Crítica da razão comunicativa

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    Sumrio

    1. Razo. 2. Crise da razo. 3. Giro lingsti-co. 4. Ao comunicativa. 5. Dominao comu-nicativa. 6. Direito. 7. guisa de concluso.

    1. Razo

    A razo humana como elemento dis-tintivo entre o ser humano e os demaisanimais certamente um dos pressupostosmais importantes da filosofia. a razo queorienta adequadamente as aes humanase possibilita ao ser humano a aquisio deconhecimento.

    Por vrios sculos, a razo filosficafoi concebida a partir de um paradigmarepresentacionalista, no qual um sujeitodo conhecimento criava representaesmentais de seu objeto de estudo.

    A filosofia antiga e medieval tinha comoobjetos primordiais a busca da essncia dascoisas e a descrio de relaes de causae efeito. A razo era um instrumento dedescrio da realidade.

    Descartes (1996) foi o primeiro filsofomoderno a questionar os limites da razohumana.

    Assim, porque os nossos sentidos svezes nos enganam, quis supor que

    no havia coisa alguma que fosse talcomo eles nos levam a imaginar. Eporque h homens que se enganamao raciocinar, mesmo sobre os mais

    Crtica da razo comunicativa

    O direito entre o consenso e o conflito

    Tlio Lima Vianna

    Tlio Lima Vianna Professor Adjunto da

    PUC Minas. Doutor em Direito pela Universi-dade Federal do Paran (UFPR) e Mestre emDireito pela Universidade Federal de MinasGerais (UFMG).

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    simples temas de geometria, e nelescometem paralogismos, julgandoque eu era to sujeito ao erro quantoqualquer outro, rejeitei como falsas

    todas as razes que antes tomaracomo demonstraes. E, finalmente,considerando que todos os pensa-mentos que temos quando acordadostambm nos podem ocorrer quandodormimos, sem que nenhum sejaento verdadeiro, resolvi fingir quetodas as coisas que haviam entra-do em meu esprito no eram maisverdadeiras que as iluses de meus

    sonhos. Mas logo depois atentei que,enquanto queria pensar assim quetudo era falso, era necessariamentepreciso que eu, que o pensava, fossealguma coisa. E, notando que estaverdade penso, logo existo era tofirme e to certa que todas as mais ex-travagantes suposies dos cpticosno eram capazes de a abalar, julgueique podia admiti-la sem escrpulo

    como o primeiro princpio da filosofiaque buscava.(DESCARTES, 1996,p. 37-38).

    Ao se indagar sobre as possibilidadesde certeza da razo humana, Descartesdeslocou a dvida filosfica do objeto parao prprio sujeito do conhecimento. O cogito,ergo sum [penso, logo existo] o fundamen-to de uma nova filosofia que questionano somente a essncia das coisas, mas

    principalmente as possibilidades de a razohumana conhecer tais coisas.Kant afirmou a impossibilidade do su-

    jeito de conhecer a essncia das coisas. Paraele a estrutura da razo inata e, portanto,no influenciada pela experincia, masos contedos conhecidos e pensados pelarazo so obtidos pela experincia.

    Assim, para Kant a razo constitudapor trs estruturas: a estrutura da percep-

    o sensorial, a estrutura do entendimentoe a estrutura da razo propriamente dita.A estrutura da percepo sensorial nos

    permite perceber as coisas no espao (fi-

    gura, dimenses e grandeza) e no tempo.Espao e tempo so formas apriorsticas dasensibilidade que existem em nossa razoantes da experincia e sem experincia.

    A estrutura do entendimento organizaas percepes (contedos empricos) pormeio de elementos apriorsticos chamadoscategorias.

    As categorias organizam os dadosda experincia segundo a qualidade,a quantidade, a causalidade, a finali-dade, a verdade, a falsidade, a univer-salidade, a particularidade. Assim,longe de a causalidade, a qualidade

    e a quantidade serem resultados dehbitos psicolgicos associativos, elasso os instrumentos racionais comos quais o sujeito do conhecimentoorganiza a realidade e a conhece. Ascategorias, estruturas vazias, so asmesmas em toda poca e em todolugar, para todos os seres racionais.(CHAUI, 2000, p. 79).

    A estrutura da razo propriamente dita,

    por fim, tem a funo de regular e controlara sensibilidade e o entendimento.V-se, pois, que para Kant (apud

    CHAUI, 2000) a razo jamais conhecer arealidade como ela em si mesma, mas,sim, o contedo emprico que recebeu asformas e as categorias do sujeito do co-nhecimento. A razo kantiana , pois, umarazo subjetiva.

    Kant afirma que a realidade que

    conhecemos filosoficamente e cienti-ficamente no a realidade em si dascoisas, mas a realidade tal como es-truturada por nossa razo, tal como organizada, explicada e interpretadapelas estruturas a priori do sujeito doconhecimento. A realidade so nossasidias verdadeiras e o kantismo umidealismo. (CHAUI, 2000, p. 104).

    Kant chamou essa realidade que conhe-

    cemos filosoficamente e cientificamente defenmeno e a realidade em si das coisas denmeno. Ao negar a possibilidade de a razohumana conhecer o nmeno (que s seria

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    acessvel por um hipottico pensamentopuro), Kant colocou em xeque a metafsicaclssica que pretendia descrever a essnciados entes. Eis aqui o giro do pensamento

    kantiano: a filosofia deixa de ocupar-seprioritariamente em definir o que a rea-lidade? e passa a dedicar-se ao estudo decomo podemos conhecer a realidade?.O centro da dvida filosfica deixa de sera realidade objetiva (o objeto do conheci-mento) e passa a ser a razo (o sujeito doconhecimento).

    A razo, como objeto central da filosofiakantiana, passa a ser estudada ento sob

    dois aspectos: razo pura (terica) e razoprtica.A diferena entre razo terica e pr-tica encontra-se em seus objetos. A ra-zo terica ou especulativa tem comomatria ou contedo a realidadeexterior a ns, um sistema de objetosque opera segundo leis necessriasde causa e efeito, independentes denossa inveno; a razo prtica no

    contempla uma causalidade exter-na necessria, mas cria sua prpriarealidade, na qual se exerce. Essadiferena decorre da distino entrenecessidade e finalidade/liberdade.(CHAUI, 2000, p. 345).

    Enquanto a razo pura ocupa-se da des-crio da natureza em suas relaes de cau-sa e efeito (Fsica, Qumica, Biologia, etc.),a razo prtica no se ocupa de uma mera

    descrio de relaes de causa e efeito, masda criao de normas de comportamento.Kant indaga-se sobre qual seria a lei mo-

    ral que deveria reger a vida em sociedadee chega concluso de que o dever umaforma que deve valer para toda e qualquerao moral. Para ele essa forma no seriameramente indicativa, mas imperativa,pois ordena incondicionalmente. Kant(apud CHAUI, 2000) denominou esse dever

    imperativo categrico.O imperativo categrico exprime-senuma frmula geral: age em confor-midade apenas com a mxima que

    possas querer que se torne uma leiuniversal. Em outras palavras, o atomoral aquele que se realiza comoacordo entre a vontade e as leis

    universais que ela d a si mesma.(CHAUI, 2000, p. 346).O imperativo categrico o fundamento

    da razo prtica kantiana e enuncia noum contedo particular de uma ao, masa forma geral das aes morais. uma nor-ma vlida para um sujeito transcendental,independentemente das circunstncias detempo e lugar.

    Hegel afastou a idia de uma razo

    prtica transcendente e postulou uma razodialtica fruto de um processo histrico noqual teses so opostas a antteses, origi-nando snteses. Para Hegel (apud CHAUI,2000), alm da vontade individual subjetiva(a razo prtica kantiana), h ainda umavontade objetiva, inscrita nas instituiesou na cultura. A vida tica seria ento asntese entre a vontade subjetiva individuale a vontade objetiva cultural.

    O imperativo categrico no poderser uma forma universal desprovidade contedo determinado, como afir-ma Kant, mas ter, em cada poca, emcada sociedade e para cada cultura,contedos determinados, vlidosapenas para aquela formao histri-ca e cultural. Assim cada sociedade,em cada poca de sua Histria, defineos valores positivos e negativos, os

    atos permitidos e proibidos para seusmembros, o contedo dos deveres edo imperativo moral. Ser tico e livreser, portanto, pr-se de acordo comas regras morais de nossa sociedade.(CHAUI, 2000, p. 347-348).

    No idealismo espiritualista hegeliano,a Histria movida pela fora da Idia, doEsprito, da Conscincia. Marx, opondo-se aesse idealismo, procura construir uma dia-

    ltica materialista que exprima as relaessociais de produo econmica.A produo das idias, das repre-sentaes e da conscincia est, a

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    princpio, direta e intimamente ligada atividade material e ao comrciomaterial dos homens; ela a lingua-gem da vida real. As representaes,

    o pensamento, o comrcio intelectualdos homens aparecem aqui aindacomo a emanao direta de seucomportamento material. O mesmoacontece com a produo intelectualtal como se apresenta na linguagemda poltica, na das leis, da moral, dareligio, da metafsica etc. de todo opovo. So os homens que produzemsuas representaes, suas idias etc.,

    mas os homens reais, atuantes, taiscomo so condicionados por umdeterminado desenvolvimento desuas foras produtivas e das relaesque a elas correspondem, inclusive asmais amplas formas que estas podemtomar. A conscincia nunca pode sermais que o ser consciente; e o ser doshomens o seu processo de vida real.

    (MARX, ENGELS, 1998, p. 18-19).

    O materialismo histrico inverte a teoriahegeliana de que a conscincia determinao ser social do homem: o ser social dohomem que determina a sua conscincia(ABBAGNANO, 2000, p. 652). A razohumana condicionada pelas relaeseconmicas, sendo, portanto, produto daluta de classes.

    A Histria no um progressolinear e contnuo, uma seqncia de

    causas e efeitos, mas um processo detransformaes sociais determinadaspelas contradies entre os meios deproduo (a forma da propriedade) eas foras produtivas (o trabalho, seusinstrumentos, as tcnicas). A luta declasses exprime tais contradies e o motor da Histria. Por afirmar queo processo histrico movido porcontradies sociais, o materialismo

    histrico dialtico. (CHAUI, 2000,p. 415).Marx (2003) rompe com uma filosofia

    meramente descritiva da realidade. O ho-

    mem produto de seu tempo e a filosofiano mero instrumento de descrio darealidade, mas de criao de uma novarealidade.

    Os seres humanos, escrevem Marxe Engels, distinguem-se dos animaisno porque sejam dotados de cons-cincia animais racionais , nemporque sejam naturalmente sociveise polticos animais polticos , masporque so capazes de produzir ascondies de sua existncia materiale intelectual. Os seres humanos soprodutores: so o que produzem e

    so como produzem. A produodas condies materiais e intelectu-ais da existncia no so escolhidaslivremente pelos seres humanos, masesto dadas objetivamente, indepen-dentemente de nossa vontade. Eis porque Marx diz que os homens fazemsua prpria Histria, mas no a fazemem condies escolhidas por eles. Sohistoricamente determinados pelas

    condies em que produzem suasvidas. (CHAUI, 2000, p. 412).Marx (2003) afasta a razo da posio

    central da filosofia e a substitui por umanova categoria: o trabalho. O homem, comsua razo, no cria meras representaesda realidade, mas produz sua prpria rea-lidade com seu trabalho.

    Pressupomos o trabalho sob formaexclusivamente humana. Uma ara-

    nha executa operaes semelhantess do tecelo, e a abelha supera maisde um arquiteto ao construir suacolmia. Mas o que distingue o piorarquiteto da melhor abelha que elefigura na mente sua construo antesde transform-la em realidade. Nofim do processo do trabalho, apareceum resultado que j existia antes ide-almente na imaginao do trabalha-

    dor. (MARX, 2003, p. 211-212).A cooperao social de diversos indiv-duos com as mesmas finalidades de pro-duo caracteriza o trabalho socialmente

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    organizado, que a forma especfica pelaqual os homens, de forma diversa dos ani-mais, reproduzem suas vidas. O produtodesse trabalho social repartido por meio

    de regras de distribuio, que variam deacordo com o tempo e o espao, como, porexemplo, os modos de produo escravo-crata, feudal e capitalista. A essncia huma-na no seria ento algo abstrato, imanenteao indivduo, mas um conjunto de relaessociais (HABERMAS, 1990a, p. 113-114).

    2. Crise da razo

    A longa tradio filosfica desde osantigos gregos, passando por Descartes,Kant, Hegel e Marx, concebeu a razo comouma faculdade caracterizada pelo poder dediscernimento entre o verdadeiro e o falso,ou o bem e o mal. A soberba da cincia e datica racionalista encontrou em Nietzscheo seu mais implacvel crtico.

    Nietzsche (2001) questionou a razocientfica como instrumento infalvel de

    determinao do que verdadeiro ou falso.A razo cientfica no seria um instrumentode identificao da verdade, mas de criaoda verdade.

    Somente enquanto criadores! Eisalgo que me exigiu e sempre continuaa exigir um grande esforo: compre-ender que importa muito mais comoas coisas se chamam do que aquiloque so. A reputao, o nome e a apa-

    rncia, o peso e a medida habituais deuma coisa, o modo como vista qua-se sempre uma arbitrariedade e umerro em sua origem, jogados sobre ascoisas como uma roupagem totalmen-te estranha sua natureza e mesmo sua pele , mediante crena que aspessoas neles tiveram, incrementadade gerao em gerao, gradualmentee enraizaram e encravaram na coisa,

    por assim dizer, tornando-se o seuprprio corpo: a aparncia inicial ter-mina quase sempre por tornar-se es-sncia e atua como essncia! Que tolo

    acharia que basta apontar essa origeme esse nebuloso manto de iluso paradestruir o mundo tido por essencial,a chamada realidade? Somente en-

    quanto criadores podemos destruir! Mas no esqueamos tambm isto:basta criar novos nomes, avaliaes eprobabilidades para, a longo prazo,criar novas coisas. (NIETZSCHE,2001, p. 96).

    A verdade, segundo Nietzsche (1992,2001), no uma simples relao de con-formidade de um enunciado com os fatosou a realidade. A verdade criada pelo ser

    humano, a partir de uma cincia reducio-nista, que se revela til aos interesses deindivduos, grupos ou, eventualmente, dahumanidade. o ser humano que define oque ser considerado verdadeiro ou falso.

    De forma anloga, tambm a moral uma criao humana e no uma descobertada razo. Nietszche (1992, 2001) consideraque a moral racionalista foi inventada pelosfracos para controlar e dominar os fortes,

    reprimindo-lhes seus desejos e seus instin-tos naturais e transformando-os em vcio,falta e culpa. (CHAUI, 2000, p. 352-353)

    No existem fenmenos morais,apenas uma interpretao moral dosfenmenos... (NIETZSCHE, 1992,p. 73).

    O pensamento de Nietszche foi retoma-do no sculo XX por Foucault, que o tomoucomo marco terico de sua genealogia do

    poder. Tal como Marx, Foucault uma dasgrandes referncias do pensamento polticode esquerda, mas suas bases epistemol-gicas so bem distintas do materialismohistrico.

    Marx criticou Hegel e o idealismo ale-mo, mas fundou seu pensamento na razodialtica e na confiana de que o homempoderia se emancipar por meio do trabalhoe da luta de classes. O grande obstculo a

    ser superado, na filosofia marxista, o po-der econmico que uma classe dominanteexerce sobre uma classe dominada. Esse po-der materializado pelo Estado burgus.

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    Foucault, em contrapartida, renunciou crena em uma razo emancipatria. Acriao do conhecimento humano, segundoele, est sujeita inevitavelmente influn-

    cia de micropoderes em sua formao, e acincia e a moral so frutos dessas relaesde saber poder. Foucault reconhece aextrema relevncia do poder econmico,mas ao lado dele nota a existncia de mi-cropoderes em todas as relaes sociais, nasquais h sempre elementos de dominaoe resistncia: homem mulher, pai filho,nacional estrangeiro, branco negro, etc.Ainda que houvesse a completa superao

    das desigualdades sociais, persistiriamesses micropoderes inerentes s relaeshumanas.

    Marx sustenta a existncia de uma razoemancipatria, tanto que ope verdadeuma noo pejorativa de ideologia. ParaFoucault (2003a), toda verdade invenodo ser humano e, portanto, ideolgica.

    As condies polticas, econmicasde existncia no so um vu ou um

    obstculo para o sujeito do conheci-mento, mas aquilo atravs do que seformam os sujeitos de conhecimentoe, por conseguinte, as relaes deverdade. S pode haver certos tiposde sujeito de conhecimento, certasordens de verdade, certos dom-nios de saber a partir de condiespolticas que so o solo em que seformam o sujeito, os domnios de

    saber e as relaes com a verdade. Sse desembaraando destes grandestemas do sujeito de conhecimento, aomesmo tempo originrio e absoluto,utilizando eventualmente o modelonietzscheano, poderemos fazer umahistria da verdade. (FOUCAULT,2003a, p. 27).

    As diferenas epistemolgicas entre asfilosofias de Marx e Foucault, no entanto,

    longe de conduzi-los a pensamentos an-tagnicos, apresentam-se como comple-mentares. Marx acredita em uma razohistrica que conduzir inevitavelmente

    sociedade sem classes. A ideologia seriauma falsa percepo dos observadores quedificultaria a viso dessa realidade. Fou-cault no cr nessa razo emancipatria,

    mas em diversas racionalidades tomadassegundo interesses polticos. No h umarealidade a ser contraposta a uma ideolo-gia. Todo pensamento ideolgico; todaverdade poltica. Ambos, no entanto, tmcomo centro de suas pesquisas as relaesde poder: o macropoder econmico emMarx e os micropoderes em Foucault. oestudo crtico dessas relaes de poder edominao que os mantm fundamental-

    mente unidos, no obstante seus diferentesparadigmas epistemolgicos comuns a suasrespectivas pocas.

    3. Giro lingstico

    Herdeiro da tradio filosfica hege-liana, Habermas considera as filosofias deNietzsche e Foucault niilistas, mas reco-nhece a impossibilidade de fundamentar a

    defesa da razo humana em um paradigmarepresentacionalista sujeito-objeto.Prope ento uma reconstruo do

    materialismo histrico, com novas basesepistemolgicas, que substituiria o paradig-ma do sujeito objeto pelo paradigma dosujeito sujeito. A realidade seria concebi-da, ento, como uma construo intersub-

    jetiva de uma razo comunicativa. O girolingstico (linguistic turn) da filosofia

    habermasiana substitui a centralidade dotrabalho da teoria marxista por um novofundamento: a linguagem.

    Habermas (1990a) afirma que o trabalhosocial anterior ao surgimento da espciehumana, buscando assim desconstruir omaterialismo histrico e fundamentar an-tropologicamente sua teoria.

    No s os homens, mas j os ho-mnidas se distinguem dos macacos

    antropides pelo fato de se orienta-rem para a reproduo atravs dotrabalho social e de construrem umaeconomia. Os homnidas adultos for-

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    mam hordas dedicadas caa que: a)dispem de armas e de instrumentos(tcnica); b) cooperam segundo umacerta diviso do trabalho (organi-

    zao cooperativa); e c) repartema presa no interior da coletividade(regras de distribuio). A fabricaode meios de produo e a organizaosocial tanto do trabalho quanto dadistribuio dos produtos do traba-lho satisfazem as condies de umaforma econmica de reproduo davida. (HABERMAS, 1990a, p. 115).

    A diviso social do trabalho pressu-

    pe uma mnima comunicao entre ostrabalhadores, seja por gestos ou sinaisde advertncia. Habermas chama essesprimitivos mtodos de comunicao deprotolinguagem, mas no a diferenciaexpressamente da linguagem.

    Habermas procura visivelmente privile-giar a categoria da linguagem em detrimen-to do trabalho, mas no consegue explicarconvincentemente porque os homnidas,

    que no so suficientemente evoludospara se expressarem por uma linguagempropriamente dita, j realizam trabalho eno um mero prototrabalho.

    Habermas (1990a) admite, no entanto,que trabalho e linguagem so anteriores aosurgimento da espcie humana.

    Podemos assumir que somente nasestruturas de trabalho e linguagemcomplementaram-se os desenvol-

    vimentos que levaram forma dereproduo da vida especificamentehumana e, com isso, condio queserve como ponto de partida da evo-luo social. Trabalho e linguagemso anteriores ao homem e socieda-de. (HABERMAS, 1990a, p. 118).

    Ainda que ambas as categorias sejamanteriores ao aparecimento do Homo sa-piens, Habermas (1990a) postula a lingua-

    gem como o pressuposto do surgimento danossa espcie.Podemos falar de reproduo davida humana, a que se chegou o

    homo sapiens, somente quando a eco-nomia de caa complementada poruma estrutura social familiar. Esseprocesso durou muitos milhes de

    anos; ele equivale a uma substitui-o, de nenhum modo insignificante,do sistema animal de status que

    j entre os macacos antropides sefunda em interaes mediatizadassimbolicamente (no sentido de G. H.Mead) por um sistema de normassociais que pressupe a linguagem.(HABERMAS, 1990a, p. 116-117).

    A linguagem permite a formao de

    consensos quanto aos papis sociais quecada indivduo representa na sociedade. com base nesse reconhecimento inter-subjetivo que surge a estrutura familiarque ser a base da estruturao de normasde comportamento. a moralizao dosmotivos de ao.

    O surgimento da linguagem permite aconsolidao de normas sociais de compor-tamento. O poder que antes era exercido

    pelo respeito imposto pela possibilidade desano passa a ser exercido por um statusadquirido pelo indivduo na sociedade pormeio do consenso.

    Os pressupostos antropolgicos de Ha-bermas, no entanto, no passam de supo-sies impossveis de serem comprovadasno estgio atual da cincia.

    O que se sabe sobre os homnidas,ou os Australopithecus, so conclu-

    ses referentes to-somente quelesdos registros fsseis, que revelampouca coisa acerca do comportamen-to e quase nada sobre a vida gregriadestas criaturas para saber sobreessas coisas, seria necessrio haverregistros arqueolgicos; e estes noexistem. De acordo com o paleoan-troplogo Richard Leakey, o inciodo registro arqueolgico s passa

    a ocorrer, na histria evolutiva, huns 2,5 milhes de anos, perodoque coincide com o surgimento dognero Homo: anterior a isso, no h

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    registro arqueolgico; portanto, no possvel conjecturar qualquer idiasobre aspectos comportamentais esociais das criaturas pr-humanas.

    (BONFIM, 2002, p. 14).A tentativa de Habermas de fundamen-tar antropologicamente sua teoria da aocomunicativa baseia-se em conjecturas. Acincia pode at ser capaz de responder clssica indagao: quem nasceu primeiro:o ovo ou a galinha?, mas, em seu atualestgio, no pode solucionar a dvida ha-bermasiana: quem integrou os homens emsociedade: o trabalho ou a linguagem?.

    Diante desse impasse cientfico, Ha-bermas postula que o pressuposto da in-tegrao social humana no o trabalho,mas a linguagem e a partir da procurafundamentar filosoficamente sua teoria,at ento impossvel de ser coerentementefundada em bases antropolgicas.

    4. Ao comunicativa

    A ao humana um ato de vontade.No de uma vontade passiva (um desejo),mas de uma vontade ativa (um querer). Odesejo de ganhar na loteria s se torna umquerer com a ao de apostar. As aes soexpresses da vontade humana.

    Toda vontade humana voltada a umfim. No se pode conceber uma vontadesem finalidade. Quem tem vontade temvontade de algo e esse algo a finalidade da

    ao humana. Por ser impossvel cogitar emuma ao sem vontade e em uma vontadesem finalidade, conclui-se que toda aohumana visa sempre a uma finalidade.(ZAFFARONI, 2002, p. 414).

    Habermas distingue, com base nasfinalidades das aes, duas categoriasfundamentais: a ao comunicativa e a aoestratgica.

    A base dessa dicotomia a idia de que

    a finalidade primria de toda comunicao alcanar um consenso entre os interlocu-tores sobre o significado do que dito. Sealgum grita fogo!, fundamental que

    haja um mnimo consenso sobre o signi-ficado da palavra fogo para que a fraseseja inteligvel e possa despertar reaes.Ainda que essa frase possa ter a finalida-

    de de alertar quanto existncia de umincndio e conseqentemente vontadede que todos fujam do recinto, para queessa finalidade ltima seja alcanada, im-prescindvel que os interlocutores entremem um consenso quanto ao significado doenunciado fogo.

    Haveria assim uma finalidade de con-senso inerente a todo discurso. Habermas(1990b) postula ento que, em determi-

    nadas circunstncias, poder-se-ia cogitarem um discurso cuja nica finalidade dosinterlocutores seria a busca desse enten-dimento.

    Como todo agir, tambm o agir co-municativo uma atividade que visaum fim. Porm, aqui se interrompe ateleologia dos planos individuais deao e das operaes realizadoras,atravs do mecanismo de entendi-

    mento, que o coordenador da ao.O engate comunicativo atravsde atos ilocucionrios realizadossem nenhuma reserva submete asorientaes e o desenrolar das aes talhadas inicialmente de modoegocntrico, conforme o respectivoator s limitaes estruturais deuma linguagem compartilhada in-tersubjetivamente. (HABERMAS,

    1990b, p. 130).A ao comunicativa tem como nicafinalidade alcanar um consenso entre osinterlocutores. Quando uma me apontapara si prpria e fala com seu filho recm-nascido mame, sua nica finalidade alcanar um consenso com o beb de que apalavra mame doravante ser utilizadapara referncias a ela.

    Para que se possa cogitar em uma ao

    comunicativa, necessrio que as aessatisfaam a condies de entendimentoe cooperao prprias dessa modalidadede ao:

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    a) os atores participantes compor-tam-se cooperativamente e tentamcolocar seus planos (no horizonte deum mundo da vida compartilhado)

    em sintonia uns com os outros nabase de interpretaes comuns dasituao;b) os atores envolvidos esto dispos-tos a atingir os objetivos mediatosda definio comum da situao eda coordenao da ao assumindoos papis de falantes e ouvintes emprocessos de entendimento, portanto,pelo caminho da busca sincera ou

    sem reservas de fins ilocucionrios.(HABERMAS, 1990b, p. 129).A cooperao com a finalidade de se

    alcanar o entendimento mtuo inerente ao comunicativa. Descarta-se, assim,a possibilidade de que algum dos agentestenha fins egosticos, o que caracteriza asegunda categoria de ao descrita porHabermas (1990b): a ao estratgica.

    O agir comunicativo distingue-se,

    pois, do estratgico, uma vez que acoordenao bem sucedida da aono est apoiada na racionalidadeteleolgica dos planos individuaisde ao, mas na fora racionalmentemotivadora de atos de entendimento,portanto, numa racionalidade que semanifesta nas condies requeridaspara um acordo obtido comunica-tivamente. (HABERMAS, 1990b,

    p. 72).A ao estratgica tem como finali-dade no o consenso, mas fins egosticosdo agente. Se ao gritar fogo! o agentepretende to-somente provocar um sustonas pessoas, para se deleitar com o pnicoalheio, no h falar em ao comunicativa,mas em ao estratgica.

    Se, na ao comunicativa, o discurso um instrumento na busca de um enten-

    dimento, na ao estratgica, o discurso tomado como instrumento de exerccio deum poder sobre outrem. A finalidade daao comunicativa o consenso intersub-

    jetivo; a finalidade da ao estratgica oexerccio de um poder.

    Com base nesses conceitos, Habermasrelaciona a categoria trabalho s aes

    estratgicas e a linguagem s aes co-municativas.O trabalho sempre uma ao de um su-

    jeito sobre um objeto e, como tal, um meroexerccio de poder. A fala (linguagem), poroutro lado, pode-se comportar de duasformas: 1) como ao estratgica, quandoum dos sujeitos toma seu interlocutor comomero objeto e procura exercer um poder emrelao a ele; 2) como ao comunicativa,

    quando os interlocutores se reconhecemcomo sujeito e buscam o consenso.Ainda que Habermas admita que as

    aes de fala estratgicas so muito maisfreqentes que as aes de fala comunica-tivas, no descarta a existncia destas nomundo ftico, pois toda ao estratgicapressupe um entendimento mtuo. Paraque as pessoas se apavorem com o gritode fogo!, necessrio que inicialmente

    haja um consenso sobre a palavra fogo. esse consenso, inerente linguagem e,conseqentemente, s aes humanas,que fundamenta toda a Teoria da AoComunicativa.

    5. Dominao comunicativa

    Habermas pressupe uma ao comuni-cativa assptica, pela qual no se exerce po-

    der sobre o interlocutor, mas to-somentebusca-se o entendimento.A linguagem, porm, um instrumento

    de exerccio de poder. As relaes huma-nas se do atravs da linguagem e, comobem demonstrou Foucault, o exerccio demicropoderes inerente a toda relaohumana.

    Nas relaes humanas, quaisquerque sejam elas quer se trate de

    comunicar verbalmente, como o fa-zemos agora, ou se trate de relaesamorosas, institucionais ou econmi-cas , o poder est sempre presente:

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    quero dizer, a relao em que cadaum procura dirigir a conduta dooutro. So, portanto, relaes quese podem encontrar em diferentes

    nveis, sob diferentes formas; essasrelaes de poder so mveis, ouseja, podem se modificar, no sodadas de uma vez por todas. O fato,por exemplo, de eu ser mais velho ede que no incio os senhores tenhamficado intimidados pode se inverterdurante a conversa, e serei eu quempoder ficar intimidado diante dealgum, precisamente por ser ele

    mais jovem. Essas relaes de poderso, portanto, mveis, reversveise instveis. (FOUCAULT, 2004, p.276-277).

    Qual ao poderia ter finalidade menosegostica do que a me que aponta para siprpria e diz ao beb: mame? Qual aopoderia ser mais voltada ao entendimento?No seria esse um exemplo ideal de coope-rao na busca de um consenso?

    No difcil, no entanto, perceber que,mesmo em uma ao comunicativa comoessa, surge uma inevitvel relao de poderentre a me e o filho. O entendimento sempre a imposio de uma verdade sobreoutra; sempre o exerccio de um poder.

    Uma criana nasce, ento, numlugar preestabelecido dentro do uni-verso lingstico dos pais, um espaomuitas vezes preparado muitos me-

    ses, se no anos, antes que ela veja aluz do dia. E a maioria das crianas obrigada a aprender a lngua faladapelos pais, o que significa dizer que, afim de expressar seus desejos, elas sovirtualmente obrigadas a irem almdo estgio do choro um estgio noqual os pais so forados a adivinharo que seus filhos desejam ou preci-sam e tentar dizer o que querem

    em palavras, isto , de uma formaque seja compreensvel aos principaisresponsveis por elas. No entanto,seus desejos so moldados naquele

    mesmo processo, j que as palavrasque so obrigadas a usar no so suase no correspondem necessariamentes suas demandas especficas: seus

    desejos so moldados na frma dalngua ou lnguas que aprendem.(FINK, 1998, p. 22).

    Por mais altrustica que seja a finalidadeda me em ensinar a criana uma lngua,essas lies trazem consigo inevitavelmenteo exerccio de um poder sobre a criana.Ainda que o exerccio desse poder no sejauma finalidade consciente da ao da me, inerente relao com a criana.

    Frise-se que no se trata aqui de valoraro exerccio desse poder como algo bom oumau, por si mesmo, mas simplesmentede demonstrar que, mesmo nas aes co-municativas, h o exerccio de um podermuitas vezes inconsciente que leva o agentea alcanar finalidades no expressamenteprevistas.

    A idia de que poderia haver umtal estado de comunicao no qual

    os jogos de verdade poderiam circu-lar sem obstculos, sem restries esem efeitos coercitivos me parece daordem da utopia. Trata-se precisa-mente de no ver que as relaes depoder no so alguma coisa m em simesmas, das quais seria necessrio selibertar; acredito que no pode haversociedade sem relaes de poder, seelas forem entendidas como estrat-

    gias atravs das quais os indivduostentam conduzir, determinar a con-duta dos outros. (FOUCAULT, 2004,p. 284).

    A Teoria da Ao Comunicativadesconsidera a caracterstica da linguagemcomo instrumento de exerccio do poder. Alinguagem no mero meio de expressode idias, mas de imposio de idias.

    Embora considerada, em geral,

    incua e puramente utilitria pornatureza, a linguagem traz com elauma forma fundamental de aliena-o que um aspecto essencial da

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    aprendizagem da lngua materna doindivduo. A prpria expresso queusamos para falar a respeito dela linguagem materna indicativa do

    fato de que a lngua de algum Outroantes, a lngua do Outro materno,isto , a linguagem da meOutro, [nooriginal, mOther. O autor joga comas palavras me e Outro, mother eOther] e ao falar da experincia dainfncia, Lacan, muitas vezes, comoque iguala o Outro me. (FINK,1998, p. 23-24).

    Ao descartar esse aspecto da linguagem

    descoberto por Lacan, Habermas cria umateoria assptica do discurso, s aplicvela uma sociedade formada por indivduosabsolutamente iguais, em que no haveriarelaes de poder.

    Na verdade, a ao comunicativapura de Habermas pura fico. uma noo cercada por uma varie-dade de vlvulas de escape, comoas de fala possvel, em vez de fala

    realmente ouvida ou produzida;ns procedemos contrafactualmen-te como se assim fosse, em tal falapossvel; falantes competentes (ouseja, os falantes que amavelmente seconformam s suposies definidorasde Habermas), em contraposio aosverdadeiros falantes; e a clusula deidealizao: se a discusso pudesseser conduzida de modo suficiente-

    mente aberto e se prolongasse o bas-tante, etc., etc. E no se torna menosfictcia por ser chamada, como o fazHabermas, de fico inevitvel. Eainda menos porque os poderosos nomundo histrico real (que est longede ser simetricamente estruturadoe orientado para o reconhecimentorecproco), que tm sua disposiograndes riquezas e tambm as armas

    de reserva atmica, no tm nenhu-ma dificuldade em evitar e ignorartodas as implicaes emancipatriaspossveis da comunidade ideal de

    comunicao contrafactualmentepossvel de Habermas. (MSZ-ROS, 2004, p. 90).

    Habermas constri todo seu arcabouo

    terico com base em hipteses contrafac-tuais e a partir delas procura demonstrarinferncias prticas. Pretende uma recons-truo do materialismo histrico, masparte de uma base idealista. Acaba, assim,por aproximar seu pensamento dos tericosdo contratualismo, fundamentando maisuma vez o poder poltico em um consensohipottico e anistrico da espcie humana.

    6. DireitoAs posies de Habermas e Foucault

    em relao ao Direito se contrapem.Habermas postula o Direito como um ins-trumento cujo tlos o consenso. Foucault,por outro lado, concebe o Direito como umamaneira regulamentada de fazer a guerra.

    O uso da linguagem pressupe uma re-lao entre indivduos. Como no h indiv-

    duos exatamente iguais, dessas diferenassurgem inevitavelmente relaes de poderque so exercidas ora conscientemente, orainconscientemente. O consenso visado poraes comunicativas no passa da impo-sio de uma verdade em detrimento deoutras. A palavra a arma da modernidadee o discurso um campo de batalha.

    Se o poder mesmo, em si, empregoe manifestao de uma relao de

    fora, em vez de analis-lo em termosde cesso, contrato, alienao, em vezmesmo de analis-lo em termos fun-cionais de reconduo das relaesde produo, no se deve analis-loantes e acima de tudo em termos decombate, de enfrentamento ou deguerra? Teramos, pois, diante daprimeira hiptese que : o meca-nismo do poder , fundamental e

    essencialmente, a represso , umasegunda hiptese que seria: o poder a guerra, a guerra continuadapor outros meios. E, neste momento,

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    inverteramos a proposio de Clau-sewitz e diramos que a poltica aguerra continuada por outros meios.(FOUCAULT, 1999, p. 23).

    A poltica, o Direito e o Estado so ins-trumentos de legitimao do poder que tmpor finalidade substituir a guerra por umapaz social. As lutas polticas na sociedadeso manifestaes desse desequilbrio deforas manifestado na guerra. O Direitono instrumento de resoluo de conflito ede consagrao de consenso, mas um meiodiferente de se praticar a guerra.

    O [antigo] Direito Germnico no

    ope a guerra justia, no identificajustia e paz. Mas, ao contrrio, supeque o direito no seja diferente deuma forma singular e regulamentadade conduzir uma guerra entre os indi-vduos e de encadear os atos de vin-gana. O direito , pois, uma maneiraregulamentada de fazer a guerra.(FOUCAULT, 2003a, p. 56-57).

    A Teoria da Ao Comunicativa ostenta

    seu carter conservador ao velar o carterbelicoso do Direito. Sob a ideologia da bus-ca do consenso, legitima-se o poder polticoe o Estado como instrumento de dominaoe de manuteno do status quo.

    Que os juristas tenham sido osservidores do rei ou tenham sidoseus adversrios, de qualquer modosempre se trata do poder rgio nessesgrandes edifcios do pensamento e

    do saber jurdicos. E, do poder rgio,trata-se de duas maneiras: seja paramostrar em que armadura jurdicao poder real se investia, como omonarca era efetivamente o corpovivo da soberania, como seu poder,mesmo absoluto, era exatamenteadequado a um direito fundamen-tal; seja, ao contrrio, para mostrarcomo se devia limitar esse poder do

    soberano, a quais regras de direitoele devia submeter-se, segundo e nointerior de que limites ele deveriaexercer seu poder para que esse po-

    der conservasse sua legitimidade. Opapel essencial da teoria do direito,desde a Idade Mdia, o de fixar alegitimidade do poder: o problema

    maior, central, em torno do qual seorganiza toda a teoria do direito oproblema da soberania. Dizer que oproblema da soberania o problemacentral do direito nas sociedadesocidentais significa que o discursoe a tcnica do direito tiveram essen-cialmente como funo dissolver, nointerior do poder, o fato da domina-o, para fazer que aparecessem no

    lugar dessa dominao, que se queriareduzir ou mascarar, duas coisas:de um lado, os direitos legtimos dasoberania, do outro, a obrigao legalda obedincia. O sistema do direito inteiramente centrado no rei, o quequer dizer que , em ltima anlise,a evico do fato da dominao e desuas conseqncias. (FOUCAULT,1999, p. 30-31).

    A concepo de Direito como instru-mento de consenso s se justificaria emsociedades de indivduos absolutamenteiguais, nas quais as relaes humanas nofossem inevitavelmente marcadas por re-laes de poder.

    Habermas precisa negligenciar ofato desconcertante de que as slidasrelaes de poder socioeconmicas epolticas no interior das quais ocor-

    reria seu dilogo idealizado, nassociedades de classe, ridicularizamtodas as pretenses de consideraresta modalidade de comunicaoto fortemente condicionada comoum genuno dilogo. Tendo emvista que as respectivas margensde ao dos membros das classesque participam desse modelo in-cluindo as margens de sua ao

    comunicativa so estruturalmentepreconcebidas em favor da ordemdominante, o resultado provvel dosintercmbios comunicativos de todos

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    os indivduos no pode estar sujeitoao mesmo modelo e reduzido a umdenominador comum apriorstico.(MSZROS, 2004, p. 83).

    No atual cenrio poltico mundial, umateoria que desconsidere essas relaes depoder e dominao equivale a uma teoriade legitimao do status quo, da dominaoe das desigualdades sociais. Nas socieda-des reais, nas quais h marcantes relaesde poder condicionadas s diferenas declasse, gnero, raa, orientao sexual,etc., o consenso imposto pela linguagem

    jurdica a paz imposta pelos vencedores

    aos vencidos: a sujeio, a subservincia, aescravido.

    7. guisa de concluso

    O questionamento filosfico da razotornou-se o marco divisrio de duas corren-tes epistemolgicas deste incio de sculo:os modernos e ps-modernos.

    A marca da modernidade a crena

    em uma razo iluminista, emancipadorada espcie humana. Habermas arvorou-sede paladino da modernidade e, como tal,atm-se defesa da razo.

    Ao investigar o fundamento daautoridade do direito no contedoilocucionrio da comunicao, Ha-bermas tenta construir uma teoriaracional de fundamentao do direitoe afastar a idia segundo a qual o

    direito seria, pura e simplesmente,uma forma de agir estratgico (GA-LUPPO, 2002, p. 114).

    Em sua nsia de legitimar racionalmenteo Direito, Habermas constri uma teoriatranscendental do Estado, relegando asegundo plano o difcil problema da do-minao subordinao.

    Habermas prope a reconstruo domaterialismo histrico com base em novos

    pressupostos epistemolgicos, mas, na pr-tica, a teoria da ao comunicativa consagraum pensamento conservador que nega ospropsitos marxistas de transformao

    social e mantm-se ancorado em uma hipo-ttica possibilidade de dilogo e consensoentre opressores e oprimidos.

    Naturalmente, os agentes eman-

    cipatrios engajados na produode tal consenso verdadeiro spoderiam ser da elite privilegiada os vrios experts e autonomeadosespecialistas em comunicao quecontinuaria por tempo suficienteseu discurso ideal (enquanto outrosestariam trabalhando por tempo tam-bm suficiente para seu benefcio), demodo a conhecer e transcender (isto

    , dissolver e explicar satisfatoria-mente, no esprito da filosofia lin-gstica) as diferenas identificadas.(MSZROS, 2004, p. 194).

    A filosofia ps-moderna, por outro lado,insiste na crtica da razo e, nesse contexto,o pensamento de Foucault consagra-secomo marco terico de pensadores pre-ocupados com as relaes de poder nasociedade contempornea.

    Foucault v no Direito no um meiocapaz de alcanar uma paz consensual, masum instrumento de disciplina da guerra, degesto de conflitos.

    O problema no , portanto, tentardissolv-las [as relaes de poder] nautopia de uma comunicao perfeita-mente transparente, mas se imporemregras de direito, tcnicas de gestoe tambm a moral, o ethos, a prtica

    de si, que permitiro, nesses jogos depoder, jogar com o mnimo possvelde dominao. (FOUCAULT, 2004,p. 284).

    O antagonismo dos pensamentos de Ha-bermas e Foucault, que marcou a filosofianesta virada de sculo, prprio de umtempo de incertezas que no se reconhececomo moderno ou ps-moderno.

    Mais do que uma simples controvrsia

    epistemolgica, h entre esses dois filsofosuma divergncia poltica. O pensamentoconsensualista de Habermas, distante darealidade ftica da maioria da populao

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    mundial, acaba por legitimar o poder pol-tico dos setores hegemnicos da sociedade,sob o argumento de um consenso tcito daespcie humana. Por outro lado, a filosofia

    conflitivista de Foucault consolida-se comoa base filosfica para uma resistncia efeti-va dominao no s econmica, mas cul-tural e poltica, que mantm a esmagadoramaioria da populao mundial subjugadaaos caprichos de uma elite privilegiada debem-aventurados capazes de imporem aosdemais a sua viso de consenso.

    Habermas no reconstruiu o materialis-mo histrico; ele o demoliu e em seu lugar

    ergueu sua anttese: uma teoria idealista doDireito que o legitima mesmo diante dasmais visveis contradies sociais com baseem uma ideal competncia comunicativada espcie humana. A ao comunicativahabermasiana uma fico que encobre asonipresentes relaes de poder facilmenteperceptveis a quem quer que se d ao tra-balho de estudar a sociedade como ela eno como deveria ser.

    Parafraseando a famosa anedota de PaulSamuelson ([200-?]), as posturas epistemo-lgicas de Foucault e Habermas podem serassim provocativamente sintetizadas: Fou-cault e Habermas foram abandonados emuma ilha deserta. Famintos, s havia sopasenlatadas como alimento, mas no dispu-nham de um abridor de latas. Foucaultpensou em tentar abri-las com uma pedra,mas Habermas sugeriu: Vamos imaginar

    que tivssemos um abridor de latas!.A ao comunicativa o abridor de latasimaginrio de Habermas. Como toda teo-ria, uma inveno humana que se prestaa determinado fim. No verdadeira oufalsa em essncia, mas cumpre um papelpoltico na sociedade em que colocada.A questo no como abrir a lata?, pois evidente que no se pode abrir uma latacom uma abstrao. A questo crucial a

    quem interessa abrir a lata?.O abridor imaginrio de latas s adiaa fome. uma teoria que mantm o statusquo a lata fechada enquanto se acredita

    nela. S interessa queles que no queremabrir a lata. Aos que interessam abrir a lata aos que tm fome , a ao comunicativano passa de ideologia.

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