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CURSO DE DIREITO Crise Paradigmática: A Desconstrução do Paradigma Moderno como Condição Necessária à Reestruturação do Poder Constituinte” MARIANA MONTEIRO BELLUZ R.A. 462812/5 TURMA 329C Telefone: (11) 3865-6237 e-mail: [email protected] SÃO PAULO 2003

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CURSO DE DIREITO

“Crise Paradigmática:

A Desconstrução do Paradigma Moderno como Condição

Necessária à Reestruturação do Poder Constituinte”

MARIANA MONTEIRO BELLUZ R.A. 462812/5

TURMA 329C Telefone: (11) 3865-6237 e-mail: [email protected]

SÃO PAULO 2003

MARIANA MONTEIRO BELLUZ

Monografia apresentada à Banca

Examinadora do Centro Universitário

das Faculdades Metropolitanas

Unidas, como exigência parcial para

obtenção do título de Bacharel

em Direito, sob a orientação do professor

doutor Hélcio de Abreu Dallari Jr.

SÃO PAULO 2003

BANCA EXAMINADORA:

Professor Orientador: ______________________

Professor Argüidor: _____________________

Professor Argüidor: _____________________

Agradecimentos Ao Thiago, cujo amor me fez pensar no nosso encontro como algo além de mera predestinação; À Carol, Chico e João, cuja amizade tornam o mundo um lugar mais divertido e aconchegante; À minha família, pelo amor, torcida e apoio ao longo de todos esses anos; Ao Hélcio, pela dedicação e entusiasmo; À Ema, o meu Tao.

Sinopse

Um paradigma é uma forma de conhecer baseada em um conjunto de

crenças fundamentais, no mais das vezes implícitas e não questionadas, que

organizam toda a maneira de pensar o mundo, em um determinado tempo e

espaço. O paradigma moderno, de importância angular para este trabalho, teve

domínio tranqüilo por mais de três séculos, ordenando o mundo de acordo com o

racionalismo lógico de Descartes, Newton, Bacon e tantos outros nomes de

destaque na filosofia e ciência modernas, promovendo uma cisão aparente

irreconciliável entre corpo e mente, natureza e homem, racionalismo e

conhecimento intuitivo.

O objetivo central deste trabalho consiste numa pesquisa através da

qual, identificadas as origens do pensamento ordenador-reducionista da

modernidade, indagar-se-á de que modo a filosofia da modernidade foi apropriada

pelo discurso jurídico-político no que tange ao poder constituinte, legitimando as

formas de democracias constitucionais exercitadas ao longo do séc. XX (liberais).

Buscar-se-á, para isso, relacionar o discurso filosófico moderno com o conceito de

poder constituinte, cunhado pelo abade Joseph Emmanuel de Sieyès, no século

XVIII, inadequadamente apropriado pelas ciências sociais (com especial atenção à

jurídica) ao longo de toda a modernidade.

Buscando a definição adequada do que venha a ser o poder constituinte,

ter-se-á uma valiosa ferramenta na busca da libertação (emancipação) de toda

forma de dominação, seja ela política, religiosa ou social e na construção de uma

democracia mais próxima aos anseios sociais.

Sumário Introdução _________________________________________ p. 01

Cap.1: O Paradigma Moderno._______________________ p. 09

1.1. Características e Implicações. 1.2. Emancipação/Regulação. ____________________ p. 17

Cap.2: A Constituinte Burguesa e a Teoria do Poder Constituinte._p. 20

2.1. Notas Fundamentais sobre a Teoria Clássica. 2.2. Poder Constituinte X Poder Constituído: Uma Abordagem

Conservadora ______________________________ p. 26

Cap. 3: O Poder Constituinte sob uma perspectiva Pós-Moderna. ___ p. 31

3.1. Considerações Sobre os afetos_______________ p. 34

Cap.4: Considerações sobre a democracia em face a uma abordagem Pós-

Moderna do Poder Constituinte____________ p. 39

4.1. A Invenção democrática e os requisitos para uma definição

mínima de democracia

Conclusão. _______________________________________ p. 51

Bibliografia. ______________________________________ p. 56

“A sua piscina está cheia de ratos, suas idéias não

correspondem aos fatos. O tempo não pára. Eu vejo o

futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes

novidades. O tempo não pára” (Cazuza)

1

Introdução

A modernidade se revelou, ao longo dos séculos XVI e XVII, como um

movimento extremamente diversificado e fértil, formulando uma série de

alternativas filosóficas, políticas e sociais. O mundo vivia uma excitante época

de incríveis progressos em todos os ramos do conhecimento. O homem

moderno ocupava seu lugar no centro do Universo, o personagem principal de

um grande teatro cósmico!

Com a inauguração da Era Cartesiana a modernidade ganha contornos

mais rígidos, consolidando a idéia da racionalidade lógica como a única forma

de conhecimento válido e desconsiderando o conhecimento intuitivo enquanto

dado fundamental da constituição humana. De porte de um arsenal teórico

técnico-científico fornecido pelas ciências exatas e naturais, o homem então

pôde intuir determinadas leis da natureza que lhe permitiam o conhecimento

sobre ela e, como conseqüência natural disso, o domínio da mesma.

Francis Bacon já dissera que “A natureza, tal como uma bruxa1, deve

nos revelar os seus segredos ainda que sob tortura”. Este homem, antes refém

dos mistérios da natureza, passava agora a seu algoz, infligindo-lhe todo tipo

de tortura em busca do progresso, uma das idéias centrais do paradigma

moderno.

1 Infere-se aqui a referência à mulher. Bacon, Francis, in Os Pensadores, Ed. Abril, 1979, pág. 136.

2

Para que se tenha exata noção da força dessas idéias nascidas ao

longo do século XVIII, basta dizer que a modernidade legou ao mundo um

paradigma que teve domínio tranqüilo por mais de trezentos anos.

Entende-se por paradigma: uma forma de conhecer baseada em um

conjunto de crenças fundamentais, no mais das vezes implícitas e não

questionadas, que organizam toda a maneira de pensar o mundo, em

determinado tempo e espaço.

Um paradigma é uma construção histórica sobre um modo de olhar o

mundo, calcado na idéia de que se pode conhecê-lo de uma maneira direta.

Contudo, não se pode apreender a totalidade do real desta forma, haja vista

que o real é apenas parcialmente organizado de forma racional. Muitas coisas

podem, de fato, ser apreendidas e conhecidas por via da racionalidade lógica,

porém, outras, pode-se apenas elucidar (jogar luz sobre), intuir.

Hoje sabe-se, por exemplo, que o universo encontra-se em expansão.

Pergunta-se: expansão para aonde? Com todo o aparato técnico-científico de

que o mundo dispõe às portas do Séc. XXI, ainda restam perguntas sem

respostas. Não se pode compreender como o universo, infinito até aonde se

sabe, pode se expandir. Pode-se apenas intuir.

Para melhor compreender o funcionamento do mundo e de todas as

coisas, o homem moderno comparou-os a um relógio, em analogia ao modelo

cartesiano. Uma colossal engrenagem mecânica, composta de dezenas de

3

milhares de pequenas peças e que, se bem “azeitada”, funcionaria sem

problemas. A sustentar tal modelo cognitivo, restava a idéia de que para se

compreender o todo, primeiro era necessário que fossem analisadas as partes.

Deste modo, tal qual um relojoeiro, o homem desmembrou não só o mundo em

partes menores e mais fáceis de serem compreendidas, mas também o

conhecimento. Pela fragmentação do saber em departamentos universitários

separados, perdeu-se a noção do todo como muito mais do que a simples

soma de suas partes.

Foi atrás dessa fachada que o mundo viveu, por mais de trezentos

anos, a ignorar que o real apresenta-se como um todo complexo e

heterogêneo, impossível de ser desmembrado em peças menores que, depois,

voltam a se encaixar, para formar um todo homogêneo e coeso. O real é como

uma gigante teia, uma intrincada rede de interconexões. O real é um rizoma2,

um quebra-cabeça aonde as peças não se encaixam.

O homem que, num passado não muito distante, havia vivido obscuros

tempos de total submissão à natureza e que, com o advento da era moderna,

fora alçado ao centro do Universo na condição de um semi-Deus, hoje

encontra-se absolutamente deslocado. Não está mais no centro do universo,

não está sequer à margem. Como resultado de um longo domínio do

paradigma moderno, houve a cisão homem/natureza, sujeito/objeto e, assim,

perdeu-se a noção de pertencer ao universo, de estar-se conectado com o

todo. Isso levou a civilização de hoje a graves crises de naturezas diversas:

2 Delleuze, Gilles e Guattari, Felix, in Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, Vol. I, ed. 34, 1995, pág.15. Rizoma é a aliança, a inter-relação, uma eterna conjunção. É o real tido como uma grande rede de relações, de interconexões.

4

política, econômica, social, ecológica, institucional, populacional. Todas essas

crises se resumem, no fundo, a uma só grande crise: crise de perspectiva.

A postura prometeica do homem contemporâneo precisará ser

abandonada para que, fora do paradigma moderno, seja possível, então,

buscar-se soluções aos novos problemas enfrentados pelo mundo de hoje,

problemas estes dos quais o paradigma moderno não consegue mais dar conta

ou oferecer respostas. Para que se possa começar a pensar em tais soluções,

será necessária uma urgente reavaliação da perspectiva pela qual se entende

o mundo hoje.

As diversas faces dessa grande crise não poderão ser tratadas

pontualmente, por políticas direcionadas a cada uma, como se não fizessem

parte de um todo inegavelmente maior.

Uma das bases teóricas econômicas do paradigma hoje em crise, é o

equilíbrio racional ou, como a história passou a conhecê-lo, o princípio da “mão

invisível”. Este é projeto que leva a um tipo de organização social incapaz de

contemplar o interesse do todo, é importante que fique claro. Pela aplicação

desta fórmula, cresce a riqueza social - nunca o mundo foi tão rico, com tantos

bens e riquezas acumulados - mas, de forma paradoxal, também jamais foi tão

grande a desigualdade na distribuição desta.

5

O mundo vive hoje a era do desemprego estrutural, aquele que persiste

mesmo com a economia em expansão e toda sorte de tecnologia produzida. O

capitalismo dos dias de hoje emprega largamente uma tecnologia cada vez

mais sofisticada, utilizando-se, em função disso, de cada vez menos mão-de-

obra nas linhas de produção. Fica evidente, pois, que esse equilíbrio racional

na verdade contempla apenas uma racionalidade parcial. Explica-se.

Do ponto de vista da unidade de produção, não há nada mais racional

– vasta tecnologia, menos trabalhadores, maior capacidade produtiva e

produtos de maior qualidade – porém, considerando-se o todo, há muito pouca

racionalidade neste processo. O trabalhador é alienado do processo produtivo,

limitando-se, a grosso modo, à sua função de “apertar parafusos”. Alienado, no

sentido marxista da expressão, ele ainda percebe muito pouco - ou nada - do

capital que ele próprio fez multiplicar. É a racionalidade parcial gerando uma

irracionalidade global.

Diante disso, numa perspectiva afeta ao Direito, a discussão que se

deve propor é: Que tipo de Estado se faz necessário, no mundo de hoje? A

construção de uma irracionalidade global não entraria em conflito com a de

Estado? Para responder a esta pergunta, deve-se ter em mente que a palavra-

chave, aqui, não é “Estado”, e sim democracia.

A contribuição do Direito, neste ponto, é decisiva. Diante de todo o

desajuste legado pelos séculos de modernidade paradigmática (sem

desconsiderar seus inegáveis acertos, é evidente) , compete ao direito operar

6

com uma ferramenta que talvez seja fundamental na elaboração dessa nova

perspectiva, na construção de um novo conceito de Estado, às portas do séc.

XXI: a democracia.

Muito embora não restem dúvidas de que nas últimas décadas houve

um avanço significativo no sentido democrático, este processo não parece ter

sido concluído. Prova disso é o crescente desinteresse pelo processo eleitoral

(como ocorre no processo eleitoral norte-americano) ou pela participação

social. A democracia talvez seja o caminho para se alcançar a um modelo de

coletividade – passando ou não pela idéia de Estado – que um mundo com as

características de hoje, parece precisar. Uma democracia substantiva, sim,

mas também formal, haja visto que a democracia formal é essencial à

substantiva na mesma medida que esta, para que aquela se sustente.

Falar em desconstrução de um paradigma com a força do moderno,

como um caminho para a liberdade de uma civilização espremida nos rígidos

contornos dessa lógica racional, passa por uma discussão fundamentalmente

inovadora de um conceito cunhado nos idos do séc. XVIII pelo Abade

Emmanuel Joseph Sieyès: o poder constituinte. Aqui, novamente, o papel

crucial do Direito no processo de reflexão sobre a mudança de perspectiva, a

criação de novos caminhos para a crise de civilização deste fim de século.

Embora tenha sido gerado no interior do paradigma moderno, o

conceito de poder constituinte encontra-se impregnado de elementos

inovadores, e, mais do que isso, libertadores, que não se adequam em

7

absoluto ao cartesianismo da modernidade. Ele lida com uma realidade

bastante complexa e ainda inexplorada que é a questão da criação humana,

aquilo que possibilita o surgimento do novo, do inesperado. Trata-se de fundar

uma nova ordem jurídica, é certo, mas também envolve alterações político-

sociais que tem como motor, e que não se esqueça disso, a potência criativa

humana de fazer surgir do nada, o absolutamente novo.

Ao se definir de que modo opera o poder constituinte, o que ele de fato

constitui e qual o impacto da modernidade sobre a sua natureza, dentre outras

questões, estar-se-á caminhando na direção de uma inédita e possível

democracia. Isto é o que propõe este trabalho.

O que se irá demonstrar com este trabalho, portanto, é de que modo a

filosofia da modernidade foi apropriada pelo discurso jurídico-político,

legitimando as formas de democracias constitucionais exercitadas ao longo do

séc. XX, com destaque ao desvirtuamento do conceito de poder constituinte

que teve lugar no curso desse processo. Ao fazer-se esta análise, ficará claro

que para uma real experiência democrática e, por meio desta, uma radical

transformação civilizatória, será preciso ver o poder constituinte com outros

olhos, qual seja, olhos menos modernos.

Nos ensinamentos do taoísmo3: “Quando não se precisar mais dos

olhos para ver, dos ouvidos para se ouvir, das mãos para tocar. Quando o

homem não mais utilizar os seus sentidos para conhecer e puder, assim,

3 Kielce, Anton, in O Taoísmo, Ed. Martins Fontes, 1986, pág. 16.

8

desaprender tudo o que tiver aprendido, então conhecerá o Tao. Só assim

chegará ao conhecimento de fato”.

9

Capítulo Primeiro – O Paradigma Moderno

1.1. Características e Implicações

O projeto sócio-cultural da modernidade constituiu-se entre o século

XVI e finais do séc. XVIII, momento que coincide com a emergência do

capitalismo enquanto modo de produção dominante nos países da Europa que

integraram a primeira grande onda de industrialização. A especificidade

histórica do capitalismo reside nas relações de produção que instaura entre o

capital e o trabalho e são elas que determinam a emergência e a generalização

de um sistema de trocas marcadamente capitalista. Isso só acontece a partir de

finais do século XVIII, ou mesmo meados do século XIX e, portanto, depois de

estar constituído, enquanto projeto sócio-cultural, o paradigma da

modernidade. A partir desse momento, o trajeto histórico da modernidade está

instrinsecamente ligado ao desenvolvimento do capitalismo nos países

centrais.

Pode-se pensar a modernidade como um tempo em que se reflete a

ordem: no mundo, no hábitat humano. Dentre a multiplicidade de tarefas a que

a modernidade se atribuiu, sobressai a da ordem (como tarefa) como a mais

impossível delas. A ordem é o contrário do caos, arquétipos que foram

concebidos em meio à ruptura e colapso do mundo ordenado de modo divino,

que não conhecia a necessidade nem o acaso.

10

O caos, “o outro da ordem”, é pura negatividade, a negação de tudo

que a ordem se empenha em ser. A luta pela ordem, assim não é uma luta da

definição de ordem contra a de caos, e sim uma luta contra a ambigüidade, da

clareza contra a confusão.

Assim, pode-se dizer que “a existência é moderna na medida em que

está saturada pela sensação de que ‘depois de nós, o dilúvio’”4. A existência é

moderna na medida em que é administrada por agentes capazes (que

possuem conhecimento, habilidade, tecnologia) e soberanos. A prática

moderna é o esforço para exterminar a ambivalência, definir com precisão e

eliminar tudo o que não poderia ser precisamente definido. Um projeto

ambicioso, não resta dúvida, e que se estruturou sobre um sólido conjunto de

verdades, de interpretações sobre o real, sobre um paradigma.

O paradigma é uma construção histórica sobre um modo de olhar o

mundo, coroando a idéia de que podemos conhecê-lo de maneira direta. Na

qualidade de construto histórico, um paradigma não pode ser entendido como

sendo concebido de forma espontânea. Se for uma construção histórica, isso

implica no reconhecimento de que poderia ter sido diferente.

Um dos elementos centrais do paradigma moderno remonta à Grécia

Antiga (Clássica) e caracteriza uma decisão política fundamental que marcou

toda a maneira de pensar, no Ocidente, até fins do séc. XX. Uma forma de

conceber o real, àquela época, era através da idéia de que “aquilo que é, não

4 Bauman, Zygmunt, in Modernidade e Ambivalência, Jorge Zahar Editora, 1995, p.15.

11

apenas é”, mas “vem sendo” (vai se desenvolvendo). O mundo seria um devir.

Mas esta não era a única forma de se contemplar o real. Outra corrente

(Parmênides) considerava o real como algo que é hoje da mesma forma como

sempre foi (essência), concebido “de uma só tacada” tal qual o conhecemos

hoje. Diante dessas duas visões de mundo, a decisão de se entender o real

como essência e não como um porvir, foi eminentemente política, adequada

àquele momento histórico e isso gerou incontestáveis efeitos, especialmente no

mundo ocidental.

Dentro deste paradigma, quando falamos de ontologia, falamos da

existência de um ser que está organizado (regido) por leis que regem o

funcionamento das coisas, cuja existência já é determinada. Essa foi a decisão

política a que se fez referência e que estabelecia, em linhas gerais, que “tudo o

que é, assim foi constituído”. Traduzindo, tudo o que existe é determinado e

tem uma causa que pode ser conhecida (causa entendida enquanto a relação

linear e inequívoca entre uma coisa e um efeito. Esse é o sentido rigoroso de

causa, para a modernidade, a determinação).

Com essa, aparentemente simples lógica, a modernidade consolidava

um modo de se conceber o mundo vocacionado à estabilidade, dotando o

homem da faculdade de, em dominando as leis que regem todas as coisas –

leis naturais, físicas, matemáticas – poder dominar a natureza de forma nunca

antes imaginada. Que sensação incrível deve ter sido! A partir daquele

momento, todos os movimentos e efeitos causados, digamos, por uma pedra

atirada em um lago, das pequenas ondas formadas na água à parábola

12

descrita em seu lançamento, poderiam ser conhecidas e descritas. A

modernidade entendeu que o progresso do conhecimento poderia ser

encontrado, em todos os níveis, nessa relação causal5.

Hoje os avanços no campo da física subatômica (quântica) já revelam,

desde o início do séc. XX, que neste universo de dimensões invisíveis aos

olhos humanos, pode, por exemplo, uma partícula atômica (em elétron) mudar

de posição - e função - sem que este movimento seja causado ou previsível,

nem quanto ao seu momento, nem quanto à sua posição. Um movimento sem

causa mas com visíveis efeitos. Logo, existe um momento em que “algo” na

matéria “decide” fazer algo que não possui qualquer causa, alterando

radicalmente o rumo das coisas. Esse é o Princípio ou Movimento Dissipativo .

Algo totalmente estranho à rígida lógica formal moderna.

O paradigma da modernidade fundou-se, ao lado desses pressupostos,

no Princípio Dualista, colocando em lados opostos sujeito/objeto. A

conseqüência imediata dessa cisão é a busca do homem em conhecer a

natureza com ânimo de domínio: “conhecer para dominar”. E é neste momento

que se constrói o pensamento ocidental moderno, no momento em que, de

fato, acontece a construção da modernidade.

O binômio sujeito/objeto foi a forma de conhecimento adotada pela

modernidade. Uma forma válida, não resta dúvida, afinal, foi a partir deste

distanciamento que a ciência pôde avançar em suas descobertas e grandes

5 Aquilo que a razão não alcança, não consegue capturar, o subjectum, foi o que os gregos chamaram mistério (sem qualquer conotação mística ou religiosa).

13

conquistas foram alcançadas. Entretanto, não pode ser entendida como a única

e tampouco a mais eficiente forma de conhecimento. Não obstante serem

essas apenas construções, interpretações da realidade, que não traduzem-na

com fidelidade, ainda assim, o homem passou a ser entendido, pelo

pensamento ocidental, como um ser predominantemente racional, ao arrepio

da sua condição, talvez ainda mais radical, de um ser de afetos.

É preciso que se diga que a maneira segundo a qual a modernidade

pensou o real não foi, de modo algum, inocente. Existe uma intencionalidade

por trás dessa “máquina de guerra” armada contra o conhecimento intuitivo e a

expressão dos afetos, como dado constitutivo básico da espécie humana. Uma

intencionalidade de domínio.

A racionalidade lógica segue princípios como o princípio da identidade

– ex.: “Se uma coisa é isto, não pode então ser aquilo” – e o princípio da

contradição – ex.: “Se A é igual a B e B é diferente de C, A não pode ser igual a

C”. Dizer que a modernidade pensa o real a partir de uma racionalidade lógica

significa dizer, então, que a modernidade supõe que tudo o que existe pode ser

conhecido, capturado, aprendido pela lógica racional (ontológica e

epistemológica). E se o real está organizado segundo uma lógica racional,

podemos, em algum momento, esgotar o seu conhecimento. Ganha força,

neste momento, a poderosa idéia de progresso. O domínio na natureza tira o

homem da inércia, o emancipa, o impulsiona para frente.

14

A epistemologia define o homem como um ser racional. Ponto.

Entretanto, esta não é uma idéia adequada. Castoriadis6 observa que, na

verdade, o homem age no limite de sua irracionalidade ao criar,

conscientemente, todas as condições para inviabilizar a sua própria vida no

planeta. Ao que indica o bom senso, há muito pouca racionalidade nisso.

Em vista disso, pode-se estabelecer como a 1a característica do

paradigma da modernidade a racionalidade do real somada à racionalidade do

sujeito. É também esta a crítica mais ácida que se deve fazer ao paradigma

moderno, pois nem o real nem o sujeito são definidos, na sua totalidade,

racionalmente (embora a racionalidade seja uma característica importante em

ambos).

Uma 2a característica do paradigma moderno é a universalidade do

determinismo. É a consagração da idéia do essencialismo, vale dizer, o real é

dotado de uma essência, está organizado segundo lógicas racionais e, em

virtude disso, mesmo que pareça aleatório, tudo o que acontece já está

determinado segundo um conjunto de leis que regem a racionalidade.

Afirmar o determinismo universal decorre da compreensão de um real

que teria uma essência imutável. Hoje os avanços científicos no campo da

física quântica deixam claro que mesmo o real material não funciona em base

de determinações e sim de probabilidades. Ou seja, investigando-se a fundo

um fenômeno qualquer, o que se descobrirá, ao final de tudo, não será um

6 Castoriadis, Cornelius, in A Instituição Imaginária da Sociedade, Ed. Paz e Terra,1995, pág. 365.

15

único átomo isolado deste ou daquele elemento ou uma partícula ainda menor

que o átomo e sim um conjunto de probabilidades. Não há determinação no

nível subatômico. E se não há determinação no nível subatômico, não há como

existir em qualquer outro nível.

Essa idéia apavorou muitos cientistas nos primeiros anos do século

XX. Reconhecer que não há qualquer possibilidade de determinação no nível

subatômico era por de pernas para o ar tudo o que aqueles cientistas haviam

aprendido ao longo de todo desenvolvimento da ciência ocidental. Como tocar

uma pedra, sentir a solidez de uma rocha, agora que ficava claro que em seu

nível mais básico, não havia qualquer elemento sólido, átomos coesos nem

elétrons organizados em torno de um núcleo? O que evitaria de caírem,

pessoas e objetos, através da superfície da terra já que, ao que tudo indicava,

nada há de sólido (ou líquido, ou gasoso) debaixo de todos os pés? Muitos

cientistas dessa época preferiram não fingir não ver, ignorar o que tinham

acabado de descobrir, uma vez que aquilo representava um choque cultural

tremendo, toda uma identidade cultural foi posta em “xeque”. Por essa razão,

um processo de mudança paradigmática leva gerações para se concretizar.

Reconhecer as descobertas da física quântica, naquele momento,

implicaria numa transformação de valores e perspectivas que, em seu curso

natural, levariam gerações para acontecer. O determinismo caía por terra.

16

A crítica mais ácida se coloca em face do paradigma moderno não é

em relação a qualquer tipo de determinismo (sem ele não haveria ciência) e

sim ao determinismo radical. Embora haja determinação no interior do real, ele

não é inteiramente determinado, comporta a autopoiese (= a criação do novo

sem que exista causa para tanto). Esse é o dado ignorado pela modernidade.

O mundo vivo, e também o material, são dotados de movimento

criativo, de modo que deve-se operar uma mudança de perspectiva em relação

à natureza, às portas do séc. XXI, encarando-a não mais como um objeto a ser

conquistado, mas como um organismo vivo em um processo de auto-criação

permanente. Um sistema aberto, mutável.

A 3a característica do paradigma moderno a ser levada em conta é a

simplicidade ou homogeneidade. Aqui se traduz a idéia de que pensar que o

existente, embora seja muito complexo, é, no fundo, tudo muito simples (há

“leis” ao alcance do conhecimento para explicar tudo). Um real pretensamente

homogêneo, possibilitaria a compreensão do comportamento dos homens,

formigas ou vegetais a partir da redução dos mesmos às leis relativamente

simples. Ao final do séc. XX vê-se que o real é, na verdade, complexo e

heterogêneo, ou seja, o paradoxo não é um erro da razão (como pretendeu a

modernidade), e, sim, a expressão da insuficiência da lógica racional.

Nem todas as explicações se fecham entre si. Reconhecer que o real é

complexo pressupõe dizer que, embora os conhecimentos de que o homem

17

dispõe sejam plurais e o permitam explicar muitas coisas, não é possível fazer

afirmações absolutamente lógicas e não contraditórias da realidade. Há que se

suportar o paradoxo e a insuficiência. Há que se conviver com a ambivalência.

1.2. Emancipação/Regulação

O movimento da racionalidade ventilado pela modernidade comporta

diferentes sentidos, não apenas positivo ou negativo. Este é o momento em

que, basicamente, o homem se constitui como sujeito a partir de uma

perspectiva antropocêntrica. É aqui que começam a se delinear os pilares mais

sofisticados de todo o pensamento moderno: a emancipação e a regulação7.

Por emancipação entende-se tanto se independizar em relação à

autoridades religiosas, quanto civis. Não se trata de independência em relação

à toda e qualquer autoridade (emancipação e anarquia são cosias diferentes).

Significa que a razão pode se manifestar sem se sujeitar à uma autoridade que

determine o que se pode e o que não se pode pensar. Outra forma de se

entender a emancipação seria sob o ponto de vista político. Tomando-se como

exemplo a Idade Média (ou Pré-Moderna). Nesta perspectiva, entender-se-ia a

emancipação política como aquela em face à ilegitimidade dos reis que

governavam apoiados na autoridade que recebiam diretamente de Deus.

7 Santos, Boaventura. A Crítica da Razão Indolente – contra o desperdício da experiência, VolI, Ed. Cortez, 2a edição, São Paulo, 2000, p.50.

18

A emancipação, pelo exposto, só se coloca em relação a um poder que

não tem sustento democrático. Não se sustenta um poder, por mais forte que

sejam seus exércitos, sem um mínimo quantum de legitimação8. Um terceiro

modo de se pensar a emancipação, é em relação a um submetimento à

natureza, consagrando a idéia de que dominando-se a ciência, até certo ponto,

poder-se-ia controlar as doenças e todo mal estar da civilização.

A concepção de que a razão humana seria emancipadora se impôs na

modernidade, quando se passa a pensar os afetos como algo “incômodo” na

espécie humana, algo que a desvia da razão, do bom caminho, e que deve ser

“controlado a ferro e fogo” rumo à emancipação. Mais tarde surge a idéia de

emancipação dos pobres e oprimidos em relação à dominação, via uma

revolução social9.

Falar em regulação significa dizer que, da mesma forma que a

sociedade poderia ser pensada como uma máquina, tal qual a natureza,

precisaria ser regulada, ajustada para operar segundo determinadas regras de

funcionamento. A regulação teria a função de conter as paixões “ruins”, o

pecado, o proibido. Daí se infere que a regulação implica em ignorar-se os

afetos como válidos e mesmo fundamentais à própria emancipação.

A regulação evoca a necessidade sentida de organizar-se a sociedade,

de determinar direitos e obrigações (o que cada um pode e não pode fazer). É

idéia parcialmente coincidente com a de emancipação, afinal, há um aparente

8 A legitimidade está calcada no conceito de consentimento. 9 Marx, Karl, e Engels, Friedrich, in , O Manifesto Comunista, Ed. Garamond, 1998, pág. 61.

19

contra-senso em estar-se emancipado e, ao mesmo tempo, sujeito a um

processo se regulação. Há que se questionar, portanto, se existe liberdade

possível à margem de qualquer lei, bem como se o excesso de lei permite a

existência de liberdade.

A modernidade pensou o princípio da regulação segundo dois eixos:

pelas relações de poder no Estado – entre este e os indivíduos – e pelas

relações entre os cidadãos (regulação de interesses antagônicos posto que

operaria segundo os interesses - lógica - do mercado).

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Capítulo Segundo - A Constituinte Burguesa e a Teoria do Poder

Constituinte

2.1. Notas Fundamentais da Teoria Clássica

A teoria do poder constituinte tem seu nascedouro no seio da

modernidade, nos idos do séc. XVIII. Não obstante ter começado a ser

delineada durante as convenções das colônias recém-emancipadas pela

Revolução Americana (Virgínia, 1824 e Filadélfia, 1787) foi somente às

vésperas da Revolução Francesa (1789) que ela realmente começou a ser

definida, através da obra do abade Emmanuel Joseph Sieyés, ”O que é o

Terceiro Estado?”10.

Cinco meses antes da Revolução Francesa Sieyès publica o panfleto

"O que é o terceiro Estado?" que representava um verdadeiro manifesto de

reivindicação das burguesia, em sua luta contra o privilégio e o absolutismo. O

objetivo da obra era propagar as idéias e reivindicações do Terceiro Estado

(burguesia) durante a campanha eleitoral que precedeu a reunião dos Estados

Gerias de 1789.

O 3o Estado era o único com o qual o povo (nação) realmente se

identificaria, pois o 1o (clero) e o 2o (nobreza) representavam a classe dos

privilegiados (estranhos à nação, portanto). Quem “carregava o Estado" era, de

fato, o 3o Estado.

10 Sieyès, Emmanuel Joseph, in Qu’est-ce que lê Tiers Etat?, 3a edição, Ed. Lúmen Júris, Rio de Janeiro, 1997.

21

O 3o Estado, àquela época, tinha muito pouca representação política. A

nobreza havia oprimido o povo e usurpado os seus direitos, de modo que o 3o

Estado reivindicava apenas "o mínimo necessário", aquilo que justamente lhe

cabia: ter seus representantes escolhidos apenas dentre membros do próprio

3o Estado; ter o mesmo número de deputados que as classes privilegiadas e o

voto "por cabeça" ao invés de por ordem.

Ao proclamarem-se em Assembléia Nacional Constituinte, em uma

iniciativa revolucionária carreada pelo 3o Estado, teve início a clara distinção

poder constituinte/poder constituído (legislativo ordinário), pela primeira vez na

história.

Sieyés distingue três etapas na formação das sociedades políticas:

1. Indivíduos reúnem-se para exercer direitos os quais já possuíam, por força

da necessidade e regidos pelas suas vontades pessoais;

2. Indivíduos reúnem-se para deliberar sobre as necessidades públicas e

como promovê-las. A vontade geral (o todo) sobrepõe-se à individual;

3. Grande número de indivíduos, em grande extensão territorial cria o

problema de como exercer facilmente a vontade comum. Surge então a

instituição do Governo exercido por procuração, aonde os associados

delegam a alguns dentre eles, as funções (Poderes) consideradas

essenciais à atenção pública.

22

Quando se cria um corpo de representantes é preciso que também

sejam criadas regras que definam seus órgãos, formas, funções atribuídas e

meios para exercê-las. As leis constitucionais são criadas para regular tais

funções e são ditas fundamentais por não poderem ser alteradas pelo poder

constituído, só pelo poder constituinte - só a nação pode fazer a Constituição.

O Poder Constituinte Originário é aquele que, nos regimes

democráticos, tem assento na cidadania (no povo), vale dizer, é o poder desta

de dar-se a si mesma uma Constituição - organizar o Estado, suas funções,

órgãos competentes e suas atribuições, de acordo com a vontade geral.

É, portanto, poder ilimitado, incondicionado, soberano e inicial, posto

que não encontra limitação em nenhuma norma do ordenamento jurídico (no

direito positivo) uma vez que é anterior a ele (é a sua própria gênese). Se há

qualquer limitação ao Poder Constituinte Originário, é limitação da ordem do

direito natural.

Em virtude da vocação para a estabilidade, das normas constitucionais,

o poder constituinte só será exercido excepcionalmente (conturbações sociais,

grave crise política e/ou econômica, criação de Estado Novo, entre outros).

Não está, entretanto, sujeito a nenhuma condição de prazo ou limites, senão os

que ele próprio se impõe, e tampouco pode ser alienado.

23

Mesmo após criada a Constituição, a obra maior do poder constituinte,

este não se exaure, permanece. Sempre que a nação entender que sejam

necessárias mudanças (criar outra Carta ou modificá-la), o poder constituinte é

invocado pois não está a nação subordinada à Constituição que deu a si

mesma, ou seja, o povo tem a faculdade de mudar as normas que criou para si,

sempre que entender necessário. Pode "querer de maneira diferente", sempre.

Finalmente, é poder absolutamente necessário também para se

entender a distribuição do Poder, posto que, sem um poder superior e anterior

ao poder posto ou constituído, seria impossível a distribuição do Poder - só se

pode distribuir o que anteriormente já existia11. Vale lembrar que não está o

Poder Constituinte Originário coordenado com os demais poderes do Estado

(Legislativo, Executivo e Judiciário) uma vez que serve de fundamento para

todos eles.

Por ser o Poder Constituinte Originário um poder extra-jurídico, ou seja,

não descrito pelo direito positivo (nem poderia, posto que o cria), muito se

discute acerca da sua validade. Há quem alegue que se trata de teoria abstrata

em demasia, pouco palpável e mesmo inaplicável.

11 Pensamento jusnaturalista. Coloca acima da Constituição um direito superior, algo que precede ao Estado.

24

O mesmo não acontece quando se refere ao poder constituinte

derivado, este sim, jurídico, positivado, materializado, expresso na

Constituição. Poder que, como o próprio nome sugere, deriva de um poder

maior e superior, o Poder Constituinte Originário (portanto, condicionado e

limitado por este. Tem na estabelecidas na Constituição Federal a sua

organização e competências).

Contudo, como já foi dito, há que primeiramente considerar-se a

existência de um poder maior necessariamente anterior a todos os poderes

constituídos, sem o qual, não haveria que se falar em separação de poderes.

Daí a importância do Poder Constituinte Originário e seu reconhecimento como

fonte de validade primeira do direito posto.

A idéia de limitação do poder constituinte, vale lembrar, não é absoluta

em Sieyès, tampouco pacífica entre os doutrinadores. A mais clara limitação ao

poder constituinte originário, de acordo com a teoria clássica, seria a limitação

temporal. O poder constituinte só se manifestaria extraordinariamente, em

situações de grave crise institucional-política, em que se fizesse necessária a

criação de uma nova Carta Constitucional.

Seria como uma Assembléia Extraordinária que, nas palavras de

Sieyés, “substituísse a nação em sua independência de toda classe de formas

constitucionais”12. Sieyès completa: “Não há necessidade de se tomar

precauções para impedir o abuso de poder; estes representantes são

12 Sieyés, Emmanuel, in Que es el Tercer Estado?, in Sampaio, Nelson de Souza, in O Poder de Reforma Constitucional, Ed. Nova Alvorada Edições Ltda., 1995, pág 42.

25

deputados apenas para um só assunto e por certo tempo somente”13. Ainda,

nos dizeres de Jameson, o poder constituinte se manifestaria tal qual um

“remédio para as doenças do Estado”14, evidenciando, mais uma vez, uma

lógica eminentemente moderna (analogia homem/máquina) na abordagem do

poder constituinte.

Em face do exposto, o poder constituinte em condições normais (leia-

se, nos países de constituição escrita e rígida) deve manifestar-se de forma

excepcional e com a finalidade única de criar uma nova Constituição. Esse é o

entendimento predominantemente moderno e vigente entre os

constitucionalistas até os dias de hoje. É através da Constituição que o poder

constituinte se externaliza, que se percebe a sua manifestação (é ato).

Realizada a tarefa de confecção/modificação de uma Constituição, a

assembléia se dissolve e a função constituinte entra em um estado de latência,

somente voltando a se manifestar em caso de subversões revolucionárias ou,

mais raro, por manifestações pacíficas.

Todas essas características e definições, é importante que se diga,

correspondem a uma visão meramente acadêmica acerca do fenômeno

constituinte, não guardando significativas semelhanças com a sua realidade,

tanto quanto a representação do universo a funcionar como um relógio pouco

tem de identidade com o real universo.

13 Sieyés, Emmanuel, in Que es el Tercer Estado?, in Sampaio, Nelson de Souza, in O Poder de Reforma Constitucional, Ed. Nova Alvorada Edições Ltda., 1995, pág 42. 14 Jameson, John Alexander, in Sampaio, Nelson de Souza, O Poder de Reforma Constitucional, ed. Nova Alvorada Edições Ltda., 1995, pág.43.

26

Não foi, a rigor, na França ou qualquer outro espaço geográfico, tão

pouco num marco histórico determinado que primeiro se manifestou o poder

constituinte de um povo, assim como não foi a chegada dos europeus ao

território brasileiro que marcou o nascimento deste País, como se verá a

seguir.

2.2. Poder Constituinte X Poder Constituído: Uma Abordagem

Conservadora

Desde sua origem, os conceitos de poder constituinte e poder

constituído vêm sendo dissecados pela doutrina, que tratou de estabelecer

uma clara fronteira entre um e outro, evidenciando os seus conteúdos e notas

fundamentais.

Entretanto, tudo o que a seguir será dito acerca de ambos,

corresponde a uma interpretação pálida da realidade. Tal como o olhar do

observador que acaba por interferir no objeto da observação15, profundas

alterações foram operadas a partir de uma concepção particular de poder

constituinte, por parte dos constitucionalistas e teóricos do direito, ao longo do

século XX, lançando-se sobre o mesmo um olhar caolho e conservador.

15 Constatações empíricas, a partir de fenômenos específicos no campo da física subatômica, evidenciam que o olhar do observador (cientista) de fato interfere no curso do experimento. Afirmações deste quilate têm sido feitas por proeminentes membros da comunidade científica mundial tais como os Nobel de Física, Ilya Prigogyne, Gregory Bateson e Humberto R Maturana.

27

Por uma questão de técnica constitucional estabeleceu-se que, diante

da dificuldade que se colocaria em, cada vez que fossem necessárias

mudanças de ordem constitucional, se convocar a cidadania para que

expressamente se manifestasse, foi instituído o poder constituinte derivado ou

de reforma constitucional com a missão de, justamente, reformar a Constituição

via outorga do poder constituinte originário (por mandato representativo).

Deste modo, o poder constituído é poder limitado, secundário,

subordinado e condicionado à Constituição. O poder constituinte derivado retira

seu fundamento de validade (legitimidade) do poder constituinte originário, não

podendo em hipótese alguma, atuar em discordância com este.

Nos termos da própria Constituição estão expressos os limites a que o

Poder Constituinte de Reforma está sujeito, no exercício absolutamente

específico de suas funções, estabelecidos pelo Poder Constituinte Originário.

Em um regime democrático, a cidadania é a titular do poder constituinte

originário (aquela que encarna a idéia de direito em uma sociedade, em um

dado momento histórico), porém, o corpo de delegados (representantes) a que

esta outorgou via representação (mandato) a competência para reformar a

Constituição, figura como seu agente, o que eqüivale dizer que a cidadania

exerce poder constituinte secundário, quando da reforma constitucional.

28

Dito isto, não se confundem poder constituinte e poder constituído. O

poder de reforma constitucional encontra suas bases e contornos normativos

na própria Constituição, sendo por essa razão freqüentemente denominado

poder constituinte constituído16, poder constituinte derivado17, poder instituído18

ou, no entendimento de Pontes de Miranda, “um poder constituinte de segundo

grau”. Sendo assim, é dotado de características francamente antagônicas em

relação ao poder constituinte.

Em virtude dessa vinculação necessariamente presente, há estreitos

limites ao poder de reforma constitucional.

Nas palavras de Jameson: “Sempre que uma convenção constitucional,

convocada de modo usual, para fim específico previsto na constituição, se

atreve a ultrapassar os limites impostos pelo seu mandato, pelo costume, ou

pelos princípios da prudência política, e a praticar atos próprios do exercício e

uma discrição revolucionária, cessa de ser uma convenção constitucional e

torna-se, ab initio, aos olhos do direito, uma convenção revolucionária” 19. É o

poder constituído usurpando a função constituinte, fugindo à sua missão

reformadora.

16 Agesta, Luís Sâanchez in Lecciones de Derecho Político, p. 343. 17 Pelayo, Ramon Garcia, in Derecho Constitucional Comparado, p. 36. 18 Burdeau, Georges, in Traité de Science Politique, Librairie Gâenâerale de droit et de jurisprudence, 3 ed., vol. III, p. 203; "Manuel de Droit Constitutionnel”, Librairie Gâenâerale de droit et de jurisprudence, 22 ed., p.53. 19 Jameson, John Alexander, in “The Constitutional Convention: It’s History, Powers and Modes of Proceeding”, William S. Hein & Co, Inc, p.10.

29

Não há que se questionar, diante de uma primeira provocação, se o

poder constituinte estaria situado em posição hierarquicamente superior em

relação aos poderes constituídos. Na verdade, isso seria um verdadeiro

anacronismo. O poder constituinte originário não está acima ou abaixo na

relação com os poderes constituídos, pela simples razão de que ele é anterior

aos mesmos. É o poder constituinte originário que dá origem à Constituição e

esta então fornece os contornos, os limites e características dos poderes

constituídos. Portanto, ocupam registros temporais distintos, não havendo que

se falar em hierarquia entre eles.

Os perigos de uma abordagem tão simplificada, a colocar de um lado

poderes limitados e ilimitados, primários e secundários, como itens em um

quadro comparativo, são muitos, a começar o esvaziamento total da natureza

de um conceito tão inovador e revolucionário como é o conceito de poder

constituinte.

O conceito de poder constituinte encontra-se impregnado de elementos

inovadores embora não se tenha avançado muito na compreensão deste

fenômeno (principalmente no que se refere ao direito constitucional), de

maneira que a maior parte dos autores ainda se vale das idéias de Sieyés para

explicar e delimitar contornos de uma das temáticas de mais freqüentes

debates na área das ciências sociais, fundamentalmente quando se aborda a

teoria do direito.

30

Que se trata de fundar uma nova ordem jurídica, não há dúvida, talvez

esta seja a característica mais proclamada do poder constituinte, mas não se

pode deixar de lado que este é conceito que envolve também

alterações político-sociais que têm como motor um importante dado, relegado a

uma categoria inferior pela modernidade: a potência humana de fazer surgir do

nada, o absolutamente novo.

31

Capítulo Terceiro – O Poder Constituinte Sob Uma Perspectiva Pós-

Moderna

O poder constituinte originário não está sujeito a limites de qualquer

ordem, tão pouco encontra-se em potência, como o pretende a corrente

tradicional. Não fica em estado latente, aguardando ser provocado, trazido à

tona. É pleno, atual e imanente20. Lida com a criação humana, uma realidade

ainda inexplorada, em função da qual os homens estabelecem suas relações

políticas, sociais, particulares e modificam a realidade em que vivem, alteram

cenários, formas e mundos. Possibilita o surgimento do imprevisto, daquilo que

antes lá não estava. O poder constituinte expressa uma manifestação radical

da criatividade e por isso não se pode deixar de levar em conta a potência

humana que faz surgir não só uma nova ordem jurídica, mas o novo e

inesperado.

Por este motivo, o poder constituinte não pode ser entendido

simplificadamente, pelas ciências sociais, posto que envolve questões de

ordem política, social, jurídica e até mesmo psicológicas, elevando a um

patamar superior os ramos do conhecimento humano que não gozem do valor

de cientificidade, para arrepio dos modernos.

20 Baruch, Spinoza, in A Ética, Parte I, proposição XVIII, in Os Pensadores, Ed. Abril, 1979, pág.99. Spinoza concebeu em sua Ética, entre uma infinidade de outros conceitos, o confronto imanência X transcendência, o estar em potência e o ser atual.

32

É por esta razão que o estudo do poder constituinte e de alternativas

pós-modernas para a compreensão do referido fenômeno, deve partir,

necessariamente, de uma abordagem do que veio a ser o paradigma da

modernidade - suas propostas formuladas para a compreensão do mundo e

das coisas (perspectiva ontológica) e como encara os meios a serem utilizados

para se chegar ao saber (proposta epistemológica). Através da compreensão

do paradigma moderno pode-se perceber a questão da verdade absoluta,

atemporal, como seu objetivo final.

A ciência moderna busca, em última análise, esgotar o conhecimento

sobre todas as coisas. Essa verdade última, uma vez alcançada, seria

imutável, de modo que não haveria mais nada a se debater nem a se construir

a respeito de determinado assunto. Estariam esgotadas as possibilidades de se

criar algo novo. E aí localiza-se a zona de conflito entre a modernidade e o

poder constituinte sob uma óptica pós-moderna, objeto deste trabalho: o

paradigma moderno torna impossível a criação do novo, do inédito, e, por como

conseqüência imediata, inviabiliza a manifestação do poder constituinte.

Essa forma de conhecer, pautada na racionalidade lógica como única

forma válida de se conhecer, foi questionada ao longo do séc. XX diante das

distorções que se constatou terem sido produzidas ao cabo de três séculos de

domínio tranqüilo do paradigma moderno - degradação ambiental, crescimento

das desigualdades sociais, genocídios, a miséria crescente. E como ocorreu

ao longo de toda a história da humanidade, quando um conjunto de verdades

(um paradigma) começa a não mais corresponder às expectativas das

33

sociedades e não mais responder às questões que lhe são colocadas, ele

começa a entrar em declínio ao mesmo tempo em que outro paradigma

começa a emergir.

O paradigma emergente - ou pós-moderno - desmonta a idéia da

verdade absoluta, uma vez que admite a criação, a autopoiese. A razão como a

única forma de se apreender a realidade é destituída de sua importância

central. O indivíduo exaltado pela modernidade perde sua preponderância

sobre a coletividade.

É nesse ambiente em que o poder constituinte encontra suas bases

para uma inovadora formulação: a mudança paradigmática. Se a filosofia da

modernidade teve papel central na formulação reguladora a limitar as

possibilidades de criação coletiva do poder constituinte, é com calço na pós –

modernidade que a liberação de sua potência21 constitutiva torna-se-á possível.

Partindo dessa lógica, o poder constituinte pode ser encarado como

algo contínuo, não um processo sujeito a manifestações esporádicas que se

alterna entre estágios de expressão e latência, mas que cria a todo instante

algo novo. Essa criação é motivada pelos afetos coletivamente partilhados,

sem causas ou efeitos. É processo impulsionado coletivamente pela multidão22,

cooperativo.

21 Spinoza, Baruch, in A Ética, Parte I, proposição XXXIV, in Os Pensadores, Ed. Abril 1979, pág. 115. Conforme conceituado por Spinoza, potência é aquilo que é realizado, de fato e em ato, com eficácia real no plano do concreto e não no da possibilidade, da potencialidade, conforme a compreensão da tradição grega. 22 Conjunto de singularidades, é a heterogeneidade em oposição à uniformidade que as idéias de povo e nação pressupõe. Multidão é um sujeito coletivo onde o outro tem lugar (alteridade).

34

3.1. Considerações sobre os Afetos

Questão que foi posta de lado ao longo de considerável tempo pelo

pensamento ocidental, a abordagem da questão dos afetos que perpassa toda

a discussão acerca do paradigma moderno, é essencial para uma proposta de

reavaliação do poder constituinte de uma perspectiva pós-moderna.

A defesa intransigente da razão como único instrumento de

conhecimento válido orientou a teoria moderna contra tudo aquilo que poderia

"desvirtuar" o processo racional de conhecimento.

Afetos, na terminologia spinozana, compreende aquilo que causa no

ser humano a transição de uma perfeição menor para uma perfeição maior ou

de uma maior para uma menor. No primeiro caso há uma ação e, no segundo

caso, padecimento. Afetos de alegria causariam uma "variação positiva" na

perfeição de uma singularidade e as paixões tristes, uma "variação negativa"

na mesma.

No entendimento de Spinoza23 os afetos correspondem à “variação

positiva ou negativa da perfeição de uma singularidade”. Por isso, podem

causar tanto uma situação ativa, aumentando a perfeição, quanto passiva,

diminuindo a mesma (daí o termo paixão, de passividade).

23 Spinoza, Baruch, in A Ética, parte III (A origem e a Natureza dos Afetos), in Os Pensadores, Ed. Abril, 1979,pág. 178.

35

O modo equivocado com que a modernidade lidou com a questão dos

afetos explica a sua opção pelo termo paixão ao invés de afeto. "Paixão"

vincula-se ao termo grego pathos (vício, doença). A modernidade entendeu a

paixão como algo que desvirtuaria a virtude (ethos) do seu caminho, cabendo à

razão (logos) controlar os estados de ânimo para que a virtude prevalecesse.

As paixões inviabilizariam a vontade livre, exprimindo-se como

bestialidade. Os afetos deviam ser controlados para que se pudesse exercer a

vontade livre e o homem se emancipar. Seria preciso que os movimentos

irracionais ou afetivos do ser humano fossem controlados para o homem

alcançar o conhecimento verdadeiro24.

A vontade (desejo) passa a ser considerada como o que há de mais

primitivo e bestial na constituição humana, devendo, em função disso, ser

orientada pela razão. Entretanto, desejar não constitui movimento irracional,

mas simples forma de expressão daquilo que impulsiona qualquer ser à

constituição de novas realidades, realidades estas que até que se realizem

são tidas como impossíveis.

A repressão dos desejos em oposição à valorização de forma absoluta

da razão, significa limitar a criatividade, a possibilidade de criar o inédito.

Limita-se os desejos/afetos imaginando-se (de forma equivocada) que eles

levam o homem ao caos, à servidão.

24 Descartes, René, in "As paixões da alma", in Os Pensadores, Ed. Nova Cultural, São Paulo, 1999, p.231.

36

Ora, a servidão não resulta dos afetos, mas das paixões (no sentido de

passividade). Resulta de algumas delas sobre outras. Passividade significa ser

determinado a existir, desejar, pensar a partir das imagens exteriores que

operam como causas dos apetites e desejos.

“Entre seus vários efeitos, a servidão produz dois de grandes

conseqüências: do lado do indivíduo, coloca-o em contradição consigo mesmo,

levando-o a confundir exterior e interior, perdendo as suas referências e, justo

por isso, provocando sua própria destruição, como ocorre nos casos de ciúmes

e do suicídio; do lado da vida intersubjetiva, torna cada um contrário a todos os

outros, em luta contra todos os outros, temendo os outros, cada qual

imaginando satisfazer seu desejo com a destruição do outro, percebido como

obstáculo aos apetites e desejos de cada um e de todos os outros”25.

A razão foi transformada, ao longo do desenvolvimento da

modernidade, em faculdade repressiva ao invés de emancipadora,

contrapondo-se aos afetos.

Por esse motivo, deixou a razão de exercer sua missão emancipadora,

moralizando-se, limitando-se à repressão do que a ordem social e política não

permitia que se expressasse de forma livre.

25 Chauí, Marilena, in Paixão, ação e liberdade em Espinosa, texto publicado na Folha de São Paulo, caderno MAIS! , 22 de agosto de 2000.

37

Á razão caberia reconhecer o “bom” e o “justo”, evitando que o homem

se desvirtuasse26. A este respeito, Spinoza assevera: “não nos esforçamos por

fazer uma coisa que não queremos, não apetecemos nem desejamos qualquer

coisa porque a consideramos boa; mas, ao contrário, julgamos que uma coisa

é boa porque tendemos para ela, porque a queremos, a apetecemos e

desejamos”27.

A modernidade cartesiana elaborou uma compreensão das paixões

(afetos) que transformou a própria razão em instrumento regulatório.

Controlar os afetos não constitui meio de liberação e sim de regulação,

repressão. Fica inviabilizada qualquer forma de emancipação pela razão

(repressora).

A liberação que leva à expressão criativa não se dá apenas através da

razão, de certo, mas também pela vivência dos afetos de alegria que levem o

homem à ação.

Neste momento se estabelece a ponte para o poder constituinte, que

lida com o fenômeno da criação humana, do homem como ser criador e

modificador da realidade. Realidade intimamente relacionada à questão dos

afetos, portanto.

26 A virtude aproximaria o homem de Deus. A razão seria a faculdade humana que traduziria a semelhança entre o homem e Deus, sob a ótica da transcendência. 27 Ética, Parte III, Escólio da Preposição IX, in Os Pensadores, Ed. Abril, 1979, pág. 184.

38

A liberação da potência criativa constituinte não pode acontecer em um

ambiente de regulação, repressão. Ou seja, não há emancipação em meio à

regulação, seria uma contradição insuportável estar-se ao mesmo tempo

emancipado estando-se sujeito a um processo se regulação.

Disto segue que a discussão acerca das condições necessárias a este

movimento de liberação não passa por um novo projeto de Estado, como

poderia se pensar, mas por uma nova forma de democracia. Outros Estados ou

outras instituições, a ordem dos fatores não alteraria o produto final desta

matemática. A democracia que permitiria a liberação da potência constituinte é

uma democracia radicalmente diferente da informada pela modernidade (a

democracia liberal), uma democracia que contemple os interesses da

coletividade, segundo os cânones da cooperação, fornecendo as condições

mínimas para a plena expressão da potência liberatória do poder constituinte.

39

Capítulo Quarto - Considerações sobre a Democracia em Face a uma

Abordagem Pós-Moderna do Poder Constituinte

4.1. A Invenção Democrática e os Requisitos para uma Definição

Mínima de Democracia

Ao contrário do que se costuma afirmar, não foi o liberalismo que criou a

Democracia. Ela foi fruto das lutas das classes trabalhistas que, literalmente,

inventaram um direito.

Foram as classes trabalhistas as responsáveis pela criação do sufrágio

universal, dos direitos sociais, econômicos, políticos, culturais e trabalhistas.

Criaram o direito contra os abusos econômicos, o direito das mulheres, do

consumidor, das minorias, entre outros. A partir do momento em que as

coletividades antes excluídas, passam a ser “incluídas” (começam a participar

do processo decisório) a sua situação (e atuação), material e concreta, muda

inteiramente.

Para que se possa delinear os contornos mais básicos de toda forma de

democracia, fazem-se necessárias breves considerações acerca do ponto

nodal deste conceito: o conceito de cidadania. Como surge a figura do cidadão,

com que propósito e como este se caracteriza são alguns pontos a ser

analisados.

40

O Estado organiza o espaço em que vivemos através de suas

instituições (maquinário administrativo estatal). Ele constitui, obedece e

respeita (em tese) a cidadania e, portanto, ajuda a construir (pela

administração) a identidade de seu próprio povo.

É o Estado quem cria a idéia de “cidadão” para dar sustento a si próprio,

ele precisa transformar o território em pátria, a multidão em povo.

Para se legitimar, o Estado precisa de uma gente que se reconheça, que

perceba a si mesma a partir de uma representação. Disto segue que um povo é

constituído pelo Estado ao mesmo tempo que é seu constituinte - sem povo

não há Estado, sem Estado não há povo, há multidão.

Para uma definição mínima de democracia é essencial que alguns

requisitos estejam presentes, tais como a participação do maior número

possível dos membros de um grupo (cidadãos em sentido amplo, nacionais) na

tomada de decisões coletivas e a existência da regra da maioria como

modalidade de decisão (procedimento).

A participação de um número muito elevado dos membros de um grupo

(entendida como a maior participação possível dos interessados) dá margem

ao conceito de cidadania ativa (ou cidadania em sentido estrito), ou seja, a

possibilidade de o cidadão participar das decisões públicas. Isso se traduz no

princípio do reconhecimento dos direitos políticos (a faculdade de o cidadão

41

participar de plebiscito, referendum, de formar partidos políticos, ingressar e se

retirar deles, propor ação popular, entre outros).

Quanto maior o número de cidadãos ativos, mais democrático o

sistema28. Nas palavras de Bobbio, “uma sociedade na qual os que têm direito

de voto são os cidadãos masculinos maiores de idade é mais democrática do

que a aquela na qual votam apenas os proprietários e é menos democrática do

que aquela em que têm o direito de voto também as mulheres” 29.

A idéia de cidadania envolve atitudes negativas do Estado – dever deste

de abster-se de determinadas atitudes em prol da preservação de

determinados direitos do cidadão - o reconhecimento do cidadão e atitudes

positivas do Estado – direitos que devem ser garantidos ao cidadão através da

atuação do Estado (“prestações positivas”).

Esse conjunto de notas constitui a denominada cidadania plena

contemplada pela Constituição Federal de 1988 e que pode ser definida como

a expressão individual da soberania do povo (conceito que se traduz no

princípio da soberania popular).

Não obstante esses requisitos, o critério de maioria aliado ao maior

número de votantes (cidadania ativa) não garantem a existência da

democracia30. Ainda que a maioria tenha o poder de decisão, este não é poder

28 Atualmente cerca de 60 a 70% do povo vota, para o arrepio das oligarquias. 29 Bobbio, Norberto, in “O Futuro da Democracia”, p. 19. 30 Vide a situação da ilha de Cuba ou os anos de ditadura militar, no Brasil. Esses são exemplos de que ainda que o regime político esteja apoiado numa maioria circunstancial, o resultado produzido pode ser o oposto de uma democracia.

42

absoluto, pois do contrário, ter-se-ia uma ditadura de maioria. Ou seja, embora

o poder de decisão seja da maioria, é indispensável a presunção da existência

das minorias. A maioria governa por um determinado tempo, num determinado

momento. Toda maioria é eventual, isto sim é democrático: permitir que a

minoria de hoje seja a maioria de amanhã.

É por isso que nem mesmo a maioria pode tocar nos direitos

fundamentais à existência do próprio Estado, para isso existem mecanismos de

controle como o Supremo Tribunal Federal e as cláusulas pétreas (art. 60, §4o

da Constituição Federal de 88), no caso brasileiro.

Mesmo com a combinação de tais ingredientes para a formação de uma

democracia, ainda assim esta não seria uma receita completa. É indispensável,

ao processo democrático, que haja reais alternativas de escolha (pluralidade de

alternativas), o que se traduz no princípio do pluralismo político que, por sua

vez, se desdobra no princípio da livre associação e na consagração da

pluralidade de partidos políticos (além de todas as decisões constitucionais que

se referirem à pluralidade de opiniões existentes em uma sociedade).

Finalmente, o último requisito para uma democracia é que aqueles que

sejam chamados a fazer uma escolha, tenham, de fato, liberdade para fazê-lo,

o que se traduz no reconhecimento dos direitos fundamentais. Quanto mais

amplo, eficaz e efetivo o conceito de cidadania, maior será o universo das

liberdades garantidas ao cidadão (não só físicas, também o acesso às letras, à

43

informação, liberdade de expressão, entre outras formas de liberação da

potência de agir do homem).

À defesa da forma democrática, poder-se-ia opor o porquê de se

conservar uma democracia. A esse respeito, Bobbio observa que cultiva-se a

democracia porque esse “procedimento” (democrático) serve para permitir a

expansão de alguns valores civilizatórios que permitem que a sociedade se

distinga da horda, como o valor da tolerância, por exemplo. Além disso, só na

sociedade democrática pode haver revolução de valores uma vez que admite-

se o confronto de idéias, a pluralidade de pontos de vista. O conflito não é

apenas bem-vindo, é condição necessária à existência de uma democracia.

A conveniente adequação da teoria do poder constituinte concebida no

séc. XVIII aos contornos rígidos do paradigma moderno possibilitou que a

modernidade se apropriasse do mesmo, legitimando as formas de democracias

constitucionais ao longo do séc. XX. O manejo eficiente de um conceito que,

em seu pragmatismo e sectarismo, permite operar com a idéia de que só

mesmo em casos de graves crises institucionais se poderia subverter a ordem

jurídica, fundando-se uma outra (e apenas isso), encaixou-se como luva nos

modelos de democracia experimentados ao longo do séc. XX.

A democracia liberal traz em si a semente da exclusão, só existe

valendo-se desta. Este, entretanto, é conceito abolido dentro dessa nova

abordagem do poder constituinte, como foi dito, já que a regra aqui não pode

ser a exclusão senão a alteridade. Aquilo que é atual e pleno, não comporta

44

exclusão, não há nada situado fora do absoluto, posto que tudo nele está

contido.

No contexto da democracia liberal, o real pensado como um conjunto

de verdades hermeticamente fechado e acabado, revela uma intenção de

domínio. Aquilo que não permite criar, inovar, revolucionar, torna-se simples

de regular, controlar. Nessa perspectiva, o poder constituinte não poderia ser

visto de outra forma senão sob o olhar insuficiente e míope do direito, das

ciências sociais, como uma manifestação esporádica e eventual que

pretenderia apenas o fundar de uma nova ordem constitucional. Não poderia

ter sido diferente.

Ao pensar-se o real sob uma perspectiva da imanência31, opera-se

uma verdadeira revolução nos modelos de democracia até hoje concebidos.

Isso permite desmontar vários argumentos elitistas, conservadores,

reacionários, machistas ou feministas, enfim, confere mecanismos para a

liberdade. E a liberdade é o valor mais caro à democracia.

Liberdade é a mais ampla possibilidade de coordenar os meios

necessários à realização das felicidades pessoais. É coordenação consciente

quando os homens não são movidos pela paixão, pelos seus "quereres". A

idéia de liberdade não é só libertar as paixões, mas de conhecermos as nossas

paixões e ponderar quais as que nos impedem de continuarmos juntos (em

31 Aquilo que existe sempre em um dado objeto e é inseparável dele; que está contido em ou que provém de um ou mais seres, independentemente de ação exterior; é aquilo que participa ou a que um ser tende, ainda que por intervenção de outro ser. É o plano ou o registro de realidade no qual se inserem o ser humano e as demais coisas existentes e do qual os mesmos participam, sendo capazes de realizar intervenções ativas ou serem afetados pelo que é imanente.

45

sociedade) e quais as que aumentam a nossa potência, que nos fazem

crescer, que nos fazem nos caminhar para frente, evoluir.

A ausência de constrangimento é um fator importante, pelo menos em

relação ao conteúdo jurídico do conceito de liberdade. O fato de querermos as

mesmas coisas, espontaneamente, não garante a liberdade, por isso a

necessidade de uma instância legítima (um Estado), uma autoridade que

garanta a liberdade de todos. Para que as liberdades de cada um não se

choquem todo o tempo, para estabelecer limites às liberdades pelo menos na

sua dimensão externa (a liberdade interna, o pensar, o arbítrio, nisso o Estado

não pode interferir)32.

Uma nova abordagem do conceito de democracia, sob esse olhar

(imanência), permitiria a liberação da potência criativa constituinte e, em

conseqüência disto, uma transformação nas estruturas sociais que no limiar do

séc. XXI dão margem à dominação, opressão político-econômica e às mazelas

dos Estados-Nação hoje esvaziados de sentido cooperativo e humanitário.

De tudo o que foi dito a respeito do poder constituinte, enquanto

atividade liberatória, afirmativa e constitutiva da multidão, pode-se concluir que

a compreensão da potência constituinte enquanto um “condensamento”

pontual, em algum lugar no tempo e espaço, da capacidade de um povo dar-se

a si próprio uma nova constituição, não foi uma decisão inocente. Há uma

32A liberdade econômica absoluta, por exemplo, leva à opressão econômica.

46

intencionalidade, uma ideologia a embasar este tipo de entendimento. Tal

conclusão só é possível ao se expor a tensão que norteia o pensamento

moderno.

Falar em poder constituinte é falar em democracia, entretanto, este foi

transformado em poder extraordinário, comprimido num evento e encerrado

numa factualidade, somente revelada pelo direito. O poder constituinte foi

absorvido pela máquina da representação, ao ser seccionado em poder

constituinte originário e derivado, opondo-se um a outro. Foi desnaturado

objetivamente e, depois disso, subjetivamente dissecado. Absorvido pelo

conceito de nação, o poder constituinte parece manter alguns aspectos de

originalidade, mas trata-se de mera aparência, no fundo, foi sufocado nesse

conceito.

O seu conceito foi limitado na sua gênese, posto que submetido às

regras do sufrágio e no seu funcionamento, posto que submetido às regras

parlamentares (sem mencionar a limitação temporal).

Se a revigoração do conceito de poder constituinte é essencial para a

elaboração de uma democracia de fato benéfica à coletividade, é na

desconstrução da origem de seus vícios e malformações teóricas, que se deve

buscar as ferramentas para tanto.

47

Destrinchando o paradigma moderno, em suas diferentes feições,

revelar-se-á toda a intencionalidade de domínio e pragmatismo que rondam o

desvirtuamento do poder constituinte. Entendendo-se como opera a lógica

moderna, fica fácil entender porque o poder constituinte é hoje espremido nos

limitadores contornos de uma ou duas disciplinas acadêmicas, como

manifestação extraordinária e temporária que visa criar uma nova Constituição.

Conceber o poder constituinte como potência liberadora, implica em sepultar-

se de vez a modernidade - e com ela toda uma forma de se perceber o real há

séculos vigente no ocidente – e inaugurar-se, enfim, a pós-modernidade, com

novos valores e verdades.

O paradigma pós-moderno propõe uma compreensão complexa do

mundo, comportando os efeitos com várias causas e também o “acausado”, o

autônomo, na compreensão de um fenômeno. Qualquer análise, nesse sentido,

passa a impor a necessidade da interdisciplinariedade, o reconhecimento das

infinitas redes de interconexões que compõe o real. Somente assim respostas

científicas mais eficazes podem ser conferidas ás questões propostas para o

próximo século e o que resta deste, embora nunca seja demais lembrar que

não só a ciência permite ao homem encontrar as respostas para os seus

questionamentos. Outros saberes produzidos socialmente que não gozam de

cientificidade podem ajudar bastante neste sentido. Uma compreensão

complexa do mundo não pode deixar de admitir como verdadeira esta

afirmação.

48

A pós-modernidade põe de lado as linhas causais determinantes dos

fenômenos e desmonta a máxima da verdade absoluta, reconhecendo que as

respostas dadas aos questionamentos humanos apenas são adequadas em

determinado âmbito, revelando-se ineficazes em outros. Falar em progresso,

nesse paradigma emergente, é totalmente inadequado, portanto.

Dentro do paradigma pós-moderno não cabe ao homem apenas

descobrir qual cadeia causal causou certo fenômeno; admite-se a criação. O

homem pode criar a partir do nada, sem qualquer causa determinante. Pode

modificar a sua realidade, librando-se a criatividade de cada ser humano, de

cada comunidade.

Ao expor-se as vísceras da modernidade e toda a sua bagagem

cultural, resta claro que a redução mutilante do conceito de poder constituinte

tem como objetivo impossibilitar a criação, a inovação, a ambivalência. Manter-

se o real dentro de um formato em que tudo o que se manifesta pode ser

explicado e mantido sob controle, foi de grande validade e conveniência às

democracias liberais do séc. XX, mas agora mostra-se nocivo e ineficaz às

novas questões propostas no limiar do séc. XXI e a uma democracia que

pretenda contemplar os interesses da coletividade ao invés do individual.

A pós-modernidade desconstrói a razão como único meio de se

conhecer a realidade, reconhecendo que a estratégia de conhecimentos e de

criação não passa apenas pela razão, mas pela emoção. Reconhece que é

válido o desejo, a intuição e que esses são estopins que levam o homem a

49

criar algo radicalmente novo e eficaz para a realidade que o cerca

contingentemente.

As bases do pensamento moderno refletiram sobre a teoria do poder

constituinte todas essas características limitadoras, tendo em vista sua

formulação ter ocorrido no século XVIII. O constitucionalismo do séc. XX

estruturou a noção de poder constituinte aproveitando-se das contribuições de

Sieyés e agregando conhecimentos obtidos pela experiência do séc. XIX, daí a

facilidade com que esse conceito foi absorvido pelas democracias liberais. Mas

hoje, há que se revolucionar esse conceito para a superação de uma forma

velhaca e ineficaz de democracia. Se na modernidade havia a exaltação do

indivíduo, agora faz-se necessária a exaltação da coletividade (ressalvada a

importância daquele).

É preciso lembrar que esse processo de transição para a pós-

modernidade e reavaliação do poder constituinte não é impulsionado

individualmente, mas coletivamente. É a coletividade o sujeito; o conjunto de

singularidades (multidão) que cria o absolutamente novo, passando a existir de

uma maneira diferente. Trata-se de um processo de cooperação, tornando-se

impossível determinar quem o iniciou, a não ser que se considere a multidão

como sujeito.

É imprescindível para haver a liberação absoluta da potência

constitutiva, que se adote a igualdade como pressuposto. Não há como a

coletividade criar de forma absolutamente democrática sem condições

50

materiais igualitárias entre todas as singularidades. Uma nova compreensão de

democracia deve ser uma compreensão absoluta (Negri33), onde não há lugar

para a exclusão. Para tanto, é importante que se compreenda o poder

constituinte de maneira diferente do que até agora se observou, de forma

alternativa aos pressupostos da modernidade.

33 Negri, Antonio. O poder constituinte – Ensaio sobre as alternativas da modernidade, Ed. DP&A, Rio de Janeiro, 2002.

51

Conclusão

O que se pretendeu demonstrar com esse trabalho é a relação

necessariamente existente entre o pensamento hegemônico moderno e o

aprisionamento do conceito do poder constituinte dentro dos ditames dessa

forma de se conceber o real. De que forma se inviabiliza a efetiva democracia

relegando-a ao plano do “projeto democrático”, esvaziando-a de seu sentido

inicial, e o papel libertador do poder constituinte nesse processo.

A democracia só é possível se realizada em ato, em concreto, sem

promessas de realização futura de um projeto abstrato, que se efetivará após

um determinado tempo. Democracia não é finalidade, não é projeto, é uma

forma de viver, de construir uma comunidade. Se for pauta para uma realização

futura, não se trata de democracia. Se a democracia é o regime onde a

expansão da potência alcança seus graus mais elevados, só há democracia no

presente, atual, e não em projeto, utopia a se realizar de forma definitiva em

algum momento. É conceito radical de democracia.

O conceito de poder constituinte foi descrito com traços de

transcendência (modernidade) por boa parte da doutrina. O medo da liberação,

da afirmação de que o real é constante mutação realizada coletivamente por

um sujeito que ordena a si mesmo e que se produz, impulsionou o pensamento

constitucionalista. Através de tantas operações constitucionalistas, nada resta

do poder constituinte. Submeteu-se o poder constituinte ao Estado, à

representação.

52

Poder constituinte é movimento, é democracia, desejo de liberação.

Prática é movimento instaurado pelos corpos, um registro necessariamente

corporal. Negri recusa a idéia de qualquer superioridade das idéias sobre os

corpos, assim como Spinoza, ao afirmar que “a ordem e a conexão das idéias é

a mesma que a ordem e a conexão das coisas34”. Em suma, a dimensão

necessariamente prática e aberta do poder constituinte (múltipla) rejeita

qualquer possibilidade de regulação transcendente, do Estado ou de quem

quer que seja. O poder constituinte afronta todas as estruturas postas de

poder.

O poder constituinte é multiplicidade, pensá-lo é admitir a possibilidade

da liberdade somente por intermédio da contínua implementação da igualdade,

na medida em que a liberdade não é produto final da ação da multidão, mas se

indica pelo próprio movimento de superação da desigualdade, um processo

ininterrupto de liberação coletiva e individual. Esse é o ponto principal deste

trabalho, a demonstração de que dentro do modelo excludente delineado pelo

ideário da modernidade, não é possível qualquer forma de liberdade genuína.

Ao desaprender tudo que se conhece a respeito do poder constituinte,

pela óptica do direito, da filosofia, ou de qualquer que seja a disciplina

acadêmica isolada, o homem estará chegando perto, quem sabe, de vislumbrar

a beleza e complexidade da manifestação criativa que o constitui. Ao perceber-

se do que de fato se trata este poderoso conceito, uma nova forma de

democracia será possível

34 A Ética, Parte II, proposição VII, in Os Pensadores, Ed. Abril, 1979, pág. 141.

53

É preciso que se abandone, ainda, o registro da transcendência e se

volte para a imanência, para que se possa pensar o conceito de poder

constituinte como o que realmente é: a prática ininterrupta de liberação por

parte da multidão de singularidades.

É no processo instaurado pela multidão através da expressão do poder

constituinte, que se define a democracia absoluta, na qual a produção

ontológica é inerente a ela mesma e onde a participação das subjetividades se

dá diretamente, sem mediações, pois o que há é um puro plano de imanência.

Ontologia e democracia andam juntas uma vez que ontologia é um

desenvolvimento da democracia e, democracia, uma linha de conduta, uma

prática de ontologia.

Essa mudança de perspectiva, o abandono da transcendência como

viga mestra da organização do real é uma missão de todos, e deve “vir ao

mundo” de uma só vez. A transformação não se opera em departamentos

acadêmicos, por intermédio de um governo, políticas institucionais diversas ou

qualquer sorte de mediação, mas através de uma mudança de perspectiva

necessariamente compartilhada pela multidão, de forma igualitária e absoluta.

Spinoza escreve, em seu “Tratado Político” que “O homem é livre na

exata medida em que tem o poder para existir e agir segundo as leis da

natureza humana (…), a liberdade não se confunde com a contingência. E,

porque a liberdade é uma virtude ou perfeição, tudo quanto no homem decorre

da impotência não deve ser imputado à liberdade. Assim, quando

54

considerarmos um homem como livre, não podemos dizer que o é porque pode

deixar de pensar ou porque possa preferir um mal a um bem (…). Portanto

aquele que existe e age por uma necessidade de sua própria natureza, age

livremente (…). A liberdade não tira a necessidade de agir, mas a põe”35.

Essas palavras indicam pelo menos duas rupturas com a tradição

moral: em primeiro lugar, a liberdade não se confunde com um poder voluntário

para se escolher entre possíveis (“posso preferir isso à aquilo, tenho livre

arbítrio”); em segundo, se a impotência não pode ter a potência da liberdade

como causa, então não podemos atribuir a esta o “pecado original” ou a culpa

originária do homem.

Em resumo, a liberdade que se pretende através de uma democracia

não se opera pontualmente, de forma fragmentária, mas de uma ação

necessariamente compartilhada. Em oposição às concepções do poder

constituinte desenhadas pelo constitucionalismo, conclui-se que a potência

liberatória constituinte só alcançará graus mais amplos ao desconstruir-se os

pilares do projeto hegemônico moderno, colocando-se outro em seu lugar.

Trata-se de um novo e revolucionário projeto que permita a liberdade,

tida esta como o reconhecer-se a si próprio, cada parte do todo, como forma

eficiente interna dos desejos e idéias, afastando a miragem ilusória de uma

vontade que escolhe entre fins possíveis ou segundo causas externas.

35 Spinoza, Baruch, in Tratado Político, in Os Pensadores, Ed. Abril, 1975, São Paulo, págs. 310-312.

55

Marilena Chauí define que só se é livre “quando se é causa adequada

do que se passa em nós e quando, fortes de corpo e de alma, se é capaz da

multiplicidade simultânea, isto é, de um corpo capaz de ser afetado e afetar

outros corpos de inúmeras maneiras simultâneas e de uma alma capaz de

pensar inúmeras idéias e sentir inúmeros afetos simultâneos. Ao

reconhecermos que somos uma atividade plena e, como tal, não somos

apenas mera parte do todo, mas tomamos parte ou participamos de sua

atividade infinita, aí está a felicidade suprema”36.

36 Chauí, Marilena, in Paixão, ação e liberdade em Espinosa, texto pulbicado na Folha de São Paulo, caderno MAIS! , 22 de agosto de 2000

56

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