Costa, AF (2008), Sociedade de Bairro. Dinâmicas Sociais da Identidade Cultural

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    Do mesmo autor

    António Firmino da Costa, Cristina Palma Conceição, Inês Pereira, Pedro Abrantes

    e Maria do Carmo Gomes, Cultura Científica e Movimento Social. Contributos paraa Análise do Programa Ciência Viva

    Graça Índias Cordeiro, Luís Vicente Baptista e António Firmino da Costa (orgs.),  EtnografiasUrbanas

     João Ferreira de Almeida, Patrícia Ávila, José Luís Casanova, António Firmino da Costa,Fernando Luís Machado, Susana da Cruz Martins e Rosário Mauritti,  Diversidadena Universidade. Um Inquérito aos Estudantes de Licenciatura

     João Ferreira de Almeida, Luís Capucha, António Firmino da Costa, Fernando Luís Machado,Isabel Nicolau e Elizabeth Reis, Exclusão Social. Factores e Tipos de Pobreza em Portugal

     Jorge Correia Jesuíno (coord.), Lígia Amâncio, Patrícia Ávila, Graça Carapinheiro, António

    Firmino da Costa, Fernando Luís Machado, Maria Teresa Patrício, Alan Stoleroff e Jorge Vala, A Comunidade Científica Portuguesa nos Finais do Século XX . Comportamentos, Atitudes e Expectativas

     José Manuel Leite Viegas e António Firmino da Costa (orgs.), Portugal, que Modernidade?

    Outros títulos

    Anália Cardoso Torres, Casamento em Portugal. Uma Análise Sociológica.Anália Cardoso Torres, Divórcio em Portugal, Ditos e Interditos

    Anália Cardoso Torres, Sociologia do Casamento. A Família e a Questão Feminina.Fernando Farelo Lopes e André Freire, Partidos Políticos e Sistemas Eleitorais.Fernando Luís Machado, Contrastes e Continuidades. Migração, Etnicidade e Integração

    dos Guineenses em Portugal. João Ferreira de Almeida, Classes Sociais nos Campos João Freire, Homens em Fundo Azul Marinho. Ensaio de Observação Sociológica sobre

    Uma Corporação nos Meados do Século XX: a Armada Portuguesa. João Freire (org.), Associações Profissionais em Portugal. José Manuel Leite Viegas, Nacionalizações e Privatizações.

     José Manuel Leite Viegas e Eduardo Costa Dias (orgs.), Cidadania, Integração, Globalização. José Manuel Leite Viegas e Sérgio Faria, As Mulheres na Política. Juan Mozzicafreddo, Estado-Providência e Cidadania em PortugalMaria das Dores Guerreiro, Famílias na Actividade EmpresarialMaria de LurdesRodrigues, Os Engenheiros em Portugal.Maria de Lurdes Rodrigues, Sociologia das ProfissõesRui Pena Pires, Migrações e Integração. Teoria e Aplicações à Sociedade Portuguesa .

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    António Firmino da Costa

    Sociedade de BairroDinâmicas Sociais da Identidade Cultural

    2.ª Edição

    CELTA EDITORA Lisboa | 2008

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    © 1999, António Firmino da Costa

    António Firmino da Costa (n. 1950)Sociedade de Bairro. Dinâmicas Sociais da Identidade Cultural

    Primeira edição: Março de 1999Tiragem: 1500 exemplaresSegunda edição:  Janeiro de 2008Tiragem: 500 exemplares

    ISBN: 978-972-774-249-3Depósito legal:

    Composição (em caracteres Palatino, corpo 10): Celta EditoraCapa: Mário Vaz | Arranjo: Celta EditoraImpressão e acabamentos: Publidisa, Espanha

    Reservados todos os direitos para a língua portuguesa,de acordo com a legislação em vigor, por Celta Editora, Lda.

    Celta Editora, Av. de Berna, 11, 3.º, 1050-036 Lisboa, Portugal

    Endereço postal: Apartado 151, 2781-901 Oeiras, PortugalTel.: (+351) 214 417 433Fax: (+351) 214 467 304E-mail: [email protected]ágina: www.celtaeditora.pt

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    Índice

    Índice de figuras e quadros ......................................................................... ix

    Introdução ....................................................................................................... 1Um encadeamento de problemas ................................................................... 3Uma estratégia de investigação ....................................................................... 7Uma exposição em três andamentos .............................................................. 12

    Um processo partilhado ................................................................................... 13

    Parte I | EXTERIOR E INTERIOR

    1 Um objecto de pesquisa com excesso de visibilidade? ............... 19O discurso olisipográfico ................................................................................. 20Construção da memória social ........................................................................ 26Património e invenção do património ........................................................... 31

    O tempo e o espaço da cidade: uma articulação simbólica ........................ 39Marcas físicas, transmissão e dominação ...................................................... 43Visibilidade e visitabilidade ............................................................................ 51A visibilidade de Alfama como facto social .................................................. 57

    2 Identidade cultural e relações sociais locais .................................. 61Observação e delimitação ................................................................................ 62Limites: primeiras aproximações .................................................................... 66Configuração morfológica e populacional .................................................... 71

    Sobreposições e singularidade ........................................................................ 77Comunidade e sociedade ................................................................................. 82Contornos, núcleos e demarcações ................................................................. 92Identidade de bairro .......................................................................................... 108

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    Parte II | PADRÕES CULTURAIS E RELAÇÕES SOCIAIS

    3 Formas de cultura popular urbana e práticas identitárias .......... 117Práticas do fado e identidade local ................................................................. 118Contraste social: estrutura e cultura ............................................................... 126A emergência local do trágico ......................................................................... 135Protagonismo cultural, música e sociedade .................................................. 143Marchas populares: representação e prática identitária ............................. 151Festa, ritual e competição social ...................................................................... 159Modos de cultura, formas simbólicas, dinâmicas culturais ....................... 169

    4 Classes sociais e trajectórias de mobilidade num bairro popular . 187Composição social da população local .......................................................... 190Classes sociais e relações de classe ................................................................. 205Protagonistas sociais e indicadores de classe social .................................... 223Estratégias migrantes: um xadrez em dois tabuleiros ................................. 241Trajectórias sociais num entreposto de mobilidade social ......................... 261Modos de vida em meio social popular urbano ........................................... 271Estruturação social e identidade cultural ...................................................... 280

    5 Quadros de interacção e identidade de bairro .............................. 285

    Um enigma sociocultural? ............................................................................... 287O bairro como quadro de interacção .............................................................. 292Malha urbana, vizinhança e redes sociais ..................................................... 302Sítios, colectividades e rivalidades ................................................................. 314Interacções locais e instituições supralocais ................................................. 322Cultura, comunicação e interacção ................................................................. 331Quadros de interacção e processos identitários ........................................... 337

    Parte III | PERMANÊNCIA E MUDANÇA

    6 Processos endógenos e exógenos de reconfiguração sociocultural 349O mundo da estiva e as suas transformações ............................................... 352Oscilação de dinâmicas económicas ............................................................... 364O processo de reabilitação urbana .................................................................. 372Dinâmicas de recomposição social ................................................................. 377Cultura mediática e estilos de vida ................................................................ 389Formas culturais e mudança social ................................................................ 399

    Dinâmicas identitárias num bairro em transformação ............................... 405

    7 Reabilitação urbana: identidade cultural e acção colectiva ........ 409Construção social de um objecto de reabilitação urbana ............................ 413

    VI SOCIEDADE DE BAIRRO

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    Identidade cultural e tematização social ....................................................... 418Actores em presença e processo de reabilitação ........................................... 422Intervenção, técnicos e organização ............................................................... 434

    Disposições em relação à casa e ao bairro ..................................................... 443Políticas, projectos, avaliações ......................................................................... 450Estratégias identitárias, estrutura e acção ..................................................... 460

    Conclusão ........................................................................................................ 473Debates teóricos e modelos de análise ........................................................... 473Sociedade de bairro: problemas de contextualização e descontextualização .. 483Sentidos da identidade cultural   ...................................................................... 486

    Referências bibliográficas ........................................................................... 497

    VII

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    Índice de figuras e quados

    Figuras

    4.1 Matriz de construção do indicador socioprofissionalindividual de classe (Ispi) ................................................................... 228

    4.2 Matriz de construção do indicador socioprofissionalfamiliar de classe (Ispf) ........................................................................ 235

    6.1 População residente em Alfama, 1990: recomposição de classe

    segundo a antiguidade residencial (membros dos núcleosconjugais principais) ............................................................................ 380

    6.2 População residente em Alfama, 1990: mudança nas origensgeográficas segundo as idades ........................................................... 382

    6.3 Homens residentes em Alfama com 20 ou mais anos, 1990:recomposição de classe segundo as idades ..................................... 384

    6.4 Mulheres residentes em Alfama com 20 ou mais anos, 1990:recomposição de classe segundo as idades ...................................... 385

    6.5 Homens residentes em Alfama com 20 ou mais anos, 1990:

    evolução geracional dos níveis de escolaridade .............................. 3886.6 Mulheres residentes em Alfama com 20 ou mais anos, 1990:evolução geracional dos níveis de escolaridade .............................. 388

    7.1 Perspectivas sobre a reabilitação urbana do bairro ........................ 458

    Quadros

    2.1 Evolução da população de Alfama, 1864-1991 ................................ 73

    3.1 Participação de Alfama nas Marchas Populares de Lisboa,1932 a 1997 ............................................................................................. 1564.1 População residente em Alfama por grupo etário, segundo

    o sexo, 1990 ............................................................................................ 194

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    4.2 População residente em Alfama com 6 ou mais anos por nívelde ensino frequentado, segundo o sexo, 1990 .................................. 198

    4.3 População residente em Alfama por condição peranteo trabalho, segundo o sexo, 1990 ........................................................ 199

    4.4 População residente em Alfama por profissão principal(actual ou última), segundo o sexo, 1990 .......................................... 203

    4.5 População residente em Alfama por classe social (Ispi),segundo o sexo, 1990 ............................................................................ 225

    4.6 População residente em Alfama por sexo e classe social (Ispi),segundo o nível de ensino frequentado (em percentagem), 1990 ..... 230

    4.7 Grupos domésticos residentes em Alfama por classe social(Ispf), 1990 .............................................................................................. 236

    4.8 População residente em Alfama por classe social (Ispf), 1990 ...... 2384.9 População residente em Alfama por sexo e classe social

    dos indivíduos (Ispi), 1990, segundo a classe social dos gruposdomésticos (Ispf), 1990 (em percentagem) ....................................... 240

    4.10 População residente em Alfama por naturalidade,segundo o sexo, 1990 ............................................................................ 246

    4.11 População residente em Alfama nascida fora de Lisboapor concelho de origem (cinco mais frequentes), segundo o sexo,1990 (em percentagem do total de migrantes) ................................. 246

    4.12 População inquirida migrante residente em Alfamapor frequência de deslocação à terra de origem, segundo o sexo,1986 (em percentagem) ........................................................................ 248

    4.13 População inquirida residente em Alfama por modo de obtençãode emprego, segundo a naturalidade, 1986 (em percentagem) ........... 252

    4.14 População residente em Alfama por época de fixação no bairrodos representantes das famílias, segundo a naturalidade, 1990(em percentagem) ................................................................................. 262

    4.15 População residente em Alfama por classe social (Ispi),

    segundo a naturalidade e o sexo, 1990 (em percentagem) ............ 2644.16 Mobilidade social intergeracional da população inquiridaresidente em Alfama, 1986 (em percentagem) ................................. 264

    4.17 Mobilidade social intergeracional da população inquiridaresidente em Alfama por naturalidade e sexo, 1986(em percentagem) ................................................................................. 266

    5.1 População residente em Alfama por tipo de família, 1990 ............ 3125.2 População residente em Alfama por redes familiares, 1990 .......... 3125.3 População inquirida residente em Alfama por relação de

    naturalidades dos cônjuges, 1986 (em percentagem) ..................... 3145.4 População residente em Alfama por local de trabalho, 1990 ........ 3296.1 População residente em Alfama por tempo de residência no

     bairro dos membros dos núcleos conjugais principais, 1990 ........ 378

    X SOCIEDADE DE BAIRRO

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    7.1 Famílias residentes em Alfama por tipo de família, segundoo número de divisões do alojamento, 1990 (em percentagem) ..... 416

    7.2 Tipos de disposições em relação à casa dos núcleos conjugaisprincipais residentes em Alfama, 1990 (em percentagem) ............ 446

    7.3 Tipos de disposições em relação ao bairro dos núcleos conjugaisprincipais residentes em Alfama, 1990 (em percentagem) ............ 448

    XI

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    Introdução

    Este trabalho resulta de uma investigação sociológica de duração prolongada,desenvolvida no decurso de quase duas décadas, tendo como terreno de obser-vação o bairro de Alfama, situado no núcleo histórico da cidade de Lisboa.

    A análise aqui apresentada, tomando como referente empírico o bairro,tem como principal fio condutor teórico a discussão, sob vários ângulos, doproblema da identidade cultural.

    Os materiais empíricos recolhidos ao longo da pesquisa e o conjunto de

    análises realizadas a propósito deles foram suficientemente diversificadospara constituírem matéria-prima passível de outras problematizações. Hou-ve, no entanto, duas razões importantes, complementares entre si, para queaquela,adaidentidadecultural,seimpusessecomoinstânciaprivilegiadadequestionamento interpretativo e articulação conceptual, atravessando a teiade análises a seguir desenvolvidas.

    Porumlado,cedoseverificouque,aoprocurar-secaracterizareelucidaros mais diversos aspectos da vida social local e das manifestações culturais do

     bairro,muitas das relaçõesque nele se estabelecem e das dinâmicasque por ele

    passam, se ia parar quase sempre a questões de identidade cultural. Não só aessas,claroestá.Mas,decadavezqueseenfrentavaumqualquerenigmainte-ressante relativo aos processos sociais e às dinâmicas culturais de Alfama, ouse examinava uma das múltiplas facetas do quadro sociocultural local, o temareaparecia, de uma ou de outra maneira. A análise de cada um desses tópicosficaria seriamente truncada se se contornasse a questão.

    Por outro lado, a problemática da identidade cultural, e da identidadeem geral, tornou-se invasora nos últimos tempos, quer no âmbito das ciênciassociais, quer em círculos de produção intelectual erudita e em boa parte dos

    discursos correntes do quotidiano. Aparece um pouco por todo o lado como justificação de estilos, razão de preferências, critério de valorizações, instru-mento de activismos, fundamentação de políticas, tendo-se mesmo constituí-do em vocábulo central de diversos léxicos profissionais ou paraprofissionais.

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    Em muitos destes casos, faz-se dele uma utilização expedita, apriorística e rei-ficada, como se tivesse significado evidente, inequívoco e partilhado, e comose a expressão fosse em si mesma auto-explicativa, bastando introduzi-la numargumento para produzir de imediato elucidação de qualquer coisa.

    Preferiu-seaquipartirdeumaposiçãocontrária,istoé,dadequeocon-ceito de identidade cultural tem um estatuto ambíguo e significados múlti-plos, e deque falar-sede identidadecultural corresponde, em geral,maisa le-vantar um problema do que a fornecer uma solução.

    Deste ponto de vista, a pesquisa em Alfama permitia rediscutir o con-ceito,nãosódemaneiraabstracta,masconfrontando-odemaneirasistemáti-cacommaterialempíricoabundanteemarticulaçõespossíveiscomeleecomanálises teoricamente integradas dessa informação observacional. O bairro

    era assim constituído, para usar o conceito processual de Merton, num lugarestratégico de investigação da problemática da identidade cultural.1

    Com o centro de gravidade referido, a análise aqui apresentada desdo- bra-se numa série de problemas mais delimitados que estiveram na origemde sucessivas fases da investigação ou que no seu decurso ela veio a suscitar.É em torno de tais problemas que se apresenta a informação empírica perti-nente, recolhida através da pesquisa realizada. Procedeu-sedo mesmo modona convocação, para o texto, de elementos teóricos e metodológicos.

    A análise desenvolvida não dispensa, como em qualquer investigação

    científica,adiscussãodeumconjuntodequestõesdeteoriaedemétodo.Masprocura-se fazê-la ao longo dos diversos capítulos, tanto quanto possível àmedida que tais questões se vão tornando directamente relevantes para oexame dos problemas de investigação seleccionados, tratando-as de maneiraintegrada com a informação empírica carreada a propósito de cada um dossucessivos temas substantivos em que se desdobrou a análise e se organizoua exposição.

    Nestas condições, procurou-se reduzir ao mínimo as considerações preli-minares antecedendo o trabalho de análise propriamente dito, ou seja, aquele

    que, decorrente da investigação, se realizou acerca do seu objecto de estudo.Não se pretende, em particular, levantar desde já o véu sobre o que sequer dizer com sociedade de bairro, nem proceder a uma definição abstractainicial,préviaàanálisesubstantivaapoiadanesteestudodecaso,doconceitode identidade cultural.Tantoapropósitodeumacomodeoutra,oquehápara

    2 SOCIEDADE DE BAIRRO

    1 Robert K. Merton, “Three fragments from a sociologist’s notebooks: establishing the phe-nomenon, specified ignorance, and strategic research materials”, Annual Review of Socio-logy, XIII, 1987. Os “locais estratégicos de pesquisa”, talcomo os “acontecimentosestraté-

    gicos de pesquisa”, são dois dos principais tipos de “materiais estratégicos de pesquisa”,no sentido proposto porMerton, istoé, casos empíricos particularmente favoráveis ao es-tudo dedeterminados fenómenos complexos,difíceis deabordar, casos esses susceptíveisde proporcionar análises frutuosas e integradas dos fenómenos em causa e a descobertade novos problemas merecedores de investigação ulterior.

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    expor, ao longo dotexto, tem menos o carácterdeponto departida e maiso deresultado de investigação — precário e provisório, como todos os produtosda actividade científica.

    Segue-se, de imediato, em registo introdutório, um conjunto de indi-cações muito sintéticas acerca do que este trabalho constitui, de como foifeito e das perspectivas genéricas que a ele presidiram enquanto investiga-ção sociológica.

    Um encadeamento de problemas

    A pesquisa realizada em Alfama teve o seu início muito antes de se ter pensa-

    do que pudesse vir a tornar-se no suporte do presente trabalho. Começou,como pesquisa de terreno, em finais de 1979 e, na altura, o objectivo era estu-dar o fado amador num dos bairros populares de Lisboa, contextos sociaispor excelência com que ele tende a ser conotado.

    OfactodeestaprimeirafasedepesquisaemAlfamatersidodesencade-adaemrespostaaumdesafiodeJoaquimPaisdeBrito,noâmbitomaisvastodeumprogramadeinvestigaçãoporeleconcebidosobreofado,deixoumar-casimportantesnotipodeabordagempraticado,noplanoteóricoenodotra-

     balho de campo.2 Em especial, constituiu oportunidade para enriquecer um

    referencialdisciplinardebase,sobretudosociológico,comsensibilidades,es-tilos de pesquisa e contributos conceptuais provenientes da antropologia.

    No conjunto, a perspectiva analítica adoptada levou a estudar aquelaforma musical procurando compreendê-la enquadrada na configuração cul-tural e no tecido social do bairro. Passou-se assim à investigação dos padrõesculturais nele vigentes e das formas de cultura popular localmente produzi-das,dasrelaçõesdevizinhançaeoutrasredessociaisconstituídasnaquelees-paço urbano, dos códigos de comunicação e dos modos de interacção que aliimpregnam as práticas da vida quotidiana.

    Eraoprópriobairroqueseconvertiadealgummodonãosóemterrenode pesquisa mas também em objecto de estudo, implicando contemplar umnovo conjunto dedimensões deobservação e análise e, ao mesmo tempo,sus-citando toda uma série de novos problemas de investigação.

    A par disso, visando explorar as potencialidades cognitivas de uma co-nexão analítica com bases sólidas na tradição sociológica, procurava-se ca-racterizaraslocalizaçõesestruturaiseospercursosdevidadosprotagonistas

    INTRODUÇÃO 3

    2 Para além das investigações que coordenou e orientou sobre o tema, constituem marcos dotrabalhodelongo fôlegodoautor neste domínio: Joaquim PaisdeBrito,“Sobreo fadoe a His-tória do Fado”, introdução à reedição de Pinto de Carvalho (Tinop), História do Fado, Lisboa,Publicações Dom Quixote, 1982 (1903); e “Fado: vozes e sombras”, in Joaquim Pais de Brito(org.), Fado: Vozes e Sombras, Lisboa, Museu Nacional de Etnologia / Lisboa 94, 1994.

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    Gerou-se no bairro, por meados da década de 80, um movimento colec-tivo pela recuperação das muitas casas degradadas ali existentes, e por ou-tros objectivos interligados com este. Eram protagonistas centrais desse mo-vimento membros das juntasde freguesia locais, dirigentes de colectividadesassociativas e diversos outros residentes, com quem se tinham estabelecido,nodecursodapesquisadeterreno,contactosregulares,relaçõesdeconfiançaou de amizade, conversas frequentes sobre as situações e as dinâmicas comque o bairro se via confrontado.

    No plano cognitivo, o tratamento de parte dos temas de investigaçãoatrásmencionadosimpunhaacontinuidadedapresençanoterrenoeode-senvolvimento de operações de pesquisa adicionais, algumas de grandeenvergadura. Ao mesmo tempo, as mudanças sociais e os movimentos co-

    lectivos agora observáveis no bairro sugeriam novo tipo de problemas ainvestigar,comapossibilidadedearticulararespectivaanáliseàdosante-riores, mas exigindo também, para que tal se pudesse concretizar, o pro-longamento no tempo da pesquisa.

    Tudo isto conduzia, em termos metodológicos, a constituir no bairro,atravésdoslaçossociaisneleestabelecidos,doslocaisfrequentadoscomassi-duidadeedasactividadesemquealiseparticipava,oquecaberiaapelidardeuma plataforma de observação continuada. Poder-se-ia assim acompanhar deperto um conjunto de facetas e processos sociais, quer na configuração espe-

    cífica que ganhavam no bairro, quer na ilustração que representavam de as-pectosmaisgeraisdasociedadeportuguesacontemporâneaou,até,detemasde análise sociológica de grande generalidade.

    O trabalho de campo de longa duração tornava-se indispensável, emespecial, para o desenvolvimento de uma pesquisa intensiva de processos, poracompanhamento directo das mudanças que iam reconfigurando o bairro edos episódios sucessivos das dinâmicas relacionais em que se iam envolven-do os actores sociais em presença.

    Às razões cognitivas para o prolongamento da pesquisa, tanto substan-

    tivascomometodológicas,vinhamsomar-serazõeséticas.Nãopareceujustodeixar de corresponder a solicitações de colaboração no movimento pela rea- bilitação urbana de Alfama, solicitações endereçadas também, aliás, a váriosoutros especialistas de diversas áreas com algum tipo de ligação ao bairro.Além do mais, como se poderia permanecer em contacto directo com as pes-soas e as situações, pedir em permanência as mais diversas informações e os

    INTRODUÇÃO 5

    4 Aspublicações mencionadas são:António Firmino daCosta e Maria das Dores Guerreiro,

    OTrágicoeoContraste:OFadonoBairrodeAlfama, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1984;AntónioFirminodaCosta,“Entreocaiseocastelo:identidadeculturalnumtecidosocialinigualitário”, RevistaCríticade CiênciasSociais,n.º14,1984;“Alfama:entrepostodemobi-lidade social”, Cadernos de Ciências Sociais, n.º 2, 1984; “Espaços urbanos e espaços rurais:um xadrez em dois tabuleiros”, Análise Social, n.º 87-88-89, 1985.

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    mais variados acessos, e recusar por sua vez qualquer forma de cooperação eparticipação?

    Em todo o caso, optou-se por um modo de envolvimento que ocorressesempre a solicitação de actores sociais locais, e não por iniciativa do investi-gador ou por imposição da sua própria agenda de “causas”, procurando-setão-só dar contributos a dinâmicas que tivessem enraizamento significativono tecido social local e cujo protagonismo central pertencesse claramente aactores sociais do bairro — e desde que, como é evidente, fossem compatíveiscom as convicções pessoais do investigador.

    Ou seja, pretendeu-se neste caso conduzir a pesquisa mais nos moldesda observação participante do que nos de outras formas de implicação forteno terreno, fossem elas quer as da investigação-acção, quer as da intervenção

    sociológica,queraindaasdaactividadetécnicaoudoinvestimentomilitantesociologicamente informados.

    Não que se tivesse qualquer oposição de princípio a essas outras modali-dadesdetrabalhosociológicooudeconvocaçãodasociologia,masporseraque-leotipodepesquisaquesetinhadesenvolvidoesequeriacontinuaradesenvol-ver no bairro, bem como por coerência com a natureza do inter-relacionamento

     já estabelecido com ele e susceptível de se manter no futuro. No entanto, com oslimitesauto-impostosreferidos,ascomponentesdesolidariedadeinterpessoalede acção cívica assumida estiveram efectivamente presentes.

    Alguns pequenos mas muito úteis apoios da Fundação Calouste Gul- benkian, do Instituto Nacional de Investigação Científica, extinto pouco de-pois, e da Comissão Nacional da Unesco, permitiram a realização, na segun-da metade dos anos 80, de um levantamento de práticas culturais locaiscentrado nas festividades e nas associações, de um inquérito extensivo porquestionário à mobilidade geográfica e social das famílias residentes emAlfama, e de vários períodos de trabalho de campo num conjunto alargadode aldeias beirãs ligadas ao bairro por laços migratórios.

    Entrefinaisdosanos80eprincípiosdosanos90surgiuapossibilidade

    decolaborarcomaCâmaraMunicipaldeLisboanarealizaçãodeuminqué-rito extensivo por questionário à composição social e às condições de habi-tação do bairro.

    Outras colaborações com a CML, ao longo da década de 90, resultaram,primeiro, num conjunto de pequenos estudos intensivos sobre aspectos de mu-dança nas actividades económicas com significativa incidência local. Levaram,depois, em vários anos sucessivos, ao acompanhamento das Festas de Lisboa e,muito em especial,dosarraiais e dasmarchas populares, possibilitando análisescomparativas e acesso a aspectos simbólicos, relacionais e institucionais de con-

     junto, relativos à cidade e aosseusbairros. Conduziram,ainda, a seguir especial-mente de perto, no âmbito das intervenções de reabilitação urbana, o ciclo delançamento de projectos integrados em torno de determinados espaços circuns-critos e equipamentos colectivos de bairros históricos e populares de Lisboa.

    6 SOCIEDADE DE BAIRRO

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    Em qualquer das vertentes anteriores, tomou-se sempre Alfama comolocal privilegiado de acompanhamento dos processos sociais em causa e derecolhaintensivadeinformaçãosobreeles,articulandoasnovasobservaçõescom as que se vinham acumulando acerca das outras dimensões atrás referi-das, constitutivas da configuração social e cultural do bairro.

    A pesquisa foi-se desenvolvendo, deste modo, como um encadeamento de problemas de investigação, abordados a partir de uma plataforma de observaçãoconstruída demaneira continuada, sucessivamente renovadaao longo dosanose,decadavez,ajustadaàsmudançasocorridas e àsnovas dimensões deanálise.

    Tais problemas foram sendo suscitados, por assim dizer, tanto pelo su- jeito como pelo objecto da investigação. Do lado do primeiro provinham querdos desdobramentos analíticos e reequacionamentos teóricos que se iam rea-

    lizando, quer da acumulação de observações efectuadas, por vezes de teorinesperado. Do lado do segundo — e para além da complexidade de partidadasuaconstituiçãoedassuasmúltiplasvertentes—asdinâmicasdemudan-ça social que iam atravessando o bairro, bem como as solicitações provenien-tes de actores sociais locais envolvidos em movimentos colectivos, desenro-lando-se ambas em simultâneo com o próprio processo de pesquisa, iam-nocolocando perante sucessivos novos temas de questionamento, a articularanaliticamente com os anteriores.

    Uma estratégia de investigação

    O que aqui se pretende apresentar é, pois, antes de mais, um conjunto articu-lado de análises resultantes de investigação sociológica, entendida como in-vestigação empírica teoricamente orientada.

    Tal concepção supõe, do princípio ao fim, o comando conceptual e pro- blematizador da teoria, e o objectivo de conduzir em permanência, como umdos seus principais resultados, ao questionamento, reelaboração ou produ-

    ção de teoria.5Massupõetambém,comomesmocarácterdecomponenteconstitutivointrínseco, a realização de pesquisa empírica, ou pesquisa observacional, emsentido lato, implicando recolha e análise de informação sobre o objecto deestudo — recolha e análise essas efectuadas de maneira teoricamente infor-mada e metodologicamente reflectida, e utilizando de forma controlada ins-trumentos técnicos e procedimentos operatórios apropriados.

    Em termosgerais, a concepção referidacorresponde ao entendimento daprática de investigação científica como actividade de produção de enunciados

    INTRODUÇÃO 7

    5 Acerca da “função de comando da teoria”, a referência clássica, na bibliografia portugue-saemciênciassociais,éadeJoãoFerreiradeAlmeidaeJoséMadureiraPinto,  A Investiga-ção nas Ciências Sociais, Lisboa, Editorial Presença, 1976.

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    cognitivos sobre um certo domínio de fenómenos, mas enunciados cognitivosde um género particular, o daqueles que se faz questão de elaborar pelo accio-namento conjunto, e de sujeitar ao duplo crivo, da teoria e da observação.

    Por outras palavras, sendo já hoje geralmente aceite, no debate episte-mológico, e em certa medida na actividade de produção científica, que to-dos os enunciados, incluindo os das ciências, são enunciados interpretati-vos, logo, passe a redundância, susceptíveis de múltiplas interpretações, ainvestigação científica caracteriza-se por se propor produzir enunciadoscognitivos sujeitos a certos “limites à interpretação”.6 Limites esses que sãoprecisamente, afinal, os decorrentes do confronto cruzado desses enuncia-dos com quadros teóricos sempre em reconstrução e com produtos empíri-cos permanentemente actualizáveis da observação realizada sob regulação

    metodológica.Trata-se, pois, de “limites construtivos”, ou regras de construção. Ou

    seja, teoria e observação constituem as ferramentas próprias da produção deconhecimentos sociológicos, sobretudo quando accionadas, na prática de in-vestigação,emdiálogocriativomasaomesmotempointransigenteumacoma outra — e é nesse sentido que tomam também o carácter de limites constitu-tivos auto-assumidos da interpretação sociológica.

    Os enunciados cognitivos, nomeadamente sobre o domínio social, nãosão de modo nenhum exclusivos das ciências, concretizando-se também

    noutros espaços e noutros regimes de produção de saberes.7 Masosdecarác-ter científico caracterizam-se pela sua produção segundo essas “regras do

     jogo”, as do confronto sistemático cruzado com teoria e observação. É daí,aliás, desse tipo de desafio específico, das práticas a ele inerentes e dos resul-tados correlativos, que deriva boa parte do interesse objectivo e do prazer in-telectual que a investigação científica suscita.

    Foi, pois, uma concepção de investigação sociológica deste tipo, comoinvestigação empírica teoricamente orientada (no duplo sentido, quanto aosegundo aspecto, de orientada pela teoria e orientada para a teoria), que se

    procurou pôr em prática e da qual decorrem as análises aqui apresentadas.Em todo o caso, as modalidades de articulação entre teoria e observaçãonão são sempre exactamente as mesmas, variando consoante as finalidadescognitivas principais atribuídas à pesquisa e as estratégias de investigaçãoadoptadas.

    8 SOCIEDADE DE BAIRRO

    6 Aexpressão é retomada daproposta,em sentido maisvasto, por Umberto Eco emOsLimi-tes da Interpretação, Lisboa, Difel, 1992 (1990).

    7 Veja-se José Madureira Pinto, “Tópicos para uma análise da produção de saberes sobre o

    social”, in AA.VV., Dinâmicas Multiculturais,Novas Faces, Outros Olhares (ActasdoIIICon-gresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais), vol. I, Lisboa, Instituto de Ciências So-ciais da Universidadede Lisboa, 1996, onde o autor analisa as relações entre quatro espa-ços de produção de saberes sobre o social: o mítico-profético, o mediático-político, o dasciências sociais e o da prática social corrente.

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    Percorrendo a bibliografia de investigação sociológica, no sentido refe-rido, é possível encontrar, numa sistematização necessariamente esquemáti-ca, três tipos principais de estratégias metodológicas, com finalidades analí-ticas diferenciadas, géneros de resultados distintos e modos específicos deconduzir a pesquisa.8

    Um deles corresponde às que se podem chamar, fazendo apelo à tradi-ção terminológica corrente na metodologia das ciências sociais, estratégias deinvestigação extensivas-quantitativas. O inquérito por questionário é a modali-dade mais comum de procedimento observacional nestas pesquisas. Implicaa construção de instrumentos de recolha de informação estandardizada (osquestionários, tanto quanto possível de perguntas fechadas), possibilitandoa medida segundo parâmetros homogéneos, e a respectiva aplicação extensi-

    va, por contacto pontual com um grande número de indivíduos responden-tes, abrangendo todos os elementos do universo a estudar ou amostras apro-priadas dele.

    Seja como for, concretize-se a pesquisa observacional pela aplicação di-recta de questionários, ou por tratamento de fontes estatísticas previamenteconstituídasdemaneirasemelhante,ouaindaatravésdeoutrosprocedimen-tosextensivos,oqueimportasalientaréqueosresultadosqueseesperaobteratravés de tal tipo de estratégia de pesquisa têm sempre, basicamente, a for-ma de relações quantificadas entre variáveis.9

    Uma segunda categoria engloba as estratégias de investigação comparati-vas-tipológicas.Emgeraldebruçam-sesobreumnúmerobastantemaispeque-no, mas ainda assim significativo, de unidades de análise, utilizando instru-mentosdepesquisamaisflexíveiseprocedimentosderecolhadeinformaçãode média intensidade. A técnica mais corrente é a das entrevistas, nas diver-sas variantes que elas podem assumir, complementadas eventualmente porlevantamentos documentais ou períodos limitados de observação directa.

    Afinalidadeprincipaléconseguircaptaradiversidadeconstitutivadeumdeterminadofenómenosocial,àpartidaapenasconhecidodemaneiravagaein-

    diferenciada. Os resultados mais importantes a que se chega condensam-se, na

    INTRODUÇÃO 9

    8 A tipologia que se segue retoma, com pequenos ajustamentos, a sugerida por Charles C.Ragin em Constructing Social Research: The Unity and Diversity of Method , Thousand Oaks(Cal.), Pine Forge Press, 1994.

    9 Na investigação sociológica portuguesa podem mencionar-se, como ilustrações dos jámuitosestudosrealizados,porexemplooresultantedeuminquéritoextensivoaosinves-tigadores científicos portugueses (Jorge Correia Jesuíno, Lígia Amâncio, Patrícia Ávila,Graça Carapinheiro, António Firmino da Costa, Fernando Luís Machado, Maria TeresaPatrício,AlanStoleroffeJorgeVala, AComunidade Científica Portuguesa nos Finais do Século

    XX: Comportamentos, Atitudes e Expectativas,Oeiras,CeltaEditora,1995)ouacomponenteextensiva de um estudo sobrea literacia em Portugal, nomeadamentea análise das distri- buições sociais de competências de leitura, escrita e cálculo (Ana Benavente, AlexandreRosa, António Firmino da Costae PatríciaÁvila, A Literacia em Portugal: Resultados de umaPesquisa Extensiva e Monográfica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1996).

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    maioria das vezes, em torno de uma tipologia, a das principais modalidades quetal fenómeno assume. A lógica analítica desenvolvida é a da comparação entreas unidades estudadas, procurando-se organizá-las por tipos, de acordo com amaneira como se situam numa série de atributos dimensionais, ao mesmo tem-poqueseafinaoconjuntodasdimensõespertinentes,tomandoemcontaascon-figurações tipológicas a que se vai chegando.10

    Um terceiro conjunto é agrupável sob a designação genérica de estratégiasde investigação intensivas-qualitativas.Realizam-setomandocomoterrenodepes-quisa uma unidade social singular — como uma aldeiaou um bairro, um grupoouumaorganização,umespaçopúblicoouummovimentocolectivo,entrevári-as outras possibilidades — ou, eventualmente, um pequeno número delas. Re-correm sobretudo à observação directa, por vezes participante, de carácter in-

    tensivo e multifacetado, em interacção continuada e informal com as pessoasintegrantes dessa unidade social. Com frequência são accionadas, de formacomplementar, outras técnicas de recolha de informação.

    Oresultadotoma,emgeral,aformadeum estudodecaso.11 Nestetipodepesquisa, os objectivos concentram-se na descrição densa e na análise inte-grada de um caso, procurando caracterizar a articulação específica que nelese estabelece entre múltiplas facetas da sua constituição. Visa-se, assim, con-tribuir paraa elucidação daquilo em que consiste a singularidade do caso, emespecial do que nela decorre daquela articulação específica de dimensões,

    mas,também,paraoesclarecimentodosmodoscomo,emalgumasdessasdi-mensões, ele se relaciona com domínios sociais mais vastos.12

    Talvez fosse dispensável acrescentar queesta “arrumação”dasestratégi-asdeinvestigaçãosociológicamaispraticadasédenaturezaideal-típica,tendoapenas intuitos clarificadores genéricos. É raro cada pesquisa concreta apre-sentar as características de um “tipo puro”. Muitas, estruturando-se de manei-ra privilegiada segundo um deles, do qual retiram coerência metodológica,

    10 SOCIEDADE DE BAIRRO

    10 Dois exemplos são os da produção de uma tipologia de modos de vida dos pobres (JoãoFerreira de Almeida, Luís Capucha, António Firmino da Costa, Fernando Luís Machado,Isabel Nicolaue Elizabeth Reis, Exclusão Social. Factores e Tipos de Pobreza em Portugal,Oei-ras, Celta Editora, 1994 (1992)) e de uma tipologia dos modos de relação entre família eempresa no universo dos empresários de PME (Maria das Dores Guerreiro,  Famílias na

     Actividade Empresarial: PME em Portugal, Oeiras, Celta Editora, 1996).11 Um conjunto de reflexões recentes sobre a utilização dos conceitos de “caso” e “estudos

    decaso”nainvestigaçãosociológicaencontram-seemJacquesHamel(org.), TheCaseMet-hodinSociology, Londres, International SociologicalAssociation e SagePublications, 1992(número temático da revista Current Sociology,vol.40,n.º1,1992),eemCharlesC.RagineHoward S. Becker (orgs.), What is a Case? Exploring the Foundations of Social Inquiry, Cam-

     bridge, Cambrige University Press, 1995 (1992).12 Vejam-se, nomeadamente, os estudos atrás mencionados de João Ferreira de Almeida,Classes Sociais nos Campos: Camponeses Parciais numa Região do Noroeste, op. cit., e de JoséMadureiraPinto, Estruturas Sociaise PráticasSimbólico-Ideológicas nos Campos: Elementos deTeoria e de Pesquisa Empírica, op. cit.

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    contêm também aspectos de outros. Algumas dificilmente seriam classificá-veis numa dessas três variantes básicas da investigação sociológica.

    O interesse da tipologia está sobretudo na evidenciação das articula-ções lógicas (“método-lógicas”) entre tipos de objectivos, tipos de procedi-mentosetiposderesultados.Aprocuradecoerênciametodológicanodesen-volvimento da investigação em sociologia pode encontrar aqui pontos dereferência.

    O presente trabalho insere-se, no fundamental, na terceira das modali-dades de investigação sociológica inventariadas. A estratégia de investiga-ção seguida foi, antes de mais, de tipo intensivo-qualitativo, e os resultadosde que aqui se dá conta assumem a forma de um estudo de caso.

    No entanto, a estruturação da pesquisa em torno de uma estratégia me-

    todológica central não significou qualquer forma de restritividade apriorísti-ca quanto às técnicas de recolha e análise da informação empírica a utilizar.Pelo contrário, recorreu-se a um leque muito diversificado de técnicas, desdeas de observação directa atéàs do inquérito por questionário, passando pelasentrevistas e pela análise documental, embora integradas de maneira especí-fica numa estratégia metodológica de base com as características referidas.

    Em termos mais operatórios, isto significa que todos os instrumentos eprocedimentos derecolhae análise de informação foram accionados sob a égideda pesquisa de terreno, enquanto método principal seguido na investigação.

    O método da pesquisa de terreno assenta na presença prolongada do in-vestigador nos contextos sociais em estudo, em contacto directo com as pesso-as e as situações. Nesse sentido, pode dizer-se que o principal instrumento dapesquisa é o próprio investigador, através das observações “de primeirograu”, a que vai procedendo, de pessoas e grupos, gestos e verbalizações,comportamentos e situações, símbolos e objectos, actividades e processos, eatravés das observações “de segundo grau” que continuadamente faz dosmodos de relacionamento que os membros da unidade social em estudo comele vão estabelecendo.

    A articulação estreita entre observação e interpretação, a centralidadeanalítica dos processos conjugados de familiarização e distanciamento, a re-gulação contínua dos procedimentos de pesquisa a partir de uma teoria doobjecto em permanente reformulação através da integração nela das análisessucessivamente realizadas no decurso da pesquisa — tudo isso tornou indis-pensável a presença directa e continuada do investigador no terreno.13

    Presença essa requerida, também, pelos laços relacionais estabelecidosno bairro, pelas dinâmicas da interacção com actores sociais locais e pelo en-volvimento controlado em processos ali em curso, eles próprios por sua vez

    incluídos no objecto de estudo. Prolongamento incentivado, ainda, pela pos-sibilidade de analisar, com base em informação recolhida por acompanha-mento directo, lógicas de permanência e mudança relativas a diversas di-mensões de estruturação social, profundamente entrelaçadas entre si no

    INTRODUÇÃO 11

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    contexto social local mas, em alguns aspectos decisivos, parecendo desenro-lar-se ali a ritmos muito dessincronizados uns dos outros.

    Uma exposição em três andamentos

    Destemodo,nodecursodapesquisafoi-seconfrontandoteoriacomempiria,colocando interrogações, formulando hipóteses, revendo análises, elaboran-do sínteses. Alguns conceitos vinham já com importância adquirida, outrosforamganhandocentralidade,constituindo-seemnósorganizadoresdaredede questionamentos e interpretações progressivamente construída.

    Um destes é, como se disse, o conceito de identidade cultural. Pelas ra-

    zões enunciadas de início, está presente ao longo de todo o texto, como fiocondutor ou, talvez melhor, como problema sucessivamente recolocado eexaminadodeváriosângulos.Comeleentrecruzam-seváriosoutrosquevãosendo objecto de discussão nos diversos capítulos.

    Aexposiçãoestáorganizadaemtrêspartes.Cadaumadelasformaumaunidade, retomando à sua maneira um conjunto integrado de aspectos con-cernentes às dinâmicas sociais da identidade cultural que se podem analisartomando o bairro de Alfama como horizonte empírico de referência.

    Naprimeiraparte,compostapordoiscapítulos,aperspectivaprivilegi-

    adaéadasrelaçõesentreinterioreexteriornaproduçãodaidentidadecultu-raldeAlfama.Sãotratadostemascomoosmecanismosenvolvidosnavisibi-lidade social do bairro e as imagens acerca dele construídas a partir doexterior, ou como a sobreposição de dimensões de estruturação das relaçõessociais locais e os componentes da relação identitária com o bairro por parteda população residente. O capítulo inicial concentra-se nas dinâmicas exóge-nas e o seguinte nas endógenas, mas procura-se desenvolver a análise demodo a mostrar as respectivas interligações.

    A segunda parte explora as potencialidades, para a abordagem de um

    objecto de estudo como o que está aqui em causa, de um modelo analítico ar-ticulando três conceitos fundamentais, o de padrões culturais, o de classes

    12 SOCIEDADE DE BAIRRO

    13 Para um maior desenvolvimento acerca da pesquisa de terreno, em boa parte elaborado apartir da experiência dos primeiros anos de trabalho de campo em Alfama, veja-se AntónioFirmino da Costa, “Apesquisa de terreno emsociologia”, in Augusto Santos Silva e José Ma-dureira Pinto (orgs.), Metodologia das Ciências Sociais, Porto, Edições Afrontamento, 1986.Algumas referênciasdecisivasa este respeitosãoasdeGilbertoVelho,“Observandoo famili-ar”,in Individualismoe Cultura: Notas paraumaAntropologia da SociedadeContemporânea,Riode

     Janeiro, Zahar Editores, 1981, de William Foote Whyte, Learning From the Field: A Guide FromExperience, BeverlyHills (Cal.),Sage Publications, 1984,deStéphaneDufour, DomincFortine Jacques Hamel, L’Enquêtede Terrain en Sciences Sociales:L’ApprocheMonographiqueet lesMétho-des Qualitatives, Montréal,LesÉditionsSaint-Martin, 1991, e deRobertG. Burgess, APesquisade Terreno: Uma Introdução, Oeiras, Celta Editora, 1997 (1984).

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    sociais e o de quadros de interacção. Cada um deles remete para um domínioteórico vasto e permite desenvolvimentos pormenorizados integrando cor-pos específicos de informação empírica sobre o bairro com perspectivas im-portantes de problematização da identidade cultural.

    Ostrêscapítulosdestaparteocupam-se,umaum,dessesdiferentesde-senvolvimentos especializados. Mas o mais importante, de novo, reside noaccionamento do modelo analítico no seu conjunto, isto é, nos ganhos cogni-tivos que se conseguem quando se interligam aquelas três grandes dimen-sões de estruturação social — exercício que, apesar da ênfase temática decada capítulo, se vai procurando pôr em prática ao longo de todos eles.

    A terceira parte volta a ter dois capítulos e, nela, a identidade cultural deAlfama é investigada sob o ponto de vista das dinâmicas de permanência e mu-

    dança.Nocapítuloqueabreestaúltimapartetraça-seumapanorâmicadospro-cessos de transformação mais importantes que atravessaram o bairro nas duasdécadas em que se desenvolveu a pesquisa e confrontam-se essas mudançascom as permanências, problematizando-se em especial o que pareceser a sobre-posição de alterações sociais rápidas e profundas com continuidades culturaisnão menos acentuadas, nomeadamente no plano identitário. O último capítuloocupa-se de um processo particular, mas com múltiplas incidências no bairro, oprocesso dereabilitação urbana, a propósito do qual foi possível examinar as ar-ticulações entre identidade cultural e acção colectiva.

    Um processo partilhado

    Resta acrescentar que esta pesquisa foi um processo largamente partilhado.Aredacçãodotextoquesesegueédeumsóautor,masopercursoquecondu-ziuaorespectivoconteúdoenvolveuumnúmeromuitograndedepessoas.

    Como fazer justiça, no plano ético, a esse leque alargado de contributos,e como evidenciá-los adequadamente, no plano cognitivo?

    Infelizmente, não parece ser este o meio mais propício parauma respos-tasatisfatóriaatalpreocupação.Oselementosqueaesserespeitoforaminte-grados no texto estão, em regra, nele expressos de maneira bastante abstrac-ta, subordinada ao regime discursivo adoptado para as finalidades analíticasprosseguidas. Outras maneiras de explicitar tais contributos, já concretiza-das ou a concretizar, remetem para contextos diferentes deste.

    Ainda assim, apesar das limitações, não se quis perder por completo apossibilidade de deixar registado um conjunto mínimo de referências.

    AsprimeirasvãoparaaspessoasdeAlfama.Aolongodetodootempode

    pesquisa foram muitas as que sedispuseram a falar desi e do bairro, dar acolhi-mento e acesso, partilhar vivências, fornecer informações, responder a entrevis-tas e questionários, aceitar a participação do investigadorem actividades locais.Várias foram, também, aquelas com que se estabeleceram laços de amizade.

    INTRODUÇÃO 13

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    Seria redutor tomar tudo isso apenas como matéria-prima observacio-nal ou fonte informativa — o que, em todo o caso, tem já um valor inestimá-vel. Mas, para além disso, as pessoas em causa fazem também, de maneirasvariadas, as suas próprias interpretações acerca dos fenómenos sociais, querdos relativos ao bairro, quer de outros, incluindo o investigador e as suas prá-ticas de investigação sociológica.

    Deste modo, a discussão de interpretações com os interlocutores locais,reiteradamente estabelecida, constituiu inspiração importante para as análi-ses realizadas e, em diversos casos, as hipóteses e os conceitos desenvolvidosno presente trabalho resultaram de reelaboração específica, pela utilizaçãodas ferramentas teóricas da sociologia, de sugestões deles provenientes.

    Não sendo viável enumerar aqui todas essas pessoas, nem sequer as

    muitas com quem as deambulações da pesquisa se cruzaram com mais fre-quênciaaolongodosanos,éindispensávelareferência,pelomenos,aCarlosAlberto Gonçalves, à mulher e aos dois filhos, a Sílvia, o Nuno e a Marisa,amigos calorosos, inteligentes e divertidos que, de algum modo, “adopta-ram”noterrenooautordestetexto,tendo-setornado,desdeoinício,empor-todeancoragemsempredisponíveldasestadiasemAlfamaefonteinesgotá-vel de ensinamentos acerca do bairro.

    A par deles, é de elementar justiça, ainda, destacar João Constantino eFlorindaAntónio,presidentesdasjuntasdefreguesiadeSantoEstêvãoeSão

    Miguel, respectivamente, durante quase todo o período temporal a que estetrabalho se reporta. Autarcasnotáveis,de responsabilidade, convicçãoe luci-dez, encararam sempre a pesquisa no bairro com total abertura e interesse,tendo-lhe proporcionado indicações e reflexões variadíssimas. Para além domais, foram também os protagonistas centrais de um importante processoaqui analisado, o movimento social pela reabilitação urbana.

    Este último processo estabeleceu uma relação muito particular entre aCâmaraMunicipaldeLisboaeobairro,nomeadamenteatravésdainstalaçãonele de um Gabinete Técnico Local. Os temas, actores e dinâmicas deste pro-

    cesso acabaram por se constituir, como se disse, num dos objectos de investi-gação. Os vereadores responsáveis pelo pelouro da reabilitação urbana du-rante a fase da pesquisa de terreno desenvolvida nos anos 90, abrangendoaproximadamente dois terços da década, Rui Godinho, primeiro, e VítorCosta, depois, tiveram sempre a melhor relação com este esforço de investi-gação, devendo-se-lhes, inclusivamente, o acesso a dados, situações e projec-tosdequeresultousignificativoenriquecimentodaanálise.Foiumadisponi-

     bilidade e uma abertura que encontraram prolongamento incondicional,aliás, por parte do vereador que lhes sucedeu no pelouro, António Abreu, a

    quem cabe agradecer o apoio prestado pela CML à publicação deste livro.Quanto ao Gabinete Técnico Local, apesar de variados outros contac-tos, cabe fazer uma menção muito especial a Manuel João Ribeiro, durantevários anos sociólogo do gabinete, com quem foi possível colaborar em

    14 SOCIEDADE DE BAIRRO

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    diversos trabalhos de levantamento e análise sobre o bairro, e que foi sempreinexcedívelnadisponibilidadepessoal,naamizadeafávelenavaliadasindi -caçõesfornecidas.Umapalavratambémparaasociólogaquelhesucedeunogabinete, Cristina Santos Silva.

    Outrossociólogos,jovensrecém-licenciadosouaindaestudantesdeso-ciologia (um ou outro de áreas próximas), colaboraram em diversas opera-ções de pesquisa. Também aqui não tem viabilidade uma enumeração com-pleta. Mas seria de todo em todo impossível não salientar as colaborações deIsabelDelgadonoinquéritoàmobilidadesocialegeográfica,deIsabelValen-te no inquérito à população e à habitação, de Patrícia Ávila na análise de da-dos e de João Emílio Alves na avaliação dos projectos integrados.

    Ligadosdeoutromodoaestainvestigação—amontantedela,emcerto

    sentido — estão aqueles que têm constituído referências decisivas para o au-tor na sua formação sociológica. As dificuldades aqui não são menores. Todaa aprendizagem com professores, colegas e alunos, antes e ao longo destasquaseduasdécadasdepesquisa,seprojectoudealgumamaneiranotrabalhoaqui apresentado.

    Duas referências muito particulares, no entanto, são as devidas a Joa-quim Pais de Brito, cujo papel na iniciação à pesquisa de terreno em Alfamafoi já assinalado, e a João Ferreira de Almeida que, para além de todas as ou-tras ocasiões de trabalho em conjunto há praticamente tanto tempo quanto o

    que desde então decorreu, anuiu ainda a acompanhar de perto a elaboraçãodo presente estudo, permitindo que ele usufruísse de um sem-número de su-gestões e comentários.

    Compreender-se-á a menção, ainda, a Fernando Luís Machado, à per-manentetrocadeideiascomeleeàconstruçãocomumdeumamaneiradees-tar na sociologia, através de múltiplos projectos de investigação, ensino e as-sociativismo científico-profissional; e a Rui Pena Pires, não só interlocutorfrequente em reflexões teóricas e afinação de conceitos sociológicos como,também,editordecompetênciaecompreensãoinexcedíveis,designadamen-

    te no caso deste livro.A última palavra ficou guardada, como não podia deixar de ser, para aMaria das Dores Guerreiro. A razão é simples: todo este percurso foi feitocom ela.

    INTRODUÇÃO 15

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    Parte I | EXTERIOR E INTERIOR

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    Capítulo 1

    Um objecto de pesquisa com excessode visibilidade?

    Alfama tem uma característica que surge de imediato como incontornável aquem pretenda abordar este bairro de Lisboa, numa perspectiva sociológica,enquantoobjectodeanáliseeterrenodeobservação.Essacaracterísticaéa vi-sibilidade social do bairro.

    Dito de outra maneira, mostrou-se indispensável ao desenvolvimentoda pesquisa que serviu debase ao presente trabalho colocar e examinar, antesdemais,aquestãodavisibilidadedobairrocomofactosocialedaconstrução

    social das imagens que preenchem tal visibilidade.A esta questão prende-se logo uma outra, a da própria pertinência da

    delimitação de uma unidade de análise reportável ao que se costuma desig-nar por Alfama. Mas o tratamento específico deste segundo aspecto, que nãoé apenas de ordem metodológica mas também substantivamente sociológi-co, terá de deixar-se para o capítulo seguinte.

    A colocação da visibilidade social de Alfama como problema analíti-co conduziu à investigação de um conjunto de traços implícitos nas repre-sentações simbólicas que circulam acerca do bairro, localizáveis num le-

    que diversificado de registos — do erudito ao da vida quotidiana, domítico ao propagandístico, do literário ao iconográfico, do jornalístico aocientífico.Registosquedemonstram,aliás,aesterespeito,comosepoderáverificar, particular tendência para a contaminação recíproca, em modos egraus variáveis.

    Em termos mais englobantes, vejamos como, com o equacionamentodesta questão — a da particular visibilidade social do bairro — se abriu umavia de acesso para a análise de um conjunto de processos sociais que se reve-laram decisivamente operantes na constituição da identidade cultural de

    Alfama: aqueles que a produzem basicamente a partir do exterior ao bairro,embora em inter-relação com ele, de diversas formas.

    19

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    O discurso olisipográfico

    Uma das razões que fazem de Alfama um objecto de pesquisa singular é ofactodesetratardeumareferênciaurbanaextremamenteconhecida.Épossí-vel, desde logo, encontrá-la numa grande variedade de discursos. Pratica-mente não têm conta os textos que fazem menção a Alfama, sejam eles análi-ses históricas, estudos geográficos, recolhas etnográficas, ensaios elaboradosnuma perspectiva arquitectónica ou patrimonial, artigos jornalísticos publi-cados na imprensa diária ou em revistas da mais diversa natureza. Em mui-tos deles, o objecto é Alfama, ela própria, ou então alguns dos seus aspectosconstitutivos. Noutros,queincidem globalmente sobreLisboa, o bairro surgepor norma assinalado como um dos elementos mais notáveis da cidade.

    Além disso, Alfama aparece frequentemente na literatura, na pintura,nodesenho,namúsicaenocinema.Nosúltimosanostemmesmovindoaserutilizadacomocenáriofavoritodevideo-clips musicaiselivrosdebandadese-nhada. Isto, para não falar das múltiplas maneiras como é permanentementereferenciada, evocada e retratada numa quantidade inumerável de guias ur-

     banos, álbuns fotográficos, documentários televisivos, folhetos turísticos,mapas, roteiros, cartazes e postais.

    Na maioria destes documentos, o tom dominante é de cariz histórico-pa-trimonial. Caso paradigmático é o da olisipografia, género compósito de apon-

    tamentos históricos e míticos, arquitectónicos e urbanísticos, etnográficos e jornalísticos acerca da cidade de Lisboa, muito em especial dos seus aspectosmais antigos ou considerados tradicionais. Algumas obras olisipográficas vie-ram a constituir-se no principal acervo de referências históricas e patrimoniaisa Alfama, consecutivamente reutilizadas pelos mais diversos tipos de estudose notícias, textos de divulgação e suportes de promoção turística.

    Refira-se, de passagem, adiantando considerações a desenvolver maisà frente, que os próprios habitantes de Alfama, em especial aqueles que seassumem, de algum modo, como “conhecedores do bairro”, veiculam no

    contacto com os forasteiros, de maneira mais ou menos fragmentária, pas-sagens longamente decantadas deste “saber olisipográfico”. Ter-se-á oca-sião,adiante,devoltaràanálisedoscicloscomplexosdehermenêuticasoci-al que se estabelecem entre saberes formalmente codificados no discursoescrito de carácter erudito e saberes oralmente reproduzidos a nível local,acerca de Alfama. Trata-se, aliás, de uma análise de grande importância,não só para a compreensão dos mecanismos relacionais e simbólicos envol-vidos na construção da visibilidade social do bairro e das imagens identitá-rias que compõem os respectivos conteúdos mas, também, de forma mais

    ampla, para a decifração sociológica das relações entre o bairro e os contex-tos sociais envolventes.Mas, reatando com as considerações anteriores, o que é que, no es-

    sencial, dizem do bairro aqueles discursos, de tom histórico-patrimonial

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    predominante, que se podem encontrar nos textos, de géneros variados,que vínhamos a referir?1

    Emsíntese, localizam Alfamanaencosta que desce doCastelo atéaoTejo,em pleno núcleo do primeiro povoamento de Lisboa. O estabelecimento dura-douro de populações no sítio de Lisboa é muito anterior à ocupação romana.Poderá, em todo o caso, datar desta última época (do século II a.C. ao século Vd.C.) a urbanização da vertente virada a sul da colina, tendo constituído factorimportante de atracção as águas termais com nascentes junto à praia.

    Aabundânciadaságuaseassuasalegadasvirtudesterapêuticasmanti-veram-se, aliás, permanentemente associadas à história do bairro, ressurgin-do, por várias vezes, a pontuar as referências descritivas e as construções doimagináriocolectivorelativasaAlfama.OprópriotopónimoAlfamaéusual-

    mente atribuído à evolução do árabe Al-hama, que significaria águas quentesoufontetermal—emboranaolisipografiahajaalgumacontrovérsiaetimoló-gica a este respeito.

    Depois da presença sueva e visigótica, e a partir das fortificações entãoerguidas, as muralhas do Castelo e a chamada “Cerca Moura”, ou “Cerca Ve-lha”,foramreconstruídaspelosmuçulmanos,apósaconquistadacidadenosinícios do século VIII. A permanência muçulmana decorreu durante mais dequatrocentos anos. De acordo com Alexandre Herculano — que quase todosostextoscitam—Alfamaconstituiu-seduranteesseperíodocomoumnobre

     bairro arrabaldino, em desenvolvimento do lado de fora da cerca de mura-lhas que, descendo do Castelo até à zona ribeirinha, envolvia a parte centralda encosta urbanizada. Nas palavras de Herculano, “Alfama fora no tempo

    UM OBJECTO DE PESQUISA COM EXCESSO DE VISIBILIDADE? 21

    1 De entre as referências olisipográficas mais usadas acerca de Alfama, salientam-se: Júliode Castilho, Lisboa Antiga: Bairros Orientais (2.ª ed.) (vols. I, II, III, IV, VII e VIII), Lisboa,CML,1935-39(1884-89)e ARibeira de Lisboa  (3.ªed.)(vols.IeII),Lisboa,CML,1948(1893);Luís Chaves, “Alfama de ontem e Alfama de hoje: aspectos históricos e etnográficos”(1936), in Lisboa nas Auras do Povo e da História (vol. I), Lisboa, CML, 1961; Augusto Vieira

    daSilva, A Cerca Moura de Lisboa (3.ª ed.), Lisboa,CML, 1987 (1899), As Muralhas da RibeiradeLisboa (3.ª ed.) (2 vols.), Lisboa, CML, 1987 (1900), As Freguesias de Lisboa: Estudo Históri-co, Lisboa, CML, 1943 e A Cerca Fernandina de Lisboa (2.ª ed.) (2 vols.), Lisboa, CML, 1987(1948-49); Norberto de Araújo, Peregrinações em Lisboa (2.ª ed.) (livros I, II, VIII, X e XV),Lisboa,Vega,1992-93(1938-39).Étambémelucidativaaconsultadeváriasentradasinclu-ídas em Francisco Santana e Eduardo Sucena (orgs.), Dicionário da Históriade Lisboa,Saca-vém,CarlosQuintaseAssociados,1994,onde,apardeoutroscontributos,seinventariamasprincipaisaquisiçõesepropostasdaolisipografiaanterior.Dostrabalhosmaisrecentesassinale-se, quanto ao bairro em particular, o panorama histórico apresentado nos guiasdaautoriadeMariaCaladoeVítorMatiasFerreira,Lisboa:FreguesiadeS.Miguel(Alfama) eLisboa: Freguesia de Santo Estêvão (Alfama), Lisboa, Contexto, 1992 e, para um enquadra-

    mentona história da cidade, o conjunto deestudos publicados em Irisalva Moita (coord.),O Livro de Lisboa, Lisboa, Expo 98 / Lisboa 94 / Livros Horizonte, 1994. Para um enqua-dramento das relações entre a olisipografia mais antiga e a historiografia actual relativa aLisboa ver, de Manuel C. Teixeira, “Ahistória urbana em Portugal. Desenvolvimentos re-centes”, Análise Social, n.º 121, 1993.

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    do domínio sarraceno o arrabalde da Lisboa gótica; fora o bairro casquilho,aristocrático, alindado, culto”.2

    Em 1147 Lisboa é cercada, assaltada e tomada pelos exércitos do primei-ro rei português e dos cruzados nórdicos seus aliados. No terceiro quartel doséculoXIIsãoconstruídasasprimeirasigrejasdeSãoMigueledeSantoEstê-vão. Envolve-as o tecido urbano denso e tortuoso da área hoje abrangida pe-las duas freguesias — de São Miguel e Santo Estêvão, precisamente — queconstituem Alfama ou, pelo menos, aquilo que é comum ser tido como o seunúcleo fundamental.

    OespaçodeAlfamafoificando,assim,estruturadopordoiseixosedoisnúcleos. O primeiro eixo, longitudinal, desce ao longo da encosta, entre asduas freguesias, pelo vale que acabou por se transformar na actual Rua da

    Regueira. Ligava, no alto, ao sítio onde veio a instalar-se o Convento do Sal-vador, no lugar do que, no século XIII, começou por ser um recolhimento demulheres e, a partir do século XIV, um convento de freiras dominicanas. Umpouco mais acima, sobranceira ao bairro, junto da muralha, às Portas do Sol— de onde se avistaria, como hoje, a paisagem magnífica da encosta a encon-trar-secomorio—eraconstruída,entreoséculoXIIeoséculoXIII,aprimei-ra igreja de Santa Luzia.

    A regueira desembocava, em baixo, junto à praia. Datando pelo menosdo século XIII, foi aí construído o Chafariz dos Cavalos ou Chafariz de Den-

    tro. O primeiro nome proviria dos cavalos de bronze que, durante um perío-do bastante considerável, estiveram instalados nas saídas de água. Ainda noséculo XVI Damião de Góis referia que, “para os lados da Porta da Cruz,emerge uma outra fonte, ou, para melhor dizer, um tanque chamado dos Ca-valos, isto porque tem umas esculturas de cavalos cujos focinhos de bronzedeitam jorros de água, formando, ao sair do tanque, uma espécie de ria-chos”.3 Emtodoocaso,depoisdainclusãodosarrabaldesorientaisdacidadedentro da nova linha de muralhas construída no século XIV, a “Cerca Fernan-dina” ou “Cerca Nova”, a fonte passou a ser também chamada Chafariz de

    Dentro, designação que se mantém.O segundo eixo, transversal, acompanha a margem ribeirinha. Por elepassavam as pessoas e as mercadorias, chegando ou partindo nas embarca-ções, circulando também por via terrestre entre o centro urbano fortificado eotermoorientaldacidade.Neleselocalizavamosarcosqueabriamasmura-lhas ao rio — alguns dos quais ainda lá estão. Aí se situam as nascentes deágua que atraíram o povoamento do sítio desde tempos imemoriais e origi-naram chafarizes, banhos e alcaçarias, de importância decisiva na história deAlfama e nas imagens que dela se foram simbolicamente construindo.

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    2 Alexandre Herculano, OMongedeCister,Lisboa,Bertrand,22.ªedição,s/d(1848),pp.148.3 DamiãodeGóis, DescriçãodaCidadedeLisboa ,Lisboa,LivrosHorizonte,1988(1554),p.49.

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    Na confluência destes eixos, assumiu particular importância o Largo doChafariz de Dentro, autêntico “Rossio de Alfama”, no dizer de Norberto deAraújo.4 Urbanizado posteriormente, no século XVII, tinha-se já muito antes,nos tempos da primeira dinastia, tornado o centro da vida do bairro e da res-pectiva articulação com os espaços envolventes e com as populações vizinhasou forasteiras. Espaço público intensamente frequentado, para ele davam já,igualmente,duasoutrasviasestruturantesdobairro:aRuadeSãoPedro,ape-netrar na freguesia de São Miguel, para onde se prolongava o mercado de rua(que ainda tem correspondência actual, nomeadamente nas vendas de peixe,frutoselegumes),eaRuadasPortasdaCruz,maistardeRuadosRemédios,aatravessar a freguesia de Santo Estêvão, até à então entrada na urbe pelas Por-tasdaCruz,naCercaFernandina,porondechegavamaspessoaseosprodutos

    agrícolas provenientes das áreas rurais a oriente de Lisboa.Os dois núcleos são polarizados, como referido, pelas igrejas de São Mi-

    gueleSantoEstêvão,emtornodasquaissefoidesenvolvendoeadensandoamalha urbana de matriz muçulmana e medieval cujo traçado labiríntico, quese manteve no essencial até ao presente, constitui, porventura, uma das mar-cas mais salientes das imagens com que se vai reproduzindo a visibilidadesocial do bairro.

    OsséculosXIIIeXIVsãotemposdeexpansãodapopulaçãoedasactivi-dades no espaço de Alfama. Alguns textos, seguindo Herculano, salientam,

    porcontrastecomoqueteriasidooperfilsocialmaiselevadodobairronope-ríodo muçulmano, o novo carácter popular das gentes que afluem a Alfamaapós a conquista cristã. Muitas delas, envolvidas em actividades artesanais,comerciais, fluviais e marítimas, comparticular destaque para os pescadores,seriamcompostasporumapopulaçãomista,decristãosemouros.Étambémentão localizada em Alfamauma das judiarias de Lisboa, numa pequena áreaenglobando a ainda actualmente chamada Rua da Judiaria. Diz a este respei-to Alexandre Herculano: “quando, porém, no século XII a população cristã,alargando-se para ocidente, veio a expulsar os judeus do seu bairro primiti-

    vo,situadonaactualcidadebaixa,eosencantoouparaapartesuldacatedral,a Alfama foi perdendo gradualmente a sua importância, e converteu-se afi-nal num bairro de gente miúda e, sobretudo, de pescadores”.5

    No entanto, por outro lado, desde finais do século XII, instala-se, numazona da parte alta de Alfama — designada, até hoje, por Escolas Gerais — aresidência dos estudantes universitários, o “bairro dos escolares”, que have-ria de manter-se ali até ao século XVI, aquando da transferência definitiva dauniversidade para Coimbra. Aliás, no Pátio do Quintalinhos, à Rua das Esco-las Gerais, e no sítio da Cruz, junto à actual Rua dos Remédios, terão estado

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    4 Norberto de Araújo, Peregrinações em Lisboa, livro X, op. cit., p. 66.5 Alexandre Herculano, O Monge de Cister, op. cit., pp. 148-149.

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    sediadasinstalaçõesdauniversidade.Alémdisso,aconstruçãodojáreferidoConvento do Salvador, bem como de solares e palácios como os que, posteri-ormenteampliadoseremodelados,viriamaserdosAzevedoCoutinhoedosCondes dos Arcos (depois, dos Condes de São Miguel), para já não falar doqueterásidooPaçoRealdeAlfamaouPaçodasGalés,indiciatambémqueacomposição social do bairro não seria, afinal, nos séculos XIII e XIV, tão ho-mogeneamente popular como é por vezes dado a entender.

    A conotação ambivalentemente aristocrática e popular, presente nasimagens mais divulgadas de Alfama, tem prováveis raízes, entre outras, naprópria estrutura da urbanização medieval, fisicamenteobservável no bairroe objecto de referências em variados estudos olisipográficos, ainda que porvezes de forma algo inconsistente. Nessa estrutura urbana, em lugar de uma

    segregação espacial classista do tipo da que se desenvolveu nas cidades mo-dernas mais características da industrialização capitalista, tendia a verifi-car-seuma proximidade residencial específica entre famílias com posição so-cial diferente ou até claramente polarizada, com edifícios nobres e ricosrodeados pelas habitações da plebe urbana, constituindo um sistema de vizi-nhança propiciador do estabelecimento de laços mais ou menos densos dedependências estatutárias e prestação de serviços variados.

    Seja como for, vale talvez a pena sublinhar aqui — tendo em vista a im-portância de que o ponto se reveste para uma avaliação dos conteúdos mais

    correntemente inscritos nas imagens divulgadas acerca do bairro — que, nosseus traços fundamentais, o tecido urbano de Alfama, e grande parte dosseuselementosestruturantesmaisdestacados,estavamjádefinidosporaltu-ra dos séculos XIII-XIV, designadamente na materialidade do espaço cons-truído e, até, na própria toponímia. A estas vêm juntar-se algumas outras re-ferências, a que é também por hábito concedido lugar de relevo, reportadas aperíodos posteriores da história do bairro. Vejamos as mais destacadas.

    Com o enorme surto do comércio e, em particular, do tráfego marítimona época dos Descobrimentos, nobres e ricos mercadores vieram instalar-se

    no bairro ribeirinho. Afamosa “Casa dos Bicos”, mandada edificar por um fi-lho de Afonso de Albuquerque, vice-rei da Índia, é disso ilustrativa. O cresci-mento da cidade e as viagens marítimas geravam uma actividade fervilhan-te. Mercadorias de toda a sorte chegavam às praias e, cada vez mais, àsinfra-estruturas portuárias que iam sendo construídas ao longo da margem.O Terreiro do Trigo e o Jardim do Tabaco, que dão nome aos segmentos oci-dentaleorientaldoeixoviárioque,paralelamenteaorio,passapeloLargodoChafariz de Dentro, constituem reveladoras referências toponímicas às acti-vidades desenvolvidas no local a partir dessa época, e às construções, de

    grande envergadura, que ali se fizeram — e se reconstruíram, remodelaram ereafectaram, por várias vezes, desde então.As nascentes de água ganham ainda maior importância para o abasteci-

    mento de residentes e embarcações. O Chafariz de Dentro e o Chafariz

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    d’El-Rei, nomeadamente, são remodelados e é regulamentada a sua utiliza-ção. Grande parte dos textos gosta de se referir, em especial, à postura cama-ráriaque,paraoChafarizd’El-Rei,“ordenavaquena1.ªbica,doladopoente,só pudessem encher pretos forros e cativos, mulatos, índios, e outros cativosdosexomasculino;na2.ª,moirosdasgalés;etomadanosbarrisasuaaguada,retirariam, podendo esta bica ser ocupada pelos da 1.ª; na 3.ª e 4.ª encheriamhomens e moços brancos; na 5.ª mulheres pretas, mulatas, índias forras e cati-vas; na 6.ª enfim, a última para a banda de Alfama, mulheres e moças bran-cas”.6 No século XVII é construído o Chafariz da Praia, no lugar de uma anti-ga fonte junto ao rio, e onde posteriormente, nos finais do século XIX, veio aser erguido o Edifício das Águas, com a sua estação elevatória, hoje desacti-vada. Actualmente o edifício, recuperado para fins culturais, é conhecido

    como “Recinto da Praia”.Asgentesdomar—e,emparticular,ospescadores—tiveramaolongo

    dosséculosumapresençamuitofortenavidadobairro,quesórecentementedecaiu. Um das manifestações dessa importância, na época dos Descobri-mentos, foi a constituição, no século XV, pelos “pescadores linhéus” (pesca àlinha), da Irmandade do Espírito Santo, com sede na Igreja de São Miguel eum pequeno hospital às Portas da Cruz. No século XVI, formou-se outra ir-mandade, dos “pescadores chinchéus” (pesca à rede), que fez construir aErmidadeNossaSenhoradosRemédioseumhospitalanexo.Asduasjunta-

    ram-se, no início do século XVII, tendo-se instalado na que ficou conhecidatanto por Ermida dos Remédios como por Ermida do Espírito Santo.

    O terramoto de 1755 e o incêndio que se lhe seguiu destruíram quasetodo o bairro. Não tendo sido, em geral, abrangida pelos modernos e geomé-tricos planos urbanísticos pombalinos, Alfama foi reconstruída por antigos enovos habitantes, mantendo, no essencial, a malha urbana labiríntica anteri-or, de apertados becos, vielas e escadinhas. As igrejas e ermidas, bastante da-nificadas, sofreram importantes obras de restauro e significativas modifica-ções. Palácios como os dos Condes dos Arcos, dos Azevedo Coutinho, dos

    Sequeira, dos Teles de Melo, dos Albergaria, dos Maiorga e o de Dona Rosaforam tambémreconstruídos pelos seus proprietários e, nalguns casos,parci-almente desmembrados. Na capelado último acabou mesmo por, já em finaisdo século XIX, vir a instalar-se uma pitoresca taberna, há pouco tempo trans-formada em restaurante.

    A frente ribeirinha foi alvo de uma intervenção mais planificada, inclu-indo o alinhamento das fachadas e a remoção de restos da muralha. Em 1775as Portas da Cruz foram também demolidas para deixar passar a estátua de

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    6 Júlio de Castilho, A Ribeira de Lisboa, vol. II, op. cit., pp.18-19. Castilho data a postura de1551, tal como, por exemplo, Luís Chaves, em “Os Chafarizes de Lisboa” (1943), in Lisboanas Auras do Povo e da História, op. cit., pp.79-80. Maria Calado e Vítor Matias Ferreira atri-

     buem-lhe a data de 1604 (Lisboa: Freguesia de S. Miguel (Alfama), op. cit., p. 46).

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    D. José, no seu caminho da fundição para a Praça do Comércio. Ficou assimtraçadaaRuaNova,actualmenteRuadoMuseudeArtilharia.Amaisimpor-tante construção da altura foi o Celeiro Público, edifício pombalino de gran-de porte, erguido ao Terreiro do Trigo. Depois de ter albergado o MercadoCentral de Produtos Agrícolas passou por várias utilizações, até se tornar emimponente instalação da Alfândega, a que ainda hoje está afecta.

    Construção da memória social

    É curioso notar que, à medida que nos aproximamos do presente, as referên-cias habitualmente assinaladas e valorizadas como significativas do patri-

    mónio deAlfamavão-serarefazendo e diluindo. É o que acontece, emconcre-to, na generalidade do discurso olisipográfico, seja ele de recorte maiserudito, seja em versões de divulgação escolar ou turística. Sem se pretendermais do que utilizar uma metáfora, poder-se-ia dizer que se verifica relativa-mente a Alfama, como para muitos outros contextos, uma espécie de efeitoDoppler invertido na estruturação da memória social. O físico austríaco Dop-pler estudou, no século XIX, um intrigante fenómeno acústico: quando umafonte de ondas sonoras em movimento rápido se aproxima — um comboio aapitar,porexemplo—afrequênciadasvibraçõesaumentaeosompercebido

    torna-se mais agudo. No domínio da memória social, constata-se não rara-mente um fenómeno inverso: o valor atribuído às obras humanas, o interesseque despertam e, mesmo, a sua percepção explícita enquanto algo digno denota, tendem muitas vezes a aumentar com o afastamento histórico.

    OcasodeAlfamaéexemplardesteefeitodamemóriasocial.Nomeada-mente as principais referências histórico-patrimoniais registadas na olisipo-grafia — e divulgadas numa enorme multiplicidade de textos jornalísticos,folhetos turísticos e ensaios com intuitos didácticos — reportam-se sobretu-do aos períodos árabe e medieval. A jusante, prolongam-se no essencial à

    época dos Descobrimentos e, a montante, aos mitos de fundação relativos àlenda de que a cidade teria sido ali fundada por Ulisses e seus companheirosde aventuras, seduzidos pela qualidade do sítio e pelas virtudes das suaságuas. Daí derivaria o próprio nome de Ulisipo, depois Olisipo.7 O tema daságuas,dasactividadesfluviaisedasnavegaçõesmarítimasaparececomotra-ço unificador deste leque de referências, assumindo importância nuclear namemória social e no imaginário colectivo relativos a Alfama.

    Emtermosgenéricos,asociologia—bemcomooutrasciênciassociais,nomeadamente a antropologia — tem-se ocupado bastante dos efeitos de

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    7 A questão é discutida em tom irónico pelo “patriarca” da olisipografia, Júlio de Castilho,em Lisboa Antiga: Bairros Orientais, vol. I, op. cit., pp. 53-68.

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     familiaridade social e, inversamente, de exotismo cultural no esbatimento ouna acentuação, respectivamente, da percepção e valorização explícitas deaspectosdoscontextossociaisedasconfiguraçõesculturaiscomqueaspes-soas lidam no decurso da sua experiência de vida em sociedade. A adjecti-vação habitualmente preferida de “social” no primeiro caso e de “cultural”no segundo aponta já, aliás, para pistas de reflexão interessantes, mas quese deixarão para outra altura.

    Também não será necessário retomar aqui desenvolvimentos conheci-dos,nomeadamentenasversõescomcunhopredominantedepropostateóri-co-paradigmática, de que são exemplo as abordagens que as sociologias detipofenomenológicoeetnometodológicofazemdomundodaexperiênciavi-vida quotidianamente.8 Nem naquelas, de orientação sobretudo sócio-epis-

    temológica, em que é dada particular ênfase ao princípio da ruptura com osenso comum na análise sociológica.9 Ou ainda, acrescente-se, nas que seocupam da investigação substantiva das configurações culturais.10

    UM OBJECTO DE PESQUISA COM EXCESSO DE VISIBILIDADE? 27

    8 Figuras de referência destas formas de análise sociológica são, nomeadamente, AlfredSchutz, Fenomenologia e Relações Sociais (colectânea de textos organizada por Helmut R.Wagner), Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979, e Harold Garfinkel, Studies in Ethnometho-dology, Englewood Cliffs, Prentice-Hall, Inc., 1967. Vários dos mais importantes quadrosteóricosdesenvolvidosnasúltimasdécadasnocampodasociologiaprocuraramincorpo-rarestas perspectivas, cada um à sua maneira, nomeadamente: Peter L. Berger e ThomasLuckmann, A Construção Social da Realidade, Petrópolis, Editora Vozes, 1976 (1966); PierreBourdieu, Esquisse d’une Théorie de la Pratique: Précédée de Trois Études d’Ethnologie Kabyle,Genebra, Librairie Droz, 1972 ou Le Sens Pratique, Paris, Les Éditions de Minuit, 1980;AnthonyGiddens, NewRulesofSociologicalMethod (2.ªed.),Cambridge,PolityPress,1993(1976) ou The Constitution of Society: Outline of the Theory of Structuration, Cambridge,Polity Press, 1984; Jurgen Habermas, Théorie de l’Agir Communicationnel (2 vols.), Paris,Fayard, 1987 (1981); Norbert Elias, The Symbol Theory, Londres, Sage Publications, 1