cosmovisão banta e capoeira angola

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/30/2019 cosmoviso banta e capoeira angola

    1/13

    MINKISI E INQUICES: COSMOVISO BANTA E

    RESSIGNIFICAO NO CANDOMBL ANGOLA

    Ivete Miranda Previtalli*

    Este artigo parte da minha tese de doutorado e prope um olhar sobre o

    candombl angola circunscrito na cidade de So Paulo, no momento em que ele se revela

    esforando-se por afirmar sua identidade, minimizando os sincretismos entre as naes

    angola e queto, alm de procurar afirmar sua origem africana.

    O que permanece diferente nos entrecruzamentos?

    No final do sculo XX e comeo do XXI, tomam fora entre o povo do santo do

    candombl angola de So Paulo questes e procuras diversas: sobre a legitimidade desta

    nao e sua originalidade, sobre o que cada um entende por tradio, propostas de

    descolamento de elementos religiosos de origem nag dos ritos angola e a valorizao de

    sua autoestima baseada na afirmao de uma identidade tnica banta. Essas questes vo

    emergindo entre as lideranas, e rapidamente contagiam aqueles que esto nas escalas

    hierrquicas inferiores.

    Na pesquisa que realizei entre pais e mes de santo da nao angola em So Paulo,

    um de meus interlocutores demonstrou um pesar, devido desateno dos estudos

    acadmicos, da mdia e da literatura em relao ao candombl angola e suas divindades,

    deixando claro que houve uma escolha que resultou na soberania nag. Em seguida,

    questionou se o candombl angola no tem uma identidade, e se a tem, onde encontr-la.

    Estas questes explicitam a crise de identidade que est acontecendo com a nao angola

    paulista, pois no folheto do congresso ECOBANTO 1, realizado em So Paulo no ano de2003 sobre a nao angola, est a pergunta: Quem somos, de onde viemos e o que

    queremos?

    Sobre a questo da procura da identidade, Hall cita a observao de Kobena

    Mercer: a identidade somente se torna uma questo quando est em crise, quando algo

    que se supe como fixo, coerente e estvel deslocado pela experincia da dvida e da

    incerteza (MERCER, 1990, p. 43 apud HALL, 2004, p. 9). Assim, a identidade dos

    adeptos do candombl angola em So Paulo, que parecia unificada e previsvel, tornou-se

  • 7/30/2019 cosmoviso banta e capoeira angola

    2/13

    incerta e questionvel. Se a princpio iniciar-se no candombl angola era suficientemente

    apropriado para um adepto da umbanda paulista ascender na hierarquia religiosa afro-

    brasileira, atualmente assumir a identidade de angoleiro, em muitos casos, passou a exigir

    esclarecimentos sobre rituais, mitos e cosmoviso que sejam prprios da nao.

    Muitos adeptos no mais se contentam com a estruturao dos rituais do

    candombl angola baseada em explicaes concernentes mitologia da nao queto.

    devido ao conhecimento da formao do candombl por diferentes grupos africanos, dentre

    eles os bantos e os sudaneses, que os questionamentos sobre o sincretismo entre as naes

    surgem. Afinal, o que significa pertencer ao candombl angola? Qual sua origem? Quais

    so suas especificaes?

    Retomando o depoimento do pai de santo que se pergunta: Por que os bantos no

    tm uma identidade religiosa? E qual a forma de buscar essa identidade religiosa?,

    percebemos, neste caso, que existe uma identidade africana, banta, que reconhecida neste

    momento, alm da identidade brasileira do candombl angola. A prpria designao afro-

    brasileira para o candombl denota a variabilidade de regimes de pertenas que desafiam

    mais uma vez o pensamento binrio a qualquer tentativa de ordenar o mundo em

    identidades puras e oposies simples. necessrio registrar aquilo que, nosentrecruzamentos, permanece diferente (CANCLINI, 2008, p. XXXIII).

    Canclini chama a ateno para os processos de hibridao restrita, nos quais h a

    apropriao de elementos de vrias culturas, mas isto no significa que as aceitemos

    indiscriminadamente. (CANCLINI, XXXIII, 2008). No nosso caso, o candombl de

    nao angola paulista pode aceitar o caboclo, a presena do santo catlico e at a mitologia

    nag, mas pode no aceitar, por exemplo, a mistura dos nomes dos inquices com os dos

    orixs, as rezas em queto em seus ritos, entre outros. Essas misturas e o reconhecimento

    pelos estudos de que a nao angola tem uma origem africana mais nebulosa so o que,

    principalmente, confere a esta angola o ttulo de um candombl de segunda categoria.

    No movimento dialtico entre permanncias e rupturas no candombl angola

    paulista, so identificveis duas vertentes que esto prevalecendo, segundo o que foi

    revelado durante as entrevistas, pelos pais e mes de santo que participaram da pesquisa. A

    primeira das posturas est fundada na crena de que a nao angola necessita buscar sua

    origem africana para preencher as lacunas que resultaram da dispora. H, neste caso, uma

  • 7/30/2019 cosmoviso banta e capoeira angola

    3/13

    tentativa de restaurar identidades passadas e o perigo de cair na ortodoxia religiosa e na

    ideologia da pureza ao se propor uma proximidade com tradies religiosas bantas. A

    segunda atitude verificada em outros terreiros que no aceitam as mudanas propostas

    devido ao encontro com tradies religiosas bantas e procuram permanecer na nao

    angola criada no Brasil, como resultado dos processos de hibridao.

    Assim, tratarei neste artigo, que parte de uma pesquisa maior, da atual proposta de

    revitalizao do passado longnquo africano, a fim de esclarecer o processo em curso e em

    que medida vlida a procura da frica pelo candombl angola.

    A encruzilhada Brasil frica

    Percebi que, no caso da proposta de ruptura com a estrutura brasileira da nao

    angola, o retorno ao passado torna-se preponderante. Esse retorno tanto pode ter a

    finalidade de assumir uma posio crtica a fim de que seja superada a conjuntura

    precedente, quanto de reavivar um passado mais longnquo e africano, como se possusse

    um cordo umbilical que ligaria o presente e o passado ininterruptamente. A proposta de

    recuperao da tradio africana, no entanto, faz referncia a mitos, com todo potencial de

    moldar nosso imaginrio, influenciar nossas aes, conferir significado s nossas vidas e

    dar sentido a nossa Histria (HALL, 2004, p. 29).

    A frica que vai bem para os adeptos do candombl uma referncia hifenizada,

    transformada e produzida na dispora, portanto mtica. Esse retorno um exerccio de

    produzir a frica novamente e produzirem-se a si mesmos buscando aproveitar fontes

    perdidas no passado. A cultura afro-brasileira entrelaamento e fuso de elementos de

    diferentes tradies culturais africanas, indgenas e europeias. Esse resultado hbrido torna

    muito difcil a separao dos elementos de origem para chegar a uma pretensa pureza.

    Apesar disso, a procura da frica no de toda equivocada, pois, retrabalhada, pode ser

    um elemento poderoso para a poltica cultural em que a nao angola est inserida.

    Neste caso, no podemos pensar a nao angola ligada a um passado africano que

    permaneceu imutvel. Mas, podemos pensar como, na narrativa do candombl angola, a

    frica pode ser recriada. Desta forma, de acordo com o que Hall nos prope, essa uma

    questo de interpretar a frica, reler a frica, do que a frica poderia significar para

    ns hoje, depois da dispora (HALL, 2004, p. 40).

  • 7/30/2019 cosmoviso banta e capoeira angola

    4/13

    Assim, no podemos considerar a nao angola como um objeto de arqueologia,

    que, numa viagem de retorno frica, seria recuperada em seu estado puro, pois como

    elemento da cultura, ela dinmica e uma produo.

    A frica banta , no entanto, sensivelmente mais prxima da nao angola nos

    inquices, na linguagem, nos batuques e danas, mesmo que tenham sido singularmente

    combinados com os orixs e santos cristos. Isso reflete um processo mais aberto e mais

    fluido de delimitaes das fronteiras que vivido nas disporas, e podemos encontr-lo em

    toda nao de candombl.

    H uma cosmoviso introjetada na nao angola que revela suas particularidades,

    isto , o que no chegou a fundir-se. Sobre o reconhecimento do que contm de desgarrenos processos de hibridao, Canclini afirma: Uma teoria no ingnua da hibridao

    inseparvel de uma conscincia crtica de seus limites, do que no se deixa, ou no quer ou

    no pode ser hibridado (CANCLINI, 2008, p. XXVII).

    Sendo assim, penso que a nao angola pode revelar valores, costumes e

    mundividncias, mesmo que ressignificados remetem a uma origem africana. Essa no

    somente a frica sudanesa, de onde se originou o candombl queto, mas tambm a frica

    banta, de onde vieram elementos das culturas dos povos da frica Central, que,

    ressignificados, esto presentes no candombl angola.

    Esse esforo de reconstruo das identidades do candombl reflete o interesse em

    mostrar a ligao com seu passado africano, no de maneira imutvel, mas produzida na

    narrativa afro-brasileira. A juno destas rotas fragmentadas ao presente procura

    reconstruir a genealogia no-dita da nao angola, e constitui a preparao do terreno

    histrico de que precisamos para conferir sentido matriz interpretativa e s auto-imagens

    de nossa cultura, para tornar o invisvel visvel (HALL, 2003, p. 42).

    Encontrei em bibliografias2, relatos de viajantes, principalmente de sacerdotes

    catlicos sobre a cosmogonia, rituais e mitos, aos quais presenciaram na frica-central e

    que eram muito semelhantes entre si, e que so tambm similares a certos rituais do

    candombl angola paulista.

    certo que muitos elementos religiosos e rituais que existiam e ainda existem na

    frica central foram preponderantes, devido suas caractersticas que so similares s do

  • 7/30/2019 cosmoviso banta e capoeira angola

    5/13

    culto aos orixs, para a elaborao da nao angola do candombl. Na bibliografia

    consultada, pude constatar essa relao de similaridade. Entretanto, percebo que esta uma

    pesquisa que deve ser ampliada. Neste caso, apenas trago para esse trabalho alguns

    apontamentos, que tm o intuito de chamar a ateno para a existncia de traos africanos

    na nao angola.

    No proponho valorizar os africanismos que denotam maior ou menor pureza dos

    terreiros. Ao contrrio, para o processo de hibridao que pretendo olhar, no sentido de

    que as misturas podem ser produtivas, mas que tambm geram conflitos devido ao

    momento histrico, no qual elas podem se tornar incompatveis. Nas palavras de Canclini

    (2008), seria a possibilidade de entrar e sair da hibridez (apud Cornejo Polar, 1997).

    O que atravessou a Kalunga?

    A possibilidade de encontrar nas religies nativas angolanas similaridades com os

    rituais do candombl angola brasileiro seria, na verdade, uma maneira de provar para si e

    para os outros que o candombl angola no apenas uma cpia, uma mera imitao do

    candombl queto, mas que seus ritos, embora ressignificados, tm uma origem africana

    prpria.

    Uma viagem para Angola, no entanto, parece pouco encorajadora. Assim, as

    pesquisas na internet ou em livros, principalmente em dicionrios encontrados nas

    bibliotecas universitrias, tornam-se um caminho para a frica perdida. Por meio de

    dicionrios, rezas que se transformaram com o passar dos sculos, so paulatinamente

    corrigidas, e as tradues permitem que as palavras professadas possam ser

    compreendidas.

    Da mesma maneira que a lngua sagrada vai sendo recriada, tambm velhos

    inquices esquecidos na frica chegam ao Brasil. Certamente, essas inovaes no so

    sempre bem aceitas. Sobre este assunto, ouvi, em uma das entrevistas realizadas com uma

    antiga me de santo: O que no atravessou o oceano no pode ser feito aqui!

    Isso significa que, para essa me de santo, apenas aquilo que herana religiosa

    africana da poca do trfico e que foi preservado pelo candombl que pode estar presente

    na nao angola do sculo XXI como referncia africana. Assim, para essa me de santo,tudo o que veio depois, como a recriao de novos inquices no Brasil, deveria ser

  • 7/30/2019 cosmoviso banta e capoeira angola

    6/13

    desprezado. Se, como diz a me de santo, o que no atravessou o Atlntico com o trfico

    no pode ser considerado tradio do candombl, o que realmente atravessou a Kalunga3

    e permitiu o nascimento de uma nao de candombl chamada angola?

    Inquice Brasil, Nkisi4 frica

    O principal culto do candombl angola orientado para os inquices. Os inquices,

    por serem associados aos orixs do candombl queto, tm sido uma das grandes

    preocupaes de parte dos pais e mes de santo da nao angola em So Paulo. Diferenci-

    los, de maneira que possam ser dissociados dos orixs, uma tarefa complicada, uma vez

    que as fronteiras no podem ser facilmente delimitadas e a similaridade entre os cultos so

    maiores do que as possibilidades de separ-los.

    Essa dificuldade pode ser facilmente percebida em entrevistas, em que os adeptos

    mais ou menos politizados e informados sobre as recuperaes africanas da nao trocam o

    nome dos inquices pelos dos orixs.

    Certamente, os bantos trouxeram os inquices da frica para o Brasil, e mesmo que

    tenham ficado muito prximos dos orixs, para no dizer que para alguns adeptos sejam amesma coisa, ainda de alguma maneira se diferenciam dos orixs iorubanos. Hall escreve

    que quando se trata de dispora, em toda parte h hibridismo e diffrance (Hall, 2003, p.

    33). O conceito derridiano de diffrance implica que possamos entender a diferena sem

    fronteiras fixas, isto , existe uma articulao binria que so places de passage, e

    significados posicionais e relacionais, sempre em deslize ao longo de um espectro sem

    comeo nem fim (Hall, 2003, p. 33).

    Desta forma, o fazer sentido na traduo, como prope Hall, o que interessa ser

    captado, pois ao mesmo tempo em que h uma procura pelo lugar onde a nao angola

    estava anteriormente, isto , a frica, tambm sabemos que existiu algo no meio, tornando-

    a brasileira.

    Entretanto, a herana africana oferece recursos de organizao para a nao angola.

    Mesmo que seus elementos tenham sido transformados pelo processo de traduo cultural,

    a frica o significante, pois ela foi negada para a nao angola quando esta nao foi

    considerada como cpia dos candombls queto.

  • 7/30/2019 cosmoviso banta e capoeira angola

    7/13

    Ao encontrarmos em diversas pesquisas e etnografias da frica Central Minkisi

    mya Nsi5, ou Mkisi-Nsi, mesmo quando so chamados de dolos,6 podemos construir

    um elo entre o candombl angola e as antigas religies dos bantos. Dentre estes etngrafos,

    Jos Redinha escreveu sobre diversos assuntos relacionados cultura banta, dentre eles, o

    Nkisi, encontrado em cultos de povos de Angola: Em Cabinda desfruta de grande

    venerao um padroeiro benfazejo de nome Nkisi-Nsi, atribudo de poderes de fertilidade e

    fecundidade. Zela pelas produes do solo, da caa e da pesca (REDINHA, 1974, p. 371;

    1973, p. 28).

    Tambm Cavazzi, no sculo XVII, registrou a existncia, nas crenas dos bantos,

    de diversos dolos e que cada provncia tinha os seus prprios. Curiosamente, descreveu

    um assentamento desses dolos em terras dos Jagas:

    Tm eles... uma cabaa muito grande, chamada iaco... Ao redor delacolocam miudezas..., e dentro pe-lhe ossos, ps e rabos de cabras, degalinhas e ces sacrificados, misturado com azeite e outros ingredientes eespecialmente com sumo de figo do inferno (fruto da datura stramonium).Distribuem tudo isso aos doentes como tempero de sua comida(CAVAZZI, 1965, p. 211).

    Estes altares descritos acima tm muito a ver com os assentamentos dosinquices encontrados no candombl angola de So Paulo, considerando-se, logicamente, as

    devidas transformaes e adaptaes que sofreram no Brasil, em So Paulo e na

    modernidade. Essa descrio vale ser notada, pois a maioria das descries de inquice na

    frica se refere a amuletos pessoais que parecem muito distantes dos assentamentos dos

    inquices encontrados atualmente em So Paulo.

    Entre essas representaes diferenciadas de Nkisi, podem ser encontrados na

    frica Central uma espcie de inquice, que so os fetiches de pregos, tambmconhecidos por nkondi, como escreve MacGaffey:

    Entendendo os princpios sobre os quais os minkisi so geralmentecompostos, ns estamos equipados para considerar o mais espetacular eao mesmo tempo o mais diferente tipo de nkondi do Congo, que sofiguras de madeira cheias de pregos e outros equipamentos espetados,agora catalogados em museus como fetiches de prego. O nomesignifica caador (de Konda, caar sozinho e a noite, mais do que caarem grupo), e a principal funo de nkondi perseguir malfeitores.

    (MACGAFFEY, 2000, p. 97) [Traduo livre]

  • 7/30/2019 cosmoviso banta e capoeira angola

    8/13

    Entretanto, nem todos inquices so representados por figuras de madeira

    incrustadas de pregos e lminas. Segundo MacGaffey:

    Pregar apenas um meio pelo qual um nkisi pode ser despertado; algunsexemplos de nkondi foram feitos em panelas de barro, nas quais,obviamente, no poderiam ser colocados pregos (pregados). EmboraMungundu seja um Nkondi, e em exemplos bem conhecidos edocumentados (Nkondi), fosse uma figura de madeira com pregos, umnkisi deste nome tem como base no uma figura de madeira, mas umagarrafa de vinho.Em uma srie de exemplos, o aparato material para o ritual inclua tantoum pote e uma ou mais figuras, porm alguns textos especificam que nohavia tki (esttua), em outros o autores podem simplesmente teresquecido de mencionar o pote ou a figura. Babutidi diz simplesmenteque nkondi um pote ou uma cabaa, em que h a semente de uma fruta

    nsafu (...) (MACGAFFEY, 2000, p. 100) [Traduo livre].

    O que me parece importante reter que mesmo que houvesse diversas maneiras de

    elaborar um inquice, havia, dentre elas, os inquices feitos em cabaas e potes, que tinham a

    funo de capturar tanto uma centelha divina como a de um esprito, o que, para os

    bakongos, lhes conferia vida prpria. Essa observao importante, porque os inquices no

    candombl so assentados em tigelas ou sopeiras, e talvez, como defendia me Kayandew

    uma de minhas interlocutoras, em cabaas e no em louas; interessaria elucidar se j foidessa maneira ou se houve uma mudana neste sentido.

    Dessa forma, encontrei alguns inquices entre os povos centro-africanos que so

    conhecidos no Brasil. Entretanto, a elaborao dos assentamentos, assim como a relao

    dos inquices com as comunidades africanas onde eles foram encontrados, tem muitas

    diferenas com os inquices da religio brasileira. No Brasil, os inquices ficaram muito

    parecidos com os orixs dos sudaneses devido a similaridades que existiam entre as

    caractersticas de ambos. Os processos de hibridao que sofreram as religies dos negroscentro-africanos transportados para o Brasil, com a dispora, transformaram os inquices, na

    medida em que os fundiram com elementos de outras tradies religiosas.

    certo que eles existiam e ainda existem na frica central, e foram algumas de

    suas caractersticas que so similares s dos orixs que permitiram sua sobrevivncia no

    candombl angola. Na bibliografia consultada, pude constatar essa relao de similaridade.

  • 7/30/2019 cosmoviso banta e capoeira angola

    9/13

    Mpambu Njila

    O sincretismo entre as naes de candombl e o catolicismo aparece de diversas

    formas. Entretanto, o inquice Aluvai, Mavile ou Njila, como atualmente tem sidoreconhecido, o que traz os dois sincretismos explcitos em sua identidade. Ele

    sincretizado tanto com o orix Exu do candombl queto, como com o diabo judaico-

    cristo.

    No candombl, o bem e o mal no esto separados, os inquices e orixs so neutros.

    O bem ou o mal esto na inteno das pessoas, no nas divindades. Mesmo assim, algumas

    vezes, aos sussurros Exu denominado diabo, capeta. Por outro lado, no podemos

    dizer que ambos possuem as mesmas caractersticas, pois Exu quem, na concepo docandombl, dinamiza a vida, levando os pedidos e oferendas para os lugares certos no

    mundo dos ancestrais e dos deuses, possibilitando a melhora do mau destino.

    Aluvai, Bombogira, Carococi, Pangira, Jiramavambo, Mpambu Njila, Mavambo,

    so nomes que recebe o inquice sincretizado com Exu no candombl angola. Um adepto

    mais familiarizado com o movimento de valorizao dos elementos da cultura banta

    geralmente refere-se a Mavile, Mavambo ou Mpambu Njila, e no a Exu. Contudo, muito

    provvel que alguns adeptos, ao se descuidarem, usaro tanto o nome de um quanto do

    outro, referindo-se a mesma divindade. As fronteiras entre Exu e Mpambu Njila so

    bastante fluidas, tornando-se difcil separ-los.

    No se sabe se Aluvai ou Mpambu Njila um inquice que veio da frica ou

    nasceu no Brasil. Dessa maneira, ao pesquis-lo, encontramos o nome Aluvai em Nei

    Lopes, que acredita estar, possivelmente, relacionado ao quioco lu-vuya, que uma

    aliana feita com uma entidade espiritual (LOPES, 2003, p. 27).

    Da mesma forma, encontramos, com pequenas variaes, Njila, significando

    rua tanto para o quicongo quanto para o quimbundo, e Mpambu, significando

    cruzamento.7 Rua, cruzamento, encruzilhada (pambu quimbundo; mpambu

    quicongo), podem muito bem terem sido ressignificados como o homem da rua.

    Segundo Liana Trindade, no Brasil, Exu o resultado de um processo onde se

    perderam os quadros sociais de referncia pela degradao scio-cultural do escravo

    africano. Houve o deslocamento de smbolos de uma estrutura lgica de pensamento, para

  • 7/30/2019 cosmoviso banta e capoeira angola

    10/13

    adquirir novos sentidos fornecidos por outro contexto de relaes estruturais.

    (TRINDADE, 1985, p.35)

    Assim, Exu transformou-se em guardio e companheiro do homem. carinhosamente conhecido pela comunidade como companheiro, ou compadre. Foi

    nessa categoria que o Exu brasileiro se dividiu em macho e fmea. Curiosamente, o

    nome do inquice Bombogira (Mpambu Njila) sofreu uma corruptela e se transformou na

    pomba-gira, representao feminina dessa categoria de Exu.

    So espritos de mulheres, delinquentes, prostitutas, gente que viveu margem da

    sociedade e que o complexo simblico de Exu permite formar uma fora peculiar, s

    avessas, que nesse movimento vm se inserir, pode-se dizer, com certo glamour, vidasocial, sem contrariar nenhuma norma moral. No limite, podemos encarar esse arranjo

    como uma insurreio dos marginalizados, e adequao dos costumes.

    Encontramos entre os bakongo, outra significao para Mpambu a Njila revelada no

    trabalho de MacGaffey, que amplia o significado desse termo banto:

    Mpambu a njila que um cruzamento ou uma bifurcao consideradacomo um ponto de separao entre o mundo dos viventes e o mundo dosmortos. Nestes locais so colocadas folhas de palmeiras, e outrosencantamentos, a fim de restringir o trfico indesejvel entre os doismundos (MACGAFFEY, 1986, p. 56) [Traduo livre].

    Por intermdio dessa informao, podemos pensar que o conceito sagrado de

    encruzilhada csmica, a passagem entre os dois mundos na cosmoviso banta, j existia na

    frica, podendo ter sido ressignificada no Brasil, em contato com o conceito do orix Exu.

    H uma crena na frica-Central de que Mbanza Kongo (lugar central), a antiga

    capital do Congo, nasceu numa encruzilhada. Podemos interpretar essa encruzilhada

    original por intermdio das reflexes de Eliade: Da mesma forma que o Universo se

    desenvolve a partir de um centro e se estende na direo dos quatro pontos cardeais, assim

    tambm a aldeia se constitui a partir de um cruzamento (ELIADE, 2001, p. 45).

    A diviso em quatro partes do mito de fundao de Mbanza Kongo relaciona-se

    com a maneira que o mundo Bakongo era dividido. Dessa forma, os quatro pontos

    cardeais, as horas do dia: o amanhecer, o meio dia, o anoitecer e a meia-noite; os

    momentos da vida do homem: o nascimento, o homem adulto, o envelhecimento e a morte,

  • 7/30/2019 cosmoviso banta e capoeira angola

    11/13

    dividem o mundo por meio de uma cruz, que tudo tem a ver com o simbolismo csmico do

    Universo Bakongo e a Mpambu Njila.

    Consideraes finais

    Podemos encontrar inmeros elementos religiosos presentes nas diversas culturas

    bantas da frica central que nos rementem ao candombl angola. Entre outros traos

    podemos encontrar a concepo de Nzambi, a utilizao da pemba, o sentido da cor branca

    que muito valorizada pelo candombl angola, a utilizao da munzala que est

    relacionada com a maternidade, o sentido da presena das pedras como hierofanias8 nos

    assentamentos dos inquices, as quizilas que esto presentes nos relatos de Cavazzi do

    sculo XVII e que ainda hoje fazem parte dos candombls angola.

    Assim, encontramos os inquices e os espritos ancestrais (caboclo) no candombl

    angola como os intermedirios entre Nzambi e os humanos. Mesmo sincretizados com os

    tenha orixs iorubanos, possvel localizar os inquices nas etnografias da frica Central, o

    que permite compreender seus arqutipos no Brasil.

    O culto aos espritos, na frica Central, tinha relao com os grupos a que eles

    pertenciam, s famlias, aos nganga e aos soba. Estas entidades tutelares eram

    veneradas, e eram consideradas como deuses. Ao atravessarem o Atlntico, a separao da

    rede familiar alterou a trajetria da vida do homem africano, incitando-o a redefinir e

    reconstruir as suas relaes sociais, que estavam intimamente ligadas cosmoviso de seu

    grupo africano.

    No Brasil, os espritos tutelares perderam a fora que tinham na frica, na medida

    em que o homem foi afastado de seu grupo familiar e de sua terra. No processo de

    recriao, foram os inquices ou espritos da natureza que se tornaram importantes,

    inclusive para a formao das famlias de santo que, de certo modo, reconstituram as

    familias dissolvidas pelo sistema escravagista.

    Sendo assim, mesmo que possamos encontrar algumas similaridades entre os cultos

    religiosos bantos e o dos inquices no Brasil, devemos ter em mente que o processo no

    engessado, e que j em frica sofria transformaes culturais. Os inquices brasileiros,como representantes das foras da natureza, talvez tenham vindo substituir os Nkisi nsi,

  • 7/30/2019 cosmoviso banta e capoeira angola

    12/13

    nzambi a nsi, e kinda que eram, segundo MacGaffey, espritos tutelares de vilas

    associados a gua, tempestades, grutas e grandes pedras (MACGAFFEY, 1986, p. 80).

    *Doutora em Antropologia com pesquisas sobre cultura afro brasileira, candombl, nao angola,sicretismos.1 Em 3 de outubro de 2003, foi realizado no auditrio da Biblioteca Mrio de Andrade o primeiroECOBANTO Encontro de tradies bantas no Brasil, que trazia como proposta de discusso: quemsomos, de onde viemos e o que queremos. As lutas histricas e resistncias de razes de candombl deinfluncia banta que migraram para o sudeste do Brasil: Tombensi, Gomia, Bate-folha, Tumba Junsara,Angolo Paquet, Viva Deus, Manadew e outros grupos.2 A pesquisa bibliogrfica que foi pesquisada, foi produzida sobre grupos bantos centro-africanos, e sotrabalhos datados do sculo XVII, outros que tratam do sculo XVIII , XIX e comeo do sculo XX. Osautores aqui estudados so: P.e Joo Antnio Cavazzi de Montecccolo, que esteve na frica Central, ondepermaneceu de 1654 a 1667 e 1672 a 1677; o etnlogo missionrio Padre Carlos Estermann, que no comeodo sculo XX estudou etnias bantas do sudoeste de Angola Ambs, Hereros e Nhanecas-humbes) e no-bantos - Cusses, Cuandos e Curocas, Khoisan, Bochimanes, Kedes e Ovi-Womu; Joo Vicente Martins que, de 1943 a 1959, estudou o grupo tnico de angola Tutchokwe, e no nordeste de Angola, observou osbakongo e tukongo no sculo XX ps independncia; Jos Redinha (19051983), um importante etngrafoque produziu vrios trabalhos e relatrios sobre diversas zonas culturais de Angola; o antroplogoMaccgaffey, que estudou os bakongos do nordeste de Angola no sculo XIX. Em muitos casos, terei quefiltrar os preconceitos ocidentais, mas sem dispensar o que de interessante podemos ler nestas fontes. 3 Kalunga, alm de significar a divindade suprema ou Deus, tambm significa o mar, o oceano.4 Encontramos o termo Minkisi mya Nsi , Mkisi-Nsi, e Minkisi tendo significados mas com diferentesgrafias.O termo Minkisi o plural de Nkisi. No Brasil as divindades do candombl angola so nomeadas pelotermo Inquice. Encontrei o termo, tambm com a grafia Nkisi.5

    Minkisi o plural de Nkisi.

    6 Cavazzi escreveu sobre a importncia dos dolos para as populaes bantas do sculo XVII: beira doscaminhos mais freqentados, h postes, paus, altares ou pedras ali colocados para venerao de um dolo enenhum dos idlatras se atreveria a passar sem oferecer uma pequena pedra, um fio de erva, uma folha ououtro objeto semelhante para seguir feliz o seu caminho, deixando ali todo o seu cansao (CAVAZZI, 1965,p. 120).7 MAIA, Antnio da Silva. 1961.8 Hierofania:Segundo Eliade: encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestao de algo deordem diferente de uma realidade que no pertence ao nosso mundo (...) (ELIADE, 2001, p. 17), algode sagrado nos revela (ELIADE, 2001, p. 17).

    Bibliografia

    CANCLINI, Nstor Garca. Culturas Hbridas - Estratgias para entrar e sair damodernidade. Traduo de Ana Regina Lessa e Helosa Pezza Cintro. So Paulo, EDUSP,2008.

    CAVAZZI de Montecccolo, P.e Joo Antnio de. Descrio Histrica dos trsReinos Congo, Matamba e Angola. Vol. I Agrupamento de Estudos de Cartografia Antiga.Traduo, notas e ndices: Padre Graciano Maria de Leguzzano. O. M. Lisboa: Junta deInvestigao Ultramar, 1965.

    CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionrio de Smbolos. Mitos,sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, nmeros. Rio de Janeiro, Editora JosOlympio, 1982.

  • 7/30/2019 cosmoviso banta e capoeira angola

    13/13

    ELIADE, Mircea. O Sagrado e o profano. Essncia das religies. 5 tiragem,

    Traduo: Rogrio Fernandes. So Paulo, Martins Fontes, 2001.ESTERMANN, Carlos. Etnografia de Angola (Sudoeste e Centro). Coletnea de

    artigos dispersos. Volume I e II. . Lisboa. Instituto de Investigao Cientfica Tropical1983.HALL, Stuart. Da Dispora - Identidade e mediaes culturais. Traduo: Adelaide

    La Guardia Resende, Ana Carolina Escosteguy, Cludia lvares, Francisco Rdiger,Sayonara Amaral. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2003.

    _______. A Identidade Cultural na ps modernidade. 9a edio. Traduo: TomazTadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro, DP&A, 2004.

    LOPES, Nei. Bantos, Mals e identidade negra. Rio de Janeiro, ForenseUniversitria, 1998.

    ________. Kitbu. O livro do saber e do esprito negro-africanos. Rio de Janeiro.

    SENAC Rio, 2005)MACGAFFEY, Wyatt. Religion and Society in Central Africa. The BaKongo oflower Zaire. Chicago and London, The University of Chicago Press, 1986.

    _______. Kongo Political Culture. The Conceptual challenge of Particular.Bloomington, Indiana University Press, 2000.

    MAIA, Antnio da Silva. Dicionrio Complementar Portugus Kimbundo Kikongo. (Lnguas nativas do Centro e Norte de Angola). Aveiro, Portugal, Tipografia dasmisses, 1961.

    MARTINS, Joo Vicente. Crenas, adivinhao e medicina tradicionais dosTutcokwe do nordeste de Angola. Lisboa, Imprensa Portuguesa, 1993.

    PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixs.So Paulo. Companhia das Letras,2001.

    REDINHA, Jos. Sincretismos Religiosos dos Povos de Angola. Luanda, Institutode Investigao Cientfica de Angola, 1973.

    _______. Etnias e Culturas de Angola. Premio Banco de Angola, 1974. Luanda.Instituto de Investigao Cientfica de Angola, 1974.

    TRINDADE, Liana.Exu poder e perigo. So Paulo. Editora Icone, 1985.VERGER, Pierre Fatumbi. Grandeza e decadncia do culto de ymi srng

    (Minha Me Feiticeira) entre os Yorb. In: ___. A senhora do pssaro da noite. Org.Moura, Carlos Eugnio Marcondes de.So Paulo. EDUSP, 1994.