Corpos Marcados

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A linguagem das tatuagens.

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    CORPOS MARCADOS: MDIA OU MODISMO?

    Lucila Ferreira Gandra Larissa Roberta Fernandes Ortega Edinelsow Ribeiro de Queiroz Olivia Rotta

    Carina Michele Roque da Silva

    Curso: Licenciatura Letras Polo: Lafaiete

    Orientador: Luis Cludio Dallier

    RESUMO O presente trabalho teve sua origem numa indagao sobre a natureza e o significado das frequentes modificaes corporais que vemos nos dias de hoje, em especial as tatuagens. Nessa procura, trilhamos diversos caminhos e enfoques, procurando reter os conceitos de Linguagem, tanto da Lingustica como da Semitica, alm de adentrarmos em seu aspecto psicanaltico.

    Palavras-chave: Linguagem, Corpo, Identidade, Tatuagem.

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    INTRODUO

    Podemos imaginar que as tatuagens sejam to antigas quanto a civilizao j que, em alguns dados arqueolgicos, encontramos citaes que evidenciam sua existncia, em mmias do Egito, h mais de 2.500 a.C. e tambm entre os nativos da Polinsia, conhecida a sua prtica nos ritos de passagem e eventos religiosos, simbolizando status, coragem e poder. Apesar dos diferentes significados e motivaes, a verdade que as tatuagens sempre estiveram presentes em diferentes momentos e partes do mundo.

    No Ocidente,, onde as marcaes estticas do corpo tinham sido banidas pela religio judaico-crist, ressurgiram a partir de 1970, chegando, nos dias de hoje, a uma enorme quantidade de modificaes corporais. evidente que a volta das tatuagens, at ento circunscrita a alguns crculos como marinheiros e presidirios, e tambm por isso carregadas de um forte componente anti-social, acabou por desencadear polmica em diversos mbitos pois se na atualidade essa prtica vista por alguns como um grito de liberdade, um ato de afirmao do pleno direito ao prprio corpo, para outros, as tatuagens relembram rituais de excluso poltica e social (RAMOS, 2006, XV).

    claro que os corpos marcados de hoje, por atos de vontade, diferem muito das tatuagens de Auschwitz, na Polnia, durante a Segunda Guerra Mundial, que segundo Grimberg,

    [...] eram marcas ou nmeros de identificao, aplicadas fora nos prisioneiros, principalmente judeus [...] e eram mensagens tambm, comunicando a quem quisesse entender que havia dor no mundo e, mais que dor, que se havia perdido o sentido de humanidade (GRIMBERG apud RAMOS, 2006, XI).

    Esquecidas essas injrias, atualmente, para o mercado da aparncia e da esttica, o corpo se tornou espetculo e podemos verificar que, muitas vezes, este no s um espao de teatralizao, mas tambm um meio de exteriorizao (SILVA, 2009, p. 14). Mais ainda,

    O eu, exteriorizado desse modo, exerce uma tirania da esttica, visto que o corpo capturado cada vez mais pelo olhar do Outro, provocando no s um esvaziamento da interioridade, no sentido de um espao ntimo e privado, da prpria subjetividade, como tambm as novas modalidades de somatizaes psquicas anorexias,

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    distimias, bulimias, etc., conformando as novas bioidentidades (SILVA, 2009, p. 16).

    Vemos assim que o corpo e as chamadas novas identidades urbanas foram colocadas no centro das recentes produes acadmicas, embora para Maluf (2002, p. 87), a concepo de uma correspondncia entre dois dualismos corpo/esprito e natureza/cultura faz com que essas abordagens acabem por reproduzir aquilo que criticam, ainda assim, esse foco na corporalidade pode ser estendido para a anlise de uma srie de fenmenos contemporneos.

    Foi ento, a partir de alguns relatos de pessoas tatuadas, quando pudemos constatar diversos significados e motivaes, e posteriormente, atravs de extensa pesquisa bibliogrfica, que passamos a identificar as tatuagens, no s como material semitico, mas tambm como um meio de comunicao, uma forma de linguagem, gnero de discurso pois acreditamos que, atravs da superfcie da pele, diz-se ou tenta-se dizer alguma coisa.

    1. UM HOMEM QUE DESENHA, FALA E SIMBOLIZA

    A bem da verdade, a lngua to integrada em ns, pois afinal com ela, via de regra, que nos comunicamos, que temos a tendncia a consider-la como a nica linguagem possvel. Isso to evidente que na maior parte das vezes, no chegamos a tomar conscincia de que o nosso estar-no-mundo, como indivduos sociais que somos, mediado por uma rede intrincada e plural de linguagem (SANTAELLA, 2009, p. 2).

    No entanto, muito provvel, que no incio da histria do homem, a primeira forma de comunicao tenha sido por desenhos, como alis nos mostram alguns registros, mas acreditamos, que mesmo os primeiros agrupamentos humanos no se restringiram a essas pinturas em grutas, mas que tambm recorreram a outros modos de expresso com objetivos de comunicao e ainda, ao considerarmos a linguagem verbal escrita, verificamos a existncia no somente da codificao criada e estabelecida no Ocidente, mas alm dessas, outras formas, como os hierglifos, pictogramas e ideogramas, embora limitadas pelo desenho (SANTAELLA, 2008, p. 2).

    A esse respeito, encontramos em Rousseau (1983), um interessante estudo sobre a origem das lnguas, no qual, alm de demonstrar as diversas etapas da formao

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    das lnguas, afirma que a introduo de imagens e o efeito das cores possuem muito mais energia do que discursos, por mais eloquentes que sejam. Esse filsofo chega mesmo a delimitar as trs maneiras originais da escrita ou seja, a primeira quando os prprios objetos eram pintados, a segunda, uma representao por caracteres e a terceira, que segundo esse filsofo o nosso modo de escrever, atualmente contestado pela argumentao da arbitrariedade da lngua, Rousseau diz que essa terceira maneira a [...] decomposio da voz falada num certo nmero de partes elementares (ROUSSEAU, 1983, p. 167).

    Mas a partir de Saussure, j na primeira dcada do sculo XX, com seu curso de Lingustica Geral, na Universidade de Genebra, que vemos surgir uma diviso nos estudos cientficos da Linguagem, quando ento se consolida a Lingustica como cincia da linguagem verbal, ou seja, a lngua como sistema ou estrutura regida por leis e regras especficas e autnomas (SANTAELLA, 2009, p. 16).

    Contudo, com a preocupao explcita desse pensador em fundar uma cincia da linguagem verbal, segundo Santaella (2009), foram rompidas, de sada, todas as veias de indagao das relaes inseparveis que a linguagem mantm com o pensamento, as operaes da mente, a ao e com o intrincado problema da representao do mundo (SANTAELLA, 2009, p. 18), e para essa autora, a Semitica de Peirce fez exatamente o caminho inverso ao considerar que

    [...] todas as realizaes humanas (no seu viver, fazer, lutar, na sua apreenso e representao do mundo) configuram-se no interior da mediao inalienvel da linguagem, entendida esta no seu sentido mais vasto (PEIRCE, apud SANTAELLA, 2009, p. 18).

    Assim, a partir da Semitica de Peirce, vamos encontrar a noo de signo que, conforme Santaella esclarece, o signo no o objeto em si, ele apenas o representa porque carrega esse poder de representao e de certa forma, substitui uma outra coisa, diferente dele (SANTAELLA, 2009, p. 12).

    Nesse sentido, tambm Bakhtin (2002), salienta que todo corpo fsico pode ser percebido como smbolo e essa imagem, ocasionada por um objeto fsico, tambm um produto ideolgico pois sem deixar de fazer parte da realidade material, passa a refletir e a refratar, numa certa medida, uma outra realidade (BAKHTIN, 2002, apud BRAGA, 2009, p. 136).

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    Esse autor ainda esclarece que o signo, ao refletir e refratar uma outra realidade, poder distorc-la ou tom-la de um ponto de vista especfico ou seja, segundo ele, Todo signo est sujeito aos critrios de avaliao ideolgica (BAKHTIN, 2002, apud BRAGA, 2009, p. 137).

    preciso ento uma certa inquietude diante de prticas como as inscries das tatuagens que por j serem to familiares no mais nos importamos com elas. No entanto elas se multiplicam, embora silenciosas, gritam. Para atender esse apelo podemos nos apropriar do tratamento que Foucault d ao conjunto dos discursos ou seja, considerando as tatuagens como enunciados, precisamos ir alm, pois trata-se de

    [...] reconstruir um outro discurso, de descobrir a palavra muda, murmurante, inesgotvel, que anima do interior a voz que escutamos, de restabelecer o texto mido e invisvel que percorre o interstcio das linhas escritas e, s vezes, as desarruma (FOUCAULT, 2008, p. 31).

    ento, a partir desses pressupostos, que deteremos nossa ateno nos corpos que falam pelas tatuagens, fugindo de uma considerao imediata e de tom-las como prticas homogneas.

    2. CORPOS MARCADOS

    Se em um passado no muito distante, os indivduos tinham bem estruturadas suas experincias de vida, com claros contornos para o fluxo instvel da vida, podendo, assim, sentir-se seguros, o sujeito contemporneo, ao contrrio, tem como regra a provisoriedade e a gesto do presente, com nfase na sua disponibilidade de adaptao a um mundo de incerteza crnica que segundo Bauman, deve-se a diversos fatores que vo desde o desmanche dos grandes blocos de poder, passando pela prevalncia do mercado capitalista at o esgaramento das relaes familiares, fazendo com que as relaes interpessoais sejam regidas pela lgica do mercado e seu exerccio assuma um carter de desfrute interesseiro, imediato e efmero de experincias agradveis (LIMA, 2005, p. 22-25).

    Na contemporaneidade, a primazia dada aos desejos individuais, ao livre curso das necessidades instintivas, em detrimento da cultura, de suas instituies e normas mas, se anteriormente esses indivduos se sacrificavam em prol da autoridade

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    das tradies gerando assim, segundo a noo freudiana, o mal-estar na civilizao, podemos dizer que esse mal-estar continua, embora hoje, como resultante da incerteza e da falta de indicadores estveis de rumos a seguir ou seja, se o mal-estar era causado pela priso s tradies, agora ele surge como a insegurana por falta delas (LIMA, 2005, p. 23).

    O chamado indivduo ps-moderno, vivendo em um mundo esvaziado de valores, utiliza a estratgia do carpe diem, pois treinado e moldado por uma sociedade de consumo que rejeita muitas das atitudes valorizadas no passado como lealdade aos costumes estabelecidos, tolerncia rotina e boa vontade em adiar a satisfao, por exemplo, acaba se vendo em um ambiente fluido, em constante mudana (BAUMAN, 2005, p 40-50), concluindo, assim, que

    Quando comparada ao tempo de vida dos objetos que servem existncia humana e s instituies que a estruturam, assim como ao prprio estilo de vida, a existncia humana (corprea) parece ter a maior expectativa de durao na verdade, parece ser a nica entidade com uma expectativa de vida crescente, e no em processo de rpido encurtamento (BAUMAN, 2005, p. 80).

    Podemos dizer que o problema atual de identidade, a perda de nossas ncoras sociais, o desejo de segurana, acabam por desencadear uma busca desenfreada por identificao, um ns a que se possa pedir acesso. Afinal, a pergunta quem sou eu continua presente, e essa luta por uma identidade surge como uma reao a uma possvel dissoluo do eu (BAUMAN, 2005, p. 30).

    No a toa que, vivenciadas pela nossa sociedade, atravs do apelo da mdia, da moda, o uso do corpo modificado passa a ser um novo lugar que o sujeito contemporneo precisa ocupar no registro simblico (LIMA, 2005, p. 25), pois o sentido do eu, da sua existncia em sociedade e de pertencimento, veem-se transfigurados. Sem a constncia de entidades que possam garantir lastros estveis e slidos, o ser humano v a fragmentao de sua imagem e identidade pessoais (LIMA, 2005, p. 25).

    Marcar o corpo ento, poderia ser identificado, justamente, como uma fuga a essa identidade de palimpsesto to bem nomeada por Bauman (1998, apud LIMA, 2005, p. 27), referindo-se ao papel de escrita usado vrias vezes pelo apagamento ou raspagem do texto anterior, afinal portar uma tatuagem tambm uma forma de se constituir como determinado sujeito (MALUF, 2002, p. 96) e ela, por no ser

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    facilmente apagvel, como inscrio permanente na carne, satisfaz essa necessidade, pois de acordo com o psicanalista Contardo Calligaris Mais do que gostaramos de admitir, ns, ps-modernos, nos tornamos gado sem dono, mas por sermos humanos, lamentamos nossas marcas perdidas (CALLIGARIS, 1996, apud SILVA, 2009, p. 16).

    Segundo Mauss (1974), as maneiras como os homens sabem servir-se de seus corpos fazem parte das representaes coletivas, so formas pelas quais a vida social se inscreve em e se utiliza desse mais natural instrumento (MAUSS, 1974, apud MALUF, 2002, p. 89).

    Nesse sentido, os corpos marcados pelas tatuagens devem ser vistos a partir de diversos ngulos e mltiplas inseres, inclusive como mdias, voltados divulgao dessa arte, no caso de concursos e exposies em revistas especializadas.

    No entanto, sendo o homem um ser que interpreta e interpretado, elas no podem ser focadas unicamente como imagens, o que representam a princpio, pois conforme Bakhtin salienta, referindo-se foice e ao martelo como emblemas da Ex-Unio Sovitica, um instrumento pode ser convertido em signo ideolgico ou seja, as tatuagens precisam ser compreendidas tambm como emergentes de uma situao scio-histrica, como signo ideolgico que nasce das relaes sociais, e ainda, como um conjunto de elementos significantes (BAKHTIN, 2002, p. 32 apud BRAGA, 2009, p. 137).

    Mais ainda, ao considerarmos a tatuagem como gnero, ela ir refletir, atravs do enunciado, tomado como unidade do discurso e portanto nico, a individualidade do sujeito.

    Cabe aqui uma diferenciao, conforme proposta pela teoria bakhtiniana (1985), entre os gneros discursivos ou seja, segundo essa teoria, eles poderiam ser divididos em dois grandes grupos a saber, gnero primrio ou simples, no caso da comunicao verbal cotidiana, e gneros secundrios ou complexos, expressos nas comunicaes culturais como as artsticas, cientficas etc. (BRAGA, 2009, p. 137).

    No entanto, acreditamos na possibilidade da existncia de um terceiro gnero que seria a comunicao inconsciente e do inconsciente do sujeito, expressa em muitas tatuagens. Sendo assim, haveria uma nova categoria dos gneros discursivos, o que nos daria

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    a) gnero primrio onde se incluiriam as tatuagens com objetivos de identificao de tribos e faces, cuja leitura clara e bvia para os integrantes daqueles grupos especficos;

    b) gnero secundrio: tatuagens com intenes artsticas para concursos, revistas, exposies etc.; e

    c) terceiro gnero: tatuagens que podem revelar o interior do sujeito, ainda que no intencionalmente, mas que ainda assim, falam dos seus desejos mais ntimos.

    Conclumos assim, que semelhana de um espelho, as marcas tatuadas no corpo permitem uma reflexo, como se fosse um outro dentro de si que se interpe entre ele e o mundo, embora elas tambm indiquem uma opacidade, um outro que deixa invivel a sua completude, e na repetio continuam as buscas por uma unicidade, sempre permeadas por um fascinante prazer e por um gozo difcil de discernir (BENTO, 2004, p. 2008).

    Lacan nos diz, que a capacidade abstrata do signo, o poder estar no lugar de outra coisa, poder representar essa coisa, mesmo que esteja ausente, trazendo e construindo o pensamento para o outro, so propriedades humanas, e que o corpo, do ponto de vista simblico, o que aponta para o estabelecimento dessa relao (LACAN apud CUKIERT; PRISZKULNIK, 2002, p. 144). Nesse sentido,

    Se h algo que a experincia analtica nos ensina, justamente o que se refere ao mundo da fantasia. Na verdade, se no aparece que ele tenha sido abordado antes da anlise, que no se sabia em absoluto como se safar disso a no ser recorrendo extravagncia, anomalia, de onde partem esses termos, essas adscries de nomes prprios que nos fazem chamar isso de masoquismo, aquilo de sadismo. Quando colocamos esses ismos, estamos no plano da zoologia. Mas, mesmo assim, h algo de completamente radical - a associao, no que est na base, na prpria raiz da fantasia, dessa glria, se que posso me exprimir assim, da marca. Falo da marca sobre a pele, onde se inspira, nessa fantasia, o que nada mais que um sujeito que se identifica com um objeto de gozo. Na prtica ertica que estou evocando, a flagelao [...] o gozar assume a prpria ambigidade pela qual no seu plano, e em nenhum outro, que se percebe a equivalncia entre o gesto que marca o corpo, objeto de gozo. Gozo de quem? Ser aquele que porta o que chamei de glria da marca? seguro que isto queira dizer gozo do Outro? Claro, uma das vias de entrada do Outro em seu mundo, e ela, certamente, no refutvel (LACAN, 1969-1970/1992, p. 47, apud BENTO, 2004, p. 206-207).

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    Vemos assim que a fantasia, fazendo o cruzamento interior e exterior, usa o simblico no apenas para se expressar, mas estabelece uma estreita relao com necessidades, instintos e desejos, fazendo com que a tatuagem, como um signo materializado no corpo, seja parte integrante do signo (BRAGA, 2009, p. 137-138) ou seja,

    a juno de traos, tintas e pele que faz com que aquela determinada regio corprea, antes limpa ou vazia, passe a simbolizar semanticamente outra coisa. Essa outra coisa, seja desenho, grafismo, aforismo, passar a refletir e refratar toda carga ideolgica que esse signo agrega (BRAGA, 2009, p. 137-138).

    E mais, esse corpo no apenas suporte para inscrio de um texto mas como mdia, tambm constitui o enunciado e essa interao na prxis da atividade humana que caracteriza o estilo e, concomitantemente, o enunciado desse gnero discursivo (BRAGA, 2009, p. 143). Desta forma, sendo o sujeito um ser escrito, escrita aqui entendida no sentido abrangente, tambm o suporte vivo que traz em si as marcas que possibilitam sua leitura, que desencadeiam seu processo constitutivo e por essa razo, mesmo que essas marcas se repitam, nunca sero a mesmas (BRAGA, 2009, p. 146 ), alm do que, ainda que os desenhos e os grafismos sejam os mesmos, a sua individualidade localiza-se no s no corpo em que inserida como tambm em qual regio desse corpo, ou seja, diferentes rgos tatuados podero indicar diferentes formas de textualidade (ORLANDI, 2001, p. 204, apud BRAGA, 2009, p. 145-146).

    3. TATUAGENS: UMA VISO PSICANALTICA

    Como bem demonstrado por Freud, o inconsciente que determina a postura de cada sujeito no momento em que ele se abre e se temporaliza no mundo e a linguagem a resultante dessa faculdade simblica do homem (LONGO, 2006, p. 14).

    Podemos afirmar inclusive, que a prpria fundao da psicanlise est intrinsecamente ligada linguagem pois quando Freud viu fracassar a hipnose no tratamento de uma paciente, Anna O., que pediu a ele que a deixasse falar em vez de hipnotiz-la, mudou sua tcnica de hipnose para a associao livre, fundando assim o lugar do analista e a prpria psicanlise. Freud tambm percebeu que apesar de seus

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    pacientes possurem uma fala lacunar, utilizando-se de uma sintaxe com falta de palavras, impossibilitados de exprimir seus desejos, esta fala funcionava como desrecalcamento, pois repleta de metforas e metonmias, era em tudo similar aos sonhos (LONGO, 2006, p. 20).

    Como a criatividade humana reside na sua faculdade de simbolizao realizada pela linguagem, como seres insatisfeitos que somos, como sempre nos falta alguma

    coisa, utilizamos smbolos na tentativa de preencher esses vos. Segundo Dunker (1996), a forma reificada ou fetichizada do personagem

    sempre uma imagem onde o sujeito se aliena em uma forma-objeto e esta posio, do ponto de vista da psicanlise, remete tanto teoria do narcisismo de Freud como releitura, de Lacan, dessa teoria O Estdio do Espelho (DUNKER, 1999, p. 2).

    importante verificar que para Freud, o eu (ego) se constitui a partir de uma identificao com a imagem do seu corpo, acreditando ser o prprio eu, e Lacan (2000), afirma que essa identificao no se d em um momento preciso, um drama que vai da insuficincia precipitao (LACAN. 2000, p. 67, apud DUNKER, 1996, p. 2), Segundo essa teoria, o estdio do espelho compreende trs tempos que resumidamente seria: um primeiro, quando a criana no se reconhece na imagem, um segundo quando se confunde com ela (imagem) e um terceiro, que poderia ser encarado como a sntese entre corpo e ego (LACAN, 2000, p. 67, apud DUNKER, 1996, p. 3).

    Nessa teoria afirma-se, que atravs da experincia do espelho que o sujeito ir se identificar com aquilo que refletido e que ele acredita ser ele, constituindo assim, o ego ideal ou seja, no aquilo que ele mas o que desejaria ser, uma imagem mtica, narcisista, incessantemente perseguida pelo homem (BLEICHMAR; BLEICHMAR, 1992, apud MOURA, 1992).

    Lacan, no Seminrio 2 O Eu na Teoria de Freud e na Tcnica da Psicanlise (1954) estabelece um esquema no qual se encontram, cruzando-se numa interseco, o imaginrio e o simblico, identificado como o campo do desejo inconsciente e isso, segundo Dunker, o ponto crucial de simbolizao do objeto pois, consider-lo como simblico admitir ser ele o objeto do desejo do outro, tornando o sujeito o efeito de uma interdependncia de desejos (DUNKER, 1996, p. 7)

    Desta forma, a sntese encontrada na dialtica do sujeito, coloca em jogo uma oposio entre desejo e forma, pois ao se reconhecer em imagens e objetos,

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    materializando seu desejo, o sujeito, na realidade, reconhecido como tal pelo desejo do outro, o que vale dizer que se apaga e se divide como sujeito (DUNKER, 1996, p. 3).

    Alm disso, a partir dessa dialtica entre ser um corpo e ter um corpo que surgem as alternativas de subjetivao, passando a ser um outro dentro do mesmo e ao inscrever, gravar imagens na sua carne, o sujeito faz a ligao necessria entre uma interioridade invisvel porm real, com uma exterioridade visvel, porm ideal (DUNKER, 1996, p. 4).

    Por que ideal? Porque esse corpo e essa imagem que sou precisa ser reconhecida pelo outro para que eu possa me reconhecer, o que no se d com neutralidade, mas ideologicamente, este espelho ideolgico me devolve tanto aquilo que sou quanto aquilo que no sou (DUNKER, 1996, p. 9) mas principalmente, o que gostaria de ser, porque penso que o que esperavam que eu fosse. O que vemos ento, que na incorporao do objeto, se institui o superego, deixando patente a ligao deste com o ideal de eu e com o eu ideal (DUNKER, 1996, p. 9).

    CONCLUSO

    Podemos dizer que tanto Freud como Lacan estabelecem fundamentais relaes entre o eu e o corpo na identidade do sujeito, como tambm podemos concluir que na simbolizao de imagens inscritas na carne, intencionalmente, essas surgem na instituio do superego a partir de um princpio interno, o que em outras palavras quer dizer que a leitura que pode ser feita, psicanaliticamente, abrange as trs instncias do sujeito, id, ego e superego.

    Alm desses pensadores, tambm Jung, pois para ele uma palavra ou uma imagem simblica quando implica alguma coisa alm do seu significado manifesto e imediato e mais, esta palavra ou esta imagem tm um aspecto inconsciente mais amplo, que nunca precisamente definido ou de todo explicado (JUNG, p. 20). Alm disso, ainda segundo esse psicanalista, H, ainda, certos acontecimentos de que no tomamos conscincia. Permanecem, por assim dizer, abaixo do limiar da conscincia. Aconteceram, mas foram absorvidos subliminarmente, sem nosso conhecimento consciente (JUNG, p. 23), mas assim como o sonhador que segundo Freud, se encorajado a comentar sobre as imagens dos seus sonhos, acaba por se entregar, o desejo e o enunciado que emana das marcas no corpo, podem revelar o fundo

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    inconsciente, tanto no que diz quanto no que deixa deliberadamente de dizer (JUNG, p. 27).

    Esse fato ficou bastante evidente a partir de algumas conversas que tivemos com indivduos tatuados, nos levando a encarar as tatuagens tanto como um anseio de metamorfose decorrente de um conceito de liberdade, como uma transferncia necessria para o equilbrio entre o imaginrio e o real.

    Esse foi o caso de A. A., 25 anos, jovem da nossa convivncia, que trabalha como policial em Ribeiro Preto. Sua tatuagem, no brao direito, a primeira vista poderia ser entendida como um tribal, to comum nessas interferncias corporais. Mas ele nos revelou que no se tratava disto, e sim a cpia de um desenho, marcado a fogo, no decorrer da histria de um personagem de videogame, quando o mesmo adquiriu poderes de anjo, por merecimento, na sua luta contra o demnio.

    Nesse relato, ainda que analisado superficialmente, vemos a possibilidade de confirmar nossas suposies ou seja, a necessidade do eu interior se deixar vir a tona, revelando desejos, evidenciando a procura por uma identificao, e ao se identificar, ao inscrever na prpria carne a imagem que isso simboliza, se constituir como o sujeito idealizado. Partindo dessa premissa, o rapaz citado, ao se ver naquele personagem, gravando o mesmo smbolo em seu corpo, estaria, por assim dizer, se transformando em anjo pronto para a luta, demonstrado, inclusive, por sua escolha profissional.

    Bem mais evidente foi a tatuagem de uma outra jovem, I. G., 17 anos, estudante de Ribeiro Preto, que aps alguns meses de terapia com um psiclogo, motivada por seu envolvimento com drogas, tatuou em suas costas uma enorme Fnix. Embora tendo a conscincia de que o seu desejo era o de renascer das cinzas como a personagem mitolgica, conforme nos revelou em uma conversa despretensiosa, sua necessidade de marcar o corpo com esse smbolo de por assim dizer, superao, pode ser encarado, como o registrado na letra de Tatuagem de Chico Buarque, quero ficar no teu corpo, feito tatuagem, que pra te dar coragem, pra seguir viagem, ou seja, ao gravar aquela personagem em seu corpo, estaria dizendo sou como a prpria Fnix, posso renascer para uma nova vida.

    Assim constatamos que aliada a outras motivaes, existe uma inquietao que, segundo Pignatari (1974), apoiado nas teses de Marshall McLuhan, deixa evidente a crise de primazia do sistema verbal e de sua lgica linear-discursiva, pois ainda que no

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    exista uma linearidade de sucesso, o que se v a concomitncia de veculos, antigos e novos (PIGNATARI, 1974, p. 82).

    Tendo encontrado desde estrelinhas e florzinhas, passando por toda gama de tigres e drages, alm de uma infinidade de outras representaes, podemos sempre pens-las em suas associaes imagem-personagem-sujeito embora tenhamos que reconhecer que no existe uma leitura nica para as tatuagens, ou seja, elas tanto podem representar o desejo de pertencimento, no caso da incluso em tribos urbanas, como tambm evidenciarem uma busca individual de transposio de estados com a incorporao de novas identidades, ou pelo menos uma tentativa.

    Mais do que isso, em cada imagem, em cada desenho, em cada grafismo marcado nos corpos desses sujeitos, transparece a evidncia de que se trata de simples seres humanos, com suas prprias esperanas, temores, objetivos, ansiedades, preconceitos e fraquezas, e que esse, realmente, o mago da questo dos corpos marcados, que fantasiam, porque querem ser, que gritam, porque precisam falar.

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