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CORTEJO E FUNERAL DO REI DOS SONHOS – UMA ANÁLISE DAS
REPRESENTAÇÕES DE RITUAIS FÚNEBRES EM SANDMAN, DE NEIL GAIMAN
(1993-1996)
Guilherme Ieger Dobrychtop
Universidade Federal do Paraná
Resumo: O presente artigo visa analisar a história em quadrinhos Sandman, de Neil Gaiman, detendo-se nos aspectos apresentados na narrativa e estética após a morte do personagem: as representações de luto e rituais fúnebres. Para tanto, será realizada uma comparação entre os recursos narrativos utilizados pelo autor com os mesmos rituais fúnebres presentes na cultura oriental, com o auxílio de autores como Philippe Ariès, Van Gennep e Norbert Elias. Ao mesmo tempo se perscrutará os recursos imagéticos utilizados por Gaiman, utilizando tanto autores como Paulo Ramos e Scott McCloud, para se compreender a estética dos quadrinhos, quanto Baxandall e Jacques Aumont, a fim de guiar as análises com uma ótica teórica acerca das imagens. Com base nestas diretrizes e com esta literatura, a análise consistirá na busca das razões que conduziram o autor às representações de rituais fúnebres apresentadas na revista, buscando tanto compreender os elementos semânticos dos ritos, como o cortejo, velório, luto, como também as razões pelas quais estas representações se dão desta maneira, buscando, desta forma, realizar uma ponte entre o contexto diegético da narrativa e o contexto do autor, visando assim compreender como Neil Gaiman escolheu moldar sua realidade e encontrar as razões para isso em seu contexto, ou seja, os sentimentos acerca da morte na sociedade americana pós-moderna do começo da década de 90. Palavras chave: Quadrinhos; morte; Sandman; Ritos Fúnebres; Financiamento: Capes.
INTRODUÇÃO
Umberto Eco afirma, em seu “Apocalípticos e Integrados”, que morte, amor e
poder são os três interesses do homem, e portanto constituem os alicerces de todas
as grandes histórias1. Com Sandman, de Neil Gaiman, publicado entre os anos de
1988 a 1996 pela editora norte americana DC Comics, não foi diferente. O quadrinho
1 ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 1970, p. 173.
2
narra a vida de um ser eterno, Sandman, a personificação dos sonhos. E embora
nas 75 edições publicadas durante quase uma década tenha se desenvolvido a vida
do protagonista ao longo de um espaço temporal que abrange mais de dois milênios
no tempo diegético, este artigo se deterá em apenas um pequeno espaço da vida do
personagem, o fim desta e o que vem depois, mas não para o protagonista, pois a
narrativa de Gaiman se desvencilha de Sandman no momento em que este morre,
deixando o que ocorre para ele um mistério tão grande para o leitor como qualquer
outra morte2. Neste instante da narrativa, a morte não mais diz respeito a Sandman,
pois este já não se encontra corporalmente presente. A morte passa a dizer respeito
a todos aqueles que estão ao redor, parentes, amigos, aqueles que tangenciaram a
vida do protagonista de alguma forma, por minimamente que tenha sido e, realizado
de maneira brilhante pelo autor, o qual quebra a quarta parede, um dos
protagonistas deste momento da narrativa passa a ser o leitor. Ou seja, a narrativa
se desvencilha do protagonista, aquele que morreu, e passa a dizer respeito apenas
aos viventes, reafirmando o que anteriormente Norbert Elias escreveu: “A morte é
um problema dos vivos3”. Portanto, o presente artigo se deterá nos rituais que se
sucedem à morte, detendo-se mais especificamente nas questões dos rituais
fúnebres e a conservação da memória do jacente. Será realizada uma análise
destes, com enfoque no panorama histórico, com a finalidade de chegar à conclusão
de como o funeral do personagem fictício Sandman reflete as questões históricas
envoltas nos ritos fúnebres e as razões pelas quais o autor, Neil Gaiman, optou por
esta caracterização do velório e funeral de seu protagonista.
IMAGEM E QUADRINHOS
Pretende-se analisar Sandman e a representação de um funeral a fim de
buscar a forma correspondente deste na história fora da narrativa, no mundo real,
por assim dizer. Contudo, é necessário questionar-se como isso pode ser feito, e,
2 É importante frisar que no momento em que Sandman morre, outro igual a ele surge, de nome Daniel. Contudo, embora tenha diversas semelhanças, este se mostra de um comportamento mais gentil do que o seu antecessor, bem menos assustador. Isso é explicado com Sandman sendo um ponto de vista, algo que não pode morrer, apenas mudar. 3 ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 1970, p. 10.
3
ainda, o quanto do que é representado nas páginas da publicação pode
corresponder a algo fora dela. Primeiramente, deve-se considerar que, para realizar
esta análise, se utilizou de textos que dizem respeito a imagens focando-se em
pinturas, fotografias, representações, algumas das quais até mesmo sequenciais,
mas cujos autores não tinham as histórias em quadrinhos em mente. Contudo,
levando em consideração que os quadrinhos podem se encaixar nas elucubrações
acerca de imagens realizadas pelos autores utilizados, suas obras serão um recurso
muito caro para a realização desta análise. É possível dizer que será realizada uma
tentativa, cruzando a fonte utilizada e a bibliografia, de entender as intenções do
autor, ou de “reconstruir ao mesmo tempo o problema específico que o autor queria
resolver e as circunstâncias específicas que o levaram a produzir o objeto tal como
é4”, utilizando a análise de imagem e diálogos a fim de compreender as razões pelas
quais o roteiro foi concebido desta forma. Portanto, será considerado que cada
detalhe dentro do enredo da narrativa, cada minúcia do texto ou imagem, partiu de
uma decisão do autor, que existe um planejamento e uma razão pela qual o autor
decidiu colocá-la ali, seja conscientemente ou inconscientemente.
E ao mesmo tempo em que Gaiman realiza uma representação de situações
reais em sua história, mesclando-as com invenções fantásticas dentro do seu
enredo, ele também cria algo totalmente novo, pois “ao copiar, também fabricamos5”.
Ou seja, o que foi copiado pode assumir todo um novo significado. Desta forma,
muitas vezes será necessário, a fim de realizar esta análise, buscar mais de um
significado para o mesmo signo, ainda mais partindo do princípio de que
As imagens analógicas, portanto, foram sempre construções que misturavam em proporções variáveis imitação de semelhança natural e produção de signos comunicáveis socialmente. Há graus de analogia, segundo a importância do primeiro termo – mas a analogia nunca está ausente na imagem representada6.
Dentro da análise da narrativa de Sandman isso se apresentará na análise de
signos e representações imagéticas em torno dos rituais fúnebres. Ao mesmo tempo
em que se parte do princípio de que nada é colocado na imagem ao mero acaso.
4 BAXANDALL, Michael. Padrões de Intenção. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 48. 5 AUMONT, Jascques. A Imagem. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2009, p. 202. 6 Ibidem, p. 203.
4
Portanto, ao analisar a presença de um elemento, deverá se atentar em como aquilo
se aplica enquanto imitação e também como analogia e, indo mais além, há outros
elementos que deverão ser levados em conta, e estes são a questão prática do que
está sendo representado dentro do universo diegético de Sandman e também dentro
do roteiro proposto. A respeito da questão diegética, pode-se afirmar que esta é
“Uma construção imaginária, um mundo fictício que tem leis próprias mais ou menos
parecidas com as leis do mundo natural, ou pelo menos a concepção, variável, que
dele tem”7. Portanto, ao buscar as respostas sobre a importância de um funeral, não
se deve olhar somente para o mundo real, mas também se buscar respostas dentro
do contexto diegético, pois este não pode ser ignorado. Por fim, no que tange à
análise da imagem, será utilizada uma pequena bibliografia para lê-las, realizando-
se uma análise minuciosa das imagens, compreendendo seus vários significados.
Acredita-se então que será possível visualizar as imagens presentes em
Sandman e compreender o contexto maior que estas englobam, a fim de encontrar,
na obra, na bibliografia e no contexto destas as respostas que se busca acerca dos
ritos fúnebres.
OS RITOS FÚNEBRES
O Rei dos Sonhos está morto. Isso acontece na edição de número #69 na
publicação. Contudo, a narrativa se passa em um universo fantástico onde por vezes
a cronologia é subvertida. Desta forma, a primeira menção ao velório de Sandman,
ainda que não saibamos que é ele quem está morto, acontece na edição #56. Nesta
edição os personagens estão na chamada “Taverna do Fim dos Mundos”, a qual fica
num espaço e tempo que não pertencem a qualquer mundo, como em uma zona
fantasma. E, através das janelas, durante uma fortíssima tempestade que os
mantém presos ali, veem um cortejo fúnebre formado por pessoas gigantescas,
maiores que montanhas.
O valor deste cortejo para esta análise não está apenas nas imagens, mas
também na narração do observador, pois, vislumbrando criaturas mais antigas que
7 Ibidem, p. 248.
5
deuses e seres mitológicos, ele passa a comparar a cena que enxerga com uma que
presenciou, mais perto da sua, e também das nossas realidades, quando seu pai
morreu. Contudo, o narrador afirma que o cortejo que vê parece muito mais real do
que aquele que presenciou, quando da morte de seu pai.8
Assim, o narrador compara o ritual que está presenciando com outro que
vivenciou, de uma pessoa muito querida e próxima sua, mas que não tinha nem de
longe o mesmo valor para ele. Como o próprio afirma, o velório de seu pai, diferente
daquele, parecia vazio. Ainda assim, havia semelhanças entre os dois, mesmo um
ritual acontecendo devido à morte de um ser humano comum e outro sendo
resultado da morte de Sandman, um Perpétuo, criatura descrita várias vezes como
mais velho e mais importante do que deuses. Não é surpresa que estes rituais
tenham suas semelhanças e diferenças, pois, como afirmou Van Gennep,
“Nada varia tanto com os povos (...) quanto os ritos funerários. Entretanto, é possível
descobrir na extraordinária multiplicidade das variações de detalhes traços
dominantes (...)”.9
É difícil conceituar o cortejo fúnebre de Sandman pois a publicação, em
muitos momentos, e especialmente neste, apresenta-se de maneira não linear, com
o cortejo aparecendo antes do funeral. O cortejo deveria aparecer como o caminho
do caixão até o túmulo, mas aparece pela primeira vez antes mesmo da morte do
personagem, sendo enxergado por pessoas comuns como um evento de proporções
descomunais. Contudo, só é possível perceber que se trata do cortejo de Sandman
após a morte deste, pois, no momento em que é pela primeira vez visto, não sem
tem clareza de quem é o morto que propiciou aquele cortejo. É possível, porém,
encontrar semelhanças ao cortejo realizado em Sandman com o presente em outras
culturas e tempos. Na poesia medieval encontra-se relatos em que “o corpo era
acompanhado até o lugar da sepultura pelos amigos e parentes: a última
manifestação de um luto finalmente mitigado (...)10”. E é possível afirmar que a
representação do cortejo de Sandman se encaixe perfeitamente nesta descrição do
cortejo na poesia medieval, pois é possível discernir na imagem a figura de seus
8 GAIMAN, Neil. Fim dos Mundos. São Paulo: Editora Conrad, 2007, p. 153. 9 VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 126. 10 ARIÉS, Philippe. O homem diante da morte. São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 218.
6
parentes e seus amigos. Contudo, não se deve esquecer que embora em grandes
centros populacionais os cortejos sejam uma prática quase extinta, ele não se
restringe apenas ao passado distante do período medieval, ainda sendo uma
tradição mantida em muitas cidades interioranas. E também é possível questionar-se
a razão pela qual justamente este trecho foi revelado ao leitor com tanta
antecedência e, ao mesmo tempo, no contexto diegético, é tão importante que foi
algo que causou uma tempestade de proporções gigantescas. Pode-se responder a
esta questão de duas formas, uma mais prática e outra mais simbólica. A maneira
simbólica seria dizer que, mais uma vez apoiando-se na tradição medieval, “A
procissão solene do cortejo tornou-se, desde o século XIII, a imagem simbólica da
morte e dos funerais11”. Portanto, o triste caminhar junto do caixão fechado era “o
momento mais significativo de toda a cerimônia12”, razão pela qual justamente foi
este o trecho que apareceu em meio à cerimônia. Contudo, ao mesmo tempo em
que esta explicação se deve à importância deste ato e todo o seu simbolismo, a
questão mais prática do porquê justamente foi esta cena mostrada ao leitor busca
sua resposta no roteiro da narrativa: a morte de Sandman só aconteceria mais de
um ano depois que aquela história foi publicada, portanto, não se deveria revelar
facilmente ao leitor quem é que estava dentro do caixão, a fim de não estragar a
surpresa que aconteceria em breve. Desta forma, o cortejo fúnebre seria um trecho
perfeito para ser mostrado, pois, ao mesmo tempo em que tem toda a sua
importância simbólica, também é uma excelente engrenagem dentro do roteiro.
Contudo, após este cortejo, só é revelado quem está sendo carregado dentro
daquele caixão 15 edições depois, quando finalmente se mostra as outras nuances
do velório de Sandman, as quais são necessárias para compor esta breve análise.
O arco de histórias “Despertar”, o qual narra o velório de Sandman e o fim do
periódico mensal, inicia-se com seus familiares, os demais seres eternos chamados
de Perpétuos, sendo avisados acerca de sua morte e, logo em seguida, tomando as
providências para a realização dos ritos. E por se tratarem de seres importantes, os
preparativos tem um ar suntuoso, pois o que eles têm de fazer é ir à fictícia
Necrópole Litargo, onde seus moradores são especialistas em rituais fúnebres. E,
11 Idem. 12 Idem.
7
em câmaras descritas como antigas e quase desconhecidas, é mostrado um ser
buscando os aparatos necessários para o velório: um sudário e um livro cerimonial
A mortalha posteriormente é colocada sobre uma espécie de altar, o qual é
chamado apenas como “o local indicado13”, e, após ser estendida, esta aparece
cobrindo a silhueta de Sandman.
Buscando um significado da mortalha, ou por que desta ser utilizada por
Gaiman, pode-se citar Phipipe Ariès, o qual analisa a descrição de um rito fúnebre
comandado pelo fictício Rei Artur, onde o corpo
(...) era envolvido em tecido precioso, quando se tratava de grande senhor ou de clérigo venerável. Assim o rei Artur fez “amortalhar Monsenhor Gauvin em lençóis de seda trabalhada com ouro e pedrarias14”.
Desta forma, pode-se concluir que Gaiman escolheu a utilização da mortalha
por duas razões. A primeira invocando uma importância do falecido. Sandman não
era um simples humano, muito longe disse, tão longe quanto estava de ser um deus.
Era uma das sete criaturas chamadas de Eternos, Perpétuos, e era o responsável
pelos sonhos de não só toda a humanidade, como de todo o universo. Portanto, uma
das razões é para lhe conferir importância. Contudo, seria ingenuidade propor que
as escolhas estéticas da história em quadrinhos obedecem a apenas um sentido.
Então, é possível dizer que a escolha do sudário obedece, além de um sentido
semântico, também a um sentido prático. Primeiramente, na narrativa Sandman
aparece pela última vez no instante de sua morte, quando é tocado por sua irmã
mais velha, Morte, e sua vida se encerra. Depois deste trecho, não existe
necessidade do personagem aparecer mais, pois, caso seu corpo fosse mostrado,
isto tiraria a força da retratação do fim de sua vida, a qual tem ainda mais
importância pois é a última vez que ele aparece na narrativa. Além disso, a morte de
Sandman trata-se da morte de um ponto de vista, de forma que existe outro
Sandman, muito semelhante, mas com algumas diferenças, presente na narrativa,
sendo retratado nos quadros da história que é narrada em paralelo ao funeral. Caso
o corpo daquele que morreu aparecesse, isso poderia confundir o leitor. Desta
13 GAIMAN, Neil. Despertar. São Paulo: Editora Conrad, 2008. P. 71. 14 ARIÈS, Philippe. Op. Cit., p. 192.
8
forma, o corpo deveria ser escondido, e a mortalha foi a escolha mais prática, pois
um caixão fechado evocaria sentimentos de corpo deteriorado na morte, ou
ausência de corpo, contudo, o sudário deixando à mostra apenas a silhueta de
Sandman é a escolha perfeita, tanto no sentido simbólico quanto no prático.
É necessário frisar, contudo, que o sudário pode invocar outros significados.
Avançando temporalmente até a Idade Média, século XII, e ainda de acordo com
Ariès, a visão do corpo torna-se insuportável, razão pela qual é coberto, pois “o
corpo morto, antes objeto familiar e figura do sono, possui daí por diante um tal
poder que se torna insuportável à vista15”. Assim sendo, o corpo seria coberto por
qualquer pano que pudesse escondê-lo, desde um tecido colorido ou com ouro no
caso dos nobres, até algo simples como um lençol no caso dos mais
desafortunados16. Entretanto, pode-se afirmar que esconder o corpo com a mortalha
apenas por ser algo insuportável de ser olhado não é algo que se encaixa no caso
de Sandman, porque durante toda a representação de seu funeral, não há nenhuma
menção a medo ou dificuldade de olhar para o seu corpo, mesmo que envolto na
mortalha. Concomitantemente, a origem do sudário usado em Sandman adequa-se
mais à situação narrada por Ariès à época do Rei Artur do que esta que o autor trata
no século XII, pois embora o sudário seja usado para cobrir o corpo, isso ocorre não
pelo desejo de não vê-lo, mas sim por um significado mais forte, por ser, como
descrito por Ariès, um “senhor ou clérigo venerável17”, ou, no caso de Sandman,
alguém mais poderoso e antigo que deuses.
Por fim, pode-se afirmar que além dos atos e diversos elementos que existem
ao redor dos ritos fúnebres, é possível inferir que as reações dos presentes, amigos
ou familiares daquele que encontrou a morte, são parte constitutiva do ritual, de
forma como suas reações são muitas vezes esperadas, como se estas estivessem,
igual ao cortejo ou mortalha, presentes em um roteiro. Tanto que Ariès, voltando-se
novamente à questão da poesia medieval, afirma que “se a morte estava realmente
domada, o luto dos sobreviventes era selvagem ou deveria parecê-lo. Tão logo se
constatava a morte, em torno dela se rompiam as cenas mais violentas de
15 Ibidem, p. 221. 16 Ibidem, p. 222. 17 Ibidem, p. 192.
9
desespero18”. É interessante constatar que uma reação tal qual a descrita por Ariès
aparece uma única vez durante toda a realização do velório de Sandman, e é
protagonizada por Rob Gadling, um personagem que se enquadra em dois
parâmetros: é um bom amigo de Sandman e é humano. Quando lhe é informado
que Sandman está morto, e aquele é o seu funeral, o personagem se enfurece,
pranteando e tentando socar quem está próximo de maneira descontrolada, de uma
maneira que pode ser descrita como uma forma violenta de desespero, igual Ariès
descreveu as reações da poesia medieval frente à morte.
É interessante conjecturar, portanto, a razão pela qual apenas este
personagem teve esta reação frente à notícia da morte de Sandman. Ele não é o
único a prantear pelo falecido Rei dos Sonhos, pois vários outros o fazem durante o
velório, principalmente quando contam histórias sobre este. É possível encontrar
uma explicação na reação exagerada de Rob Gadling a partir de duas frentes
explicativas. A primeira é a questão da memória. Enquanto muitos outros, mesmo
não tão amigos de Sandman quanto Gadling, mas que o conhecem a bem mais
tempo – Gadling é um humano imortal, tem cerca de 500 anos –, são retratados
contando histórias sobre Sandman, Gadling é mostrado conversando sobre sua
própria vida.
A questão da memória pode ser explicada ao afirmar que, por não ter tido
uma vida tão extensa quanto outros deuses ou mesmo humanos que estavam
presentes, Gadling, mesmo tendo sido um bom amigo de Sandman e tendo tido
bons momentos com este, não tinha uma longa memória com seu amigo, e tão
pouco tinha noção do quão velho ou importante Sandman fosse. Ele foi capaz de
fazer de Gadling imortal, é verdade, mas isso perde um pouco da importância
quando ele está diante de vários outros humanos imortais. Nesta questão acerca da
memória, volta-se para a obra de Marisete Hoffmann-Horochovski, na qual ela trata
de memórias de velhos frente à morte. Ela afirma que “através do discurso, os
velhos atuam como narradores privilegiados e não só ajudam a manter a história,
como conferem a ela significações19”. Gadling pode ser considerado um velho, uma
18 Ibidem, p. 188. 19 HOFFMANN-HOROCHOVSKI, Marisete Teresinha. Memórias de Morte e Outras Memórias: Lembranças de Velhos. Curitiba: Editora UFPR, 2013, p. 190.
10
vez que viveu várias vezes mais do que a média de vida humana, contudo, faltava
algo além da idade para que pudesse narrar suas histórias junto do Rei dos Sonhos,
e o que faltava era justamente as histórias junto dele. Ambos se encontravam, desde
o século XV, uma vez a cada 100 anos em uma taverna e conversavam, o que não
lhes proporcionou uma longa experiência. Portanto, não tendo tantas memórias do
recém falecido, mesmo lhe considerando um bom amigo, Gadling não tinha tantas
histórias com ele e sobre ele, de forma que a vida do amigo parecia ter se esvaído
prematuramente, sem que este tivesse vivido muito, sem que sua longa e quase
eterna vida tivesse sentido. Esta é uma das possíveis explicações pelas quais
Gadling ficou tão raivoso no momento em que soube da morte de Sandman, e
também porque, dos presentes, apenas ele ficou dessa maneira. Vale salientar, ao
mesmo tempo, que Matthew, o corvo e amigo de Sandman, também apresentou um
luto de resignação, contudo, enquanto Gadling apresentou a mesma raiva descrita
por Ariès, a Matthew coube a negação.
Dando prosseguimento às elucubrações sobre o comportamento de Rob
Gadling, existe uma segunda hipótese pela qual ele teve esta reação. Pode-se
explicar a sua atitude frente ao fato de que, ante a morte do amigo, ele viu a sua
própria mortalidade. É de se esperar que ao longo de seus quase 500 anos Gadling
tenha visto muitas pessoas queridas morrendo, contudo, Sandman foi o primeiro que
morreu que, para ele, era imortal, o que o fez questionar sua própria mortalidade. O
efeito que a morte de Sandman teve para Rob Gadling seria a mesma que qualquer
morte de um ente querido apresenta para um humano comum. E esta hipótese é
corroborada pelo fato de que, enquanto muitos dos amigos e pessoas queridas de
Sandman são retratadas contando histórias sobre ele, revivendo memórias que
tiveram juntos, Rob Gadling está bebendo e pensando na própria vida, em toda a
sua existência. Portanto, pode-se afirmar que a morte do amigo o fez pensar na
própria vida, e perceber, talvez pela primeira vez em um longo tempo, que ela
poderia terminar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
11
Não é fácil compreender todas as nuances de Sandman, pois é uma história
que bebe de diversas fontes, desde a literatura da antiguidade, até a poesia
medieval e mesmo o punk rock contemporâneo. São diversas fontes que devem ser
consideradas, além, é claro, da rica e louca imaginação de seu autor, Neil Gaiman.
Contudo, com um pequeno recorte da grandiosa e ampla obra que é Sandman, foi
realizada uma tentativa de compreender as diversas nuances que compreendem os
rituais referentes à morte deste personagem e também como são retratados aqueles
que compõe os ritos.
Portanto, com base na bibliografia apresentada, e realizando-se uma
demorada leitura das imagens e também da intersecção com textos que compõe
uma história em quadrinhos, acredita-se que foi possível compreender um pouco do
que Gaiman pensou ao escrever o roteiro de Sandman. Com base nisto, foi possível
perscrutar a obra e, utilizando a bibliografia de apoio, chegar a algumas conclusões
acerca das representações dos ritos funerários de Sandman. É possível afirmar,
então, que Gaiman empresta ao velório do seu protagonista um ar suntuoso,
contudo, esta suntuosidade é emprestada do período medieval, mais
especificamente da poesia deste período, pois embora algumas práticas ainda
aconteçam em cidades interioranas, como o cortejo, estes não se dão de forma tão
suntuosa. E é interessante como, buscando uma fonte para beber acerca dos rituais,
Gaiman manteve-se atento mais à poesia do que a fontes históricas. Ao mesmo
tempo, a razão pela qual foram escolhidos os ritos do período medieval para serem,
de certa forma, “transcritos” em Sandman, parece ser que desta forma seria um
meio termo entre uma busca por algo antigo e suntuoso, pois Gaiman não podia
fazer com que o funeral de um personagem tão importante fosse algo comum e sem
importância para o leitor, contudo, Gaiman não conseguiu se desvencilhar das
imagens dos rituais fúnebres do seu contexto, de forma que muito do ritual medieval
sofreu com uma aproximação de sua mesma forma contemporânea ao autor. Tanto
que, mesmo buscando a suntuosidade de tempos medievais e a representação de
deuses, criaturas mitológicas e humanos imortais lamentando pelo morto, a forma
que o fazem é tão humana e comum quanto qualquer velório, contando antigas
histórias e reavivando a memória daquele que os deixou. E assim, os rituais
fúnebres descritos em Sandman acabaram sendo uma reinvenção fantasiosa de
12
diversos rituais existentes, alguns no passado e outros ainda no presente, e, ao
mesmo tempo, isso se deu para, além de conferir ao ritual toda a suntuosidade que
um personagem como Sandman deveria ter, também atuar como a conclusão na
obra. Pois em poucas páginas seria possível retratar o velório e mostra-lo tão ou
mais suntuoso do que este que foi representado em Sandman. Contudo, os ritos
fúnebres se alongaram tanto, prolongando-se por três revistas, ou seja, três meses,
para dar um desfecho para a obra. Pois se Sandman, o personagem, teve um
funeral tão suntuoso porque era um ser importante, a publicação Sandman também
foi importante, e o seu desfecho deveria ser tão suntuoso quanto o ritual que
mostrou, pois aquela seria a despedida que o leitor daria não apenas ao
personagem, mas também à revista mensal. E embora Sandman tenha tido mais
três revistas publicadas após o fim do funeral, elas serviram para amarrar pontas
soltas na publicação. O grande desfecho, a grande conclusão e despedida do leitor
se deu neste funeral, outra razão pela qual ele teve toda essa suntuosidade.
Por fim, pode-se concluir que embora Gaiman busque um retrato medieval
para a representação dos ritos fúnebres, ele também não consegue se desvencilhar
das representações do seu contexto temporal. E, no fim, o leitor, humano, mortal,
acaba sendo se assemelhando à figura de Rob Gadling: olhando para o amigo morto
e percebendo que, um dia, sua vez chegará. De forma que pode-se afirmar que,
para Gaiman, muito embora os ritos possuam sua beleza, sua suntuosidade, muito
disso acaba sendo ignorado no momento em que, ao olharmos para eles, o
resultado que eles tem é lembrar-nos de nossa própria mortalidade.
FONTES:
GAIMAN, Neil. Fim dos Mundos. São Paulo: Editora Conrad, 2007
GAIMAN, Neil. Despertar. São Paulo: Editora Conrad, 2008.
BIBLIOGRAFIA
ARIÉS, Philippe. O homem diante da morte. São Paulo: Editora Unesp, 2003.
AUMONT, Jascques. A Imagem. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2009.
13
BAXANDALL, Michael. Padrões de Intenção. São Paulo: Companhia das Letras,
2006.
ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 1970.
ELIAS, Norbert. A Solidão dos Moribndos. São Paulo: Ed. Zahar, 2001,
HOFFMANN-HOROCHOVSKI, Marisete Teresinha. Memórias de Morte e Outras
Memórias: Lembranças de Velhos. Curitiba: Editora UFPR, 2013.
VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978.