée.

— Há tempo, Aimée. Há muito tempo — assegura Renato, ao tempo que se

afasta deixando sozinhas às duas irmãs.

— Imbecil! — resmunga Aimée entre dentes.

— Não! — reprova Mônica como em um lamento.

— Sim! É um imbecil. Claro que você está te banhando em água de rosas.

— Em água de espinhos em todo caso, irmã. Queria pensar que é sincera, que

lhe ama o bastante para sentir ciúmes.

— Ciúmes de ti? — rechaça Aimée com fingido desdém.

— Seria absurdo, certamente. Não se preocupe. Só tomo a parte que você não

quer: fadigas, insônias...

— E toda a gratidão do Renato, está claro.

— Você tem todo seu amor. Não te queixe...

— Não sou das que se queixam, mas sim das que se defendem. Amanhã, quando se tiver casado comigo, já verá como tudo é diferente.

— É o único que espero quão único desejo. E agora, com sua permissão... Vate a seus perfumes, a seus encaixes e a suas sedas. Eu volto para minhas desditas, a

minhas chagas e a meus doentes. Não vamos tropeçar mais, irmã. Temos caminhos bem diferentes.

— Passamos o banco! — exclama Juan do Diabo, alvoroçado. E ato seguido,

ordena que: — Arriem a vela do pau de mesa Nat dois homens a bombordo, preparados para esgotar a água...

— O que vai fazer patrão? — alarma-se o segundo da bordo.

— Não o está vendo? Virar à esquerda.

— Mas vamos contra as pedras! Não agüentamos, há muito vento...

— Acima a vela do te trinque! — grita Juan, fazendo caso omisso da observação de seu segundo. — Acima a maior!

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Um golpe de mar violento açoitou sobre o flanco de bombordo, varrendo a

coberta, fazendo rodar, a seu bárbaro impulso, a dois dos molhados marinheiros que como autômatos obedecem à voz de seu capitão. Em seguida, outro golpe sacode o

navio, fazendo tomar a posição que perdesse, e como um potro fogoso, a quem lhe cravassem as esporas, salta o Lúcifer deixando a um lado os recifes para entrar triunfante e ileso no casaco que lhe emprestam os farallones da costa.

— Se não o vejo fazê-lo, patrão, não acredito.

— Pois já o viu — observa Juan sem dar maior importância ao assunto. Logo, elevando a voz, ordena: — A seu posto, timoneiro! Arriem o foque! Preparados para

lançar a âncora! Um bote preparado para tomar terra!

— Agora mesmo? Não pode ser.. — refuta o segundo.

— Quando se esquecerá de dizer isso? Um bote para saltar a terra!

— Com quantos homens para o remo, patrão?

— Comigo basta...

CCapítulo 20

— Que linda esta, filha... Mas que linda! Olha-te um momento no espelho...

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As brancas mãos da Sofía acabam de prender a coroa e o véu sobre os

brilhantes cabelos de azeviche do Aimée do Molnar, enquanto Catalina sorri emocionada e as três donzelas arrumam cuidadosamente as dobras sobre o grande

véu do traje da noiva.

— Já pode sentir-se feliz meu Renato... E orgulho o padrinho que vai levar-te do braço ao altar.

— Aqui está seu rosário e seu lenço. Que Deus te benza, minha filha. Que linda está... Que linda é! — entusiasma-se Catalina do Molnar.

O último alfinete da cuidadosa toalete foi aceso, e as mulheres, que enchem a

ampla quarto, rodeiam a noiva entre comentários e cochichos. Não há dúvida que Aimée está mais, linda que nunca nestes momentos. Por raridade estão pálidas suas

bochechas sempre rosadas, e no rosto cor dê âmbar brilham mais ardentes e profundos, os grandes olhos negros. Treme a boca vermelha, trêmula como um botão de rosa encarnada, e há, a pesar dele, um fulgor de profunda satisfação nas pupilas

quando ao olhar-se no espelho, que lhe devolve sua imagem, acha-se a si mesmo cobiçável e bela. Saindo de sua momentânea abstração, pergunta:

— Já é à hora?

— Faz momento... Mas deixa-os que esperem — aconselha Sofía. — Hoje, aqui, a única pessoa verdadeiramente importante é você, Aimée.

Esta sorriu, escutando o murmúrio elegante que chega até ela. Jamais a casa D'Autremont, nem em seus melhores tempos, pareceu mais brilhante que aquela noite. Como um astro reluz seus mármores, seus bronzes, seus espelhos, seus

adornos do Serviço, suas baixelas de prata... As flores transbordam em todos os floreiros e formam um caminho perfumado da escalinata de pedra até a pequena igreja

branca, a cujos flancos se agrupam os trabalhadores de Campo Real e das fazendas vizinhas, os choferes e lacaios dos cavalheiros que chegaram do Saint-Pierre, os camponeses de muitas léguas a redondeza... “Duas filas de criados, sustentando em

altas tochas, iluminam o trecho», que uma noite nublada faz profundamente escuro. de repente, Aimée se volta para a senhora Molnar e indaga:

— Onde está Mônica?

— Mônica... — balbucia Catalina. — Pois... Pois não sei. Suponho que...

— Aqui a tem — assinala Sofía.

Em efeito, Mônica se aproxima, e é quão única não há mudado de aspecto: com seu eterno traje negro de mangas largas e alto pescoço, com seus loiros cabelos penteados com a mesma simplicidade de sempre, com o pálido e delicioso rosto sem

cosméticos onde o cansaço deixou seu rastro, com seus grandes olhos de uma vez puros e profundos, altivos e sinceros. E dirigindo-se a Sofía, explica:

— O padrinho está na porta esperando-a Aimée. E Renato roga a você que ponham isto em suas mãos.

— Pôs você mesma, minha filha, não faltava mais. Sofía sorriu afetuosamente,

observando, talvez com o desejo de adivinhar seus pensamentos, aquele belo rosto enigmático. Mas Mônica, sem vacilar, põe o branco e perfumado ramo de noiva na mão do Aimée, ao tempo que indica:

— O último detalhe, irmã. Já não resta, mas só ir até o altar.

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— Não me deseja boa sorte? — pergunta Aimée com um rumor de ironia na voz.

— Com toda a alma, irmã — afirma Mônica com a maior sinceridade.

Lentamente se aproxima do altar a muito belo noiva, apoiada à mão no braço do

velho Governador, que parece imponente baixo a bordada casaca de sua uniforme de grande ornamento. A flor e nata do Saint-Pierre, da ilha inteira, está nestes momentos sob o teto da igreja de Campo Real, que brilha como uma labareda de ouro sob a luz

de milhares de velas. Junto ao Renato, lânguida, e pálida sob o severo traje negro, Sofía D'Autremont vive o minuto de emoção intensa que lhe dá aquelas bodas, enquanto os olhos do Renato, fixos no Aimée, olham-na como se com ela se

aproximasse toda a sorte do mundo.

— Aimée do Molnar e Bixet-Villiers, quer por algemo ao Renato D'Autremont e

Valois?

— Se quiser...

A mão do sacerdote se elevou para benzer aquelas duas frentes que se inclinam

junto ao altar, e no silêncio das respirações contidas vibra a emoção daquele minuto, tão distinta nos diversos corações... Há lágrimas nos olhos da Sofía e nos da Catalina;

há um sorriso bondoso, indulgente, de maturidade, nos lábios do homem que representa a autoridade da França na longínqua ilha tropical; há uma plenitude de sorte pura nas claras pupilas de Renato; há um estranho fulgor enigmático nos olhos

do Aimée... E um pouco se separada de outros, junto à porta lateral do templo, as mãos sobre o peito, como se queriam conter o batimento do coração exagerado daquele coração que sufoca sua dor em silêncio, Mônica assiste à cerimônia, quase

como ausente. Seus lábios estão ressecados e febris; seus olhos, vidrados de tristeza, não sabem já de pranto; seus joelhos se dobram brandamente, como se fora muito

para elas o frágil peso de seu corpo; e o pensamento; que se queima em si mesmo, que arde iluminando e consumindo-se como as velas do altar, reconcentra-se em duas palavras que são uma oração:

— Me dê forças. Meu deus... Dê-me valor e me dê forças... Já brilha o aro de esposa no dedo do Aimée, já caem sobre a bandeja de prata os treze penhores dê-oro,

já a mão do sacerdote se eleva de novo, e seus lábios vão sussurrando:

— Casadas estão sujeitas a seus maridos como ao Senhor, por quanto o homem é cabeça da mulher, assim como Cristo é pilastra inferiora grossa da Igreja. Vós,

maridos, amem a suas mulheres, assim como Cristo amou a sua Igreja e se sacrificou por ela, porque está escrito no Segundo Livro da Gênese, Versículo 24: ''Deseja o homem a seu pai e a seu. “Mãe, e se juntará com sua mulher e será os dois uma

mesma carne”. Cada um de você outros, pois, ame a sua mulher como a si mesmo, e a mulher obedeça e respeite a seu marido... Unidos para sempre ficam, meus filhos,

com o santo e forte laço do matrimônio, mais forte ainda nos que, como vós, têm o dever de dar exemplo. Que seja seu lar o modelo para os que menos sabem e menos têm. Que seja sua vida espelho e norma de virtude cristãs, de bondade e prudência, e

sejam a paz e a felicidade neste mundo, e a salvação eterna no outro, os prêmios que o Senhor lhes outorgue. Amém.

Sem forças para aproximar-se, Mônica escutou os elogios, os parabéns; viu os

abraços, as mãos que se enlaçam, e agora, trançadas de uma dor sem nome, vê cruzar a Aimée, do braço do Renato, pelo estreito caminho de flores que leva às portas da

igreja, e os olha afastar-se e perder-se, como se toda a luz do mundo se apagasse de

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um golpe, como se abrisse a terra para tragar-se toda a beleza da vida, como se

perdesse em um instante toda sua razão de existir, e em voz baixa, reza.

— Faça-se, Senhor, Sua vontade, assim na terra como nos céus...

A luz deslumbradora e violenta do raio próximo são quão únicas ilumina a praia deserta, os altos escarpados de rochas, o mar enfurecido, todo aquele imponente concerto de natureza selvagem e desencadeado, que faz sorrir ao Juan do Diabo, como

se com tudo isso escutasse a velha música terrível que envolveu sua infância: O Cabo do Diabo, o pedaço de costa mais áspera de todo o litoral, e aquela anônima praia escondida, desconhecida, quase inacessível, que é para ele entrada exclusiva e secreta

à próxima cidade do Saint-Pierre.

A uma só flexão de seus braços do Hércules, colocou o bote praia dentro, lhe

liberando da possível fúria do mar. vai jogar dentro os remos quando algo se move sob o branco, e indaga irado:

— O que, é isso? Quem está aí?

— Sou eu, patrão...

— Raio do inferno! E que demônios veio a fazer? Como te colocou aí? Por que fez

isso? Responde!

— Eu queria vir com você, patrão... Queria conhecer a ama nova...

— Intrometido — pretende arreganhar Juan, mas sua voz estraga seu gesto. —

Quem te deu permissão de me desobedecer? E se tivesse derrubado o bote antes de chegar a terra?

— Com você não se derruba. E se derruba eu sei nadar Também. Sei me atirar

do mais alto e chegar até o fundo buscando uma moeda.

— Já... Suponho que tiveste que procurar moedas até no fundo do inferno —

aceita Juan. E adotando um gesto severo, resmunga: — Mas quando eu dou uma ordem é para que se cumpra. Disse que baixaria sozinho e você foi esconder-te no bote. .

— Eu já estava aqui, patrão. Desde pela tarde me tinha metido para que me trouxesse. Eu queria vir com você. Se necessitar algo em terra, quem vai servir lhe,

meu amo?

— Bom, está bem. Colibri. Vêem, sobe por aqui... Vais conhecer a boa terra da Martinica, e vais ver a ama nova...

Juan começou a subir os escarpados com passo firme e rápido, e o pequeno Colibri lhe segue tom grande esforço, ate que de repente adverte com entusiasmo:

— Lá há luzes, patrão!

— Quieto! Não é ali aonde vamos. É mais perto... Por este lado. A casa está às escuras...

— Isso é uma casa?

— Sim, Colibri. Essa é a casa de sua ama.

— Mas está dormindo... — desilude-se o moço.

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— Talvez durma... E sonha com o Juan do Diabo. Pobre dela se sonhasse com

outro!

— Pobre dela?

— Ainda não sabe disso, Colibri. Mas quando um homem quer a uma mulher, quê-la para ele revestiu ou não é um homem. Compreende?

A mão larga e robusta se apoiou nas costas do garoto, lhe sacudindo em arruda

carícia. Logo passa sobre a redonda cabeça de muito curtos cabelos frisados, e lhe explica, orgulhoso:

— Sua ama é a mulher mais linda que viu nunca, Colibri. —

— Você me disse um dia que tinha os olhos como luzeiros...

— Como luzeiros sobre o mar lhe brilham os olhos negros, e é toda ela... Como

uma flor. Sim, Colibri: como uma flor. de fogo...

— Ela não sabe que você chegou? Você disse que lhe mandava cartas com o pensamento...

— Que parvo é! — ri Juan verdadeiramente divertido. — Mas já te chicoteará ela. São as mulheres as que, ao fim e ao cabo, chicoteiam-no a um, e as que lhe

ensinam boas maneiras, Não me vê?Nunca pensei que uma mulher me fizesse esperar ao raso, até que amanhecesse... Mas quero chegar como um cavalheiro. Você sabe o que é um cavalheiro. Colibri?

— Sim, sei patrão... É um homem que vai a cavalo...

— Também é isso — ri Juan a gargalhadas-, e me deste uma idéia. Se eu comprasse um bom cavalo, se nos apresentássemos vestidos de outra maneira, não

com estes farrapos molhados... Vamos a comprar roupa. Colibri. — Uma rajada impetuosa, de vento e chuva, faz amaldiçoar ao Juan: — Raio do inferno! Volta a

chover, e você está tremendo. Tem frio?

— Não, patrão.

— Como que não, se esta batendo os dentes? Vamos à taberna do Surdo. Não

nos viria mal algo o que mascar e algo o que beber. — Vacila um momento e exclama: — Claro que não sei como me agüento para não tocar essa porta...

Deu um passo para a casa escura e fechada, aproximou-se da larga porta do frente... Saltando como um beija-flor. Colibri vai atrás dele, e adverte:

— A porta está fechada por fora, patrão. Olha: um cadeado...

— Pois é certo. Uma argola e uma corrente com outra fechadura... Isto quer dizer que não há ninguém na casa.

Com violenta ira repentina, sacudiu aquela cadeia que cruza entre argolas

reforçando a velha porta, mas ao violento puxão cede a podre madeira e a mão audaz empurra decidida. Juan do Diabo penetrou sem vacilar. Alguém amarga desilusão,

uma impaciência irresistível, que é terrível e assume, impulsiona-lhe. Não se deteve para entrar como uma tromba através das desertas habitações, onde todo denota que aquela casa foi abandonada para um comprido tempo: as janelas sem cortinas, as

camas desfeitas, as paredes sem quadros nem imagens... Como por instinto, detém-se no centro da que fora quarto de Aimée. Uma força estranha parece envolvê-lo, como se

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ainda flutuasse no ambiente algo dela, como se a delatasse o sutilíssimo perfume que

ainda parece persistir, como se o espelho de lua esverdeada guardasse em seu semblante, misteriosamente, aquela imagem que lhe obceca. E, sem poder-se conter,

murmura:

— Aimée... Aimée... Onde está, Aimée?

Sem ela é como se, de repente, o mundo estivesse vazio: tudo perdeu sua razão

e seu objeto. Parece-lhe mover-se em um mundo irreal, até, que a escura figurinha de Colibri se agita atrás dele, lhe fazendo voltar para a realidade:

— Não está aqui à ama, patrão? Foi de viagem?

— De viagem? De viagem há dito? — alarma-se Juan, dominado por repentina ira. — Aonde e por quê? Por quê?

— Por que não pergunta a algum amigo, patrão? — insinua timidamente Colibri. — Não tinha amigos à ama nova?

— Muito me temo que muitos, mas não os conheço nem sei nada deles.

— E você, patrão? Não tem amigos?

— Eu? Amigos eu? Não, Colibri acredita que não os tenho. Temem-me ou me

atacam, odeiam-me ou me respeitam, mas ninguém é amigo do Juan do Diabo.

— Eu sim, patrão — afirma Colibri, em um arranque infantil.

— Você sim? Pode ser... Bom, vêem... Vamos daqui...

— E o que vai fazer patrão?

— Procurá-la. Procurá-la e dar com ela onde quer que esteja.

— Aimée, minha vida...

Aimée se estremeceu, voltando a cabeça vivamente. Está sozinha junto à

balaustrada daquele largo portal que rodeia a casa, frente ao departamento preparado especialmente para eles na asa esquerda. Chegou escapando do bulício, ainda com o branco traje de desposada, e aspira com ânsia o ar fresco e úmido da noite chuvosa,

enquanto olha correr as nuvens negras, limpando a partes o transparente céu cheio de estrelas.

— Não sabia onde estava — explica Renato. — Te hei buscado por toda a casa...

— Escapei porque não suportava já tanto bulido e tanta gente.

— Logo estaremos sozinhos, minha vida.

— Logo? Quem sabe! Isso não depende de seu desejo. Se tivesse feito as coisas como eu queria, teríamos tomado o caminhou do Saint-Pierre imediatamente depois das bodas, e que ficassem aqui de testa até o amanhecer se queriam. Mas com este

sistema do tempo de nossas avós...

— São só umas horas de paciência, e foram meses de adiantamento em nossas

bodas. Se tivéssemos feito as coisas como você queria, ainda estaríamos esperando que acabassem de reparar a casa do Saint-Pierre. Não estaria eu o seu lado como estou nestes momentos: com o doce direito de te chamar minha...

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Quis beijá-la, mas ela esquiva o beijo. Agora que as bodas se realizaram, sente

uma angústia estranha, algo muito parecido ao medo. Acaso teme a necessidade de dar ao Renato uma explicação desagradável. Acaso é mais agudo o desgosto que há

dias cresce nela. Acaso o fato de sentir perto com todos os direitos de marido, provoca nela frieza e desapego; mas compreende que não pode menos, que desculpar-se:

— Sinto-me mau, Renato. Dói-me a cabeça... — É natural, minha vida. Os

nervos, o ruído, a obrigação de saudar continuamente, de responder a todos, de sorrir a todos... Entretanto, eu até posso dizer, como diziam nossos avós: Hoje é o dia mais feliz de minha vida! Não sente você o mesmo. Aimée? Não me responde?

— Responderei quando se tiver ido o último convidado.

— Alguns vão passar aqui à noite. Por sorte, os menos. Como amainou a chuva,

muitos se dispõem a retornar, e se o Governador entre eles. Sabe que aproveitei a ocasião de lhe falar de alguém que me interessa muito?

— A ti? Quem?

— Um amigo a quem não conhece, mas no que penso como candidato a administração de Campo Real. Tenho muitos projetos e preciso ter a meu lado

colaboradores capazes, que compartilhem minhas idéias plenamente... — Vacila um momento ao observar que Aimée não lhe presta atenção, e quase se desculpa: - Não te interessa o que digo?

— Não é o tema do que desejam ouvir falar uma mulher umas horas depois de casar-se. Mas como em ti os assuntos da fazenda são uma obsessão...

— Me perdoe, mas é algo tão ligado a nossa vida... Campo Real, você e eu, é a

mesma coisa, para mim ao menos. De nossos sentimentos depende o bem-estar de muita gente, e nós também, em certa forma, dependemos deles. É a cadeia da vida,

agora mais forte que nunca, porque te tendo a meu lado, em meu Campo Real, o mundo para mim se fecha neste vale... Embora, não te assuste... Escaparemos dele sempre que querer.

— Por meu gosto estaríamos bem longe agora e sempre.

— Sempre? Você não gosta do imóvel? Não sente como eu, que nosso lar está

nela?

— Meu lar ainda não sabe onde está...

— Seriamente? É possível?

— Se te empenhar em me obrigar a falar...

— Pois sim. Em qualquer caso, prefiro que seja sincera. O que te passa meu amor? Não pensei te encontrar assim nestes momentos. Há em ti algo estranho,

desconcertante... Por que, minha vida? Quero-te tanto!

Aproximaram-se mais a ela, tomou-a pelo fino talhe, atraindo-a a si, e ela sente

o impulso de rechaçá-lo, mas se contém. Pensa que no próximo salão dourado, o melhor do Saint-Pierre celebra seus bodas. Pensa que é a senhora D' Autremont, invejada por todas as moças casadoiras da sociedade em que habita. Pensa que é de

ouro sua cadeia, e sorri... Sorri afogando o protesto de sua alma e de seu corpo:

— Não me faça muito caso, Renato. Estou cansada e nervosa... Eu gostaria de tomar um pouco de champanha...

142

— Certamente... Aqui o tem. Olha... Vêem...

A tinha feito cruzar a soleira do gabinete que precede o quarto. Sobre o bordado toalha de uma pequena mesa, há guloseimas em bandejas de prata: doces, frutas, e

um cubo de gelo de que emergem duas garrafas de champanha. O próprio Renato enche as taças, põe a dele nos lábios dela e murmura apaixonado:

— Aimée... Meu amor... Minha esposa...

Beberam, e as taças se enchem de novo uma e outra vez, sendo esvaziadas entre sorrisos e beijos... Um último relâmpago põe sua pincelada lívida sobre o cristal dos espelhos; logo, a lua aparece pálida e fria, e Aimée comenta:

— Já se foi à tormenta... .

— Adoro-te, Aimée! — Renato tornou a beijá-la, elevou-a em braços

brandamente, e cruzamento com ela a cortina de raso do dourado quarto, enquanto murmura sem poder dominar sua paixão: — Te quero! Quero-te!

— Mas tomemos mais champanha, Renato — tenta evitar Aimée. — Muito mais

champanha. Traz a outra garrafa.

— Colibri, onde estava?

— Nem me olha tão sério patrão que lhe trago boas notícias. Fui até a casa da ama nova...

— E o que? O que? — Juan se pôs que pé empurrando violentamente a banqueta que cai detrás dele. É já meio-dia e poucos paroquianos ficam no desmantelado botequim do Armando, muito perto dos moles e não muito longínqua da

colina onde se eleva a velha casa das Molnar. — Acabará de falar?

— Já vai, meu amo, me deixe que respire, porque fui e vim correndo que te

corre... — Colibri parece muito ditoso de lhe poder levar ao Juan do Diabo uma boa nova, depois da noite passada junto a ele no sórdido botequim ouvindo-o amaldiçoar e vendo-o beber. — Na casa de frente havia uma moça varrendo a escada e me disse que

a ama nova... Bom, ela não disse assim, disse que a senhora e as senhoritas que viviam enfrente foram isso a passear ao campo, e que ela não sabe quando vão voltar,

mas que seguro, seguro que voltam...

— Disse isso? Ao campo por uns dias... Claro está! Como não me tinha ocorrido isso? Foram ao campo, só ao campo E eu que pensei... — detém-se um momento e

pergunta: — Não sabe ela o lugar ao que foram?

— Não, patrão. Diz que a ninguém o disseram, mas que já outra vez se foram e tornaram.

Juan se aproximou até a porta do botequim e o claro sol lhe banha por inteiro. Tudo lhe parece agora diferente: o céu, as ruas, as montanhas cujos picos se elevam

lá longe... Uma baforada de alegria lhe enche o peito, uma sacudida de alvoroço lhe percorre de pés a cabeça, e afirma com resolução:

— Iremos procurá-la. Colibri. Não haverá palmo de terra onde eu não a busque.

Mas antes, vestirei-me de cavalheiro.

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— Juan do Diabo! Mas o que é isto? — surpreende-se Pedro Noel.

— Encontra-me mudado, né? — sorri Juan.

— Caramba! Parece outro... Mas, o que faz aqui? Não te chegou meu recado? Não lhe disseram de minha parte?

— Chegou o recado e justamente devi agradecer se o Lúcifer se cruzou com o

veleiro Esperança, já à vista destas costas, e o patrão se tomou a moléstia de vir até mim em um bote para me dizer o que acontecia. Obrigado pelo aviso.

— Já vejo o muito caso que tem feito dele. Pelo visto, não te importa parar no

cárcere. A menos que...

O velho interrompeu suas palavras para olhar mais detalhadamente ao Juan do

Diabo, lhe examinando de pés a cabeça. Tanto lhe diferencia a mudança de indumentária, que logo que dá crédito ao que vêem seus olhos. Recém raspado, bem talhado o cabelo, a galharda figura sob um traje comprado ao melhor alfaiate do

Saint-Pierre, Juan do Diabo parece realmente um cavalheiro. Suas largas costas, sua elevada estatura, seu porte desenvolto, trazem para a mente do notário uma

lembrança aguda: o de outro corpo robusto, o de outra figura altiva, o de outro passo altivo e firme. Porque vestido dessa maneira, o rude patrão do Lúcifer se parece muito ao Francisco D'Autremont. Tanto se parece que as pernas do bom velho laqueiam,

obrigando-lhe a tomar assento, enquanto um suor frio banha-lhe as têmporas, e murmura:

— É assombroso! Igual, idêntico...!

— Idêntico a quem?

— A ninguém — evita o notário — A um fantasma...

— Caramba! — exclama Juan com jovialidade. — Não me achava muito o parecido, e tampouco me atrevo a acreditar que toda sua emoção seja por medo de que me coloquem preso. Asseguro-lhe que não há nenhum motivo legal para fazê-lo.

Rocei a lei, mas não fui abertamente contra ela. Tenho argumentos com o que me defender de qualquer acusação grave que me faça. Tive sorte, muita sorte, na última

viagem. E agora, meu bom Noel, estou decidido a mudar de vida. Surpreende-lhe? Segue me olhando como a um fantasma...

— Vais mudar de vida, Juan do Diabo! — entusiasma-se Pedro Noel — Se, vais

mudar de vida totalmente. Alguém vai ajudar-te... Alguém que pode e deve fazê-lo! E eu me encarregarei de que o faça imediatamente!

O velho notário falou com voz emocionada, comovido e trêmulo, sentindo que

um nobre desejo de justiça se levanta em seu peito. Sente que é necessário, que não pode ser de outra maneira, frente ao porte galhardo daquele Juan do Diabo que tanto

se parece com o Francisco D'Autremont. Sim, parece outro homem o rude patrão do Lúcifer sob suas roupas de cavalheiro... Parece o que realmente é: o filho a quem Francisco D'Autremont não pôde dar sua ajuda, seu amparo, seu apoio através da

vida; que foi despossuído de tudo e empurrado ao abismo para que perecesse; muito forte para ser destruído, muito altivo para esperar nada de ninguém neste momento no que sorri com zombadora indulgência ao assegurar:

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— Ninguém terá que me ajudar Noel. Pedir ajuda não entra em meus costumes.

Não necessito de ninguém. Mudar de vida a meus gastos. Para falar a verdade, hei. Começado a mudar já. Quer aparecer à janela um momento? Olha. O mesmo há

totalmente aberto a fechada janela do despacho. Na estreita ruela aguarda um carro de dois assentos, novo, lustroso, reluzente, como também brilham os arnês do soberbo tronco que tira dele, fielmente guardado neste momento pela graciosa figura daquele

Colibri de escura pele e olhos resplandecentes, agora também vestido de pés a cabeça como um pequeno cavalheiro. — O que é isso? — indaga Noel francamente sentido saudades.

— Minha carruagem e meu secretário particular — proclama Juan alegre e risonho. — Não se assuste que isto não é mais que o começo. Vim a lhe dar os

obrigado e algo mais também. Enquanto aguardo minha noiva que está ausente, dei voltas acima e abaixo pelo Saint-Pierre. Já sei do que me acusam e por que tinha você medo de que me prendessem. Fiz correr algumas moedas e acredito que não me

incomodarão se alguém não põe especial empenho em revolver as coisas contra mim. Desembarquei em meu Cabo do Diabo, e por ali deixei escondida meu veleiro.

Pareceu-me mais saudável que não vissem o Lúcifer na enseada do Saint-Pierre...

— É o único razoável que tem feito.

— Tudo que tenho feito é razoável. No alto da penha existe uma cabana em

ruínas. Ninguém pôs a mão nela.

Suponho que os vizinhos da aldeia a consideram de minha propriedade.

— Melhor suponha que a ninguém interessa esse maldito penhasco.

— Magnífico! Quero o ter legalmente e comprar o pouco de terra que está atrás dele. Edificarei ali uma casa sólida. Certamente, para todo isso fazem falta papéis...

— Papéis e dinheiro!

— Eu trago o dinheiro, põe você os papéis, e em paz.

— Mas, Juan, então é certo que tem feito fortuna...

— Não na fortuna dos D'Autremont — responde Juan em tom zombador: - mas, vamos... Trago dinheiro para dar a uma mulher quanto ela queira.

— Uma mulher... E antes disse: "minha noiva"... Que trata de me dizer?

— Quero à mulher mais formosa do mundo. Noel — diz Juan com repentina paixão. — A quero para mim sozinho. Você verá como se arruma isso...

— Não conheço mais que uma forma: o matrimônio. Não quer te casar?

— Por que não? O que seja. Também fazem falta papéis, verdade?

— Bom... Sim... Mas já o arrumaremos. Em último caso, que demônios! Algo se

faz... — O velho notário vacila um momento, e com certo acanhamento insinua: - Te importaria te chamar Noel?

— Muito obrigado... É muito... — responde Juan compreendendo o oferecimento do bom Noel. E profundamente comovido, recusa: — Agradeço, mas não aceito. Não pode arrumar esses papéis com meu nome nada mais? Chamam-me Juan...

— Juan do Diabo... Não acredito que a sua esposa agrade... Bom, já procuraremos a fórmula legal. O nome quase é o de menos, o importante é que

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seriamente mudaste agora sim vejo clara a razão disso. Quer a uma mulher, vais fazê-

la sua esposa... Ajoelharia-me para lhe dar graças a Deus, e há outro que vai alegrar se muitíssimo, mas muitíssimo também. Outro a quem vamos mandar lhe um aviso

em seguida, porque se interessa por ti mais do que você pensa. Refiro ao Renato D'Autremont.

— Sim, já sei — responde Juan, indiferente. — A ele também quero vê-lo. Tenho

uma conta pendente e lhe quero pagar até o último centavo.

— Está louco? Vais ofender lhe se o tentar!

— Por quê? Fez-me um favor; o agradeço. Deu-me um dinheiro, ou o gastou por

mim; o devolvo. Todo isso é correto no novo mundo em que vou viver.

— Bom... Disso também falaremos mais tarde. No momento, vou tomar nota de

tudo o que quer, e a ver por onde começamos. Diz que sua noiva está ausente? Onde?

— Isso o tenho que averiguar. Segundo os vizinhos, foi ao campo uns dias. O rumo não sabem, mas procurarei até dar com ela. Talvez nisso você possa também me

ajudar...

— Certamente. Em tudo o que queira; mas me espere um momento...

Há-se afastado uns passos, rebusca no armário repleto de papéis, enquanto Juan, impaciente, dá voltas ao velho escritório. Sobre ele, sujeita com um peso de papel, há uma cartolina por onde seus olhos escorregam primeiro descuidadamente,

fixam-se depois com interesse, e começa a ler:

"Sofía Valois de D'Autremont tem a honra de participar o matrimônio de seu filho Renato..."

— Ah, se! É certo — exclama Noel, aproximando-se. — ia falar-te disso. Por uns dias, mais vale que deixemos em paz ao Renato, mas logo...

... “Com a senhorita Aimée do Molnar” — termina de ler Juan, sem prestar atenção às palavras do notário. E de pronto, um rouco grito brota de seu peito

— Aimée! Aimée!

— O que te passa? O que tem? — alarma-se Noel.

— Aimée do Molnar! Aqui diz Aimée do Molnar! — estala Juan já fora de si. —

Não pode ser! Aimée do Molnar é a prometida de. .

— Não sua prometida; sua esposa. Casaram-se ontem — retifica Noel completamente desconcertado.

— Mentira! — enfurece-se Juan. — Mentira! Aimée casada com o Renato! Ela sua esposa, sua mulher... Onde? Onde estão?

— Tornaste-te louco? — reprova o notário, francamente espantado. — Onde têm

que estar mais que em Campo Real? Mas, o que é isto?

Juan sacudiu entre suas duras mãos ao notário, branco de espanto, que logo

que acerta a compreender. Ele há apertado como se fora a lhe estrangular, soltando depois com violência, enquanto exclama:

— Canalha! Maldito! E ela... Ela...!

— Juan o que passa?

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— Com sua vida e seu sangue pagará ela também! Inutilmente, o notário

correu atrás dele. Juan parte já como um ciclone, como uma tromba a quem nada detém. De um salto está sobre seu carro, tomando as rédeas, empunhando com gesto

feroz o látego, enquanto o espantado Colibri logo que acerta a saltar atrás dele...

CCapítulo 21

— Como? Vais deixar-me, Renato?

— Só por uma hora, minha vida. Mônica não pode fazê-lo tudo ela sozinha. É justo que eu chegue até lá para lhe emprestar um pouco de ajuda.

— O quê? Vai até o outro vale? E a isso chama estar uma hora fora? Só para

chegar ali as gaste uma hora, e outra para voltar.

— E uns minutos em jogar uma olhada.

— Já será, pelo menos, outra hora também. Total: três horas sem verte, três horas aqui abandonada.

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— Abandonada... Que terrível palavra — se burla Renato com ternura. —

Abandonada em uma casa onde estão sua mamãe e a minha, onde há um verdadeiro exército de criados esperando suas ordens para satisfazer seus menores caprichos.

— Não me interessam... Não me interessa ninguém mais que você.

— Então, minha vida, me aguarde. Prometo-te demorar o menos possível. Olha, na biblioteca há livros excelentes, além das últimas revistas da França. Também pode

praticar um pouco seu piano ou dormir um momento. É uma doce hora para a sesta. Além disso, há uns trabalhos de agulha...

— Não quero fazer nada. Aguardarei-te furiosa e aborrecida, já sabe. Vate...

Vate já que não tem remédio, mas não demore muito. , Aimée jogou os braços ao pescoço de Renato, beijando-o enquanto ele sorri. O jogo do amor não é difícil para

sua alma flexível e ardilosa. Jogava-o diariamente entre pretendentes que formavam sua corte no Saint-Pierre... Tem um íntimo e feminino gozo ao comprovar o efeito de seus mímicos, de seus sorrisos, de seus beijos, daqueles gestos longamente estudados

que lhe deram o fácil domínio sobre os sentidos do homem. Renato lhe beijou as mãos antes de cruzar com passo rápido a larga galeria. Quando sua figura desapareceu,

Aimée se deixa cair, com gesto de chateio, no divã de raso, afunda-se nos almofadas e entrecerra as pálpebras...

Com esforço, brutalmente perseguidos pelo látego que implacável empunha Juan, os robustos cavalos que arrastam o leve carro de dois assentos galopam costa acima salvando o caminho escarpado que deixa atrás à costa. Com firme mão guia os

dois cavalos que, no alto já da primeira colina, deixam-lhe divisar aquele pequeno vale onde se estendem os canaviais, onde se eleva o primitivo engenho de tijolo, onde,

amazona no corcel que Sofía obsequiasse a Aimée como um dos presentes de bodas, Mônica do Molnar aparece de repente, atravessando-se no caminho.

— Cuidado, meu amo — adverte Colibri.

— Inferno. — amaldiçoa Juan freando bruscamente aos poderosos cavalos que relincham e esperneiam suarentos,

— Matou-a... Matou-a, meu amo! — exclama espantado o negro garoto.

De um salto, Juan está junto à mulher que rodou sobre o pó do caminho, mas que já se eleva sem esperar sua ajuda para enfrentar-se o com mais cólera que susto:

— Selvagem! É você um selvagem!

— Santa Mônica.. .

— Juan do Diabo...!

Ela retrocedeu ao lhe reconhecer, enquanto as pupilas dele se aumentam de surpresa. Uns momentos ficam os dois desconsertados, como se não pudessem dar

crédito a seus sentidos, como se a mútua transformação lhes maravilhasse ao mesmo tempo...

— Você... Você...! Mas é você? — exclama Mônica realmente assombrada.

— Eu, sim... Eu...

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Juan deu um passo para ela, olhando-a intensamente, enquanto em seu

coração bate as asas um raio de esperança... Aquela esplêndida mulher, agora vestida com roupas civis; aquela inesperada presença, nas terras dos D'Autremont, da que ele

não pode imaginar mais que em seu longínquo convento; aquela aparição atravessando-se em seu caminho, não pode acaso significar que as coisas não são da maneira que ele pensa?

— Molnar... Molnar... Você é Molnar também! Ou é a senhora D'Autremont?

— Eu? Está louco?

— Não é você a que se casou com o Renato D'Autremont? — Não é você? Então,

é Aimée, Aimée...

Foi para a Mônica, mas ela retrocede mais, e há em seus olhos uma expressão

de espanto. Compreende, adivinha mais que compreender; é muito eloqüente a expressão daquele rosto viril, daqueles lábios que tremem daqueles olhos que relampejam, daquelas duras mãos que se elevam tomando-a pelos braços

bruscamente, e das que ela se desprende altiva e violenta, ordenando:

— me solte! Como se atreve?

— E como se atreveu ela a me fazer isto? A mim! A mim!

— E quem é você? Não entendo nada...

— Sim entende. Em seus olhos vejo que sim entende... Ela não podia casar-se

com outro, e você sabe perfeitamente! Não poderia, e lhe custará à vida havê-lo feito!

— Quieto! É que perdeu a razão?

Agora é ela quem lhe sujeita, quem audazmente se interpõe, detendo-o quando

ele vai já para o carro cujas rédeas sujeitam as escuras e trementes mãos de Colibri. Ela é quem o viu tudo em um momento, como se o resplendor muito vivo de um raio

ferisse suas pupilas, delatando-há ao mesmo tempo em que lhe mostra um impensado panorama de horror...

— Onde vai?

— Onde tenho que ir, mas sim a procurá-la? Onde esteja, onde se ache, tenho que dar com ela!

— Está junto a seu marido!

— E o que? Pensa que vou deter-me porque esse imbecil, esse fantoche, esse mequetrefe...

— Cale-se, ou sou capaz de esbofeteá-lo! Você é o imbecil, o fantoche, o mequetrefe!

— Quer que comece por lhe apertar o pescoço? — enfurece-se Juan.

— Faça-o se atreve a tanto!

— Que se me atrevo...? Mas seriamente quer me fazer colocar um disparate?

Solte-me, tire-se de meu caminho!

— Não vou soltar o até que me ouça! Com que direito vai você a chegar até Aimée?

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— Como? Com que direito? É que não sabe quem sou quem fui para ela? É que

não sabe o que tenho feito para poder vir a lhe cumprir a palavra empenhada? É que não lhe contou ela que era comigo, com o Juan do Diabo, com quem tinha que unir-se

para sempre?

— Com o Juan do Diabo...!

— Juan do Diabo, sim, Juan do Diabo! Esse sou eu E se lhe incomodar meu

nome, sinto muito, mas Juan do Diabo sou e tenho que ser, e Juan do Diabo vai pedir lhe a sua irmã contas muito estreitas.. . Tão estreitas como seu pescoço quando estas mãos deixem de apertá-lo e o soltem para que Renato recolha quão único vou deixar

dela: o maldito cadáver!

— Não! Impossível!

Mônica esteve a ponto de cair desfalecida baixo com as ondas de horror que lhe produzem o olhar e o gesto daquele homem feroz, mas se repõe bruscamente quando as grandes mãos dele a apertam, de uma vez sacudindo-a e sustentando-a.

— Não se deprima ainda. Santa Mônica — Espere a vê-lo! — aconselha Juan com feroz sarcasmo.

— Você não o fará, porque ao Renato D'Autremont...

— A esse o parto em quatro, por traidor, por imbecil!

— Renato não sabe nada! Nem sequer sabe que você existe...

— Que não sabe que existo?

— Ninguém sabe que você existe na vida de Aimée. Eu mesma o ignorava!

— Mentira! Você e eu já nos tínhamos visto as caras...

— E o quê? Eu podia supor que um sujo marinheiro era amante de minha irmã?

— Pois devia supô-lo!

— Efetivamente. Agora tem você razão — aceita Mônica com amargura. — Conhecendo-a, devi supô-lo. Que baixa e que desprezível!

— Por me querer...

— Sim! Por tudo que tem feito, e também por isso. Por querer a um bárbaro como você!

Mônica retrocedeu cambaleante, ao bordo do caminho, até que o tronco de uma árvore a detém e aí fica imóvel, Ofegante, como sem forças, enquanto sem aproveitar o instante de seguir seu caminho, Juan dá uns passos para aproximar-se dela, um

tanto mitigada sua cólera, como se um sentimento novo lhe bulira dentro com agudo força niveladora, e murmura:

Então, Aimée enganou a todos...

— Exatamente — confirma Mônica com voz afogada. — Enganou a todos, burlou-se de todos, há pisoteado nossos sentimentos. Todos teremos direito de lhe

pedir contas da mesma maneira que você quer fazê-lo, e Renato D'Autremont mais que você, cem vezes' mais que você!

Juan apertou os punhos, elevou a cabeça altiva, olhou a um e outro lado toda a

terra que Seus olhos abarcam: à direita, perto, o vale pequeno que termina no mar, os

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canaviais, o engenho, os escarpados, o mar bravateio; à esquerda, longínquo, já

envolto entre a bruma 'azul da tarde, Campo Real, o vale florido, doce e fértil, em cujo fundo se levanta o palácio anacrônico que é reino dos D'Autremont. E como em um

lamento, rebela-se:

— Renato D'Autremont... Tudo o teve tudo o tem desde menino, tudo está em suas mãos... Mas não era o bastante, não era suficiente... Tinha também que me tirar

isso tinha que me arrebatar isso a ela, o primeiro coisa que eu quis ter. Maldito seja!

Comprido momento permaneceu imóvel Juan do Diabo, fechados os punhos, apertados os dentes, tão amarga a expressão, tão doloroso o gesto, que Mônica do

Molnar lhe contempla desconsertada. Só agora nota a grande transformação havida nele; só agora o olha de pés a cabeça, das altas botas de verniz brilhante até o bem

atalho jaqueta que rodeia impecável seu corpo gracioso e robusto. Agora é quando nota com estranheza a branca camisa de linho bordado, a abotoadura de ouro que a fecha, os cabelos cortados de outro modo, as bochechas pulcramente barbeadas, e

aquela expressão desconcertante, de dor nobre e funda que felpa um momento a ferocidade de seus ardentes olhos italianos. Vê-lhe distinto, jovem e atrativo, forte e

formoso, e a voz sai para ele como para um ser humano:

— Juan, quer você que falemos?

— Do que? Não vim para falar... Vim para proceder... Vim para me vingar. É o

único que fica já por fazer: vingar-me, e me vingar com estas mãos. Matá-la a golpes, como uma rameira! E matá-lo também a ele!

— Está louco? Que mal lhe tem feito ele? Que mal consciente, voluntário, tem-

lhe feito Renato D'Autremont?

— Consciente e voluntário? Não sei.... Talvez nenhum... Vivendo, nascendo, já

me fez todo o dano!

— Vivendo? Nascendo? Agora sim não o entendo — se surpreende Mônica.

— Naturalmente. O que vai você a me entender! Acaso Tampouco ele possa me

entender...

— Por que lhe odeia então? Por que lhe amaldiçoa?

— E você por que lhe defende com tanto empenho? Você é irmã dela; mas ele, seu cunhado, o que pode lhe importar?

— Não é só ele. — esquiva Mônica angustiada — É tudo, são todos... Minha

pobre mãe, uma anciã tímida, boa, débil... Quanto você faça contra Aimée, será contra ela, porque uma mãe... Uma mãe... Recorda você a sua mãe, Juan do Diabo?

— Não, Mônica — nega Juan com amargo sarcasmo na voz. — Não a lembro. E

se a recordasse, seria para odiar mais o nome D'Autremont, para amaldiçoá-lo, para aborrecê-lo, para querer apagá-lo com sangue. Sim... Para apagá-lo com sangue da

face da terra!

Com amargura imensa falou Juan do Diabo; com infinito assombro, Mônica lhe escuta e lhe contempla. “É alguém muito distinto, sim, é outro” totalmente: um

homem que em nada se parece com o insolente marinheiro que discutisse, com ela nos arredores de sua casa do Saint-Pierre. Há algo nobre e digno em sua dor e em sua cólera; algo reto, limpo e certeiro até em seu ódio, até em suas maldições, como se

tivesse muita razão para odiar e amaldiçoar, como se fosse 'muito justo aquele duro e

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amargo gesto rebelde com que se em frente ao mundo inteiro. E apesar de si mesmo,

Mônica do Molnar o admira... E lhe teme. O enigma que encerre lhe crava em uma interrogação que é quase uma desculpa:

— Em realidade, não sei nada de você...

— Nem você nem ninguém; mas é igual, posto que a ninguém interessa. A ninguém! Pensei que o importava a uma mulher, pensei que uma mulher me amava, e

não era certo! Fui só sua mofa, seu brinquedo, alguém de quem rir-se enquanto chegava a hora das bodas. Pois bem, agora não rirá ela sozinha, agora riremos todos e eu serei o último em rir, e o que ria com mais gosto!

— Mas é que não pode pensar mais que nela? A senhora D'Autremont está doente...

— A senhora D'Autremont! — estala Juan raivoso. — OH, Santa senhora D'Autremont! Ainda doente? Ainda não morreu? Pensa viver cem anos, enquanto arrebentam outros em tiro dela?

— Juan... Juan! — reprova Mônica.

— Basta já. Santa Mônica, falamos demais!

— Não; porque não me escutou você. Não conheço sua vida, não sei sua história, ignoro que motivos de rancor possa você guardar para os D'Autremont, mas, for o que for, sei que Renato é inocente...

— Inocente... E o que? Acaso só carrega um com suas culpas? Não basta um nome para ser bem ou mal nascido? Não se herdam com ele honras e riquezas? Não se herdam baldo e dores? Mas não é isso, não é isso... O que importa o passado, depois

de tudo?

— E o que pode ganhar dando um escândalo como o que pretende?

— Não pretendo ganhar nada: conformo-me com que todos percam, pisoteando tudo manchando tudo...

— Não pensou jamais em vingar-se com mais nobreza? Ao fim e ao cabo, quais

são as ofensas de você? Uma mulher foi dela... Foi porque quis, sem condição, sem cálculo... Suponho que foi sem cálculo...

— Claro... O cálculo o fez depois, o negócio o fez com as bodas...

— Mas disso não é você o que tem direito a vingar-se. É ele, é Renato D'Autremont. Quão único você pode fazer é dizer-lhe delatá-la, gabar-se de algo que

um homem deve calar sempre... Jogar aos quatro ventos a lista dos favores que uma mulher lhe outorgou, pensando que, pelo menos, era você o bastante homem para calar...

— Basta, basta... Não me enrede!

— Não estou dizendo mais que a verdade. E você seria o último dos canalhas,

delatando-a publicamente.

— Pare já, conseguirá me transtornar por completo...

— Conseguirei chegar a seu coração, conseguirei lhe fazer compreender. 'Não é

você o vexado nem o ofendido.

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— Sou o burlado porque tinha posto a vida nela. Fui um louco, um imbecil; mas

agora, como a desprezo!

— Isso é quão único deve você fazer! — aconselha Mônica tomando a palavra. —

Que melhor vingança que seu desprezo, seu grande desprezo? Se lhe enganou, se lhe mentiu, se foi com você desleal e embusteira, pense que, ao menos, teve a sorte de conhecê-la a tempo. O mundo é grande, há nele milhões de mulheres... Por que

destroçar sua vida por ela, se você souber já que não vale à pena? Por que fazer tanto mal aos que são inocentes, e fazer-lhe a você mesmo? O que lhe espera depois de vingar-se? A vingança não é mais que um minuto e, o que vai ficar lhe depois dela?

Juan do Diabo ficou imóvel e pensativo. Uma a uma, qual flechas certeiras, as palavras da Mônica lhe cravaram coração dentro. De repente, a olha como se a visse

por primeira vez, vacila como sob o feitiço de uma sugestão, e murmura lentamente:

— Em efeito... Há muitas mulheres. Suponho que todas são como ela: embusteiras e hipócritas. Embora, para falar a verdade, você não o parece. Mas...

— Jesus! — interrompe-lhe Mônica, sobressaltada para ouvir o galope de um cavalo que se aproxima. — É Renato... É Renato o que chega. Por piedade, não lhe

fale, não lhe diga... Rogo-lhe, o suplico, imploro-lhe Por Deus que está nos céus...

— Não acredito em nada nem em ninguém. Santa Mônica.

— Por você mesmo, Juan, por sua própria consciência — roga Mônica em voz

baixa. — Chorando lhe suplico...

Juan cravou na Mônica um olhar intenso, olhar interrogadora e estranha. Um me cento parecem suavizar-se seus olhos soberbos. Logo sorri com amargo sarcasmo

e, também em voz baixa, murmura:

— Aí está o homem mais ditoso da terra...

— Mônica, que passou? Cruzei-me no caminho com seu cavalo solto... — começa a dizer Renato, que se aproxima. Mas de repente, surpreende-se ao reconhecer ao acompanhante da Mônica e, com sincera alegria, exclama: — Juan... Juan.. . Isto

sim que é fantástico. Acredito que te envia o céu, Juan...

Foi para ele com os braços abertos, estreitou-lhe com gesto tão espontâneo, tão

fraternal, tão sincero e aberto, que Juan do Diabo não acerta a lhe rechaçar. Deixou-se abraçar correspondendo com um torpe gesto, voltando logo à cabeça para olhar de frente, pleno de amargo sarcasmo, o pálido rosto da Mônica, e fala ao fim, totalmente

sereno:

— Você crie que é o céu? Pois Santa Mônica não comparte sua opinião. Por pouco temos um acidente. A atropelo quando atravessava o caminho, e é um milagre

que não tenha sofrido nenhum dano. É obvio nem a ela nem ao animal lhes ocorreu nada. Estava-lhe apresentando minhas desculpas neste momento.

— Santa Mônica disse? — se estranha Renato.

— É uma brincadeira... Uma brincadeira de mau gosto, naturalmente, como todo o meu. Mas a senhorita Molnar me perdoa. Mais pesada brincadeira foi lhe jogar

em cima o carro, mas não o fiz de intento.

— Conheciam-se vocês?

— Pouca coisa, mas algo. Verdade, senhorita Molnar?

153

— Efetivamente — concorda Mônica, vacilando. — Nossa casa no Saint-Pierre

está muito perto da praia. O senhor Juan...

— Do Diabo — completa Juan.

— O senhor Juan... De Deus... — retifica Mônica — desembarcava com freqüência junto aos farallones da costa e passava por casa. Alguma vez falamos... Disso nos conhecemos.

— Uma forma bastante estranha e surpreendente — comenta Renato.

— Na vida há muitas surpresas — indica Mônica. — Também o foi para eu comprovar que vocês se conhecem de antes, que são amigos...

— Amigos da infância — recalca Renato com satisfação. — Mas tem má cara, Mônica, está muito pálida. Assustou-te muito com o choque? Não se sente bem?

— Claro está que não se sente bem — intervém Juan dominando a situação. — Mas, por sorte, a casa está perto. Se me permitir isso, levarei-a até ali no carro. Vamos, suba você.

Elevou-a em braços bruscamente, colocando-a no assento. Empunhou o látego e as rédeas, e enquanto Renato vai para seu cavalo, observa-a de novo com um olhar

intenso.

— Obrigado... Obrigado! — sussurra Mônica em um fio de voz.

— Ainda não me dê isso. Talvez achei, como você me sugeriu uma forma distinta

de me vingar, um modo mais fino, e mais cruel!

— Renato, filho, o que passou? — interroga Sofía. — O cavalo que montava Mônica chegou solto...

— Meu cavalo, Renato... Meu precioso cavalo chegou tudo estropiado, arranhado, cheio de terra, com um estribo quebrado — queixa-se Aimée.

— Já sei. Cruzei-me com ele no caminho, e apurei assustei-me também, mas, por sorte, Mônica não sofreu nenhum danifico. Estará aqui dentro de um momento. Vem naquele carro ao que eu me adiantei justamente para tranqüilizá-las se tinham

alarmado.

— Naquele carro? — pergunta Aimée.

— Que a atropelo ao cruzar o caminho — conclui Renato. — Por sorte, a Mônica não ocorreu nada; e o culpado do acidente solicitou a honra de trazê-la ele mesmo.

— O culpado do acidente... — se estranha Sofía.

— Para o que, certamente, peço-te indulgência, mamãe.

— Se atropelo a Mônica por estupidez...

— Não só pelo atropelo, mamãe, mas também por outras coisas. Em uma

palavra, também me adiantei para isso. Sei que não é santo de sua devoção, mas te suplico, rogo-te que lhe trate com indulgência, que o suporte, que já depois falaremos

dele...

— Mas quem é? — alarma-se vivamente Sofía.

— Um réprobo que confio possa arrepender-se. Um louco a quem sonho fazendo

sentar a cabeça. Um pecador a quem desejo redimir a muito tempo...

154

— Acabará de dizer o nome, filho? — apressa Sofía, já alarmada em grau

supremo.

— Eu também estou em brasas, Renato — assegura Aimée. — Quem pode ser

todo isso?

— Juan... Do Diabo... Justamente, aqui o têm vocês

Renato foi para a escalinata de pedra, frente à que já se detém o carrinho de

dois assentos onde Juan chega trazendo para a Mônica. Colibri, abaixado no estribo, salta a terra para deixar espaço, enquanto trêmula de ira e desconcerto dá Sofía uns passos detrás de seu filho. Por sorte para ela, ninguém olhou a Aimée, que se agarra

ao respaldo da poltrona para não cair, para não desabar-se, embora se dobram seus joelhos, embora sua vista se nubla... Um instante vê que tudo gira a seu redor: rostos

e paisagens... E afogando o grito que vai escapar de seus lábios, cai, afundando-se na inconsciência...

— Aimée... Aimée... O que é isto? — alarma-se Renato.

— Um desmaio... Estava muito nervosa — explica Sofía. — chama filho, chama as donzelas.

Juan desceu do carro lentamente. De longe viu a Aimée; viu-a cambalear-se e cair; viu que todos correm indo a ela; deixou passar a Mônica, que se dirige para sua irmã...

— Logo! Que corram pelo médico! — ordena Sofía com autoridade. — perdeu o pulso; está gelada...

— Ela padece estes acidentes — explica Mônica — Mas não é nada. Necessita

repouso e silêncio. Por favor, Renato, leva-a a seu quarto...

— O meu está mais perto... Vamos logo... — oferece Sofía, afastando-se junto

com o Renato, que carga o corpo inanimado de sua esposa.

— Juan, vá-se agora, se afaste neste momento — suplica Mônica trêmula de angústia.

— Não se preocupe... Esperarei. Vá com eles... Esperaremos. — tornou a cabeça para olhar ao garoto negro, de pé, junto a ele, os grandes olhos espantados, e lhe sorri

com sorriso de hiél. — Vá tranqüila. Santa Mônica, meu secretário e eu esperaremos...

Sob o dintel da porta que dá à galeria, Sofía D'Autremont se deteve, apoiando-se no braço de seu filho, e ambos contemplam um momento a figura arrogante que

permaneceu imóvel junto à escalinata de pedra. Um momento, Sofía D'Autremont sacudiu a cabeça como espantando uma idéia horrível. Também ela, como o velho notário, há sentido que um calafrio a percorre, que um suor gelado umedece suas

têmporas, porque o moço que aguarda de pé, franzindo o cenho e alta a cabeça, parece-se muito a aquele Francisco D'Autremont que, faltando a todas as leis

humanas e divinas, lhe desse a vida. É como ele, de uma vez esbelto e robusto, forte e ágil; tem como ele, os gestos largos e o gesto desdenhoso, eleva com a mesma altivez, a cabeça. Só sua pele mais escura lhe diferencia; só seus cabelos, mais frisados e

negros; só seus grandes olhos italianos, aquilo olhos iguais aos da Gina Bertolozi, que são para a Sofía D'Autremont a mais impassível das ofensas...

— Com o desmaio de Aimée, deixamo-lo plantado — murmura Renato. — Mas

você ouviu meu rogo, verdade, mãe?

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— Renato, eu sou quem te rogo...

— Por que esse rancor, mãe? — reprova com suavidade Renato. — Ao fim e ao cabo, que mal nos tem feito?

— É um ladrão! — defende-se Sofía em voz baixa e desdenhosa. — Todo mundo o diz!

— Todo mundo se engana com respeito a ele. Eu acredito compreendê-lo. Deixe-

me fazer uma prova, mãe, me deixe lhe dar uma oportunidade na vida. Eu te prometo que se não responder a ela, voltarei-lhe definitivamente as costas...

— me perdoem que lhes interrompa — se desculpa Juan, acercando-se aos

D'Autremónt — mas tenho pressa em retornar ao povo. Vim só para saldar uma conta com o Renato, senhora D'Autremont, e lhes economizarei em seguida a moléstia de

ver-me. Aqui está o que devo...

— O que diz Juan?

— Toma... O que pagou por mim quando me detiveram, o que lhe deu ao maneta

para que retirasse a demanda, o que custou o embargo do Lúcifer... E esta conta mais velha: o punhado de moedas que te tirei quando fomos meninos... Duas moedas de

ouro e vinte e seis reais de prata. Roubei-os para poder escapar daqui, para não morrer de fome como um cão às portas de sua opulência, mas já está pago tudo, até o último centavo!

— Juan... Juan...! — chama Renato ao ver que Juan se afasta com passo rápido.

Seguia deslocado detrás do Juan e lhe detém apoiando em seu braço robusto a

bem cuidada mão de cavalheiro. É grave sua pressão, tanto como a de Juan é tempestuosa; é nobre e singelo seu porte, tanto como o de Juan é altivo; e há uma luz

profunda de compreensão e afeto em seus olhos azuis, enquanto nos muito negros e ferozes olhos de Juan do Diabo brilha a faísca daquele rancor amargo, daquele ódio ancestral com que nutriram sua infância miserável, seu horrível adolescência, sua

dura e rebelde juventude...

— Juan, por que te leva desta maneira?

— De que maneira me Porto? Pagar minhas dívidas? Não é só patrimônio de bem nascidos fazê-lo... Deixe-me, Renato. Por que não me deixa?

— Porque sou mais teimoso que você, Juan do Diabo — afirma Renato em tom

cordial. — Porque tenho empenho em ser teu amigo, embora me tenha rechaçado sempre com as piores maneiras.

— O que quer? Eu não sou um cavalheiro. Deixe-me, Renato! Será melhor para

ti que me deixe

— Vamos, basta de lhe fazer o reprovo. Nem mesmo de menino conseguiu me

espantar com seus bufidos de fera. Juan, eu sei que é bom...

— Bom eu? — ri Juan com amarga raiva.

— Ri quanto queira. Juan compreendo-te como talvez ninguém no mundo te

compreenda. Há algo em ti que me atrai que me faz me sentir teu irmão... E a verdade é que não sei a que atribuí-lo. Acaso porque te vi chegar a esta casa da mão de meu

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pai a quem sempre admirei; acaso, e isto é quase um segredo, porque sendo tão breve

nossa amizade de meninos, você é o único amigo que tive na infância.

— O que está dizendo?

— Compreendo que estranhes. É estranho mesmo, mas assim foi. Eu não tive amigos de menino. Minha mãe não me deixou os ter. Seu grande amor me envolvia em mimos e cuidados. Não fui nunca à escola... Os professores não eram para mim, mas

sim serventes mais ou menos considerados empregados a salário que se desfaziam em elogios e adulações para o aluno único, cujos pais pagavam esplendidamente. Claro que em Campo Real sobravam meninos e moços, mas jamais se permitiu que se

aproximassem de mim, nem eu a eles. Você foi algo novo, diferente... Parece-me que te estou vendo quando lhe trouxeram: áspero, áspero, selvagem como um gato Montês.

Mas havia em ti algo de forte e de livre que me cativou que me fez te invejar... Sim, te invejar, Juan. Considerava-me ditoso com que me deixasse ir detrás de ti pelos campos tratando de imitar suas proezas, e te tivesse seguido sem vacilar se você,

naturalmente, não tivesse preferido ir sozinho. Já vejo que te surpreende...

— Em efeito. Parecia-me um rei. Eu, a seu lado, era menos que um cão.

— Acaso outros vissem assim as coisas, mas eu não. Para mim, você foi o rei e eu o mendigo dos ásperos gozos de sua infância livre. Pouco trocaste Juan. Então me olhava. Como agora: áspero e carrancudo, mas te apressava a me ajudar e a me

defender se me via no menor perigo. Lembra-te?

Juan baixou a cabeça. Seus largos punhos, robustos como maças, fecham-se. É como se baixasse ao fundo de si mesmo, como se descendesse ao abismo interno de

seus mais íntimos sentimentos... Ao mundo de amargura, de raiva e de ciúmes, no que se debate como perdido. E sonha a voz do Renato mais afetuosa, mais fraterna,

mais profundamente cordial e sincera:

— Quero que fique a meu lado, Juan; que troque para sempre suas boinas e suas camisetas de marinho por essa roupa que tão bem te sinta; que empregue para o

bem, não para o mal, seu valor e sua força; que seja a meu lado, o que sonhei que fosse? Amigo, colaborador, irmão... Sim, irmão. Meu pai o disse assim uma vez e não

esqueci suas palavras. Nomeio-te administrador de Campo Real. Terá autoridade e dinheiro, honra e proveito, e a ninguém mais que a mim terá que prestar contas.

— Eu administrador de Campo Real? — Totalmente desconcertado, Juan elevou

a cabeça, procurou a verdade no fundo daquelas pupilas azuis, fraternas e leais para ele, e há sentido o golpe brusco de seu próprio coração, que pulsa apressadamente. — Seriamente pensaste isso? Você sozinho? Por ti mesmo? Dona Sofía me odeia...

— Não exageremos. Não posso negar que não lhe é simpático, que nunca foi. Em realidade, acredito que nem sequer é isso, mas sim seu amor maternal, seu, grande

amor por mim, que lhe faz ver-me sempre pequeno, indefeso... E não te ofenda, Juan.. Também matéria propícia para que objetos em mim seu mau exemplo. Minha pobre mãe não compreende certas coisas, e é lógico que não as compreenda. É outro seu

mundo, mas estou seguro que todo isso passará assim que te trate um pouco. É demasiada sensível e muito boa... Já irá conhecendo...

— Não acredito Renato. Porque até agradecendo com toda a alma o que acaba de

me dizer, não estou disposto A...

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— Não me dê sua negativa de repente. Espera um pouco e pensa-o. Fiz-te minha

proposição de repente, para te rogar, ao mesmo tempo, que fique uns dias... Uns dias somente, que a nada comprometerão. Em realidade, não deve dizer que sim sem

inteirar-se do que se trata. É um trabalho duro e árduo: quero transformar o regime interno de Campo Real totalmente, desterrar os velhos procedimentos e arrancar para sempre as presas a uma velha raposa: Batista recorda-o? Em outros tempos,

mordomo da casa; logo, administrador general; atualmente, um tirano ridículo e desprezível contra o que Mônica e eu começamos a ofensiva.

— Mônica? — se estranha Juan.

— Sim... Mônica, minha cunhada, que foi, depois de ti, minha única e verdadeira amiga na infância e na adolescência, a musa inspiradora de meus quinze

anos...

— E por que não te casou com ela?

— Com a Mônica? — surpreende-se Renato — Bom... Em realidade, não sei

como não acabei por me apaixonar por ela. Era encantadora de flamenco, segue-o sendo... Levava-me muito melhor com ela que com a Aimée, mas o coração é assim...

Um dia trocou de rumo e me cativou essa criatura que tem todas os obrigado, todos os encantos. — Renato sorriu a seu próprio pensamento, cego em seu sonho, sem olhar o rosto do Juan, a quem o só nome do Aimée transforma, endurecendo-o, acendendo o

de cólera violenta, que milagrosamente contém. — Suponho que a conhece de vista, como a Mônica. Lamento muitíssimo o mal-estar que me impediu de te apresentar a ela, mas será dentro de um momento... Sou muito feliz, Juan, imensamente feliz. E

quando se é feliz, é fácil ser generoso. Quero que esta minha sorte chegue até o último canto de minha fazenda; quero que os mais humildes benzam o nome de Aimée,

pensando que o bem-estar lhes chegou por ela, porque seu amor soube me fazer mais humano, melhor... Surpreende-te?

Agora sim olha ao Juan, e ele o surpreso pela terrível expressão daquele

semblante. Sobre o rosto moreno que a palidez faz branco, são duas labaredas de rancor os grandes olhos negros, e se apertam os lábios, dos que por um verdadeiro

milagre não escapa seu segredo.

— No que pensa Juan? Está longe... Longe, e em um lugar nada grato. Dou-me conta... Tenho-te proposto ficar aqui sem te perguntar nada. Acaso você tenha seu

amor também... Acaso uma mulher...

— Malditas sejam todas!

— Juan! — reprova Renato; mas, pormenorizado, indaga: — Feriu-te alguém?

Tiveste a desgraça de tropeçar com alguma má mulher?

— E qual não é má?

— Vamos... Não fale dessa maneira. Não é digno de um homem cabal amaldiçoar assim, a vulto, de todas as mulheres. Algumas são o pior do mundo, estou de acordo; outras, o mais alto, o mais nobre, o mais limpo e puro que possamos achar

sobre a terra...

— Diz-o por sua Aimée...?

— Naturalmente!

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Renato respondeu com brutalidade, franziu o cenho, há recua vau no Juan um

olhar duro e penetrante, ergueu mais a fina cabeça... Mas a frase que treme nos lábios do Juan do Diabo não chega a brotar. Há uma desconhecida força interna que lhe

detém. Ao voltar à cabeça, vê que Mônica do Molnar se aproxima, e comenta indiferente...

— Sua cunhada...

— Aimée tornou em si, Renato — explica Mônica — perguntou por ti imediatamente. Surpreendeu-lhe muito que não estivesse junto a ela.

— Sim, claro... Vou correndo. Saí só para deter o Juan. Que ele conte o que

acabo de lhe dizer... Ah! E trá-lo para a casa. Mandarei que lhe preparem uma habitação de hóspede...

Renato cruzou com ágil passado a parte de jardim que lhe separa das escalinatas e rapidamente penetra na mansão. Os olhos do Juan lhe seguiram até lhe ver perder-se, enquanto Mônica, tensa de emoção, observa-lhe...

— Não me olha assim... Ainda não hei dito uma palavra;

— ainda não tenho feito nada — a tranqüiliza Juan — Deixei-me levar e trazer para o

gosto de todos vocês...

— Que Deus o pague Mas o que é que Renato lhe há dito? O que é que se propõe você fazer?

— Renato pretende que fique em Campo Real. Que fique indefinidamente. Oferece-me o suculento posto de administrador de sua fazenda...

— Mas você não aceitou isso, Juan. Verdade? Não pode aceitá-lo. Você tem que

ir-se daqui imediatamente! Já viu você o efeito que sua presença fez em Aimée.

— Um desmaio muito socorrido. Que cômodo, que oportuno! O mundo é para

as mulheres...

— Não foi fingido. Sua aparição a feriu como um raio. Agora está desesperada, enlouquecida, sofre como no fundo do inferno... Ela não sabia que você ia voltar...

— E para não me sabê-lo o fez jurar tantas vezes? Que não minta! Ela estava segura de que me deixava bem sujeito, louco e apaixonado como um imbecil, capaz de

tudo por ela...! De tudo, sim, de tudo! Você sabe o que eu tenho feito? Joguei-me a vida cem vezes cada dia! E tudo, por quê? Para que? Para cumprir minha palavra; para poder me aproximar dela com roupas de cavalheiro; para poder lhe dar o que eu

sabia que ambicionava; para me levar isso do braço à luz do sol, cumprindo com tudo isso que vocês chamam religião, família, convencionais...

— Juan, por piedade... Calou até agora. Siga calado, afaste-se. Eu lhe asseguro

que, neste momento, Aimée chora com lágrimas de sangue...

— Entre os braços do Renato — conclui Juan com infinita amargura.

— Não pense nisso. Eu lhe peço...

— Basta de pedidos! — corta Juan com aspereza. — Não cries que vai seguir me dirigindo com súplicas e lágrimas. Não sou um sentimental como Renato, não sou o

bastante feliz para querer ser generoso. Ao contrário, sou o bastante desgraçado para

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odiar até a luz do céu, até o ar que pausa, até a terra que me sustenta... E não

renunciei a vingar-me!

CCapítulo 22

— Aimeé, minha vida, o que é isto? Por que está chorando? Sente-se muito mal?

— OH, me deixe!

— Me perdoe, mas não compreendo, Mônica disse que estava melhor e que me chamava...

— O que sabe essa imbecil...

— Imbecil sua irmã? — surpreende-se Renato, profundamente estupefato ante a atitude de sua esposa.

— Imbecil estúpida e intrometida! Quando se vai a seu convento e nos deixar em paz?

— Mas, Aimée, eu acredito que está transtornada, fora de ti... Por quê? O que é o que passou?

— O que é o que te contou ela?

— Nada me contou nem nada tinha que me contar. Você é a que me desconcerta. Por que falas assim de sua irmã? É absurdo que reaja contra ela desse modo, quando não pode ser mais generosa, mais solicita, mais tenra contigo...

— Pobre Mônica! — suspira hipocritamente Aimée, algo tranqüilizada ante as palavras do Renato.

— Agora a compadece?

— É que não sei nem o que digo...

Secou suas lágrimas, fez um esforço para raciocinar. Odeia a Mônica... Sim,

odeia-a, e o rancor sobe aos lábios como uma espuma amarga. Mas no rosto do Renato viu uma expressão dura, severo, grave, e astutamente recolha velas enquanto

lhe observa, enquanto, como um relâmpago de esperança, cruza por sua mente a idéia de um plano disparatado, e interroga de novo:

— Não disse nada Mônica de meu desmaio?

— Sim, minha vida, disse que os padecia, coisa que eu ignorava. Incomodou-te que o dissesse? Não tem nada de particular. Além disso, tinha que dizê-lo para nos

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tranqüilizar. Compreendo o que sente: você molesta, humilha-te a idéia de padecer

algo. Mas, meu amor, que parva é! Isso não tem nada de particular... Todos padecemos de algo. Você é maravilhosa e perfeita. Esse pequeno mal vamos curar-lo ,

e se não se cura, é igual. Meu amor é para sempre e para tudo, Aimée, em sorte e em dor, em saúde ou em enfermidade. Quero-te para sempre, e como diz o rito protestante: Até que a morte nos separe!

Docemente, Renato estreitou a Aimée entre seus braços. Pouco a pouco foi mudando sua expressão e seu gesto, enquanto, melhor que pode fazê-lo ninguém, acha em si mesmo a desculpa perfeita, que felpa a dolorosa impressão de ingratidão,

de dureza e violência que por um momento lhe causassem as palavras de Aimée. E enquanto seu amor salva generosamente à distância, Aimée caça a intenção ao vôo,

muito ardilosa para não aproveitar-se de qualquer vantagem que lhe ofereça, muito calculadora para não querer guardar-se contra todo risco... Até com o escudo de uma lágrima falsa.

— Aimée, minha vida, mas, o que é isto? Chora outra vez?

— Me perdoe. Agora é de pena por ter falado mal da Mônica. Ela é muito boa,

Renato.

— Sim, Aimée, imensamente boa. Está fazendo uma grande obra no cuidado dos doentes...

— Já sei que está encantado com ela; mas, de qualquer modo, seu posto não está aqui, mas sim em seu convento. Ela não é feliz conosco e é um egoísmo muito grande de nossa parte nos empenhar em retê-la.

— Ainda não me empenhei.

— Mas o fará, conheça-te muito bem. E é um verdadeiro engano de sua parte. O

casado casa quer. Você e eu devíamos viver sozinhos, meu amor.. . sos em nossa linda casa do Saint-Pierre. Não me responde?

— Agora não — evade Renato — mas já falaremos de tudo. No momento há

muito que fazer em Campo Real, e como a sorte me põe à mão os colaboradores que sonhava...

— Colaboradores? Quais?

— Em primeiro lugar Mônica, e depois... Suponho que não pôde vê-lo, sentiu-se mau. O homem que guiava a carruagem...

— Vi-o perfeitamente.

— Conhecia-lhe, verdade?

— Bom... — aceita Aimée sem negar nem afirmar.

— Mônica sim; Mônica lhe conhece perfeitamente. E ele, de vista ao menos, afirmou te conhecer. Mônica me recordou que a casa de vocês, no Saint-Pierre, está

muito perto da praia. Parece ser que Juan acostumava tomar terra por uma praia que fica justamente atrás do jardim de vocês. O curioso é que você não o conheça mais que ela, posto que leva mais tempo vivendo nessa casa...

— Já te disse que sim o Conhecia, mas não simpatizo nada com ele, e não me pergunte por que, pois não lhe saberia dizer isso, mas não me é nada, nada simpático. Foi já?

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— Não, Aimée, não se foi. Comprometi-lhe a que passe uns dias conosco.

Durante eles tratarei de convencê-lo para que aceite um posto em Campo Real.

— Está louco? — reprova Aimée com vivacidade. — O não sabe nada de imóveis,

é um homem de mar... E com bastante má fama como certo. Acusam-no de contrabandista e de pirata.

— Em efeito. Mas eu tenho muito interesse em que troque de vida para que não

lhe acusem mais de nada disso. Somos amigos da infância, meu pai lhe prometeu ao seu velar por ele. Por desgraça, morreu sem poder fazer o que se propunha, e eu considero um dever moral fazer pelo Juan o que meu pai haveria feito.

— E ele está conforme em trabalhar para ti?

— Ainda não. Mas já lhe disse isso antes: espero convencê-lo. O teve sorte em

sua última viagem e traz algum dinheiro. Talvez não queira trabalhar comigo, mas sim estabelecer-se por sua conta, e nesse caso também o ajudarei; mas, de um modo ou de outro, quero obter sua amizade. Por isso sinto que não simpatize com. ele e que

não você seja a única, pois tampouco mamãe quer nada com o Juan do Diabo, como lhe chamam. Entretanto, confio em ir limando asperezas...

Aimée inclinou a frente até ocultar o rosto aos olhares do Renato. Teme delatar-se com um gesto e treme como se tivesse febre, enquanto ele acaricia suas mãos com ternura, e indaga solícito:

— Sente-se melhor? Crie que pode nos acompanhar à mesa?

— OH, não, Renato! Sinto-me muito mal. Dói-me horrivelmente a cabeça e não acredito poder me pôr de pé sequer. Não me obrigue a me levantar...

— Claro que não te obrigo, que ocorrência! Eu mesmo vou levar-te a nosso quarto.

— Incomodaria-lhe muito a dona Sofía que eu passasse a noite neste divã? Pelo menos, me deixe aqui umas horas sozinha, totalmente só e a escuras para me repor. Com isso acabarei de me sentir bem. Rogo-lhe isso, Renato, tem mil coisas em que te

ocupar.

— Está bem. Se for seu gosto, deixo-te sozinha; mas, de todos os modos,

acautelarei a sua donzela para que esteja atenta.

Saiu, e Aimée faz atrás dele um gesto de impaciência.

Não pode mais; sente-se enlouquecer de desespero, e aflora ao fim os contidos

nervos. Escorregou que divã até cair ao chão, mordendo-as mãos, arrepiando os negros cabelos, retorcendo-se como sob a agonia do mais cruel tortura.. O sangue lhe ferve nas veias, o coração lhe pulsa até afogá-la e, ao fim, eleva-se como se aferrando a

uma determinação e murmura em voz alta:

— Juan... Juan... Tenho que lhe falar a sós. Aconteça o que acontecer, tenho

que falar a sós com ele! — de repente, ouça uns passos suaves que se deslizam sigilosos, e alarmada, indaga — Quem anda aí? OH, é você, Ana! O que fazia detrás dessas cortinas?

— Pois nada. Minha ama, o que quer você que faça? O senhor Renato me disse que estivesse perto e que esperasse...

— Vêem para cá,...

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Dócil à voz do Aimée, a escura donzela que Sofía cedeu a sua nora se aproxima

dela, sentando-se muito perto, a seus pés, no tapete, e inclina a cabeça olhando-a com solicitude de animalzinho doméstico. Nada parece ter trocado nela durante aqueles

quinze anos: é como se tivessem escorregado sobre sua alma infantil, como se eternamente tivesse aquela adolescência ingênua que faz brilhar seus olhos como dois azeviches e aparecer os dentes branquíssimos como carne de coco sobre a pele cor

tabaco.

— Já se estavam pondo feias as coisas nesta casa, verdade senhora Aimée? Igual que a outra vez que veio o menino Juan...

— O que outra vez?

— Bom... A outra. Quando se matou o amo velho, que foi o que trouxe para o

Juan. Então, o menino Renato tinha este alto, e nem E Aninha nem Batista mandavam na casa...

— É que os D'Autremont conheciam já ao Juan?

— Pois, claro. E você olha que se disseram coisas... Quer que lhe traga uma taça de caldo?

— Não. Diga-me onde estão outros... O que fazem?

— Cada um, uma coisa distinta. A senhora Sofía, encerrada, furiosa como a outra vez... Dizem que lhe disse ao garotinho Renato que ela não ia comer na mesa

enquanto estivesse aqui Juan. Seguro que «o faz para que o senhor Renato o jogue. Mas o que vai, aí está Juan no comilão, tão alto e tão bom moço como o amo dom Francisco faz vinte anos. Parece-lhe, sabe senhora Aimée? Quando o vi de repente, até

me dava um susto. Era entre duas luzes e me pareceu que se tratava do amo...

— Diz muitas tolices, Ana, e não respondeu ao que te perguntei. Onde estão

todos? Na sala de jantar acaso? Estão comendo já? E Mônica? O que faz Mônica?

— Agora não sei. Quer que vá ver e volte a lhe avisar?

— Sim, Ana, porque preciso fazer algo grave, importante... Algo em que você

sozinha vais ajudar-me, e que será um segredo entre as duas. Se souber guardá-lo, te darei de presente um traje novo, de seda, e uns sapatos, e um colar, e tudo o que

queira. Mas tem que aprender a fazer as coisas como eu lhe mando, e a calar-te, Ana, a te calar como uma tumba. Saberá fazê-lo? Jura-me isso?

— Pois claro. Não vou dizer nenhuma palavra a ninguém. Eu sei fazê-lo muito

bem... A de coisas que eu me calo! Se eu falasse, senhora Aimée... Se eu falasse...

A donzela nativa tem feito um gesto expressivo, mostrando ao sorrir a dobro fileira de seus dentes branquíssimas, ditosa e encantada de ter chegado a aquele

ponto da confidência no que sua jovem ama nova vai abrir lhe as portas de sua intimidade. Diáfana e simples, incapaz de pensar, é possivelmente a cúmplice menos

adequada; mas é muito violento a tormenta de paixões que arrebata a alma de Aimée. Necessita de alguém, e não é capaz de ser prudente...

— Não quer que falemos um momento, Mônica?

— Claro... Se o desejar, com o maior gosto, Renato. Estão em um dos salões contíguos ao amplo sala de jantar. Mônica e Renato logo que provaram o café e o

163

conhaque servidos depois do jantar. Juan acaba de retirar-se, e Mônica parece

respirar com um pouco mais de confiança. Ainda a presença do Renato é para ela preciosa... Ainda saboreia como uma guloseima, inquietante e amarga, o senti-lo a seu

lado, até naqueles momentos de tensão e de angústia, sentindo palpitar em seu torno o perigo de uma catástrofe.

— Em primeiro lugar, quero te dar os obrigado: é a única que não desertou quão

única veio a me acompanhar a compartilhar a mesa com o Juan.

— Aimée está doente, e mamãe...

— Sim, já sei: sofre de enxaqueca. Também minha mãe, oficialmente ao menos,

terá enxaqueca durante os dias que Juan passe nesta casa. E quanto à enfermidade do Aimée, penso que ela exagerou, pois tampouco lhe é simpático o pobre Juan.

— Disse-lhe isso ela...

— Disse-me isso com toda franqueza. Como sempre lhe hei pedido que seja absolutamente sincera comigo, o agradeço. Mas me tivesse gostado tanto encontrá-la,

como a ti, compreensiva e amável com o Juan.

— Não acredito que Juan encaixe no ambiente desta casa. Você mesmo o está

vendo, Renato. O não parece contente aqui. Por que não o deixa afastar-se?

— Deixarei-o, que remédio fica! Mas é absurda. A má vontade que todos têm contra Juan. É áspero e áspero, porque sofreu muito. Sua história é larga. Outro dia

lhe contarei isso, embora a verdade é que até para mim mesmo guarda muitos pontos escuros. Meu pai tinha nele um empenho tão grande... Mas deixemos a papai, embora esteja ligado com o que queria te dizer. Quero fazer uma modificação completa do

regime de trabalho em Campo Real. Começamos pelo mais peremptório, que eram os doentes; mas em tudo terá que pôr a mão. Claro que para isso preciso ter aqui ao

velho Noel, e olha que casualidade... Pensava mandar a procurá-lo na próxima semana, e recentemente. Vieram a me trazer o aviso de que estava detido em metade do caminho, por uma roda rota do carro de aluguel em que vem. E, como é natural,

mandei um carro para buscá-lo... Mas o que te passa? Está inquieta...

— Não me passa nada. São tantas coisas, que...

— Uma a uma iremos resolvendo. Se não estar muito cansada, sairemos à galeria a ver se chegar Noel. Muito me temo que sua presença tampouco vai ser do agrado de mamãe.

— Então...?

— Não gosta de nada que seja contra Batista, mas eu estou resolvido a terminar com ele e com todos seus abusos. Sua presença aqui é o mal que terá que extirpar e

para isso não valem panos mornos: é preciso resolver de uma vez... Ouve? Parece-me que chega uma carruagem... Vamos...!

— O senhor Renato e a senhorita Mônica saíram ao jardim porque ouviram chegar um carro, mas não era a visita que esperavam... Era o carro grande, com os encargos da senhorita Mônica para esses doentes que está cuidando. De modo que o

senhor e a senhorita ficaram muito entretidos com tantos pacotes — informa Ana a Aimée, de acordo com o encargo que esta lhe fizessem.

— E Juan? Foi com eles Juan?

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— O que vai! O Juan se foi da sala de jantar acabando do comer, dizendo que ia

deitar-se. Mas o que vai... Foi a procurar a esse moço que trouxe com ele, a averiguar o que lhe tinham dado de jantar. E disse ao Esteban que não o pusesse em um quarto

de servente, porque Colibri, que assim se chama ele condenado negro, tinha que dormir com ele no mesmo quarto.

— E onde está agora?

— Passeando com o garoto pelo segundo pátio, e sem falar.

— me ouça, Ana. É preciso que chame a esse menino, que lhe leve isso a qualquer parte, que deixe só ao Juan...

— Para que, minha ama? — surpreende-se a faxineira.

— Não pergunte e faz o que te mando. Olha, você gosta deste anel? Toma-o... É

teu... Para ti... Mas faz imediatamente o que te mando. Anda.

— Meu amo...

— O que quer. Colibri?

Juan se deteve em um daqueles lentos passeios dos que deu muitos já de um a outro extremo do segundo. Dou pátio. Chegou até ali levando consigo ao garoto, mas

não o olha nem lhe fala. Está muito absorto em seus amargos pensamentos, e seu olhar, ao ouvir-lhe falar, é quase de surpresa, como se despertasse de um sonho povoado de sinistras imagens, como se o pequeno e escuro rosto amigo o consolara

um tanto...

— Nos vamos ficar nesta casa, meu amo? Na cozinha disseram que nos íamos ficar para sempre, e que você ia mandar, e que foram jogar a um homem muito mau

que é o que agora está mandando. Mas quando ele chegou, todos se calaram. É um velho mais feio, patrão. Chegou arreganhando, e a um gato que estava bebendo leite,

deu-lhe uma patada. De verdade que é muito mau, pois o gato não o fazia mal a ninguém. É certo o que disseram meu amo?

— Não, Colibri, não é verdade. Amanhã mesmo iremos desta casa...

— Sem ver a ama nova? Sem procurá-la?

— Não há tal ama nova. Colibri — se lamenta Juan com amarga tristeza. —

Iremos outra vez ao Lúcifer. Poremos proa ao centro do mar, e não voltaremos nunca mais a Martinica.

— E a casa grande que ia fazer lá, naquelas pedras? E todas as coisas lindas

que você pensava meu amo?

— Todas se acabaram. Colibri. Iremos para não voltar mais!

— Chist... Chesf.. — chama Ana, a faxineira mestiça.

— O que é isso? O que acontece? — se violenta Juan.

— Chamava o moço, senhor Juan. Chamava-o para levá-lo. Vão falar a sós a

você — murmura Ana em voz baixa e tom misterioso. — Querem lhe falar sem que ninguém se inteire.

— Quem quer me falar?

165

— Não grite. Tem que ser sem que saiba ninguém. Vá-se a aquele canto que está

bem escuro, e não grite. Não fale alto. É um segredo. O ama não quer que saiba ninguém...

— O ama? Que ama? — pergunta Juan; mas, de repente, compreende e exclama: — Aimée!

— Chist... Não grite... Não grite... — suplica Ana. E afastando-se, ordena: — vá,

moço.

Um momento, Juan ficou imóvel, sacudido por um sentimento que é surpresa e é cólera, e também uma espécie de alegria selvagem. Aimée está ali, frente a ele, a

poucos passos... Mais que vê-la adivinha no canto escuro; distingue sua figura e, ao aproximar-se, vê seu rosto pálido, seus lábios trêmulos, suas mãos que se estendem

para ele, suplicantes. Sem convencê-lo, baixa a voz... Acaso lhe afoga o golpe do coração que se desboca, ou o inexplicável calafrio que percorre sua espinha, e murmura:

— Você! Você!

— Me mate, Juan! Aproximo-me de ti, para que você seja o que me mate...

— A te matar vim, Aimée... Mas, ao fim e ao cabo, não acredito ter nenhum direito...

— Não crie ter direito? E quando necessitaste você ter direito para estender as

mãos e lhe arrancar à vida quanto à vida quis te negar? Quando, Juan?

Aimée deu um passo fora da penumbra para olhá-lo com surpresa, quase com raiva. Aquele rosto frio, impassível, hermético, não é o que esperava ver no Juan. Para

lhe sair ao passo, esquivando sua violência, jogou-se o tudo pelo tudo em uma frase, e agora se sente como defraudada em seu desejo mórbido: Juan, seu Juan do Diabo

parece outro baixo aquelas roupas de cavalheiro. Parece outro, como está agora: enigmático, com um fulgor satânico nas pupilas...

— Para que quer que lhe mate? Não ama a seu marido, ao nobre cavalheiro

D'Autremont? Não é feliz sendo proprietária de Campo Real? Não é ditosa com seus trapos de seda e o baú de seus colares e suas jóias?

— Você sabe bem o que me faz feliz, e não é nada disso, Juan, você sabe...

— Eu não sei nada. O que posso eu saber da senhora D'Autremont, a esposa de meu melhor amigo? A esposa do Renato D'Autremont, tão generoso e tão solícito para

mim como se tivéssemos o mesmo sangue, tão preocupado de meu futuro, que não quer me deixar seguir no mar; tão atento a meu bem-estar, que quer velar por ele pessoalmente; tão seguro e crédulo, que me oferece um posto no que me seria muito

fácil arruiná-lo e, além disso, desonrá-lo.

— Mas está louco?

— Está-o ele, em todo caso. Embora minhas palavras soem a sarcasmo, são a pura e estrita verdade. Gracioso, não? Extraordinariamente gracioso... Mas não há razão para que te mostre se desesperada. Ao contrário... É uma mulher de sorte,

Aimée, de sorte extraordinária. Que mais quer?

— Queria saber se foi sincero; queria saber por que falas como falas. E, além disso, para que vieste? O que te propõe? O que vais fazer ao fim?

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— Para o que vim, já o disse antes: para te matar. Mas alguém me deteve no

primeiro impulso...

— Mônica... Essa foi Mônica!

— Pode que fosse ela. Deve-lhe a vida. Já tem algo que lhe agradecer. Mas também posso pensar que foi Renato. É difícil dar de punhaladas a um menino que sorri e que nos chama o melhor amigo de sua infância. E lhe dizer ao Renato quem é,

é pior que apunhalar-lhe. Porque não só acredita em mim esse... Bendito de Deus. Também acredita em ti. Viu algo com mais graça? Acredita em ti, Aimée, considera-te a mulher mais pura, mais nobre, mais leal. Ama-te como ao sol que chegasse a sua

vida, iluminando-a e desencardindo-a. — E enfurecendo-se lentamente depois fala, cospe o insulto: — A ti... A ti, carniça, lixo, prostituta hipócrita e desprezível, mais e

mais perdida que a última rameira! Mas te tranquilize, ele não sabe e você é a senhora D'Autremont, ama e reina de Campo Real — termina em são de brincadeira.

— OH, basta! Me mate se crie que te enganei, se defraudei seu amor e destrocei

seu coração; mas não me insulte, porque não vou tolerar!

— Não? Como vais fazer para não tolerá-lo?

— Sou capaz de gritar, de ser eu a que o diga tudo!

— Seriamente?... Faz-o... Será maravilhoso... Diga-lhe a verdade. Ao Renato. Diga-lhe, além disso, que te tratei como ao que é. Chame-lhe para que me peça contas

de minha ofensa. Volta-o contra mim, que isso é o que estou desejando: que venha como homem ofendido e que me injurie que me ataque. Então sim será fácil destroçá-lo com estas mãos. Então sim que a partida estará igualada. Faz-o, Aimée, faz-o!

Grita, chama-o!

— Muito sabe que não vou fazê-lo, e disso se aproveitas para me tratar como me

trata — protestou Aimée brotando a ira por todos os poros de seu ser. — Sabe que estou perdida, sem defesa. É um covarde!

— Sim... Sou um covarde, porque não devi ter escutado uma palavra de

ninguém, porque deveria ter matado a quantos me fecharam o passo, chegar até ti como me tinha proposto e apertar seu pescoço com estas mãos... — Juan vê o temor

refletido no pálido rosto do Aimée e, depreciativo e irônico de uma vez, tranqüiliza-a: — Não, não te assuste, não grite. Você sim que é covarde... Covarde e baixa... Porque é embusteira, hipócrita; porque te arrasta, arrasta-te mordendo pela costas, infiltrando

seu veneno pelo sangue...

— Juan... Juan... — suplica Aimée, magoada. — Sei que me odeia, tem que me odiar. Sei que me despreza, tem que depreciar. Mas no fundo de seu coração me ama,

tem que me amar, porque o amor não se arranca de repente...

— O teu está arrancado, E até a última raiz está fora!

— Não o cria, Juan. Só está lutando com ele, como eu lutei durante horas e dias, e a cada puxão por te arrancá-lo sangra o coração, como me sangrou como ainda me sangra e dói até me enlouquecer. Porque eu te quero, Juan é a ti a quem sigo

amando. Nada nem ninguém me fará mudar.

Afundou-se na penumbra, escorregou ao longo da coluna em que busca apoiou, e agora chora em silêncio, coberto o rosto com as mãos, enquanto Juan a olha chorar,

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rota à vontade na luta titânica daquela nova turfa de sentimentos e de idéias que

brotaram em sua alma, vacilando como entre dois abismos, e reprova:

— Basta de mentiras, de embustes, de farsas... Se me houvesse amado, se me

tivesse querido só um pouco, só a metade do que me jurava...

— Queria-te e te quero!

— Não minta mais! Aí estão os fatos, seus feitos, demasiado profundos, muito

claros: Casou-te com outro!

— Com outro a quem não amo. Juro-lhe isso! Não o quero, não o quis nunca. Detesto-o, chateia-me. As circunstâncias me empurraram. Eu não sabia que você

foste voltar... Alguém me disse que não foste voltar mais.

— Quem foi esse alguém?

— Pedro Noel, o notário. Indaga, pergunta... Disse-me que tinha confusões com a justiça, que a polícia te buscava que não poderia voltar mais para a Martinica, e eu pensei que suas palavras tinham sido falsas, que mentia sabendo quando lhe

encontrei prometendo voltar. Pensei que te tinha burlado de meu amor...

— E por que não esperou um pouco mais?

— Cegou-me o despeito; Renato me apressava...

— Naturalmente... Apressava... E como você estava jogando com dois baralhos... Não, a mim não engana. Sei quem é, sei como é.. . Eu não sou Renato, bom e

Candido. Sei toda a maldade, todo o egoísmo, todo a crueldade fria e hipócrita que tem na alma.

— Mas me quis sabendo isso!

— Sim, quis-te como pode querê-lo que mais nos danifica, a droga que envenena o vício que arrasta o perigo no que podemos perecer a cada instante... Assim te quis, e

por ti pensei o que nunca tinha pensado: ser outro homem, mudar de vida, encher sua ambição e sua vaidade, humilhar o único que tinha no mundo: meu orgulho de pirata... Voltar-me como os demais, só para te satisfazer, para te querer à luz do dia,

para te saber minha, meu sozinho, embora o Lúcifer se afundasse em outras mãos, embora não pudesse seguir me chamando Juan do Diabo, embora todo o meu se

fizesse pó, para fazer desse pó um tapete de flores por onde você pisasse. Assim te quis... Mas tudo acabou tudo terminou! Quis ser a senhora D'Autremont? Pois a sê-lo. A sê-lo de verdade!

— Não! Não! Matar-me-ei se me deixa! Juro-te que me matarei se me deixar!

— Você te matar? Ora! — rechaça Juan em tom depreciativo. — Se não te deixar, será para te voltar louca, para te atormentar, para te torturar, para fazer de

sua vida um inferno.

— Não me deixe Juan!

— Minha ama... Minha ama... Vem gente... Cuidado! — avisa Ana aproximando-se apressada. — Vem gente por esse lado... E acredito que é o senhor Renato...

— Aimée! — chama Mônica aproximando-se do grupo. Aimée há retrocedido,

afundando-se nas sombras; Juan permanece imóvel; Mônica deu um passo

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aproximando-se mais a ele, ao tempo que chega lentamente Renato, com uma

desculpa nos lábios:

— me perdoem se interromper uma conversação interessante. Ouvi a voz do

Juan, e como se despediu para ir-se a costa faz mais de uma hora...

— Sim... Mas tive calor. Não sirvo para dormir encerrado.

— Mônica respirou um pouco mais tranqüila. Por um instante aguardou tensa

trêmula de angústia, a resposta que pudesse dar Juan. Agora lhe surpreende sua mudança repentina, a fria serenidade com que respondeu ao Renato, a leve e amarga risada que aparece em seus lábios, ao prosseguir: — Pensa que passei mais noites de

minha vida ao raso que baixo teto.

— Faço-me cargo. As noites no mar têm que ser deliciosas.

— Sim... Sobre tudo quando se é grumete ou marinheiro de terceira classe, e despertam a um a chutes para fazer o guarda... — observa Juan com ironia.

— Não quis aludir a essas lembranças tão pouco agradáveis — foge Renato

jovialmente — mas, sendo como é patrão e proprietário de seu navio, estou seguro que as noites a bordo têm para ti muitos encantos, tantos que quase, quase começo a te

dar a razão.

— A razão no que?

— Em algo de que antes falava com a Mônica. — E voltando-se de repente à

aludida, recorda-lhe: - Também você te despediu para te deitar, Mônica. Disse-me que estava cansada, o qual me pareceu muito lógico, e renunciou a esperar a chegada de Noel...

— Vem Noel? — pergunta Juan, estranhando.

— Estou-lhe esperando. Tive um aviso que o carro que lhe trazia tinha sofrido

um acidente no caminho, mas já não deve demorar. Uma visita por surpresa, como a tua. Seguirei-me com o que estava te dizendo: penso que acaso faço mal em empenhar-me tanto em que troque de vida...

— Não acredito que faça mal. É uma solicitude que te agradeço. Além disso, disse-me que me necessitava...

— Em efeito, é o que disse.

— Pois não acredito que deva te negar essa problemática ajuda, quando tão desinteressadamente trataste que me servir sempre que o necessitei.

— Mas, Juan, o que quer dizer Renato... — intervém Mônica, nervosa.

— lhe deixe que termine Mônica — a interrompe Renato — Por favor... Fala Juan...

— Termino em seguida. Ia dizer-te que aceito o cargo que me oferece... Que fico em Campo Real!

Como se repentinamente tivesse tomado uma nova resolução, falou Juan olhando com fixidez ao Renato, um estranho matiz de desafio no tom de suas palavras... Logo se volta lentamente para o escuro canto por onde Aimée desapareceu,

com a esperança de que ela esteja muito perto, de que tenha escutado suas palavras, de que recolha, valorando assim que significa aquela determinação com que responde

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à provocação, que lhe lançasse. Teria dado sangue de suas veias por poder olhá-la à

cara nesse instante, para adivinhar em seus olhos se havia nela agradar ou espanto, mas não espiona mais que sombras espessas, e ao voltar-se de novo vê outro rosto de

mulher, pálido e gelado como de mármore, duas mãos brancas que se apertam crispando-se; uma figura grácil que um instante se estremeceu de angústia: Mônica do Molnar. E aquele leve e zombador sorriso que é sempre para ele uma arma contra

ela, desponta em seus lábios, ao dizer:

— Deixou-te pensativo minha resolução, Renato?

— Não, Juan — nega Renato com nobreza. — Ao contrário; é algo que desejo há

muito tempo e me deixe te dizer às palavras que pelos especiais incidentes de sua chegada ainda não te hei dito, mas que me saem do coração: Bem-vindo a Campo

Real, Juan. Bem-vindo a que sempre deveu ser sua casa, e o é desde este instante.

— Obrigado, Renato... — comove-se Juan a pesar dele.

— Espero que eu seja o que tenha que te dar as obrigado muito em breve,

quando tivermos obtido o que desejo. Mas há chegado um carro... Sim, chegou um carro à frente da casa... Certamente é o bom do Noel... Vamos lá... — convida Renato

afastando-se.

Juan não seguiu ao Renato. Ficou imóvel sob o olhar interrogadora e ardente de Mônica, cravada nele como uma ameaça, que se expressa ao dizer estupefata:

— Devo supor que está você louco?

— Eu? Por que, Mônica?

— Pensa seriamente ficar em Campo Real?

— E por que não devo ficar?Pelo visto, é o mais ardente desejo dos donos desta casa. Já ouviu você ao Renato, e suponho que também à nova senhora D'Autremont,

posto que, certamente, estava você escondida escutando. — Não tenho semelhantes costumes!

— Pois até contra seu costume, parece que, ao menos por esta vez, tem-no feito.

De outro modo não se compreende que seja em um momento tão oportuno, a tempo de cobrir a retirada de sua irmã. Estava você de acordo com ela?

— Quer calar-se? — ordena Mônica impulsionada pela ira.

— Não se enfureça; já vejo que não... Devo supor, então, que chegou por acaso. Mas até por acaso, pôde ouvi-la. Eu tinha decidido me afastar...

— Tem que afastar-se, Juan! Você não pode seguir aqui! O que se propõe? Aonde quer você chegar?

— No momento, só até esse carro. Santa Mônica — contesto Juan

burlonamente. — vou evitar que o velho Noel coloque uma indiscrição inteirando ao bom Renato do que mais vale que ignore: que se casou com a amante do Juan do

Diabo.

— Que vil e que desprezível me parece você neste momento! — salta Mônica em voz baixa, mas trêmula de indignação.

— Eu...? — Juan se contém fazendo um esforço e com amargo cinismo explica: — Isso não é nada novo. São os sentimentos que estou acostumado a inspirar às

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pessoas como você: puras e impecáveis... Mas não se preocupe, que já começo, ou

seja, cobrir as aparências e, pelo visto, a aparência é quão único vale no mundo das gente respeitáveis. A seus pés, futura abadessa...

— Estúpido palhaço!

— Esse sim é um insulto novo... Palhaço... Até agora ninguém me tinha chamado disso. Palhaço? Pode ser. Mas o que pretende rir a custa deste palhaço

pagará a função em moeda de sangue. Diga a sua irmã, a jovem senhora D'Autremont. Acautele-a de que a entrada para o circo do Juan do Diabo custa muito caro. Muito caro!

CCapítulo 23

— Colibri, vem comigo a dar um passeio?

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— Ao fim do mundo vou detrás de você, patrão. Saltando sobre uma e outra'

perna, para diante e fada atrás, com aquela agilidade que lhe valeu o mote que ostenta, sai Colibri detrás do Juan rumo às amplas quadras que ocupam o fundo da

casa. São as seis de uma esplêndida manhã, o ar transparente, o céu azul muito claro e os primeiros raios do sol aparecem dourando as cúpulas, limpa por exceção, daquelas três montanhas que se elevam como gigantes petrificados sobre a fértil terra

martiniquenha: Mont Brigue e os picos do Cabet.

— Até onde vamos, meu amo?

— por agora, a procurar um cavalo.

— Eu não gosto dos cavalos, meu amo. Nem os cavalos, nem os burros, nem os carros, nem as montanhas... Eu gosto o mar. Quando vamos para o mar, patrão?

— Não sei. Colibri. Talvez amanhã mesmo, acaso nunca mais...

— Que estranho se tornou você, patrão. Antes sabia tudo, até o que ia passar dentro de um ano... E agora não sabe nem o que você mesmo vai fazer amanhã.

— Você estranha? Algum dia saberá que assim parte um navio, quando é uma mulher a que toma o leme de nossa vida, Colibri.

— Mas você disse antes que não havia mais ama nova...

— Não... Não há mais ama nova. Mas quando uma paixão nos faz seu escravo, a ama é o desespero, e o rumo, a rota da desgraça... Olha... Deteve-se sujeitando ao

moço. Já estão muito perto da entrada das cavalariças e não se vê por aí nenhum servente. Mas alguém saca um cavalo do pesebre. Umas mãos brancas procuram ao azar uns arreios, se estendem até alcançar um dos freios pendurados da via central da

quadra... Uma mulher se dispõe a selar por si mesmo um cavalo, e para ela vai Juan com rápido passo, oferecendo-se:

— Posso ajudá-la em algo?

— OH... Você... — surpreende-se Mônica.

— Não há um criado que possa fazer isto em seu lugar?

— Sem dúvida, mas é muito cedo e prefiro não incomodar a ninguém Quer seguir seu caminho e me deixar em paz?

— Meu caminho é este. Santa Mônica. Aproximei-me para selar um cavalo no que dar um passeio. É-me igual selar dois ou, melhor ainda, enganchar meu coche e levá-la, já que parece gostar como eu, dos ares matinais. Aonde é o passeio? Colibri

me ajude um pouco... Vamos enganchar o carro...

— Sim, patrão.. Voando... — aprova o. Garoto alegremente.

— Já lhe hei dito que não quero que ninguém se incomode por mim.

— Não é moléstia; ao contrário. Não viu a alegria desse fantoche? Tem-lhe horror aos cavalos... Adora a idéia de que vamos passear de carro. Daremos um

passeio ao levá-la a você aonde vá. Não acredito ter nada que fazer em todo o dia.

— Você só tem que fazer uma coisa, Juan: partir... Ir-se logo... Ir-se para sempre!

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— Caramba! Não sabe você me dizer outra coisa? Resulta monótono escutá-la.

Quando não aconselha ou ordena, insulta. Torna-se você terrível senhorita Molnar — comenta Juan em tom de brincadeira.

— Como pode brincar? É que não se dá conta da situação em que coloca a todos sua presença aqui? Por que se empenha em ficar? Que espera? O que aguarda?

— Alguma vez ocorreu a você perguntar-se que espera o que aguarda o náufrago

que no meio do mar se aferra a um resto do que foi sua nave, enquanto o sol abrasador lhe tortura até lhe enlouquecer, enquanto a sede o adoece e o extenua a fome, enquanto o seu redor vê aparecer às ferozes bestas do mar? Perguntou-se você o

que aguarda, quando com seus olhos quase cegos percorre o horizonte por onde não aparece a esperança de um navio? Por que segue obstinado ao madeiro com os dedos

feridos, crispados? Por que segue tragando a água amarga que lhe cai nos lábios, em lugar de soltar-se e acabar de uma vez? Por que o faz? Por quê?

— Bom... — reflete Mônica, dúbia. — Isso é distinto. Será por instinto de

conservação, por dever e direito humano de defender sua vida... E espera um milagre que o salve! Mas você...

— Eu estou como esse náufrago. Santa Mônica, e não acredito nos milagres...

— E não crie tampouco na bondade humana, Juan.. De Deus — Não, não acredito nela. Embora me você dê esse ridículo homem que não tenho por

que levar. Suponho que se burla de mim com o mesmo direito que eu de sua pretensa santidade.

— Eu não me burlo de ninguém, Juan. Primeiro acreditei em você uma fera, um

bárbaro... Não vou negar-lhe. Depois, ao saber o homem, ao lhe sentir humano, ao ver que apesar de tudo você não é Indiferente à amizade de Renato e não foi de tudo surdo

a minha súplica tem que lhe dizer: Para que prolongar esta situação horrível? Aceite seu fracasso e vá-se.

— Eu não fracassei. Aimée me quer. A seu modo, mas me quer. Sem santidade,

sem dignidade, se me deixar que lhe fale claro. Quer-me e me prefere como tantas vezes me escolheram as prostitutas dos botequins do porto. Acredito que é capaz de

vir comigo aonde eu queira levá-la.

— Mas está louco? Estão loucos os dois? Como pode estar pensando em uma coisa semelhante? Quer... Pretende... Espera...

— Pediu-me que não a abandone; suplicou-me chorando isso. Quando você chegou ontem à noite tão oportunamente a ocupar seu lugar, isso era o que ela pedia-me, e minha resposta foi aceitar o cargo que me oferecia Renato.

— Não! Não é possível! Não pode chegar a esse extremo a maldade humana!

— A maldade humana é capaz de chegar imensamente mais longe de quanto

você possa imaginar— assegura Juan com gesto sério e voz enrouquecida.

— Não! Não! Teriam que ser dois monstros! Não podem destroçar assim a honra e a vida de Renato! Não podem ferir-lhe dessa maneira, porque há um Deus nos céus e

esse Deus enviaria sobre, vocês seus raios...

— Não diga tolices. Santa Mônica — ri Juan amargamente. E voltando-se para onde se encontra o moço negro, chama-o: — Colibri! Vêem para cá! Aproxime-te...

Tire-te a camisa..

173

— Como? O que? — se estranha Mônica.

— Esta senhorita quer ver suas costas. Colibri. Quer ver os rastros de seus golpes e de suas queimaduras. Quer inteirar-se, porque não sabe e vai apalpar o neste

momento, até que extremos podem chegar à maldade e a crueldade humanas. Quero que lhe conte o que foi sua vida, o que têm feito contigo aqueles com quem estava antes. E quero que você escute esses relatos, senhorita Molnar, e que depois me diga

onde estava Deus quando as bestas com figura humana, que foram seus amos, maltratavam-no desta maneira. Quero que me você diga onde estava Deus, senhorita Molnar, e por que não enviou então um de seus raios!

Brusco, violento, lhe relampejem o olhar, Juan do Diabo despojou a Colibri de sua camisa de linho branco, desnudando o pequeno corpo, elevando-o em seus braços

para que ela possa vê-lo mais de perto, olhando com ânsia o belo rosto de mulher, que já não expressa indignação nem cólera, mas sim espanto, dor e piedade, quando balbucia:

— Não... Não é possível... Este menino... Esta pobre criatura...

— Veja-o, apalpe-o, escute-o falar. O lhe dirá o que pode sofrer uma criatura

humana sem que se comovam os céus. Olha estes ombros destroçados pelas cargas de lenha, superior a suas forças de menino; estes pobres ossos deformados pela fome e os maus entendimentos. Veja as cicatrizes das queimaduras, das chicotadas... Para os

homens que o exploravam era menos que uma besta, menos que um cão coberto de carniça: era um menino negro, órfão, abandonado, sem uma lei capaz de protegê-lo, sem uma mão que se elevasse para deter a de seus verdugos...

— Mas onde? Onde achou você a esta criatura?

— Onde? Que mais dá! Acaso não há milhares como ele? Acaso estas horrendas

coisas não passam em todos os cantos da terra? Acaso cada dia não se comete atrocidades semelhantes sob todos os céus? Sim... A crueldade humana é infinita e Deus não envia seus raios... Seguem triunfando os malvados, seguem os fortes

pisoteando aos fracos. E quando uma destas criaturas, tratadas pior que um inseto, consegue sobreviver e se eleva cheia de todo o rancor do mundo, saturada de toda a

crueldade que contra ela usaram, quando um menino assim chega a homem, como pode lhe pedir a ninguém que se sacrifique pelos que sempre foram ditosos? Como pode esperar ninguém dele mais que ódio e crueldade?

— Mas você... Você...

— Sim... Eu sou esse... Ensinaram-me a odiar, a ferir antes que me ferissem, a matar para que não me matassem, e se não tivesse conseguido aprender essa lição,

que tão duramente me ensinaram, não estaria vivo frente a você, senhorita Molnar. Não espere de mim nada; não espere me comover jamais com súplicas e lágrimas. As

odeio detesto-as, não sei o que é piedade. Seguirei por meu caminho, destroçando-o tudo se for preciso. E não você tenha medo, que Deus não envia seus raios! Nada tenho resolvido com respeito a sua irmã, mas não é por piedade. Ignoro o significado

dessa palavra... Agora, vou enganchar o carro para levá-la a essa maldita viagem...

Afastou-se deixando antes no chão, junto a ela, o escuro moço semidesnudo que a olha com os grandes olhos cheios de assombro. E ela se inclina contemplando-o

como se pela primeira vez lhe olhasse, e visse através dele muito mais à frente; todo um mundo dolorido e trágico. E nesse mundo, Juan.. .o menino que foi Juan do

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Diabo... E enquanto pensa nele, suas brancas mãos escorregam acariciando a pele

escura do Colibri, suas horríveis cicatrize, aquela pobre carne candidamente negra, inocente e torturada, e de repente lhe estreita contra seu coração e o beija com uma

ternura nova, pura e distinta, que qual um diáfano manancial lhe sobe do coração até os lábios, de onde brota com infinita piedade o lamento:

— Pobre Colibri!

— Você é a ama nova? O patrão disse que vínhamos a Martinica a procurar a ama nova... Depois disse que não havia mais ama nova, mas agora... Agora... O disse que a ama era linda, que a ama era boa.... — Olhou-a com uma anseia acesa nas

pupilas cor de azeviche, com uma fome de calor e carinho, e Mônica volta a estreitar contra seu peito a redonda cabeça de muito curtos cabelos frisados. — É você minha

ama nova, verdade?

— Não, Colibri. Nem tua nem de ninguém. De ninguém sou ama, porque nada me pertence neste mundo... Nem sequer meu coração...

— Preparado o cocho. Quer montar? — interrompe-a Juan que chega com o carro, parando-o frente a ela.

— Por que tem que incomodar-se por mim? — Porque não é moléstia nem me custa nada. O que não custa nada se dá com facilidade...

— Tem razão. Tem razão nisso, como em muitas coisas mais.

— Tenho razão em tudo — assevera Juan com rudeza. — quanto digo não é mais que a verdade.

— Não é verdade tudo que diz — refuta Mônica suave pense nega que em seu

coração haja piedade, você nega que haja amor, e há ambas as coisas, Juan de Deus.

— Juan do Diabo! — encrespa-se Juan.

— Como você queira... Juan do Diabo... Capaz de escutar a uma mulher que lhe chateia e de salvar a este menino, resgatando de um inferno pelo que você mesmo cruzou...

— Não o fiz por piedade!

— Por ódio então? — indaga Mônica com ironia.

— Talvez... Ou acaso por egoísmo. Colibri sou eu mesmo, sua infância foi minha infância. Também a mim, algumas vezes, Quem soube me olhar como a um ser humano...

— Renato D'Autremont... Lembra uma por uma as palavras que pronunciou ontem. O pai de Renato também quis lhe resgatar...

— O pai de Renato? Acredito preferível que não falemos do pai de Renato, Santa

Mônica.

— Por quê?

— Por que... Chegaria você tarde aonde vai... Vamos, vamos... Você também Colibri. Sobe com ela. Não é a primeira vez que Santa Mônica te leva a seu lado.

— Nem será a última. Colibri é meu amigo já.

— Muito bonita frase, mas não me comove.

175

— Nem aspira a comovê-lo, Juan do Diabo! — enfurece-se Mônica.

— Quer você um "plantador Noel?

— OH... Caramba! — surpreende-se o notário aproximando-se de Juan.

— Sirva-se este. Encherei para mim outro copo. Suponho que quando põem aqui este formoso jarro e estes copos, será para que o hóspede nos atenda sozinho. À sua saúde, Noel!

— Não, não, obrigado, Juan, não vou tomar essa beberagem. Mas graças a Deus que te jogo por fim a vista em cima...

O notário se aproximou até a mesa de vime que continha meia dúzia de copos e

uma grande jarra daquela popular bebida martiniquenha feita de suco de dente com rum branco, e observa com desconfiança o copo cheio, enquanto Juan apura o seu até

o fundo e volta a enchê-lo.

— Levo duas horas dando voltas na casa sem tropeçar com ninguém, nem sequer com um servente.

— Beba Seu "plantador"... Resulta refrescante — convida Juan fazendo caso omisso da observação de Pedro Noel.

— Quer me dizer o que passou Juan?

— Pouca coisa, por não dizer, nada. Acredito que está à vista.

— Não vais querer me voltar louco, né? Acredito que se estiver aqui foi porque

me espantou, porque saiu de minha casa de uma maneira que me deixou assustado. Tinha pensado que estavas louco, que de repente te tinha transtornado, se não fora pelo estranho que é tudo que está passando.

— Sim, tudo é estranho, surpreendente...

— Ontem à noite, por sua atitude e por suas meias palavras, entendi que devia

calar a boca. Morto de inquietação e de curiosidade estive te esperando em meu quarto, mas amanheceu e não chegou por lá. Saí para te buscar e não estava na casa nem ninguém soube me dar razão de ti... Por Deus vivo me responda Juan

— O que quer que lhe responda?

— O que está passando... O que passou. Enfureceu-te até perder a razão

quando leste o cartão do matrimônio do Renato com a senhorita Molnar. Pareceu te enlouquecer de fúria a notícia dessas bodas. Saiu com cara de degolar a três ou quatro. Passei uma noite horrível, saí para aqui com mil trabalhos e em um carro

alugado que deixou a metade do caminho, e quando por fim chego a esta casa acho mão a mão com o Renato, em qualidade de hóspede de honra.

— Em qualidade de futuro administrador de Campo Real. Ao menos, essa foi à

proposição do Renato. E eu a aceitei.

— Mas... Mas... Cada palavra que diz me enreda mais. Veio nessa forma tão

extraordinária para que Renato te nomeasse seu novo administrador? Estava-me falando de mil coisas distintas, de mil projetos: de arrumar seus papéis, de armar um trem de pesca, de reconstruir a cabana, ou melhor, dizendo, de fazer uma residência

habitável em sua montanha do Diabo, de te casar... E de repente...

176

— De repente, tudo se veio abaixo. Foi como se essas montanhas que temos

diante caíssem feitas pó, como se abrisse a terra e por suas gretas vomitasse fogo, como se o mar se elevasse para passar varrendo e arrasando quanto achasse a sua

presa... Mas, esqueça-se de quanto lhe preocupe ou lhe incomode. Beba seu vinho e aguardemos... Eu lhe acompanho com o terceiro copo.

— Basta! Não estou para brincadeiras. A que temos que aguardar?

— É o que me pergunto eu mesmo. A que aguardar? A que estou aguardando? — confessa Juan com lenta amargura. Mas de repente, trocando a um tom médio irônico, meio jovial, exclama OH.. Aqui chega a jovem senhora D'Autremont. Ontem à

noite não me fez a honra de sentar-se à mesa. Agora sim parecem disposta a fazemos as honras da casa. Que bela é, verdade. Noel?

Com os lábios entreabertos de assombro, tornou a cabeça o notário para ver aproximar-se de Aimée, realmente deslumbrante nestes momentos. Levam um apertado traje de seda vermelha, o bastante decotado para mostrar ela pescoço

perfeito, os impecáveis braços de cor de âmbar. Os brilhantes cabelos negros, recolhidos com graça crioula, caem pelo pescoço até as costas, brilham os olhos

negros como duas estrelas tropicais, e se entreabre a boca fresca, suculenta, tentadora, com um sorriso indefinível, como se destilasse mel e veneno ao próprio tempo. Depois de olhar a ela, Noel observa ao Juan, que empalideceu sob a pele

torrada. Um instante cruza por suas pupilas um relâmpago de amor e de ódio, de desespero e de desejo, também de cega e insensata esperança, e escapa a súplica angustiada da garganta do velho amigo:

— Juan... Juan... Tens que sair imediatamente desta casa!

— Boa tarde — saúda Aimée aproximando-se aonde se acham os dois homens.

— Boa tarde, senhorita — corresponde Noel visivelmente turbado.

— Senhora já, senhor Noel — retifica Aimée com suave naturalidade. — Como está você? Ontem à noite não tive a oportunidade de saudá-lo. Não me sentia bem e

me deitei cedo. Fez uma boa viagem?

— Regular nada mais.

— Veio você chamado por meu marido, verdade? Os dois homens se olharam em silêncio: o ancião notário totalmente desconcertado; Juan com seu amargo sorriso de cinismo nos lábios, a fera máscara gelada que impõe a sua dor e a seu amor. Como se

tomasse uma resolução repentina, responde Noel à esplêndida moça:

— Em realidade, vim para me ocupar dos assuntos de Juan.

— Ah, sim? Chamado por ele?

— Não precisamente chamado, mas sim pela necessidade de acertar certas coisas. O bom de Juan, que é meu amigo e cliente desde que era menino, é muito

violento, muito arrebatado. Deu-me uma série de ordens tão confusas quando esteve em minha casa, que não pude entender o que seriamente queria. Ele tinha seus projetos ao chegar, que me pareceram excelentes... Quer mudar vai veleiro por uns

quantos navios pesqueiros, reconstruir sua casa na montanha do Diabo, pôr em ordem seus papéis, empregar razoavelmente o dinheiro que traz... São idéias excelentes... — E com marcada intenção, prossegue: — Seria criminoso se alguém

tratasse de lavá-lo por outros rumos... Não, não exagero, senhora D'Autremont. Seria

177

simplesmente criminal... Juan vim a te buscar; sua presença é necessária no Saint-

Pierre...

— Aqui também faz muita falta... Mais falto que em nenhuma parte — assegura

Aimée. — Renato conta com ele. Está em apuros graves, precisamente por sua falta de caráter. Se Juan se encarregar da administração de Campo Real, será aqui o verdadeiro amo.

— Acredito que o único verdadeiro amo deve ser o senhor D' Aütremont — retifica Pedro Noel. — Juan é muito independente, muito violento, muito impetuoso para poder submeter-se aos interesses de alguém. Pelo bem de todos, é melhor que

venha comigo agora mesmo.

— Não irei. Noel, não irei — recusa Juan. — A senhora D'Autremont há dito

uma coisa muito interessante, e em que tem mais razão de lasque ela mesma pensa. Se ficar em Campo Real, serei o amo de tudo. É grato mandar onde se foi menos que o último servente...

— Não é grato fazer mal aos que só bem nos desejam! — rebate o velho notário.

— O bem e o mal são dois conceitos muito confusos; mudam segundo quem o

receba e quem o faça — sentença Juan.

— Caramba! Não te conhecia como filósofo, Juan — comenta Renato que ouviu as últimas palavras de Juan, e se há acercado ao grupo. — Boa tarde a, todos. Alegro-

me de verte com tão boa cara, Aimeé... Mas voltando para suas palavras, Juan, me deixe-te dizer que difiro de sua opinião. O bem e o mal são coisas concretas e claras. O caminho reto não é mais que um e cedo ou tarde se arrependem os que o abandonam.

Cada homem honrado leva um juiz em seu coração...

— Caramba... Cada homem honrado! Conhece você a muitos dessa classe?

— Conheço pelo menos a dois, e os tenho diante. Por isso quero que me ajudem a governar este imóvel, que é quase como um pequeno estado. Mas nos sentemos não lhes parece? Tomemos algo...

— Para mim, meio copo — indica Aimée. — Digo se é que me permitem ficar nesta reunião de cavalheiros...

— É obvio — acessa Renato. — passei a noite e parte da manhã acompanhando a minha mãe...

— Dona Sofía se encontra mal? — interessa-se Noel.

— Sim. Por desgraça, cada dia mais delicada, o qual faz meu trabalho mais difícil. Minha mãe e eu, que nos adoramos, estamos acostumadas a, não obstante, viver absolutamente desacordo. Muito estranha vez concordamos a reunir algo; mas,

cedendo eu um pouco e ela outro pouco, conseguimos assinar a paz...

Fez uma pausa, apurando o conteúdo daquela bebida de aspecto refrescante

que põe fogo nas veias, nem nota de se cruzam no ar os olhares de outros. O ambiente se faz cada vez mais espesso, como se sob o céu encapotado as paixões contidas se inchassem lentamente com turvas rajadas de tempestade. Mas Renato segue falando

com sua voz clara e amável de cavalheiro

— Seria lhe pedir muito, Noel, que voltasse a ser nosso conselheiro legal?

— Bom Renato... Eu... Se tiver falado você com sua mãe claramente, saberá...

178

— Minha mãe está conforme. Aceita e me dá com isso uma alegria. Juan aceitou

já... Não acredito que vais voltar atrás, Juan. Falei muito de ti com minha mãe...

— Vou usar, acaso prematuramente, de meus direitos de conselheiro, e com

toda franqueza, embora seja diante do Juan, não me parece que essa seja uma medida acertada. Juan, que em efeito decidiu mudar de vida. Tem outros projetos que vão melhor com seu caráter. Eu me encarregarei de lhe ajudar a realizá-los. Arrumaremos

seus papéis, construiremos uma verdadeira casa no Cabo do Diabo... Estou seguro que por muito pouco dinheiro pode ficar todo isso arrumado. Não lhe falou com o Renato também de seu projeto de um trem de pesca? O negócio pode ser muito bom

em mãos de um homem como Juan...

— Tão bom que podemos fazê-lo em grande Noel — afirma Renato. — A campo

Real tem léguas da costa mais rica em pescado da ilha inteira. Uma vez que tenhamos arrumado as coisas da plantação, podemos tentar...

Renato seguiu falando, mas Juan não lhe escuta, não ouviu apenas suas-

palavras. Foi-se afastando até chegar ao corrimão que dá sobre o jardim e Aimée fica de pé brandamente, indo atrás dele.

Noel olhou ao Renato que contempla as duas figuras, junta já perto do corrimão. Mas nem um músculo se move em seu fino rosto impassível, não há em seus olhos uma expressão que possa delatar o que acontece sua alma. Sua mão se estende para

encher de novo o copo, e logo o leva a seus lábios bebendo devagar, saboreando-o...

— Queria que falássemos a sós, Renato.

— Quase a sós estamos. Noel.

— Bom, mas não é isso. Quero dizer em seu escritório, com uma grande calma, com uma absoluta liberdade de te dizer...

— Para que Noel? Para me aconselhar que não deixe ao Juan nesta casa? É inútil. Talvez não devi havê-lo gasto nunca. Em realidade, não o traga, veio se por acaso mesmo, como se seu destino' empurrasse-o, e ficará... Ficará, porque é meu

desejo mais ardente. Por que me empenhei eu em que fique!

— Juan, ouve-me? Juan...

A voz do Aimée soa inutilmente carregada de paixão... Juan não lhe responde, não volta à cabeça para olhá-la. Só suas mandíbulas se apertam um pouco mais, acaso se crispam suas mãos apoiadas no corrimão e se faz mais intensa a fera

expressão de suas pupilas, fixas, sem vê-lo nem olhá-lo, na aberto paisagem. Mas Aimée dá um passo aproximando-se mais, indiferente aos olhos que atrás deles seguem cada um de seus movimentos, e de uma vez tremendo como se com aquele

tremer, temer e esperar enchesse até os borde o copo sombrio de suas emoções.

— Juan, o que decidiste que nossas vidas?

— De sua vida? — responde Juan em tom baixo, mas desdenhoso e cortante. — Nada. Você mesma decidiu, você mesma escolheu o caminho, você mesma assinalou a meta a que queria chegar, a que já chegaste. Está nela, na cúpula... Tudo o que sua

vista alcança te pertence... É justo que o pague com a moeda de seu corpo. E não digo com a moeda de sua alma porque não acredito que tenha alma...

— Você é o único que não tem direito a duvidá-lo. Não desvie os olhos, me olha

à cara para me dizer isso.

179

— Não penso voltar a te olhar à cara! — cospe Juan ao tempo que se afasta.

— Juan! — chama Aimée, e elevando mais a voz, repete — Juan...

— O que acontece? — pergunta Renato aproximando-se de sua esposa.

— 0h, nada! — tenta dissimular Aimée realizando um enorme esforço. — Juan parece totalmente surdo. Estava-lhe perguntando algo... Algo sobre o tempo. Suponho que para um navegante não será difícil...

O trepidar de um trovão e uma rajada de vento impetuoso interromperam as vácuas palavras do Aimée, e Renato observa com frieza:

— Acredito que para ninguém é difícil predizer o mau tempo quando já está

sobre nós.

— Não... Claro... Sou tola, verdade? Bendito seja Deus! Chove muito... E esse

Juan... — estendeu a mão, sem saber o que fazer nem o que dizer totalmente desconcertada, assinalando ao homem que marcha firme e descuidado, indiferente à chuva, ao vento, ao temporal que já descarrega sobre o vale, fazendo mais rápido o

crepúsculo que chega — Você viu que homem mais estranho, Renato? Estávamos falando do mau tempo, e de repente se vai... Vai baixo essa chuva... Suponho que não

estará louco seu novo administrador. Seria uma verdadeira lástima, porque tinha razão, vontade muito com o trato. Aproximando-se dele, lhe falando, que simpático resulta seu Juan do Diabo! Que pitoresco e que simpático!

— Posso saber em que ocasião, em que momento há falado com o Juan o suficiente para mudar de idéias com respeito a ele?

Aimée se há voltado sacudindo a cabeça, como para despertar, para voltar para

a realidade. Olha os olhos de seu marido, fixos, cravados em seu rosto como se pretendesse adivinhar o que é o que acontece sua alma, e balbuciai:

— Bom... Agora mesmo. Estávamos aqui, juntos, falando, enquanto olhávamos as nuvens...

— Parece-me que foi você sozinha a que falava. Nenhuma só vez o vi voltar para

ti à cabeça para te olhar... Nenhuma sozinha.

— Caramba, não pense que te fixasse tanto! Por isso se vê, estava espiando

nossos menores movimentos...

— Não espiava; olhava-te, olhava-te como sempre que está ao alcance de minha vista. Sou um homem que te quer Aimée.

— OH, já sei! Do contrário, não te tivesse casado. Economize-me o aviso de que não traga dote ao matrimônio.

— Só um vilão poderia fazer a sua esposa uma alusão semelhante. Só um vilão,

Aimée; mas desde ontem é a terceira vez que me trata como a um vilão.

— Desde ontem está como louco, como uma fera: nervoso, exasperado,

desconfiando por mim, me atormentando... Suponho que brigou com sua mãe e como com ela não pode descontar...

— Pela quarta vez me ofende, Aimée. O que tem? Por que mudaste como

mudaste? Por que em umas horas toda sua suavidade, toda sua doçura...?

— Toda minha doçura, o que? Acaba!

180

— É que não sei nem como começar. Você sabe que eu me tinha feito o

propósito de não discutir jamais contigo, sabe que tinha a ilusão de que vivêssemos um junto ao outro adivinhando os pensamentos, de que nossos sentimentos fossem

como um sozinho, de que com apenas um olhar chegasse cada um ao fundo da alma do outro...

— OH, é terrivelmente romântico, Renato! — interrompe Aimée com certo mau

humor. — Quer fazer da vida um idílio, um poema, e a vida tem muitos dias vulgares, muitas horas más, muitos momentos desagradáveis nos que não se pode viver sonhando...

— Mas sim amando!

— Bom, há todas as horas...

— Há todas as horas! Sempre! Esse foi meu propósito e você o compartilhava, aceitava-o e o juramos, juramo-lo os dois fronte ao altar. É que tão logo te esqueceste? Jurou ser como parte de mim mesmo, e eu jurei te levar sobre meu coração e amar-te

como minha própria carne. Logo o esqueceste!

— É que te tornaste insuportável... — Exclama Aimée com ira, elevando a voz.

— Não grite. Noel nos está olhando — repreende Renato em tom baixo e firme. — Não quero lhe dar o triste espetáculo de nossas desavenças.

— Sinto muito, mas não sei dissimular!

— Tem que fazê-lo, posto que é uma D'Autremont.

— Caramba... Muito tinha demorado para sair o ilustre sobrenome!

— O que diz? — surpreende-se Renato.

— Que não o mencione mais, porque estou farta dele, entende? Farta! Como deste imóvel, desta casa e de...

— Te cale! — ordena imperioso Renato. Logo, trocando o tom, dirige-se ao velho notário: — Aproxime-se, Noel. Estávamos comprovando que chove muito.

— Sim, temos acima uma boa tormenta, mas não há motivo para estranhar,

pois é o de quase todos os dias. Sem embargo, parece que é passageira e já vai amainando.

Noel se aproximou do corrimão, observando ao passar, com seu olhar pormenorizado e penetrante, os rostos mudados do jovem D'Autremont e de sua esposa. Ela está muito pálida e lhe tremem os lábios. O olhar do velho olha sem ver na

noite tormentosa, e volta para eles mais tranqüila detrás não ter achado rastro do Juan. E desviando a conversação, pergunta:

— Não terei a honra de saudar hoje a dona Sofía?

— Temo-me que não. Noel. É o que estava tratando de explicar-lhes antes. Entre minha mãe e eu há certa disparidade de critério. Apesar de que eu tratei por todos os

meios evitá-lo, desgostamo-nos. É você um amigo de bastante confiança para que eu não o oculte... Mais que um amigo, posto que acabo de nomeá-lo nosso assessor legal.

— E já o disse antes: que muito me temo que parte desse desgosto tenha sido

por minha nomeação...

181

— Não, minha mãe se ressente da presença de Juan. Mas tampouco Aimée

simpatizava com ele. Agora tenho a esperança de que troque minha mãe ao igual a minha esposa há mudado... Embora seja de um modo menos rápido...

Olhou a Aimée de um modo estranho e ela volta à cabeça esquivando aquele olhar, que Noel capta plenamente. Como se jogasse na água, o velho notário se decide:

— E por que esse empenho de trazer para o Juan a Campo Real, Renato?

— Você é o que menos deveria perguntá-lo, posto que sabe que essa foi à vontade expressa de meu pai. Esperei encontrar em você um aliado, e me resulta justamente o contrário.

— Estou tratando de velar pela tranqüilidade desta casa. Juan é jovem e violento; provavelmente dissoluto, de caráter muito independente, e me temo que

bastante mal educado. Sua presença no salão de dona Sofía...

— Não tem por que freqüentá-lo. Como administrador pode construir-se o uma pequena casa em qualquer outro lugar do imóvel. Ali pode viver a seu modo e fazer o

que lhe agrade.

— Parece-me uma grande idéia. — Aimée falou totalmente serena já, com um

estranho relâmpago nas pupilas de azeviche, e parece desafiar o olhar surpreendido dos dois homens, dominando a situação com soltura mundana. — É uma forma de reunir as coisas. Eu sei que Renato não tem outro desejo. Você como amigo, e eu

como esposa. Noel vamos fazer todo o possível por agradá-lo e ajudá-lo. Acredito que a você não falta autoridade nem diplomacia para amansar um pouco a esse gato Montês do Juan de Diabo. Faça-o, Noel, faça-o... Pelo Renato.

Só uns passos se afastou o notário, da jovem esposa; só um instante lhes deixou sozinhos, tratando a sua vez de serenar-se, de penetrar até o fundo o torvelinho

escuro que vê agitar-se em redor. Mas esse momento bastou para que Aimée sorria ao Renato, para que se apóie em seu braço fazendo-o sentir a cálida e tenra pressão de seus dedos, elevando a cabeça para lhe olhar muito perto, frente a frente, com aquele

olhar dela, intensa e cálida, cujos efeitos conhece muito bem, e sussurra com humildade:

— Me perdoe Renato, às vezes sou violenta, impaciente, malcriada... Sim, reconheço-o. É meu caráter, e talvez não lhe falte razão aos que asseguram que me mimaram muito. Perdoa-me... Eu sei que às vezes me ponho insuportável; mas é só

um momento, meu Renato. É como uma rajada... O que sei eu... Uma espécie de explosão de meus nervos... Naturalmente, não se pode ter em conta nada do que digo quando estou assim, porque nada é verdade. Dou uma impressão muito mau, sei

perfeitamente: a impressão de odiar o que mais amo. Mas eu sei que você é capaz de me compreender... De compreender-me e de me perdoar, verdade?

— Talvez eu deva também te pedir perdão — se desculpa Renato suave, mas dúbio: — te tratei brusca e asperamente... Mas disse coisas tão duras e tão estranhas... Disse que odeia meu nome, minha casa; esta casa e este nome que são

teus, porque junto com minha alma e meu coração inteiro lhe dei isso. Senti algo espantoso, Aimée. Tive a horrível sensação de que tudo era mentira na vida, porque você tinha sido capaz de me mentir e de me enganar. A horrenda impressão de que

nunca me tinha querido!

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— Mas que loucura, Renato! — protesto Aimée com falsa ternura. — Te peço de

joelhos que esqueça minhas palavras. Não me dê explicação delas, não pretenda que eu te diga por que as disse. Eu mesma não sei, e já nem sequer poderia as repetir.

Esqueci-as e é preciso que você também as esqueça. Rogo-lhe isso! Porque te quero, adoro-te, Renato...

Arrojou-se em seus braços, que a estreitam com ânsia, com um tremor no que

ainda vibram a dúvida e a angústia. E enquanto fechados os olhos se apóia naquele peito leal, Aimée pensa em outros olhos, em outros braços, em outro' peito mais largo e duro: pensa e sonha um instante, que outra vez está em braços do Juan do Diabo...

CCapítulo 24

Baixo os mastros, Juan esteve a ponto de tropeçar com a Mônica, e um

momento a olha como se despertasse, como se voltasse para a realidade de um torvelinho de pesadelo, e é tão terrível a expressão de seu rosto que Mônica treme como se aparecesse a um abismo.

— Juan, o que passou?

— Ainda não aconteceu nada, Santa Mônica. Acalme-se... — aconselha Juan

contendo-se com muita dificuldade e com uma vibração de ironia na voz.

— Estou perfeitamente calma, mas se pudesse você ver-se a cara...

— O que acontece minha cara? Não é tão bela nem tão sensível como a de

Renato, verdade?

— Por que fala sempre nessa forma abominável? Faz você difícil, Juan de

Deus...

— Por que não muda esse estúpido nome?

— Parece um pouco menos mal que o que você sente prazer em ostentar...

Começo a acreditar que com menos razão da que pretende.

— De verdade? O que a faz pensar isso?

183

— Não acredita que a história de Colibri pode ser o bastante? Esse menino lhe

adora, Juan. Diz que é você o homem mais bondoso do mundo...

— E ele o que sabe? — refuta Juan rindo amargamente.

— O que lhe passa? Por que ri assim?

— É minha forma de fazê-lo. Me Rio de você e de todos os prudentes, como deve rir o diabo. Que maravilhosa solução! Você não quer, mas sim dissimular, tampar,

jogar terra sobre a podridão, envolver em trapos a chaga...

— Juan, Por Deus... — protestou Mônica contendo apenas sua inflamada ira. — Você...!

— Eu, o que? Acabe... Seja franca, diga a verdade... Insúlte-me... Se for o que está desejando. Enquanto junta as mãos, enquanto me olha com cara de cordeira,

enquanto me diz com sua doce voz que não sou tão mau, o que está desejando é que um destes raios me fulmine... Bem, pois o diga claro, e em paz...

— Eu não desejo mau nem a você nem a ninguém... A você menos que a

ninguém.

— E isso por quê? Porque o ordena sua moral cristã? Maravilhoso!

— Maravilhoso, sim, embora você pretende burlar-se. Porque nunca me disseram palavras mais sublime no idioma humano, que aquelas de Jesus: "Amem a seus inimigos, benzam aos que lhes perseguem e lhes maltratam, roguem a Deus

pelos que lhes atormentam".

— Fantástico! — tráfico de rir Juan furioso. — Não pensei rir-me, Santa Mônica, mas você tem o dom de me provocar... "Amém a seus inimigos" Pratica-se essa

máxima em sociedade? Quem a pratica? Aí, sim, já sei: o inefável Renato...

— Proíbo-lhe zombar dele

— Caramba! E com quanta energia! Por que o defende tanto? O perguntei já várias vezes, mas não se há dignado responder. Por que. Santa Mônica? Há também algum preceito da moral cristã que ordene dar a vida por um cunhado?

— Basta! É você um canalha, um bárbaro!

— Que logo muda você de opinião! Era o homem melhor do mundo, e de repente

sou um canalha, um bárbaro, um selvagem, uma fera, um demônio... Juan do Diabo. Isso eu gosto de lhe ouvir dizer. Diga-o muitas vezes, porque a momentos me preze que o estou esquecendo, e não quero esquecê-lo. Ajude-me com seu ódio e com seu

desprezo. Necessito-os, são como um revulsivo, como o ferro candente que se aplica a mordedura venenosa de um réptil...

— O que se propõe então? — desespera-se Mônica, visivelmente desconcertada.

— O que vai fazer? Pensa ainda realizar a infâmia de que me falou antes?

— Levar a Aimée? Advirto-lhe que é quão único ela deseja.

— Não pode ser... Está mentindo

— Vá perguntar a sua irmã, embora a você, provavelmente, não vai dizer a verdade. Dirá-lhe que eu a persigo, que a muito ameno... Não que agora mendiga o

que desprezou que ao fim e ao cabo prefere ao Juan do Diabo...

— Ela não pode sentir nem dizer isso! Seria tão baixa, tão desprezível...

184

— Como eu mesmo... Repita-o; já o disse uma vez: que a desprezava por ser

capaz de me amar. Pois a despreze, siga desprezando-a com toda sua alma, porque é para mim ao que ela quer, é comigo, e não com o cavalheiro D'Autremont, com quem

deseja estar... É traidora, ambiciosa e malvada, mas é uma mulher de carne e osso, não como você, de massa celestial... É você impecável e intocável; mas com toda sua pureza, temo-me que pôs os olhos onde não deve, onde não o permite sua moral

cristã...

— Basta... Cale-se! De mim não tem você que dizer nada! Canalha!

— Quieta! — ordena Juan, sujeitando-a com firmeza. — Não se atreva a me

esbofetear. De cavalheiro não tenho mais que a roupa. Ia você a passá-lo muito mal...

— Tudo é em você abuso e dureza. OH, me deixe!

— É obvio... Deixá-la... Não me interessam seus sentimentos. Lá Renato se tiver a sorte de que você lhe queira. Só lhe assinalo seu telhado de vidro para que não atire pedras ao de outros, e para que não se interponha em meu caminho.

— Não seguirá por ele! Vou impedir por todos os meios que você obtenha o que se propõe. Vou lutar com todas as armas!

— Tome cuidado não se volte contra seu Renato...

— Não é meu Renato nem o será nunca! — exclama Mônica em tranca desespero. — Mas você não fará o que se propõe, não levará Aimée desta casa, porque

antes sou capaz de matá-lo!

Juan que tornou a tomar as mãos sujeitando-as forte entre as suas duras e largas, e um instante a olha sentindo-a pela primeira vez mulher junto a ele, enquanto

um pouco parecido a um sorriso aparece a seus lábios quando recalca:

— De modo que é certo: quer você ao Renato... E por ele é capaz até de me

ameaçar de morte. Não acreditava capaz de tanto. Tem você coragem até para matar com estas mãos brancas e suaves, que têm unhas como garras, conforme vejo. Sabe que de repente me resulta você interessante? Não há dúvida de que também é bela.

Sobre tudo, como está agora, lutando como uma gata selvagem, perdido totalmente o ar de abadessa... Ai, fera!

Juan a soltou. Mônica cravou ferozmente os dentes em sua mão, e agora foge enquanto ele, surpreso, se tanja o sangue, e comenta zombador:

— Demônios com a Santa!

— Mônica, filha, o que tem? O que te passa? Está cansada?

— Sim, mãe, muito cansada...

Com esforço, Mônica se pôs que pé docemente ajudado pelas mãos trementes de sua mãe. Estão em sua adulação e a senhora Molnar acaba de encontrar a de joelhos,

juntas as mãos, fundo o rosto entre os braços, como deprimida sobre o leito. Leva aí muito, momento, desde que chegasse do campo atrás de seu encontro com o Juan, e há uma quebra de onda de rubor em suas bochechas quando o olhar de sua mãe se

crava nela interrogante. Sua cabeça se inclina com a horrível impressão de que a acusação do Juan deixou sobre ela um rastro visível... Se, treme, estremece-se, agoniza pensando que os olhos daquele homem penetraram até o fundo de sua alma,

185

que está frente a ele como nua, que acaso também esteja como nua frente a outros, e

crie ver uma recriminação até naqueles olhos cansados, nublados pelas lágrimas, os olhos de sua mãe que a olham com pena, ao queixar-se:

— Não sabe o que me atormenta que tenha que sofrer assim por sua irmã, você que poderia ser feliz no caminho que igreja, você que conhece as paixões... Acaso fiz mal em te rogar que defendesse a sua irmã...

— Não fez mal... Só penso que ela não deseja ser defendida.

— Disse-lhe isso sua irmã? Falou-lhe?

— Não; falei com ele, com o Juan do Diabo, que não renuncia ao que chama sua

desforra, sua vingança... Que assegura que é a ele, só a ele a quem Aimée quer; que rudemente me ordena me arrumar de seu caminho... E às vezes penso que esse

homem teve razão ao me insultar... '

— Mas te insultou?

— É como um tigre em zelo. Quê-la... Quê-la, sente que as circunstâncias o

encurralam e como um tigre se defende a ataca. Mas não é isso, mãe, não é temor o que me inspira. É... O que sei eu... O que sei eu...

— Mas você estava decidida, firme. O que pôde te dizer para te mudar assim? Que ameaça pôde formular?

— Não foi uma ameaça, foi só uma horrível verdade.

— E o que pôde achar ele contra ti? Você tem toda a força, toda a autoridade moral necessária... Sua conduta, sua dignidade, sua pureza...

— Minha pureza... — repete Mônica com amargura.

— Por que o diz desse modo, filha? Alarma-me!

— Não, mãe, não te alarme... É puro meu corpo. Fui ate hoje, a costa de tudo,

por caminhos de pureza e de dignidade; mas às vezes um sentimento nasce e é como uma planta venenosa cujas raízes nos cravam dentro nos apodrecendo a alma. Às vezes penso que deveríamos fugir, ir longe, procurar, como sou um dia, a paz... A paz

para minha alma no fundo de um claustro ou de uma tumba!

— O que diz? Por que falas desse modo?

— Não devo falar assim, é verdade. Não devo te falar com ti deste modo... Mas esse homem...

— O que acontece esse homem? É um malvado, verdade? Um malvado

empenhado em nos trazer a desgraça...

— Às vezes nem sequer me parece um malvado. Penso que sofre que sofreu em sua vida tanto, tanto, que voluntariamente matou em sua alma a compaixão e a

piedade. Penso que ama a Aimée, e como a ama! De outro modo, mas tanto como Renato. O que há nela, o que, há em sua alma ou em sua carne que assim se apodera

do coração dos homens?

— Mas todo isso não é mais que uma desgraça Não o vê, filha? Ela é só uma pulseira de suas paixões, de suas loucuras. Se agora a abandonar, se a deixa faltar a

seus deveres, quem sabe até onde rodará? Não me escuta; eu não tenho palavras com

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o que sujeitá-la. Não a deixe cometer uma loucura; logo serão inúteis suas lágrimas...!

Filha, filha, em ti confio... Confio em que você, por amor de irmã...

— E se não fosse só por amor de irmã? — atalha-lhe Mônica. — Se fosse outro

amor o que me empurrasse?

Mônica confrontou tremendo o olhar de sua mãe. É como se enfrentasse a sua própria consciência, como se mostrara com horror essa ferida que sangra oculta no

fundo de sua alma, essa ferida que Juan tem descoberto, desarmando-a ao descobri-la, crucificando-a na mais terrível das dúvidas. Para depois de um longo silêncio, parece úmida de lágrimas, a voz maternal:

— Se um amor desventurado te tiver feito tão generosa, minha filha, se por ele aceitaste todos os sacrifícios e só luta por lhe ver feliz, renunciando você a tudo, que

Deus te benza pela nobreza de sua alma! Que Deus te benza, filha, porque a todos nos salvas ao salvar a felicidade do Renato: porque a salvas a ela, louca e cega; porque me salva, que Rio poderia resistir um golpe semelhante... Porque salvas o limpo nome de

seu pai...

Mônica se elevou como se repentinamente a tormenta de sua alma se

serenasse, como se uma nova luz lhe iluminasse o escuro atalho, como se uma força nova a sustentara, lhe dando sua alma à faculdade de aceitar todos os sacrifícios, de assimilar todos as dores, de confrontar todas as tempestades. Logo, junta as mãos e

cai de novo de joelhos, ante cujo gesto Catalina indaga:

— Filha, o que faz?

— Dou-lhe degraus a Deus, mãe. Com lágrimas lhe pedia que me iluminasse e

ele me enviou suas palavras. Desesperada lhe pedi que me mostrasse o atalho e por sua voz me mostrou isso. Agora já sei quão único importa e não voltarei a vacilar...

Não voltarei a duvidar!

187

CCapítulo 25

Com passo lento, sobre os atalhos molhados, Juan voltou para a casa. Esquivou

as escadas de pedra que dão às largas galerias, esperou que ninguém o observasse e penetrou pela estreita porta do muro, cruzando os pátios interiores, solitários, logo

que iluminados pelo pálido fulgor de uma meia lua que aparece entre as nuvens rasgadas.

Com estranha precisão recorda os detalhes daquela casa logo que encontro, e,

como uma flecha que desse no branco, detém-se junto às janelas entreabertas daquelas luxuosas habitações da asa esquerda, preparadas para quatro semanas de

felicidade: o departamento nupcial do Aimée e Renato.

— A quem esperava Aimée? — pergunta Juan destilando amargo sarcasmo.

— A quem se não a ti posso eu esperar?

— Não sei, não conheço os fazendeiros vizinhos a Campo Real...

— Basta! — tábua delgada Aimée iracunda. — Até quando tenho que suportar seus insultos?

— Até que eu me canse de te insultar! Até que me canse de te dizer quem é, até que te sature do ódio e do desprezo que para ti guardo!

— Por ódio e por desprezo, já te tivesse partido. Há algo mais que te sujeita que te amargura que te aproxima de mim, até que não queira confessá-lo. Há algo que te faz desesperadamente meu, como há algo que me faz desesperadamente tua. Sim,

Juan, tua... Embora, como disse antes, não quer voltar nem a me olhar à cara. Por que não o faz? Por que volta a me buscar a teu pesar?

— Suponho que um homem é menos que um cão quando uma paixão o faz seu

escravo — se lamenta Juan mordendo com raiva a confissão.

Deu um passo para o Aimée, aproximando-se mais, mas ela retrocede, olha a

um e a outro lado, espião nas sombras, põe atento o ouvido, e ao fim toma ao Juan do braço, lhe obrigando a afastar uns passos, enquanto indica:

— Vêem, estamos em muito mau lugar... Renato foi a acompanhar ao notário

até o quarto de dona Sofía, mas pode retornar, pode voltar, e não deve nos encontrar falando. Há nele algo estranho. Não sei se suspeita ou se pressentir, mas terá que ter

prudência, Juan. Muita prudência, muito tato, muita calma... Terá que ter paciência, Juan...

— Paciência, para quê?

— Para esperar... — E com paixão suplicante, Aimée exclama: — Juan... Juan... É inútil enganamos. Quer-me, Juan, quer-me. Sua ira, suas injúrias, sua rudeza, sua crueldade não significam mais que uma coisa: ainda me ama. Pode insultar-me, me

amaldiçoar, me golpear; pode pensar que só deseja minha morte, mas no fundo não é verdade... No fundo, Juan, minha vida, você me ama!

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Lentamente lhe foi empurrando até o extremo da lareira do corredor, tem-lhe

feito descender os quatro degraus que separam a aberta galeria dos largos pilares, lhe ocultando depois da espessa trepadeira. Está tão perto, tanto, que seu fôlego de fogo,

como uma labareda de paixão e loucura, passa sobre o rosto do Juan lhe avivando, lhe embriagando... E há em sua voz uma mescla de rogo e de ordem, ao dizer:

— Sim, Aimée, quero-te. É minha, minha, e minha embora seja no fundo do

inferno! Quero-te! Deveria estar morta, deveria te haver matado eu com estas mãos, mas te quero e te beijo te amaldiçoando, e deveria tremer porque cada minuto, ao te estreitar, sinto também o impulso de apertar mais e mais, até truncar sua vida, para

que não me olha com esses olhos que me cravam como adagas, para que não me fale com essa voz que me penetra pouco a pouco, me enlouquecendo e envenenando-me...

Porque quando te sinto minha, aqui, a meu lado, como está agora, não sou um homem, sou uma fera. Uma fera capaz de todas as infâmias... Vamos... Em seguida, agora mesmo, neste instante. Vamos longe!

— Mas está louco?

— Claro que estou louco. Só estando louco poderia voltar a te estreitar em meus

braços; só louco, demente, bêbado, sou capaz de confessar que te quero... Vamos!

— Espera um pouco, Juan, espera — suplica Aimée em voz baixa e angustiada, pois chegou a seus ouvidos o rumor de passos que se aproximam. — Ouvem...? É

Renato! Por Deus, cala um momento! Cala!

Jogou-lhe os braços ao pescoço, lhe obrigando a inclinar-se, ocultando-se na entúpida trepadeira de madressilvas, contendo o fôlego, enquanto chegam a eles,

claras e distintas, as vozes da Mônica e Renato junto com o estampido de um trovão que acompanha ao vento e à chuva que se desencadearam de repente.

— Já está aqui à tormenta outra vez, Mônica.

— Sim, Renato; mas não importa... , — Como não tem que importar? Não posso permitir que volte a sair com este tempo. Ocuparei-me pessoalmente desses traslados.

É preciso fazê-los, mas também é preciso que você descanse. .Muito em breve estarão as coisas de outra maneira, com o Noel e com o Juan...

— Insiste em deixar ao Juan na casa?

— Não vai ficar precisamente na casa, mas ao cuidado da fazenda. O que acontece? Também você lhe tem medo? Pensei que eram amigos...

— Não somos inimigos, mas... — murmura timidamente Mônica, fazendo um esforço.

— Pois com isso é o bastante. Por sorte, mamãe recebeu bem ao Noel, embora

tampouco este se achasses de minha parte com respeito ao Juan...

— Então, Renato, por que...?

— Não siga Mônica, rogo-lhe isso. Não me pergunte nada. Há uma só resposta que posso te dar: Juan virá a esta casa porque é justo. Se isso não. Conveniente, o tempo o dirá. Você foi filha exemplar e não acredito que te seja difícil compreender o

respeito que sinto fada a última vontade de meu pai. Juan pode ser rebelde, ingrato, até malvado. Não importa; Meu pai quis que lhe tivesse juntado a mim, que lhe tratasse como a um irmão...

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— Mas é absurdo...

— Não é. Absurdo. Contra tudo o que vocês opinem, eu acredito no Juan, tenho fé na nobreza de sua alma, porque tenho fé no coração humano. Há algo que me diz

que Juan é bom. Sobre tudo, que é leal, que é sincero, que é franco. Não está amassado com massa de traidores. Basta olhá-lo à cara para compreendê-lo. Juan não é uma fera, como minha mãe e outros se empenham em acreditar. É honrado e,

se algum dia tiver que me ferir, fará-o frente a frente, cara a cara. Nisso, estou seguro de não me equivocar.

— Então... — Então, nada. Confia em mim, sei o que faço. Está cansada e

esgotada. Anda Mônica, vá descansar...

— Neste momento não poderia dormir...

— Então, para não me atrasar mais, poderia me fazer um favor?

— Os que queira.

— Entra nesse quarto e lhe explique a sua irmã que tenho que partir só por um

par de horas. Temo que se vá eu quem lhe falei, voltemos a discutir, e por hoje tivemos já bastante...

— Tiveram um desgosto? — pergunta alarmada Mônica.

— Vamos deixar em desavença. Por sorte, todo acabou bem, fizemos plenamente as pazes, mas estas coisas sempre deixam remorsos e não queria voltar a começar.

Adoro a sua irmã e acredito nela... Quero acreditar nela antes que em ninguém... Necessito a fé que me inspira, para poder viver e respirar...

— Que amargo som suas palavras, Renato! Parecem ditadas pela mais completa

desilusão.

— Que disparate! Comecei por te dizer que amo a sua irmã. Quero-a tanto,

tanto, que não poderia viver sem ela.

— Quer dizer que a amas por cima de tudo, que aconteça o que acontecer está disposto...

— Não sei até onde chega sua imaginação nesse aconteça o que acontecer — a interrompe Renato com grave gesto. — me Perdoe se responder a algo que nem

remotamente sonhou pensar, mas desejo respondê-lo: Se Aimée fosse Indigna, o que ficaria dela e de mim, o que ficaria desta casa não vale a pena de mencionar-se... Bom, mas estamos falando tolices, perdendo um tempo precioso e ofendendo com

pensamentos absurdos a mais digna e adorável das mulheres, que é sua irmã, sem ofender o presente, como dizem os camponeses. — E com forçada jovialidade, suplica: — Vê junto a ela e acompanha-a. Retornarei muito em breve. Até a volta, minha

querida Mônica.

À luz de um relâmpago olha Aimée com angústia aquele rosto de Juan, duro e

amargo. Até ressonam-no largo passeio as pisadas de Renato afastando-se, até a sombra de Mônica não desapareceu na entreaberta porta daquela habitação vazia. Junto ao banco de pedra, ao amparo da espessa trepadeira de madressilvas que os

cobrisse, sentindo golpear os fios da chuva gelada sobre as bochechas ardentes, treme pensando como puderam chegar até ele às palavras escutadas, quanto perdeu em ganha batalha. Juan, comprido reto imóvel, parece despertar bruscamente, oprimindo

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seu braço com aquela roda mão de marinheiro, que é como uma tenaz, e ordena

imperativo:

— Vamos ao ato! Tinha medo de tropeçar com Renato, e agora nem esse medo

há.

— Mas Mônica está aí, em meu quarto — assinala Aimée em voz baixa. — Me buscará, esperará-me um momento; logo sairá a registrar a casa e dará a voz de

alarme antes que hajamos podido afastamos. Não podemos ir agora, nem vejo tampouco a necessidade.

— Que não vê a necessidade? — pergunta Juan com indignada surpresa.

— Me escute, Juan. Se fosse capaz de me ouvir tranqüilo um momento, diria-te: por que fugir dando um escândalo, se estamos juntos, se houver mil meios de...

— Cala! Cala! Não me proponha essa baixeza, essa sujeira, porque acredito que então sim sou capaz de te matar. Disse que me queria, fez-me confessar que eu também te amava... Agora virá comigo aconteça o que acontecer!

De um brusco puxão, Juan obrigou a Aimée, tirando-a do esconderijo baixo a entupida trepadeira de madressilvas onde comprido momento aguardou junto,

olhando muito de perto, com fúria contida, o rosto de bochechas ardentes que não conseguem esfriar as geladas gotas da chuva. Rude, selvagem, com um amor que parece ódio, a estreita entre seus braços poderosos, fazendo-a ranger...

— Juan... Afoga-me...

— Isso é o que queria: matar-te. Mas me negam as mãos a apertar seu pescoço... E tenho medo, sabe? Sim. Medo de te cravar mais ainda dentro de mim se é

que lhe Mato. Medo de que sua imagem me persiga, de que me obcequem sua voz, seus olhos e sua boca quando já não estiver viva. Medo de que me enlouqueça o

anseia de voltar a verte e para te ouvir, quando te tiver matado...

Rechaçou-a com brutalidade e dá uns passos até o centro do pátio, indiferente à chuva que sobre ele se junta, ao vento que agora empurra de novo as nuvens,

desgarrando-as para deixar aparecer, entre seus farrapos, as estrelas. Olhando a todos os lados, tremendo pelos olhos que possam ouvir essa conversa, Aimée chega

até ele em uma súplica:

— Juan... Escute-me... Irei contigo, juro-te que irei contigo. Mas não neste instante, Juan. Irei contigo ao fim do mundo, aonde queira me levar. Hei-lhe isso dito

e lhe jurei isso. Juro-lhe isso de novo, mas tenha um pouco de calma. Quero seu amor, quero viver para seu amor, não correr a encontrar a morte...

— Ninguém vai matar-te se estiver a meu lado! Ninguém chegará a ti enquanto

eu tenha fôlego!

— Você será o primeiro que caia Juan. E então, o que seria de mim?

— O que seria de ti? Também pode morrer neste instante!

— Não. Você não vais matar-me sabendo que te amo. Terias que estar louco e não o está, Juan. Está ferido, ressentido, ciumento duvidando de meu amor, te

agradando em negar cada uma de minhas palavras, mas sem poder fazê-lo porque seu próprio coração as afirma, porque há coisas que não se fingem, e eu não poderia me

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aproximar de ti, nem estar em seus braços, nem te beijar como o faço se não te

amasse. Pensa um instante, Juan, pensa-o. Já ouviu o Renato... Está sobre aviso...

— Que o esteja... Que o esteja mais! Se for quão único estou desejando... Quero

que saiba, dizer-lhe gritar-lhe

— Matará aos dois. Tudo está de sua parte: as leis, os costumes, a razão e o direitos estamos entre centenas de gente que serão inimigos mortais, matilha de cães

ferozes para nos dar caça. Não, Juan, não, você não pode me arrojar assim às feras. Antes que isso prefiro que de verdade você seja quem me mate... E não quero morrer. Por que delito vou morrer? O que fiz eu mais que te amar te querer porque me saiu do

coração este amor? E é você mesmo o que condena a morte, dá-te conta? Mas, por que me olha desse modo? Despreza-me, Juan?

— Sim, Aimée, desprezo-te.

— Não me desprezará quando todo o tenha arrumado eu para fugir sem perigo.

— Que repugnante e que mesquinho seria fugir sem perigo! Terá que fugir

agora, jogando-me isso tudo, arriscando-o tudo, você tendo que lutar para te defender, com as unhas e as garras, como uma fera. Fugir agora, entre todos os perigos, entre

todas as desvantagens, posso fazê-lo, quero fazê-lo. Mas logo, quando o tiver preparado para que tudo seja uma brincadeira, que baixeza, Aimée, que baixeza tão grande! Entretanto, farei-o, esperarei... Mas não a que você o prepare, mas sim a

prepará-lo eu a minha maneira.

— O que diz Juan?

— Ficarei a salvo, não correrá perigo sua preciosa existência, não arriscará nada

para fugir com o Juan do Diabo. Prometo-lhe isso... Para ti tudo vão ser seguranças. Apagarei o rastro e serei eu sozinho o que lhe faça frente a Renato...

— Não, Juan, não! Assim não...!

— Assim será. Prometeste-me isso, deste-me sua palavra, juraste-me isso. Basta já de prometer em vão e de jurar em falso! Terá que aguardar, mas não será muito

tempo. Terá que seguir dissimulando... Não te custará grande trabalho e eu também estou aprendendo a fazê-lo. Sou seu discípulo avantajado. Eu também serei traidor

por um momento, serei covarde, vil e embusteiro, e aprenderei a mentir sorrindo, e aceitarei o pão e o sal sob o teto onde afio a adaga com que ferir pelas costas. Sim, Aimée, esperarei. .Esperaremos... Vai ganhando, vai triunfando... Ao fim e ao cabo,

que mais dá? Deixe-me dar a razão a todos: a dona Sofía, a Batista, ao velho notário que treme nada mais me olhando... Deixe-me dar a razão a Mônica do Molnar. AI fim e ao cabo, que mais dá?

— Por Deus, Juan, cala! — suplica Aimée repentinamente assustada. — É Mônica... — Olha-a... Viu-nos, está nos olhando. Vate, Juan, vate... Por Deus, te

esconda te afaste... Eu lhe direi que não era contigo com quem falava. Mas agora vate, vate!

Juan se afastou altivo e altivo, sem baixar a cabeça, sem ocultar-se, e Aimée

retrocede de costas até ficar de novo junto à trepadeira de madressilvas. Aí se detém como para tomar fôlego e marcha logo, com lento passo de angustia, para aquela porta entreaberta a que Mônica se agarra porque o espanto a tem feito cambalear-se, porque

se dobram seus joelhos e uma frieza de gelo, em lugar de sangue, parece correr por suas veias. E com voz afogada, reprova:

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— Estava com ele, já o vi...

— Com ele? Quem é ele?

— Basta de farsas; guarda esses esforços para os outros e usa-os, Aimée! Usa

também a discrição e a prudência, se não querer que Renato acabe de compreender o que te passa.

— Não entendo nada do que diz... -

— Como pôde chegar a ser tão cínica?

— Por favor, basta... É que se propôs todos insultar-me?

— Quais são todos? Renato e esse homem, verdade? Sobre tudo, esse homem

que lhe olha como à última das prostitutas. Se lhe ouvisse falar de ti, se lhe ouvisse expressar-se com um desprezo tão fundo, tão brutal, que ao ofender ofende a todas as

mulheres...

— Cala! — interrompe-a Aimée profundamente desgostada.

— Suponho que frente a ele não tem mais recurso que baixar a cabeça, que lhe

deste você o vergonhoso direito de te tratar como te trata...

— Lhe dei o que me deu a vontade, mas não te dou o direito de intervir em meus

assuntos, o de te colocar em minhas coisas, 'o de falar quando ninguém te perguntou... O que sabe você da vida nem de nada?

— me tocará te perguntar: O que sabe você de honradez e de vergonha? O que

sabe de horror e de asco, se nem asco nem horror te dá chegar até a última das infâmias?

— Mônica, que me está acabando a paciência!

— E a mim... A mim... Até quando pensa que vai a durar?

— Por mim pode fazer o que quiser — convida Aimée em tom desafiante. —

Embora, certamente, não fará nada, não irá a nenhuma parte, porque não há nada que possa fazer. Melhor dizendo, sim há: voltar para seu convento, que é a única atitude razoável que pode tomar e se não quiser já ser monja, vate a sua casa do

Saint-Pierre, que é onde deve estar. Vate e te leve a mamãe; vate e me deixe em paz, porque aqui não faz falta!

— Irei com uma só condição: que faça partir ao Juan. Se ele se for seriamente, se afastar da Martinica, eu... Eu... — Iria se eu te desse minha palavra de que Juan se vai?

— Iria havê-lo visto partir. Conheço-te, Aimée, conheço-te muito bem, suponho que por desgraça para ambas.

— Pois se me conhece, saberá que eu não renuncio a nada jamais, que não

renuncio nem ao prazer nem à riqueza, tendo ambas as coisas na mão.

— O que pretende...

— O que pretendo está muito claro, e por que meios tenho que obtê-lo é minha conta. Por seu bem te aconselho que vá, por seu bem exclusivamente, Mônica. Não quero ir contra ti, não quero te destroçar de passagem, mas como inimizade leal te

advirto, adverti-te já cem vezes, e esta é a ultima, Mônica... Aparte-te de meu caminho, porque na hora da verdade não verei nada, não olharei nada!

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— Seu caminho não é o que supõe e é por seu bem que quero te fechar o passo.

— Basta, Mônica, minha vida inteira me estou jogando isso a uma carta. A batalha é tão dura que vai nela até a vida. Não queira te interpor, porque será você a

primeira vítima...

— Me ouça, Aimée... Quis te apartar, quis te deixar... Em um momento pensei que acaso tem razão, que sua vida é tua, que teu som também esses homens que por

amor lhe entregaram... Quis renunciar a tudo e me arrumar de tudo, até do direito de defender ao Renato contra sua maldade; quis me apartar e alguém me há suplicado chorando que não o faça. Sabe quem? Nossa mãe! Nossa pobre mãe, a quem nada te

preocupaste que ocultar, que vive na naufraga horrível do que possa fazer pelo que possa te ocorrer... Nossa pobre mãe cujos últimos dias amarguraria com uma infâmia,

cujas cãs quer manchar com um escândalo, com uma ação indigna... Não só por mim, não só pelo Renato, por ela também te rogo, Aimée... — Mônica se interrompe de repente, e exclama surpreendida — OH, Renato.

— Sim, sou eu — confirma este se aproximando. — Mas o que acontece, Mônica?

— Nada... Falávamos. Como tornaste tão logo?

— Por uma feliz casualidade. Acabavam de me selar o cavalo quando vi o Juan. Ocorreu-me lhe pedir que tomasse meu lugar e aceitou de bom grau. Encantado e

surpreso lhe dava amplos poderes e acaba de sair para sua primeira comissão como chefe geral dos trabalhadores da fazenda. Não foi magnífico? Não te alegra que tenha retornado quase imediatamente, Aimée?

— Claro! Alegro-me de tudo: de sua volta, da boa disposição do Juan, e não tenho que lamentar mais que uma coisa: a determinação que tem Mônica de nos

deixar...

— Nos deixar...? — surpreende-se Renato.

— Por isso precisamente discutíamos. Mônica se há empenhado em voltar para

o Saint-Pierre levando-se a mamãe. Diz que para uma lua de mel há muita gente nesta casa, e vai, Renato, vai...

Com sorriso diabólico, Aimée se tornou para sua irmã que um instante fica desconcertada com a surpresa daquele cinismo, daquela audácia inesperada. Vai protestar, vai elevar a voz com a violência de quem não pode conter-se mais, mas seus

olhos tropeçam com os do Renato aos que aparece uma expressão de desgosto e chateio. Para ele não é mais que uma intrusa, impertinente e caprichosa; mas aquela expressão só dura um instante, muda em seguida no nobre rosto varonil, acendendo-

se com um quente gesto de bondade humana que chega até o fundo do coração da Mônica quando explica com suavidade:

— Esse ponto o discutimos já várias vezes. Pensei que estava totalmente arrumado. Certamente, não tenho direito a te reter pela força se quer partir, Mônica. Hei-te rogado, supliquei-te, com franqueza de irmãos te hei dito até os móveis egoístas

que me impulsionam a te rogar que nos acompanhe. Se de todos os modos quer ir, o que posso já alegar? Só posso te pedir que me perdoe... Veio a descansar e te carreguei. Que trabalho. Procurava tranqüilidade e joguei sobre ti o fardo de minhas

preocupações mais pesadas. Mas posso te jurar que não pensava seguir abusando... Já vê que imediatamente incorporei ao Juan em meus projetos, E...

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— Não siga Renato — interrompe Mônica profundamente dolorida.

— Faz o que queira Mônica. Se consentir em ficar uns dias mais, prometo-te deixar que na verdade descanse. E, de todas as maneiras, me perdoe... Vamos, Aimée?

— Um momento, Renato! Não posso deixar que te retire com essa impressão... — começa a dizer Mônica; mas Aimée interveio com hipócrita ternura:

— Mas, querida...

— É ao Renato a quem falo! — corta Mônica com determinação. — Aimée interpretou mal minhas palavras. Ficar-me-ei todo o tempo que julgue pode me necessitar, Renato...

— Agora sou eu quem diz: Não é isso, Mônica. Sua ajuda é preciosa, mas...

— A pobre Mônica está cansada — continua Aimée. — Tão nervosa, tão

cansada, que logo que sabe nem o que diz. Eu sim acredito que abusamos que sua bondade.

— Quer te calar, Aimée? — ordena Mônica sem poder-se conter. E com firmeza,

assegura: — Ficarei Renato. Ficarei, embora me joguem!

— Mas quem te está jogando? Isto é jogar aos despropósitos... Você sozinha

falou de partir, Mônica. Digo, imagino que foi você sozinha, por isso diz sua irmã...

— Naturalmente — se apressa a confirmar Aimée. — Que mais quero eu que as ter aqui? E digo as ter, porque tem que saber que Mônica mudou que idéia. Já não

quer voltar para convento, mas sim a casa, levando a mamãe. Parece ser que nossa futura abadessa pendura os hábitos e provavelmente procura com quem casar-se...

— Quer te calar já? — grita Mônica com irá incontida.

— me perdoe — desculpa-se Aimée com zombadora e má intenção. — Pode que me tenha equivocado... Pareceu-me entender algo assim como que agora movia a

impulsos de um amor humano...

— Te cale, Aimée! — repete Mônica fora de si.

— Naturalmente. Cale-te — intervém Renato em doce tom suave. — Não vê que

a desgosta? E você, Mônica, tampouco o tire desse modo. Não acredito que o assunto tenha nada de particular, pois nunca me pareceu lógico que encerrasse em um

claustro sua juventude e sua beleza, a menos que uma verdadeira vocação arrastasse a isso. Se compreender a tempo que te equivocaste, nada mais lógico e humano que retificar... Mas sem te desgostar. Não acredito que haja em Aimée a menor intenção de

te causar um desgosto. É só travessa e zombadora como você bem sabe. Se alguém poderia sentir-se ressentido sou eu por sua falta de confiança. Teria gostado tanto que me falasse de seus sentimentos e de suas dúvidas, como a um verdadeiro irmão. Ou

acaso não soube sê-lo para ti? — Tomou-lhe a mão, aquela mão branca que treme entre as suas, e sorri olhando ao fundo das pupilas que fogem dele como se temessem

lhe gritar o que com ânsia a alma cala. — As confidências não se forçam, Mônica, mas queria que soubesse que tivesse sempre presente, que sou seu melhor amigo, que em mim sempre pode confiar...

— Assim acredito Renato. Eu também sou e serei, para ti, a melhor amiga.

— Acredito, acreditei sempre. Mas, por que chora ao afirmar isso? É só que está nervosa, como diz Aimée?

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— Pois claro. Entre seus nervos e suas complicações sentimentais... — burla-se

Aimée com mordacidade.

— Não a incomode, Aimée. E você, Mônica, não faça conta. É certo que está

apaixonada? Não me pode dizer o nome do ditoso mortal? Advirto-te que terá que ser muito bom para te merecer, para que eu o julgue digno de ti, e me perdoe à petulância de irmão maior, para que eu lhe permita receber o tesouro que você representa. —

Beijou-a na frente, aquela frente branca como de mármore, sob a que giram os pensamentos como um torvelinho de loucura, e de pronto se alarma: — Está gelada, Mônica, o que te passa? Sente-se mau? — Aimée deu rédea solta a uma risada mordaz

e burlona, e Renato, sereno, mas aborrecido, repreende-a: — O que acontece, Aimée?

— Me perdoe... Não passa nada. Mas vocês dois me fazem muitíssima graça, não

posso remediá-lo. São maravilhosos, perfeitos... E muito graciosos, além disso...

— Não vejo a graça; mas, depois de tudo, rir não acredito que faça mal a ninguém — aceita Renato resignado. E afetuoso e grave, saúda: — boa noite, Mônica,

confio em que um bom sonho te fará te sentir melhor. Até manhã...

— Até manhã, — corresponde Mônica com um fio de voz, vendo afastar-se ao

casal e enfurecendo-se ante a risada outra vez zombadora de Aimée.

— Do que te ri Aimée? — pergunta Renato algo molesto.

— De nada... Mais vale que me ria e não que tome pelo trágico.

— O que vais tomar pelo trágico?

— Bom... Tudo o que acontece: as atitudes gratuitamente agressivas de minha irmã, seu ataque de sentimentalismo fraternal, seu afã de te ocupar de todo o

mundo... E o pouquíssimo que te ocupa de mim, ao ter que te ocupar de todos outros.

— Ciumenta? — sorri Renato carinhoso e adulado.

— OH, não! Por quê? Não há motivo; quer dizer, me acredito que não há motivo. Mas terá que ver o que quer a Mônica...

— É nossa irmã. Além disso, preocupa-me... Não está bem, noto-a pálida,

magra, como atormentada por algo que guarda silenciosamente.

— É natural... Está apaixonada. Vá à légua.

— Mas de quem pode está-lo? Francamente, eu não acerto.

— De qualquer — evita Aimée em tom impregnado de frivolidade. — Ao melhor de Juan do Diabo.

— Como? O quê? — exclama Renato surpreso.

— Digo eu... Juan do Diabo é um homem como os demais. É toda um bom moço, e agora, com o novo emprego que lhe deste, até uma boa partida. Mônica não é

ambiciosa.

— É absurdo, desatinado! Nem em brincadeira deve...

— Tomaste a sério o papel de irmão maior com ela' — ri Aimée, divertida. — Não te desgoste, homem, que estou julgando. Ao fim e ao cabo, não é um impossível, e teria degrau... Argumento para uma novela por entregas: "A monja e o pirata"...

196

CCapítulo 26

— E Aninha a que faz?

— Nada, tio, tomo notas...

Uma careta amarga que quer ser um sorriso foi à resposta de Aninha, enquanto

ajusta melhor o lenço colorido ao redor de sua escura cabeça de cabelos encrespados. Sem o menor ruído surgiu que a espessa sombra dos arcos do segundo pátio, e os

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olhos duros e inquisidores de Batista a olham imperiosos, enquanto ela encolha os

magros ombros...

— De que tomadas nota, E Aninha?

— De tudo o que acontece...

— Não passa nada, mas sim me esmagaram e pisoteou — se queixa Batista em voz baixa, mas com grande rancor. — Mas não vão ficar assim as coisas. Eu tenho que

me desforrar, tenho que tomar vingança. Já verão se fizer falta ou não Batista o dia que armazém incendiados os canaviais, ou se voar um petardo a represa do rio, ou se...

— Não fale necedades, tio Batista. Essas coisas não se dizem. Se acaso, fazem-se...

— Não posso agüentar o que me passa! Não posso seguir aqui como o último servente, enquanto esse mendigo, esse bastardo do Juan do Diabo.

— Baixa a voz, tio, que não lhe ouçam. Renato e sua digna esposa acabam de

entrar no quarto. Agora a terá entre seus braços, beijá-la-á com ânsia, e lhe dará o coração e a alma inteira a essa malvada!

— Malvada? Por que é malvada? Ela teve a culpa de algo? Por que não me fala claro? O que é o que ocultas? O que é o que sabe?

— Sei uma coisa que vai te alegrar muito, tio Batista. Muito em breve vai

acabar-se Juan do Diabo!

— Quer me falar claro? — apressa Batista olhando-a com seus duros olhos inquisidores. — por que vai acabar se Juan do Diabo?

— Porque lança muito alto. Nesta casa vão passar muitas coisas. Se eu fosse você, tio Batista, melhor esperava. Já virá o Rio revolto, já Rio revolto, ganho de

pescadores.

— De onde tira você...?

— Ontem fui até lá encima, até o mais alto do desfiladeiro, e vi a velha Chala.

Dei-lhe umas moedas para que visse o futuro dos D'Autremont...

— Você nunca acreditaste nessas coisas, E Aninha. São patranhas, embustes

para enganar a esses bestas que levam a superstição na massa do sangue. Não te criei eu para que acreditasse essas coisas... Mas, o que te disse Endoidece?

— Abriu uma galinha negra, olhou-lhe as vísceras e me disse que há. Dois

homens com sangue D'Autremont nas veias: um legítimo, outro bastardo.

— Cala, baixa a voz! Está louca? — alarma-se Batista cheio de estupor disse Chala? Desbocada... Atrever-se a isso! Você vê? Você vê? Se eu ainda mandasse, faria-

a moer a pauladas por falar sem respeito dos amos... Do senhor, o senhor dom Francisco D'Autremont... Mentirosa!

— Não te sufoque tanto. Faz quinze anos que está morto, enterrado — explica E Aninha destilando sutil ironia. — Estamos sozinhos, tio Batista, e agora já sei que é verdade, totalmente verdade. Não fui ver Chala, não me disse nada.

— sim? Mas, o que te propõe?

198

— Ter a segurança de algo que sempre suspeitei: Juan do Diabo é irmão do amo

Renato, mas nenhum dos dois sabe...

— O cão bastardo, não acredito que o ignore. Era bem crescido já à noite em que

morreu Bertolozi, quando ele levou aquela carta...

— Quer me contar a história completa, tio Batista?

— Não! Esquece o que ouviste. Para que me fez falar? Perdi um momento os

estribos, mas se repetir uma só palavra do que escutaste...

— Já sei sua ameaça: fará-me moer a pauladas — se burla Aninha. — Do que te serviu quanto tem feito? O que há sacado sendo para eles como um cão? Nada,

verdade? Os trataste como se fossem de outra massa, como a deuses, como a filhos do sol... E não é verdade: são como outros... Como outros, lhes pode odiar ou amar. O

amo Renato não é mais que um homem, e qualquer homem pode sentir-se um dia tão desventurado que aceite o consolo onde o encontre... Ate em braços da filha de uma criada.

— E Aninha o que é o que está pensando? O que é o que te atreve a desejar?

— Quão mesmo você, mas de outra maneira. Você quer mandar em Campo Real,

e eu também. Por que não?

— Não quero te entender...

— Embora quisesse não me entenderia, mas sim me entende quando te digo:

aguarda, aguarda, não terá que aguardar muito. Logo virão as águas revoltas. Nem você nem eu seremos culpados, mas bem podemos recolher o que a tormenta jogue à praia.

O som estridente de uma campainha chega até eles, e é Batista quem comenta:

— Chama à senhora...

— Sim, e é a ti, pois foram dois toques. Anda nunca te chamou de outra maneira, nem quando foi administrador de Campo Real. Por algo é a ama, sua ama...

— E tua também. Não acredito que à senhora atreva a negá-la. Deve-lhe tudo,

comeu desde menina o pão de sua mão... Bom, temos que seguir falando né, E Aninha Tens que me dizer as coisas mais claras. Não estou disposto A... — Sua explicação é

interrompida por outros dois fortes e sons, e conclui: — Esta mesma noite temos que falar!

Foi-se com passo rápido detrás olhá-la com inquietação, e Aninha contempla

suas mãos moréias e finas, seus escuros braços de mestiça nos que apenas se marcam as veias azuis, e com desprezo infinito volta à cabeça para o lugar por onde Batista partisse, murmurando com raiva concentrada:

— Não é o sangue é a alma o que se tem pulseira!

— Colibri, até quando vais estar detrás da Santa Mônica?

— Agora ela não está patrão, mas me deixou cuidando. Quando ela não está, eu sou o que manda...

Com forte mão conteve Juan ao brioso cavalo que monta neste instante, um

soberbo animal branco como a neve, com preciosos arreios de córdoba, um daqueles dois cavalos exatamente iguais que Sofía desse de presente a seu filho e a sua nora

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nos primeiros dias de seu noivado. Inquieto, nervoso, acaso sentindo saudades o

maior peso e a maior rudeza do cavaleiro que o monta, parece disposto a encabritar-se, quando Juan estende a mão a Colibri e ordena:

— Anda, vêem comigo! Dê-me a mão e salta. O que acontece? Não quer vir?

— Sim, meu amo. Espere um momentinho... Um momentinho nada mais. Vou avisar ao negro Tranqüilo, que é o que cuida aqui quando nem a senhorita Mônica

nem eu estamos. Um momentinho nada mais... Tranqüilo!

Apertando os dentes, Juan dominou de uma vez seu impaciência e a inquietação nervosa do cavalo. Encontra-se à entrada do vale menino, onde uma vez tropeçasse

com a Mônica, muito perto de onde, Á toda pressa, levantaram-se os novos barracões para alojar aos doentes. Agora cessaram por completo a chuva e o vento e está

esplêndida a noite tropical banhada pela lua, recheadas de enormes luzeiros claros...

— Já está. Há quatro doentes que se encontram melhor, e quando a lua fique na ponta da colina terá que lhe dar a outros a colha raça — explica Colibri.

— Sobe à anca do cavalo e te agarre bem, não vás matar-te.

— aonde vamos, meu amo?

— Já o verá...

Juan fustigou os flancos do brioso corcel e este arranca em um galope veloz. Durante um bom momento, o cavalo vai tragando léguas de caminho sem que

nenhum dos dois cavaleiros diga uma só palavra, até que, de repente. Colibri exclama surpreso:

— O mar, patrão...!

— Sim, Colibri, o mar. Baixa lhe, que o resto é a pé como temos que andá-lo — indica Juan apeando-se. — Amarra o cavalo aos ramos dessa árvore. Não tenha medo,

não te fará nada.

— corremos patrão, estamos no Cabo do Diabo... O moço obedeceu ao Juan, jogando pé a terra, e logo lhe segue pelo estreito caminho aberto a pico entre os

ásperos escarpados, até aparecer ao negro cume que lhe deu nome. É alto como um farol, sombrio como um cárcere, úmido e negro como uma velha fortaleza. No topo, as

ruínas desmanteladas da pobre cabana que visse nascer ao Juan, que visse morrer a Gina Bertolozi e arrastar sua miséria ao marido que lhe deu seu nome... Quantos lembranças parecem amontoar-se e repente na mente daquele homem moreno e alto,

que alta à frente como desafiando aos elementos, enquanto o garoto de escura pele estende a mão fada o mar e assinala sem poder dissimular seu desgosto:

— Aí está o Lúcifer, patrão. Voltamos a nos embarcar? Vamos longe? Não

voltamos para Campo Real?

— Já vejo que o sentiria muito se não voltássemos.

— Sim, patrão, por... Por... Bom, você disse que não havia mais ama nova...

— Disse-o porquê assim o pensava, mas se haverá ama nova Colibri. Não embarcaremos esta noite, mas tudo tem que estar preparado, porque será muito em

breve. E iremos longe, para outras terras, por volta de outros mares... Olha tudo isto, Colibri, olha-o para não esquecê-lo, porque acaso não voltemos jamais.

200

Com repentina emoção, Juan apoiou a mão no ombro de Colibri, assinalando

depois quanto à vista abrange: a península deserta, as montanhas longínquas, as enormes rochas amontoadas sobre a costa como corpos de gigantes veados, a

montanha do Diabo, e o mar, eternamente inquieto, que estrela contra ele a fúria de suas águas. Todo aquele panorama belo e terrível, soberbo e sombrio, de que é como uma síntese sua alma ardente e apaixonada, seu coração selvagem, sua vida inquieta,

que a se mesma se consumir como o lenho que arde na fogueira crepitante daquela ilha de paixões, e volta a repetir:

— Acaso não voltemos mais, ou pelo menos em muitos anos...

— Quando você seja velho, patrão?

— Não acredito viver para tanto, pois não envelhecem as tormentas e eu, ao fim

e ao cabo, não sou outra coisa mais que isso: uma tormenta, um vendaval que passa rompendo e arrasando. Isso sou isso quis meu destino que fosse. Um dia sonhei outra coisa. Colibri, mas que foi só um sonho. Não se elevará uma casa sobre estes

penhascos, ninguém fará um jardim no montanha do Diabo... Nada poderia fazê-lo... Foi loucura... Aquele é meu mundo... Esse navio, o Lúcifer, o veleiro pirata mais audaz

que cruzou os mares... Mas não te assuste, tolo, não ponha essa cara de espanto. Sempre há alguém para quem os maus são bons. Não te farei nenhum dano...

— A ela tampouco vai fazer lhe danifico, verdade, patrão? .

— A ela? A que ela?

— À senhorita Mônica, patrão...

— Ah, Santa Mônica! Não acredito que goste de muito que vamos fazer, mas é

igual. Esquece-a, Colibri... Ninguém lhe faz mais machuco aos que somos desventurados, aos que nascemos para ser irremedialmente desventurados, que os

que pretendem voltamos bons e brancos. Deixa a sua Santa Mônica... O mundo é duro, cruel e mau... Tem que te fazer forte, insensível, egoísta, capaz de lutar e de vencer pisoteando ao que se atravesse em seu caminho. Só assim poderá sobreviver;

só assim pude eu chegar a homem... Mas, caramba! Faz-se tarde. Vamos...

— Sinto-o muito, Mônica. Parece ser que Juan não se preocupou muito de cumprir meus encargos. De qualquer modo, tudo saiu corretamente. Tem tão bem organizadas às equipes que lhe ajudam no cuidado dos doentes, que as coisas se

fizeram em forma normal até sem que ninguém as vigiasse. '

— Mas não deu a esse homem seu próprio cavalo? Não lhe disse...?

— Quanto terei que lhe dizer, sim. Mas, o que quer? Ou não me entendeu ou

não quis me entender. De momento não acredito que possamos lhe exigir muito...

Renato D'Autremont franziu levemente o janto frente ao único ponto da conduta

do Juan que não consegue desculpar em forma plena. Está muito perto das quadras, sob o sol de uma manhã esplêndida que contrasta com a passada noite tormentosa. Pálida e recatada, com seu eterno traje negro, fala Mônica sem olhá-lo, como se

temesse a luz investigadora daqueles olhos tão caros para ela. E há no Renato um gesto pormenorizado, indulgente e cheio de curiosidade de uma vez, quando observa:

— Levantou-te muito cedo, Mônica. Conforme me disseram, quase ao

amanhecer...

201

— No convento adquiri o costume de ver sair o sol. Isso não significa para mim

nenhum sacrifício, ao contrário.

— E pôs em ordem tudo o que ontem não ficou correto.

— Não fiz, mas sim voltar a me fazer carrego de minhas obrigações. Ontem à noite as abandonei, mas...

— Abandonou-as em minhas mãos e eu fui o bastante débil ou o bastante

indolente para não as cumprir pessoalmente. Confiei no Juan mais do que devia...

— Isso é o que não me atrevi a te perguntar. Não te parece que confia no Juan mais do que deve?

— De momento as coisas parecem te dar a razão, mas já veremos. De qualquer modo, suponho que você conhece melhor ao Juan que ninguém...

— Por que tenho que conhecê-lo? — se estranha Mônica sem alcançar o sentido das palavras do Renato.

— Bom, hei dito: suponho. Se não for assim não leve a mal minha afirmação.

Vem para casa? Não quer que tomemos o café da manhã em família?

— Obrigado, Renato, mas para mim é quase meio-dia. Tomei o café da manhã

cedo e agora tenho muito que fazer. Vou ver meus enfermos. Vate, Renato, certamente dona Sofía e Aimée lhe esperam.

— Não terei tanta sorte. Com a Aimée já sabe que não se pode contar até mais

tarde, e mamãe ainda se faz servir em suas habitações. A família de que te falava são o bem dê Noel e nosso terrível Juan do Diabo... Bom, já sei que você lhe chama Juan de Deus e que ele se enfurece quando lhe aplica esse nome. É um verdadeiro gato

Montês, mas já o amansaremos. Confio em ti para isso.

— Por que em mim? — surpreende-se outra vez Mônica.

— Porque é muito pormenorizada e bondosa, e isso é o que necessita um homem como ele... Claro está, que sempre que você queira ajudá-lo, pois eu não lhe imponho isso. OH, não me olha tão séria! E não te alarme, não quero ser indiscreto. Respeito

seu silêncio. Até logo, Mônica, lhe irei procurar logo por lá;

— Como? Levantada já? Que boa surpresa, Aimée!

— Como você não fica comigo, não tenho mais remedeio que te seguir. Onde estão outros?

Aimée percorreu a amplíssimo sala de jantar com seu olhar impacientei, enquanto Renato se inclina tomando sua mão, sorrindo-lhe muito perto, agradecido e encantado daquela aparição que, entretanto, nada tem que ver com ele.

— Como cumpriu seus encargos ontem à noite Juan do Diabo?

— Desastrosamente... Não se ocupou deles.

— OH, Por Deus! Então, terão tido vocês uma briga...

— Não o vi a ele, mas tampouco penso tê-la. Sei que o segredo de ter é não pedir muito... Mas, olha, aí vem. Vou deixar-te com ele enquanto me aproximo do despacho

202

a resgatar ao Noel. Pode fazer que vá servindo o café da manhã, porque em seguida

estaremos de volta.

Lentamente, cravados os olhos nela, Juan vai aproximando-se de Aimée. Viu-a

de longe, atrasou o passo de propósito, dando tempo a que se afaste Renato. Viu-o sorrir, inclinar-se, estreitar sua mão, beijá-la, ir-se depois, e se apertam suas duras mandíbulas contendo a quebra de onda amarga de rancor e de ciúmes que sobe até

seus lábios, que escapa por seus olhos em uma labareda escura, quando diz a Aimée:

— Vejo que saboreia a lua de mel. Que meigamente te saúda seu galante marido! Parecem feitos o um para o outro. Tudo é exatamente igual em vocês:

consideração, finura. Educação, nome ilustre...

— Basta, Juan! É que não compreende...?

— Mas, apesar de todo isso, virá comigo. Deixará esta casa de Marcos dourados, de espelhos, de cortinados e tapetes, para te encerrar entre as quatro pranchas de minha cabine do Lúcifer. Tudo está disposto; esta noite escaparemos.

— Mas está louco?

— Não haverá perigo para ti, estará absoluta e totalmente a salvo. Não tem já o

pretexto do medo. Fugiremos com todas as seguranças, iremos muito longe... Vilmente, covardemente arrancarei de Renato sua esposa, que nunca devia ser dele! Já sei que não é culpado... OH, se o fora... Que voluptuosidade, que prazer te haver

arrancado de seus braços, me levando sua vida também Te esperarei esta noite as doze, detrás da igreja, com dois cavalos selados.

— É muito logo, Juan! — protesto Aimée lutando assustada entre seu desejo

passional e a preocupação de perder o bem-estar tão ardilosa e hipocritamente conseguido.

— Já demoramos mais da conta e não quero voltar a verte junto a ele, ouviste? Não quero, porque não estou seguro de poder me conter. Estou fazendo as coisas como você quer, estou me pregando a seus caprichos como um escravo. Não tente me

falhar, Aimée, não vás falhar-me, porque não lhe vou perdoar isso, entende?

— Cala, Por Deus — suplica Aimée angustiada ao ver que Renato se aproxima

deles.

— Não houve forma — explica Renato com indiferença. — Noel diz que já tomou o café da manhã e está totalmente fundo entre livros e papéis. Quanto a Mônica,

tomou também o caminho de seus doentes. Estaremos sozinhos os três. Ordena que sirvam...

Chegam dois serventes impecavelmente vestidos de branco, cobrindo de

manjares deliciosos a suntuosa mesa. Tudo nela está preparado com o mais delicioso esmero, tudo nela causa um prazer estético só olhando-o: a fina cristaleria, as

bandejas de prata, quão fruteiros transbordam dos melhores exemplares de frutas cultivadas naquelas férteis terras, as taças de porcelana, os bordados toalhas...

Aimée fez um esforço para sorrir, aceitou o assento que Renato lhe oferece. A

sua direita, Juan, sombrio e silencioso; a sua esquerda, Renato, um falso sorriso mundano nos lábios, um olhar inquisidor e inquieta nas claras pupilas...

203

— Dona Sofía... Mas que surpresa! • quis falar a sós com você. Noel, sem

chamar a atenção fazendo ir a minha habitação, sem enviar recados com os serventes... Como se sente de novo neste despacho?

— Como tenho que me sentir? Muito bem, e muito agradecido...

— Não tem por que; ao contrário. Fui injusta ao prescindir de seus excelentes serviços e quero que saiba que muitas vezes pensei em você com remorso e com pena.

Mas a morte do Francisco me transtornou de tal maneira, tive tanto medo pelo Renato, tal espanto pelo que o futuro podia lhe trazer que não houve medida que me parecesse - pouca para defender a meu filho.

— Eu tivesse desejado ajudá-la sempre nessa tarefa...

— Sei. Noel, agora sei. Ofusquei-me de momento... Suas simpatias de você por...

— calou um momento, evitando o nome que aborrece, mas ao fim este sai de seus lábios: — Juan do Diabo...

— Juan... Vamos chamar lhe Juan, simplesmente. Não faz muito lhe propus

chamar-se Juan Noel...

— Como? Você? É possível? Seria você capaz...? — surpreende-se gratamente

Sofía.

— Quis fazê-lo, mas, ele o rechaçou em forma terminante. Não acredito que aceite já nada do que lhe ofereça...

— Entretanto, está nesta casa, junto a meu filho... Junto a meu filho, empenhado em fazer dele um irmão, na situação em que mais temi vê-lo. Suponho que disposto a aproveitar-se da bondade de Renato, de sua generosidade, de sua

nobreza, em uma forma que não pode ser. Noel. Não pode ser!

— Acredito que a estadia do Juan nesta casa será muito breve.

— Eu temo o contrário, Noel. Renato não o deixará ir-se. Já sei que você tratou que convencê-lo, sei que, contra tudo o que temia, está você de minha parte, mas sei também que seus bons conselhos não foram escutados por meu filho.

— Juan tinha trocado muito ultimamente, vinha disposto a ser outro homem, mas... — dúvida um instante, e prossegue: — Pisou em uma má erva, soprou-lhe um

mau vento; há seres aos que se diria que o destino arrasta criaturas que nascem com má sorte... Juan é dessas...

— As culpas dos pais caem sobre os filhos, Noel.

— Já sei. Por desgraça, é algo que se cumpre inexoravelmente a maior parte das vezes. Juan pagou as culpas de sua mãe.

— As de sua mãe, que foi uma rameira! — salta Sofía com rancor, mas

acalmando-se repentinamente, continua: — E as de seu pai também. Bem sei que você sabe tudo Noel, e por estar segura de que sabia todo lhe guardei rancor

injustamente, voltei-me contra você em vez de procurar sua amizade e seu apoio. Foi um grave engano. Agora o compreendo, e procurei a ocasião de lhe falar a sós para lhe pedir que me perdoasse que me entendesse, porque aquele perigo que quis destruir se

eleva agora contra meu filho, mais terrível, mais forte... E agora não tenho a autoridade nem o poder para defendê-lo apesar de si mesmo como a tive quando era um moço. Agora não fica, mas sim esse triste recurso das mães velhas, que são as

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lágrimas e os conselhos... Os conselhos que já não se escutam. Entretanto, tenho que

fazer algo. Ajude-me, Noel.

— Oxalá pudesse... — titubeia Noel. — Considero que as coisas partem já por

caminhos fora de nosso controle e que ria tão difícil as mudar como reprimir os elementos. Deveria tratar de tranqüilizar seus temores, mas prefiro lhe falar com toda franqueza. Acredito que Juan e Renato não nasceram para entender-se... Ao menos,

agora de logo. Talvez se desde meninos se tivessem criado como irmãos... Perdoe-me que use uma frase que bem compreendo que a "fere, mas é a exata. Então tivesse sido possível que as coisas fossem de outro modo; mas agora, agora não está em nossas

mãos mudá-las. O choque surgirá de um modo ou de outro...

— E isso é o que temo... O choque surgirá... E não é meu Renato o mais forte.

Vê você por que temia? Por que temia que esse moço, qual uma sombra fatídica aproximara-se a ele?

— A vida tem terríveis emboscadas. Acaso devessem saber que são irmãos... É

muito provável que Juan saiba... Criou-se de outro modo, e, além disso, é maior...

— Não é maior. Têm a mesma idade, e essa é uma de minhas maiores

amarguras. Meu filho e esse Juan nasceram ao mesmo tempo. De meus amantes braços de esposa apaixonada ia Francisco aos dessa mulher... Traidor! Canalha! E ela... Ela... Maldita ela seja!

— Acalme-se, dona Sofía, nada obtém removendo tão amargas lembranças. Há coisas mais graves... De momento, não tenho, mas sim suspeitas temores imprecisos. — Duvida Noel um instante, mas decidindo-se ao fim, aponta: — Confia você em mim,

dona Sofía? Autoriza-me para fazer algo que estime conveniente para conjurar o perigo que ameaça a esta casa?

— Ameaça verdade? Não é minha imaginação, não são meus nervos!

— Por desgraça, não. Eu acredito como você, que é indispensável afastar daqui ao Juan. Deme carta branca para tratar de fazê-lo pelas boas, concedendo

generosamente quanto podia dar-se o que pode ser muito já que, conforme estou comprovando, a fortuna dos D'Autremont se duplicou nestes últimos quinze anos...

— Espera você comprá-lo? Faça-o, Noel, dele o dinheiro que queira, que peça. Não importa que seja uma fortuna... Mas que se vá, que se afaste de meu filho para sempre!

— Colibri... Colibri...

Mônica não tomou como dissesse o caminho dos Barracões dos doentes. Guiou o carrinho que tem que levá-la até eles, deixando-o junto a uma das taipas laterais da

casa e logo se apareceu na galeria anexa às habitações dos hóspedes, procurando ansiosamente, até que a grácil figurinha escura aparece, aproximando-se dela e

oferecendo-se:

— Aqui estou senhorita Mônica, o que quer você?

— Vêem comigo...

Quase bruscamente o tirou que a mão, levando-o com ela. Com esforço contém sua ânsia de perguntar e, como sempre, mil sentimentos diversos lutam entrelaçando-se em sua alma atormentada. Aquele garoto pode lhe ser precioso, pode delatar

ingenuamente os sem dúvida tenebrosos planos do Juan do Diabo. Mas não é ao

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mesmo seu tempo protegido, seu pequeno amigo? Não seria horrendo se a ira do Juan

se voltasse contra o menino? Sua mão branca e nervosa acaricia a frisada cabeça e baixa a vista quando os olhos cheios de gratidão do garoto se voltam para ela, e

exclama:

— Que boa é você, senhorita Mônica!

— Pareço-te boa, Colibri? Você crê que sou boa? Se eu te perguntasse uma

coisa, responder-me-ia francamente? Diria-me a verdade? Toda a Verdade do que soubesse?

— Não sendo o que o patrão me mandou calar, eu o diria tudo a você.

— Compreendo. Não vou perguntar-te nada que não possa me responder, mas há algo que sim pode me dizer. Onde foste ontem, Colibri?

— É do que não posso lhe dizer senhorita, por que...

— Porque eu lhe mandei calar — interrompe Juan aproximando-se de repente, e fazendo que Mônica, assustada lance um: — Juan!

— Para isto ganhou você sua confiança? Para isto lhe demonstrou piedade e afeto? O mundo não troca. Santa Mônica é igual nos botequins que nos palácios. Até

um sorriso tem seu preço!

A voz se apagou nos lábios da Mônica, violentamente surpreendida pela brusca presença de Juan, que joga a um lado ao moço para enfrentar-se com ela, acesas de

cólera as pupilas, desafiante o gesto altivo... Ao fim, com esforço, Mônica consegue responder:

— O que é o que você acredita? O que é o que pensa? Interpreta mal minhas

intenções...

— Suas intenções as conheço perfeitamente... Vêem comentado Colibri, a

ninguém importa onde tenha ido, a ninguém tens que lhe responder... Vamos, vêem...

— Um momento, Juan...

— Um momento para o que? Não tenho tempo para escutar seus pedidos! Nem

os de você nem os de ninguém... Aí vem outro dos que gostam como você, arrumar as vistas alheias e predicar no deserto — aponta Juan, ao observar que Noel se dirige

para onde eles se encontram. E ao tempo que se afasta, afirma: — Tampouco tenho tempo que perder com ele!

— Juan... Juan...! — chama o velho notário. E ao vislumbrar a Mônica,

desculpa-se: — Ah! Senhorita Molnar, desculpe-me... Acreditei que Juan estava aqui...

— Estava aqui até este momento. Fugiu ao ouvi-lo. Disse-me que não tinha

tempo que perder nem com você nem com ninguém.

— Pois sentirei na alma incomodá-lo, se é que lhe incomodo, mas tenho

absoluta necessidade de lhe falar e de lhe ver... Com permissão de você...

Mônica ficou sozinha, baixa a cabeça, muito angustiada para poder pensar, muito inquieta para permanecer imóvel. Sente como uma ofensa as palavras de Juan,

seu olhar de profundo desprezo, mas um pouco mais forte que todo isso se eleva em

206

seu peito. Importa-lhe muito que aqueles, dois homens possam falar, é muito intenso

seu sofrimento para que não o esqueça tudo, e como um autômato parte atrás deles...

— Juan...! Juan quer me ouvir um momento?

Noel alcançou ao Juan muito perto do compartimento edifício onde se acham as cavalariças e as garagens; E frente ao nobre rosto do velho, a quem lhe ligam as únicas lembranças boas de sua infância, o patrão do Lucifer se detém, e cruzando os

braços aguarda as palavras que saem de lábios do notário, surpreendidas e trêmulas:

— Na verdade, Juan, não sei o que te propõe. Tem todo o aspecto de um demente; foge cruzar uma palavra e dar uma explicação; ofende a senhorita Do Molnar

que, conforme acredito, nada te tem feito, sem olhar de nenhuma espécie... Se não fora porque compreendo bem o que está sofrendo, seria coisa de te voltar às costas e

de lhe rogar ao Renato que enviasse ao Saint-Pierre com a proibição de voltar a pisar em suas terras.

— Faça-o, se quiser... Se quiser e se puder... Embora não acredito que valha a

pena que se incomode. Muito em breve estarei longe de tudo isto. Não é isso o que todos querem? Pois vou agradá-los... Irei, irei definitivamente...

— Posso saber a que se deve uma mudança tão repentina de opinião?

— Não acredito que lhe interesse nem pouco nem muito. Noel. Estorvo e vou isso é tudo.

— Juan, contigo não sabe um como fazer-se entender — confesse Noel em tom de suave amabilidade. — Te pedi que fosses, é certo. Pedi-te em todos os tons que voltasse para o Saint-Pierre, mas não nessa forma nem, dessa maneira. Seu lugar não

está nesta casa...

— Já sei — confirma Juan com sarcasmo. — Meu lugar está no mar e a ele

volto.

— É isso seriamente? Vais voltar a navegar? Se for para bem de todos...

— O que importa o bem de todos? A você, como a Mônica do Molnar, não há

mais que um bem que lhe interessa: o de Renato — assegura Juan com despeito; e destilando uma má e oculta intenção, prossegue: — Não sei até que ponto minha

viagem será para mau ou para bem desse homem privilegiado. É obvio, ele levará a mal, mas é para bem... Naturalmente que é para bem...

— Não entendo uma só palavra...

— Nem quero que entenda. Noel basta com que se alegre. Para que corria você detrás de mim? Certamente para rogar-me uma vez mais que me fora.

— Não, Juan. Queria te dar conta de uma conversação muito importante que

tive com dona Sofía faz apenas um par de horas. Uma conversação sobre seu futuro e sua pessoa...

Meu querido Juan, as pessoas cometem enganos, são intransigentes e cruéis, mas às vezes se arrependem e choram seus equívocos e tratam de emendar seus erros. Se quisesse ouvir-me com calma te surpreenderia saber que Deus há meio

doido o coração de dona Sofía.

— Me surpreender? Não, Noel, nada no mundo pode já me surpreender. Sem ouvir a você, poderia saber o que há lhe dito dona Sofía, o que vem você a me dizer

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como a notícia mais grata e surpreendente da terra, e, entretanto, é o que estou

esperando desde que cheguei. Quer ver como acerto? O direi em uma só frase: a senhora D'Autremont me oferece dinheiro...

— Como? — sobressalta-se Noel, na verdade estupefato.

— Muito dinheiro para que me afaste. Estorva-lhe o fantasma que represento. Sou, junto a seu filho, como uma sombra má... Pagaria a preço de ouro por ver-me

desaparecer, ela que me negou o último canto desta casa, ela a quem lhe doía até o pedaço de pão que me arrojasse o que possivelmente tinha o dever de me dar isso tudo, ela que não teve nem um pedacinho de piedade para o moço abandonado e

órfão... Certamente, ela colocara agora uma fortuna em minhas mãos com tal de que me afaste, com tal de não ter que suportar minha presença... E você é seu

mensageiro...

— Não são assim as coisas. Juan. Ouça-me...

— Para que? Para que você envolva em palavras menos cruas? O resultado será

o mesmo. E não me queixo, vale a pena me haver feito odioso e temível para ver mudar desse modo as pessoas. Adivinhei exatamente o que vinha você a me dizer, verdade?

Pois bem, lhe diga a dona Sofía que não se causar pena. Vou muito em breve sem que ela nem ninguém me tenha que pagar por isso. Na suntuosa morada dos D'-Autremont não há mais que uma jóia que me interessa, e essa sim me levo isso.

— Juan. O que está dizendo? O que pretende fazer?

— Nada mais que ir. Tranqüilize a dona Sofía e tranqüilize também à senhorita do Molnar. Despeça-me do Renato, lhe diga que lhe devolvo seu emprego... Não me

interessa. Nota-se a falta de seu cavalo predileto, que não se preocupe, pois tomo só a modo de empréstimo. Já o enviarei ou o deixarei que volte sozinho... Adeus. Noel...

Afastou-se, afundando-se na próxima arvoredo, mas o velho Noel não lhe segue esta vez. Fica plantado olhando-o afastar-se, consternado pelo que pressente confuso e duvidoso como não o esteve jamais em sua larga vida...

— Senhor... Senhor... Mas o que é isto? — clama perturbado. E de repente, surpreende-se — Senhorita Molnar...

— Escutei-o tudo, Noel. Segui atrás de você. Desculpe, mas me interessava muito que Juan ia a dizer-lhe, o que ia responder lhe...

— Se o ouviu tudo, não tenho nada que acrescentar, exceto, ao fim e ao cabo,

mais vale que Juan se embarque de novo. Depois de tudo, tem razão em muitas coisas e adivinhou totalmente o que dona Sofía queria dele: que se fora. Se tiver que lhe ser franco, me causa pena muitíssimo que se vá assim, que desapareça como fugindo. Já

o fez uma vez... — Faz uma pausa e indaga — No que pensa você, minha filha? Por que não diz nada? Por que me olha dessa maneira?

— Por nada. Noel — responde Mônica com um fio de voz. — Não me pergunte... Deixe-me... Suponho que o que penso são loucuras...

— A mim também me passam loucuras pela cabeça. Quer me dizer as suas?

Os pálidos lábios da Mônica tremeram como se fossem deixar escapar o terrível segredo que a atormenta. Há algo no nobre rosto de Noel que lhe inspira confiança, algo que lhe impulsiona a lhe falar francamente, mas a expressão do notário muda de

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repente. Contendo de repente a confissão, Mônica volta à cabeça para enfrentar-se

com o homem que, sem ruído, acaba de chegar até eles, e exclama:

— Renato.

— Ainda aqui, Mônica? Pensei que já estaria no outro vale. Faz mais de duas horas que me falou de ir junto a seus doentes. O que aconteceu? Teve algum inconveniente com a carruagem, ou te chegou alguma má notícia?

— Nenhuma das duas coisas, Renato, atrasei a viagem porque não me encontrava bem. Agora mesmo o estava dizendo ao senhor Noel.

— Em efeito, não tem boa cara. Insisto em que te fatigaste mais da conta estes

dias. Embora não queira, Também a ti vai verte o médico, e enquanto vem aceitará minha receita pessoal: descanso... Pelas que suas chamas obrigações, não se

preocupe. Tomarei seu lugar, esta vez pessoalmente. Passarei o dia no outro vale... .

— Não, Renato, Por Deus, não vá! Não te afaste da casa, não te separe de

Aimée... Rogo-lhe isso, suplico-lhe isso, Renato. Agrade-me uma vez...

Quase desesperadamente suplicou Mônica, enquanto Renato a olha, primeiro

com surpresa, logo com uma espécie de preocupação funda e grave...

— O que acontece, Mônica? O que é o que teme?

— Não é que tema nada. É que não vale à pena. Eu me sinto melhor, já tenho o

cocheiro disposto para ir até o outro lado...

— Descansa hoje, Mônica, está muito nervosa. Acredito que até tem febre. — tomou sua mão, mas ela a retira bruscamente e retrocede empalidecendo, por isso

Renato, estranhando, pergunta — por que é esse medo? O que pensa que pode ocorrer nesta casa se eu me afastar?

— Nada, Renato, certamente. Mas...

— Então, vate a descansar. É um pedido, mas terá que ser uma ordem se não o escutar. Uma ordem de irmão, mas velho... Enviarei-te ao médico e atenderemos a

sua saúde, que é mais preciosa que a de ninguém. Não proteste, porque é inútil. Farei que lhe atendam embora você não queira. — E elevando um pouco a voz, chama —

Ana... Chega a tempo... Acompanha à senhorita Mônica até seu quarto e lhe advirta a dona Catalina que não se encontra bem. Anda...

Pedro Noel fez um esforço para sorrir quando os olhos do Renato, depois de ver

afastar-se a Mônica acompanhada pela donzela, volta-se para ele fixando-se em seu rosto pálido e tenso, e comenta:

— Parece-me você tão nervoso como minha cunhada Mônica. Tanto turvou as

duas a conversação com o Juan?

— Como? — sobressalta-se o notário.

— Foi larga e violenta... De longe observei os arredores de ambos e vi que Mônica lhes escutava sem ser vista por vocês. Uma indiscrição bastante estranha em uma mulher como ela...

— Bom... Há ocasiões na vida em que... Em que todos fazemos coisas incorretas...

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— Geralmente, quando as coisas importam muito, e salta à vista que a Mônica

importa muitíssimo tudo o que se refere ao Juan...

— Bom, é natural — responde Noel em forma evasiva — a senhorita Molnar

forma parte desta família, desta casa, e não pode ser indiferente às coisas de alguém que, queiramos ou não, preocupa a todos...

— Preocupa a todos, embora de maneira diferente. Compreendo que preocupe a

você, que tem que compartilhar com ele suas tarefas; a mim, empenhado no milagre de lhe represar... Mas, que motivo pessoal pode ter ela?

— Não acredito que seja nada pessoal — recusa vivamente Noel.

— Pois de quem? Quando me aproximei tive a impressão de ter talhado uma confidência. Tanto você como ela se turvaram a ver. Ela ia falar com você de algo

confidencial, possivelmente íntimo...

— Bom... Talvez... Em último caso, é lógico que minhas cãs lhe inspirem mais confiança que seus vinte e seis anos.

— Mônica e eu somos amigos desde meninos, estamos agora ligados por um parentesco que teria que nos aproximar mais, e a você acaba de lhe conhecer. Ou era

amigo antes dela? Conheceria a Mônica? Conhecia as Molnar?

— A Mônica não a tinha visto nunca, mas... — se interrompeu Noel dúbio.

— A Mônica não? Conhecia você a Aimée? Por que vacila em me responder?

— Não é que vacile filho, é que tratava de recordar. Eu fui um bom amigo do pai delas, conhecia de vista a dona Catalina... A elas, naturalmente, vi-as de pequenas. No Saint-Pierre nos conhecemos todos. Não sei o que Aimée te haverá dito.

— E quer sabê-lo para não deixá-la mau, verdade?

— Filho, Por Deus, que Idea. Está-me submetendo a um verdadeiro

interrogatório e não fica nada bem a atitude de juiz...

— Acalme-se, não estou acusando-o. Estava só tratando de compreender o que acontece. Aimée me contou que uma vez esteve em sua casa para ver se você lhe dava

a razão de certo veleira a cujos tripulantes tinha encarregado uns presentes para mim. É isso certo?

— Bom, sim... Claro... Tinha encarregado ao Juan...

— Ao Juan? Foi o veleiro de Juan? Foi Juan o patrão de veleiro que não cumpriu o encargo de Aimée?

— Bom... A verdade é que eu pouco recordo...

— Recorda você perfeitamente, e se não recordasse não teria nada de particular. Mas sim há algo muito estranho: que depois de todo isso, Aimée e Juan não se

conhecessem. Mônica disse havê-lo visto antes, e Aimée, não. Por quê?

— Bom, filho, está-me voltando louco...

— É certo. E não é a você a quem tenho que fazer essas perguntas, verdade? Mas sim a minha esposa. Ela é a que tem que me responder.

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— Não, Por Deus, não vás fazer uma confusão com tudo isto. Minha cabeça

anda mal, não sei nem o que me digo algumas vezes. O que Aimée te há dito será a verdade. Eu, por minha parte...

— Não tenha medo. Por sorte, não sou um homem ciumento. Quero dizer, que não entendo o amor nem a confiança pela metade. Ou acredito rotundamente, ou rotundamente não acredito. Confio em minha esposa. Se não confiasse nela, minha

resolução séria definitiva... Mas, a que falar disso? Além disso, não se tratava de Aimée, mas sim de Mônica. Tratava de compreendê-la para ajudá-la, mas é difícil compreender as mulheres.

— Agora sim há dito uma verdade como um templo. As mulheres são como mariposas inquietas e terá que lhes perdoar seus caprichos e seus nervos em graça a

que são o melhor do mundo, o único que nos embeleza a vida. Não o crie?

— Até agora o acreditei assim. Mas não tenho esse conceito frívolo da mulher. Não acredito que sejam em realidade tão diferentes a nós. Em geral, estimo-as mais

que você e também lhes exijo mais. Acredito que são copo sagrado, já que. Deus fez delas o molde do humano. Também acredito que a mulher mais formosa pode fazer-se

réu de morte se cometer uma infâmia. Acredito que o homem acha nela sua desgraça ou sua morte, e em que faz sua esposa o deposita tudo: honra e nome... Com todos os deveres e com todos os direitos, especialmente o de lhe pedir contas muito estreitas

pelo que faz. Dessa honra e desse nome... Mas troquemos o tema. Você e eu temos muito que fazer...

— Você e eu?

— É obvio. Vamos juntos um momento ao despacho. Acredito que chegou o momento de atar o passado com o presente. Fui menino e volto homem. Para regular

minha conduta futura há coisas do passado que preciso saber, e coisas do futuro que quero resolver a partir de agora. Quero que me você refira algumas velhas histórias... As de meu pai a primeira... Venha...

(Esta obra contínua na novela titulada “MÔNICA")

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