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2020 CORRUPÇÃO Aspectos sociológicos, criminológicos e jurídicos Coordenação Ronaldo Pinheiro de Queiroz Daniel de Resende Salgado Vladimir Aras

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2020

CORRUPÇÃOAspectos sociológicos,

criminológicos e jurídicos

CoordenaçãoRonaldo Pinheiro de Queiroz Daniel de Resende Salgado

Vladimir Aras

Queiroz-Corrupcao-1ed.indb 3 10/10/2019 13:07:55

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Empurrando a História: combate à corrupção,

mudança de paradigmas e refundação do Brasil

Luís Roberto Barroso1

Sumário: 1. Introdução – 2. Origens e causas da corrupção no Brasil: 2.1. Origens remotas; 2.2. Causas imediatas – 3. O quadro atual da corrupção no Brasil: 3.1. Corrupção estrutural e sistêmica. O pacto oligárquico; 3.2. A reação da sociedade. Mudanças de atitude, na legislação e na jurisprudência; 3.3. A reação às mudanças – 4. Os Custos Da Corrupção – 5. A corrupção é crime violento, praticado por gente perigosa – 6. O papel do direito penal e as consequências da impunidade – 7. Desafios e perspectivas – 8. Conclusão: um novo paradigma.

1. INTRODUÇÃO

Nos últimos tempos, o Brasil tem vivido uma tempestade política, econômica e ética que mudou a percepção da sociedade em relação a muitas questões, notadamente aquelas associadas ao cumprimento da lei e ao combate à corrupção. De acordo com a Transparência Internacio-nal, o Brasil ocupou a 105ª posição no Índice de Percepção da Corrupção de 2018, ao lado de Argélia e Costa do Marfim, num ranking que inclui 180 países. Tratando-se de uma das dez maiores economias do mundo, a posição é constrangedora. Pior: nas últimas pontuações, o Brasil vem caindo vertiginosamente. De fato, em 2006 era o 79º e em 2015, o 69º.

1. Ministro do Supremo Tribunal Federal. Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre pela Universidade de Yale e Senior Fellow na Harvard Kennedy School.

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Luís Roberto Barroso

Em 2017, passamos à 96ª posição e agora caímos ainda mais. É possível, porém, que o aumento da percepção da corrupção não signifique, neces-sariamente, um aumento no volume dos comportamentos desviantes. Pode ser um sinal de que o país deixou de varrer a sujeira para baixo do tapete e passou a enfrentar corajosamente o problema.

Diante desse panorama, a cidadania, no Brasil, vive um momento de tristeza e de angústia. Um desenho do momento atual, baseado na percepção social da corrupção e no impressionante número de escânda-los, pode dar a impressão de que o crime compensa e o mal venceu. Mas seria uma imagem enganosa. O país já mudou e nada será como antes. A imensa demanda por integridade, idealismo e patriotismo que hoje exis-te na sociedade brasileira é uma realidade inescapável. Uma semente foi plantada. O trem já saiu da estação. Há muitas imagens para ilustrar a refundação do país sobre novas bases, tanto na ética pública quanto na ética privada. É preciso empurrar a história, mas ter a humildade de reconhecer que ela tem o seu próprio tempo. E não desistir antes de cumprida a missão.

Neste breve artigo pretendo expor algumas reflexões sobre causas, custos e consequências da corrupção, bem como sobre o momento atual que vivemos no Brasil. Ao fim, ressalto a importância – mas não a proe-minência – do direito penal nesse esforço de contenção dos desvios de dinheiro público, além de mencionar desafios a serem enfrentados e su-gerir caminhos que me parecem promissores.

2. ORIGENS E CAUSAS DA CORRUPÇÃO NO BRASIL

2.1. Origens remotas

A corrupção no Brasil tem origens e causas remotas. Aponto suma-riamente três. A primeira é o patrimonialismo, decorrente da coloniza-ção ibérica, marcada pela má separação entre a esfera pública e a esfera privada. Não havia distinção entre a Fazenda do rei e a Fazenda do rei-no – o rei era sócio dos colonizadores – e as obrigações privadas e os deveres públicos se superpunham. A segunda causa é a onipresença do Estado, com o controle da política e das atividades econômicas, seja pela exploração direta, seja por mecanismos de financiamento a empresas privadas e de concessão de benefícios. A sociedade torna-se dependente do Estado para quase tudo o que é importante, sejam projetos pessoais, sociais ou empresariais. Cria-se uma cultura de paternalismo e compa-drio, acima do mérito e da virtude. O Estado e seus representantes ven-

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Mecanismos internacionais anticorrupção

Vladimir Aras1

Sumário. 1. Introdução – 2. Os primeiros passos da luta transnacional contra a corrupção – 3. Corrupção e lavagem de dinheiro – 4. Os regimes globais de proibição: 4.1. O regime global anticorrupção; 4.2. Índices internacionais de mensuração da corrupção; 4.3. Os direitos fundamentais como componentes dos regimes globais de proibição – 5. Mecanismos multilaterais e supranacionais anticorrupção: 5.1. Mecanismos convencionais e extraconvencionais anticorrupção: 5.1.1. Mecanismos de monitoramento; 5.1.2. Mecanismos convencionais de cooperação e/ou de investigação; 5.1.3. Mecanismos convencionais e extraconvencionais de cooperação: 5.1.3.1. Redes de Ministérios Públicos e redes mistas; 5.1.3.2. Redes de inteligência policial; 5.1.3.3. Redes de inteligência fiscal ou aduaneira; 5.1.3.4. Redes de inteligência de órgãos regulatórios; 5.1.3.5. Redes de agências anticorrupção; 5.1.3.6. Redes de inteligência financeira; 5.1.3.7. Redes de recuperação de ativos; 5.1.3.8. Redes de instituições financeiras internacionais; 5.1.3.9. Centros conjuntos de investigação; 5.2. Órgãos supranacionais de investigação e de cooperação – 6. Sistemas nacionais de sanções: medidas unilaterais de alcance transnacional: 6.1. Jurisdição extraterritorial em matéria de corrupção; 6.2. Leis do tipo Magnitsky; 6.3. O procedimento civil de justificação patrimonial no Reino Unido – 7. Sistema de sanções por organizações internacionais ou por organismos multilaterais: 7.1. Sistema de sanções de organizações internacionais: 7.1.1. O sistema de sanções do Grupo Banco Mundial; 7.1.2. O sistema de sanções do Banco Interamericano de Desenvolvimento; 7.2. Sanções por organismos multilaterais: 7.2.1. Os Princípios de Wolfsberg; 7.2.2. O regime de sanções de entidades do desporto mundial; 7.3. Responsabilidade internacional do Estados soberanos por atos de corrupção.

1. Membro do Ministério Público brasileiro desde 1993, atualmente no cargo de Procurador Regional da República; professor de ciências criminais (UFBA, IDP, Uniceub etc); especialista MBA em Gestão Pública (FGV), mestre em Direito Público (UFPE), doutorando em Direito (Uniceub), ex-Secretário de Cooperação Internacional (2013-2017).

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Vladimir Aras

1. INTRODUÇÃO

As políticas anticorrupção podem assumir várias dimensões: a da prevenção e a da repressão; a sociológica e a normativa; a abordagem da corrupção no setor público ou no setor privado; a corrupção de va-lores e a corrupção econômica; a corrupção política e a corrupção judi-cial; a corrupção doméstica e a internacional. O complexo fenômeno da corrupção – especialmente a corrupção de grande escala ou estrutural (Grand corruption) – tem sido objeto de um número cada vez maior de estudos, pesquisas e tratados.

As relações entre essa corrupção estrutural2, a democracia e o Es-tado de Direito são evidentes e já foram devidamente apontadas por diversos autores. Avulta seu potencial desestabilizador, que é fator de-terminante para violações de direitos e instabilidade política e vícios na economia. As inquietações e o desalinho por que passam diversos paí-ses da América Latina, na esteira do escândalo Odebrecht, ou a Malásia, como consequência do esquema 1MDB, ou ainda a Romênia, em função de uma série de casos de corrupção política, mostram as severas conse-quências que a corrupção profunda – essencialmente crônica e estru-tural – produz em Estados democráticos e ainda mais em democracias já instáveis.

A corrupção estrutural está entranhada no Estado. Nos anos 1980, quando interrogaria pela primeira vez o mafioso ítalo-americano Frankie “Três Dedos” Coppola, o procurador de Roma resolveu começar o seu in-terrogatório de forma provocativa: – “O que é a Máfia?”, perguntou-lhe. Coppola então lhe contou uma história. Três homens se apresentaram como candidatos a um emprego na Promotoria. O primeiro era muito inteligente; o segundo tinha apoio dos partidos políticos; o terceiro era um tolo. Este último conseguiu o cargo. – “Isto é a Máfia”, concluiu Cop-pola.3 A sutil imagem que revela o poder político de que as organizações mafiosas são portadoras serve como mote para aferir o papel da corrup-

2. Para SIMON, a “Grand corruption” é criminalidade de poder político e econômico, que se re-munera às custas do interesse público e que se caracteriza por dominar o Estado de forma su-breptícia, mediante uma intrincada trama entre o setor público e o setor privado, em prol de benefícios recíprocos. SIMON, J.-M. Gran corrupción y la lucha contra la impunidad de la delin-cuencia del poder, Revista Análisis de la Realidad Nacional 7, n. 153, pp. 41–56, 43 et seq. Dis-ponível em: <https://pure.mpg.de/rest/items/item_3033541_2/component/file_3039867/content>. Acesso em 18.jul.2019.

3. STILLE, Alexander. Excellent cadavers: the Mafia and the death of the First Italian Republic. Vintage: Nova York, 2008.

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Cap. 6 • MECANISMOS INTERNACIONAIS ANTICORRUPÇÃO

ção profunda, aquela que resulta da infiltração do Estado por esquemas ilícitos, engendrados em salas escuras (dark rooms) por potentados da política ou da economia.

São notórias as más consequências da corrupção política, a partir do financiamento ilícito de campanhas eleitorais. Também são bem co-nhecidos os efeitos da corrupção sobre as políticas públicas em geral, o que leva à debilitação da segurança pública e da integridade governa-mental como resultado do enfraquecimento dos órgãos de controle e de law enforcement e das agências de justiça. São, por outro lado, cada vez mais estudados os múltiplos nexos entre corrupção e direitos humanos, assim como os efeitos da corrupção sobre o índice de desenvolvimento humano. Países menos corruptos tornam-se mais ricos ou países mais ricos acabam sendo menos corruptos?

Virgolini aclara a questão. Para eles, opostas a essas visões está a que toma como ponto de partida a afirmação de que os atos de corrup-ção são mais do que condutas transgressoras, debilidade moral ou de-sonestidade. Com estas palavras pode-se, diz ele, definir ou qualificar qualquer conduta ilícita. Por outro lado, pressupõe que a corrupção tem importância devido a suas implicações sobre a formação ou sobre a con-figuração dos modos de convivência social escolhidos pela comunidade. A corrupção revela seu poder mais significativo se a entendermos como a introdução no tecido social de formas irregulares de relação social.4

A corrupção é um fenômeno extremamente complexo que é deter-minado por uma grande variedade de fatores sociais, econômicos, cultu-rais, políticos e administrativos, sendo também influenciada por ques-tões estruturais do (sub)desenvolvimento.

Aqui a palavra “corrupção” não será associada apenas aos tipos pe-nais usuais de corrupção ativa e passiva, mas a todas as formas de abuso do poder estatal por um funcionário ou por uma autoridade pública, em busca de alguma vantagem material ou de outra natureza.

Neste texto, pretendo classificar e analisar alguns dos mais impor-tantes mecanismos transnacionais anticorrupção, que estão à dispo-sição dos Estados para fazer frente a esse fenômeno tão entranhando nas sociedades humanas, cujos impactos são sentidos nos orçamentos públicos, na capacidade estatal de implantação de políticas públicas

4. VIRGOILINI, Julio E. S. Crímenes excelentes: delitos de cuello blanco, crimen organizado y cor-rupción. Buenos Aires: Ediciones del Puerto, 2004.

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O comportamento do criminoso de colarinho branco

Renata Ribeiro Baptista1

Sumário: 1. Introdução – 2. Breves notas sobre o conceito de crime de colarinho branco – 3. O comportamento do criminoso de colarinho branco: 3.1. Competitividade (ou pressão por resultados); 3.2. Entitlement e narcisismo; 3.3. Propensão ao risco (risk takers) – 4. Algumas consequências para uma abordagem preditiva dos crimes de colarinho branco: 4.1. Reincidência; 4.2. Ambiente de trabalho – 5. Conclusões.

1. INTRODUÇÃO

O objetivo do presente artigo é discutir os crimes de colarinho bran-co à luz de uma abordagem psicológica dos criminosos. Propõe-se, ini-cialmente, uma incursão acerca da definição do conteúdo desta catego-ria jurídica. Em seguida, será feita uma reflexão dos crimes de colarinho branco que busca fugir da lógica jurídica, investigando o comportamen-to dos envolvidos nas condutas englobadas por esta categoria. Por fim, discorre-se sobre algumas consequências empíricas dos padrões com-portamentais analisados. Para tanto, será feita uma revisão bibliográfi-ca, com discussão de resultados de inúmeros estudos e experimentos, todos eles realizados fora do Brasil, notadamente nos Estados Unidos.

2. BREVES NOTAS SOBRE O CONCEITO DE CRIME DE COLARINHO BRANCO

A expressão “criminalidade de colarinho branco” é recente na his-tória da Criminologia. Surgiu apenas na primeira metade do século

1. Procuradora da República. Mestranda pela Universidade Católica de Brasília, em convênio com a Escola Superior do Ministério Público da União.

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Renata Ribeiro Baptista

passado, com o sociólogo EDWIN SUTHERLAND.2 Antes, termos como “criminaloides”3 e “barões salteadores”4 eram usados em referência a condutas ilícitas praticadas por magnatas, indicativos de clara reticên-cia à qualificação dos atos como crime. De 1939 para cá, a reflexão aca-dêmica sobre os crimes de colarinho branco, enquanto categoria social e jurídica perfeitamente delimitada, intensificou-se. De forma bastante peculiar, e talvez sem precedentes na história da Criminologia, a sim-ples definição do que sejam tais crimes exerceu e ainda exerce profun-da influência nas pesquisas e estudos sobre tal fenômeno. Isso porque estabeleceu-se uma disputa entre duas abordagens bem distintas de cri-mes de colarinho branco: uma fundada em um conceito de crime focado na figura do ofensor (offender-based approach), de cunho subjetivo; ou-tra fundada em um conceito de crime que prioriza as características da ofensa (offense-based approach), de cunho objetivo. A escolha por uma ou abordagem, cada qual com seus limites próprios, conduz a diferentes questionamentos e respostas.

O conceito subjetivo de crime de colarinho branco é também o marco teórico inicial desta categoria. Embora, em 1939, SUTHERLAND não tenha se preocupado com uma definição precisa de crimes de cola-rinho branco, seus pilares já estavam presentes em seu artigo seminal: envolvimento de pessoas de alto status social (entendido como respei-tabilidade social) e contexto negocial ou profissional.5 Nesse sentido, alguns anos depois, crime de colarinho branco foi por ele conceituado como aquele “cometido por uma pessoa de respeitabilidade e alto status social no curso de sua ocupação”.6 O interesse primário de SUTHER-LAND era chamar a atenção para a existência, até então ignorada, de um viés de classe nas análises criminológicas, que pareciam confinar o crime a eventos concentrados na realidade das classes sociais menos favorecidas, fruto da pobreza, ou, ainda, a traços psicopatas ou socio-patas inerentes à personalidade do agente, sendo necessário explicitar

2. SUTHERLAND, E. White-collar criminality. American Sociological Review, v. 5, n. 1, p. 1-12, fevereiro 1940.

3. ROSS, E. A. Sin and society: An Analysis of Latter-Day Iniquity. Boston, 1907.4. JOSEPHSON, M. The robber barons: Saints or sinners? Nova Iorque, 1933.5. SUTHERLAND, E. White-collar criminality. American Sociological Review, v. 5, n. 1, p. 1-12, fev.

1940. p. 1 e 3.6. SUTHERLAND, E. White-collar crime. Nova Iorque: Holt, Reinehart & Winston, 1949. p. 9 (tra-

dução livre).

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Cap. 1 • O COMPORTAMENTO DO CRIMINOSO DE COLARINHO BRANCO

a natureza também criminal de atos ilícitos praticados por integrantes da elite social.7

Para SUTHERLAND, a principal diferença entre os criminosos comuns e os criminosos de colarinho branco centra-se no tipo de enforcement que é dado a cada um pela violação da lei: enquanto os primeiros seriam trata-dos diretamente pelo sistema de justiça criminal, os segundos raramente seriam processados nestes termos, respondendo, no máximo, por danos nas esferas administrativa e cível. Essa distinção, a seu ver, resultaria da posição social ocupada pelos criminosos de colarinho branco, que lhes ga-rantiria status político para discutir as condutas a criminalizar e quais a merecer outra espécie de punição.8 Ao enunciar explicitamente que pes-soas da alta sociedade – portanto, fora do que era cotidianamente conside-rado um nicho especial de pobreza e problemas psicológicos – cometem crimes, o autor construiu uma teoria em que essas eventuais diferenças sociais fossem consideradas meramente incidentais e não comprometes-sem a definição de criminalidade na perspectiva sociológica. Trata-se da teoria da associação diferencial, para a qual o comportamento criminoso seria aprendido pelo indivíduo pelo convívio direto ou indireto com indi-víduos que cometeram crime.9 As chances de alguém se tornar um crimi-noso seriam influenciadas por dois fatores: frequência e intimidade com outros criminosos e desorganização social da comunidade próxima.10

A abordagem subjetiva da criminalidade de colarinho branco, ba-seada no ofensor, logo passou a sofrer contestação. O foco exclusivo em características sociais desses criminosos, que originalmente fora ideali-zado para realçar o crime como um fenômeno totalizante (ou seja, que não era confinado aos social e economicamente marginalizados), acabou por gerar uma segregação às avessas, limitando essa importante catego-ria às classes mais altas da sociedade. Duas iniciativas de contestação se destacaram. A primeira delas atribuída a RONALD CRESSEY, o qual, sem propriamente definir crime de colarinho branco, enfatizou que toda pessoa em posição de confiança e responsabilidade dentro de determi-

7. SUTHERLAND, E. White-collar criminality. American Sociological Review, v. 5, n. 1, p. 1-12, fevereiro 1940 (p. 2).

8. SUTHERLAND, E. White-collar criminality. American Sociological Review, v. 5, n. 1, p. 1-12, fevereiro 1940 (p. 7-8).

9. SUTHERLAND, E. White-collar criminality. American Sociological Review, v. 5, n. 1, p. 1-12, fevereiro 1940 (p. 10-11).

10. SUTHERLAND, E. White-collar criminality. American Sociological Review, v. 5, n. 1, p. 1-12, fevereiro 1940 (p. 11).

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Corrupção e eleições: o que o Direito Eleitoral

tem a dizer

Silvana Batini Cesar Góes1

Sumário: 1. Introdução – 2. Corrupção e eleições – O contexto jurídico – 3. Crime eleitoral e corrupção – As relações – 4. Sistema de combate à corrupção e direito eleitoral – Conflito – 5. A corrupção como ilícito eleitoral – As lacunas; 6. Corrupção e eleições – Alguns caminhos: 6.1. Um novo prazo para o 30-A da Lei 9504/97; 6.2. Prestações de contas mais efetivas; 6.3. Responsabilização dos partidos políticos – 7. Considerações finais.

1. INTRODUÇÃO

A última década esteve marcada, no Brasil, por avanços no comba-te à corrupção. Ainda que continue figurando nos rankings internacio-nais2, como um dos países com piores índices no assunto, são notórios os esforços empreendidos no plano institucional para intensificar os controles no combate à corrupção.

As mudanças legislativas ocorridas em resposta às jornadas de 2013 (especialmente a Lei 12846/2013, chamada Lei Anticorrupção e a Lei 12850/2013, das organizações criminosas), associadas ao aprimo-

1. Procuradora Regional da República, Doutora em Direito Público pela PUC/RJ, Professora da FGV Direito Rio.

2. O índice de percepção da corrupção (IPC) de 2018, medido pela organização Transparência Internacional, revelou que em 2018 o Brasil caiu 9 posições em relação ao relatório anterior, passando a ocupar o 105º lugar, o pior resultado desde 2012. <https://s3-sa-east-1.amazonaws.com/tibr-downloads/CPI-2018.pdf>.

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Silvana Batini Cesar Góes

ramento das instâncias fiscalizatórias e regulatórias (CGU, COAF, Receita Federal, Polícia Federal, entre outras) convergiram para um programa de persecução penal até então inédito no Brasil. O Ministério Público Federal pôde levar ao Judiciário provas consistentes de crimes contra a administração pública que, se de um lado permitiram condenações em série histórica, de outro trouxeram à luz o modelo sistêmico que permite que estes esquemas venham se perpetuando há décadas.

A Operação Lava Jato comprovou que a corrupção contaminou e contamina as eleições. Mais do que capturar os espaços públicos na ad-ministração e nos poderes em geral, os esquemas corruptos contamina-ram o processo eleitoral em si, na forma de ingressos de dinheiro ilícito em partidos e campanhas. Os fatos obrigam-nos a analisar as respostas jurídicas a esse fenômeno, sob o ângulo de sistema. Direito Penal, Pro-cessual Penal, Administrativo e Civil foram alcançados por alterações recentes seguidas que permitiram avanços no enfrentamento da ques-tão da corrupção e que, de certa forma, viabilizaram que os esquemas fossem expostos. Instrumentos como a colaboração premiada, coopera-ção internacional e acordos de leniência promoveram transformações relevantes e produziram resultados jamais vistos no Brasil, na forma de penas impostas e valores recuperados3.

Mas o vínculo exposto entre corrupção e eleições obriga-nos a olhar para o direito eleitoral e tentar identificar se esse ramo do ordenamen-to se equipara aos demais em atualidade e efetividade de respostas. A impressão inicial é a de que o direito eleitoral não avançou na mesma velocidade que os demais ramos e necessita de mudanças.

Há uma ideia pré-jurídica e leiga em torno de corrupção como sen-do todo e qualquer ato ilícito contra a administração pública. Para fins desse estudo, estamos usando a expressão corrupção associada ao âm-bito penal, não a restringindo aos tipos dos artigos 317 e 333 do Código Penal. Optamos por vincular a expressão também a outros tipos penais que afetam a administração pública (artigo 312 do Código Penal, além de dispositivos da Lei 8666/92, por exemplo), sua relação com esque-mas posteriores de lavagem de dinheiro, além da repercussão na seara da improbidade administrativa (Lei 8429/92).

O objetivo aqui é refletir sobre os instrumentos da legislação eleito-ral voltados a coibir as práticas de corrupção que penetram no cenário

3. <http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-lava-jato>.

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Cap. 2 • CORRUPÇÃO E ELEIÇÕES: O QUE O DIREITO ELEITORAL TEM A DIZER

político-eleitoral. Interessa-nos aqui avaliar a eficácia desses mecanis-mos e pensar em algumas alternativas.

No primeiro tópico analisamos o quadro normativo penal hoje vi-gente, e que tem aptidão para tratar do fenômeno da corrupção em geral e em especial aquela que atinge processos eleitorais. No segundo tópico buscamos tratar das relações entre a corrupção e os crimes eleitorais. No terceiro, avançamos para analisar as ferramentas do direito eleitoral para o enfrentamento da corrupção. Por fim, após identificar as lacunas de proteção, pensamos em algumas mudanças.

2. CORRUPÇÃOEELEIÇÕES–OCONTEXTOJURÍDICO

As conexões entre corrupção e campanhas eleitorais nunca foram totalmente ocultas. Ao contrário, recorrer ao argumento de que o di-nheiro de origem clandestina era fruto de campanha eleitoral, chegou a ser argumento de defesa de certos políticos, quando flagrados em comportamentos suspeitos. Em 1994, quando se defendia perante o Supremo de uma acusação de corrupção, o ex-presidente Fernando Collor afirmou que o dinheiro que abastecia suas contas pessoais era fruto de sobras expressivas de campanha4. Na denúncia ofertada pela PGR perante o Supremo, constava expressamente a acusação de que o ex-presidente, através de interposta pessoa, solicitara indevidamente ajuda para campanha eleitoral, em conduta configuradora de corrup-ção. Como se sabe, Collor acabou absolvido no âmbito criminal, mas por outras razões, ligadas à configuração do tipo da corrupção, mais especificamente sobre a necessidade de se apontar o ato de ofício liga-do ao acordo espúrio5.

Mas campanhas eleitorais e esquemas corruptos nunca mais desa-pareceram do radar da comunidade política e jurídica no Brasil.

O tema retornou com força quando eclodiu o escândalo conhecido como Mensalão, em 2005, no início do governo Lula. A movimenta-ção atípica de valores entre empresários e políticos, apontada como indício de corrupção, tentou ser justificada como simples caixa 2 de campanhas. Frequentemente as defesas dos políticos alegavam que não se tratava de propina, mas simplesmente de dinheiro aportado em

4. <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/4/29/brasil/29.html>, (visitado em 16/04/2019).5. <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=324295>, (visitado

em 16/04/2019).

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O jogo da corrupção sistêmica no Brasil

Sérgio Bruno Cabral Fernandes1

Sumário: 1. Introdução – 2. Corrupção sistêmica no Brasil – 3. Assimetria: colocando a corrupção em uma gangorra – 4. Lava Jato: Costa, Youssef e Nash – 5. O jogo da corrupção – 6. O Ponto de Schelling e a corrupção sistêmica – 7. Lava Jato: Pessoa e Nash – 8. Um novo equilíbrio – 9. Conclusão.

1. INTRODUÇÃO

A corrupção sistêmica2 é um fato complexo. O que não quer dizer que seja necessariamente complicado. Um algoritmo é algo, para muitas pessoas, complicado, assim como o funcionamento de um avião. Porém, esses não são fatos complexos. Embora às vezes utilizado como sinôni-mos, complexo e complicado são conceitos distintos e compreender essa diferença tem resultados práticos no mundo real.

Lidar com fatos complicados exige técnica, expertise e planejamen-to. Se algo dá errado, basta revisar o “manual”, fazer o reparo e repetir.

1. Promotor de Justiça no Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Titular da 6ª. Pro-motoria de Defesa do Patrimônio Público e Social em Brasília. Foi Coordenador do GAECO - Grupo de Combate às Organizações Criminosas do MPDFT (2006-2014). Ex-Coordenador do Grupo de Trabalho da Operação Lava Jato da Procuradoria-Geral da República (2015- 2017). Professor da Escola Superior do Ministério Público da União – ESMPU. Mestre em Direito (Master of Law – LLM) pela Cornell University.

2. Entendemos a corrupção sistêmica como uma rede que opera em sinergia e atua em diversos níveis e segmentos do Estado. Não se trata de soma de crimes individuais. Há uma mentalida-de comum, rituais, estratégias e crenças que moldam o funcionamento do grupo. O comporta-mento do sistema é um produto diferente da mera soma dos comportamentos dos indivíduos que o integram.

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Sérgio Bruno Cabral Fernandes

Fatos complicados são previsíveis. É possível afirmar que, seguindo os projetos e instruções corretamente, um novo avião, por exemplo, irá voar tal qual seus antecessores. A consequência da utilização de um complicado algoritmo é certa e conhecida.

Os fatos complexos, por sua vez, não seguem a linearidade dos fatos complicados. Sua representação gráfica se assemelha a uma enorme teia de relacionamentos em várias direções. Complexidade implica adapta-ção, vale dizer, fatos complexos estão constantemente se adequando e essa modificação faz com que seu comportamento seja difícil de compre-ender e de prever. Lidar com fatos complexos é lidar com o imprevisível.

Por conta de sua complexidade, a corrupção sistêmica não pode ser compreendida e combatida apenas com instrumentos legais. Vale dizer, a corrupção sistêmica é um daqueles temas que vai muito além do reino do Direito. Sociólogos, cientistas políticos, psicólogos e economistas dis-cutem esse antigo fenômeno incansavelmente.

Normas jurídicas são o equivalente a um projeto técnico para um avião. São fundamentais e muito úteis para resolver questões complica-das, mas via de regra não são, isoladamente, remédio para solução dos efeitos da complexidade.

O objetivo do presente artigo é examinar aspectos da corrupção sistêmica no Brasil por perspectivas diversas da estritamente jurídica. Para tanto, colocarei alguns episódios da Operação Lava Jato, o maior escândalo de corrupção já ocorrido em uma democracia, sob a lente da Teoria dos Jogos. Esse enfoque permite compreender o papel crucial que a colaboração premiada desempenhou na investigação.

2. CORRUPÇÃO SISTÊMICA NO BRASIL

Corrupção é um crime que acontece nas sombras e geralmente não produz evidências materiais de fácil obtenção. Em cenários de corrup-ção sistêmica, os obstáculos são ainda maiores. O delito geralmente é cometido em uma área cinzenta onde a propina é chamada de “doação” ou “empréstimo” e o ato oficial tende a ser definido como “uma ajuda”, “um apoio” ou apenas “uma mão amiga”. Ou seja, além de não ser prati-cado na rua em plena luz do dia, a corrupção é um crime que tende a se disfarçar e se misturar com atos legais. Essas particularidades tornam o crime de corrupção difícil de ser investigado e punido.

Relacionamentos corruptos são construídos com base em confiança mútua e sigilo. Ordinariamente é difícil obter provas contra os envolvi-

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Improbidade administrativa: diagnóstico de sua efetividade e propostas de aperfeiçoamento

Ronaldo Pinheiro de Queiroz1

Sumário: 1. Introdução – 2. Diagnóstico da ação de improbidade administrativa no Brasil a partir de estudo do Conselho Nacional de Justiça: 2.1. Pesquisa e metodologia; 2.2. Principais dados da pesquisa – 3. Propostas sobre melhorias administrativas e legislativas para aumentar a efetividade do combate à improbidade administrativa: 3.1. A matéria-prima – Pacotes anticorrupção; 3.2. Propostas normativas: 3.2.1. Terminologia de classe; 3.2.2. Criação de varas especializadas; 3.2.3. Não previsão de atos de improbidade administrativa em legislação esparsa; 3.2.4. A defesa preliminar – necessidade da sua extinção ou de uma readequação; 3.2.5. Acordo de leniência na improbidade administrativa; 3.2.6. Compromisso de ajustamento de conduta na improbidade administrativa; 3.2.7. Procedimento abreviado; 3.2.8. Tipifica como ato de improbidade administrativa a obstrução de transição de mandatos políticos; 3.2.9. Aperfeiçoamento do sistema punitivo da improbidade administrativa; 3.2.10. Unificação do regime de prescrição na improbidade administrativa – 4. Conclusão.

1. INTRODUÇÃO

A efetiva aplicação das leis de um país possui um papel fundamental na prevenção e no combate à corrupção, não apenas pela reprimenda es-

1. Procurador Regional da República. Foi membro do Grupo de Trabalho para acompanhamento das investigações do Caso Lava Jato perante o Supremo Tribunal Federal. Ex-Secretário Exe-cutivo da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão (Combate à Corrupção) do Ministério Público Federal. Doutor e mestre em Direito pela PUC-SP. Foi professor adjunto do Curso de Direito da UFRN (2009-2018). Professor e orientador pedagógico da ESMPU. Foi integrante do Grupo Executivo da Secretaria de Cooperação Jurídica Internacional da Procuradoria Geral da Repú-blica. Ex-coordenador do Núcleo Combate à Corrupção no MPF/RN. Ex-Procurador Regional dos Direitos do Cidadão em Mato Grosso. Ex-Presidente do Conselho Penitenciário do RN. Foi integrante da Força Tarefa do Caso Ararath (MT) e do Caso Penatenaico (DF).

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Ronaldo Pinheiro de Queiroz

tatal contra aqueles que violaram a norma jurídica, mas sobretudo pelo seu caráter dissuasório, passando ao mesmo tempo para a sociedade um sentimento de confiança no funcionamento das instituições e de desestí-mulo para as práticas contrárias ao Direito.

O Brasil tem um compromisso assumido de combate à corrupção tanto perante a comunidade internacional quanto perante os seus cida-dãos, os quais têm o direito natural a um governo honesto.

Aderindo ao regime global de proibição da corrupção, o Brasil as-sinou, aprovou e ratificou a Convenção Interamericana contra a Cor-rupção (OEA)2; a Convenção Internacional contra a Corrupção (ONU)3; Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo)4 e a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Inter-nacionais (OCDE)5.

No plano constitucional, pode-se dizer que todas as Constituições anteriores (1824, 1891, 1934 e 1937, 1946, 1967, 1969) exigiram pro-bidade na administração pública e, em especial, a Constituição da Re-pública de 1988 ampliou a escala axiológica de respeito à legalidade e à moralidade administrativa, bem como apresentou instrumentos de con-trole e repressão à corrupção6.

2. BRASIL. Decreto nº 4.410, de 7 de outubro de 2002. Promulga a Convenção Interamerica-na contra a Corrupção, de 29 de março de 1996, com reserva para o art. XI, parágrafo 1º, inciso “c”.

3. BRASIL, Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006. Promulga a Convenção das Nações Uni-das contra a Corrupção, adotada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003.

4. BRASIL. Decreto nº 5.015, de 12 de março de 2004. Promulga a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional.

5. BRASIL. Decreto nº 3.678, de 30 de novembro de 2000. Promulga a Convenção sobre o Com-bate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Interna-cionais, concluída em Paris, em 17 de dezembro de 1997.

6. Conforme bem delineado por Vladimir Barros Aras: “Embora o microssistema de que trata-mos não tenha sido inaugurado na fase de redemocratização do Brasil, evidentemente, o mar-co constitucional de 1988 não pode ser ignorado. O artigo 5º, inciso LXXIII da Constituição, tratou da ação popular; o artigo 37 instituiu princípios gerais da administração pública, e o artigo 129, inciso III, da CF, entregou ao Ministério Público o papel de defensor primário da probidade, cabendo-lhe ‘promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos’.

Concomitantemente, a Carta de 1988 manteve a quebra da probidade como crime de res-ponsabilidade do Chefe do Executivo (art. 85), como é da tradição brasileira, e estabeleceu no artigo 37, §4º que os atos de improbidade administrativa importariam ‘a suspensão dos

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Cap. 5 • IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: DIAGNÓSTICO DE SUA EFETIVIDADE E PROPOSTAS…

O art. 37, § 4º, da Constituição da República criou um dever legis-lativo de mandado de punibilidade cível, consistente no sancionamento dos atos de improbidade administrativa, elegendo como bem jurídico a ser protegido o patrimônio público e a moral administrativa. Foi assim que nasceu a Lei 8.429, de 2 de junho de 1992, conhecida como a lei de improbidade administrativa.

Tal lei consiste no principal instrumento de combate à corrupção no âmbito cível, tendo um elevado potencial de proteção da moralida-de administrativa e de sancionamento de agentes públicos, mas que tem encontrado dificuldades administrativas, culturais, jurídicas (no plano hermenêutico) e legislativa para a sua plena efetividade e cum-primento da missão internacional e constitucional do Brasil de preve-nir e reprimir tais atos.

O propósito do presente trabalho consiste em analisar os principais obstáculos para a efetividade da lei de improbidade administrativa e apresentar alternativas para melhorar o microssistema normativo desse instituto, com foco em resultados, sem violação às garantias constitucio-nais do cidadão.

Numa metodologia analítico-descritiva, partir-se-á da análise de pesquisa empírica encomendada pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ –, prestigiando essa espécie de estudo, tão rara quanto necessária no Brasil, para apresentar as principais “ondas renovatórias”7 para trazer mais efetividade à ação de improbidade administrativa, oportu-nidade em que serão apresentados os principais pacotes anticorrupção e, entre eles, as medidas mais relevantes no campo da matéria estudada.

direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível’.

Ao regular as eleições, o texto constitucional de 1988 também se preocupou com o tema ‘cor-rupção’ (lato sensu), pois previu a suspensão dos direitos políticos em razão da prática de improbidade administrativa (art. 15, V, CF) e criou um rigoroso regime de inelegibilidades para proteger ‘a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato consi-derada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na ad-ministração direta ou indireta’ (art. 14, §9º, CF). Disto resultou a Lei Complementar 64/1990 ou Lei das Inelegibilidades.” (In: A nova Lei Anticorrupção brasileira. Disponível em: http://blogdovladimir.wordpress.com/2014/01/30/a-nova-lei-anticorrupcao-brasileira. Acesso em: 10.4.2019)

7. A expressão é uma homenagem ao grande jurista italiano Mauro Cappelletti, que apresenta as ondas renovatórias como propostas de superar os obstáculos de acesso à Justiça, em estudo de direito comparado que o fez com maestria. [in CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 1988]

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O crime de corrupção e a análisedoatodeofício

Melina Castro Montoya Flores1

Sumário. 1. Introdução – 2. Crime de corrupção: conceito – 3. Classificação do crime de corrupção – 4. Ato de ofício – 5. Posição do Supremo Tribunal Federal a partir do estudo de casos – 6. Flexibilização (quando) da prova do ato de ofício – 7. Aplicação prática no caso Lava Jato – 8. Considerações finais.

1. INTRODUÇÃO

O fenômeno da corrupção emerge como um tema atual e pujante na sociedade moderna, sendo o seu combate apontado como fator deter-minante ao avanço de uma nação no contexto do seu desenvolvimento socioeconômico.2

1. Procuradora da República com ingresso em 2005. Atuou como Coordenadora do Núcleo de Combate à Corrupção na Bahia e integrou o Grupo de Trabalho da Lava Jato entre 2015/2017. Atualmente ocupa um dos ofícios do Núcleo Criminal e de combate à Improbidade Adminis-trativa da procuradoria da República no Distrito Federal. É especialista em Direito Penal.

2. No Brasil, em recente pesquisa, a corrupção passou a ser vista como maior problema do país. Confira: “No ranking de problemas do país conforme a opinião dos brasileiros, a corrupção é, pela primeira vez, a campeã isolada. Segundo pesquisa Datafolha realizada nos dias 25 e 26 em todo o país, 34% dos eleitores colocam a corrupção como o principal problema do Brasil na atualidade. Na sequência aparece saúde, com 16%; desemprego, com 10%, educação e violência, ambos os temas com 8%. Economia é assunto citado por 5%. A pesquisa foi feita em meio à Operação Lava Jato, que começou apurando a atuação de doleiros em 2014, agigantou--se com a descoberta de um esquema de corrupção na Petrobras envolvendo funcionários da estatal, grandes empreiteiras e políticos, e depois estendeu-se para o setor elétrico.(...). O Datafolha investiga a principal preocupação dos brasileiros desde 1996, ainda durante o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso na Presidência. Durante todo o período tucano (até 2002), o tema líder no ranking de principais problemas foi o desemprego, com o recorde de 53% no fim de 1999. Em algumas rodadas, fome/miséria apareceu em segundo

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Melina Castro Montoya Flores

Tal cenário evidencia a relevância do aprofundamento quanto aos aspectos que circundam a configuração dos crimes relacionados à cor-rupção. Propõe-se, com o presente trabalho, a análise acerca da necessi-dade de comprovação (ou não) do ato de ofício correlacionando-o com a vantagem indevida descrita nos tipos clássicos de corrupção que, na nossa Codificação penal, encontram-se disciplinados no art. 317, que tipifica a corrupção passiva, e o art. 333, que retrata a corrupção ativa.

Essa análise é norteada pela evolução desse assunto à luz da juris-prudência, com enfoque nos julgamentos históricos proferidos pelo Su-premo Tribunal Federal na AP 307/DF e na AP 470/DF, os quais ficaram conhecidos como “Caso Collor” e “Mensalão”, respectivamente.

Com efeito, mister avaliar se o STF, no julgamento da AP 470/DF, afas-tou-se da sua orientação firmada na AP 307/DF na direção de ser necessá-rio demonstrar a relação da vantagem indevida a um ato de ofício.

Para além da discussão sobre a necessidade de vinculação da vanta-gem indevida ao ato de ofício mercanciado, o trabalho objetiva perquirir o grau de determinação desse ato e a relação de temporariedade dele com o momento da oferta/recebimento da “propina”, também louvando-se nos argumentos invocados nos históricos julgados do Pretório Excelso.

Diante disso, ciente de que o órgão de acusação deve pautar a sua atuação na observância do princípio básico do direito penal da legalida-de ou taxatividade -, com a demonstração de todos os elementos legais que compõem os tipos penais de corrupção -, emerge o problema da comprovação do ato de ofício evidenciado nas dificuldades na colheita de provas quanto a essas condutas criminosas, porquanto ocorrentes, normalmente, de forma oculta, às escondidas, sem uma exteriorização das tratativas que as antecedem.

lugar na lista de preocupações, assunto citado por apenas 1% atualmente. Desemprego con-tinuou reinando no ranking até o fim do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2006. O segundo mandato de Lula começou com um substancial aumento da preocupação com violência/segurança, assunto líder em todas as pesquisas de 2007. De 2008 até junho deste ano foi o período dominado pela saúde. Sob Lula e FHC, corrupção nunca foi apontado como o principal problema do país por mais de 9% do eleitorado. O tema começou a ganhar força em junho de 2013, primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, mês de enormes protestos de rua pelo país com pautas variadas, da tarifa do transporte à violência policial. Naquele momento, a corrupção foi citada como maior problema por 11%, recorde na série histórica do Datafolha até então. Nas três pesquisas anteriores de 2015, ficou sempre acima de 20%. O Datafolha ouviu 3.541 pessoas. A margem de erro é de dois pontos percentuais (Disponível em: <httphttp://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/11/1712475-pela-1-vez--corrupcao-e-vista-comomaior-problema-do-pais.shtml>. Acesso em: 20/02/2016).

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Cap. 2 • O CRIME DE CORRUPÇÃO E A ANÁLISE DO ATO DE OFÍCIO

Por intermédio da análise comparativa da jurisprudência do STF so-bre o assunto, constata-se uma intensa discussão acerca do termo “ato de ofício” e sua vinculação à oferta/recebimento da propina para fins de delimitação do tipo penal clássico de corrupção, o que tem ocasiona-do uma relativa incerteza quanto à sua efetiva definição, prejudicando a efetividade da prestação da tutela penal.

Como ponto de partida, far-se-á a exposição do conceito do ato de ofício, sua determinação e atualidade (ou não) em relação à peita, para fins de delimitação dos tipos penais previstos nos arts. 317 e 333 do CP, citando a jurisprudência nacional, doutrina, e fixando o entendi-mento atual dos Tribunais, especialmente nos casos ligados à Opera-ção Lava Jato3.

Registre-se a escassa produção doutrinária acerca do tema no Bra-sil em que poucos doutrinadores aprofundaram-se no assunto alusivo à relação da vantagem indevida e o ato funcional, especialmente buscando traçar um paralelo entre a necessidade de segurança jurídica e o comba-te de forma efetiva à corrupção.

Por derradeiro, a conclusão focará na necessidade de uma repres-são mais eficaz de atos de corrupção que afrontam valores caros de uma sociedade, prejudicando o progresso e a efetivação de direitos essenciais do cidadão.

2. CRIME DE CORRUPÇÃO: CONCEITO

A corrupção revela-se como um fenômeno inerente à condição humana e de difícil resolução, tendo as modernas ciências apontado como um fator de risco à concretização plena do Estado Democrático de Direito.

A corrupção subverte a moralidade ínsita ao sistema, desvalori-zando o poder do povo e, ao revés, privilegiando interesses privados.

3. A operação Lava Jato é a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro que o Brasil já teve. Estima-se que o volume de recursos desviados dos cofres da Petrobras, maior estatal do país, esteja na casa de bilhões de reais. Soma-se a isso a expressão econômica e política dos suspeitos de participar do esquema de corrupção que envolve a companhia. As investigações avançaram para irregularidades relacionadas a outras estatais e estenderam-se para outros Estados, tendo sido constituídas forças-tarefas no Rio de janeiro, Brasília e São Paulo.(fonte: <http://www.mpf.mp.br/para-o-cidadao/caso-lava-jato/atuacao-na-1ainstancia/distrito--federal>).

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