87
0 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Maria Cristina Iori A IMAGEM TÉCNICA NOS PROCESSOS COMUNICACIONAIS E A DEFINIÇÃO DO ESPAÇO VIRTUAL MESTRADO EM COMUNICAÇÃO SÃO PAULO 2012

Cpia de MARIA CRISTINA IORI - sapientia.pucsp.br Cristina... · 0 pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo puc-sp maria cristina iori a imagem tÉcnica nos processos comunicacionais

Embed Size (px)

Citation preview

0

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Maria Cristina Iori

A IMAGEM TÉCNICA NOS PROCESSOS COMUNICACIONAIS

E A DEFINIÇÃO DO ESPAÇO VIRTUAL

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO

SÃO PAULO

2012

1

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Maria Cristina Iori

A IMAGEM TÉCNICA NOS PROCESSOS COMUNICACIONAIS

E A DEFINIÇÃO DO ESPAÇO VIRTUAL

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção de título de MESTRE em Comunicação, sob a orientação da Profa. Dra. Lucia Leão.

SÃO PAULO

2012

2

Iori, Maria Cristina

A imagem técnica nos processos comunicacionais e a definição de espaço virtual. / Maria Cristina Iori. São Paulo: 2012.

86 f.

Dissertação (Mestrado) – PUC, 2012.

Orientador: Profa. Dra. Lucia Leão

3

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________

_______________________________________

_______________________________________

4

Dedico esta dissertação a meu filho Samuel, a quem eu admiro e

tento imitar na energia e dedicação aos estudos, e ao meu marido

Waldemir, pelo apoio e afeto.

5

AGRADECIMENTOS

Agradeço à professora Lúcia Leão pela doçura na condução do processo de

orientação, pelos seus preciosos e artísticos conselhos; à professora Christine

Greiner, que me apresentou Boaventura dos Santos e, finalmente, Lucrecia Ferrara,

com quem aprendi inicialmente sobre Flusser e depois, tudo sobre seriedade

intelectual.

6

IORI, Maria Cristina. A imagem técnica nos processos comunicacionais e a definição do espaço virtual. Dissertação (Mestrado em Comunicação), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012.

RESUMO

Diante do uso extensivo das imagens pelos media e da sua popularização cada vez maior no cenário digital, essa dissertação estuda quais as alterações que esse uso extensivo das imagens produz sobre a Comunicação e a ciência moderna. Para tanto, reunimos conceitos desenvolvidos pelo pensador Vilém Flusser (1920-1991) e que tratam dos efeitos da transmissão de informação visual em superfícies bidimensionais. O eixo de reflexão e análise são os conceitos de linha e superfície, desenvolvidos por Flusser, e que constituem uma análise da estrutura dos media desde o século 20. As ideias de Flusser são confrontadas com as do autor russo que mora e escreve nos EUA Lev Manovich, que também avalia os media enquanto código, estrutura relacionada à tecnologia. O objetivo é estudar a fundo a estrutura que hoje possibilita a tradução do mundo em telas e superfícies. Nesse sentido, pergunta-se de que forma as traduções feitas em imagens técnicas (segundo Flusser) podem interferir nos processos cognitivos. A fim de estudar as alterações que a imagem técnica imprime à subjetividade humana, recorremos aos conceitos de paradigma emergente de Boaventura dos Santos e visualidade, segundo Ferrara. O primeiro autor fala sobre a possibilidade de uma alteração paradigmática da ciência a partir de uma nova representação dos conceitos. São para ele conceitos-chave nesta análise escala, perspectiva, resolução e assinatura, segundo o autor, usados até hoje para compor limites de representação da objetividade na modernidade e ciência. Os conceitos usados por Boaventura dos Santos são fenômenos que na origem estão relacionados à percepção visual. Procuramos demonstrar que, em mediações comunicativas, a imagem técnica interfere no processo de construção e reconhecimento desses conceitos. Já de Lucrécia Ferrara utilizamos o conceito de visualidade. Segundo a autora, a visualidade, enquanto meio comunicativo iria além da imagem – seria antes uma matriz cognitiva, não apenas visual, que convocaria todos os sentidos em trocas comunicativas ainda não codificadas. De acordo com Ferrara, Flusser teria atuado na construção de uma teoria da visualidade, onde a imagem técnica (imagem de superfície) seria capaz de engendrar uma espacialidade cognitiva. Em seguida, tentamos usar os conceitos apresentados por Ferrara para analisar um fenômeno de comunicação - a saber, a constante utilização de imagens técnicas como delimitação de território nos eventos da praça Tahrir, no Cairo, que culminaram com a deposição do governo de Hosni Mubarak em fevereiro de 2011, no Egito. A conclusão desta dissertação é que o fenômeno das imagens em superfícies altera a percepção de conceitos que atuam na elaboração dos paradigmas da ciência. Ao mesmo tempo, exercem influência na comunicação entre os homens – nossa conclusão coincide com a de Ferrara: nos meios digitais, a possibilidade de comunicação é uma das variantes possíveis, aquela que envolve os sentidos do ser humano de forma a produzir movimento (reações). Palavras-chave: linha, superfície, imagem, visualidade, paradigma, Flusser, comunicação

7

IORI, Maria Cristina. The technical image on the communicational processes and the definition of virtual space. Dissertação (Mestrado em Comunicação), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012.

ABSTRACT

Towards the extensive use of the images in the media and its increasing popularity in the digital landscape, this dissertation studies what changes it makes extensive use of the images on communication and modern science. So, we gathered concepts developed by the philosopher Flusser (1920-1991) and dealing with the transmission of visual information in two-dimensional surfaces. The axis of reflection and analysis are the concepts of line and surface, developed by Flusser, and part an analysis of the structure of the media since the 20th century. Flusser's ideas are confronted with the Russian author who lives and writes in the USA Lev Manovich, who also evaluates the media as a code, structure-related technology. The aim is to study thoroughly the structure that now allows the translation of the world on screens and surfaces. In this sense, the question that arises is how the translations made in technical image (according Flusser) can interfere with cognitive processes. In order to study the changes that prints the technical image to human subjectivity, we used the concepts of emerging paradigm on Boaventura dos Santos, and visuality according to Ferrara. The first talks about the possibility of a paradigm change in science from a new representation of concepts. For the author, the key concepts in this analysis are scale, perspective, resolution and signature, according him, still used today to make the limits of representation and objectivity in modern science. In origin, the concepts used by Boaventura Santos perform with phenomena related to visual perception. We demonstrate that in communicative mediation, the technical image interferes with the process of construction and recognition of these concepts. Lucrecia Ferrara used the concept of visuality. According to the author, visuality, while communicative means going beyond the image - would be rather a cognitive matrix, not just visual, it would call in all directions communicative exchanges not yet codified. According to Ferrara, Flusser had worked in the construction of a theory of visuality, where technical image (image surface) would be capable of generate a spatial cognition. Then we tried to use the concepts presented in Ferrara to analyze a phenomenon of communication - namely, the constant use of technical images such as demarcation of territory in the events of Tahrir Square in Cairo, which culminated in the overthrow of the Mubarak’s government in February 2011 in Egypt. The conclusion is that the phenomenon of the images on surfaces alters the perception of concepts that operate in the development of the science paradigms. At the same time, the phenomenon has influence in communication between men - our finding matches Ferrara’s: in digital media, the possibility of communication is one of the possible variants, one that involves the senses of the human so as to produce movement (reaction). Keywords: line, surface, image, visual, paradigm, Flusser, communication

8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................10

CAPÍTULO I - LINHA, SUPERFÍCIE E VOLUME......................................................16

1.1 TELAS EM MÁQUINAS: LINHAS QUE GERAM SUPERFÍCIES.........................19

1.2 A REALIDADE COMO FICÇÃO...........................................................................23

CAPÍTULO II - A IMAGEM DE SUPERFÍCIE E A REPRESENTAÇÃO DO

CONHECIMENTO…………………………………………………….....30

2.1 AS IMAGENS DE SUPERFÍCIE E OS NOVOS CÓDIGOS EM

COMUNICAÇÃO..................................................................................................31

2.2 ALTERAÇÕES NA REPRESENTAÇÃO DO ESPAÇO: O PENSAMENTO

IMAGÉTICO.........................................................................................................41

2.3 A REPRESENTAÇÃO DO CONHECIMENTO.....................................................43

2.4 A PROJEÇÃO DE SENTIDO EM SUPERFÍCIES................................................51

2.5 O FIM DO HORIZONTE.......................................................................................53

CAPÍTULO III - REPRESENTAÇÃO DA REVOLUÇÃO...........................................56

3.1 A DELIMITAÇÃO DO ESPAÇO...........................................................................60

CONCLUSÃO............................................................................................................75

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................83

9

LISTA DE FIGURAS E TABELA

Figura 1 – Giotto, Lamentação sobre Cristo morto. Afresco. 200 cm x 185 cm. Aprox. 1305. Pádua, Capela da Arena. Ao introduzir figuras de costas, o pintor obriga o espectador a participar da experiência de profundidade por empatia.................................36 Figura 2 – Giotto, O Banquete de Herodes. Afresco. Aprox. 1330. Florença. Santa Croce (capela Peruzzi). O pintor se antecipa à perspectiva bifocal ao colocar seus edifícios enviesados............................................................................................................37 Figura 3 – Leonardo da Vinci, estudo perspectivo para a “Adoração dos Reis Magos”, c. 1481, desenho a tinta, 163 cm x 290 cm, Gabinetto dei Disegni, Galleria Degli Uffizi, Florença................................................................................................................................48 Figura 4 – Mapa/diagrama da praça Tahrir, publicado no The New York Times em 6 de fevereiro de 2011, referente ao dia 1º de fevereiro de 2011................................................68 Figura 5 – Mapa/diagrama da praça Tahrir, publicado no The New York Times em 6 de fevereiro de 2011, referente ao dia 2 de fevereiro de 2011.................................................69 Figura 6 – Mapa/diagrama da praça Tahrir, publicado no The New York Times em 6 de fevereiro de 2011, referente ao dia 3 de fevereiro de 2011.................................................70 Figura 7 – Mapa/diagrama da praça Tahrir, publicado no The New York Times em 6 de fevereiro de 2011, referente ao dia 4 de fevereiro de 2011.................................................71 Figura 8 – Mapa/diagrama da praça Tahrir, publicado no The New York Times em 6 de fevereiro de 2011, referente ao dia 5 de fevereiro de 2011.................................................72 Figura 9 – Mapa/diagrama da praça Tahrir, publicado no The New York Times em 6 de fevereiro de 2011, referente ao dia 6 de fevereiro de 2011.................................................73 Figura 10 – Egito incansável (BBC, 2011).............................................................................................74 Tabela 1 – As imagens de superfície e os novos códigos em comunicação........................................40

10

INTRODUÇÃO

A dissertação a seguir surgiu da seguinte pergunta: quais são as

consequências para a área da comunicação da multiplicação do uso das imagens

nos processos de transmissão da informação?

Em primeiro lugar, decidiu-se como tratar o assunto. Seria uma análise

específica, que partiria das alterações pontuais no conteúdo apresentado pelos

media, ou o assunto seria abordado em termos gerais, como um fenômeno capaz de

atingir a subjetividade humana1? Nossa escolha recaiu pela segunda opção, em

parte pelo fascínio causado pelos textos de Vilém Flusser (1920-1991), pensador

tcheco que se refugiou no Brasil ao fugir do nazismo em 1940, e viveu aqui até

1972. São de Flusser as considerações a seguir, usadas como ponto de partida

nessa dissertação.

Há mais de um século, os textos escritos foram a linguagem básica utilizada

por diferentes meios massivos, principalmente na imprensa. Por outro lado, o texto

foi sempre a forma básica usada para perpetuar a produção intelectual e preservar e

transmitir socialmente os valores da cultura ocidental. O próprio surgimento da

história tal como é conhecida em nossos dias – sucessão de fatos registrados no

tempo – é um dos avanços creditados ao alfabeto fonético para consumação do

atual processo civilizatório.

Tal situação começou a mudar na metade do século 20. Não se pode mais

dizer que os media usem exclusivamente de textos para transmitir informação, nem

que o público se interesse principalmente por palavras para consumir informação ou

obter explicações sobre o mundo. Esta é, em síntese, a constatação de Flusser, no

texto “Linha e superfície”, produzido em 1973-74 e publicado no livro “O mundo

codificado” (FLUSSER, 2007), ponto de partida de nossa dissertação. Cabe aqui

1 Definida aos moldes de Guattari, que buscou ampliar a definição da subjetividade, de modo a ultrapassar a oposição clássica entre sujeito individual e sociedade. Segundo ele: “Devem-se tomar as produções semióticas dos mass mídia, da informática, da telemática, da robótica etc... fora da subjetividade psicológica? Penso que não. Do mesmo modo que as máquinas sociais que podem ser classificadas na rubrica geral de Equipamentos Coletivos, as máquinas tecnológicas de informação e de comunicação operam no núcleo da subjetividade humana, não apenas no seio das suas memórias, da sua inteligência, mas também da sua sensibilidade, dos seus afetos, dos seus fantasmas inconscientes [...].” (GUATTARI, 1992, p.12)

11

uma pergunta aos intelectuais e cientistas: o texto seria ferramenta suficiente para

“pensar” sobre os fatos de importância histórica e científica?

É que as imagens começaram a invadir todos os espaços antes exclusivos

dos textos. Para transmitir informação, as imagens são eficientes – em uma página,

uma foto de guerra pode traduzir todo o horror do fato. Além disso, uma foto

representa para o jornalista o signo indexical de que estava no local do

acontecimento. Não é preciso se estender a explicar o horror – com a imagem o

público acessa o seu significado trágico, o que só aumenta a venda de jornais (daí a

sucessão das imagens trágicas nos media sem lugar ou hora determinados).

Mas as imagens são eficientes para explicar o mundo? Quem vê uma foto

entende e sabe tudo sobre uma guerra? Ou apenas tem sentimentos a respeito?

Uma imagem é capaz de produzir conhecimento? Essas são outras questões que a

popularização do uso de imagens suscita em tantos trabalhos publicados sobre o

tema.

Pode-se dizer hoje que há dois mundos: aquele dos fatos tridimensionais e o

mundo das imagens, que nos bombardeia continuamente. Que imagens são estas?

São as imagens produzidas pelos meios digitais. Essas imagens são usadas

tradicionalmente para transmitir informações, produzir emoções e cada vez mais

para situar e definir nossa presença no mundo. Cabe a essa dissertação fazer uma

avaliação das características técnicas que servem para definir seu uso. Afinal, a

imagem nos media existe tecnologicamente. Vamos então tratar do que define e

condiciona o uso das imagens produzidas por aparelhos, designadas “imagens

técnicas” em Flusser (2011, p.18).

Em outras palavras: este trabalho pode ser definido como um estudo sobre o

impacto que a popularização das imagens técnicas tem sobre a comunicação e

produção/transmissão do conhecimento. Como isso será feito?

No capítulo 1, intitulado “Linha, superfície e volume”, delimitamos o tema e

falamos sobre o autor que suscitou essa reflexão. Flusser discute que a transmissão

de informação por texto (linhas, segundo ele) está sendo substituída por aquela em

que assumem gradativa importância imagens técnicas (expressas em superfícies).

Essa mudança em direção a imagens técnicas teria o poder de alterar a percepção

12

humana sobre os fatos e o conhecimento. Esta dissertação usa diversos textos do

autor em que a discussão é aprofundada.

Para Flusser, as imagens técnicas crescem a cada dia em abstração, e

atingem nesta escala índices antes inimagináveis para os olhos humanos, simulando

volumes em superfícies bidimensionais antes inexistentes – e efetivamente sabemos

hoje que é possível transformar qualquer parede em superfície. No caso de

hologramas, qualquer espaço vazio transforma-se em superfície.

Voltemos, no entanto, ao mundo real. Nesta “escalada de abstração”2, em

que volumes insuspeitos são projetados sobre o “nada” situa-se o pensamento do

autor. Esta abstração progressiva levaria o ser humano a uma nova percepção do

mundo e, consequentemente, a uma nova percepção da história e da organização

social, cogita Flusser desde os anos 1970, quando escreveu “Linha e superfície”

(1973-1974).

O capítulo 2 é denominado “A imagem de superfície e a representação do

conhecimento”. O tema desse capítulo é uma tentativa de tornar explícito esse

processo em direção a uma nova consciência, que surge a partir das alterações da

percepção humana diante do uso cada vez mais freqüente das imagens em

superfícies pelos meios massivos de informação. Isso ocorre em diferentes níveis:

primeiro, na identificação de uma nova maneira de considerar a informação

transmitida nestas superfícies através de imagens. Segundo, como este olhar altera

as formas de representação dos conceitos.

Nesse capítulo, procuramos resgatar a visão de Flusser sobre a

comunicação, um fenômeno expresso a partir de códigos estabelecidos por

convenção (no caso, a sintaxe, as regras matemáticas e lógicas). As ideias de

Flusser são confrontadas com as de Lev Manovich.

Também Manovich considera a comunicação como código no qual a sintaxe,

a estrutura – no caso das mídias digitais, seria sua construção numérica. Sobre isso,

é preciso dizer que Flusser considerava o caminho que passa dos textos para as

superfícies bidimensionais em direção ao zero dimensional uma escalada capaz de

alterar o destino humano. O motivo: este processo seria capaz de desarticular as

2 Expressão usada por Baitello (2004, p. 22).

13

convenções sobre as quais se funda a lógica moderna. Essa é sua concepção ao

pensar antropologicamente na linguagem adotada pelos media.

Para Manovich, essa escalada é antes de tudo considerada uma questão de

linguagem, formato e estrutura. Em sua origem, a progressiva abstração da imagem

técnica de superfície relaciona-se às linhas compostas por pontos dos algoritmos,

que já existiam desde os primeiros tempos em que se forjou a Modernidade. Ocorre

que na era do computador, segundo Manovich, as manifestações culturais

transformam-se em códigos, usados para comunicar dados e experiências, e sua

linguagem passa a ser codificada em interfaces de software e hardware

(MANOVICH, 2001, p.333).3 Se o cinema passa a ser código, configura-se como

linguagem.

A comunicação é profundamente alterada diante do uso cada vez mais

frequente das imagens de superfície. Lucrecia Ferrara chega a sugerir uma

denominação para estudos na área: visualidade. Para a autora, Flusser desenvolve

uma teoria da visualidade, que não se confunde com as críticas de autores que

consideram a imagem como fator espetacular e banalizante.

As repercussões que os conceitos de linha e superfície em Flusser podem

exercer na teoria do conhecimento são tema de nossa reflexão. Em palavras mais

adequadas ao nosso entendimento, quais as alterações da subjetividade humana

diante das novas representações da realidade?

Buscamos para essa discussão trazer idéias do autor português Boaventura

de Souza Santos, que desenvolveu numa série de quatro volumes um método em

que identifica conceitos científicos que estariam em mutação atualmente. O autor

estabelece quais conceitos estão de acordo com paradigmas que adotamos hoje e

não podem permanecer assim diante de uma nova realidade. Segundo ele, as

alterações de fundo tecnológico e científico trazem à tona princípios não totalmente

desenvolvidos na Modernidade. Entre estes está a racionalidade estético-expressiva

que tem privilegiado metáforas espaciais. “Em décadas recentes [...] a dimensão

3 “In a computer age, cinema, along with other cultural forms, indeed becomes precisely a code. It is now used to communicate all types of data and experiences, and its language is encoded in the interfaces and defaults of software programs and in the hardware itself. […]” (MANOVICH, 2001, p.333)

14

espacial do espaço-tempo tem vindo a adquirir maior visibilidade.” (SANTOS, 2005a,

p.193)

Santos utiliza representações de ciências fortemente amparadas nestes

processos de identificação: espaço-tempo e visualidade. São elas arqueologia

(estudo de objetos distantes no tempo), astronomia (estudo de objetos distantes no

espaço), cartografia (representação do espaço por meio de mapas), fotografia

(representação enquanto reprodução). O autor cita ainda a atividade artística, mais

precisamente, a pintura, desde a Renascença, segundo ele, “dominada pela questão

da representação” (SANTOS, 2005a, p.228).

Amparado nas ciências citadas acima, Boaventura de Souza Santos

estabelece conceitos-chave para desvendar os procedimentos e estratégias

científicas que estão em discussão na atualidade. São estes escala, perspectiva,

resolução e assinatura (presença do criador). Os conceitos são também metáforas

que representam o mundo a partir de palavras que definem o fenômeno da

visualização no ser humano. Isso nos interessa, já que as imagens de superfície

significam, a nosso ver, uma transformação visual revolucionária. Temos trabalhado

até aqui com a relação entre a lógica conceitual e as imagens – o que muda no

pensamento humano diante das novas imagens técnicas? Mudam a escala,

perspectiva, resolução e assinatura.

Relacionar um novo olhar sobre as coisas com a insurgência de novos

paradigmas científicos parece tarefa improvável, mas encontramos até referências a

isso na obra do historiador Thomas Kuhn, citado no capítulo 2 dessa dissertação,

assim como o arquiteto Paul Virilio, para quem a informação em tempo real tem

poder de desagregar a ótica tradicional. Também citamos a biologia cognitiva para

definir nossa consciência única para enxergar sentido em imagens, e o físico teórico

Leonard Susskind, para definir ângulos de visão (pontos de vista diferentes, capazes

de representar assinaturas diversas).

No capítulo 3, achamos ser possível aplicar o conceito de visualidade à

análise de um fenômeno de comunicação. Graças à popularização do uso de

imagens técnicas – a saber, a constante utilização de fotos aéreas produzidas

através de satélites – foi transformado em território o espaço circular cercado de

prédios da praça Tahrir, no Cairo. O local concentrava protestos e, graças a imagens

15

aéreas, transformou-se em mapa, delimitação de espaço livre onde se abrigaram

durante dezoito dias os opositores do ditador Hosni Mubarak, em fevereiro de 2011.

Nessa dissertação, mapa é definido primeiro como manifestação cultural.

Em seguida, mostramos como a imagem técnica transformou o mapa em linguagem

acessível e próxima a todos os cidadãos. Em seguida, a imagem técnica é mesclada

a outras e transforma-se em diagrama de uma informação – trata-se do local que

reúne os insurgentes. E de lá partem as informações, produzidas por jornalistas e

pelos próprios manifestantes.

A imagem técnica define um espaço virtual de protestos e área de uma nova

esfera pública a ser considerada. Citamos W.J.T. Mitchell a esse respeito. Nossa

intenção foi traçar a evolução da imagem técnica usada em manifestações de

alcance global, como guerras e protestos. Constam como ilustrações desse capítulo

infografias da praça Tahrir, produzidas por jornal e agência noticiosa.

A conclusão dessa dissertação é que a visualidade aponta para a fusão

entre tecnologia e estética, entre o discurso científico e as vivências do homem

colocado frente a frente a imagens técnicas tão abstratas que desafiam a razão

tradicional. Nos meios digitais a possibilidade de comunicação é uma das variantes

prováveis, não necessariamente a única - nesta mediação, a imaginação é peça

central. A partir do estudo de Flusser, conclui-se que a tecnologia nos transporta

para um lugar onde imaginar transformou-se na capacidade humana de engendrar o

abstrato.

16

CAPÍTULO I - LINHA, SUPERFÍCIE E VOLUME

Esta pesquisa pretende estudar como a informação expressa em telas de

novas tecnologias altera a apreensão humana dos textos e imagens – estas últimas

adquirem volume insuspeito diante dos olhos humanos, a partir de pontos, fórmulas

matemáticas. Usaremos para tanto os conceitos de linha e superfície, desenvolvidos

por Vilém Flusser (1920-1991). A pesquisa a seguir refere-se especificamente aos

livros de Flusser sobre informação e tecnologia publicados no Brasil: O mundo

codificado, O universo das imagens técnicas, Filosofia da caixa-preta. Também é

citado Ficções Filosóficas, reunião de artigos do autor publicados na imprensa.

Nossa primeira constatação é que tecnologias digitais adquirem cada vez

mais condição de superfície graças ao cálculo oculto que resulta em progressiva

abstração.

Flusser, pensador tcheco que se refugiou no Brasil ao fugir do nazismo, aqui

chegou em 1940 e trabalhou no país até 1972 – escrevia em quatro idiomas,

inclusive português, e celebrizou-se por traduzir a si mesmo. É autor de um vasto

conjunto de ensaios sobre temas tão variados como design, arte, cinema, natureza e

vida cotidiana. Seus escritos relacionados à tecnologia e aos media desembocaram

em uma teoria dos novos meios de comunicação. Quando deixou o Brasil para viver

na Europa, até sua morte, em 1991, Flusser tornou-se internacionalmente

reconhecido e uma legião de pesquisadores estuda o autor. Um deles é a alemã

Anke Finger, que o classifica como da área de estudos culturais e sobre ele

escreveu:

[...] Seu interesse, seu foco, não são os media, mas sim os seres humanos [...] e sua habilidade para criar e para pensar, para mudar a si mesmo e ao mundo à sua volta. [...] (BERNARDO; FINGER; GULDIN, 2008, p.37)

Em alemão, seus artigos sobre informação e tecnologia estão reunidos no

livro Kommunikologie. Há quem considere os ensaios sobre comunicação

publicados em diversos idiomas sob outro viés, como “[...] a obra que caracterizou

17

um dos mais importantes comunicólogos e teóricos da mídia do século XX”

(BAITELLO, 2004, p.22).

De qualquer modo, Flusser interessava-se em discutir de que forma as

alterações tecnológicas objetivas agem nas formas de conceber o mundo dos

homens e mulheres que vivem no planeta. Podemos afirmar que alterações na

exibição de textos e imagens ocorrem em todos os cenários urbanos da Terra e são

comuns aos estudos do campo da comunicação.

Nesse sentido, o autor desenvolveu os conceitos de linha e superfície.

Segundo Flusser, as linhas escritas traduzem os fatos em conceitos, e o uso do

texto escrito instaurou o período histórico. Com o alfabeto fonético, surgido na

Grécia antiga, os fatos passaram a ser apresentados em sucessão, e a história em

progressão, o que configura um processo, De acordo com o autor:

[...] Desde a “invenção” da escrita alfabética, (isto é, desde que o pensamento ocidental começou a ser articulado), as linhas escritas passaram a envolver o homem, de modo a lhe exigir explicações. Estava claro: essas linhas representavam o mundo tridimensional em que vivemos, agimos e sofremos. Mas como representavam isso? [...] Conhecemos a resposta para essa questão, e sabemos que a cartesiana é decisiva para a civilização moderna: ela afirma, resumidamente, que as linhas são discursos de pontos, e que cada ponto é o símbolo de algo que existe lá fora no mundo (um “conceito”). As linhas, portanto, representavam o mundo ao projetá-lo em uma série de sucessões. Desse modo, o mundo é representado por linhas, na forma de um processo. O pensamento ocidental é “histórico” no sentido de que concebe o mundo em linhas, ou seja, como um processo. [...] (FLUSSER, 2007, p.102-3)

Segundo Flusser, desde a vulgarização do alfabeto, com a invenção da

prensa na Idade Moderna, pode-se dizer que nos últimos cem anos ou mais a

consciência histórica do homem ocidental se tornou o clima da nossa civilização.

As superfícies – telas em geral, de quadros a paredes de cavernas, de

páginas de revistas ilustradas ao cinema – alteram esse quadro e traduzem os fatos

por meio de um contexto bidimensional. As superfícies sempre existiram, mas

ganham supremacia hoje graças à presença massiva das telas de televisão, cinema,

18

imagens de revistas, cartazes, que supõem uma crescente utilização da imagem

técnica4. As imagens não emergem apenas da apreensão e reprodução da natureza,

mas surgem como imagens de superfície5. Com isso, o “homem unidimensional”

(aquele que apreende o mundo de forma linear, através da leitura) está

desaparecendo. Sobre isso, escreve o autor:

[...] As linhas escritas, apesar de serem muito mais freqüentes do que antes, vêm se tornando menos importantes para as massas do que as superfícies. Não necessitamos de profetas para saber que o “homem unidimensional” está desaparecendo. O que significam essas superfícies? Essa é a pergunta do momento. Com certeza elas representam o mundo tanto quanto as linhas o fazem. Mas como elas o representam? [...] Será que elas representam o “mesmo” mundo que as linhas escritas? [...] O problema é descobrir que tipo de adequação existe entre as superfícies e o mundo, de um lado, e entre as superfícies e as linhas, de outro. Não se trata mais apenas do problema de adequação do pensamento à coisa, mas do pensamento expresso em superfícies à coisa, de um lado, e do pensamento expresso em linhas, de outro. [...] O pensamento expresso em superfícies não é consciente de sua própria estrutura, assim como o é quando expresso em linhas (Não dispomos de uma lógica bidimensional comparável à lógica aristotélica no que concerne ao rigor e à elaboração). [...] (FLUSSER, 2007, p.103-4)

A emergência da imagem digital expressa em superfícies - como filmes,

fotos, vídeos e nas telas dos computadores - assume o “papel de portadora de

informação outrora desempenhado por textos lineares” (FLUSSER, 2008, p.13). E

quanto mais tecnicamente verossímeis e perfeitas na reprodução da realidade vão

se tornando as imagens, tanto mais ricas elas ficam e melhor passam a prescindir

dos fatos que antes representavam. Em conseqüência, os fatos deixam de ser

necessários, as imagens técnicas passam a se sustentar por si mesmas e então

perdem o seu sentido original, ou seja, representar o real. A respeito comenta

Flusser:

4 Segundo Flusser, na definição proposta em A filosofia da caixa preta (2011, p.18), imagem técnica é aquela produzida por aparelhos. 5 Imagens que existem apenas em superfícies, não mais apenas como reproduções de objetos animados ou inanimados existentes em escala tridimensional. Voltaremos à discussão sobre as imagens de superfície mais adiante nesse mesmo capítulo da dissertação.

19

[...] Não mais vivenciamos, conhecemos e valorizamos o mundo graças a linhas escritas, mas agora graças a superfícies imaginadas. Como a estrutura de mediação influi sobre a mensagem, há mutação na nossa vivência, nosso conhecimento e nossos valores. O mundo não se apresenta mais enquanto linha, processo, acontecimento, mas enquanto plano, cena contexto – como era o caso na pré-história e como ainda é o caso para iletrados. [...] (FLUSSER, 2008, p.15)

Para o autor, a supremacia da imagem em superfícies sobre os textos como

forma de difusão da informação pode alterar o conceito de história – a sucessão de

fatos engendrados pela ação do ser humano – assim como a percepção da

realidade.

[...] O mundo da ficção linear, o mundo da elite, está mostrando cada vez mais seu caráter fictício, meramente conceitual; e o mundo da ficção-em-superfície, o mundo das massas, está mascarando cada vez mais seu caráter fictício. Não podemos mais passar do pensamento conceitual para o fato por falta de adequação, e também não podemos passar do pensamento imagético para o fato por falta de um critério que nos possibilite distinguir entre o fato e a imagem. Perdemos o senso de realidade nas duas situações, e nos tornamos alienados. Pode-se perfeitamente pensar que essa nossa alienação nada mais é do que o sintoma de uma crise passageira. O que se passa atualmente talvez seja a tentativa de incorporação do pensamento-em-superfície, do conceito à imagem, da mídia de elite à mídia de massa. [...] (FLUSSER, 2007, p.117)

Essa é uma das questões colocadas por Flusser. Como traduzir o

pensamento conceitual em pensamento imagético e vice-versa?

1.1 TELAS EM MÁQUINAS: LINHAS QUE GERAM SUPERFÍCIES

O que podemos inferir da leitura de linhas em escrita alfabética

apresentadas em uma tela de computador?

20

Em primeiro lugar, podemos dizer que a tela do computador representa uma

interface – compreendida como “espaço onde o sujeito imerge e atua” (TRIVINHO,

2007, p.117). Em segundo lugar, que o texto é apenas um nível visível de linhas

escritas, já que as telas de computador ocultam o cálculo matemático que torna

possível sua expressão como superfície. “As imagens técnicas significam (apontam)

programas calculados”, diz Flusser (2008, p.29). As imagens técnicas surgem de

cálculos, expressos em linhas escritas. Num primeiro momento, o autor se referia

aos programas de aparelhos feitos para transformar fatos da realidade em imagens

de superfície – a “caixa-preta”.

Vale dizer que Flusser não se referiu a telas de computador quando usou a

expressão superfície no texto “Linha e superfície”, produzido em 1973-74 e

publicado como no original no livro “O mundo codificado” (2007). Mas, desde então,

o processo tecnológico que se instaurou – a saber, telas que simulam noções

inéditas de espacialidade a um mero toque – alcançou plenitude.

As superfícies de Flusser são originalmente telas de cinema e TV, imagens

de revistas e cartazes. Quando as vemos, apreendemos seu sentido geral, como ao

ver uma pintura para, só depois, decompô-las, o que não ocorre quando lidamos

com as linhas.

[...] ainda os lemos (filmes e programas de TV) como se fossem linhas escritas e falhamos na tentativa de captar a qualidade de superfície inerente a eles. Mas isso irá mudar num futuro muito próximo. É tecnicamente possível, mesmo agora, projetar filmes e programas de TV que permitam ao leitor controlar e manipular a sequência de imagens a ainda sobrepor outras. [...] O que significa que a “história” de um filme será algo manipulável pelo leitor até se tornar parcialmente reversível. [...] (FLUSSER, 2007, p.108-9)

A esse respeito, o que podemos dizer das telas de computador e aparelhos

que produzem imagens digitais? São capazes de simular linhas codificadas em

superfícies com imagens totalmente abstratas, jamais encontradas na natureza, ou

simular outras imagens, semelhantes às que um dia até existiram como

equipamento sólido, mas são hoje apenas imagens (embora capazes de a um toque

21

exercer funções não abstratas, como manipular o hardware). A relação criada pelas

linhas escritas e ocultas dos códigos de programação atingiu níveis insuspeitos de

virtuosidade: atualmente, quanto mais tecnologia utilizada, mais lúdico e fantasioso

será o resultado expresso em imagens técnicas. Flusser comenta, ao escrever anos

depois, quando já incorporava as novas tecnologias em sua teoria:

Sugiro [...] que o termo “imaginar” significa a capacidade de concretizar o abstrato, e que tal capacidade é novaque; que foi apenas a invenção de aparelhos produtores de tecno-imagens que adquirimos tal capacidade; [...] que estamos vivendo em mundo imaginário, no mundo das fotografias, dos filmes, do vídeo, de hologramas, mundo radicalmente inimaginável para as gerações precedentes; que esta nossa imaginação ao quadrado [...] essa nossa capacidade de olhar o universo pontual de distância superficial a fim de torná-lo concreto, é emergência de um nível de consciência novo. [...] o lugar onde o universo calculado e computado começa a emergir sob a forma de superfícies imaginárias e imaginadas. [...] A consciência imaginística do imaginador e do receptor das tecno-imagens vê-se no extremo limite da abstração e, por isso mesmo, ela pode vivenciá-lo concretamente. Graças a filmes, fotos, a vídeo, a jogos de computador, podemos, mais uma vez, ter experiências concretas e agir concretamente. [...] (FLUSSER, 2008, p.41-2, 45)

A interação do homem com aparelhos produtores de tecno-imagens assume,

segundo o autor, importância tal que tem poder de redefinir o que representa a

imaginação. Essa redefinição se relaciona ao poder que as imagens produzidas em

aparelhos tecnológicos progressivamente assumem de simular e corresponder à

realidade, de forma a transformar em borrão o que antes eram os sonhos humanos

mais fantásticos. No entanto, Flusser diz que as tecno-imagens redundam de

aparelhos que têm programas pré-definidos.

Este novo “universo calculado e computado”, segundo Flusser, não tem

precedentes. As novas imagens criadas nessas superfícies – daí a expressão

imagem de superfície utilizada anteriormente - não ocupariam, segundo o autor, o

mesmo nível ontológico das imagens tradicionais. Sobre isso ele diz:

22

[...] [as novas imagens] são fenômenos sem paralelos no passado. As imagens tradicionais são superfícies abstraídas de volumes, enquanto as imagens técnicas são superfícies construídas com pontos. De maneira que, ao recorrermos a tais imagens, não estamos retornando da unidimensionalidade para a bidimensionalidade, mas nos precipitando da unidimensionalidade para o abismo da zero-dimensionalidade. Não se trata de volta do processo para a cena, mas sim da queda do processo rumo ao vácuo dos quanta. A superficialidade que se pretende elogiar é a das superfícies que se condensam sobre semelhante abismo. [...] (FLUSSER, 2008, p.15)

Quais seriam as conseqüências disso? Ao engendrar os conceitos de linha e

superfície, Flusser considerava fazer um catálogo das formas de comunicação do

ponto de vista da estrutura. Ele disse:

[...] Naturalmente, a relação íntima entre significado e estrutura, entre “semântica” e “sintaxe”, não deve ser negada: a forma é condicionada pelo conteúdo e ela o condiciona (embora “o meio não tenha que ser necessariamente a mensagem”). [...] e, no entanto, o que se quer aqui não é uma reprodução semântica (uma fotografia), mas uma análise estrutural, um “mapa” da nossa condição. [...] (FUSSER, 2007, p.100)

Embora o objeto usado para mediação tenha capacidade de influir na

mensagem transmitida e, consequentemente, no conhecimento, a avaliação da

mediação por texto ou superfície é uma consideração sobre a estrutura. Ao ser

humano, caberia dominar esses novos códigos de comunicação e trabalhar sob

essa nova concepção na produção de conteúdos. “Os olhos percebem as

superfícies dos volumes. As imagens abstraem, portanto, a profundidade das

circunstâncias e a fixa em planos, transformam a circunstância em cena”, diz Flusser

(2008, p.16). E o formato assumido pela informação – seja ou não uma referência

matemática, qualitativa ou quantitativa – reverbera em efeitos sociais e psicológicos,

transformando nossa vida sensória, emocional e imaginativa.

O livro impresso e a pintura de cavalete contribuíram para o culto do

individualismo, já que facilitaram o ponto de visa fixo e particular. Teria sido a

capacidade de ler e escrever que conferiu ao homem o poder de alienar-se, de não

23

se envolver? Até que ponto o uso de um cavalete interfere na produção de um

quadro? E na posição virtual assumida pelo pintor?

Jackson Pollock, o seminal representante do expressionismo abstrato nos

Estados Unidos na segunda metade do século XX, aboliu o cavalete e colocava

suas telas no chão. Espalhava assim as tintas a partir de um ponto central. “Eu sou

a natureza”, costumava dizer. Pergunta-se: a natureza prescinde de um ponto fixo

de observação? (POLLOCK,1978)

Mcluhan (1911-1980) acreditava que a reprodutibilidade técnica da imagem

libertou a pintura da representação, portanto o cubismo e representações abstratas

e geométricas teriam em sua origem relação com a tecnologia das imagens em

movimento. Trata-se da adequação do pensamento expresso em superfícies ao

mundo, da criação de novas representações que dêem conta de uma lógica

diferente. (MCLUHAN, 2004, p.27)

1.2 A REALIDADE COMO FICÇÃO

Há que considerar que a teoria das linhas e superfícies de Flusser

integrasse um projeto maior. Sobre isso nos fala Norval Baitello Jr.:

[...] Aqui estava o projeto de um Vilém Flusser da Filosofia da caixa preta, uma expansão de seu Für eine Philosophie der Fotografie, uma obra que revolucionou o modo de ver da era da visão e da visibilidade. Com seus conceitos surpreendentes, toma a fotografia como um ponto de partida para pensar, neste e noutros livros e artigos, a “escada ou escalada da abstração” (Treppe der Abstraktion), a dura passagem pelas etapas em que a representação do mundo vai perdendo progressivamente as dimensões da espacialidade. Originalmente se valendo de representações tridimensionais, configuradas no gesto e na voz, na presença corporal, a comunicação humana se transforma quando o advento de imagens sobre suportes diversos abstrai (e ele mesmo define “abstrair” como “subtrair”) a dimensão de profundidade, inaugurando um outro mundo, bidimensional, o “mundo das superfícies” (die Welt der Oberflächen). A invenção da escrita, por sua vez, dá mais um passo abaixo na escada, abstraindo mais uma componente do

24

espaço, criando o mundo unidimensional, o universo da linearidade, do pensamento lógico e da ciência, da história e do tempo linear progressivo. O derradeiro passo da referida “escada da abstração” se dá com o advento das imagens técnicas ou tecno-imagens, como a fotografia e as demais imagens produzidas por aparelhos (nem ferramentas, nem máquinas). Trata-se então de representações nulodimensionais, números, fórmulas, pontos, retículas, granulações e algoritmos. [...] (BAITELLO, 2004, p.22)

O retorno cíclico das superfícies como expressões do mundo é descrito por

Baitello como uma “escada de abstração”. Já Gustavo Bernardo fala da passagem

de textos a imagens como processo infindável de traduções e retraduções.

[...] Em Filosofia da caixa-preta [...], Flusser desenvolve uma história dos media baseada em uma série de processos de tradução e retradução. Essas transformações têm lugar entre dois códigos essenciais: imagens e textos. O filósofo define “imagem” como uma superfície de significado obtida pela redução da quadridimensional experiência primária humana (resultado das três dimensões do espaço mais a dimensão do tempo) a duas dimensões do plano. Imagens foram inventadas para tornar o mundo “fora daqui” imaginável, ou seja, compreensível para nós. Textos, por outro lado, são códigos unidimensionais obtidos pelo ato de dispor letras e palavras simples em linhas. [...] Ao final do livro, [...] o termo traduzir [...] é definido como “mudar de um código para o outro, portanto, saltar de um universo a outro”. [...] (BERNARDO; FINGER; GULDIN, 2008, p.100)

Os autores citados acima têm interpretações variadas para o tema linha e

superfície em comunicação, segundo Flusser. Baitello fala da passagem de linhas a

imagens como uma trajetória que ruma em direção à abstração, enquanto Gustavo

Bernardo considera a passagem de um estado a outro como tradução entre texto e

imagem, ou seja, processos complementares de representação. Independentemente

de interpretações, no entanto, é correto afirmar que, para o autor, a popularização

das superfícies, que substituem os textos lineares em importância, traria como

resultado uma alteração dramática na estrutura do pensamento ocidental. “Não se

trata do retorno à situação pré-alfabética, mas de avanço rumo a uma situação nova,

pós-histórica, sucessora da história e da escrita.” (FLUSSER, 2008, p.15)

25

Diante desse quadro, duas possibilidades são colocadas por ele.

A primeira possibilidade é a de o pensamento imagético não ser bem sucedido ao incorporar o pensamento conceitual e daí nos tornaríamos vítimas de um novo tipo de barbárie – a imaginação confusa. Isso conduziria a sociedade, segundo Flusser, a uma despolitização generalizada, a uma desativação e alienação da espécie humana. Seria para o autor a vitória da sociedade de consumo e isso conduziria ao totalitarismo da mídia de massa. (FLUSSER, 2007, p.124)

Esse raciocínio de Flusser nos coloca em um cenário que se aproxima das

visões apocalípticas de pensadores que estudam o uso das imagens pela indústria

cultural.

A segunda possibilidade, diz Flusser (2007, p.125), é de “o pensamento

imagético ser bem sucedido ao incorporar o conceitual”. Um novo senso de

realidade se instauraria, segundo Flusser, e isso envolveria todas as áreas do

pensamento humano. Ele escreve a respeito:

[...] Isso levará a novos tipos de comunicação, nos quais o homem assumirá conscientemente a posição formalística. A ciência não será mais meramente discursiva e conceitual, mas recorrerá a modelos imagéticos. A arte não trabalhará mais com coisas materiais [...], ela proporá modelos. Os políticos não lutarão mais pela observância de valores, eles irão elaborar hierarquias manipuláveis de modelos de comportamento. E isso significa, em resumo, que um novo senso de realidade se pronunciará, dentro do clima existencial de uma nova religiosidade. [...] (FLUSSER, 2007, p.125)

Esta segunda hipótese vai de encontro ao pensamento de autores que

acreditam na formulação de novos paradigmas que englobem a ciência e a

civilização. Particularmente em comunicação, os novos paradigmas podem ser

26

construídos pela ação humana sob a emergência das novas plataformas

tecnológicas. 6

A nosso ver, Flusser movia-se como pensador entre essas duas

possibilidades – criação ou destruição total. O autor foi concebido e criado na

Europa anterior à Segunda Guerra Mundial, sob uma estrutura social dialógica,

discursiva, textual, onde ele vivia com o pai, reitor de universidade em Praga, então

capital da antiga Tchecoslováquia, a mãe e a irmã. Todos os seus familiares foram

mortos em campos de concentração pelos nazistas, e ele partiu em fuga da

Inglaterra (sua última visão da Europa foi o porto de onde zarpou em chamas).

Portanto, os fatos indicaram que o mundo em que vivia desapareceu. De seu

refúgio, no Brasil, Flusser presenciou a destruição pelo noticiário, por imagens que

nos chegaram anos depois, dos campos de concentração e outros horrores da

guerra (não devemos esquecer que não existia naquela época a noção de “tempo

real”). Talvez por isso o trabalho filosófico de Flusser seja tão ligado aos media.

Como diz Maria Lília Leão, no prefácio de um de seus livros:

[...] [Flusser era] livre para gerar idéias e ligá-las ao que acontece à sua volta. Por isso é tão difícil delimitar as bases do pensamento flusseriano, porque este está sempre correlacionado a fatos, não importa de que natureza. [...] (LEÃO, 1998, p.14)

Em outro texto7, o autor engendra uma situação em que dois homens estão

frente a frente numa cela, um letrado e outro teoricamente não. O homem culto

pensa em começar um diálogo, mas quer fazê-lo de forma a ser bem sucedido, ou

seja, conseguir prender a atenção do outro e ao mesmo tempo estabelecer um

diálogo. Mentalmente, elabora cuidadosamente o que dizer e de que forma poderia

interessar ao outro.

6 Esse é o tema do capítulo 2 desta dissertação 7 O artigo Comunicação II, ou a segunda face da moeda, publicado na década de 1960 em um jornal paulista e transcrito por Flusser (1998, p.59).

27

[...] Talvez se fosse menos subjetivo; se traísse meus sentimentos exasperados. Se dissesse: “vi uma vala contendo quinze mil cadáveres”. Ele ficará alarmado e a conversa estará entabulada, e eu poderei conduzi-la de tal maneira que possa contar-lhe tudo, porque preciso contar, é demais para que um homem possa guardá-lo em si sozinho. Analisei a sentença, tentei ouvi-la com seus ouvidos e logo percebi o absurdo da idéia: “Quinze mil cadáveres! Ou vinte mil cachorros-quentes! Ou então um milhão de gafanhotos!” São numerais que qualificam substantivos, simples construção gramatical. O que significam quinze mil cadáveres para um homem que não viu um sequer? E se fosse ver? Se conseguisse sequestrá-lo de sua torre para mostrar-lhe? Não faria muita diferença. Ver é muito pouco para crer. Diria categoricamente como a criança, ao ver a primeira girafa: “Tal animal não existe”; ou então nunca mais abriria um livro. [...] (FLUSSER, 1998, p.59)

Flusser fala no texto acima sobre a distância que existe entre fato, descrição

verbal e a imagem. No entanto, a imagem de uma pilha de cadáveres em um campo

de concentração é apenas imagem sobre um fato - alegoria8 para quem não estava

ali e reconhece de forma dramática a informação - no caso, a violência praticada

contra seus iguais - ou seja, observa a imagem apenas porque é um sobrevivente.

Permanece vivo porque não estava no local.

A distância que se estabelece entre o observador e o fato quando este é

mediado por uma imagem é uma das questões debatidas por Flusser em sua teoria.

Essa distância é o mote de duas versões possíveis para o futuro: o fim da história,

pela transformação do homem em observador de imagens-fatos ou a postura criativa

diante das imagens que passam a designar a existência. Em seu texto, Flusser

imagina outros dois diálogos.

Num deles, o homem preso – que assume o papel de comunicador –

imagina um diálogo amparado na experiência civilizatória.

[...] Existem certos assuntos íntimos, como de banheiro e de boudoir, que não se deve tocar. São nojentos e ferem o sentimento de pudor. Um gentleman respeita a sensibilidade

8 O conceito aqui é utilizado como em artes plásticas, ou seja, como simbolismo que abrange o conjunto da obra, num processo em que o acordo entre os elementos do plano concreto e aqueles do plano abstrato se dá traço a traço (segundo o dicionário Houaiss). A imagem assume significação a partir do conhecimento que suscita.

28

alheia. Pobre meu amigo. Tuas últimas palavras, o nome de tua mãe, pronunciado na dor final, é pornografia, tuas feridas são antiestéticas, falhaste como gentleman. Descansa em paz! [...] (FLUSSER, 1998, p.59)

O autor ainda imagina uma saída para o diálogo amparado no senso comum

que transforma os homens em seres de mesma sensibilidade.

[...] Entretanto, também ele é homem. Por mais grossa que seja a camada de marfim, ele compartilha da nossa abjeta vulnerabilidade. Se eu apelar para a “fraternidade universal da dor”, ele me compreenderá. Direi o que aconteceu ontem, friamente, sem exaltação. Assim: “um de meus camaradas recebeu uma baionetada e gritava pela mãe, o outro, partiram-lhe a cabeça e não chamava mais ninguém... Eram meus amigos.” Isto é que devo dizer. Não se pode ver, ouvir, cheirar o sofrimento, sem vivê-lo, sem ter o mínimo que seja de piedade, de revolta. Ele compreenderá! [...] (FLUSSER, 1998, p.58-9)

A questão persiste: como traduzir pensamento imagético em conceitos

civilizatórios, comuns e eficientes para transmissão de mensagens a todos os

homens? Cabe a nós estudar as possibilidades. No entanto, toda “futuração”9, como

diria Flusser, é atividade desnecessária em nossa dissertação. Este trabalho se forja

no âmbito das constatações do autor estudado. Sobre isso, vale reproduzir o que ele

escreveu.

[...] Doravante, apenas a imagem é o concreto. O concreto se passa nos terminais; o resto é “metafísica”, no sentido pejorativo do termo. As imagens nos terminais são o polo oposto do nosso vetor de interesse e nós somos o polo oposto do fascismo que emana das imagens. [...] (FLUSSER, 2008, p.137).

No capítulo a seguir, continuaremos a desenvolver ideias que nos facilitem

traduzir pensamento imagético em conceitos civilizatórios. Por um lado, tentaremos

9 Expressão utilizada pelo autor para designar previsões futuras (FLUSSER, 2008).

29

tornar explícito esse caminho aberto por pensadores que acreditam que o fenômeno

das imagens de superfície impõe desafios à área de comunicação. Por outro, vamos

falar sobre como essa nova conformação de imagens atua na composição de

conceitos usados tradicionalmente na ciência e – por que não? – na construção de

um novo senso comum para os homens e mulheres do planeta.

30

CAPÍTULO II - A IMAGEM DE SUPERFÍCIE E A

REPRESENTAÇÃO DO CONHECIMENTO

Até agora, discutiu-se nessa dissertação a teoria de Flusser que trata da

migração de texto escrito para imagens técnicas como código de mediação entre os

homens. O alfabeto como fator de explicação do mundo e transmissão de

informação às populações estaria, na visão de Flusser, cedendo lugar às imagens

de superfície cada vez maior. “A massa está decaindo do nível das letras para o das

imagens controladas pelas cifras10 (numericamente geradas)” (FLUSSER, 1998,

p.190-1). Para o autor, os responsáveis por essa abstração seriam os sistemas

computacionais, que “não apenas calculam (analisam processos em pontos), mas

igualmente computam (sintetizam pontos em linhas, superfícies, volumes, e volumes

em movimento)” (1998, p.190).

Essa revolução inicialmente de expressão tecnológica redunda, segundo o

autor, em uma “nova forma de sociedade e nova forma de consciência” (FLUSSER,

1998, p.190). A nova consciência emerge graças ao “abandono do código alfa-

numérico pelas cifras”, diz Flusser (1998, p.191). Essa pesquisa trata inicialmente da

passagem do código textual – linear, unidimensional – para os códigos pós- textuais

que surgem com as imagens técnicas. Aqui se coloca outra dimensão, e passamos

do código textual linear para o código nulodimensional, em que pontos tomam o

lugar das linhas.

O tema desse capítulo é, em diferentes níveis, uma tentativa de tornar

explícito esse processo em direção a uma nova consciência. Como dito

anteriormente isso ocorre em diferentes níveis: primeiro, na identificação de uma

nova maneira de considerar a informação transmitida em imagens de superfície nas

mídias digitais. Vamos a isso.

10 “Cifra” é e a expressão utilizada pelo autor para designar o termo “algarismo”. Interessante pensar que a palavra designa ainda conjunto de caracteres, sinais ou palavras usados em escrita secreta, código; em sentido figurado, a palavra significa linguagem obscura, metafórica, segundo o dicionário Houaiss.

31

2.1 AS IMAGENS DE SUPERFÍCIE E OS NOVOS CÓDIGOS EM COMUNICAÇÃO

Podemos dizer que Flusser considerava a comunicação como uma estrutura

artificial criada pelo homem e a ele imposta por códigos informativos. O homem

conhece, experencia o mundo e age com base nos códigos.

[...] A comunicação humana é um processo artificial. [...] Baseia-se [...], a saber, em símbolos organizados em códigos. Os homens comunicam-se uns com os outros de uma maneira não “natural” [...] Por isso, a teoria da comunicação não é uma ciência natural, mas pertence àquelas disciplinas relacionadas com aspectos não naturais do homem. [...] Ela indica que na verdade o homem é um animal não natural. [...] (FLUSSER, 2007, p.89)

“Linha e superfície” refere-se a códigos usados para comunicação, onde

linhas são pontos, que se reúnem em sucessão, formando conceitos, expressos em

palavras, e que alinhadas transformam-se em textos. O significado que reúne

palavras e as transformam num código compreensivo representa a sintaxe já

construída. Já as superfícies são telas ocupadas cada vê mais pelas imagens

técnicas, que têm sido usadas em lugar das palavras para compor explicações de

mundo. Cabe construir uma estrutura que dê sentido a isso. O autor escreve:

[...] Textos são séries de conceitos, ábacos, colares. Os fios que ordenam os conceitos (por exemplo, a sintaxe, as regras matemáticas e lógicas) são frutos de convenção. Os textos representam cenas imaginadas assim como as cenas representam a circunstância palpável. O universo mediado pelos textos, ali universo contável, é ordenado conforme os fios do texto. E mais de três mil anos se passaram até que tivéssemos “descoberto” esse fato, até que tivéssemos aprendido que a ordem “descoberta” no universo pelas ciências da natureza é projeção da linearidade lógico-matemática de seus textos, e que o pensamento científico concebe conforme a estrutura de seus textos assim como o pensamento pré-histórico imaginava conforme a estrutura de suas imagens. Essa conscientização, recente, faz com que se perca a confiança nos fios condutores [...]. (FLUSSER, 2008, p.17)

32

E então Flusser fala que deixam de existir os fios que mantêm juntas as

pedras dos colares – ou seja, desmantela-se um código em vista de outro que

começa a surgir em informação. Existem as palavras, para as quais existem códigos

construídos, e as cenas, que formam “amontoados de partículas, de quanta, de bits,

de pontos zero-dimensionais”. As pedras soltas, segundo Flusser, não são

manipuláveis, nem imagináveis ou concebíveis. Mas são calculáveis e podem ser

“computadas” e reunidas em mosaicos, “formando então linhas secundárias (curvas

projetadas), planos secundários (imagens técnicas), volumes secundários

(hologramas)”.

Uma questão fundamental colocada pelo autor era qual o poder dos media

em definir e/ou modificar nosso estar no mundo. O código das imagens em

superfícies redundaria em abstração, parte graças ao abandono do texto

unidimensional usado até então massivamente como fator de explicação do mundo.

É que as imagens técnicas estão ocupando esse lugar na explicação do mundo e,

ao mesmo tempo, crescem em direção ao abstrato graças a utilização tecnológica

do espaço entre os pontos – o “intervalo entre as cifras” (FLUSSER, 1998, p.188),

que gera processos, linhas, superfícies, volumes fixos e em movimento até então

não vistos na realidade tridimensional que se coloca diante de nossos olhos, no dia

a dia. Sobre isso, falamos até aqui.

Autor que também vê os media a partir de códigos que surgem como

convenção cultural é Lev Manovich. Ele escreve sobre o que considera código

usado em comunicação:

[...] Em comunicação cultural, um código é raramente um simples mecanismo de transporte: geralmente afeta a mensagem que transmite. Por exemplo, assim como é capaz de tornar algumas mensagens simples de conceber, pode tornar outras impensáveis. Um código pode também engendrar seu próprio modelo de mundo, seu próprio modelo lógico ou ideologia; mensagem subsequentes e linguagens inteiras criadas sob esse código serão limitadas por esse modelo, sistema ou ideologia. As mais modernas teorias culturais repousam sobre essas noções às quais vou me referir como ideia de “não-transparência do código”. Por exemplo, de acordo com a hipótese de Whorf-Sapir, que conquistou popularidade na metade do século 20, o pensamento humano é determinado pelo código da linguagem natural: os nascidos

33

sob diferentes idiomas perceberiam e pensariam sobre o mundo de forma diferenciada. A hipótese de Whorf-Sapir é a expressão máxima da ideia da “não-transparência do código”; geralmente este conceito é formulado de forma mais amena. [...] (MANOVICH, 2001, p.64)11

Este autor designa as formas digitais de comunicação como “new media”

(MANOVICH, 2001, p.27). Para ele, pertencem a essa categoria “todos os media

que possam ser traduzidas como dados numéricos acessíveis para computador”

(p.20).12

Dessa forma, o autor não considera as imagens técnicas de superfície como

fatalmente separadas das linhas unidimensionais, já que, segundo ele, são as linhas

de cifras (numericamente geradas) que originam as imagens técnicas. Afinal, o que

são as imagens tecnológicas, para Manovich?

[...] A estrutura de uma imagem de computador é um bom exemplo. Ao nível de representação, pertence ao campo da cultura humana, automaticamente entrando em diálogo com outras imagens, outros “semas” e “mitemas” Mas em outro nível, é um arquivo de computador que consiste em máquina de leitura seguido de números que representam valores RGB de pixels. Nesse nível entra em diálogo com outros arquivos de computador. As dimensões desse diálogo não se referem ao conteúdo da imagem, aos significados ou qualidades formais, e sim ao tamanho e tipo do arquivo, tipo de compressão utilizada, etc. Em síntese, essas dimensões pertencem mais à cosmogonia da computação do que à cultura humana. [...] (MANOVICH, 2001, p.45)13

11 “In cultural communication, a code is rarely simply a neutral transport mechanism; usually it affects the messages transmitted with its help. For instance, it may make some messages easy to conceive and render others unthinkable. A code may also provide its own model of the world, its own logical system, or ideology; subsequent cultural messages or whole languages created using this code will be limited by this model, system or ideology. Most modern cultural theories rely on these notions which I will refer to together as “non-transparency of the code” idea. For instance, according to Whorf-Sapir hypothesis which enjoyed popularity in the middle of the twentieth century, human thinking is determined by the code of natural language; the speakers of different natural languages perceive and think about world differently. Whorf-Sapir hypothesis is an extreme expression of “non-transparency of the code” idea; usually it is formulated in a less extreme form. […]” (MANOVICH, 2001, p.64) 12 “The translation of all existing media into numerical data accessible for computers.” (MANOVICH, 2001, p.20) 13 “The structure of a computer image is a case in point. On the level of representation, it belongs to the side of human culture, automatically entering in dialog with other images, other cultural ‘semes’ and ‘mythemes’. But on another level, it is a computer file which consist from a machine-readable header, followed by numbers representing RGB values of its pixels. On this level it enters into a dialog

34

A reflexão acima nos faz pensar: será mesmo possível separar na estrutura

de uma imagem em um nível conteúdo e em outro, representação? Afinal, em sua

criação como código moderno, a imagem esteve desde sempre ligada à sua

estrutura – a saber, falamos do espaço pictórico14 criado na Renascença e que

partia de conquistas matemáticas ligadas ao cálculo (que engendrou a ilusão

perspectiva), à geometria cartesiana. Estamos, no entanto, falando do uso da

imagem de superfície na comunicação nos media digitais. Como Flusser, Manovich

separa semântica e sintaxe, embora sua análise refira-se especificamente ao

formato digital dos media. Manovich define os novos media como um mix entre

novas e antigas convenções culturais de representação. (MANOVICH, 2005, p.41)

Os dados antigos seriam as imagens narrativas em texto e audiovisuais. Os novos

seriam os dados digitais.

É preciso dizer mais uma vez aqui que Flusser considerava o caminho que

passa dos textos unidimensionais para as superfícies bidimensionais em direção ao

zero dimensional uma escalada capaz de alterar o destino humano. Essa é sua

concepção ao pensar antropologicamente na linguagem adotada pelos media.

Para Manovich, essa escalada é antes de tudo considerada uma questão de

formato e estrutura, que surgem redefinidas e são capazes de transformar os media

na era digital. Em sua origem, a progressiva abstração da imagem técnica de

superfície relaciona-se às linhas compostas por pontos dos algoritmos.

[...] Um algoritmo é uma sequência de passos que precisam ser seguidos para a realização de uma tarefa. [...] Considere, por exemplo, a capacidade do computador de representar objetos em perspectiva linear e animar tais representações. [...]

with other computer files. The dimensions of this dialog are not the image’s content, meanings or formal qualities, but file size, file type, type of compression used, file format and so on. In short, these dimensions are that of computer’s own cosmogony rather than of human culture. […]” (MANOVICH, 2001, p.45) 14 Adotamos a definição de espaço pictórico de Erwin Panofsky (1892-1968): “Se puede definir um espacio pictórico como um ámbito aparentemente tridimensional, compuesto de cuerpos (o pseudocuerpos, como las nubes) e intersticios, que parece extenderse indefinidamente, aunque no sempre infinitamente, por detrás de la superfície pintada, objetivamente bidimensional; lo cual quiere decir que esta superficie pintada há perdido esa materialidad que poseía em el arte altomedieval. Há dejado de ser uma superfície de trabajo opaca e inpenetrable – dada por uma pared, uma tabla, um trozo de lienzo, uma hoja de pergaminho o de papel, o fabricada mediante las técnicas propias del tejedor de tapices o del maestro vidriero – y se há convertido em ventana a través de la cual asomamos a uma seción del mundo visible.” (PANOFSKY, 2004, p.182)

35

Quando você [...] movimenta seu ponto de vista em um modelo arquitetônico tridimensional, um computador recalcula as visões em perspectiva de todos os objetos do quadro [...]. Contudo, devemos lembrar que o próprio algoritmo foi codificado durante a Renascença italiana e que, antes dos computadores digitais (isto é, durante cerca de quinhentos anos), era executado por pessoas. [...] (MANOVICH, 2005, p.41)

Flusser fala sobre os volumes obtidos graças a abstrações relativas ao zero

dimensional. Em outro contexto, ao discorrer a respeito das representações dos

volumes tridimensionais em imagens pictóricas, o historiador da arte Erwin Panofsky,

escreveu o seguinte em 1960:

[...] Giotto [...] não concebe a tridimensionalidade como qualidade inerente a um meio ambiente e dado por este aos objetos individuais, e sim como qualidade inerente aos objetos em si. Giotto, portanto, tende a conquistar a terceira dimensão por manipulação do conteúdo plástico do espaço mais do que o espaço mesmo. [...] (PANOFSKY, 2004, p.182)15

Giotto, a quem Panofsky se refere, é o pintor, engenheiro e arquiteto Giotto

di Bondone, que nasceu provavelmente em 1266 e viveu até 1337, e é considerado

um precursor da perspectiva renascentista. Embora sua atuação tenha ocorrido em

outro momento e suas obras não sigam estritamente os cânones da perspectiva

moderna, como artista ele participou como articulador dessa mudança. Ou seja, é

um dos fundadores, segundo Panofsky, do espaço pictórico da Modernidade, que

pressupõe, desde Picasso, continuidade (e, portanto mensurabilidade) e infinitude

(PANOFSKY, 2004, p.185)16. Segundo Panofsky, Giotto foi um dos primeiros a

conquistar a representação do volume em superfície (ver figuras à frente).

15 “Giotto se basa em el poder del volumen, o que es lo mismo, no concibe la tridimensionalidad como cualidad inherente a um médio ambiente e impartida por él a los objetos individuales, sino como cualidad inherente a los objetos individuales en si. Giotto, por tanti, tiende a conquistar la tercera dimensión por manipulación del contenido plástico del espacio más que del espacio mismo [...].” (PANOFSKY, 2004, p.181-2) 16 Literalmente: “[...] el espacio que la pintura helenística y romana presupone y presenta carece de las dos cualidades que caracterizan al espacio que el arte ‘moderno’ pressupone y presenta hasta Picasso: continuidad (y por lo tanto mensurabilidad) e infinitud. [...]” (PANOFSKY, 2004, p.185)

36

Flusser considera ruptura a conquista de volumes nunca vistos antes. A

representação de volumes pode se referir, no entanto, a um processo criativo que se

expressa desde o início da Modernidade, como exemplificamos ao falar de Giotto.

Segundo Panofsky, Giotto conquistava a terceira dimensão através da manipulação

dos sólidos no espaço, mais do a composição do espaço em si . Isso quer dizer, em

outras palavras, que nas pinturas do artista o espaço é engendrado pelos sólidos e

não preexiste a eles.

Figura 1 – Giotto, Lamentação sobre Cristo morto. Afresco. 200 cm x 185 cm. Aprox. 1305. Pádua, Capela da Arena. Ao introduzir figuras de costas, o pintor obriga o espectador a participar da

experiência de profundidade por empatia. (PANOFSKY, 2004, p.182)

Essa progressão técnica que influi na elaboração de uma imagem técnica

pode, no entanto, ser analisada do ponto de vista dos efeitos sob o observador.

Há quem considere a teoria de Flusser sobre os media dessa forma. Autores

têm estudado de forma genérica o impacto do conceito das imagens em superfícies

sobre a área de comunicação. É o caso de Lucrecia D’Alessio Ferrara, para quem a

imagem técnica seria mais do que uma teoria da imagem.

37

[...] mais do que teoria da imagem, Flusser desenvolve uma teoria da visualidade que não se confunde com a espetacularidade anterior ou seu efeito social como anestésico perceptivo. Diferem a imagem e a visualidade, mas ambas caracterizam epistemologias distintas da comunicação: transformamos uma ciência moderna em outra, pósmoderna. [...] (FERRARA, 2009, p.13)

Ou seja, uma teoria da imagem remete a fatores tão amplos quanto o estudo

dos componentes da imagem enquanto discurso, sua espetacularidade ou até sua

composição no espaço – por exemplo, da maneira como Panofsky avalia as pinturas

de Giotto.

Figura 2 – Giotto, O Banquete de Herodes. Afresco. Aprox. 1330. Florença. Santa Croce (capela Peruzzi). O pintor se antecipa à perspectiva bifocal ao colocar seus edifícios enviesados.

(PANOFSKY, 2004, p.182)

No caso, uma teoria de visualidade refere-se à imagem como artefato

primordial nos cenários de em que trocas informativas se estabelecem. A autora

discute Flusser e defende que os pontos levantados pelo autor e possuem amplas

implicações na teoria do conhecimento em comunicação.

38

[...] Da linha à superfície ou da imagem simbólica à visualidade em processo de semiose, temos uma mudança no modo de conhecer, uma transformação epistemológica que coloca para a comunicação um novo caminho, pois desafia o modo como se pode comunicar. [...] (FERRARA, 2009, p.13)

Em suma, para Ferrara, a idéia de linha e superfície em Flusser remete a

alterações profundas na percepção e comportamento humanos diante da

comunicação e do conhecimento.

Outros autores, mesmo que não se refiram especificamente aos escritos de

Flusser, tocam de forma diferenciada nas mesmas questões, ou seja, refletem sobre

teorias e estéticas a serem criadas diante das novas tecnologias. É o caso do

estudioso e professor de mídia eletrônica americano Timothy Druckrey.

[...] Nas mídias eletrônicas, estão se desenvolvendo novas séries de problemas, que invocam não meramente questões formais de justaposição e associação, mas também de inter-relação (ou colisão) entre texto, imagem e som em camadas espaciais e temporais. Em vez de resolver-se como uma singularização, o fluxo de associações emerge como uma narrativa temporal fragmentada. [...] (DRUCKREY, 2005, p.388)

Espacialmente, o homem está cercado de imagens por todos os lados. De

que forma estas imagens representam? O que de fato elas representam? A

representação do concreto é necessária ou nosso destino é mergulhar de vez na

abstração? Além de questões acerca da definição de seu âmbito, é preciso discutir

qual a ação estética dos media digitais.

[...] De fato, o desenvolvimento das mídias digitais, das redes e da tecnologia forma boa parte da base para a comunicação social. E se o desenvolvimento da tecnologia conseguir criar um sistema universal de intercâmbio (como parece provável), então, será necessária uma crítica de longo alcance da comunicação, uma crítica que daria conta do significado cultural da tecnologia em função dos significados que ela forma estética e politicamente. Reconstruir a representação na cultura eletrônica é uma chave para rastear a complexidade e a sutileza das configurações da comunicação emergentes. [...] (DRUCKREY, 2005, p.388)

39

Esta conceituação afasta a idéia que coloca os meios e sua dada

configuração como produto de uma razão fundada nos meios de massa ou da

indústria cultural. Ao contrário, coloca-a mais próxima ao da realização do sonho da

sinestesia – unificação dos sentidos e da vida imaginativa do homem.

Essa reflexão é assunto desta dissertação: quais as alterações da

subjetividade humana diante das novas representações da realidade, em texto e

imagem? Em primeiro lugar, vamos falar sobre como este novo olhar altera as

formas de representação dos conceitos. Antes de tudo, é preciso definir: há relação

entre a imagem técnica de superfície e a representação do conhecimento? Essa

dissertação defende que sim, e baseamo-nos nas idéias desenvolvidas no próximo

item. No mais, vamos citar Manovich em defesa do poder revolucionário das

imagens técnicas sobre o conhecimento.

[...] Originalmente desenvolvido como parte da tecnologia de computação gráfica tridimensional para aplicação como design auxiliado por computador, simuladores de vôo e produção computadorizada de filmes, durante as décadas de 1980 e 1990, o modelo de câmera se tornou uma convenção de interface, tanto quanto as janelas e operações de cortar e colar tornou-se uma maneira aceita de interagir com qualquer dado que seja representado em três dimensões – o que, em uma cultura computadorizada, significa literalmente, qualquer coisa e tudo: os resultados de uma simulação física, o plano de uma nova molécula, um site arquitetônico, dados estatísticos [...]. À medida que a cultura computadorizada gradualmente espacializa todas as representações e experiências, elas ficam sujeitas à gramática de acesso e dados especificos da câmera. Zoom, tilt, pan, track: agora usamos essas operações para interagir com espaços de dados, modelos, objetos e corpos. [...] (MANOVICH, 2005, p.36)

Será que é possível considerar apenas como convenção de interface o

modelo de câmera, grande produtora de superfícies do século 20? O homem

empresta da câmera hoje expressões que designam suas ações executadas na

operação de máquinas muito mais avançadas na apreensão e manipulação da

realidade – como, por exemplo, a configuração de um banco de dados ou uma

imagem em três dimensões. Pensamos que esta alteração é paradigmática.

40

Tabela 1 – As imagens de superfície e os novos códigos em comunicação.

CAMPO DE ATUAÇÃO

PERÍODO CONCEITOS UTILIZADOS

FLUSSER

Filósofo tcheco naturalizado brasileiro. Autodidata, atuou como professor de Filosofia, jornalista, conferencista e escritor. Escreveu em quatro idiomas

No Brasil entre 1941 e 1972. Escreveu no exterior (Europa) até sua morte, em 1991

1. Comunicação vista como código, sintaxe. 2. Linha e superfície: as linhas são os pontos que se apresentam em sucessão e representam o mundo em conceitos- uma sintaxe já construída; as superfícies hoje redundam de imagens técnicas, produzidas por aparelhos, e representam uma lógica em construção totalmente diversa.

MANOVICH Teórico das novas mídias

Cresceu na antiga URSS e lá viveu até os anos 80. Hoje leciona e escreve nos EUA

1. New media são objetos culturais que usam a tecnologia computacional para distribuição e exposição. São compreendidas como um mix entre novas e antigas convenções culturais de representação. As antigas são a realidade visual, imagens narrativas em texto e audiovisuais. Os novos dados são digitais. 2. Imagem no computador, enquanto estrutura, mantém seu aspecto cultural; e ao mesmo tempo é um arquivo de dados manipulável por software.

FERRARA

Aposentou-se como professora livre-docente da FAU-USP. Hoje integra o programa de pós-graduação em Comunicação e Semiótica-PUC

Atua como escritora e conferencista. Leciona na PUC-SP

1. Visualidade – conceito que se afasta de estudos da imagem como expressão da imersão do homem na sociedade de consumo. A autora incorpora o pensamento de Flusser e entende a visualidade como o estado de imersão do ser humano no cenário das imagens – o resultado seriam mediações inéditas, que desafiam os parâmetros convencionais da ciência e comunicação. 2. Segundo Ferrara, Flusser constrói, com os conceitos de linha e superfície, um caminho que vai da imagem simbólica até a visualidade como processo de semiose. A autora defende que Flusser tenha desenvolvido uma outra matriz para compreender a visualidade, uma dimensão cognitiva que se afasta da mera contemplação ou consumo. Essa desprogramação não ocorre apenas tecnicamente, mas se desenvolve na percepção quando se passa a considerar a distinta visualidade dos meios quando ultrapassam a tecnologia de comunicação de massa tradicional e avançam para a digital, com lógica distinta de elaboração e fruição.

41

PANOFSKY Crítico e historiador da arte alemão

Século 20 (1892-1968)

1. Para Panofsky, a Iconologia é um estudo que se interessa pelas relações das imagens com os discursos (culturais, sociais e históricos). Panofsky desenvolveu o pensamento de que a referência do homem em relação a imagens é uma experiência que interfere em sua concepção de mundo. Há três níveis de entendimento dessa relação: o primário, aparente; o secundário, que pressupõe o conhecimento; e, finalmente, o significado intrínseco, onde a arte não seria incidente isolado, mas formas assumidas esteticamente como expressões simbólicas de uma época.

MITCHELL

Professor de história da arte, teórico da mídia e da cultura visual. Leciona nos EUA

Atual, escreve sobre mídia desde a década de 1990

1. Também teórico da iconologia, Mitchell dedica-se ao estudo da figura como interação complexa entre visualidade, aparato, instituições, discurso, corpos e figuração. Segundo o autor, a experiência visual é única e não pode ser compreendida dentro do modelo da textualidade. 2. Mitchell utiliza de maneira indistinta as palavras em inglês picture e image, embora reconheça existir diferença entre as duas expressões. “[...]penso que é útil estabelecer diferenças entre os dois conceitos: a diferença entre o objeto construído ou criado [...] e a aparição virtual, fenomenal para a assistência; a diferença entre um ato deliberado de representação [...]ou um ato involuntário [...].” (MITCHELL, 1994, p.4)

2.2 ALTERAÇÕES NA REPRESENTAÇÃO DO ESPAÇO: O PENSAMENTO

IMAGÉTICO

A intensificação da visualidade nos projetos em comunicação e na ciência

em geral é de uma força explosiva que fragmenta tanto o mundo do poder quanto o

mundo do conhecimento. A crescente precisão e matematização da informação

visual transformaram os media, a percepção do homem no mundo tridimensional e o

ponto de vista fixo.

42

Primeiro, o dispositivo que produz imagem técnica (em superfícies) destrói a

ilusão de transparência e torna clara a autoria, ou seja, as imagens técnicas não

existem a priori; não mais substituem o olho humano. Existe sempre um autor da

imagem, dado ou software por trás do ponto de vista. A imagem técnica poderia ser

confundida com o fato em si, já que nos capacita a estar no local onde este ocorre,

sem de fato estar. Mas há sempre alguém que opera o aparelho produtor da

imagem. Boaventura de Souza Santos nos fala de como Leonardo da Vinci concebia

uma criação.

[...] [A ciência e o direito moderno] pretendem ser a placa de vidro na simulação de Leonardo da Vinci para demonstrar a teoria da imitação da arte. Segundo Leonardo, se interpuser uma placa de vidro entre o artista e o motivo e se sobre ela se pintar o objecto que se vê através dela, o olho humano não poderá distinguir entre a percepção do objecto e a percepção do objecto copiado no vidro [...]. (SANTOS, 2005a, p.192)

E se considerarmos o vidro de Leonardo da Vinci como uma superfície,

então temos uma imagem bidimensional. Embora a noção de perspectiva

renascentista e a utilização do ponto de fuga estejam presentes nas imagens

técnicas, a superfície torna clara a abstração, e os aparelhos utilizados evidenciam a

ação do sujeito que produz a imagem técnica. A tecnologia explode a noção

tradicional de perspectiva, capaz de reproduzir a natureza e ocultar a autoria. O

objetivo de quem utiliza a perspectiva numa reprodução da natureza ou fato é

sempre criar uma ilusão de como é fielmente na realidade. Mas sempre são

mediações, superfícies que por serem bidimensionais, simulam, mas nunca

substituem a natureza ou experiência.

Segundo Boaventura de Souza Santos, a racionalidade estético-

expressiva17, não completamente desenvolvida na Modernidade, tem privilegiado

metáforas espaciais. “Em décadas recentes [...] a dimensão espacial do espaço-

tempo tem vindo a adquirir maior visibilidade.” (SANTOS, 2005a, p.193) 17 Expressão inacabada da Modernidade significa, para o autor, a definição de setores do conhecimento não desenvolvidos desde o advento do mundo moderno, brechas epistemológicas para desenvolvimento de novas teorias científicas que amparem o surgimento de um novo senso comum. Ao lado da racionalidade estético-expressiva, Boaventura de Souza Santos inclui o conceito de comunidade nessa categoria.

43

A percepção visual em superfícies não se manteve inalterada. Sobre o tema

perspectiva pensa o historiador da arte Erwin Panofsky:

[...] Panofsky argumenta que a perspectiva renascentista não corresponde “a experiência visual atual” tal como era entendida cientificamente no início do século 20 ou intuitivamente no século 16 ou Antiguidade. Ele chama de perspectiva uma “sistemática abstração da estrutura do espaço psicofisiológico” e sugere um link entre os mais modernos insights da psicologia na área de percepção visual e os experimentos de Mondrian e Malevich [...]. (MITCHELL, 1994, p.18)18

Se assim pensarmos, a experiência visual humana é compreendida como

um fenômeno cultural e, portanto, deve ser analisada dessa forma.

2.3 A REPRESENTAÇÃO DO CONHECIMENTO

Vamos falar sobre como a visualidade pode influenciar ou mesmo constituir

alteração paradigmática nas formas de representação do conhecimento. Um

paradigma é considerado como categoria conceitual a partir da qual se desenvolve o

pensamento científico (KUHN, 2003, p.91). Vale dizer sobre um paradigma que “é

um pré-requisito para a percepção” (p.150).

Dissemos até agora que a visualidade representa uma nova concepção de

mundo, como se os cientistas e pensadores olhassem o planeta com um novo par

de óculos. Sobre o que significa um novo ângulo de visão falou o historiador da

ciência Thomas Kuhn em seu célebre livro em que discute o surgimento de novos

paradigmas científicos.

18 “Panofsky argued that Renaissance perspective did not correspond to ‘actual visual experience’ either as it was understood scientifically in the early twentieth or intuitively in the sixteenth century or antiquity. He calls perspective a ‘systematic abstraction from the structure of… psychophysiological space’ and suggests a link between ‘the most modern insights of psychology’ into visual perception and the pictorial experiments of Mondrian and Malevich. […]” (MITCHELL, 1994, p.18)

44

[...] Certamente, na sua forma mais usual, as experiências com a forma visual ilustram tão-somente a natureza das transformações perceptivas. Nada nos dizem sobre o papel dos paradigmas ou da experiência previamente assimilada ao processo de percepção. Sobre esse ponto existe uma rica literatura psicológica, a maior parte da qual provém do trabalho pioneiro do Instituto Hannover. Se o sujeito de uma experiência coloca óculos de proteção munidos de lentes que invertem as imagens, vê inicialmente o mundo todo de cabeça para baixo [...]. Mas logo que o sujeito começa a aprender a lidar com seu novo mundo, todo seu campo visual se altera, em geral após um período intermediário durante o qual a visão se encontra simplesmente confundida [...] A assimilação de um campo visual anteriormente anômalo reagiu sobre o próprio campo e modificou-o. Tanto literal como metaforicamente, o homem acostumado às lentes invertidas experimentou uma transformação revolucionária da visão. [...] (KUHN, 2003, p.148-9)

Se pensarmos de acordo com o escrito acima, sim, a popularização das

imagens de superfície atua sobre o campo visual e o modifica. Num primeiro

momento, essa modificação não interfere nos paradigmas – aprender a olhar de um

jeito diferente não equivale a considerar de forma diferente uma dada anomalia na

ciência, segundo Kuhn. Mas interferência ocorre de forma significativa nas

representações da ciência. Sobre o assunto fala Boaventura de Souza Santos.

[...] A representação é sempre uma forma de olhar. Quanto maior o poder de representação maior a profundidade e a transparência do olhar. Se é verdade, como quer Jay (1993), que a modernidade criou um novo “regime escópico”, um novo sistema visual, o centro desse regime ou sistema é o olhar científico (e o olhar jurídico). [...] (SANTOS, 2005a, p.191-2)

Mas a Modernidade – compreendida enquanto a concepção vigente e que

está em discussão – tende a privilegiar uma forma de representação específica:

[...] a racionalidade moderna [...] tende a privilegiar uma forma de representação que conhece (e regula) tanto melhor quanto é a distância entre o sujeito que representa e o objeto que é representado. Traços desta tendência podem, aliás, ser identificados muito cedo na construção do paradigma sócio-

45

cultural da modernidade. Por exemplo, na sua análise da pintura flamenga do século XVII, Susan Sontag sublinha a forma como o artista combina “a atmosfera da distância com a exatidão da descrição de uma igreja vista de uma perspectiva real, mas nunca próxima” (1987:25). Efetivamente, o real e o próximo sempre se opuseram no conhecimento moderno. [...] (SANTOS, 2005a, p.115)

São estas formas de representação acabadas da Modernidade – no caso

citado acima, a separação entre sujeito e objeto - que Boaventura de Souza Santos

coloca em discussão. Utiliza para tanto representações de ciências fortemente

amparadas no processo de identificação espaço-tempo e visualidade. São elas

arqueologia (estudo de objetos distantes no tempo), astronomia (estudo de objetos

distantes no espaço), cartografia (representação do espaço por meio de mapas),

fotografia (representação enquanto reprodução). O autor cita ainda a atividade

artística, mais precisamente, a pintura, desde a Renascença, segundo ele,

“dominada pela questão da representação” (SANTOS, 2005a, p.228).

[...] Baseando-me livremente nos procedimentos e estratégias que estes conhecimentos e práticas conceberam para superar os dilemas e as falácias da representação, mostrarei, em primeiro lugar, que tais procedimentos, estratégias, dilemas e as falácias se encontram no cerne mesmo do conhecimento científico moderno em geral e, em segundo lugar, que no âmbito das alternativas que tais procedimentos e estratégias tornaram possíveis, as ciências sociais, em geral, e a economia convencional, em particular, escolheram as alternativas menos adequadas para promover a solidariedade como forma de saber. Subjacente a esta minha tese, está a ideia de que tais procedimentos e estratégias são as meta-tecnologias, que autorizam os cientistas a produzir conhecimento aceitável e convincente, e que tais meta-tecnologias, internas ao processo científico, são tão parciais e opacas quanto as intervenções tecnológicas da ciência na vida social. Os conceitos-chave da minha análise são os seguintes: escala, perspectiva, resolução e assinatura. [...] (SANTOS, 2005a, p.229)

Os conceitos-chave utilizados pelo autor para desvendar os procedimentos e

estratégias científicas que estão em discussão na atualidade – escala, perspectiva,

resolução e assinatura (presença do criador) – são também metáforas que

representam o mundo a partir de conceitos usados para definir a maneira de

46

enxergar do ser humano e de criar conhecimento a partir disso. Isso nos interessa,

já que as imagens de superfície significam, a nosso ver, uma transformação visual

revolucionária. Temos trabalhado até aqui com a relação entre a lógica conceitual e

as imagens – o que muda no pensamento humano diante das novas imagens

técnicas? Mudam a escala, perspectiva, resolução e assinatura.

Vamos falar sobre como se constrói uma lógica de raciocínio a partir da

visão. Citamos anteriormente Giotto e suas elaborações em perspectiva a partir dos

objetos – a maneira como conquistava a tridimensionalidade a partir dos sólidos e

não pela manipulação do espaço. O artista procedia de uma forma diferenciada de

outros criadores da Modernidade. Boaventura de Souza Santos nos fala de como a

perspectiva e escala orientaram o olhar e, consequentemente, o pensamento do

homem moderno.

[...] Na modernidade ocidental e na ciência moderna, os graus de relevância são estabelecidos por um outro procedimento que opera juntamente com a escala: a perspectiva. Leon Battista Alberti é considerado o fundador da perspectiva de um só ponto na pintura da Renascença embora as leis matemáticas da perspectiva tenham sido descobertas pelo arquiteto florentino Filippo Brunelleschi (1377-1446). No seu tratado Da Pintura, de 1435,Alberti compara o quadro pintado a uma janela aberta: “um quadro em seu entender, deveria parecer uma vidraça transparente através da qual pudéssemos olhar um espaço imaginário estendendo-se em profundidade” (Andrews, 1995:1). A fim de obter esse resultado, Alberti concebe um método para desenhar uma representação matematicamente correcta do espaço em que o tamanho relativo dos objectos a diferentes distâncias e a convergência aparente de linhas paralelas seja tão convincente ao olhar, na arte, como o é na natureza (Gilman, 1978:17). Como diz Gilman, “[n]o século XV e no início do século XVI, a perspectiva tem origem numa certeza, a que dá também expressão, acerca do lugar do homem no mundo e da sua capacidade de entender esse mundo”. (Gilman, 1978:29) [...] (SANTOS, 2005a, p.232-3)

Ao comparar uma superfície a uma janela, Alberti já indica ao criador qual é

a relação entre a perspectiva e sua conseqüência enquanto pensamento. A

afirmação de Alberti equivale a exigir do artista a captação direta da realidade. Não

mais cabia a expressão de estados sensoriais e internos (PANOFSKY, 2004, p.183).

47

Santos continua a falar sobre o sistema moderno de construção da tela enquanto

superfície e sua relação com a lógica:

[...] O sistema de proporções entre os objetos a serem pintados e as suas imagens, entre a distância do olhar do observador e o quadro, cria um mundo inteligível, organizado à volta do ponto de vista do observador. A credibilidade desta arte “ilusionista” (Gilman, 1978:23) reside na precisão matemática do ponto de vista do indivíduo. A perspectiva renascentista é tanto uma mostra de confiança no conhecimento humano como o contraponto artístico do individualismo. [...] (SANTOS, 2005a, p.232-3)

A lógica moderna substitui a anterior. O pintor não deveria mais exprimir atos

internos ou sua experiência psicológica. (PANOFSKY, 2004, p.183) Giotto atuava

com elementos modernos, já que utilizava noções de perspectiva, mas em ambiente

cultural diferente e sob regras diversas das proferidas por Alberti para criação da

perspectiva em superfícies. Santos, no século 21, faz a crítica da lógica que está por

trás das regras de criação em perspectiva.

[...] Contudo, esta precisão e esta confiança acarretam um custo muito elevado: a imobilidade absoluta do olhar. A ilusão é real na condição de o quadro ser visto de um ponto de vista pré-determinado e rigidamente fixo. Se o espectador mudar de lugar, a ilusão de realidade desaparece. Gilman tem pois, razão quando diz que “ [a] própria plenitude e definição do espaço de perspectiva implica a incompletude radical da nossa visão, e [que] o ponto de vista se transforma numa limitação drástica, num par de antolhos, bem como num privilégio epistemológico (Gilman, 1978:31). [...] (SANTOS, 2005a, p.232-3)

Segundo conclusão do autor, a perspectiva influencia os parâmetros de

relevância e objetividade científica. Ele escreve:

[...] A estrutura imaginativa da perspectiva subjaz, como disse já, tanto à arte moderna como à ciência moderna. É também

48

mediante a perspectiva que os graus e as proporções da relevância científica podem estabelecer-se. Há, no entanto, uma diferença importante no modo de operar da perspectiva, em arte ou em ciência. O pintor pinta para o espectador ideal [...]. Ao contrário, o cientista moderno vê-se a si próprio como o espectador ideal. [...] (SANTOS, 2005a, p.233)

Um exemplo clássico de uma representação baseada nas regras de

projeção perspectiva – central por definição e análoga a que produz uma câmera

fotográfica – é o famoso esboço de Leonardo da Vinci para a Adoração dos Magos

(a seguir).

Figura 3 – Leonardo da Vinci, estudo perspectivo para a “Adoração dos Reis Magos”, c. 1481, desenho a tinta, 163 cm x 290 cm, Gabinetto dei Disegni, Galleria Degli Uffizi, Florença.

(PANOFSKY, 2004, p.190)

Já o conceito de resolução interfere no processo de detecção e

reconhecimento científicos. Sobre isso nos fala Boaventura de Souza Santos. “A

resolução refere a qualidade e pormenores da identificação de um dado fenômeno,

seja ele comportamento social ou imagem. [É] central tanto na fotografia como nas

tecnologias de detecção remotas.” (SANTOS, 2005a, p.236)

49

[...] A resolução, tal como a escala e a perspectiva, é um conceito essencial à ciência moderna, e funciona a dois níveis diferentes: ao nível da metodologia e ao nível da teoria. Tanto o método como a teoria estão presentes na identificação científica dos objetos a analisar, mas os métodos predominam no processo de detecção, ao passo que as teorias predominam no processo de reconhecimento. [...] A qualidade da identificação científica é, pois, determinada por um sistema de resolução que compreende dois componentes: os métodos e as teorias. É comum referir que o desenvolvimento dos métodos de pesquisa ultrapassou o desenvolvimento das teorias, em particular nas ciências sociais. Não é por isso de estranhar que ainda se regresse aos fundadores, no século XIX e início do século XX em busca de orientação teórica, enquanto os métodos de pesquisa e as ciências de recolha de dados que hoje usamos são técnicas muito mais sofisticadas do que os que estavam disponíveis no século XIX. [...] O grau de resolução dos métodos é maior que o grau de resolução das teorias. [...] (SANTOS, 2005a, p.236)

Boaventura de Souza Santos nos fala sobre resolução e os componentes

para sua consecução em ciência: teoria e método a seguir. Posteriormente, diz que

os métodos suplantaram as teorias no século 20. Investiguemos os motivos.

Amparados por máquinas para visualizar fenômenos sob diferentes aspectos, os

cientistas hoje dispõem de inúmeras ferramentas para explicar ou mesmo explodir

antigas teorias amparados em provas obtidas através de métodos antes

inexistentes.

Vamos a um exemplo: em computador, um químico pode construir

visualmente uma nova molécula, fazê-la girar ou mesmo interagir com outras,

construídas sob os mesmos parâmetros. Em outra área do conhecimento, um

médico pode descobrir fatores endêmicos de uma moléstia (p.e., câncer) baseado

em dados estatísticos que até então não poderiam ser computados em séries

históricas e avaliados assim. Da mesma forma, outro médico pode avaliar a

incidência de determinado fator genético em doença que está estudando, graças a

evolução de equipamentos que possibilitam a visão de fenômenos que ocorrem a

nível microscópico e que no passado não podiam ser detectados.

Os métodos de visualização e investigação dos fenômenos estão cada vez

mais avançados. Essa resolução aumentada tende a influenciar a adaptação das

50

teorias aos métodos e à criação de teorias diante da nova resolução com que o

cientista pode investigar os fenômenos.

Diante dos desafios colocados pelas imagens de superfície, cabe a

discussão dos parâmetros utilizados até hoje na explicação do real. Boaventura de

Souza Santos nos fala sobre a ciência até hoje.

[...] A consagração da ciência moderna nestes últimos 400 anos naturalizou a explicação do real, a ponto de não o podemos mais conceber senão nos termos por ela propostos. Sem as categorias de espaço, tempo, matéria e número – as metáforas matriciais da física moderna (Jones, 1982) seríamos incapazes de pensar, mesmo que hoje as concebamos como categorias convencionais e metafóricas. [...] à medida que as ciências naturais se aproximam das ciências sociais, estas aproximam-se das humanidades. A revalorização dos estudos humanísticos acompanha a revalorização da racionalidade estético-expressiva das artes e da literatura que, juntamente com o princípio de comunidade, é uma representação inacabada da modernidade. A dimensão estética da ciência, de Poicanré a Kuhn, foi reconhecida por cientistas a filósofos da ciência. Mas, na transição paradigmática, essa dimensão é ainda mais forte: a criação do conhecimento do paradigma emergente reclama para si uma proximidade com a criação literária ou artística. Daí que o discurso científico se aproxima do discurso artístico e literário. [...] (SANTOS, 2005a, p.84, 92)

O aumento da resolução tem efeitos também na pesquisa pura –

elucubrações que surgem a partir da imaginação, sem elos com a realidade prática

imediata. Citaremos como exemplos de pesquisa pura os cálculos de Einstein sobre

a velocidade da luz ou estudos humanísticos.

A resolução aumentada está, por exemplo, relacionada à mecânica quântica

– que introduziu as representações nulo-dimensionais citadas por Flusser.

A mecânica quântica introduziu também a questão da consciência no ato do

conhecimento, segundo Boaventura de Souza Santos. “Nós temos hoje que

introduzir (a consciência) no próprio objeto do conhecimento.” (SANTOS, 2005a,

p.90)

51

A habilidade de ver informação em superfícies é exclusiva do ser humano.

Segundo teóricos de biologia cognitiva, enxergar o sentido de uma imagem é uma

habilidade da consciência humana que até hoje não pode ser reproduzida em

máquinas.

[...] Como saberíamos se uma máquina adquiriu essa qualidade aparentemente indescritível, a consciência? [...] Essa aptidão de juntar vários fatos que façam sentido numa foto sobre a realidade: por exemplo, saber que um elefante não deve estar encarapitado no topo da torre Eiffel – define uma propriedade essencial da mente consciente, algo que, em contraste, uma sala repleta de supercomputadores IBM ainda não consegue distinguir. [...] (KOCH; TONONI, 2008, p.54)

Segundo a informação acima, é exclusivamente humana a capacidade de

atribuir sentido, detectar informação em uma imagem. Até hoje os cientistas não

conseguiram reproduzir em máquinas essa aptidão. Para Flusser, a própria

“definição de imaginar foi formulada para articular a revolução epistemológica, ético-

política e estética pela qual estamos passando. Para articular a nova sensação vital

emergente” (FLUSSER, 2008, p.45).

2.4 A PROJEÇÃO DE SENTIDO EM SUPERFÍCIES

A questão sobre qual o sentido que se projeta sobre superfícies talvez seja

anterior a sua configuração técnica. Segundo Flusser, “as imagens técnicas

projetam sentido sobre superfícies” (FLUSSER, 2008, p.55). No entanto, o que ele

quer dizer com a expressão “projetar sentido”?

Seríamos agentes diante da observação de imagens? Sobre isso estuda

W.J.T. Mitchell.

[...] é antes uma redescoberta póslinguística, póssemiótica da figura como uma interação complexa entre visualidade,

52

aparato, instituições, discurso, corpos e figuração. É o reconhecimento de que o ato de assistir (o olhar, a observação, o relance, as práticas de vigilância e prazer visual) pode ser um problema tão profundo quanto as várias formas de leitura (entendimento, decodificação, interpretação, etc) e que a experiência visual ou “destreza visual” não pode ser totalmente compreendida dentro do modelo da textualidade. […] (MITCHELL, 1994, p.16)19

Essa maneira de encarar a questão das imagens redundou na criação de

uma disciplina intitulada iconologia – “nome do estudo do campo geral das imagens

e sua relação com o discurso”20 (MITCHELL, 1994, p.36). A disciplina surgiu do

estudo e trabalhos desenvolvidos por Panofsky, autor já citado e discutido nessa

dissertação.

Em seus textos, Mitchell utiliza indistintamente as palavras picture e image,

embora saiba que são diferentes e esclareça a diferença de significado entre elas.

[...] Na fala comum, “figura” e “imagem” são usados de forma intercambiável para designar representação visual em superfícies de duas dimensões, e eu vou recair algumas vezes nesse uso comum. Todavia, em geral, penso que é útil estabelecer diferenças entre os dois termos: a diferença entre um objeto concreto construído ou criado (frame, suporte, materiais, pigmento, elaboração) e a aparição virtual, fenomenal para a assistência; a diferença entre um ato deliberado de representação (“pintar ou descrever”), ou um ato involuntário, talvez até passivo e automático (“desenhar ou imaginar”), a diferença entre um tipo específico de representação visual (imagem “pictórica”) e todo a experiência da iconicidade (imagens verbais, acústicas, mentais). [...] (MITCHELL, 1994, p.4)21

19 “[...] is is rather a postlinguistic, possemiotic rediscorery of the picture as a complex interplay between visuality, apparatus, institutions, discourse, bodies, and figurality. It is the realization that spectatorship (the look, the gaze, the glance, the practices of observation, surveillance, and visual pleasure). May be as deep a problem as various forms of reading (decipherment, decoding, interpretation, etc) and that visual experience or ‘visual literacy’ might not be fully explicable on the model of textuality […].” (MITCHELL, 1994, p.16) 20 “[…] name of the study of the general field of images and their relation to discourse.” (MITCHELL, 1994, p.36) 21 “In common parlance, ‘picture’ and ‘image’ are often used interchangeably to designate visual representations on two-dimensional surfaces, and I will sometimes fall into this usage. In general, however, I think it is useful to play upon distinctions between the two terms: the difference between a constructed concrete object or ensemble (frame, support, materials, pigments, facture) and the virtual, phenomenal appearance that it provides for a beholder; the difference between a deliberate act of representation (‘to picture pr depict’) and a less voluntary, perhaps even passive oar automatic act (‘o

53

Antes de qualquer dedução, temos que ponderar: afinal, as duas palavras

não são sinônimos no idioma inglês. Picture é desenho, pintura, fotografia. Image é

a ideia sobre algo na mente.22 Ou seja, Mitchell considera a imagem independente

ou sob qualquer suporte, podendo também existir imagens não visualizáveis23. .

Portanto, avalia seu conteúdo e expressividade na elaboração de um discurso em

comunicação.

Na abordagem de Flusser, a própria definição de imagem era relacionada ao

seu potencial como superfície e as possibilidades abertas com o desenvolvimento

tecnológico. Segundo ele, “imagem é superfície significativa na qual ideias se

interrelacionam magicamente” (FLUSSER, 2011, p.18).

Ou seja, os conceitos que os autores operam são diversos. Não queremos

tratar nessa dissertação do significado antropológico das imagens, ou de sua

construção em discurso simbólico. Interessa-nos antes saber qual o significado para

o homem da vulgarização da imagem técnica em superfícies como veículo de

propagação de conhecimento e informação.

Teórico do estudo das imagens, W.J.T. Mitchell será citado novamente neste

trabalho, ao tratar das figuras técnicas e sua influência na modificação do conceito

de esfera pública (no capítulo 3). O autor produziu diversos artigos com críticas de

filmes que induzem ao tema. Os filmes e seu conteúdo, ou a construção de um

discurso com imagens não são, no entanto, tema dessa dissertação.

2.5 O FIM DO HORIZONTE

Vamos voltar ao nosso tema original: a confluência entre os fenômenos

tecnológicos em relação a imagens ocasiona mudanças de percepção nos homens e

mulheres do planeta e, consequentemente, no pensamento humano.

image or imagine’); the difference between a specific kind of visual representation (the ‘pictorial’ image) and the whole realm of iconicity (verbal, acoustic, mental images) […].” (MITCHELL, 1994, p.4) 22 Definições segundo Macmillan English Dictionary for advanced learners (2007). 23 Segundo Leao (2011, p.2), o pensador Hans Belting desenvolve teoria em que as imagens não existem por si mesmas, mas acontecem via transmissão (meios) e percepção (corpos). As imagens não são independentes, mas existem externamente no processo de comunicação (imagem exógena). Internamente, pertencem ao imaginário do homem (imagem endógena).

54

Se o foco é a imagem que temos à disposição, o planeta e o universo

parecem cada vez mais limitados por superfícies. Qual a amplitude que percebemos

diante das imagens que nos circundam? Galáxias inteiras aparecem no espaço de

uma foto, encolhidas em centímetros – é a perspectiva da ilusão mágica como

rotina. Embora visse o fenômeno como prejuízo ecológico, o arquiteto Paul Virilio

pensou a respeito.

[...] [sem o movimento] jamais teremos acesso a uma compreensão profunda dos diversos regimes de percepção de mundo que se sucederam ao longo dos séculos, regimes de visibilidade das aparências ligados à história das técnicas e das modalidades de deslocamento, das comunicações à distância, com a natureza da velocidade dos movimentos de transporte e de transmissão engendrando uma transmutação da “profundidade de campo” e, consequentemente, da espessura ótica do meio ambiente humano [...]. (VIRILIO, 2008, p.107)

Segundo Virilio, a dimensão movimento possibilitou a compreensão das

dimensões ocultas das revoluções de comunicação. Quando fala da espessura ótica

da paisagem e da diminuição do horizonte de visibilidade, o arquiteto refere-se a

fenômenos de tempo real em media. É a perspectiva de toque em tempo real que

desestabiliza a visualização clássica dos perspectivistas do Quattrocento, segundo

Virilio. No entanto, é difícil não relacionar sua teoria sobre o declínio da importância

da ótica geométrica, segundo ele, ótica passiva do espaço da matéria, e o

surgimento da “grande ótica”, que não considera a noção clássica de horizonte, com

a popularização das imagens de superfície, sejam ou não geradas em tempo real.

Virilio relaciona espaço e tempo.

Segundo Virilio, a ótica geométrica dos raios luminosos teria sido substituída

pela ótica ondulatória da radiação eletromagnética das partículas que veiculam a

visão e a audição.

[...] Tudo isso nos leva a falar não mais, unicamente, como os filósofos da idade clássica, em extensão e duração do espaço da matéria, mas ainda na espessura ótica do tempo da luz e sua amplificação ótico-eletrônica, que exigem, ambas, a

55

superação da perspectiva geométrica da Renascença italiana por uma perspectiva eletrônica: a do tempo real da emissão e da recepção dos sinais de áudio e vídeo [...]. (VIRILIO, 2008, p.102)

Segundo Boaventura de Souza Santos, “a necessidade de compressão do

tempo-espaço é tanto maior quanto mais vasto é o espaço” (SANTOS, 2005a,

p.194). A compressão do espaço tridimensional para superfícies bidimensionais via

abstração matemática pode ser vista sob esse ângulo. Diversas são as leituras.

Segundo Flusser, “muito do não-falável pode ser perfeitamente articulado por outro

discurso, por exemplo, cifras, ou por cifras transcodificadas em imagens” (1998,

p.199).

Idealizador da teoria das cordas, o físico teórico Leonard Susskind,

apresenta um bom exemplo de como a posição de observação pode influir na

experiência. É o caso clássico de Alice e Bob diante do buraco negro24. De outra

forma, nos fala a respeito Boaventura de Souza Santos: “O que um homem vê

depende tanto daquilo que ele olha como daquilo que sua experiência visual-

conceitual o ensinou a ver.” (SANTOS, 2005a, p.150)

No entanto, como diz W. J. T. Mitchell, somos todos selvagens diante de

imagens. Literalmente, não sabemos de onde vêm, para onde vão ou se morrem

(MITCHELL, 1994, p.21). Da mesma forma, qualquer imagem potencialmente pode

ser uma espécie de vortex ou buraco negro capaz de sugar a consciência do

espectador, diz o autor (p.23).

Vamos em seguida aplicar essas reflexões teóricas à idéia que a visualidade

pode influenciar ou mesmo constituir alteração nas formas de representação de uma

comunidade no Egito perante o mundo.

24 Alice e Bob estariam numa nave em frente ao buraco negro, imagina matematicamente o físico teórico Leonard Susskind. Alice se projeta fora da nave em direção ao centro do buraco, enquanto Bob observa. Alice tem uma dimensão do que ocorre, diferente da percepção de Bob. Susskind usou essa referência matemática para contestar teorias de Stephen Hawking sobre a perda de massa do universo diante de objetos “sugados” pelo buraco negro.

56

CAPÍTULO III - REPRESENTAÇÃO DA REVOLUÇÃO

É possível aplicar o conceito de visualidade à análise de um fenômeno de

comunicação. Graças à popularização do uso de imagens técnicas – a saber, a

constante utilização de fotos aéreas produzidas através de satélites como processo

de delimitação de território na apresentação de fatos noticiosos - a praça Tahrir, no

Cairo, transformou-se em território livre onde se abrigaram durante dezoito dias os

opositores do ditador Hosni Mubarak, em fevereiro de 2011.

Nossa hipótese é que a vinculação de imagens técnicas nos media tornou-

se agente no processo de delimitação do território da praça. Isso deu confiança aos

insurgentes: sob a visão de câmeras, postavam-se diante do planeta numa área em

que os desmandos do ditador não poderiam ser exercidos, devido a tantas

testemunhas. Dessa forma, sob ação dos media, o que era uma praça transformou-

se em um território livre, e por que não dizer, um “país”. (veja figuras ao final deste

capítulo, a partir da pág. 68)

Imagens aéreas são comuns à cartografia – que é a representação gráfica

que facilita a compreensão espacial de coisas, conceitos ou eventos. Segundo Leão,

“a cartografia é uma das mais antigas manifestações de cultura” (2002b, p.77). De

acordo com a autora, o mais antigo mapa conhecido é Catal Hyük (6200 a.C.)

descoberto em Ankara, na Turquia. “Acredita-se que esse mapa represente a planta

de uma cidade, em grandes proporções, pintado em uma rocha”. (LEÃO, 2002b,

p.78).

A cartografia enquanto ciência surge quando o astrônomo e geógrafo

Ptolomeu elabora seu clássico tratado Guia de Geografia, que o mundo conheceu

no século II d.C. Já na Idade Média, “os mapas assumem características

particulares, passando a predominar os desenhos ilustrativos e as alegorias” (LEÃO,

2002b, p.79). As convenções geográficas surgem como manifestações aleatórias.

[...] Dessa época é o célebre mapa em T-O de Santo Isidoro de Sevilha. O mapa em T-O é assim conhecido por ser composto por duas circunferências, uma externa, formando a letra O e a interna, repartida ao centro, formando a letra T. O mapa em T-

57

O é orientado para leste e, assim, a Ásia está representada na parte superior do T, a Europa à esquerda e a África à direita. [...] (LEÃO, 2002b, p.79)

Desde o início das navegações no Mediterrâneo, mapas são também

acessório indispensável. Fernand Braudel reproduz em sua obra O Mediterrâneo um

desenho rebuscado e alegórico que mostra a cidade do Cairo com o leste ao alto e o

oeste abaixo. Ali vêem-se as pirâmides a um lado do rio Nilo e as edificações do

outro. (BRAUDEL, 1983, p.384)

Com a expansão das navegações e a exploração das colônias pelas

potências européias, no início da Modernidade, no século XV, a cartografia e seu

controle constituiu-se como expressão de poder. Essa é uma das razões porque o

Norte está acima do Sul nos mapas – esta é a forma de representar as potências

coloniais. Antes disso, as representações em mapa colocavam no “centro do mundo”

o país de onde os mapas provinham.

A popularização das imagens aéreas obtidas através de satélite – que nos

acostumamos primeiro a ver em filmes de Hollywood e hoje acessamos na internet

(aparatos móveis) – foram inicialmente disponibilizadas pela Nasa e o governo

norte-americano. Representaram, antes de tudo, o poder tecnológico e militar que se

estabelecia sobre o planeta. Hoje, as imagens são usadas habitualmente de forma

comercial pelo programa de busca Google. Nestas imagens, se tivermos os

endereços, podemos visualizar diferentes áreas do globo, como por exemplo, ver

que a construção da cidade imperial, em Pequim, na China, é feita em madeira.

Podemos ter ainda uma visão aérea das pirâmides, no Cairo, Egito.

[...] Enquanto tipo de conhecimento impessoal, os mapas tendem a “dessocializar” o território que eles representam. Eles favorecem a noção do espaço socialmente vazio. A qualidade abstrata do mapa, tanto incorporada nas linhas de uma projeção ptolomaica do século XV quanto nas imagens contemporâneas da cartografia informatizada, atenua a tomada de consciência de que os seres humanos vivem na paisagem. As decisões relativas ao exercício do poder estão desconectadas do domínio dos contatos interpessoais. [...] (HARLEY, 2009)

58

No entanto, com o mapeamento computadorizado das cidades, podemos

dizer que o homem comum se afastou das dimensões médias que seus olhos

podiam alcançar, ao mesmo tempo em que os meios instantâneos de comunicação

ampliaram sua voz e capacidade de movimentação no espaço.

A perspectiva renascentista foi ultrapassada pelas escalas de grandeza

atuais e deu lugar a conceitos que escapam ao senso comum tradicional. Sobre isso

fala Boaventura de Souza Santos.

[...] A transição paradigmática é, assim, um ambiente de incerteza, de complexidade e de caos que se repercute nas estruturas e nas práticas sociais, nas instituições e nas ideologias, nas representações sociais e nas inteligibilidades, na vida e na personalidade. [...] Estruturas não são incompatíveis com uma concepção retórica do conhecimento. [...] As estruturas são lugares não apenas em termos retóricos, mas também em termos sócio-espaciais. Cada lugar estrutural é constitutivo de uma espacialidade específica, e as interações sociais que ele exige e possibilita têm uma referência locacional inscrita no que, através delas, é feito ou pensado. Nas duas últimas décadas, a geografia provou, não só que os espaços são socialmente constituídos, mas também que as relações sociais são espacialmente constituídas. [...] O duplo sentido em que as estruturas constituem lugares (em sentido retórico e em sentido sócio-espacial) sugere uma amplitude insuspeitada entre a geografia e a retórica que, no entanto, ainda não despertou a atenção de geógrafos, nem de retóricos. [...] (SANTOS, 2005a, p.257)

Num contexto altamente tecnológico, constroem-se as mudanças referentes

aos conceitos de lugar e espaço geográficos. Os lugares estruturais, que as pessoas

ocupam tradicionalmente, passam a submeter-se aos vetores de ação, direção,

velocidades e tempo, referentes inicialmente ao conceito de espaço. O espaço,

animado pelo conjunto de movimentos existenciais da uma determinada

comunidade, também se altera. No entanto, acreditar que o acesso a imagens de

satélite poderia influenciar a tradicional dicotomia capitalista entre o Norte-Sul e

Oriente-Ocidente é ideia forte demais para muitos pensadores.

59

Também W.J.T. Mitchell pensou a respeito.

[...] Por um lado, parece óbvio demais que a era do vídeo e da cibernética, a era da reprodução eletrônica, desenvolveu novas formas de simulação visual e ilusionismo com poderes sem precedentes. Por outro lado, o medo da imagem, a ansiedade que o “poder das imagens” pode enfim destruir até seus criadores e manipuladores, é tão velha quanto a própria criação das imagens. A fantasia de uma virada pictórica, de uma cultura totalmente dominada por imagens, agora se transformou em uma possibilidade técnica real em escala global. A aldeia global de Marshall McLuhan é hoje um fato não especialmente reconfortante. A CNN mostrou como uma população supostamente alerta e educada (por exemplo, o eleitorado americano) pode presenciar a destruição em massa de uma nação árabe como se fosse um melodrama televisivo, composto por uma narrativa do bem triunfando sobre o mal e rapidamente sumir da memória pública. [...] (MITCHELL, 1994, p.15)25

O que Mitchell argumenta é que as imagens técnicas têm poder de

transformar fatos em narrativas e afastar os espectadores dos acontecimentos – o

que teria um impacto político desmobilizador ao transformar cidadãos em

observadores. Isso pode ser relacionado ao que discutimos a seguir nesta

dissertação como uma controvérsia. As imagens técnicas surgem como cenas que

podem ter ou não efeito desmobilizador. Depende do ângulo em que se olha, da

imaginação do observador ou de como se constroem as narrativas..

25 “On the one hand, it seems overwhelmingly obvious that the era of vídeo and cybernetic technology, the age of eletronic reproduction, hás developed new forms of visual simulation and illusionism with unprecedent powers . On the other hand, the fear of the image, the anxiety that the ‘power of images’ may finally destroy even their creators and manipulators, is as old as image-making itself. […] The fantasy of a pictorial turn, of a culture totally dominated by images, has now become a real technical possibility on a global scale. Marshall McLuhan’s ‘global village’ ins now a fact and not an specially conforting one. CNN has shown us that a supposedly alert, educated population (for instance, the American electorate) can witness the mass destruction of an Arab nation as little more than a spectacular television melodrama, complete with a simple narrative of good triumphing over evil and a rapid erasure from public memory.”

60

3.1 A DELIMITAÇÃO DO ESPAÇO

Como disse Boaventura de Souza Santos, assumimos a ideia de que

estamos em meio a uma transição paradigmática, onde os ângulos de visão são

antes de tudo formas simbólicas de representação do espaço e do lugar do homem

no mundo. A partir dessa abordagem teórica, em nossa opinião, a praça Tahrir

assumiu no imaginário humano planetário a importância que o espaço já tinha para o

povo egípcio. A palavra tahrir significa “libertação” e inúmeros movimentos populares

ali ocorreram no passado do país.

A imagem obtida via satélite é célebre – também o desenho do Cairo no livro

de Braudel mostra o rio Nilo, que desemboca na cidade. A infografia do jornal norte-

americano The New York Times (ver figuras 4 a 9, a partir da pág. 68) ilustrou que a

escolha do local da concentração dos manifestantes se amparou no grande número

de edifícios que têm importância para a comunidade: sede do governo, Liga Árabe,

hotéis internacionais e o museu egípcio estão nas imediações.

A infografia dos jornais e redes noticiosas internacionais começou a

trabalhar com as imagens da praça como se esta fosse um diagrama26. Podemos

ver a identificação do espaço central, destinado aos bloggers que acamparam ali e

jamais deixavam o local. Num segundo eixo circular, no formato da praça, situavam-

se os manifestantes em uma grande onda, que ora se inclinava em direção a Meca,

ora se movia em círculos. A BBC fez mesmo um mapa (ver figura 10, pág. 74), que

designava onde os manifestantes deixavam os filhos, procuravam água, iam ao

banheiro etc., já que a praça virou moradia de centenas de pessoas que ali

passaram a viver durante 18 dias..

A praça Tahrir ganhou verbete na Wikipedia e página de personalidade no

Facebook. Fotos e vídeos produzidos em celulares ganharam páginas na Internet.

Protestos contra governos ditatoriais dominaram o mundo árabe em 2011.

No entanto, nos países onde não há clara documentação em imagens técnicas

26 Diagramas compreendidos segundo a teoria de Peirce sobre lógica dos ícones – ou seja, imagem a ser considerada como informação direta, instantânea, p.e. a imagem que designa “jogue o lixo no cesto” como mensagem objetiva e referência clara a um código de comunicação pré-estabelecido, no caso do exemplo acima, por civilidade (leia-se a respeito FARIAS, 2003, p.151).

61

(fotografias ou vídeos) dos espaços de confronto, como na Síria ou Líbia,

manifestações internacionais contra desmandos locais não repercutiam entre os

habitantes de outros países. O discurso oficial pró-EUA ou a favor dos governos

locais deixa de ter força

Em um incidente anterior, ocorrido em 1991, imagens feitas por um amador,

George Holliday, nas ruas de Los Angeles, quase colocaram a cidade abaixo:

confrontos raciais ocorreram ali depois que a mídia transmitiu imagens da surra que

um garoto negro, Rodney King, levou de policiais locais. As imagens feitas por

Holiday mostraram a eloqüência e força explosiva de imagens produzidas sem

método, quase por acidente, antes mesmo da popularização de imagens técnicas

produzidas por aparelhos celulares.

Na praça Tahrir, a documentação constante e em tempo real de

arbitrariedades por parte dos policiais, mercenários ou defensores do governo era

garantia que afastava a violência. Por esse motivo, grande número de pessoas se

refugiou no local, acampando ali, onde bloggers poderiam transmitir imagens

imediatamente, caso fosse necessário.

As imagens de Rodney King são a primeira como prática midiática da

transparência nas representações. Diante desse cenário, estão em discussão a

respeito de veracidade as coberturas altamente técnicas da Guerra do Golfo na

década de 1990, quando imagens assépticas de mísseis excluiam populações civis

assassinadas. Sobre isso nos fala W.J.T. Mitchell.

[...] A nova transparência da imagem é visível na própria definição da mediação. Por um lado isso significa que a transparência é um efeito produzido pela ausência de método, improvisação e acidente. [...]. Por outro lado, até a suave ilusão da imagem e texto profissionais se tornaram transparentes dessa forma. A cobertura da Guerra do Golfo foi em grande parte sobre a cobertura. Personalidades da mídia estavam em toda a parte, e as instituições de mediação (câmeras, salas de controle, intertitulos, frames) apareciam na tela como nunca antes. Tom Engelhardt estava certo em chamar a cobertura de “televisão total” e estabelecer contraste entre esta cobertura e a guerra do Vietnã: “Vietnã...não foi (como se costuma dizer) nossa primeira guerra televisionada, mas nossa última guerra sem televisão, em sua inabilidade em dar precisos boletins e chamadas”. A nova transparência é um efeito dialético da

62

televisão total: o efeito do real produzido com método, fora do script, não-oficial, e imagens não-autorizadas (imagens ao vivo de corpos mortos) depende disso. [...] (MITCHELL, 1994, p.368-9)27

As imagens da praça Tahrir exemplificam esta discussão e outra, anterior,

sobre a progressiva abstração atingida pelas imagens técnicas de superfície, que

imediatamente afastam o observador do fato. Como imagens técnicas altamente

desenvolvidas que atingiram grande abstração é citada a Guerra do Golfo, em 1991,

transmitida pela CNN ao vivo como um videogame, em imagens que mostravam

luzes de mísseis lançados à noite contra tropas do Iraque. Forças da OTAN,

lideradas pelos EUA, atacaram os iraquianos que invadiram o Kuwait, naquele que

foi um dos maiores massacres do Oriente Médio – 100 mil soldados iraquianos

morreram em combate. O nome do ataque ficou conhecido: Operação Tempestade

no Deserto, em imagens noturnas transmitidas ao vivo pela CNN.

No caso em questão, a perspectiva adotada na iconografia é também a da

visão aérea – esta é a imagem do mapeamento da praça e a das fotos que registram

a multidão (feitas por jornalistas que estavam em edificações próximas,

provavelmente hotéis da região). Em termos jornalísticos, pode-se dizer que esta

cobertura aproximou observadores em tempo real do fato em questão – a rebelião

do povo egípcio contra o regime de Hosni Mubarak.

O que podemos concluir é que as imagens altamente profissionais de

transmissões ao vivo foram ultrapassadas pelos aparelhos28 que simulam

amadorismo e que podem ser manipulados por qualquer ser humano – esses

aparelhos acabam assim assumindo a vanguarda em termos de cobertura

jornalística de eventos. Portabilidade garante proximidade, mesmo em

27 “The new transparency of the image is also visible in the foregrounding of mediation itself. On one side this means that the transparency is an effect produced by a sense of randomness, improvisation, and accident. […] On the other side, even the smooth illusionism of professional image-text suturing has become transparent in its way. The coverage of the Persian Gulf War was largely about the coverage itself. Media ‘personalities’ were everywhere, and the institutions of mediation (cameras, control rooms, telestrators, intertitles, framing, scheduling) were placed on display as never before. Tom Engelhardt was right to call it ‘total television’ and to contrast it with the coverage of Vietnam: ‘Vietnam… was not (as is often said) our first television war, but our last nontelevision one in its inability either to adhere to precise scheduling or achieve closure.’ The new transparency is a dialectical effect of total television: the effect of the real produced by random, unscripted, unofficial, and unauthorized images (live images of dead bodies) depends on it.” 28 “Nem ferramentas, nem máquinas”, como disse Baitello (2004, p.22).

63

mapeamentos grandiosamente técnicos, como em fotos tiradas via satélite que

podem, repentinamente, mostrar a sua rua e mesmo sua casa.

A tecnologia imita a arte. Não basta aos cientistas e jornalistas mostrar fotos

do planeta Marte. Um robô manipulado à distância mostra crateras do planeta,

passeia pelo deserto marciano e faz análises do terreno, que vemos em telas como

se lá estivéssemos. Uma noção de espaço grandiosa e ao alcance das mãos, ao

mesmo tempo. Uma perspectiva inédita, que deve ser estudada29.

Ao mesmo tempo, os eventos de 2011 na praça Tahrir, no Cairo, fazem

pensar: há limites entre a esfera pública e privada diante das imagens de superfície?

A praça Tahrir pode ser descrita como um lugar de vigilância extrema e um

espaço cívico. É o que pensamos ao ler. W.J.T. Mitchell.

[...] Como podemos desenhar a esfera pública e o lugar de representação visual? A mais abrangente reflexão moderna sobre a esfera pública foi apresentada por Jurgen Habermas, que a imagina como um utópico modelo ideológico que sobreviveu da Grécia helenística até os dias de hoje. A esfera pública seria a “esfera em que as pessoas privadas se reúnem como público”, a experiência de liberdade e permanência na qual a opinião pública pode se formar através das operações da razão sem coerção e da livre discussão. [...] O modelo específico, concreto da esfera pública muda, naturalmente, em formações sociais diversas. Para os gregos, situava-se no mercado, na corte, na guerra ou jogos [...], na Alemanha medieval estava dividida entre os comuns e a corte feudal. [...] Tudo o que quero notar nesse ponto são duas partes importantes no modelo ideológico de Habermas – a ênfase na representação visual e na discussão sem coerções. O modelo de esfera pública pode ser descrito como um texto/imagem teatral/arquitetônico, um lugar amplamente aberto ou palco onde tudo pudesse ser revelado, qualquer um pudesse ver e ser visto, onde qualquer um pudesse falar e ser ouvido. Em síntese, a esfera pública, é a contraparte utópica para os desenhos de poder que temos contemplado. [...] O panópticon de Foucault da total vigilângia bate com o fórum ou a praça cívica de Habermas, com espetáculo de acesso público. [...] (MITCHELL, 1994, p.363-4)30

29 Discutimos perspectiva no capítulo 2. 30 “How should we picture the public sphere and the place of visual representation in it? The most comprehensive modern reflection on the public sphere is provided by Jurgen Habermas, who imagines it as a utopian ‘ideological template’ that has survived from Hellenic Greece to the present day. The oublic sphere is ‘the sphere of private people come together as a public’, ‘a realm of freedom

64

A convergência entre proteção e visibilidade total como uma das referências

da cultura visual na atualidade está em discussão quando o assunto é a praça

Tahrir. Sobre o tema nos fala Mitchell: “Talvez vivamos em uma era em que o papel

não seja apenas interpretar imagens, mas mudá-las.” (1994, p.369) Estão em

discussão as formas tradicionais de expressão do capitalismo e novas e críticas

expressões da esfera pública.

A reflexão dessa dissertação diz respeito ao que muda na apreensão

humana dos fatos diante das imagens de superfície. Isso envolve também o

enfrentamento do homem com os aparelhos tecnológicos. Segundo Arlindo

Machado escreve no texto “Repensando Flusser e as imagens técnicas” (2002),

estas (as imagens técnicas) “não podem corresponder a qualquer duplicação

inocente de mundo”.

[...] As imagens técnicas, ou seja, as representações icônicas mediadas por aparelhos, não podem corresponder a qualquer duplicação inocente do mundo, porque entre elas e o mundo se interpõem transdutores abstratos, os conceitos de formalização científica que informam o funcionamento de máquinas semióticas tais como a câmera fotográfica e o computador. [...] (MACHADO, 2002, p.148)

O que são máquinas semióticas? Segundo Machado, são aquelas “[...]

definidas pela sua propriedade básica de estarem programadas para produzir

determinadas imagens e para produzi-las de determinada maneira [...]” (MACHADO,

2002, p.149). Desta forma, as imagens produzidas em equipamento tecnológico já

estão pré-escritas na própria concepção de funcionamento deste. Machado diz que

and permanence’ in which public opinion may be formed through the operations of uncoerced reason and free discussion. […] The specific, concrete model […] of the public sphere changes, of course, with different social formations. For the Greeks, it was located in the marketplace, the court, or in war or games […]; in medieval Germany it was divided between the commons (pública) and the feudal court […]. All I wish to note at this point are two consistent features in Haberma’s ideological template – the emphasis on visual representation and uncoerced discussion. The template of the public sphere might be described as a theatrical/architectural imagetext, an openly visible place or stage in whick everything may be revealed, everyone may be see and be seem, and which everyone may speak and be heard. […] the public sphere, in short, is a kind of utopian counterpart to the pictures of power we have just been contemplating. […] Foucault’s panopticon of total surveillance is matched by Haberma’s forum or civic plaza, with its spectacle of free public access.”

65

o livro de Flusser Filosofia da caixa preta é uma reflexão sobre as possibilidades de

criação e liberdade numa sociedade dominada por aparelhos tecnológicos.

[...] A mais importante característica das imagens técnicas, segundo Flusser, é o fato delas materializarem determinados conceitos a respeito do mundo, justamente os conceitos que nortearam a construção dos aparelhos que lhe dão forma. Assim, a fotografia, muito ao contrário de registrar automaticamente impressões do mundo físico, transcodifica determinadas teorias científicas em imagens, ou para usar as palavras do próprio Flusser, transforma conceitos em cenas. [...] (MACHADO, 2002, p.148)

Onde encontrar a insurgência do homem contra as imagens produzidas por

aparelhos? Machado nos fala a respeito.

[...] Quer isso dizer então que uma intervenção artística realmente fundante se torna impraticável fora de um posicionamento interno à caixa preta? Flusser parece dizer que sim. “Toda crítica da imagem técnica” – diz ele – “deve visar ao branqueamento dessa caixa”. (1985b:21). Couchot, entretanto, aponta alguns casos em que o artista, mesmo trabalhando com programas comerciais e aparelhos que ele não pode modificar, é esperto o suficiente para trazer o computador para o seu domínio [...]. Isso acontece naquelas situações em que o computador e a imagem digital aparecem em contextos híbridos, misturados com outros procedimentos e outros dispositivos mais familiares ao realizador, como nas instalações e também nas chamadas poéticas das passagens (Bellour, 1990: 37-56), em que as imagens migram de um suporte a outro, ou então cohabitam um mesmo espaço de visualização, mesmo sendo de natureza distinta. [...] (MACHADO, 2002, p.150)

66

Há um paralelo que pode ser traçado entre as manifestações artísticas em

diferentes suportes como forma de “quebrar” a programação dos aparelhos a que se

refere Machado e a cobertura jornalística dos fatos ocorridos na praça Tahrir.

Aquele local transformou-se em espaço privilegiado para os manifestantes anti

Mubarak não apenas por causa das fotos, mas por agregar num mesmo local

inúmeras manifestações – infografia, transmissões em vídeo, áudio, redes sociais,

todas as manifestações produzidas em aparelhos tecnológicos convergiam para

aquele ponto circular da cidade do Cairo. O significado das manifestações se

presentifica nas dezenas de produções midiáticas que desvelaram diferentes olhares

sobre a praça.

Podemos argumentar ainda que as imagens de Rodney King surrado nas

ruas de uma grande cidade americana e a Guerra do Golfo são imagens técnicas

produzidas na mesma década de 1990. Há uma observação de Machado sobre o

fascismo que emana das imagens técnicas, segundo Flusser.

[...] O grande problema de toda a argumentação de Flusser é que ele concebe as potencialidades inscritas nos aparelhos e seus programas como sendo finitas: elas são amplas, mas limitadas em número. Isso quer dizer que, mais cedo ou mais tarde, com a ampliação de suas realizações, as possibilidades de uma máquina semiótica acabarão por ser esgotadas. Ora, que há limites de manipulabilidade em toda máquina ou processo técnico é algo de que só podemos fazer uma constatação teórica, pois na prática esses limites estão em contínua expansão. Que aparelhos, suportes ou processos técnicos poderíamos dizer que já tiveram esgotadas as suas possibilidades? [...] (MACHADO, 2002, p.150)

O que transforma uma câmera de vigilância em instrumento de proteção dos

cidadãos é uma conjugação de fatores onde deve ser considerada a criatividade

daquele que utiliza as imagens técnicas em seu proveito. Não se trata mais de uma

ação individual, mas de grupo: é na esfera pública que se encontram os artistas

capazes de manipular as imagens técnicas. Sobre criações coletivas nos fala

Machado.

67

[...] talvez seja necessário relativizar as contribuições de todas as inteligências e de todas as sensibilidades que concorrem para configurar a experiência estética contemporânea. [...] resultados são às vezes derivados de uma conjugação de fatores, que inclui todos os talentos implicados na materialização de uma obra, incluindo o espectador, e na qual o acaso não deixa de jogar também um papel importante. [...] Há cada vez menor pertinência em encarar os produtos e processos estéticos contemporâneos como individualmente motivados, como manifestações de estilo de um gênio singular, do que um trabalho de equipe, socialmente motivado. [...] Aparelhos, processos e suportes possibilitados pelas novas tecnologias repercutem, como bem o sabemos, em nossos sistemas de vida e de pensamento, em nossa capacidade imaginativa e nas nossas formas de percepção de mundo. Cabe à arte fazer desencadear todas essas conseqüências, nos seus aspectos grandes e pequenos, positivos e negativos, tornando explícito aquilo que nas mãos dos funcionários da produção ficaria apenas enrustido, desapercebido ou mascarado. [...] (MACHADO, 2002, p.155)

Em seu artigo, Machado fala de arte, tema que não comparece em nossa

dissertação. Mas aqui tratamos da percepção humana diante das imagens de

superfície. E, segundo Machado, “voltando a Flusser, a arte coloca hoje os homens

diante do desafio de poder viver livremente num mundo programado por aparelhos”

(MACHADO, 2002, p.155).

Não é tampouco objetivo dessa dissertação elogiar ou referendar o processo

revolucionário em curso nos países árabes. Nem tratar como modelo o tipo de

movimento levado a cabo no Egito. Esta é uma constatação: o uso de imagens

técnicas foi fundamental na sublevação concentrada na praça Tahrir, no Cairo. O

que se pode afirmar é que sua utilização em processos midiáticos teve alcance

político mundial.

68

Figura 4 – Mapa/diagrama da praça Tahrir, publicado no The New York Times em 6 de fevereiro de 2011, referente ao dia 1º de fevereiro de 2011. (FARREL et. al., 2011)31

31 No alto à esquerda - Centenas de milhares de pessoas ocupam a praça no primeiro grande protesto contra o governo até aquela data. No alto à direita - Área aproximada ocupada pelos manifestantes. Embaixo à esquerda - Oficiais de segurança dizem que o acesso por avenidas e o transporte público estariam fechados, mas os manifestantes atravessam as pontes a pé. Embaixo ao lado - O Exército mantém a segurança os principais edifícios públicos, como o museu, mas não impede o protesto. Embaixo à direita - Manifestantes ocupam área equivalente a oito campos de futebol. Embaixo à direita - O Exército alinha tanques e restringe o acesso ao local.

Security officials say roads and

public transportation would be

shut down, but protesters cross

bridges by foot.

The army lines up tanks and forms

checkpoints to control access to

the square.

The army guards major

public buildings, like the

museum, but does not

prevent the protest from

taking place.

Protesters occupy an area

of about eight football

fields.

69

Figura 5 – Mapa/diagrama da praça Tahrir, publicado no The New York Times em 6 de fevereiro de 2011, referente ao dia 2 de fevereiro de 2011. (FARREL et. al., 2011)32

32 No alto à esquerda - Conflito entre manifestantes anti-governo e defensores de Hosni Mubarak perto do Museu Egípcio. Embaixo à esquerda - Milhares de defensores de Mubarak armados com garrafas, pedras e facas atravessam os postos militares de restrição de acesso. Embaixo ao lado - Partidários de Mubarak, alguns deles montando camelos e cavalos, tentam forçar caminho entre manifestantes dentro da praça. Embaixo à direita - Tropas do Exército mantêm posições e não tomam partido no conflito. Embaixo à direita - Manifestantes anti-governistas quebram pedaços do pavimento para usar como projéteis. À tarde, os dois lados recuam nessa area. Embaixo à direita - Os combates seguem durante a noite. Manifestantes anti-governistas, que superam em número os defensores de Mubarak, constroem barricadas para afastar os oponentes.

Thousands of Mubarak

supporters armed with

clubs, stones, rocks and

knives pass through army

checkpoints here.

Mubarak supporters,

some riding camels

and horses, try to

push their way into

the square.

Army troops around

the museum hold their

positions and generally

do not engage in the

conflict.

Antigovernment protesters

break off pieces of pavement

to use as projectiles. In the

afternoon, both sides push

back and forth in this area.

The battle lasts into the

evening. Antigovernment

protesters, who

outnumber the Mubarak

supporters, build

barricades to keep out

their opponents.

70

Tradução das legendas:

Figura 6 – Mapa/diagrama da praça Tahrir, publicado no The New York Times em 6 de fevereiro de 2011, referente ao dia 3 de fevereiro de 2011. (FARREL et. al., 2011)33

33 No alto à esquerda - Choques entre manifestantes pró e contra governo continuam enquanto o Exército tenta separar os grupos. Embaixo, à esquerda - Segurança egípcia confisca equipamento de jornalistas que estão trabalhando em edifícios, como neste hotel, com vista aérea dos conflitos. Embaixo ao lado - Manifestantes pró-Mubarak atacam jornalistas estrangeiros nessa área. Disparos são ouvidos à tarde. Embaixo à direita - Tropas do Exército e tanques se posicionam aqui, criando uma zona de proteção entre os dois lados. Embaixo à direita - Manifestantes anti-governo constroem barricadas aqui, mas isso não impede que pedras voem entre os dois lados.

Egyptian security seize

equipment from journalists

working in buildings, like

this hotel, that overlook the

fighting.

Antigovernment protesters put

up barricades here, but it does

not stop rocks from both sides

from flying over.

Army troops and tanks

take up positions here,

creating a buffer zone

between the two sides.

Pro-Mubarak

demonstrators attack

foreign journalists in this

area. Gunshots are heard

in the afternoon.

71

Figura 7 – Mapa/diagrama da praça Tahrir, publicado no The New York Times em 6 de fevereiro de 2011, referente ao dia 4 de fevereiro de 2011. (FARREL et. al., 2011)34

34 No alto à esquerda - Centenas de milhares de pessoas ocupam a praça em um dia relativamente tranqüilo. Embaixo à esquerda - O Exército mantém a zona de proteção nessa área, com tanques e veículos blindados. Embaixo ao lado - Manifestantes anti-governo montam barricadas numa área onde defensores de Mubarak tentaram forçar caminho entre a multidão em dias anteriores. Embaixo à esquerda - Manifestantes usam as entradas do metrô como depósito de lixo e prisão para os defensores de Mubarak capturados. Embaixo à esquerda - Manifestantes improvisaram um hospital de campo e algumas pequenas clínicas neste quarteirão. Um restaurante da rede KFC está em funcionamento como uma clínica. Embaixo à esquerda - Muitos manifestantes anti-governo chegam a pé por esta ponte (sobre o Nilo) Eles formam duas longas filas para passar através pelo ponto de restrição do acesso instalado por militares.

The army is maintaining

a buffer zone in this

area with tanks and

armored vehicles.

Antigovernment protesters

are manning barricades in

an area where Mubarak

supporters tried to push

through on previous days.

Protesters are using

subway entrances ( ) to

dump trash, as well as to

detain Mubarak

supporters that have been

captured.

Protesters have set up a

field hospital and some

smaller clinics on this

block. A KFC restaurant

is also being used as a

clinic.

Many antigovernment

protesters arrive via foot

over this bridge. They

form two long lines to

pass through army

checkpoints.

72

Figura 8 – Mapa/diagrama da praça Tahrir, publicado no The New York Times em 6 de fevereiro de 2011, referente ao dia 5 de fevereiro de 2011. (FARREL et. al., 2011)35

35 No alto à esquerda - Milhares de manifestantes ainda estão na praça, mas os militares formam um cordão de isolamento para cercar a área. Embaixo à esquerda - Um general do Exército pede aos manifestantes para que removam suas barricadas improvisadas e se reúnam perto da praça, mas eles não se movem. Embaixo ao lado - Ponto criado pelos próprios manifestantes para checar quais as pessoas que tinham acesso à praça. Embaixo à direita - Defensores de Mubarak perambulam por esta area, no lado oposto da praça. Embaixo à direita - Manifestantes anti-governo colocam homens nessa área para soar o alarme com barulho de metal, em caso de ataque de defensores de Mubarak. Embaixo à direita - Ponto criado pelos próprios manifestantes para checar as pessoas que atravessavam a ponte para entrar na praça.

An army general urged

protesters here to remove

their makeshift barricade and

move closer to the square,

but they did not budge.

Checkpoint that

protesters have set

up to search people

entering the square.

Antigovernment

protesters have stationed

men around the square to

sound the alarm, by

banging metal, if

Mubarak supporters

attack.

Mubarak supporters

have been roaming in

this area and on

streets on the opposite

side of the square.

Checkpoint that

protesters have set up to

search people entering

the square.

73

Figura 9 – Mapa/diagrama da praça Tahrir, publicado no The New York Times

em 6 de fevereiro de 2011, referente ao dia 6 de fevereiro de 2011. (FARREL et. al., 2011)36

36 No alto à esquerda - Desafiando conclamação do governo pela volta à normalidade, mais de 100 mil pessoas voltam a protestar na praça. Embaixo à esquerda - Tráfego é restabelecido na área que foi cena de confrontos entre manifestantes pró e contra governo. Embaixo ao lado - A área em frente ao museu é ponto de concentração de forças de segurança (militares, policiais, agentes de segurança). Embaixo à direita - As tendas montadas sobre o gramado da praça tornam-se permanentes. Embaixo à direita - Para o lado do Mugamma, um icônico prédio do governo, é o local onde os manifestantes entregam em mãos os supostos defensores de Mubarak ao Exército.

Traffic is flowing again in this

area, which was the scene of

fierce clashes between pro-

and antigovernment

demonstrators just a few

days earlier.

Tents in these

formerly grassy

areas seem to be

becoming more

permanent.

The area in front of the

museum is a gathering point

for security forces (military,

police, intelligence).

On the far side of the

Mugamma, an iconic

government building, is

where protesters hand over

suspected Mubarak

supporters to the army.

74

Figura 10 - Egito incansável. (BBC, 2011)37

37 “Cairo's central Tahrir Square was the focal point for anti-Mubarak protesters during 18 days of demonstrations. As the protest neared its peak, the BBC's Yolande Knell took a tour of the area. Explore the protesters' camp by clicking on the links.” (BBC, 2011) Tradução livre: “A praça Tahir, no centro do Cairo, foi o ponto central de reunião nos manifestantes anti-Mubarak durante 18 dias de demonstrações. Como o protesto perto de seu ponto alto, a repórter da BBC Yolande Knell vasculhou a área. Explore o acampamento dos manifestantes clicando nos links.”

75

CONCLUSÃO

Discutimos nessa dissertação como a multiplicação das superfícies usadas

para transmissão das imagens técnicas influi no pensamento humano. As ideias

expressas em superfícies são traduzidas em um contexto nulo dimensional para o

qual não há lógica construída, e o uso de superfícies em suportes tecnológicos

resultam em progressiva abstração. Essa é a dedução que se realizou a partir dos

escritos de Flusser. Seus textos relacionados à tecnologia e aos media resultaram

em uma teoria dos novos meios de comunicação. Tradicionalmente, representações

nos media são feitas em linha e superfície, segundo o autor. Esta é uma análise que

Flusser faz relativamente à estrutura dos media.

Altera-se a apreensão humana das mensagens, transmitidas

tradicionalmente por textos, e cada vez mais por imagens. A multiplicação das

imagens técnicas teria o poder de alterar a percepção do espaço e tempo, o

determinismo e a soberania do raciocínio.

As conclusões a que chegamos derivam da constatação de que este

fenômeno levaria o ser humano a se defrontar com experiências em que a

visualidade seria determinante nos processos de compor explicações do mundo. A

questão colocada por Flusser é como traduzir o pensamento conceitual em

pensamento imagético.

Nesse sentido, procuramos definir conceitos-chave com objetivo de avaliar

como a experiência visual humana se relaciona com os fenômenos culturais.

Escala, perspectiva, resolução, assinatura, conceitos-chave da análise

propostos por Boaventura de Souza Santos, foram usados até hoje para compor

limites de representação da objetividade na modernidade e ciência. Nesta

dissertação definem o que muda na percepção humana diante das imagens de

superfície. Segundo o autor, os conceitos enumerados acima seriam a raiz dos

procedimentos e estratégias – que ele chama de “meta-tecnologias” - que autorizam

os cientistas a produzir conhecimento até hoje aceitável e convincente. Esses

parâmetros da representação referem-se todos a uma percepção estética em

76

mutação – os conceitos já não são suficientes para explicar o mundo sob os

parâmetros das imagens técnicas em superfícies.

Esta é a chave para encontrar, segundo Santos, paradigmas emergentes

que dêem conta de explicar a nova realidade que se apresenta. Uma das

representações que a modernidade deixou em aberto, segundo Santos, foi a

racionalidade estético-expressiva, que atua no campo da emancipação, e teria

pouco a ver com representações acabadas da racionalidade moderna.

Falemos então dos conceitos de perspectiva, resolução, escala e assinatura,

conceitos que têm orientado o pensamento do homem moderno. São todos

fenômenos que na origem estão relacionados à percepção visual. A estrutura

imaginativa da perspectiva subjaz à arte moderna e à ciência, assim como os outros

conceitos em questão. Uma das suas premissas é a separação entre sujeito e

objeto. A perspectiva também está em discussão quando são estabelecidos os

graus de relevância científica.

Já o conceito de resolução interfere no processo de detecção e

reconhecimento científicos, no estabelecimento da metodologia científica. A escala

refere-se à dimensão e localização espacial do homem, dos objetos, das grandezas

e distâncias. A assinatura destroi a noção de transparência, torna clara a noção de

autoria e define o lugar do homem diante da criação ou natureza.

Trabalhar com esses conceitos pode nos ajudar a definir como o homem

projeta sentido sobre superfícies, ou seja, como “criamos” em aparelhos

tecnológicos e como “lemos” as imagens. É uma ferramenta valiosa para

reconstrução da representação na cultura eletrônica, o que, segundo Druckrey, “é

uma chave para rastrear a complexidade e sutileza das configurações da

comunicação emergentes” (DRUCKREY, 2005, p.388).

Queremos tratar aqui da intensificação do acento visual nos projetos

humanos – sua escalada em direção a uma total abstração, que desintegra as

noções tradicionais de perspectiva, ponto de vista fixo, resolução e escala.

Nesse sentido, para discutir novas abordagens do fenômeno da

comunicação, trouxemos à tona o conceito de visualidade, proposto por Lucrecia

D’Alessio Ferrara. Segundo a autora, a visualidade se afasta das noções

77

tradicionalmente discutidas em comunicação, que consideram a imagem um artefato

da publicidade e do uso indiscriminado da informação para impor determinadas

visões de mundo ao público de massa planetário.

Segundo Ferrara, a visualidade, enquanto meio comunicativo, “iria além da

imagem” (FERRARA, 2009, p.11). Seria antes uma matriz cognitiva. Não seria

apenas visual, mas convocaria todos os sentidos que atuariam em trocas

comunicativas ainda não codificadas. A autora considera que Flusser atuou na

construção de uma teoria da visualidade onde a imagem técnica seria capaz de

engendrar uma espacialidade cognitiva, que registra uma nova maneira de ser e

estar no mundo.

Da imagem tradicional, passamos à imagem técnica de superfície. Em

superfícies, conforme tratamos nessa dissertação, a imagem técnica vai além da

adequação em relação ao mundo e passa a atingir escalas progressivas de

abstração – as imagens bidimensionais, desprovidas de volume, são substituídas

por aquelas que, graças a cifras ocultas e misteriosas, alcançam novas dimensões

aos olhos humanos e surgem totalmente desconectadas da realidade. Segundo

Ferrara, como decorrência desse processo, temos uma mudança no modo de

conhecer, uma transformação epistemológica que coloca a comunicação em um

novo caminho.

A esse respeito, concordamos com Ferrara, ao considerar que o cenário

dominado pelos meios digitais configura um lugar distinto para a discussão da

comunicação. Afinal, pode-se dizer que a revolução técnica que vivemos envolve

uma nova maneira de considerar e obter conhecimento. Citamos, a esse respeito, o

teórico Manovich, que nos fala a respeito do modelo de câmera e informações

visuais plasmadas a partir de operações obtidas com banco de dados em

computadores.

Também totalmente ligadas ao conceito de visualidade são as críticas

estabelecidas pelo arquiteto Paul Virilio, para quem as novas dimensões de tempo-

espaço estabelecidas pelos media em tempo real constituem uma transformação

paradigmática na ótica, parte da física que estuda as radiações luminosas e os

fenômenos da visão.

78

Segundo Virilio, a ótica geométrica dos raios luminosos teria sido substituída

pela ótica ondulatória da radiação eletromagnética das partículas que veiculam a

visão e a audição. A perspectiva geométrica da Renascença foi substituída pela

perspectiva eletrônica do tempo real na emissão e recepção dos sinais de áudio e

vídeo.

Comprometendo ou não a noção de espaço e horizonte, a imagem

produzida tecnicamente e impressa em superfícies é uma aquisição do homem para

uso exclusivamente humano. Afinal, a capacidade de perceber significado ou

conceito em imagens é um atributo do cérebro até hoje não reproduzido em

máquinas. Chama-se “consciência”, e não depende do olho – cegos possuem esse

atributo. Segundo o teórico de biologia cognitiva Christof Kock e o médico Giulio

Tononi enxergar o sentido em uma imagem é uma habilidade da consciência

humana que até hoje não pode ser reproduzida em máquinas.

Mas somos agentes diante da observação destas imagens ou o fato de

fazerem sentido teria em si o poder de moldar nossas consciências? Até que ponto

as imagens técnicas em superfícies teriam poder de nos transformar em meros

observadores da história? Essa questão é colocada por Flusser. Outro pensador,

W.J.T. Mitchell, pergunta quais as diferenças entre a leitura de um texto e a

observação de uma imagem.

O que a imagem representa enquanto discurso não está em discussão nesta

dissertação. Isso remete aos significados da imagem técnica, e estamos aqui

discutindo a imagem técnica enquanto código de comunicação, estrutura, sintaxe.

De qualquer forma, interessa-nos uma afirmação de Mitchell, segundo a qual “somos

todos selvagens diante de imagens. Literalmente, não sabemos de onde vêm, para

onde vão ou se morrem” (MITCHELL, 1994, p.21).

O que nossa consciência apreende diante de imagens técnicas que

apresentam fatos nos media? Quais os efeitos da dimensão técnica das imagens

sobre observadores do fato? Comentando Flusser, o pensador Arlindo Machado

considera a máquina fotográfica e o computador máquinas semióticas, ou seja,

programadas para produzir imagens de determinada maneira.

79

A esse respeito, discutimos a transformação da praça Tahrir, no Cairo, em

espaço privilegiado na transmissão das imagens dos protestos que ali ocorreram

durante 18 dias no início de 2011 e que resultaram na renúncia do ditador Hosni

Mubarak, do Egito. Então, aqueles que manipulam máquinas semióticas tiveram o

poder de influir no conteúdo transmitido pelas imagens?

Bem, nossa hipótese coincide com a de Ferrara, que acredita que nos meios

digitais a possibilidade de comunicação é uma das variantes prováveis, não

necessariamente a única: nesta mediação inédita, a imaginação é peça central. Para

o processo comunicativo acontecer, a imaginação do ser humano deve ser acionada

e produzir reação (movimento). Usamos, no caso, o exemplo da Praça Tahrir, onde

a vinculação em mass media de imagens técnicas tornou-se agente no processo de

delimitação do território da praça. O processo que começou nos media deu aos

insurgentes confiança: sob a visão de câmeras, postavam-se diante do planeta

inteiro numa área em que os desmandos do ditador não poderiam ser exercidos,

devido a tantas testemunhas. Dessa forma, sob ação dos media, o que era uma

praça transformou-se em um território livre, e por que não dizer, um “país”. Essa

cobertura noticiosa não interessava a Mubarak e correntes contrárias a mobilização

dos países árabes.

A multiplicação das imagens aéreas obtidas via satélite atuou como

componente na elaboração de infográficos que definiram a praça Tahrir como um

mapa de território. A idéia diagramática foi imediatamente absorvida pelo público –

tanto os observadores das notícias como os manifestantes.

Contribuíram nesse processo várias versões da imagem técnica, veiculadas

há algum tempo, muito antes da praça se transformar em fenômeno de

comunicação. Em primeiro lugar, houve o bombardeio público das imagens aéreas

obtidas via satélite – que nos acostumamos primeiro a ver em filmes de Hollywood e

hoje acessamos em nossas mesas de trabalho. Estas imagens foram inicialmente

disponibilizadas pela Nasa e o governo norte-americano. Representaram, antes de

tudo, o poder tecnológico e militar que se estabelecia sobre o planeta. Hoje, as

imagens são usadas habitualmente de forma comercial pelo programa de busca

Google, uma empresa da Internet que tem ramificações em todos os setores do

conhecimento humano. Nestas imagens, se tivermos os endereços, podemos

80

visualizar diferentes áreas do globo, como por exemplo, nossas residências, em

diferentes ângulos, a muralha da China ou as pirâmides do Egito.

Discutimos o conceito de mapa e como originalmente pode resultar em

dessocialização. Ou, ao invés disso, dar lugar a conceitos novos que ultrapassem as

escalas de grandeza tradicionais.

Nessa dissertação, assumimos a ideia de que estamos em meio a uma

transição paradigmática, onde os ângulos de visão são antes de tudo formas

simbólicas de representação do espaço e do lugar do homem no mundo. A partir

dessa abordagem teórica, em nossa opinião, a praça Tahrir transformou-se num

mapa, um diagrama que assumiu no imaginário humano planetário a importância

que o espaço já tinha para o povo egípcio. A palavra tahrir significa “libertação” e

inúmeros movimentos populares ali ocorreram no passado do país.

Discutimos ainda como imagens técnicas podem exercer efeito manipulador

sobre multidões - na década de 90, ocorreram a Guerra do Golfo, primeira

transmissão de um bombardeio via TV como espetáculo, e a surra de policiais no

garoto negro Rodney King, imagem feita por amador que redundou em protestos de

populares contra a violência a negros nos EUA. Ao mesmo tempo, as imagens

obtidas com a portabilidade dos aparelhos tecnológicos garantem visibilidade e

vigilância total – uma idéia que traz à discussão o conceito de esfera pública diante

das imagens técnicas de superfície.

Nossa hipótese é que o processo comunicativo só ocorreu quando houve

participação dos cidadãos – ou seja, quando a imaginação transformou os cidadãos

em contrapartes ativas em reação à agressão do garoto negro Rodney King.

Ora, a reflexão dessa dissertação diz respeito ao que muda na apreensão

humana dos fatos diante das imagens de superfície. Além da imaginação de quem

apreende as imagens, há o processo de enfrentamento do homem com os aparelhos

tecnológicos. Segundo Arlindo Machado escreve no texto “Repensando Flusser e as

imagens técnicas”, estas (as imagens técnicas) “não podem corresponder a

qualquer duplicação inocente de mundo”. Segundo Machado, o livro de Flusser

Filosofia da caixa preta é uma reflexão sobre as possibilidades de criação e

liberdade numa sociedade dominada por aparelhos tecnológicos.

81

Machado acredita, como Flusser, que é preciso “quebrar” a programação

dos aparelhos tecnológicos e que isso se dá por trabalhos que articulem de forma

criativa várias linguagens em traduções, como pontes entre um meio e outro de

transmissão de mensagem. O autor faz uma crítica a Flusser, que acredita que as

potencialidades criativas do homem diante dos aparelhos é finita, já que estes

acabam por definir a linguagem pré-programada, em algum momento. Para tanto, é

preciso, segundo Machado, acreditar que a potencialidade dos aparelhos

tecnológicos é finita, o que não tem ocorrido. A cada dia, somos surpreendidos com

novas possibilidades técnicas, que expandem por sua vez a capacidade de

imaginação do ser humano. O que transforma uma câmera de vigilância em

instrumento de proteção dos cidadãos é uma conjugação de fatores onde deve ser

considerada a criatividade daquele que utiliza as imagens técnicas em seu proveito.

Não se trata mais de uma ação individual, mas de grupo: é na esfera pública que se

encontram os artistas capazes de manipular as imagens técnicas. A esse respeito,

vale dizer que somos uma enorme comunidade, conectada em tempo real. O que vai

surgir desta conjugação inédita ainda está por vir.

Uma nova definição da ciência da comunicação é possível como parte

integrante de uma transformação global pela qual atravessa o planeta nos processos

políticos, econômicos e tecnológicos da produção de sobrevivência. Para Manovich,

diante da linguagem digital, até o cinema passa a ser um código de comunicação,

capaz de engendrar seu próprio modelo de mundo e ideologia.

Para Flusser, a tecnologia nos transportou para um lugar onde imaginar

transformou-se na capacidade humana de engendrar o abstrato. Isso consiste na

comunicação em meios digitais – um novo código se estabelece entre os seres

humanos. Essa atribuição humana seria intransferível – a capacidade de

transcender, de enxergar sentido em cenas. .

Ferrara fala sobre as conseqüências das transformações tecnológicas e

sociais sobre a ciência e a cultura. A visualidade aponta para a fusão entre

tecnologia e estética, entre o discurso científico e as vivências do homem colocado

frente a frente a imagens técnicas tão abstratas que desafiam a razão tradicional.

82

A respeito, cabe pensar de novo no tema que deu início a esta dissertação –

linha e superfície. O autor fala de um código formado por linhas, pontos que se

sucedem uns aos outros em processo e consistem em conceitos. Esse código de

comunicação desmantela-se em vista de outro que começa a surgir em informação.

Existem as palavras, para as quais existem códigos construídos, e as cenas, que

formam amontoados de partículas, de quanta, de bits, de pontos zero dimensionais.

Falamos até agora sobre esse processo que envolve linhas e superfícies em

uma nova forma de representar o mundo – sobre possibilidades de enxergar novas

estruturas, engendrar novos códigos. Um lugar onde o universo pontual começa a se

tornar concreto à visualização e passa a ser concebido pelo homem, que atinge um

nível de consciência novo.

Na ciência da comunicação, a informação visual expressa em superfícies

bidimensionais ganha cada vez mais expressão graças aos media digitais. A

informação expressa dessa forma modifica nossa relação com os fatos. Citamos

como nos media a praça Tahrir transformou-se em mapa, como os lugares

geográficos se alteram diante das novas representações tecnológicas em tempo

real. Também se altera diante desse fenômeno a noção tradicional de espaço

público e o trabalho do profissional que opera a informação diante de elementos

digitais que não só representam de forma inédita, mas podem compor e influenciar o

mundo concreto.

83

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAITELLO JR., Norval. O Leitor Número 69 ou o Marco Zero de um Futuro Flusser.

In: FLUSSER, Vilém. Língua e realidade. 2ª ed. São Paulo: Annablume, 2004.

BBC. Egypt unrest. News Middle East. 11/02/2011. Disponível em:

<http://www.bbc.co.uk/news/world-12434787>. Acesso em: 18/01/2012.

BERNARDO, Gustavo; FINGER, Anke; GULDIN, Rainer. Vilém Flusser: uma

introdução. São Paulo: Annablume, 2008.

BRAUDEL, Fernand. O mediterrâneo. Vol.1, 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes,

1983.

DRUCKREY, Timothy. Shifting Boundaries. In: LEÃO, Lucia (Org.). O chip e o

caleidoscópio. São Paulo: Senac, 2005.

FARIAS, Priscila. Hipo-ícones: imagens, diagramas e metáforas na semiótica

peirceana e no design da informação. In: LEÃO, Lucia (Org.). Cibercultura 2.0. São

Paulo: U. N. Nojosa, 2003.

FARRELL, Stephen; NELSON, Scott; PEÇANHA, Sergio; ROBERTS, Graham;

STACK, Liam; MCLEAN, Alan; TSE, Archie. The Battle for Tahrir Square. The New

York Times. 06/06/2011. Disponível em: <http://www.nytimes.com/interactive/2011/

02/03/world/middleeast/20110203-tahrir-square-protest-diagram.html#panel/0>.

Acesso em: 18/01/2012.

FERRARA, Lucrecia D’Alessio. A Visualidade como Paradigma da Comunicação

enquanto Ciência Moderna e Pós-Moderna. 9º Compôs, 2009.

FLUSSER, Vilém. Ficções filosóficas. São Paulo: Editora da Universidade de São

Paulo, 1998.

84

________. Língua e realidade. 2ª ed. São Paulo: Annablume, 2004.

________. O Mundo codificado. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

________. O Universo das imagens técnicas - Elogio da superficialidade. São

Paulo: Annablume, 2008.

________. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Annablume, 2011.

GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: 34, 1992.

HARLEY, Brian. Mapas, saber e poder. Confins - Revista Franco-Brasileira de

Geografia. N.º 5, 2009. Disponível em: <http://confins.revues.org/5724?lang=fr>.

Acesso em: 18/01/2012.

HOUAISS, Antônio (Ed.). Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio

de Janeiro: Objetiva, 2001.

KOCH, Christof; TONONI, Giulio. Can machines be conscious? IEEE Sprectrum.

Vol. 45. New York, junho de 2008. p.54-9.

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva,

2003.

________. O caminho desde a estrutura. São Paulo: Unesp, 2006.

LEÃO, Lucia (Org.). Interlab - Labirintos do pensamento contemporâneo. São Paulo:

Iluminuras, 2002a.

________. A estética do labirinto. São Paulo: Editora da Universidade Anhembi

Morumbi, 2002b.

________ (Org.). Cibercultura 2.0. São Paulo: U. N. Nojosa, 2003.

________ (Org.). O chip e o caleidoscópio. São Paulo: Senac, 2005.

85

________. Reflexões sobre imagem e imaginário nos processos de criação em

mídias digitais. XX Encontro da Compós, na Universidade Federal do Rio Grande

do Sul. Porto Alegre, de 14 a 17 de junho de 2011. Disponível em: <http://www.

compos.org.br/pagina.php?menu=92&mmenu=6&gm=int&gti=arqul&ordem=3&grupo

1=9D>. Acesso em: 18/01/2012.

LEÃO, Maria Lilia. Introdução. In: FLUSSER, Vilém. Ficções filosóficas. São Paulo:

Editora da Universidade de São Paulo, 1998.

MACHADO, Arlindo. Repensando Flusser e as imagens técnicas. In: LEÃO, Lucia

(Org.). Interlab - Labirintos do pensamento contemporâneo. São Paulo: Iluminuras,

2002.

MACMILLAN EDUCATION (Ed.). Macmillan English Dictionary for advanced

learners. 2ª ed. 2007.

MANOVICH, Lev. The Language of new media. Cambridge, Mass: The MIT Press,

2001.

________. 10 Key Texts on New Media Art, 1970-2000. In: LEÃO, Lucia (Org.). O

chip e o caleidoscópio. São Paulo: Senac, 2005.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem.

São Paulo: Cultrix, 2004 (primeira edição publicada em 1964).

MITCHELL, W. J. T. The language of images. London: The University of Chicago

Press, 1980.

________. Picture Theory: Essays on verbal and visual representation. London:

The University of Chicago Press, 1994.

PANOFSKY, Erwin. Renascimiento y renascimientos em el arte occidental.

Madrid: Alianza Editorial, 2004 (primeira edição publicada em 1975).

POLLOCK, Jackson. Gênios da pintura. São Paulo: Abril, 1978.

86

SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente – contra o

desperdício da experiência. Vol. 1, 5ª ed. São Paulo: Cortez, 2005a.

________. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na

transição paradigmática. 4 vols. São Paulo: Cortez, 2005b.

TRIVINHO, Eugênio. A democracia cibercultural: lógica da vida humana na

civilização mediática avançada. São Paulo: Paulus, 2007.

VIRILIO, Paul. O espaço crítico e as perspectivas do tempo real. 4ª reimp. São

Paulo: 34, 2008.