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Entrevista RENATO SANTANA DA REDAÇÃO O nome faz jus. O Lenda. Sempre teve apetite, espírito policial. É o típico justiceiro. Age sozinho, no máximo com mais um. Já apagou muitos. Com farda e sem farda. Nunca se pode dizer quantos. Fosse por prazer, cada um seria lembrado. Mas não há prazer. Tam- pouco culpa. Trata-se de uma cruzada: “A pessoa que pega no machado para arrancar a erva daninha da raiz, um fruto venenoso, não vai ter má consciência de ter matado uma erva daninha”. Não concorda muito em chamar de grupos de extermí- nio a ação clandestina de policiais, cuja existência confirma. Encapuzados e sem farda, são os matado- res nas madrugadas das periferias, inclusive da região. Para o Lenda “são pessoas que diante da ineficácia do sistema acabam agindo por meios pró- prios”. Mesmo fora da Polícia Militar, continua sen- do um camisa dez, um bilão, no jargão do submundo policial. Mata com a permissão de Deus. Depois que se aposentou, ficava injuriado ao ver ex-companhei- ros dizendo, na televisão, que escondiam a farda e saíam de casa com ela embaixo do tapete do carro. O sangue subia. Não queria continuar jogado no sofá. O dedo coçou. Para ele, é bem nítido que hoje em dia os policiais fazem o papel de espantalho na horta. Faltam os bilões, os camisas 10. Ele era um. Ele é um. Seu fogo, diz, é contra o satanás, contra a “ferramenta do diabo para causar mal ao semelhante”. É devoto. Instrumento do Deus que acredita. Na polícia se aprende tudo isso quando se quer ser um camisa 10. Virou professor para os policiais mais novos e o salvador dos descuidados. Certa vez, um colega PM executou um rapaz. O comando pediu a arma para balística. Lenda entrou em ação. Com vinagre, limpou o corpo da arma e o cano. Depois, pegou uma bala, untou-a na graxa e passou-a na areia, à milanesa. Um disparo já é o suficiente para provocar ranhuras dentro do cano e despistar o exame balístico. É assim que se faz nas ações clandestinas da polícia. Há os que preferem armas frias, carros roubados e capuz para fazer trabalhos. Lenda usa o próprio carro, arma registra- da e prefere pintar o rosto de graxa, usar disfarces e até mesmo peruca, óculos. Se for pego no caminho, está completamente dentro da legalidade. - Aí ladrão! Pam! Pam! Pam! Vai se esgueirando pelas sombras da lei, tal qual cada PM que decide ser camisa dez. Sorrateiramente, volta para o carro. Dispara: “O policial veste o papel do bandido para repreender o crime”. Leia a seguir os principais trechos da entrevista: O sr. participou de incursões na periferia para matar em maio de 2006? Estava trabalhando na PM em uma cidade da região. Houve incursões, sim. Policiais linhas de frente foram enérgicos na periferia. Todas as mor- tes foram ilegais e colocamos tudo na conta do crime organizado. As ações eram em represália aos ataques do PCC. Também existem pessoas que são simpatizantes da polícia e, inconformadas com a falta de ação, a inércia, vão lá e fazem. Seguranças privados, por exemplo, são vítimas do crime. Com a ajuda de policiais, agem. O caso mais recente é o do Dino Marreta. Foi sequestrado do bairro dele e executado. Era liderança do PCC na Vila Sônia. Era o chefe operacional do crime organizado. Não dá para dizer que eram só policiais, mas vamos dizer que era o lado de direita combatendo o de extrema esquerda. O sr. confirma o uso de carros roubados e armas frias? Tem policial que faz isso mesmo. Eu, particularmen- te, nunca participei nem recomendo porque está muito próximo da conduta do bandido. Corre o risco de, no caminho, você ser surpreendido (pela própria polícia) e não ter como escapar. Então, teria que usar dos meios mais normais e mais lícitos possíveis. Sobres as armas, há situações e situações. Fica muito mais viável usar a própria arma do Estado porque está na legalidade. Depois, é só descaracterizá-la. Como é que o sr. faz para descaracterizar uma arma? Na alma do cano (parte interna do cano) se você pegar uma bala, passar graxa, ou qualquer material adesivo, areia, e der um tiro, no exame técnico vai ser constatada outra arma. Vai mudar a sua característi- ca interior. Vai criar ranhuras que anteriormente a arma não tinha. Um projétil coletado antes vai ter características diferentes desse coletado depois, para confronto, ou seja, balística. E com os veículos? Se numa determinada área o policial está utilizando um veículo autorizado, não está no ato ilegal. Para ninguém pegar a placa, a gente não vai com o carro até o local da ação. Estaciona nas proximidades, fica um lá esperando. Quem vai fazer o trabalho vai a pé, descaracterizado e com a pele camuflada. Encapuzar é burrice porque se você for visto com capuz é ruim (caracteriza grupo de extermínio). Enquanto uma barba postiça, uma peruca é melhor. Essas ações não são mais tão explícitas como eram antes, certo? O que ocorre: qualquer domicílio, inclusive na perife- ria, tem uma câmera registrando tudo ali. Hoje um garoto de favela tem um celular com capacidade para gravar. Então, o policial ou o justiceiro que queira agir tem que contar com tudo isso. Tem que ser extremamente ninja. Tem que se camuflar, não ser visto, pois há o risco de perder a vida. As ações dessa natureza são uma reação ao que os bandidos fazem. Alguns policiais levantam a bandeira da represália e fazem o que o Estado não faz. Foi o que aconteceu em 2006... De lá para cá. É uma guerra fria, silenciosa. Ninguém declara raiva de ninguém, mas, na hora que um vira as costas, vem a faca. Hoje o crime organizado e os policiais estão nesse pé. Os grupos de ação fazem parte dessa guerra. O Estado não assume que existe esse confronto, mas policiais militares vão para o combate. Está acontecendo há muito tempo e tem se intensificado. O político quando entra na favela pede autorização para o traficante. Reconhece que existe uma autoridade local. Oficialmente, político ne- nhum admite isso, mas, na prática, é diferente. Estão matando os policiais no bico, na folga e na porta de casa. Para a administração pública fica sendo um caso isolado, como se o policial tivesse contraído para si um problema com o bandido. (Segundo levantamento feito pela Secretaria de Segu- rança do Estado, em 2009, 66 policiais morreram no período de folga e 16 em serviço. Em 2008, foram 55 policiais mortos sem a farda e 19 trabalhando). Mas nos ataques de 2006 muitos inocentes, gente sem sequer ter passagem, entrou na conta. Discordo totalmente. O suposto inocente, ou citado como inocente pela mídia, que está às duas horas, três horas da madrugada num boteco que fica numa biqueira (ponto de tráfico) da periferia não é inocen- te. Ele está ali e tem uma função no crime. Às vezes, não é pegar uma arma para assaltar. Ele exerce uma atividade no crime, ou está de olheiro. Leva e traz a droga para alguém. O inocente não existe. Como funciona isso no comando? O comando é fechado em relação aos níveis operacio- nais. Cabos, soldados e sargentos, que são os profissio- nais linha de frente, de rua, também são. Os grupos são compostos por um número restrito de pessoas, que confiam um no outro e estão ali para agir. E as ocorrências de perseguição seguida de morte? Vamos ilustrar: ocorrência de confronto real. Quan- do se apresenta a arma do bandido na delegacia e se constata que tem seis cápsulas deflagradas no tam- bor do revólver, sabe-se que é um álibi para o Ministé- rio Público, uma vez que o bandido não tinha mais poder de resistência. Por conta disso, o policial tira uma das cápsulas estouradas e coloca uma intacta para provar que o bandido tinha como resistir. Isso chama-se arredondar a ocorrência. O rigor da justiça e da sociedade exige essa habilidade. O Caso da Cavalaria (crime ocorrido em fevereiro de 1999 em São Vicente, quando três jovens foram assassinados por policiais em serviço), por exemplo. Acredito eu que eram policiais inocentes, sem inten- ção e foram vítimas de um ato de desespero. Os jovens foram para cima dos policiais, um dos meni- nos bateu com a cabeça na guia, ficou desacordado e os policiais, num ato de desespero, chegaram aos extremos. Havia várias maneiras de maquiar a ocor- rência e tornar tudo legal e não fazer o que fizeram. Hoje em dia existem menos policiais capacitados para tornar legal um ato ilegal. Na ação dos grupos de execução em 2006... Queria tomar uma outra linha aqui. Muito se fala dos bandidos mortos e pouco dos policiais mortos. A mídia vem mostrando muito a ação violenta da polícia que, na verdade, é como um mulher que mata o marido quando está sendo agredida. Ela era agredida há muito mais tempo e ninguém se impor- tou. Isso faz com que ela mate o marido quando está dormindo. E quando os policiais saem hoje estudan- do as possibilidades de executar um bandido na área é esse comportamento da mulher. A polícia está dessa forma. Acuada, amarrada. Um jovem para entrar na polícia pede autorização para o traficante. Esse policial se torna um refém e compro- metido com o crime. O policial também se envolve no crime? No ano passado morreram vários policiais na região. Vou contar um caso: em Praia Grande, houve uma denúncia de que em um barraco havia grande número de armas do crime organizado. Policiais fizeram o cerco. O trabalho certo seria abordar, prender os elementos e apreender as armas. Porém, ao contrário, os policiais negociaram a liberdade dos criminosos e a liberação das armas. Fizeram um boletim de ocorrência com armas mais fajutas e pegaram uns bandidos envolvidos só para fazer cena. Já na hora de fechar o negócio, não foram fiéis ao combinado. Haviam acertado não prender nin- guém e prenderam três. Ficaram com a grana dos bandidos. A primeira retaliação foi uma rajada de tiros de fuzil contra um policial quando saía de casa para o trabalho. O santo estava de plantão e ele não morreu. Depois disso, começaram os homicídios. O policial que age pelo crime acaba perdendo respeito e a coisa vira pessoal. Quanto aos direitos humanos, o que você pensa? Hoje o Estado estuda um monte de possibilidades sobre o que fazer para melhorar o ser humano. Você consertando o homem, conserta o mundo. A causa disso tudo é a falta de Deus na vida do homem. Temer a Deus e amar o seu próximo. Hoje fala-se muito em direitos humanos. Uma teoria que me trouxe bastante conforto na época, que me dá liberdade para exterminar um bandido como se extermina um verme, e que uma característica peculiar do ser humano é o amor ao próximo. Quan- do é o caso de um cidadão pôr uma arma na cintura e sair para levantar um dinheiro, disposto a tirar a vida do seu semelhante, ele já abriu mão da condição humana. Saiu como o próprio satanás, ferramenta do diabo para causar mal ao seu semelhante. Um sujeito bandido age como bicho e tem de ser tratado como tal. É jaula ou buraco. Juca fala em tom de desabafo. Policial Militar não pode falar, fazer greve ou criticar a corporação. Durante os dez anos em que esteve na PM, atuando na Capital e Interior (incluindo a Baixada Santis- ta), participou dos grupos de extermínio. Na sua época, final dos anos 80 e decorrer dos 90, prevale- cia esse tipo de ação. Era a época dos esquadrões da morte. Juca ainda respira o meio policial. E sabe quem age no capuz. Deixou a corporação porque “trabalhava” muito. Na gíria, policial que trabalha muito é o que mata muito, prende acima da média e tem apetite para ações encapuzadas. É camisa 10, um bilão. Policial assim é uma via de duas mãos para o comando. Na guerra urbana, pacificam áreas mes- mo sem conquistá-las e sempre com ações encapuza- das ou em ocorrências de resistência seguida de morte. Por outro lado, trazem dor de cabeça, cobran- ças hierárquicas e se a bomba estoura, por mais que assumam seus atos, o comando fica marcado. No submundo ninguém sabe de nada, não vê nada. Na verdade, é preciso fingir. Juca diz que todo batalhão tem seu grupo de camisas 10. O comando sabe. Como também há os “dedos cansados”. No modo de dizer dos que gostam de “trabalhar”, poli- ciais que ficam longe da turma apetitosa. E também da ação direta. Juca é o tipo de policial que segura um batalhão. Com amigos na ativa, afirma que as ações da polícia nos dias seguintes aos primeiros atentados do PCC, fardada ou não, foram “por conta da revolta com o que estava acontecendo e por ver o comando escon- der”. Leia a seguir os principais trechos da entrevista. Os grupos de extermínio são integrados por policiais? Sim, vou explicar o que acontece. Você presta um serviço fardado, legal. E o grupo é formado porque algumas coisas que você tem vontade de fazer é contido pelo regulamento. No caso, um regulamento interno. Para mim, esse é o motivo maior de o policial ficar de mãos atadas. Se conseguimos reunir três, quatro policiais, fala- mos na nossa linguagem, com pouco mais de apetite, atitude. O pensamento bate, é igual e acaba se for- mando o grupo que atua no caso... para a gente não é ilegal, mas atuamos mais no horário de folga. É um grupo fechado que atua descaracterizado, com a chamada touca. O pessoal aconselha: age na touca. A gente faz aquilo que tem vontade de fazer em serviço. Só que o regulamento nos impede de fazer. Como é a organização dos ataques? Geralmente, tem a área que o policial trabalha. Então, ali existem marginais que são mais destaca- dos: assaltantes, homicidas, traficantes. No nosso caso, agimos assim: Há um bandido que está matan- do policial, dando trabalho na região. Então, o grupo se reúne e traça um plano. Quem é o cara? Fulano de tal é o chefe, tá mandando assassinar policial, fazer roubo. Esse é a bola da vez. O grupo define um dia, levanta os modos do bandido: por onde ele sai, onde ele fica, onde mora, hora que sai. Marca o dia e sai à caça do cara. E se o marginal estiver com pessoas inocentes na hora do ataque, num bar, por exemplo? Existe uma coisa no meio policial chamado tirocínio. Essa aí é uma experiência que se adquire com tempo de serviço. Um policial olha para você e faz uma análise rápida. Às vezes, acontece de errar. Olhar e achar que o cara é bandido e não é, pelo modo de o cara se vestir e de agir. Você faz aquela análise rápida e vê. Se achar que o cara é bandido também, vai junto. O comando da polícia sabe deste tipo de ação? Eu trabalhei no Tático Móvel, hoje Força Tática. O meu comandante sabia. Ele dizia: “Quer fazer faz, mas faz direito. Se sujar eu não sei de nada”. A partir da hora que você sai para matar bandido, para o comando é melhor. A criminalidade na região dele vai abaixar. O comando quer é isso. Quem ganha os elogios é ele. A região que ele comanda vai ter índices de criminalidade mais baixos. Tudo isso por conta dos grupos de extermínio. Porque nem sempre em serviço dá para você fazer o que faz nesse tipo de operação. Como vocês conseguem os carros, as motos, as armas? E depois, como vocês despacham a vítima? O policial sai trabalhando e existem esses carros roubados por bandidos, que os abandonam e tal. Então, a gente localizava dois, três carros roubados. Um policial pegava e levava para a toca, como a gente chama. Ficava guardado para o dia da ação. Fazia a operação e depois abandonava. O veículo era localiza- do posteriormente como um carro roubado normal. Armas frias, com numeração raspada. Armas que eram apreendidas no dia a dia. Às vezes a gente parava na rua um indivíduo armado. Pegava aquela arma e mandava a pessoa embora. De quantas incursões o sr. participou? Participei de várias. A PM sempre foi rigorosa, mas no meu tempo não era tanto. Eu não me adaptaria para trabalhar na PM de hoje. Trabalhei em parte da década de 80 e prevaleciam os grupos de extermí- nio. No finalzinho dessa época. Não só eu, mas vários outros policiais. Participei de várias ações. Às vezes, de folga e até de serviço mesmo. Fazia a chamada montagem de ocorrência. Os grupos de extermínio que atuaram em maio de 2006 também eram de policiais? Sim. A gente sabe como acontece pelos amigos. As ações que ocorreram depois dos ataques do PCC foram mais por conta da revolta com o que estava acontecendo e por ver o comando esconder. O serviço de inteligência sabia que iam acontecer os ataques. mas subestimava o crime organizado. Depois também começaram as ações dos grupos. Os policiais mais antigos se reuniram com os mais jovens de apetite e começaram a matar. Como funcionava essa matança? O pessoal se reunia, descaracterizado, com o carro comum e ia aos bairros da periferia onde a situação era mais carre- gada. Quem estivesse no local já conhecido pelos policiais como ponto de droga, a chamada boca de fumo, morria. Foi pego na rua de madrugada: tem passagem? Tem! Não era nem levado para a delega- cia. Era executado e jogado na primeira viela que encontrasse pela frente. Dá para dizer que os comandos da Policia Civil e da PM não sabiam? Sabem também que se forem a fundo o final mesmo acaba em policiais. Se for investigado como tem que ser, vai chegar em algum policial. Tá claro que é a resposta: o bandido matou o policial, o policial matou o bandido. Aí o policial vai e se envolve numa ocorrência com resistência seguida de morte. Se você se envolve numa ocorrência assim, é afastado das ruas, mudado de horário, obrigado a passar por um curso de reciclagem por 15 dias. Então, arruma o bico de acordo com o horário de trabalho. O comando também sabe disso, mesmo sendo proibi- do. A primeira coisa que ele faz é mudar o policial de horário. É castigo. Isso no caso de ocorrências de resistência seguida de morte? Vou te falar a verdade: 90% das ocorrências de resistência seguida de morte são montadas. A polícia pega o bandido, vamos supor, dentro de sua casa. Só está o policial e o bandido, que não vai encarar 20 policiais. Só que você sabe que ali é uma guerra. Se o bandido te pegar numa situação que não tem como fugir ou reagir ele vai te matar. Principalmente o ladrão 157, que mata para roubar. Esse não tem perdão. A gente já andava com o chamado kit. Era uma mochila contendo várias armas frias. Porque se o alvo não tivesse armado, mas tivesse uma situação que a gente podia matar, a gente matava e colocava uma arma fria na mão dele. O que acontece com as armas usadas nos crimes? São escondidas porque acabam sendo usadas novamente. O policial vai matar o cara, mas ele não atirou em você. A perícia vem para dizer se o cara atirou ou não. Aí o policial faz a montagem do local da ocorrência. Se matou o cara, o policial não vai dizer o número de tiros. Dá dois ou três tiros em locais fatais e sabe que o cara vai morrer. Mas como vai saber se o cara é destro ou canhoto? A gente “faz a mão” do indivíduo. Coloca a arma fria na mão esquerda e efetua o disparo. Na mão direita, outro disparo. Pode fazer o residuográfi- co que consta pólvora nas duas mãos. Tem a coisa de recolher provas, tipo cápsulas? Exatamente. Ângulo de tiro. Ir e dar um tiro na viatura. Já cheguei a ver um policial dar um tiro no outro, de raspão, para simular troca de tiros. No colete também. Tudo para deixar a ocorrência mais redonda com a simulação de troca de tiros. Existe a prática de mexer no corpo da vítima de um ataque desse tipo para atrapalhar a perícia? Para o policial não deixar provas para a perícia, no local dos fatos, você sempre socorre. Uma para você não entrar na omissão de socorro. Depois porque também quando você efetua o disparo no indivíduo ele não morre na hora. Aí a gente diz que está vivo. Agora, não chega vivo no pronto-so- corro. Damos longas voltas, a viatura vai a 20 km por hora. Às vezes, até asfixia o cara dentro da viatura. O que motiva este tipo de atitude? A situação não vai mudar. É questão de baixos salários, problemas psicológicos. Muitos poli- ciais são alcoólatras, viciados em drogas. Co- nheço vários. Tudo tem relação com a vida particular da pessoa. O cara mora de aluguel, mora na favela. Tem três, quatro filhos. O salário que ele tem não dá para sustentar e o cara vai fazer bico. Agora no caso de um policial que não trabalha muito, é sossegado? O sem apetite escolhe um serviço mais ameno. Agora se entrar tem que participar. Já vi casos de policiais que não quiseram participar e foram execu- tados. A equipe fica com medo de ser caguetada. Mas um policial mata outro policial? Numa troca de tiros, com uma arma fria, o cara está de costas e outro policial o acerta com uma arma fria. Depois fala que foi o bandido que matou. O LENDA “Se reúne um grupo com apetite” As ações são feitas por pessoas com consciência e formação. Um ato de extermínio é um ato de desespero para se preservar” O Lenda Em todas as ocorrências, o mes- mo modo de agir. As ações dos gru- pos de extermínio são sempre à noite. Usam carros escuros e filma- dos, além de uma moto. No geral, seis encapuzados. Os assassina- tos, em sua maioria, ocorrem na periferia e provas são recolhidas. “Nos primeiros ataques pegaram vários policiais. Depois foi diminuindo, os policiais não eram mais pegos marcandoJuca ❚❚❚ A história do Lenda na PM durou três déca- das. Duas delas na re- gião. Aprendeu a mon- tar ocorrências “redon- das”, organizar ações sem fardas e não deixar provas nos 10 anos em que passou pela Rota, na Capital. O Lenda é devoto. Executa suas sentenças nas entreli- nhas da palavra do Senhor. JUCA “Em 2006 eu acredito que houve um acordo do governo com o crime. Um dos acordos era para não ter ataques aos policiais que estivessem fardados. Pode ver isso. Por quê? Para não ficar em evidência que o sistema é vulnerável” O Lenda “Quando baixa ordem do PCC para matar policial, os primeiros que caem são os policiais que trabalham demais e os corruptos. Matam na porta de casa, no bico” Juca Como agem os grupos de extermínio ❚❚❚ Juca atuou nos es- quadrões da morte, nos anos 1980, e saiu da polícia porque não que- ria deixar de trabalhar bastante. Na gíria, este é o policial que mata e prende muito. Sua experiência na re- gião, fardado ou não, mostra a realidade dos crimes oriundos dos grupos de extermínio. 66 este é o número de policiais que morreram em 2009 “O policial que trabalha demais, dá cana e mata não vai sobreviver. Outros porque são corruptos. É o chamado carteirinha: aquele policial que todo mês vai receber a grana dele” ( Juca). Quando o camisa dez entra em campo Entrevista Os policiais que agem na touca A entrevista com os dois ex-policiais foi negociada durante duas semanas e realizada de maneira separada. Eles explicam como esses grupos funcionam, de que forma se organizam, o planejamento das ações, o que o comando da PM sabe e a verdade dos casos de resistência seguida de morte. As revelações desmascaram os bastidores de uma guerra travada na escuridão. Os policiais terão suas identidades preservadas por nomes fictícios. Crimes de maio 4ª parte Uma viatura da polícia, de acordo com relatos, sempre passa antes no local de ação dos encapuzados Motos e carros são usados para fazer a ação. Param de modo a não permitir possibilida- de de fulga das vítimas Atiram sempre na região da cabeça e tronco. Os membros inferiores são atingidos também para evitar fuga Recolhem cápsulas defla- gradas, para não deixar provas. Há relatos de que atiram nas vítimas ainda vivas Fogem. Logo na sequên- cia a viatura da PM retorna ao local para atender a ocorrência. O comando da Polícia Militar (PM) pode negar, o seccional da Polícia Civil afirmar ser preconceito e o Poder Judiciário e o Ministério Público não ter provas para chegar aos criminosos. O fato é que os grupos de extermínio, denominados assim pela Ouvidoria da Polícia e Defensoria Pública, responsáveis por parte dos homicídios dos Crimes de Maio, atuam e são compostos por policiais. INFOGRÁFICO BRUNO ARENA. EDITORIA DE ARTE/AT A-4 Baixada Santista A TRIBUNA Quarta-feira 28 Quarta-feira 28 A TRIBUNA Baixada Santista A-5 www.atribuna.com.br abril de 2010 abril de 2010 www.atribuna.com.br

Crimes de maio 3

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Entrevista

RENATO SANTANA

DA REDAÇÃO

O nome faz jus. O Lenda. Sempre teve apetite, espíritopolicial. É o típico justiceiro. Age sozinho, no máximocom mais um. Já apagou muitos. Com farda e semfarda. Nunca se pode dizer quantos. Fosse por prazer,cada um seria lembrado. Mas não há prazer. Tam-pouco culpa. Trata-se de uma cruzada: “A pessoa quepega no machado para arrancar a erva daninha daraiz, um fruto venenoso, não vai ter má consciênciadetermatado uma ervadaninha”.Nãoconcordamuitoemchamardegrupos deextermí-nio a ação clandestina de policiais, cuja existênciaconfirma. Encapuzados e sem farda, são os matado-res nas madrugadas das periferias, inclusive daregião. Para o Lenda “são pessoas que diante daineficácia do sistema acabam agindo por meios pró-prios”. Mesmo fora da Polícia Militar, continua sen-do um camisa dez, um bilão, no jargão do submundopolicial. Mata com a permissão de Deus. Depois quese aposentou, ficava injuriado ao ver ex-companhei-ros dizendo, na televisão, que escondiam a farda esaíamde casa comelaembaixo dotapetedocarro.O sangue subia. Não queria continuar jogado nosofá. O dedo coçou. Para ele, é bem nítido que hoje emdia os policiais fazem o papel de espantalho na horta.Faltam os bilões, os camisas 10. Ele era um. Ele é um.

Seu fogo, diz, é contra o satanás, contra a “ferramentado diabo para causar mal ao semelhante”. É devoto.InstrumentodoDeusque acredita.Na polícia seaprende tudo isso quando se querser umcamisa 10. Virou professor para os policiais maisnovoseo salvadordos descuidados.Certa vez, um colega PM executou um rapaz. Ocomando pediu a arma para balística. Lenda entrouem ação. Com vinagre, limpou o corpo da arma e ocano. Depois, pegou uma bala, untou-a na graxa epassou-a na areia, à milanesa. Um disparo já é osuficiente para provocar ranhuras dentro do cano edespistar o exame balístico. É assim que se faz nasações clandestinas da polícia. Há os que preferemarmas frias, carros roubados e capuz para fazertrabalhos. Lenda usa o próprio carro, arma registra-da e prefere pintar o rosto de graxa, usar disfarces eaté mesmo peruca, óculos. Se for pego no caminho,estácompletamente dentro da legalidade.-Aí ladrão! Pam! Pam! Pam!Vai se esgueirando pelas sombras da lei, tal qual cadaPM que decide ser camisa dez. Sorrateiramente, voltapara o carro. Dispara: “O policial veste o papel dobandido para repreender o crime”. Leia a seguir osprincipaistrechos da entrevista:

O sr. participou de incursões na periferia paramatar em maio de 2006?Estava trabalhando na PM em uma cidade daregião. Houve incursões, sim. Policiais linhas defrente foram enérgicos na periferia. Todas as mor-tes foram ilegais e colocamos tudo na conta docrime organizado. As ações eram em represália aosataques do PCC. Também existem pessoas que sãosimpatizantes da polícia e, inconformadas com afalta de ação, a inércia, vão lá e fazem. Segurançasprivados, por exemplo, são vítimas do crime. Com aajuda de policiais, agem.

O caso mais recente é o do Dino Marreta. Foisequestradodobairrodeleeexecutado.Era liderançado PCC na Vila Sônia. Era o chefe operacional docrime organizado. Não dá para dizer que eram só

policiais, mas vamos dizer que era o lado de direitacombatendoodeextremaesquerda.

O sr. confirma o uso de carros roubados e armasfrias?Tem policial que faz isso mesmo. Eu, particularmen-te, nunca participei nem recomendo porque estámuito próximo da conduta do bandido. Corre o riscode, no caminho, você ser surpreendido (pela própriapolícia) e não ter como escapar. Então, teria que usardos meios mais normais e mais lícitos possíveis.Sobres as armas, há situações e situações. Fica muitomais viável usar a própria arma do Estado porqueestánalegalidade. Depois,ésódescaracterizá-la.

Como é que o sr. faz para descaracterizar umaarma?Na alma do cano (parte interna do cano) se vocêpegar uma bala, passar graxa, ou qualquer materialadesivo, areia, e der um tiro, no exame técnico vai serconstatada outra arma. Vai mudar a sua característi-ca interior. Vai criar ranhuras que anteriormente aarma não tinha. Um projétil coletado antes vai tercaracterísticas diferentes desse coletado depois, paraconfronto,ouseja,balística.

E com os veículos?Se numa determinada área o policial está utilizandoum veículo autorizado, não está no ato ilegal. Paraninguém pegar a placa, a gente não vai com o carroaté o local da ação. Estaciona nas proximidades, ficaum lá esperando. Quem vai fazer o trabalho vai a pé,descaracterizado e com a pele camuflada. Encapuzaré burrice porque se você for visto com capuz é ruim(caracteriza grupo de extermínio). Enquanto umabarbapostiça, umaperucaémelhor.

Essas ações não são mais tão explícitas como eramantes, certo?Oqueocorre:qualquerdomicílio, inclusivenaperife-ria, tem uma câmera registrando tudo ali. Hoje umgaroto de favela tem um celular com capacidade para

gravar. Então, o policial ou o justiceiro que queiraagir tem que contar com tudo isso. Tem que serextremamente ninja. Tem que se camuflar, não servisto, pois há o risco de perder a vida. As ações dessanatureza são uma reação ao que os bandidos fazem.Alguns policiais levantam a bandeira da represália efazemoqueoEstadonãofaz.

Foi o que aconteceu em 2006...De lá para cá. É uma guerra fria, silenciosa. Ninguémdeclara raiva de ninguém, mas, na hora que um viraas costas, vem a faca. Hoje o crime organizado e ospoliciais estão nesse pé. Os grupos de ação fazemparte dessa guerra. O Estado não assume que existeesse confronto, mas policiais militares vão para ocombate. Está acontecendo há muito tempo e tem seintensificado. O político quando entra na favela pedeautorização para o traficante. Reconhece que existeuma autoridade local. Oficialmente, político ne-nhumadmite isso,mas,na prática,édiferente.Estão matando os policiais no bico, na folga e naporta de casa. Para a administração pública ficasendo um caso isolado, como se o policial tivessecontraídoparasiumproblemacomobandido.(SegundolevantamentofeitopelaSecretariadeSegu-rança do Estado, em 2009, 66 policiais morreram noperíodo de folga e 16 em serviço. Em 2008, foram 55policiaismortossemafardae19trabalhando).

Mas nos ataques de 2006 muitos inocentes, gentesem sequer ter passagem, entrou na conta.Discordo totalmente. O suposto inocente, ou citadocomo inocente pela mídia, que está às duas horas,três horas da madrugada num boteco que fica numabiqueira (ponto de tráfico) da periferia não é inocen-te. Ele está ali e tem uma função no crime. Às vezes,não é pegar uma arma para assaltar. Ele exerce umaatividade no crime, ou está de olheiro. Leva e traz adrogaparaalguém. Oinocentenãoexiste.

Como funciona isso no comando?O comando é fechado em relação aos níveis operacio-

nais.Cabos,soldadosesargentos,quesãoosprofissio-nais linha de frente, de rua, também são. Os grupossão compostos por um número restrito de pessoas,queconfiamumno outroeestãoaliparaagir.

E as ocorrências de perseguição seguida de morte?Vamos ilustrar: ocorrência de confronto real. Quan-do se apresenta a arma do bandido na delegacia e seconstata que tem seis cápsulas deflagradas no tam-bordorevólver,sabe-se queéumálibipara oMinisté-rio Público, uma vez que o bandido não tinha maispoder de resistência. Por conta disso, o policial tirauma das cápsulas estouradas e coloca uma intactapara provar que o bandido tinha como resistir. Issochama-se arredondar a ocorrência. O rigor da justiçaedasociedadeexigeessahabilidade.O Caso da Cavalaria (crime ocorrido em fevereiro de1999 em São Vicente, quando três jovens foramassassinados por policiais em serviço), por exemplo.Acredito eu que eram policiais inocentes, sem inten-ção e foram vítimas de um ato de desespero. Osjovens foram para cima dos policiais, um dos meni-nos bateu com a cabeça na guia, ficou desacordado eos policiais, num ato de desespero, chegaram aosextremos. Havia várias maneiras de maquiar a ocor-rência e tornar tudo legal e não fazer o que fizeram.Hoje em dia existem menos policiais capacitadosparatornar legalum atoilegal.

Na ação dos grupos de execução em 2006...Queria tomar uma outra linha aqui. Muito se falados bandidos mortos e pouco dos policiais mortos.A mídia vem mostrando muito a ação violenta dapolícia que, na verdade, é como um mulher quemata o marido quando está sendo agredida. Ela eraagredida há muito mais tempo e ninguém se impor-tou. Isso faz com que ela mate o marido quando estádormindo. E quando os policiais saem hoje estudan-do as possibilidades de executar um bandido naárea é esse comportamento da mulher. A políciaestá dessa forma. Acuada, amarrada. Um jovempara entrar na polícia pede autorização para o

traficante. Esse policial se torna um refém e compro-metido com o crime.

O policial também se envolve no crime?No ano passado morreram vários policiais na região.Vou contar um caso: em Praia Grande, houve umadenúncia de que em um barraco havia grandenúmero de armas do crime organizado. Policiaisfizeram o cerco. O trabalho certo seria abordar,prender os elementos e apreender as armas. Porém,ao contrário, os policiais negociaram a liberdadedos criminosos e a liberação das armas. Fizeram umboletim de ocorrência com armas mais fajutas epegaram uns bandidos envolvidos só para fazercena. Já na hora de fechar o negócio, não foram fiéisao combinado. Haviam acertado não prender nin-guém e prenderam três. Ficaram com a grana dosbandidos. A primeira retaliação foi uma rajada detiros de fuzil contra um policial quando saía de casapara o trabalho. O santo estava de plantão e ele nãomorreu. Depois disso, começaram os homicídios. Opolicial que age pelo crime acaba perdendo respeitoe a coisa vira pessoal.

Quanto aos direitos humanos, o que você pensa?Hoje o Estado estuda um monte de possibilidadessobre o que fazer para melhorar o ser humano. Vocêconsertando o homem, conserta o mundo. A causadisso tudo éa faltade Deus na vida do homem.TemeraDeuseamar oseupróximo.

Hoje fala-se muito em direitos humanos. Umateoria que me trouxe bastante conforto na época, queme dá liberdade para exterminar um bandido comose extermina um verme, e que uma característicapeculiar do ser humano é o amor ao próximo. Quan-do é o caso de um cidadão pôr uma arma na cintura esair para levantar um dinheiro, disposto a tirar a vidado seu semelhante, ele já abriu mão da condiçãohumana.Saiu como o própriosatanás, ferramenta dodiabo para causar mal ao seu semelhante. Um sujeitobandido age como bicho e tem de ser tratado comotal.Éjaula ouburaco.

Juca fala em tom de desabafo. Policial Militar nãopode falar, fazer greve ou criticar a corporação.Durante os dez anos em que esteve na PM, atuandona Capital e Interior (incluindo a Baixada Santis-ta), participou dos grupos de extermínio. Na suaépoca, final dos anos 80 e decorrer dos 90, prevale-cia esse tipo de ação. Era a época dos esquadrões damorte. Juca ainda respira o meio policial. E sabequem age no capuz.

Deixou a corporação porque “trabalhava” muito.Na gíria, policial que trabalha muito é o que matamuito, prende acima da média e tem apetite paraações encapuzadas. É camisa 10, um bilão.Policial assim é uma via de duas mãos para ocomando. Na guerra urbana, pacificam áreas mes-mo sem conquistá-las e sempre com ações encapuza-das ou em ocorrências de resistência seguida demorte. Por outro lado, trazem dor de cabeça, cobran-ças hierárquicas e se a bomba estoura, por mais queassumamseus atos, ocomando ficamarcado.

No submundo ninguém sabe de nada, não vênada. Na verdade, é preciso fingir. Juca diz que todo

batalhão tem seu grupo de camisas 10. O comandosabe. Como também há os “dedos cansados”. Nomodo de dizer dos que gostam de “trabalhar”, poli-ciais que ficam longe da turma apetitosa. E tambémda ação direta.

Juca é o tipo de policial que segura um batalhão.Com amigos na ativa, afirma que as ações da polícianos dias seguintes aos primeiros atentados do PCC,fardada ou não, foram “por conta da revolta com oque estava acontecendo e por ver o comando escon-der”. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Os gruposdeextermíniosãointegradosporpoliciais?Sim, vou explicar o que acontece. Você presta umserviço fardado, legal. E o grupo é formado porquealgumas coisas que você tem vontade de fazer écontido pelo regulamento. No caso, um regulamentointerno. Para mim, esse é o motivo maior de o policialficardemãosatadas.

Se conseguimos reunir três, quatro policiais, fala-mos na nossa linguagem, com pouco mais de apetite,atitude. O pensamento bate, é igual e acaba se for-mando o grupo que atua no caso... para a gente não éilegal,masatuamosmaisno horáriodefolga.

É um grupo fechado que atua descaracterizado,com a chamada touca. O pessoal aconselha: age natouca.Agente faz aquilo que temvontade de fazer emserviço.Só queoregulamentonos impede defazer.

Como é a organização dos ataques?Geralmente, tem a área que o policial trabalha.Então, ali existem marginais que são mais destaca-dos: assaltantes, homicidas, traficantes. No nossocaso, agimos assim: Há um bandido que está matan-do policial, dando trabalho na região. Então, ogrupo se reúne e traça um plano. Quem é o cara?Fulano de tal é o chefe, tá mandando assassinarpolicial, fazer roubo. Esse é a bola da vez.

O grupo define um dia, levanta os modos do

bandido: por onde ele sai, onde ele fica, onde mora,hora que sai. Marca o dia e sai à caça do cara.

E se o marginal estiver com pessoas inocentes nahora do ataque, num bar, por exemplo?Existe uma coisa no meio policial chamado tirocínio.Essa aí é uma experiência que se adquire com tempode serviço. Um policial olha para você e faz umaanálise rápida. Às vezes, acontece de errar. Olhar eachar que o cara é bandido e não é, pelo modo de ocara se vestir e de agir. Você faz aquela análise rápidaevê.Seacharqueocaraébandidotambém,vai junto.

O comando da polícia sabe deste tipo de ação?Eu trabalhei no Tático Móvel, hoje Força Tática. Omeu comandante sabia. Ele dizia: “Quer fazer faz,mas faz direito. Se sujar eu não sei de nada”. A partirda hora que você sai para matar bandido, para ocomando é melhor. A criminalidade na região delevai abaixar. O comando quer é isso. Quem ganha oselogios é ele. A região que ele comanda vai teríndices de criminalidade mais baixos.

Tudo isso por conta dos grupos de extermínio.Porque nem sempre em serviço dá para você fazer oque faz nesse tipo de operação.

Como vocês conseguem os carros, as motos, asarmas? E depois, como vocês despacham a vítima?O policial sai trabalhando e existem esses carrosroubados por bandidos, que os abandonam e tal.Então, a gente localizava dois, três carros roubados.Um policial pegava e levava para a toca, como a gentechama. Ficava guardado para o dia da ação. Fazia aoperaçãoedepoisabandonava.Oveículoera localiza-doposteriormentecomo umcarro roubadonormal.Armas frias, com numeração raspada. Armas queeram apreendidas no dia a dia. Às vezes a genteparava na rua um indivíduo armado. Pegava aquelaarma e mandava a pessoa embora.

De quantas incursões o sr. participou?Participei de várias. A PM sempre foi rigorosa, masno meu tempo não era tanto. Eu não me adaptariapara trabalhar na PM de hoje. Trabalhei em parteda década de 80 e prevaleciam os grupos de extermí-nio. No finalzinho dessa época. Não só eu, masvários outros policiais. Participei de várias ações. Àsvezes, de folga e até de serviço mesmo. Fazia achamada montagem de ocorrência.

Os grupos de extermínio que atuaram em maio de2006 também eram de policiais?Sim. A gente sabe como acontece pelos amigos. Asações que ocorreram depois dos ataques do PCCforam mais por conta da revolta com o que estavaacontecendo e por ver o comando esconder. Oserviço de inteligência sabia que iam acontecer osataques. mas subestimava o crime organizado.

Depois também começaram as ações dos grupos.Os policiais mais antigos se reuniram com os maisjovens de apetite e começaram a matar. Comofuncionava essa matança? O pessoal se reunia,descaracterizado, com o carro comum e ia aosbairros da periferia onde a situação era mais carre-gada. Quem estivesse no local já conhecido pelospoliciais como ponto de droga, a chamada boca defumo, morria. Foi pego na rua de madrugada: tempassagem? Tem! Não era nem levado para a delega-cia. Era executado e jogado na primeira viela queencontrasse pela frente.

Dá para dizer que os comandos da Policia Civil e daPM não sabiam?Sabem também que se forem a fundo o final mesmoacaba em policiais. Se for investigado como tem queser, vai chegar em algum policial. Tá claro que é aresposta: o bandido matou o policial, o policialmatou o bandido. Aí o policial vai e se envolve numa

ocorrência com resistência seguida de morte. Sevocê se envolve numa ocorrência assim, é afastadodas ruas, mudado de horário, obrigado a passar porum curso de reciclagem por 15 dias. Então, arrumao bico de acordo com o horário de trabalho. Ocomando também sabe disso, mesmo sendo proibi-do. A primeira coisa que ele faz é mudar o policial dehorário. É castigo.

Isso no caso de ocorrências de resistência seguidade morte?Vou te falar a verdade: 90% das ocorrências deresistência seguida de morte são montadas. Apolícia pega o bandido, vamos supor, dentro desua casa. Só está o policial e o bandido, que nãovai encarar 20 policiais. Só que você sabe que ali éuma guerra. Se o bandido te pegar numa situaçãoque não tem como fugir ou reagir ele vai te matar.Principalmente o ladrão 157, que mata pararoubar. Esse não tem perdão. A gente já andavacom o chamado kit. Era uma mochila contendovárias armas frias. Porque se o alvo não tivessearmado, mas tivesse uma situação que a gentepodia matar, a gente matava e colocava uma armafria na mão dele.

O que acontece com as armas usadas nos crimes?São escondidas porque acabam sendo usadasnovamente. O policial vai matar o cara, mas elenão atirou em você. A perícia vem para dizer se ocara atirou ou não. Aí o policial faz a montagemdo local da ocorrência. Se matou o cara, o policialnão vai dizer o número de tiros. Dá dois ou trêstiros em locais fatais e sabe que o cara vai morrer.Mas como vai saber se o cara é destro ou canhoto?A gente “faz a mão” do indivíduo. Coloca a armafria na mão esquerda e efetua o disparo. Na mãodireita, outro disparo. Pode fazer o residuográfi-co que consta pólvora nas duas mãos.

Tem a coisa de recolher provas, tipo cápsulas?Exatamente. Ângulo de tiro. Ir e dar um tiro naviatura. Já cheguei a ver um policial dar um tiro nooutro, de raspão, para simular troca de tiros. Nocolete também. Tudo para deixar a ocorrência maisredonda com a simulação de troca de tiros.

Existe a prática de mexer no corpo da vítima de umataque desse tipo para atrapalhar a perícia?Para o policial não deixar provas para a perícia,no local dos fatos, você sempre socorre. Uma paravocê não entrar na omissão de socorro. Depoisporque também quando você efetua o disparo noindivíduo ele não morre na hora. Aí a gente dizque está vivo. Agora, não chega vivo no pronto-so-corro. Damos longas voltas, a viatura vai a 20 kmpor hora. Às vezes, até asfixia o cara dentro daviatura.

O que motiva este tipo de atitude?A situação não vai mudar. É questão de baixossalários, problemas psicológicos. Muitos poli-ciais são alcoólatras, viciados em drogas. Co-nheço vários. Tudo tem relação com a vidaparticular da pessoa. O cara mora de aluguel,mora na favela. Tem três, quatro filhos. Osalário que ele tem não dá para sustentar e ocara vai fazer bico.

Agora no caso de um policial que não trabalhamuito, é sossegado?O sem apetite escolhe um serviço mais ameno.Agora se entrar tem que participar. Já vi casos depoliciais que não quiseram participar e foram execu-tados. A equipe fica com medo de ser caguetada.Mas um policial mata outro policial? Numa trocade tiros, com uma arma fria, o cara está de costas eoutro policial o acerta com uma arma fria. Depoisfala que foi o bandido que matou.

O LENDA

“Se reúne umgrupo com apetite”

“As ações são feitaspor pessoas comconsciência eformação. Um atode extermínio é umato de desesperopara se preservar”

O Lenda

�Em todas as ocorrências, o mes-mo modo de agir. As ações dos gru-pos de extermínio são sempre ànoite. Usam carros escuros e filma-dos, além de uma moto. No geral,seis encapuzados. Os assassina-tos, em sua maioria, ocorrem naperiferia e provas são recolhidas.

“Nos primeirosataques pegaramvários policiais.Depois foidiminuindo, ospoliciais não erammais pegosmarcando”Juca

��� A história do Lendana PM durou três déca-das. Duas delas na re-gião. Aprendeu a mon-tar ocorrências “redon-das”, organizar açõessem fardas e não deixarprovas nos 10 anos emque passou pela Rota,na Capital. O Lenda édevoto. Executa suassentenças nas entreli-nhas da palavra doSenhor.

JUCA

“Em 2006eu acreditoque houveum acordodo governocom ocrime. Umdos acordosera para nãoter ataquesaos policiaisqueestivessemfardados.Pode verisso. Porquê? Paranão ficar emevidênciaque osistema évulnerável”

O Lenda

“Quandobaixa ordemdo PCC paramatarpolicial, osprimeirosque caemsão ospoliciais quetrabalhamdemais e oscorruptos.Matam naporta decasa, nobico”Juca

Como agemos gruposde extermínio

��� Juca atuou nos es-quadrões da morte, nosanos 1980, e saiu dapolícia porque não que-ria deixar de trabalharbastante. Na gíria, esteé o policial que mata eprende muito.Sua experiência na re-gião, fardado ou não,mostra a realidade doscrimes oriundos dosgrupos de extermínio.

66este é o número depoliciais quemorreram em 2009“O policial que trabalhademais, dá cana e mata nãovai sobreviver. Outrosporque são corruptos. É ochamado carteirinha: aquelepolicial que todo mês vaireceber a grana dele” ( Juca).

Quando o camisadez entra em campo

Entrevista

Ospoliciaisqueagemnatouca

A entrevista com os dois ex-policiais foi negociada durante duas semanas erealizada de maneira separada. Eles explicam como esses grupos funcionam, deque forma se organizam, o planejamento das ações, o que o comando da PM sabe ea verdade dos casos de resistência seguida de morte. As revelações desmascaramos bastidores de uma guerra travada na escuridão. Os policiais terão suasidentidades preservadas por nomes fictícios.

Crimes de maio 4ª parte

Uma viatura da polícia, de acordo com relatos, sempre passa antes no local de ação dos encapuzados

Motos e carros são usadospara fazer a ação. Param demodo a não permitir possibilida-de de fulga das vítimas

Atiram sempre na região da cabeça etronco. Os membros inferiores são atingidos também para evitar fuga

Recolhem cápsulas defla-gradas, para nãodeixar provas. Há relatos de que atiram nas vítimas ainda vivas

Fogem. Logo na sequên-cia a viatura da PM retorna ao local para atender a ocorrência.

OcomandodaPolíciaMilitar (PM)podenegar, oseccionaldaPolíciaCivil afirmarserpreconceitoeo Poder JudiciárioeoMinistérioPúbliconão terprovasparachegaraoscriminosos.O fatoéqueosgruposdeextermínio,denominadosassimpelaOuvidoria daPolíciaeDefensoriaPública, responsáveisporpartedoshomicídiosdosCrimesdeMaio,atuam esãocompostosporpoliciais.

INFOGRÁFICO BRUNO ARENA. EDITORIA DE ARTE/AT

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