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FACOM - nº18 - 2º semestre de 2007 O Garoto Selvagem em Três Tempos Victor de Aveyron e uma história cultural da inteligência Resumo: Em três momentos da história da cultura – Iluminismo, modernidade e revolução cientíco-tecnológica - a construção do conceito de inteligência, a partir do caso do Garoto Selvagem de  Aveyron, permite uma relação entre os conceitos de natureza e o de cultura. Palavras-chave: Ciências co gn itivas , História cult ural, Int eli gência , Natureza e Cultura. Abstract: Three moments of cultural history Enlightenment, modernity and technological-scientic revolution - to make concept of intelligence from the Wild Boy of Aveyron to relationship between ideas of nature and the culture. Keywords: Cognitive science, Cultural history, Intelligence, Nature and Culture. Em Sobre a pedagogia (Über Paedagogie, 1776/1777), o ilósoo Immanuel Kant (1724-1804) propõe uma interessante pesquisa: “Para convencer-se de que os pássaros não cantam por instinto, mas aprendem a cantar, vale a pena azer a prova: tire dos canários a metade dos ovos e os substitua por ovos de pardais; ou também misture aos canarinhos ilhotes de pardais bem novinhos. Coloque- os num cômodo onde não possam ouvir os pardais de ora; eles aprenderão dos canários o canto e assim teremos pardais cantores. É estupendo o ato de que toda espécie de pássaros conserva em todas as gerações um certo canto principal; assim, a tradição do canto é a mais iel do mundo” 2 . Kant escreveu isto para um curso que oi ministrado 12 anos antes do início da Revolução Francesa, em pleno apogeu do Iluminismo. No mesmo texto, na seqüência, Kant deine o papel da educação na humanização do ser humano, que para ele, assim como para os iluministas, se conunde com a civilização: “O homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele az” 3 . No mundo pré-moderno, éramos salvos pela religião; no mundo moderno, somos salvos pela educação. Mais da educação do que pela saúde. Esta é a base de nossa cultura. Kant era um homem de seu tempo e reletia as condições de sua época, que acreditava na orça das idéias através de uma educação cosmopolita. Por volta de 1789, ano estabelecido como do início da Revolução Francesa, uma criança oi abandonada no sul da F rança pouco depois de seu nascimento. O garoto deveria ter entre 11 e 12 anos no dia 08 de janeiro de 1800, quando oi encontrado na região de Av eyron, França: um menino que habitava a mata, sem laços sociais humanos de qualquer espécie. Em pouco tempo se tornou célebre em Paris, alvo da atração pública. Todos queriam conhecê-lo ao vivo, como se osse um animal no zoológico, um verdadeiro garoto selvagem.  Jeder ür sich und Gott gegen alle¹ Martin Cezar Feijó

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O Garoto Selvagem em Três TemposVictor de Aveyron e uma história cultural da inteligência

Resumo:Em três momentos da históriada cultura – Iluminismo, modernidade e revolução

cientíco-tecnológica - a construção do conceito de

inteligência, a partir do caso do Garoto Selvagem de

 Aveyron, permite uma relação entre os conceitos de

natureza e o de cultura.

Palavras-chave:Ci ên ci as co gn it ivas , História cultural, Inteligência,

Natureza e Cultura.

Abstract:Three moments of cultural historyEnlightenment, modernity and technological-scienti

revolution - to make concept of intelligence from the

Wild Boy of Aveyron to relationship between ideas o

nature and the culture.

Keywords:Cognitive science, Cultural history, Intelligence

Nature and Culture.

Em Sobre a pedagogia (Über Paedagogie, 1776/1777), o ilósoo Immanuel Kant(1724-1804) propõe uma interessante pesquisa: “Para convencer-se de que ospássaros não cantam por instinto, mas aprendem a cantar, vale a pena azer aprova: tire dos canários a metade dos ovos e os substitua por ovos de pardais

ou também misture aos canarinhos ilhotes de pardais bem novinhos. Coloque-os num cômodo onde não possam ouvir os pardais de ora; eles aprenderão doscanários o canto e assim teremos pardais cantores. É estupendo o ato de que

toda espécie de pássaros conserva em todas as gerações um certo canto principal; assim, a tradiçãodo canto é a mais iel do mundo”2 .

Kant escreveu isto para um curso que oi ministrado 12 anos antes do início da RevoluçãoFrancesa, em pleno apogeu do Iluminismo. No mesmo texto, na seqüência, Kant deine o papel daeducação na humanização do ser humano, que para ele, assim como para os iluministas, se conundecom a civilização: “O homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela educação. Ele éaquilo que a educação dele az”3 . No mundo pré-moderno, éramos salvos pela religião; no mundo

moderno, somos salvos pela educação. Mais da educação do que pela saúde. Esta é a base de nossacultura. Kant era um homem de seu tempo e reletia as condições de sua época, que acreditava naorça das idéias através de uma educação cosmopolita.

Por volta de 1789, ano estabelecido como do início da Revolução Francesa, uma criança oabandonada no sul da França pouco depois de seu nascimento. O garoto deveria ter entre 11 e 12anos no dia 08 de janeiro de 1800, quando oi encontrado na região de Aveyron, França: um meninoque habitava a mata, sem laços sociais humanos de qualquer espécie. Em pouco tempo se tornoucélebre em Paris, alvo da atração pública. Todos queriam conhecê-lo ao vivo, como se osse umanimal no zoológico, um verdadeiro garoto selvagem.

 Jeder ür sich und Gott gegen alle¹

Martin Cezar Feijó

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Seria a prova da existência do bom selvagemde Rousseau? Um ser humano que caminhavade quatro, que nada dizia, somente grunhidos,assustado com o assédio. Algumas pessoasprotestaram e exigiram, em época que se discutiaos direitos humanos em período revolucionário,que o menino osse tratado com dignidade e que seprovidenciasse o mais rápido possível sua educaçãoe inclusão à vida social e cultural. Coube a um médicohumanista, Jean-Marc Itard, a tarea de educar oselvagem.

Em 1970, o cineasta rancês François Truaut

realizou, a partir dos relatórios do médico Jean-MarcItard, um flme intitulado O Garoto Selvagem (L’Enant Sauvage), disponível em DVD. Trata-se de uma obra-prima do ecundo cineasta que começou como críticona revista Cahiers du Cinema, oi participante destacadoda nouvelle-vague, movimento do novo cinema rancêsdos anos 1960, e procurou com seu flme tratar maisuma vez da inância abandonada, como já havia eitoem Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, França,1959).

O objetivo deste texto, a partir da ascinantehistória do garoto selvagem de Aveyron, mais do que tera pretensão de esgotar a questão, é propor um diálogointerdisciplinar entre as ciências humanas e biológicas,começando por explorar três momentos da históriada cultura com relação ao conceito de inteligência:revolução intelectual no Iluminismo, revolução culturalna Modernidade e revolução científco-tecnológica esua relação com as ciências cognitivas e neurociência.

Tudo deve ser visto aqui, é bom quese esclareça, como parte de um projetode pesquisa não só em andamento, masprincipalmente em seu início: um projeto depesquisa interdisciplinar sobre uma históriacultural da inteligência.

1. Revolução intelectualO menino, em torno de 12 anos,

encontrado em 1800 em Aveyron despertouenorme interesse na recém-undada Sociedadedos Observadores do Homem, de Paris,para onde oi enviado para um diagnósticodo amoso psiquiatra Phillip Pinel, médicochee do Hospital Salpêtrière e membroda Sociedade dos Observadores, que oconsiderou não como selvagem, mas como

idiota; o que provavelmente teria causadoo abandono pelos pais no bosque4.

O a b a n d o n o d e r e c é m -nascidos que ossem consideradosd e i c i e n t e s e r a u m a p r á t i c a m u i t ocomum em uma época em que também

DVDlançadonoBrasil

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crianças indesejadas eram depositadas nas amosas“rodas dos expostos”; criadas pela Igreja Católica naIdade Média e que existiam em vários conventos. Napior das hipóteses, as crianças eram simplesmenteabandonadas para morrerem no meio do mato;provavelmente o ocorrido com o menino que

sobreviveu e se tornou uma celebridade em seutempo e uma lenda no decorrer do tempo, gerandopossivelmente desde o menino Mogli, de RudyardKipling (O Livro da Selva, 1895), até, quem sabe,na inspiração da origem do Tarzan, de Edgar RiceBurroughs, 1912; chegando até nós pelas histórias emquadrinhos, pelo cinema ou pelos estúdios da Disney,mesmo que as histórias estejam situadas na Índia ou naÁrica, o que garantia maior exotismo e verossimilhançanum contexto que oi chamado por Edward Said de“orientalismo”.

Mas o garoto de Aveyron acabou sendoenviado para uma instituição de surdos emudos, porque não se comunicava e parecia nãoentender o que se dizia a ele. Jean-Pierre Itard(médico humanista, inspirado principalmenteem Condillac), oi indicado para cuidar do caso.O Doutor Itard, ao contrário de Pinel, entendeuque seria um caso que a educação resolveria,bastando para isto adotar um método pedagógicoque iria despertar a inteligência no garoto. Poristo, otimista, resolveu “batizar” o menino como nome “Victor”, porque tinha certeza da vitóriado conhecimento sobre a natureza. O meninopassou a ser conhecido a partir daí como Victorde Aveyron.

Contando com o auxílio de umagovernanta, Senhora Guérin, paga peloEstado, Itard pôs-se a educar o meninocomeçando por acostumá-lo às roupasdepois a convivência social, contato coma música para inalmente aprender a alar

e expor suas idéias. E estabeleceu suasmetas:

O flme de Truaut, totalmentebaseado nos detalhados relatórios de Itardbuscou um tom de documentário, em preto-e-branco, tendo o próprio François Truautrepresentando o personagem do médico, ponão ter gostado de nenhum ator testado parao papel6. Para Truaut era undamental umacompreensão interior orte para as motivaçõesdo médico que buscou “salvar” uma criançaabandonada, uma de suas obsessões7; elepróprio tendo uma inância diícil.

Em suma, o flme pode ser consideradouma onte de conhecimento inesgotávesobre o assunto. E, o mais importante, érigorosamente fel ao contexto, tanto sobreo período em que a ação se passa (épocada Revolução Francesa e visão de mundocorrespondente) quanto sobre o período emque é flmado: 1970, com o cinema atingindoseu apogeu enquanto linguagem e as idéias de

Foucault, a partir de Marx, Freud e Nietzschelevadas à proundas conseqüências, além deser também, o que não quer dizer que Truautivesse acesso a este dado, o ano em que seinaugura a década em que irá se constituir asciências cognitivas.

O i l m e d e T r u a u t p o d e s e rconsiderado uma tentativa estética de fcarno meio do caminho entre Rousseau, e sua

As metas pedagógicas de Itard

1. Interesse pela vida social.

2. Despertar a sensibilidade nervosa.

3. Ampliar esera de idéias.

4. Levar ao uso da ala.

5. Exercitar operações da mente.

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teoria do bom selvagem, e os estudos e debates acercada inteligência, que estiveram no centro das polêmicaspedagógicas, particularmente na França desde o iníciodo século XX, tendo como pano de undo um escândalocientífco: o escândalo ocasionado pelas descobertasde Charles Darwin (1809-1882).

2. Revolução culturalSe o I luminismo , co m seu pro j eto de

modernidade undamentado na importância darazão, liberando o ser humano dos limites esotéricosimpostos pela tradição religiosa (c. Jürgen Habermas),a grande revolução cultural ainda estava por vir, e estaoi percebida com grande pertinência por um poeta,que a nomeou. Foi outro Charles, o Baudelaire (1821-1867), que criou o nome de modernidade a um períodomarcado pela velocidade, pela predominância do

eêmero, e, principalmente, por uma nova sensibilidade.A isto ele deu o nome de modernidade (modernité, nooriginal).

Mas se Baudelaire percebeu, Marx interpretou,Freud analisou; oi Darwin quem detonou a bomba,com undamentação científca, e que até hoje causaarrepios em setores religiosos e certezas arrogantesem setores céticos, gerando tanto descobertasundamentais quanto justifcativas assustadorascom relação à natureza humana. Como ruto de um

contexto avorável ao desenvolvimento da ciência,as descobertas de Charles Darwin e sua teoria daevolução trouxeram, além do debate ideológico ereligioso que gerou - e ainda gera8 -, discussões eadoção de critérios sobre as origens da inteligência,como ruto da evolução ou do ambiente. O que causouuma certa, e exagerada, crença com relação a umapossibilidade em se medir capacidade cognitiva apartir de testes aplicados em crianças, e criados por umpsicólogo rancês no início do século XX: Alred Binet(1857-1911). Os testes de QI (quociente intelectual)

se tornaram reerência nos projetos educacionais,inicialmente na França, depois se espalhando pelomundo ocidental.

Partindo da craniometria, Binet resolveudesenvolver métodos “psicológicos” em substituiçãoao que era proposto pelos que o antecederam,mesmo que inspirados em Darwin. Alred Binet criouuma escala depois que oi indicado pelo Ministério deEducação da França em 1908 para realizar um estudo

detalhado sobre a capacidade cognitiva dascrianças com a fnalidade de detectar motivosdos racassos escolares e contribuir nacriação de turmas especiais visando superardifculdades. Como reconheceu o importantepaleontólogo Stephen Jay Gould, o “emprego

de testes de QI teve conseqüências muitograves em nosso século (XX)”9 .E com todos os riscos e problemas

que uma perspectiva técnica em aerirresultados quantitativos de inteligência, oiazendo estágios com a equipe de AlredBinet que o suíço Jean Piaget (1896-1980)deu início a sua importante pesquisa,unindo aspectos de sua área, a biologia,com as ciências humanas, a psicologia, noesclarecimento sobre o desenvolvimento

da inteligência na criança10.O problema é que a redução do estudo

da inteligência a uma área do conhecimento,seja a que prioriza da herança ou a queestabelece como determinante o ambiente,fca ainda mais grave quando impregnadade sectarismos e se torna uma disputapolítica. Neste sentido, a principal delas,que gerou um debate que não se esgotou,é sobre a utilização política de pontos devista científcos, principalmente na relação

entre hereditariedade(genética) e ambiente,como atores determinantesna inteligência.

O debate político

O teste mental, comotambém fcou conhecido

o teste de QI, teve uma sobrevida até os anos

60 do século XX, quando passou a ser acusadode gerador de segregacionismo, seja racial ousocial. Mas nem sempre os motivos oramcientíicos; na maioria das vezes, orampolíticos. A questão chegou a ganhar umaperspectiva ideológica, o que sempre é ruimpara a ciência, quando os que priorizamaspectos ambientais apresentam-se comoprogressistas e condenam os que deendem

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posições avoráveis à genética como sendo posiçõestípicas de setores direitistas, às vezes até ascistas,prejudicando um debate que pode, e deve, estar alémde posições ideológicas, como chegou a destacar opsicólogo Hans Jurgen Eisenck (1916-1997):

  Uma outra hipótese alsa é a de que as crençaspolíticas determinam a atitude de alguém, quanto àimportância relativa de hereditariedade e do ambiente. Àsvezes, imagina-se que acções direitistas avorecem atoresgenéticos e acções mais esquerdistas atores ambientais.Isso, evidentemente, é uma mentira. Eu aprendi quase tudode genética com o Proessor J.B.S. Haldane, que não eraapenas um dos mais notáveis geneticistas do século, mastambém um membro da cúpula do Partido Comunista da Grã-Bretanha e editor do seu jornal The Daily Worker . Como deixeiclaro no livro The Inequality o Man , ele estava convencido daimportância dos atores genéticos, enquanto relacionadosàs dierenças na inteligência e não considerava este atoincompatível com o comunismo. De outro lado do espectropolítico, o Proessor J.B. Watson, undador do behaviorismo,oi um arquiconservador e, todavia, também o proponente

de uma orma extrema de ambientalismo. Poderíamos darmuitos exemplos, para ilustrar a inexistência de consensoentre credo político e posição pessoal, quanto à importânciados atores genéticos. Este equívoco talvez tenha surgidodepois que Stalin proibiu o teste mental, em 1935, alegandoque era ‘burguês’ – na mesma ocasião, Hitle r proibiu-o por ser‘judeu’. Mas a posição anti-ge nética de Stalin e o seu apoio aocharlatão ambientalista Lysenko não derivaram de qualquerargumento marxista, ou leninista. De ato, tanto Marx, comoLenin acreditavam irmemente na doutrina da evolução deDarwin e reconheciam a importância de atores genéticos. Ésó recordarmos o maniesto comunista: ‘A cada um segundosuas capacidades, a cada um segundo suas necessidades’.Ele expressa, claramente, a crença no ato de que pessoas

dierentes possuem dierentes capacidades, mesmo noparaíso comunista, onde todas as desigualdades culturais,educacionais e outras, seriam erradicadas. Obras recentes,de psicólogos comunistas da Cortina de Ferro deixam claroseu apoio a esta opinião e, de ato, alguns dos trabalhosrecentes, mais interessantes, sobre a hereditariedade dascapacidades cognitivas, vêem da Rússia, Alemanha Orientale Polônia11.”

Neste caso, a situação de Victor de Aveyrontambém não se resolveria, pois diicilmente seriapossível aplicar qualquer tipo de teste nele, jáque o próprio Doutor Itard, depois de 14 anos de

tentativas em educar o menino, resolveu abandonarseu projeto, deixando-o, porém aos cuidados dagovernanta, totalmente esquecido por todos eentregue ao seu próprio mundo numa casa vizinhaao então jovem escritor também chamado Victor, desobrenome Hugo - Victor Hugo (1802-1885) -, e quemais tarde iria escrever a obra que o tornou célebre:a história de um homem deormado que se tornaherói de uma cidade, O corcunda de Notre Dame. 

No garoto selvagem, tanto o davida real como o do flme permaneceu umadúvida se sua incapacidade cognitiva, suainteligência, era determinada por atoresgenéticos ou por atores ambientais, daalta de comunicação em seus primeiros

anos de vida, tendo sido estudado até pelopsicanalista Bruno Bettelheim, para quemo menino era tão somente autista, e poesta razão havia sido abandonado por seuspais12. A questão não resolvida, no caso, erase o autismo era determinado pela condiçãoinata, ou adquirida durante os anos de totaabandono da convivência humana. Assimnem Pinel, nem Itard; nem Rousseau, nemDarwin; a questão da inteligência continuavaem aberto...

3. Revolução científco-tecnológicaNo fm do século, na passagem

do século XX ao século XXI, a década de1990 oi defnida pelo então Presidentedos EUA, George Bush, como a “décadado cérebro”. Este é o setor de ponta quevem desenvolvendo, com grandes apoiosinstitucionais, principalmente as decisivasverbas, pesquisas importantes sobre ouncionamento do cérebro, que vinha serealizando lentamente desde as pioneiraspesquisas de Thomas Willis em Oxord13, queteve como aluno o jovem ainda aspirante amédico John Locke, mas que só obteve umdesenvolvimento extraordinário no períodoentre-guerras do século XX, e se somou aoutros desdobramentos após a II GuerraMundial com o surgimento dos primeiroscomputadores.

Na década de 50 do século XX, com

a participação de proessores como MarvinMinsky, é criada no Dartmouth College em1956 a cadeira de Inteligência ArtifcialBastaram alguns anos para que as pesquisasenvolvessem, de orma interdisciplinaroutros departamentos, outras universidadesbuscando unir cibernética, inteligênciaartifcial, ciências ísicas, ciências humanas eciências da inormação:

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“Encontraram um nome para a designar: cognitivescience em inglês, ciências cognitivas em português. Otermo nascera. Estava-se a meio dos anos 70, e o cadinhointerdisciplinar em que a orja do espírito soprara e

 parecia como que ressuscitado de outro cadinho que jáora animado trinta anos antes” 14.

Com o surgimento das ciências cognitivas,

de caráter interdisciplinar como visto, mais dúvidassurgiram do que respostas, sempre na relaçãoentre cérebro e mente, entre capacidade orgânica eaprendizado. A questão da inteligência encontravaum novo contexto cultural e o surgimento de umadisputa acadêmica que parece vir a ser a marca dapolêmica científca do século XXI. De uma ascinantepolêmica que o desenvolvimento mais específco daneurociência15, com a participação de neurobiólogosprincipalmente, começa a dialogar com as questõesflosófcas indicadas desde o Iluminismo, de Descartes

a Locke, de Rousseau a Kant, de Marx a Freud, deDarwin a Piaget.

Centros de pesquisa sobre a inteligênciaoram criados, sendo o mais amoso o de Harvard,sob coordenação do proessor Howard Gardner, quedesenvolveu sua teoria das inteligências múltiplas, erealizou um proundo estudo sobre o impacto, que elechama até de revolucionário, ocasionado pela “novaciência da mente”. Gardner chega até se questionar sea neurociência não vai devorar nos próximos anos a

ciências cognitivas16

.Conceitos como o de “inteligência emocional”ou “inteligência cultural” também ganham destaque.O certo é que, na perspectiva que marcará o séculoXXI, onde o capital intelectual será decisivo, e aeducação undamental, a questão da inteligêncianão só não perderá sua importância, como poderá vira ser a questão central, unifcando várias rentes depesquisa, em que as separações entre conhecimentohumanístico, biológico ou ísico sejam coisas dopassado17.

O canto do pardalNa relação entre condições genéticas e papel

do ambiente no desenvolvimento da inteligência,Howard Gardner comenta e analisa os estudos daneurociência com o canto dos pássaros, de uma certaorma demonstrando os resultados de pesquisas comoa que havia sido proposta por Kant no fnal do séculoXVIII, e que abre este texto.

De um lado, a confrmação de que aorigem do canto nos pássaros realmente, oque não é novo, diere de uma espécie paraoutra. Mas, em vários casos, o canto da espécieé ruto de uma herança inata do pássaro,pois há espécies que sem ter contato algum

com outros da mesma espécie depois de umtempo, ou mesmo no caso de surdez desde onascimento, entoará o canto tal qual os queviveram entre os iguais.

Fazendo aqui, para concluir, umarelação entre o canto do pardal e o garotoselvagem, Kant apontou uma relação entredesenvolvimento intelectual e educação deuma maneira muito clara, e que remete - mesmotendo escrito alguns anos antes da descobertado garoto selvagem, provavelmente sem

sequer ter tido conhecimento sobre o atoposteriormente - às possibilidades cognitivasde Victor de Aveyron:

  Não há ninguém que, tendo sido abandonadodurante a juventude, seja capaz de reconhecer nasua idade madura em que aspecto oi descuidado,se na disciplina ou na cultura (pois que assim podeser chamada a instrução). Quem não tem culturade nenhuma espécie é um bruto; quem não temdisciplina ou educação é um selvagem. A alta dedisciplina é um mal pior que de cultura, ao passode que não se pode abolir o estado selvagem ecorrigir um deeito de disciplina18.

Por outro lado, hoje se sabe queum pardal, dependendo da espécie, emque pese a importância de Kant na história

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do pensamento humano, nunca poderá cantar, pormais que tenha os melhores “proessores” entre ospássaros; pois em alguns casos depende da siringe– correspondente no pássaro às cordas vocais noshumanos – que permite o canto19. É claro que Kantnão tinha obrigação de saber disso: o conhecimento

científco em sua época era extremamente limitadocomparado ao nosso, assim como nosso conhecimentoserá visto como ridículo nos próximos séculos. Risívelnão é Kant ou Rousseau, e sim a pretensão de que averdade não dependa do contexto.

Mas também não é totalmente certo queo texto de Kant deva ser lido apenas como umametáora, uma bela metáora, ao modo das ábulas deEsopo, como histórias de animais antropomorizados.É preciso que a pesquisa esclareça a relação dacapacidade cognitiva, seja de pássaros, chimpanzés

ou humanos, com o uncionamento do cérebro,com o ambiente e a herança genética. Assim comoé preciso muito cuidado, o que a ciência já az, entrecomparações de espécies muito distintas.

A história do garoto selvagem de Aveyron,por mais misteriosa que seja, é um bom pretextopara um diálogo interdisciplinar que está apenas emseu início. E qualquer reducionismo, seja de ordemmoral conservadora, seja de undo dogmáticodarwinista, não contribui muito para o avanço daspesquisas. Ainal, ica aqui, à guisa de conclusão,embora tudo isto deva ser visto como um ponto departida, o alerta do grande estudioso do assunto,Howard Gardner:

“Pararaseando-se Wittgenstein, pode-se conhecertodas as conexões cerebrais envolvidas na ormação deconceitos, mas isto não ajudará em nada a entender oque é um conceito”20.

Notas  1Cada um por si e Deus contra todos, título original do flme de Werner

Herzog, que no Brasil oi intitulado “O Enigma de Kaspar Hauser”(ALEMANHA, 1974).

2Immanuel Kant. Sobre a pedagogia. Tradução de Francisco Cock Fontanella.Piracicaba, SP: Editora UNIMEP, 2006, pág. 15.

3Idem, ibidem, pág. 15.  4Para um conhecimento em detalhes do episódio, dois lvros sãoundamentais: Thierry Ginestre. Victor de L’Aveyron, Dernier enant sauvage, premier enant ou. Paris: Hachette, 1993; e Roger Shattuck. The orbidden

experiment . The story o the Wild Boy o Aveyron. New York: Kodansha,

1994.5C. Jean-Marc Itard. Da educação de um homem selvagem ou dos primeiros

desenvolvimentos e morais do Jovem Selvagem de Aveyron (1801). In: Luci

Banki-Leite e Izabel Galvão (orgs.). A educação de um selvagemA experiência pedagógica de Jean-Marc Itard. São PauloCortez, 2000, pp. 123-178.  6Pode ter sido por este papel, como também pela flmografade Truaut, que ele tenha sido convidado pelo cineastanorte-americano Steven Spielberg para participar no flme“Contatos imediatos do terceiro grau”. Spielberg, como se sabetambém tem na inância um de seus mais importantes temas,assim como o da inteligência, o que realiza com maestria em“Inteligência Artifcial” (“A.I.”, 2001), cujo projeto original era deStanley Kubrick, e que poderia ser aqui comparado ao “GarotoSelvagem”, de Truaut.

7As outras, como se sabe, oram o próprio cinema e asmulheres...  8Principalmente sobre o impacto na religião com relação àexistência de Deus. Sobre isto, ver o best-seller polêmico dodarwinista radical Richard Dawkins: Deus, um delírio. Traduçãode Fernanda Ravagnani. São Paulo: Companhia das Letras2007.

9 A alsa medida do homem. Tradução de Valter Lellis SiqueiraSão Paulo: Martins Fontes, 2003, pág. 153.

10Um dos trabalhos mais importantes de Jean Piaget sobrea inteligência oi publicado em rancês no ano de 1947: LaPsychologie de l’intelligence.

11EYSENCK, Hans Jurgen; KAMIN, Leon. O grande debate sobrea inteligência. Tradução de Maria Julieta de Alcântara CarreiraPenteado. Brasília: Ed. Unb, 1982, p. 98.  12Sobre esta questão, há um livro extraordinário de BrunoBettelheim, que dedicou muitos anos de sua vida no tratamentode crianças autistas, além de seus amosos estudos sobre oscontos de adas:   A ortaleza vazia. São Paulo: Martins Fontes1987; principalmente o capítulo intitulado “Crianças-lobo”.  13“Explicar para que serve o Cérebro é tarea tão diícil quandoretratar a Alma, sobre a qual se costuma dizer que tudoentende, salvo a si mesma” (Thomas Willis, Anatomia do cérebro1664). Sobre esta história, ver Carl Zimmer.  A antástica históriado cérebro. O uncionamento do cérebro humano. Tradução de

Regina Lyra. Rio de Janeiro: Elesevier, 2004.14Jean-Gabriel Ganascia.   As ciências cognitivas. Tradução de

Alexandre Emílio. Lisboa: Instituto Piaget, 1999, pág. 35.  15No Brasil, há que se destacar o papel pioneiro depesquisadores em neurociência, entre tantos, comoRoberto Lent, Miguel Nicolelis e Suzana Herculano-Houzel, que se dedica ainda a uma importante divulgaçãocientíica através de palestras, cursos, livros e artigos em  jornais, como a que realiza quinzenalmente nas páginado suplemento Equilíbrio do jornal Folha de S. Paulo. Nãoé diícil supor, e torcer, que o 1º Nobel do Brasil possa videsta área...  16Ver principalmente A nova ciência da mente . Uma históriada revolução cognitiva. Tradução de Cláudia Malbergier

São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995, pp300-303.

17Sobre isto, ver Cultura Geral . Tudo o que se deve saberde Dietrich Schwanitz. Tradução de Beatriz Silke Rose et alSão Paulo: Martins Fontes, 2007, principalmente o capítulo“Inteligência, talento e criatividade”, pp. 435-444.  18Immanuel Kant. Op. Cit., pág. 16.  19Devo esta inormação técnica à minha sobrinha, VanessaAparecida Feijó de Souza, estudante de veterinária naUnesp de Botucatu, que obteve a inormação de um uturoornitólogo.20Op.Cit., pág. 301.

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Martin Cezar Feijó

Proessor de Comunicação Comparada

na FACOM-FAAP. Doutor em Ciências daComunicação (ECA-USP) e ormado emHistória (FFLCH-USP). Coordenador dePesquisa na FACOM-FAAP e proessor-pesquisador da pós-gradução emEducação, Arte e História da Cultura noMackenzie. Autor de vários livros, entreeles, O revolucionário cordial (Boitempo/FAPESP, 2001).

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