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Revista Eletrônica da Faculdade Metodista Granbery
http://re.granbery.edu.br - ISSN 1981 0377
Curso de Direito - N. 17, JUL/DEZ 2014
CRÍTICA HERMENÊUTICA DO DIREITO: POSSIBILIDADES DE SUPERAÇÃO
DO POSITIVISMO JURÍDICO ATRAVÉS DE GADAMER E DWORKIN
ANDRADE NETO, Ary Alvarino de*
RESUMO
O presente trabalho busca promover uma reflexão crítica sobre o conceito de
discricionariedade judicial nas teorias positivistas do direito, através do referencial teórico da
crítica hermenêutica do direito de Lênio Streck, que une a virada linguística da filosofia com
avanços do pós-positivismo. De tal modo, é relevante o estudo, na medida em que a
efetividade do texto constitucional, destacadamente do princípio democrático, vem sendo
obstacularizada pela postura teórica ora criticada. E tal crítica far-se-á pela concepção
gadameriana deque o texto é integrante de uma realidade mais ampla, solucionando-se, assim,
as indeterminações que dele emergem quando é abordado como algo abstraído de sua
realidade social e histórica, como faz o positivismo. Também a concepção de princípio como
padrão dotado de normatividade, presente em Dworkin, viabilizará uma recepção dessa
postura pós-metafísica acerca da linguagem no âmbito do direito, a partir da noção de que os
princípios encontram seu fundamento na realidade concreta de uma comunidade política.
Com isso, espera-se demonstrar que uma postura hermenêutica no trato do direito, que busque
compreendê-lo em conjunção com a realidade social da qual emerge, poderá ser de maior
proveito para uma aplicação mais legítima dos seus institutos.
Palavras-chave: Positivismo jurídico. Discricionariedade. Hermenêutica. Princípios.
* Bacharel em Direito pelo Instituto Metodista Granbery.
1
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho se ocupa da dimensão hermenêutica do direito, como via de
análise do conceito de discricionariedade judicial proposto pelas teorias positivistas do direito.
O marco teórico adotado é a crítica hermenêutica do direito, proposta por Lênio
Luiz Streck. Nela, o conceito de princípio como padrão dotado de normatividade (Dworkin)
se conjuga com o caráter existencial– ontológico – da atividade interpretativa (Gadamer).
Semelhante opção temática se justifica em face dos questionamentos acerca da
legitimação da discricionariedade judicial levada a cabo pelo modelo positivista de direito, no
contexto da tradição democrática e constitucionalista inaugurada pela Constituição de 1988.
Nesses termos, pergunta-se se, e como, é possível reduzir ou anular o recurso à
discricionariedade judicial, no âmbito da teoria geral do direito, a partir da exploração do
elemento hermenêutico presente no fenômeno jurídico e do conceito dworkiniano de
princípio, que buscam demonstrar uma continuidade entre o texto normativo e o contexto
histórico de sua surgência e aplicação.
Busca-se, assim, uma compreensão acerca das possibilidades de recepção, pela
teoria do direito, das contribuições da virada linguístico-pragmática da filosofia
(Heidegger/Gadamer) e do pós-positivismo (Dworkin). Em específico, pretende-se
compreender como o conceito dworkiniano de princípio – dotado que é de normatividade –
poderá promover uma inserção do mundo prático no discurso jurídico, superando-se, assim, a
decantada cisão entre fato e norma, promovida pelo pensamento positivista, e que abre espaço
à discricionariedade do intérprete, que fica isento do ônus sustentar suas posições em
argumentos jurídicos.
Isso se fará a partir da revisão de literatura que abrange a transição do pensamento
metafísico para o pós-metafísico (filosofia) e do pensamento positivista para o pós-positivista
(direito). A obra de Hart fornecerá o modelo de positivismo jurídico, que será privilegiado por
sua reconhecida sofisticação. Da obra de Dworkin, será explorado o conceito de princípio,
como representativo do panorama do pós-positivismo, na medida em que é considerado pela
crítica hermenêutica do direito como o modelo que mais se coaduna com os avanços da virada
linguística. A fundamentação filosófica da proposta aqui trabalhada será buscada na obra de
Hans-Georg Gadamer, que incorpora, no contexto da tradição hermenêutica, o conceito
heideggeriano de círculo hermenêutico, fundado que é em bases pós-metafísicas e dotado de
um caráter ontológico.
2
2 O POSITIVISMO JURÍDICO E SEU OCASO
2.1 O conceito de positivismo jurídico
O termo Positivismo Jurídico tem sido atribuído a teses e autores que guardam
entre si grande disparidade. Noel Struchiner, em sua tese de doutorado, intitulada “Para falar
de regras” (STRUCHINER, 2005), procura resgatar a história da plurivocidade desse termo,
com vistas a estabelecer um conceito que seja mais representativo da imensa gama de
fenômenos por ele abrangidos.
Marco histórico nos estudos sobre positivismo jurídico, o Seminário de Bellagio,
que teve lugar em 1960, na Itália, e contou com expoentes do porte de Norberto Bobbio,
Herbert Hart e Alf Ross (CARRIÓ apud STRUCHINER, 2005, p. 26), mapeou quatro
diferentes sentidos para o termo em estudo: 1) ceticismo ético; 2) positivismo ideológico; 3)
formalismo jurídico e 4) positivismo conceitual.
Partindo desse importante referencial histórico, pode-se estabelecer que o sentido
“1” (ceticismo ético) deve ser, de imediato descartado, já não representa uma tese sobre o
Direito, limitando-se a afirmar que não há princípios morais universalmente válidos, ou, caso
existam, são inacessíveis à razão humana. Ou seja, nada diz sobre o que é o direito
(STRUCHINER, 2005, p. 23).
Quantos aos demais sentidos encontrados, todos eles apresentam uma tese em
comum, divergindo quanto ao resto. Essa tese em comum diz que a identificação de uma
norma jurídica válida depende apenas do exame de suas fontes e não de seu mérito
(conteúdo), não havendo, pois, qualquer tipo de critério moral a ser observado nesse exame
(STRUCHINER, 2005, p. 33).
Diante de tais considerações, pode-se concluir que o conceito trazido pelo
positivismo conceitual é o mais representativo do estágio de desenvolvimento em que se
encontra, atualmente, o positivismo jurídico. De fato, tal representatividade pode ser
constatada tanto do ponto de vista empírico, quanto do ponto de vista lógico-conceitual.
Empiricamente, tem-se que, tanto os expoentes da história da jusfilosofia (Thomas
Hobbes, Jeremy Bentham, John Austin, Hans Kelsen, Herbert Hart), quanto alguns dos
positivistas contemporâneos mais proeminentes (Joseph Raz e Jules Coleman) aderiram à tese
do Positivismo Conceitual. É o que assevera John Gardner, citado por Noel Struchiner (2005,
p. 33-34).
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Quanto ao aspecto lógico-conceitual da questão, percebe-se a presença da tese em
comento em todos os conceitos apresentados acima para Positivismo Jurídico, à exceção, por
óbvio, do Ceticismo Ético, já que não se trata, propriamente, de uma asserção sobre o Direito.
Assim, também por esse aspecto, o Positivismo Conceitual revela-se a versão mais
representativa e bem fundamentada do movimento positivista no Direito.
Diante de tal constatação é que o presente trabalho elege como objeto de sua
crítica o Positivismo Conceitual, nos termos acima estabelecidos. Isso se faz necessário para
que a crítica hermenêutica do positivismo, aqui proposta, não se revele uma empresa
falaciosa, nos termos da acima citada falácia do espantalho. Em outras palavras, o que se
pretende é por à prova as concepções da Crítica Hermenêutica do Direito(conforme se exporá
oportunamente), o que só pode ser feito em confronto com a versão mais bem acabada do
Positivismo Jurídico – o Positivismo Conceitual.
2.2 O ocaso do positivismo jurídico
Lênio Luiz Streck, com fundamento na Hermenêutica Filosófica de Gadamer,
propõe uma crítica de superação ao positivismo jurídico, a partir da “exploração do elemento
hermenêutico” presente no fenômeno jurídico (STRECK, 2014, p. 31).
Adverte o citado autor que, em Kelsen, fica estabelecida uma cisão entre Direito e
Ciência do Direito, por meio da qual a aplicação do Direito passa a ser um problema político e
não jurídico. Assim, caberia ao teórico do direito preocupar-se apenas com a coerência lógica
do Direito, entendido como um conjunto de normas abstratas (STRECK, 2014, p. 35-
36).Ocorre que a ausência de parâmetros capazes de constranger o julgador, deixaria o labor
decisório, segundo a crítica ora aventada, inteiramente à mercê de fatores exógenos ao
Direito.
Diante disso, aduz a crítica, ao chancelar teoricamente a discricionariedade
judicial, o positivismo estaria favorecendo a criação de um déficit democrático, uma vez que
decisões tomadas na instância pública estariam à margem de qualquer controle democrático,
eis que a discricionariedade permite que o julgador invoque em suas decisões qualquer
fundamento que considere válido, sem dar qualquer satisfação à sua comunidade
política(STRECK, 2014, p. 43). Além disso, os julgadores também não estariam à mercê das
insatisfações dessa comunidade, uma vez que não são titulares de cargo eletivo, o que torna
suas decisões ainda mais carentes de legitimidade democrática, se tomadas sob o manto da
discricionariedade judicial.
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3 OS PRINCÍIPIOS EM DWORKIN
Como visto anteriormente, o positivismo jurídico trata o Direito como um sistema
de regras que têm uma determinada procedência e é essa procedência, e não o conteúdo que
veiculam, que faz delas parte integrante do Direito. Tal concepção, contudo, por clara,
objetiva e historicamente chancelada que seja, não é mais que uma dentre outras que buscam
dar conta do fenômeno jurídico.
Se o positivismo jurídico não foi a primeira concepção filosófica acerca do Direito
– haja vista as correntes agrupadas sob o rótulo de jusnaturalismo – também não será a última.
De fato, no decorrer do século XX, verificou-se um intenso desgaste do modelo positivista de
Direito e novas propostas teóricas foram trazidas a lume, na tentativa de dar conta da
realidade das práticas jurídicas no contexto da sociedade pós-moderna, tão complexa quanto
ávida de respostas jurídicas para seus aparentemente insolúveis dilemas.
Um sistema de regras – tal qual o proposto pelo positivismo – por mais detalhado
e abrangente que seja, sempre deixa algo de fora. No desenrolar dos capítulos mais recentes
da história do pensamento jurídico, emerge a constatação de que sempre sobra algo, ou seja,
um modelo de regras sempre vai se defrontar com especificidades da realidade concreta para
as quais não há nenhuma regra que possa dar uma resposta satisfatória – ou, pode ser ainda,
que haja mais de uma regra, situação em que o sistema se revela carente de um critério que
permita escolher uma dentre elas. Em resumo, todo sistema de regras, cedo ou tarde, revela-se
lacunoso.
Diante disso, a figura dos princípios adquire grande importância para a teoria
contemporânea do Direito. No âmbito do presente trabalho, a obra de Ronald Dworkin será
adotada como exemplar dessa tendência na moderna teoria do Direito. Sua abordagem dos
princípios, em “Levando os direitos a sério”, parte da constatação de quão frágeis se revelam
as certezas da comunidade jurídica acerca de certos termos, tais como “direito” e “obrigação”.
Aliado a isso, apura o citado autor, que há grande dependência do discurso jurídico com
relação a tais termos, por arraigados que estão no universo de práticas do Direito. Tal fato,
não raro, coloca os juristas em grandes apuros teóricos, quando, diante de determinados casos,
têm que definir o que são direitos e obrigações, para se chegar a uma solução (DWORKIN,
2007, p. 23-24).
Como visto no capítulo anterior, a teoria positivista responde a pergunta sobre que
regras são jurídicas, olhando para sua origem. Enquanto isso, Dworkin, ao descrever o modelo
hartiano, afirma: “dizer que alguém tem uma „obrigação jurídica‟ é dizer que seu caso se
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enquadra em uma regra jurídica válida que exige que ele faça ou se abstenha de fazer alguma
coisa” (DWORKIN, 2007, p. 28).
Entretanto, isso não resolve tudo, conforme já se assinalou linhas acima. Há,
como se sabe, um sem número de casos submetidos à análise dos juristas que não encontram
no ordenamento jurídico posto nenhuma regra à qual possam ser subsumidas. Desse modo, os
juízes diante de tais casos – os chamados “casos difíceis” – são obrigados a buscar resposta
para as controvérsias instaladas em padrões que não são regras (DWORKIN, 2007, p. 36).
Quando os julgadores agem dessa forma, estão a fazer uso – segundo os teóricos
do positivismo jurídico – de seu poder discricionário, o qual lhes permite, em casos tais, ir
além das disposições do direito positivo (as regras), em busca de padrões que são comumente
utilizados pelos tribunais, mas que não são obrigatórios, precisamente, por não fazerem parte
do Direito. Trata-se de uma das duas possíveis abordagens acerca dos princípios, que
Dworkin descreve em sua obra (2007, p. 48-49).
Tal postura teórica, entretanto, exige que se abra mão dos conceitos de obrigação
e de direito como fatores explicativos das decisões judiciais que recorrem a padrões que não
são regras. Esse entendimento conduz à conclusão de que, por exemplo, condutas podem ser
impostas ou proibidas e a propriedade pode ser violada, por decisões carentes de qualquer
fundamento legal, sempre que não haja uma regra clara no ordenamento para o caso
(DWORKIN, 2007, p. 49).
Dworkin também nos fala de outra abordagem acerca dos princípios, segundo a
qual estes são parte integrante do ordenamento, ou seja, são padrões juridicamente
obrigatórios, mas que não funcionam como as regras (DWORKIN, 2007, p. 46).
O tratamento dos princípios como padrões juridicamente obrigatórios tem, ainda
segundo Dworkin, algumas vantagens sobre a outra concepção, normalmente sustentada pelos
positivistas. Considerando que princípios são normas, torna-se possível explicar decisões que
recorram a padrões que não são regras como o reconhecimento e a aplicações de direitos e
obrigações jurídicas – conceitos que se encontram profundamente arraigados na prática
discursiva do direito. E, por isso mesmo, ou seja, por permitir o uso de categorias tão
fundamentais para os juristas, tal posição está em melhores condições de descreve a realidade
do universo jurídico.
Dworkin oferece algumas provas disso. Primeiramente, observa que quando um
juiz deixa de reconhecer um princípio relevante para a decisão de certo caso, sua decisão será
censurada não por ter deixado de fazer o que os juízes costumeiramente fazem, mas por ter
deixado de proferir uma decisão a que a parte tinha direito (DWORKIN, 2007, p. 56).
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Além disso, referido autor constata que, não raras vezes, os tribunais modificam
regras jurídicas (sejam as derivadas de precedentes, sejam as derivadas de leis). Em um
considerável número de vezes, os textos legais são reinterpretados de modo a atribuir-lhes um
sentido bem distante daquilo que se considera ser, no caso, a vontade do legislador. Quando
assim procedem, os julgadores recorrem a padrões que não são regras. Assim, estabelecer que
referidos padrões não sejam obrigatórios (modelo positivista-hartiano), equivale a admitir que
também as regras não sejam obrigatórias, já que são passíveis de derrogação por esses
padrões.
Como se vê, para Dworkin – quer seja decidindo conflitos sem fundamento em
regras previamente existentes no ordenamento, quer seja derrogando regras deles constantes
com base em padrões que não são regras – torna-se inarredável o reconhecimento de uma
outra fonte de normas jurídicas. Essa nova fonte –os princípios – se revelaria capaz de
responder pelo fundamento dessas decisões que se dão à margem, ou até mesmo contra, as
regras. Tal postura teórica é imprescindível, como forma de se preservaro próprio sentido de
normatividade dos ordenamentos jurídicos (DWORKIN, 2007, p. 59).
Cumprida a tarefa de demonstrar a normatividade dos princípios segundo o
pensamento de Dworkin, releva reconhecer as distinções que fazem com que regras e
princípios integrem categorias distintas dentro do universo jurídico.
A primeira peculiaridade que faz com que os princípios se distingam das regras
jurídicas é a diferença em suas estruturas lógicas. Como observa Dworkin, as regras se
aplicam ou não, conforme haja, ou não o preenchimento de sua hipótese de incidência (2007,
p. 39). Enquanto isso, um princípio não traz, sequer, uma hipótese de incidência, contudo
enuncia uma razão, que é sempre válida e é capaz de sustentar uma argumentação em
determinado sentido, entretanto, nem sempre essa razão será predominante no caso a ser
decidido (DWORKIN, 2007, p. 41).
Além das suas estruturas lógicas, regras e princípios diferenciam-se também por
outro aspecto: o fato de que apenas os princípios são dotados da dimensão do peso.
Decorrente de sua própria estrutura lógica, antes explicitada, o princípio carrega a faculdade
de permanecer sendo uma razão jurídica relevante, ainda que não prevaleça em uma
determinada argumentação jurídica. Por isso, diante de um caso concreto, pode ser que mais
de um princípio – igualmente válidos, dada sua estrutura lógica – tendam a conduzir a decisão
em sentidos diversos, situação em que o julgador deverá avaliar qual desses padrões possui,
no caso, maior peso (DWORKIN, 2007, p. 42).
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Diante dessa intrincada interação de forças argumentativas, só há uma maneira de
decidir o impasse: determinar qual (ou quais) princípio tem maior peso (força, importância)
no contexto do caso a ser decidido. Não é possível aplicar o critério da validade aos conflitos
principiológicos, haja vista que é próprio da estrutura lógica dos princípios, que estes
conservem sua validade ainda que, diante de um caso concreto, sejam preteridos em favor de
outros, mais importantes para o caso em questão.
Do que foi dito acima, fica explicitado como, no pensamento de Dworkin (2007),
a normatividade dos princípios aparece como condição de possibilidade da normatividade do
ordenamento jurídico como um todo – o que inclui as regras jurídicas. Fica, também,
esclarecido que os princípios gozam de estrutura lógica própria, o que lhes permite ser válidos
concomitantemente com princípios antagônicos, ainda que, diante de cada caso, uns
preponderem sobre os outros.
Neste ponto, a questão que se põe é como argumentar a favor de princípios,
buscando demonstrar a sua influência sobre um caso que se tenha de decidir. Trata-se, pois,
de estabelecer, de forma objetiva, como se dá a identificação dos princípios de direito,
distinguindo-os, assim, de proposições que não gozem do mesmo status. Em termos hartianos,
não é possível submetê-los ao teste de uma regra suprema de reconhecimento, porque
“mesmo que os princípios encontrem apoio em atos oficiais de instituições jurídicas eles não
têm uma conexão suficientemente simples ou direta com esses atos”(DWORKIN, 2007, p.
66).
De acordo com Dworkin, não é possível rastrear a cadeia de validade de um
princípio, como se faz com uma regra, verificando se ele foi expedido com observância das
formalidades constantes da regra que lhe é hierarquicamente superior. Mesmo nos casos em
que os princípios estão expressamente previstos em algum texto normativo, a situação não é
mais simples, pois não é possível que tal texto explicite seu conteúdo e alcance de forma
exaustiva.
Diante de tal peculiaridade, Dworkin sustenta que argumentar em favor de um
princípio sempre demandará remissões a decisões e práticas jurídicas anteriores, bem como a
outros princípios que sustentem aquele sobre o qual se argumenta. Dessa forma, a sustentação
argumentativa de um princípio dependerá, sempre, tanto da aceitação da comunidade jurídica,
quanto da validade outorgada por outras normas do ordenamento (DWORKIN, 2007, p. 66)
.Por isso, “[argumentar em favor de princípios] não é uma rua de mão única que conduz a
algum princípio último que depende apenas de aceitação” (DWORKIN, 2007, p. 66).
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Desse modo, Dworkin opera o resgate do mundo prático para o Direito,
reivindicação sustentada pela crítica hermenêutica do direito, na convicção de que o
significado mais verdadeiro de um texto não se encontra somente no texto, tomado como algo
abstraído da realidade sócio histórica a que pertence, demandando assim a observância de
uma coerência com decisões anteriores e com o texto constitucional (STRECK, 2011, p. 396).
Como visto neste capítulo, os princípios são de uma natureza peculiar – têm
estrutura lógica característica, uma dimensão (o peso) exclusiva e forma de argumentação
própria – sendo assim, não se pode pretender tratá-los como se regras fossem e, em
decorrência disso, negar-lhes estatuto jurídico unicamente porque não satisfazem os critérios
de uma regra suprema de reconhecimento.
Entretanto, essas peculiaridades dos princípios revelam-se extremante salutares.
Isso porque compelem o jurista que argumenta em favor de princípios a reconhecer: i) que os
textos jurídicos fazem parte do tecido do mundo prático; ii) e que, portanto, eles não podem
ser plenamente interpretado sem levar em conta elementos de ordem prática, ou seja, o
contexto em que o texto é produzido e utilizado (o que se procurará demonstrar em momento
oportuno).
Para ser mais explícito, quando se argumenta em favor de um princípio, como o
da democracia, por exemplo, não basta recorrer aos dicionários de léxico, ou mesmo aos de
ciência, analisando abstratamente os verbetes ali encontrados, dentro da mais rigorosa lógica.
O máximo que se obterá nesse caso é uma gama de possibilidades interpretativas, sem
nenhum critério objetivo que oriente a escolha por um deles.
Ao contrário disso, portanto, o que se deve fazer ao trabalhar com princípios é
recorrer ao mundo prático – invocando decisões e práticas reiteradas da comunidade jurídica,
bem como outros princípios que se apoiam em outras tantas decisões e práticas – como forma
de solver as aporias de sentido de sua estrutura linguística. Não se trata, como pode parecer à
primeira vista, de abrir mão do conteúdo normativo do texto jurídico, curvando-o ao império
dos fatos. Absolutamente. O presente trabalho é sobre teoria do Direito, e como tal, não perde
de vista o caráter ordenador que o Direito assume sobre os fatos. O que se pretende é estimar
adequadamente o que é o texto jurídico: algo que deve ser compreendido em suas dimensões
pragmática (mundo prático) e lógico-abstrata (enunciado).
4 A MUDANÇA DE PARADIGMA FILOSÓFICO
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A esta altura, importa referir algo acerca do evento que ficou conhecido na
história da filosofia como virada linguística, por ser ele o contexto mais amplo dentro do qual
se desenvolvem as contribuições de Gadamer(apud STRECK, 2011; 2014) para a tradição
hermenêutica, obra que integra o marco teórico do presente trabalho, que vai a busca de
caminhos para a superação do modelo positivista de direito.
A aludida virada linguística deita raízes no século XIX, quando a linguagem
passou a figurar no primeiro plano das preocupações dos filósofos, em reação à já saturada
tradição metafísica, cuja formulação clássica, usualmente, se atribuía à filosofia platônica. O
paradigma metafísico tem como marca a crença em uma separação absoluta entre a realidade
e a linguagem que a representa. Essa separação faz da linguagem algo estranho a essa
realidade e, portanto, incapaz de expressar corretamente sua essência (NIGRO, 2009, p. 178).
Implicação do pressuposto metafísico acima referido é a crença de que o
pensamento filosófico é capaz de investigar o que está além dos domínios da linguagem –
uma crença, portanto, em um pensamento pré-linguístico. Caso contrário, não se chegaria a
concluir que há algo além da linguagem (a essência das coisas). Mais que isso, caso não se
admitisse tal implicação, não seria possível afirmar, tampouco, a insuficiência da linguagem
em comunicar, de forma absoluta, essa essência.
Os defensores da tese metafísica, conforme acima formulada, sempre foram
incapazes de fornecer qualquer indício de um pensamento fora da linguagem, posto que só se
pode ter certeza da existência de um pensamento quando este é exposto, o que só ocorre na e
pela linguagem.
Decorre daí a conclusão de que nosso “contato com a realidade encontra-se, desde
sempre e desde já, linguisticamente estruturado” (NIGRO, 2009, p. 179). Em decorrência
disso, nenhuma estrutura lógica é capaz de abarcar a real natureza da relação entre o mundo e
a linguagem, dado que todas as estruturas lógicas só podem ser conhecidas em suas formas
linguísticas, nada havendo que permita supor que tenham uma forma independente da
linguagem.
Diante da invencibilidade de tais contradições, inerentes ao modelo metafísico de
pensamento, restou frustrado seu maior intento: encontrar um fundamento sem fundamento
para o conhecimento. É por isso que, na esteira dos estudos que são desenvolvidos sob o signo
do novo paradigma (filosofia da linguagem), pode-se afirmar que as distinções que são
tradicionalmente aplicadas às coisas do mundo não o podem ser à linguagem, pois quando nos
relacionamos com o mundo e seus objetos a linguagem já existe como condição de
possibilidade dessa relação. Assim, a linguagem não pode ser explicada por meio de uma
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razão fixa (um fundamento sem fundamento) que só existe graças (na e pela) à linguagem
(NIGRO, 2009, p. 179).
Nesse panorama, ocorre a virada linguística, que é dividida por seus estudiosos
em duas etapas sucessivas. Em um primeiro momento, a proposição linguística era a unidade
básica de significação, e a sua estrutura lógica, o objeto de estudo da filosofia. Tratava-se,
portanto, de uma linguagem abstrata, rigorosamente lógica, cujo estudo deveria conduzir a
uma metalinguagem que fosse o padrão de correção para todas as formas de linguagem. O
expoente desse período foi Frege (apud NIGRO, 2009).
Em um segundo momento, surgiu a preocupação com a linguagem concreta, ou
seja, aquela que se manifesta nas mais diversas situações da vida humana. Reconhece-se, a
partir desse momento, que a complexidade dos fenômenos da linguagem não pode ser
satisfatoriamente descrita com base, exclusivamente, em análises lógicas, sendo necessária
uma apreciação mais ampla desse universo, o que se dá por meio da apreensão da linguagem
comum, muito mais rica em recursos que a linguagem abstrata da lógica (NIGRO, 2009, p.
180).
O arauto desse segundo momento da invasão da filosofia pela linguagem é
Wilhelm von Humboldt (apud NIGRO, 2009, p. 182). Este pensador introduz, pela primeira
vez nos estudos da linguagem, o reconhecimento da dimensão comunicativa desta. Para ele, a
linguagem – além de cognitiva e expressiva – também é comunicativa.
Ao assentar esse ponto, Humboldt (apud NIGRO, 2009, p. 182-183) assume que a
intersubjetividade é fenômeno que tem na linguagem sua condição de possibilidade. Assim,
surge a compreensão de que a linguagem é ação humana. Não se trata mais de simples
enunciados, pois sempre que se observa um fenômeno linguístico, o que está em jogo é a
relação entre sujeitos, que agem, antes de mais nada, para estabelecer um campo comum,
onde travam relação e se fazem sujeitos.
Sendo assim, Humboldt é levado a concluir que a linguagem só pode existir no
processo contínuo que se desenrola entre os sujeitos da relação intersubjetiva. Nesse sentido,
considera que o léxico e a gramática de uma língua estão para esta, assim como um esqueleto
está para um corpo com vida (LAFONT apud NIGRO, 2009, p. 183).
Aliado a isso, Humboldt conclui que as formas pronominais básicas (“eu”, “tu”,
“ele”) são universais, ou seja, estão presentes em todas as línguas humanas. Disso se extrai
que a subjetividade brota do chão das práticas linguísticas, já que a onipresença das formas
pronominais indica que onde quer que haja um falante, este, ao falar, se destaca como um
“eu”, frente a outro sujeito (“não-eu”) (apud NIGRO, 2009, p. 186).
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Com isso, rompe-se com o paradigma da filosofia da consciência, para a qual o
sujeito se funda na reflexão da consciência sobre seus próprios processos
internos(MARCONDES, 2006, p. 167).
Portanto, o que se vê, em Humboldt, é a substituição de um fundamento abstrato
(consciência) por um fundamento concreto (linguagem), ainda que este não seja inteiramente
abarcável pela razão, dada a posição que ocupa a linguagem, ou seja, a posição de constituinte
do mundo e, sendo assim, da própria razão.
É nesse panorama mais amplo de mudanças paradigmáticas que se insere a obra
de Hans-Georg Gadamer, na esteira da tradição hermenêutica. Sua contribuição trará frutos
valiosos para o trabalho hermenêutico, área visceralmente ligada ao saber jurídico e que
poderá lançar luz sobre as novas demandas, aí existentes, de efetivação dos regimes
constitucionais do segundo pós-guerra, marcadamente dependentes do tratamento a ser
dispensado aos princípios.
5 A TRADIÇÃO HERMENÊUTICA E HEIDEGGER
Um rápido retrospecto histórico é necessário, a fim de se delinear o contexto em
que Heidegger – a fonte pela qual Gadamer acessa a tradição hermenêutica já inserida no
contexto da virada linguística – se apropria dos conceitos presentes nessa tradição.
Gadamer credita a Dannhauer, teólogo ligado à Reforma Protestante, a publicação
da primeira obra de que se tem notícia com o título “hermenêutica”, em 1654 (STRECK,
2011, p. 237). Sob o influxo da reforma e do renascentismo os estudos hermenêuticos dão
seus primeiros sinais, em busca de acesso aos textos sacros da tradição judaico-cristã e aos da
tradição literária grega – até então, vedados por força da censura e do monopólio
interpretativo impostos pela igreja católica (STRECK, 2011, p. 237). Era o período das
hermenêuticas especiais, voltadas para campos específicos de interesse, sem qualquer
pretensão de universalidade metodológica ou científica(STRECK, 2011, p. 238).
Só com Friedrich Schleiermacher, surge uma tentativa de se construir uma teoria
geral da interpretação, situada na questão do mal-entendido. Assim, onde houvesse textos
capazes de suscitar interpretações errôneas, lá haveria um campo de atuação para a
hermenêutica (STRECK, 2011, p. 238).
É, ainda, em Schleiermacher que se tem a retomada da noção de círculo
hermenêutico, consistente na ideia de que o particular (de uma obra) deve ser entendido à luz
do todo (da obra, do estilo ou escola à qual se vincula o texto) (GRONDIN, 1999, p. 120), o
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que permitiria um melhor entendimento da parte que, por sua vez, tornaria mais nítida a
concepção do todo, aprimorando-se, assim, a compreensão acerca da obra (STRECK, 2011, p.
238).
Em seguida, é Wilhelm Dilthey, no século XIX, que procura demarcar a
autonomia das chamadas ciências do espírito (em oposição às ciências naturais), buscando,
para tanto, no conceito de compreensão– já presente na tradição hermenêutica – o paradigma
para um tipo de pensamento que não se move em cadeias de causa e efeito (como as ciências
naturais) (STRECK, 2011, p. 235).
Por fim, o século XX, que vê surgir a obra de Martin Heidegger, que redefine
(expandindo) o objeto da hermenêutica, pois não se trata mais da interpretação de textos
(apenas), mas sim a própria experiência humana, sua condição, ou heideggerianamente
falando, o ser do ser-aí (STRECK, 2011, p. 239).
Assim, o círculo hermenêutico de Heidegger demonstra que o homem (ser-aí) só
pode dizer que uma coisa é porque já tem uma pré-compreensão do que seja esse “é”, já que o
ser-aí sabe que ele próprio é, ou seja, sabe de sua facticidade (STRECK, 2011,p. 240).
Outro ponto fulcral da hermenêutica de Heidegger é o chamado teorema da
diferença ontológica, pelo qual, na compreensão, ente e ser emergem em uma unidade, já que
o ente que é compreendido, apenas o é em seu ser; e, consequentemente, todo ser de uma
compreensão é sempre o ser de um ente (STRECK, 2011, p. 240-241).
Heidegger considera que o esquecimento dessa diferença (entificação do ser,) é
exatamente o que caracteriza a metafísica e sua forma de tratar a linguagem como terceira
coisa interposta entre o sujeito e o mundo. Assim, ao considerar que se pode conhecer uma
coisa em si mesma (o ente como ente) e, em seguida, formular uma imagem linguística capaz
de remeter outra pessoa a esse conhecimento puro (uma representação do ente) está-se
encobrindo o fato de que essa tal imagem linguística da coisa-em-si é muito mais que uma
simples representação de algo que se conheceu de forma puramente intelectual (pré-
linguística): ela é, na verdade, tudo naquele ato compreensivo, ou seja, é o que faz o ente
existente naquele momento (STRECK, 2011, p. 259).
Heidegger vai dizer que a metafísica, ao acreditar na possibilidade de conhecer o
ente como ente – ou seja, sem a interferência da linguagem – promove o esquecimento
(ocultamento) do ser, que passa a ser visto como se o próprio ente fosse, e não como a forma
pela qual o ente vem à existência na linguagem. E, deve-se frisar, isso é problemático para
Heidegger porque entificar o ser é dar-lhe uma formulação exaustiva, como se fosse possível
uma última palavra acerca da realidade, ou seja, uma verdade suprema totalmente expressa,
13
que torna a realidade algo definitivo, dado e acabado, inerte à subjetividade humana, ou seja,
uma “total objetivação” (STRECK, 2011, p. 260) (grifo no original).
Pode-se concluir, então que, com o teorema da diferença ontológica, Heidegger
busca resgatar a centralidade da linguagem para a experiência humana, na medida em que tal
teorema demonstra que a linguagem – que permite dizer o ser – é o que faz com que as coisas
(entes) existam. Ou seja, demonstra-se que existência não é algo que se dá fora da linguagem,
sendo, antes, a linguagem a constituidora onipresente de toda a existência (“a linguagem é a
morada do ser”).
Em outra de suas posições decisivas frente à tradição hermenêutica, Heidegger
quer mostrar que não se interpreta para compreender, antes, compreende-se para (condição de
possibilidade) interpretar. Isso se dá em função do círculo hermenêutico, segundo o qual a
compreensão eclode porque o ser-aí já tem uma pré-compreensão de si mesmo. Só depois,
surge a interpretação, para explicitar o que já foi compreendido(STRECK, 2011, p. 241).
Desses dois teoremas, emerge a constatação de que “[n]ão há uma ponte entre
consciência e mundo porque desde sempre já estamos no mundo compreendendo o ser”
(2011, p. 242).Tal assertiva suprime a ponte da relação representancional, que é concepção
fundante da metafísica.
Assim o paradigma instaurado pela concepção heideggeriana de hermenêutica
dissolve as fronteiras entre sujeito e objeto, coisa em si e representação, sustentáculo do
paradigma metafísico, até então vigente (STRECK,2011, p. 242).
6 A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA DE GADAMER
6.1 O foco não é mais o sentido do ser
Heidegger, como visto, aborda a questão da hermenêutica como um caminho para
se falar do ser, do efetivamente existente, pois ele é um típico filósofo e dizer “o que é” (o
sentido do ser) é a questão mais básica da filosofia. Com Gadamer e sua hermenêutica
filosófica, todavia, o foco dos interesses passa a sera questão de como se dá a compreensão.
Em resumo, para Gadamer, a questão do ser só é importante enquanto forma de elucidar a
questão da compreensão e, assim, “o compreender se desliga da questão do sentido do ser”
(STEIN, apud OLIVEIRA, 2013, p. 95).
14
6.2 A pré-compreensão(ou pré-conceitos)
Da aplicação do conceito de círculo hermenêutico, decorre que quando se vai a
algo (o texto jurídico, por exemplo), nunca se constata uma coisa inteiramente nova. Em vez
disso, sempre se leva consigo uma noção prévia que promove uma antecipação de sentido
(pré-compreensão), que já vem condicionada pelas categorias, juízos, etc. que o intérprete traz
consigo (STRECK, 2011, p. 256).
Diante disso, surge um falso problema: se todo conhecimento é condicionado por
pré-conceitos, como podemos ter um conhecimento verdadeiro, fidedigno, das coisas? Ora, a
questão é falsa porque, se todo conhecimento é assim condicionado, não existe nenhum outro
conhecimento que possa servir de padrão para valorar depreciativamente o conhecimento que
se tem (condicionado). Logo, as pré-compreensões que condicionam a interpretação não
devem ser vistas como limitações, entraves, mas sim como condições de possibilidade, sem as
quais não pode haver sentido algum. Vê-se, pois, que “A nossa historicidade não é uma
limitação, e sim um princípio de compreensão. Nós compreendemos e tendemos para uma
verdade, porque somos guiados neste processo por expectativas sensoriais” (GRONDIN,
1999, p. 186) (grifei).
Deve-se ressaltar, entretanto, que dizer que a pré-compreensão é condição de
possibilidade de toda interpretação não implica admitir que o intérprete deva se curvar, pura e
simplesmente a seus preconceitos, ignorando a realidade que o confronta como seu outro. Em
função disso, a hermenêutica filosófica adverte acerca da necessidade de buscar confirmação
(ou desconfirmação) dos pré-conceitos nas coisas mesmas e, além disso, ressalta que a
influência dos pré-conceitos não torna o sujeito solipsista, dada a existência da tradição (uma
determinada tradição jurídica, por exemplo) – em que os pré-conceitos são compartilhados
por uma comunidade de intérpretes.
Nesse sentido, Gadamer alerta para a necessidade de o intérprete sempre se
perguntar sobre quais pré-conceitos o guiam em sua compreensão, pois a impressão de que tal
compreensão é a mais natural ou a única possível é apenas o resultado do encobrimento de
sua estrutura preconceituosa. Ao fazer isso, o intérprete se verá como sujeito situado e não
mais como alguém inteiramente imparcial, isento (GADAMER apud GRONDIN, 1999, p.
187-188). É necessário, pois, descobrir qual é a relação entre os pré-conceitos que informam o
intérprete e os pré-conceitos que informar o texto ao qual ele se dirige (STRECK, 2011, p.
263).
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De tal modo, sendo a influência dos pré-conceitos algo inescapável, forçoso é
concluir que estes não estão à disposição do sujeito, vindo a ele de uma realidade que o
transcende e abarca, igualmente, outros sujeitos. Tem-se, então, uma realidade comum, a
partir da qual pode emergir uma mais legítima atribuição de sentido ao texto (uma lei, por
exemplo) (STRECK, 2011, p. 297).
6.3 A história efetual em Gadamer
Ante a importância dos pré-conceitos oriundos da tradição, inegável se torna a
estreita relação entre história e interpretação, o que torna imperioso o cultivo de alguma
espécie de consciência histórica crítica. Contudo, deve ser uma consciência histórica que não
caia no autoengano apontado por Gadamer em sua crítica ao historicismo, que pretendeu
alcançar um saber acerca da história que não fosse condicionado pelo momento histórico de
seu surgimento(GRONDIN, 1999, p. 186-187).
Em vista disso, Gadamer adota o conceito de história efetual, como forma de se
construir uma consciência histórica possível ao homem imerso em sua historicidade. Esse
conceito existe desde, pelo menos, o século XIX, e é oriundo das ciências literárias. Trata-se
do estudo acerca das interpretações produzidas por cada época (GRONDIN, 1999, p. 190).
Na hermenêutica filosófica, a história efetual é elevada à categoria de princípio
hermenêutico. Com isso, a hermenêutica gadameriana pretende alcançar uma consciência dos
condicionamentos de determinado período histórico, sem perder de vista que tal consciência
só é possível a partir dos condicionamentos impostos pelo momento histórico no qual ela se
insere (STRECK, 2011, p. 266).
Para a formulação dessa consciência histórico-efetual, Gadamer tem na distância
temporal um elemento de importância capital, o que se comprova pelo exemplo da arte
contemporânea e os tormentos que envolvem a tarefa de se determinar quais os princípios
interpretativos a ela aplicáveis, tormento esse que não se mostra presente na interpretação da
arte de períodos mais antigos (GRONDIN, 1999, p. 188).
6.4 A interpretação como tarefa criativa
O caráter produtivo (criativo) da interpretação em Gadamer (apud STRECK,
2011) é o ponto culminante de todas as considerações tecidas em torno do caráter existencial
da atividade interpretativa.
16
Se isso que antecede o intérprete – a tradição, fonte da pré-compreensão – é
história e, como tal, está em constante processo de vir-a-ser, então, a pré-compreensão da qual
parte o intérprete nunca será exatamente a mesma. E se assim é, também as interpretações não
serão jamais as mesmas, posto que dependentes dessa – embora não inteiramente
determinadas pela –história mutante que fornece as pré-compreensões ao intérprete(STRECK,
2011, p. 275).
Assim, para Gadamer (apud GRONDIN, 1999, p. 193; apud STRECK, 2011, p.
272, o intérprete atribui sentido ao texto: a posição de um intérprete nunca será a mesma de
outro e assim, sua interpretação também não será, sendo pois, uma interpretação nova. A
partir daí, a função da interpretação não será mais recuperar o sentido pretendido pelo autor
do texto, ou conhecer o que o texto é em si mesmo, independentemente das situações diante
das quais ele deverá ser aplicado.
Neste ponto, surge outra questão fulcral para a hermenêutica filosófica: a
incindibilidade entre interpretação e aplicação. Gadamer, apesar de estudar a hermenêutica
como fenômeno universal, toma a hermenêutica jurídica como seu exemplo privilegiado
(GADAMER apud OLIVEIRA, 2013, p. 20). Esse interesse se explica pelo fato de que o
jurista sempre busca interpretar a lei tendo diante de si um caso a ser resolvido. O motor da
atividade hermenêutica do jurista é o caso concreto, ou seja, a aplicação (applicatio).
Partindo desse exemplo privilegiado, Gadamer busca demonstrar que a applicatio
é também o que domina as outras hermenêuticas, tais como a histórica, já que, também o
historiador, sempre interpreta a partir de uma posição hermenêutica, buscando respostas para
o tempo e o lugar em que se insere. Ele tem perguntas a responder, quer respostas adequadas a
seu tempo e lugar, e é a partir daí, desses pré-conceitos que interpretará sempre. E o fará de
modo a aplicar o sentido a ser obtido às suas questões.
Diante de tais considerações, vê-se que toda interpretação já vem impregnada das
questões que levam o homem a interpretar, sendo mera ficção a ideia de que, no ato
interpretativo, ele possa fazer abstração das influências geradas por essas questões, para então,
alcançar um suposto sentido puro das coisas. Logo, a aplicação já ocorre no momento da
interpretação(STRECK, 2014, p. 300)(grifos no original).
Deve-se ressaltar que o teorema do círculo hermenêutico é o responsável por esse
caráter reflexivo que assume a compreensão: a compreensão é um ato profundamente
influenciado por aquilo que o ser que compreende é, logo, por meio de uma determinada
compreensão, pode-se saber quem é aquele que assim compreendeu. Eis a razão de se afirmar
que “[n]o compreendido está o compreendedor” (STRECK, 2011p. 275).
17
Como visto, Gadamer se permite concluir que a condição existencial do intérprete
– sua história, sua posição no mundo – é a base concreta de que se pode partir, sem risco de
autoengano. Não se pode, sob esse enfoque falar em sentidos puros, congelados em alguma
dimensão puramente ideal, à qual o intérprete, por meio do método adequado, possa ascender
ao fazer abstração de todos os seus condicionamentos linguísticos (STRECK, 2014, p. 304).
Essa visão filosófica da interpretação fará com que a Crítica Hermenêutica do
Direito conceba os princípios de uma forma que não envolva a fixação abstrata (dedutivista)
do que eles sejam, a partir de conceitos obtidos aprioristicamente, como se verá a seguir.
7 COMBATENDO A DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL
7.1 A integração entre discurso jurídico e mundo prático pelo conceito dworkiniano de
princípio
O rompimento com o paradigma metafísico, nos termos propostos por Heidegger
(apud STRECK, 2011, p. 240-241) - e seguidos por Gadamer – através dos teoremas do
círculo hermenêutico e da diferença ontológica, não mais permite abordar o fenômeno da
linguagem por meio, apenas, de seus aspectos sintático (relação entre os signos) e semântico
(relação entre os signos e as coisas do mundo). O seu aspecto pragmático (relação dos signos
com seus usuários) também deve ser considerado, o que vale, de igual modo, para o
fenômeno jurídico, visceralmente ligado que é à linguagem.
Desse modo, a pretensão de conhecer uma coisa em si mesma –
independentemente dos condicionamentos linguísticos que determinam o pensamento – passa
a carecer de sentido para o Direito. Tal reflexo da virada linguística tornará necessária a
superação da crença positivista em um sujeito capaz de formular um conhecimento
inteiramente isento de suas próprias condições existenciais – ou seja, o chamado esquema
sujeito-objeto.
De fato, a partir de Heidegger (apud STRECK, 2011) e Gadamer (apud
STRECK, 2011; apud GRONDIN, 1999 e apud OLIVEIRA, 2013), fica inviável pensar em
um conhecimento pré-linguístico (a priori), dada a natureza ontológica da linguagem (a
linguagem constitui/abre o mundo), que faz com que esta sempre exista antes de qualquer
conhecimento, na forma de pré-compreensão (caráter ontológico do círculo hermenêutico).
Assim, o intérprete nunca partirá de um “ponto zero”, mas sempre de algo que o antecede,
que lhe serve de ponto de partida e, por isso, o influencia de alguma forma.
18
Com isso, poder-se afirmar o fim da crença na separação entre mundo e
linguagem, já que qualquer compreensão que se tenha sobre o mundo sempre parte de uma
compreensão anterior e que se tem por válida, ao menos em parte. Ou seja, não se pode
abandonar a linguagem para se chegar ao mundo como coisa-em-si. Por mais básica que seja
a percepção de que se busque partir, ela sempre será algo já antes compreendido e acolhido
pelo sujeito que busca conhecer algo. Este algo, portanto, sempre será linguagem, a qual, por
isso, não mais pode ser vista como uma terceira coisa que se interpõe entre sujeito e objeto
(mundo).
Logo, se mundo é linguagem e linguagem é mundo, necessário resgatar o mundo
para o discurso jurídico que, como todo discurso, é linguagem. Assim, levar em consideração
esse mundo que é o “objeto” (em sentido não-metafísico) da normação do direito é fazer com
que este alcance seu sentido mais pleno.
Neste ponto, entra em cena o pensamento dworkiniano, no qual os princípios não
são, como as regras, simples enunciados abstratos, postos por algum órgão do poder público.
Em vez disso, são noções difusas na consciência de uma coletividade historicamente
determinada, acerca da forma como os negócios dessa coletividade devem ser conduzidos.
Assim, os princípios são, para Dworkin, lastreados na realidade sócio-histórica concreta,
sendo por isso, dotados de temporalidade (DWORKIN, 2007, pp. 64-65).
Tais elementos permitem afirmar a compatibilidade da tese de Dworkin sobre os
princípios – ao menos no tocante à sua relação com o mundo prático – com a tese da crítica
hermenêutica do direito, aqui explorada.
É essa estreiteza de laços entre mundo prático e princípios, que fará destes o
liame que urge estabelecer entre esse mundo (o único que existe) e o discurso jurídico. E
assim, o grande impasse entre positivismo jurídico e constitucionalismo
contemporâneo/estado democrático de direito – a discricionariedade judicial – encontra,
segundo a crítica hermenêutica do direito, a sua adequada solução.
Esse papel crucial atribuído aos princípios é desempenhado através do que Streck
denomina “fechamento interpretativo”, o qual constrange o intérprete, que não mais se vê
diante de uma situação em que várias interpretações se revelam viáveis, já que os princípios,
em Dworkin, “retira[m] seu conteúdo normativo de uma convivência intersubjetiva que
emana dos vínculos existentes na moralidade política da comunidade” (STRECK, 2014, p.
547).
Neste novo paradigma, portanto, os textos jurídicos, em vez de serem encarados
como simples instrumentos que apontam para regras jurídicas existentes em um plano além
19
da realidade histórica e imune a seus efeitos, são tratados como parte integrante de um grande
continuum que abrange essa realidade, de onde também emergem os princípios. Assim, o
texto jurídico encontrará o fechamento necessário na história institucional do direito (mundo
prático), que será reconstruída por meio dos princípios, e constituirá o universo pré-
compreensivo constrangedor do labor do intérprete, já que os “princípios são [...] estas
marcas que balizam a formação da história institucional do direito [...] [que] possibilita a
formação legítima de algo como uma decisão judicial” (STRECK, 2014, p. 552).
É a partir desse caráter condicionador da história – recontada através dos
princípios – que passa a ser possível (e necessário) falar em resposta correta (verdade), a qual
não pode ser fixada por critérios abstratos, mas somente diante da realidade histórica da qual
faz parte também o texto jurídico aplicável ao caso. É o que se extrai da applicatio
gadameriana – ou seja, que não há sentido para um texto fora do mundo.
Trata-se, pois, da adoção de um conceito hermenêutico de normatividade que,
enquanto hermenêutico, deve levar em conta: i) as influências de um universo pré-
compreensivo (círculo hermenêutico); e ii) a não separação entre texto e sentido/norma
(diferença ontológica). Evidencia-se, assim, que a nova hermenêutica jurídica – de que se
ocupa o presente trabalho – trata de tornar visível o texto/regra em sua normatividade,
advinda esta da principiologia, que enraíza o direito em seu contexto histórico. É dizer, “a
palavra „norma‟ representa o produto da interpretação de um texto, isto é, o produto da
interpretação da regra jurídica realizada a partir da materialidade principiológica” (STRECK,
2014, p. 556) (grifo no original).
O que se vê, portanto, é o abandono de qualquer conceito de norma que seja pré-
estabelecido abstratamente. Postula-se, em vez disso, que a normatividade exsurge no caso
concreto, não sendo, pois um gênero do qual são espécies as regras e os princípios, como
querem, em geral, as teorias da argumentação jurídica de cariz pós-positivista.
7.2 Da impossibilidade e da nocividade de um conceito semântico de princípio
A partir do que foi dito acerca da inextricável ligação entre texto jurídico e
mundo prático, constata-se que normas jurídicas existem apenas diante de casos concretos.
Nessa perspectiva, fica clara a inadequação das teorias que trabalham com um conceito
semântico de norma, tais como as teorias da argumentação pós-positivistas, notadamente a
teoria de Robert Alexy. Nela, observa-se uma distinção estrutural entre regras e princípios,
espécies do gênero norma jurídica. Tal pensamento supõe que essa palavra (norma) se refira a
20
uma coisa do mundo, que pode ser apontada pela linguagem, entendida esta como terceira
coisa que não é nem o sujeito que aponta, nem a coisa que é apontada (paradigma metafísico)
(STRECK, 2014, p. 556).
Ocorre que esse expediente teórico introduz nos conceitos por ele gerados, de
forma insuspeita, os pré-conceitos daquele que assim procede. Esses preconceitos, então,
escapam de uma reflexão acerca de sua autenticidade, por meio da qual poderiam ser
justificados (ou rejeitados), conforme fossem ou não autênticos (conformes aos
compromissos firmados ao longo da história institucional do direito, no caso da teoria do
direito).
Alexy, a exemplo do que costuma ocorrer no contexto das teorias da
argumentação, ao tratar a norma como um conceito semântico, faz dela um gênero, do qual
são espécies as regras e os princípios. Daí decorre que estes últimos perdem sua ligação com
o mundo histórico, ficando frustrada a obtenção de uma visão mais autêntica do direito, como
resultado da interpretação que o ser humano (ser-aí) faz de sua própria situação existencial,
tornada visível na e pela linguagem; em outras palavras, como algo inextricavelmente ligado
ao homem.
A questão não é, contudo, meramente filosófica, pois traz consequências de
ordem prática. Trata-se do fato de que as teorias da argumentação acabaram por agravar o
problema da discricionariedade judicial. Antes, no contexto do modelo puramente positivista,
a discricionariedade era invocada apenas quando não houvesse uma regra clara para decidir o
conflito. Agora, no contexto das teorias da argumentação, operando com princípios enquanto
normas jurídicas, a discricionariedade se expandiu também para as situações de colisão de
princípios.
Isso se dá porque a abordagem dos princípios como espécies do gênero norma,
atribui-lhes uma suficiência para resolver casos concretos. Daí derivam as colisões entre
princípios (em razão do seu dever-ser alargado), o que demanda a realização de ponderações,
momento em que o intérprete é senhor dos sentidos, já que o elemento histórico que poderia
orientá-lo na interpretação foi retirado do âmbito dos princípios, quando estes foram tomados
como normas passíveis de serem conhecidas em abstrato (STRECK, 2014, p. 580).
A crítica aqui exposta, finda por concluir que tal abordagem acerca dos princípios
torna inócuo seu poder de combater a discricionariedade, grande foco das críticas ao
positivismo jurídico, o qual sempre professou a fé no método (subsuntivo) – em se tratando
de casos fáceis – e quando esse método não se mostrava eficaz, confiava a decisão à
discricionariedade do juiz (STRECK, 2014, p. 583).
21
7.3 A Crítica Hermenêutica do Direito diante de um caso concreto
Do que se expôs até aqui, podem-se extrair dois postulados de importância basilar
para a crítica hermenêutica do direito: i) um texto não possui suficiência ôntica, sendo assim,
não pode ser interpretado sem o auxílio de uma tradição (reconstrução da história
institucional do direito); e ii) o constitucionalismo contemporâneo depende da normatividade
dos princípios, que são os elementos capazes de tornar visíveis os compromissos assumidos
ao longo da história institucional desse movimento.
Tais postulados revelam sua importância diante do polêmico caso dos
guerrilheiros Carlos Lamarca e Carlos Miraguela – mortos por agentes do estado brasileiro
durante o período ditatorial inaugurado em 1964 – em face da Lei n.º 9.140/95. Referido
diploma estabeleceu o direito a indenização para pessoas desaparecidas ou mortas durante o
período de 1961 a 1979, que abrange a maior parte da ditadura militar que marcou a recente
história brasileira.
O art. 4.º da citada lei refere-se a pessoas mortas por causas não naturais, em
“dependências policiais ou assemelhadas” (art. 4.º, I, “b”). Tais termos geraram dissenso
entre os juristas, uma vez que os mencionados guerrilheiros não morreram em locais como os
elencados na lei, senão que um morreu no sertão da Bahia e o outro na rua onde morava. Por
isso, passou-se a discutir se eles fariam, ou não, jus a indenizações com base na Lei 9.140/95
(STRECK, 2014, p. 562-564).
A discussão, contudo, no melhor estilo positivista, girou em torno de saber se o
termo “assemelhadas” abrangeria, ou não, os locais onde morreram Lamarca e Miraguella
(STRECK, 2014, p. 562).
Tal discussão é consequência direta da forma como se pensa o direto dentro do
modelo do positivismo jurídico: i) ou se considera que haja uma resposta correta no texto
jurídico, à espera de ser descoberta pelo intérprete (exegetismo); ii) ou se sustenta que o
intérprete tem poder discricionário para decidir, “segundo seu prudente arbítrio”, ante a
ausência de norma clara (positivismo conceitual).
O que há de comum em ambas as posturas é o estabelecimento arbitrário, porque
apriorístico2, de uma ficção que, pretende-se, seja a verdade para todos os casos. Dessa
forma, o direito passa a ser identificado com qualquer coisa que se queira, sem a necessidade
2O termo, aqui, se refere à postura própria da metafísica de crer na possibilidade de um pensamento e
uma linguagem correspondente que não sejam condicionados pelas condições históricas e sociais de
sua surgência (mundo prático).
22
de qualquer justificação em face do sentido histórico das instituições jurídicas legadas pela
tradição – tais como o constitucionalismo contemporâneo e o estado democrático de direito.
Uma análise hermenêutica do caso revela que a discussão acerca do alcance do
termos “assemelhadas”, constante da lei, oculta a questão central do caso que é o
reconhecimento, por parte do estado, de que agiu em detrimento de importantes direitos da
sociedade e que diversas pessoas foram vitimadas individualmente por tais atos. Tal
constatação serve, em termos dworkinianos, como padrão (princípio) que os juízes devem
levar em consideração ao interpretar a lei 9.140/95.
Uma vez eclipsado, de tal modo, o ponto nodal da questão, jamais se alcançará
uma solução legítima para o caso, porque fundada nos compromissos assumidos com a
promulgação da Carta Constitucional de 1988. Em outras palavras, a abordagem do texto
normativo abstraído da realidade histórica da qual emergiu só poderia conduzir a uma decisão
arbitrária, baseada na discricionariedade do órgão julgador, já que o texto encarado de forma
bidimensional (sintaxe e semântica) não fornece elementos para decidir qual das possíveis
interpretações é a adequada à ordem constitucional. Eis a aporia a que conduzem as teorias
orientadas pela crença juspositivista na separação entre texto jurídico e mundo prático.
Em contrapartida, uma leitura da lei como parte integrante da realidade histórica
em que se insere, em conjunção com a normatividade dos princípios que recontam essa
história, pode fornecer uma decisão não arbitrária. Uma decisão que considere que, após
reconhecer a ação ilegítima do estado, não pode o legislador, arbitrariamente, eleger algumas
hipóteses em que tal reconhecimento produzirá consequências jurídicas (pessoas mortas em
dependências policiais e assemelhadas), deixando de fora outras hipóteses que apresentam o
mesmo sentido histórico que as anteriores (pessoas mortas fora dos estabelecimentos
indicados na lei). Tal discriminação se revela intolerável frente aos compromissos históricos
que orientam principiologicamente o ordenamento jurídico pátrio (com destaque para o
compromisso designado pela rubrica de princípio da igualdade).
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A história da filosofia testemunhou, como visto, um rompimento com o
paradigma metafísico, o que coloca a linguagem no centro de todas as grandes questões
filosóficas. Assim, resta à teoria do direito recepcionar essa inovadora forma de conceber a
linguagem, que não mais sustenta a pretensão de conhecer uma coisa em si mesma –
independentemente dos condicionamentos linguísticos que determinam o pensamento.
23
Consectário jurídico dessa reviravolta linguística é a superação do positivismo
jurídico, fundado que está no metafísico esquema sujeito-objeto. Esse modo de conceber o
conhecimento passa a carecer de fundamento, em face do teorema do círculo hermenêutico,
que demonstra que nunca haverá um puro sujeito (como quer a metafísica), posto que toda
interpretação do sujeito é condicionada pelos usos linguísticos estabelecidos, condicionando,
inclusive, a autocompreensão desse sujeito (não mais puro).
Para recepcionar tais avanços no campo do direito, é necessário perceber que o
este não alcança seu sentido mais pleno sem que se leve em consideração o mundo, que é
constituído pela linguagem e cuja interpretação se dá mediante condicionamentos
linguísticos. Nesse ponto, o pensamento de Dworkin, atribuindo normatividade aos
princípios, como via de superação do recurso sistemático ao poder discricionário dos juízes,
consectário do positivismo jurídico.
Ao defender que os princípios sustentam-se em emaranhados de práticas e
compromissos políticos firmados no interior de uma dada comunidade jurídica, Dworkin
promove a superação da cisão entre texto e mundo – que é o que faz da decisão judicial, em
certos casos, uma questão de discricionariedade. Com isso, Dworkin cumpre a exortação pós-
metafísica (Heidegger/Gadamer) para que se trate a linguagem como parte do mundo que ela
torna visível.
De tal modo, a tese da crítica hermenêutica do direito revela-se viável. Dworkin e
a hermenêutica filosófica podem ser conjugados a fim de se promover a inserção do mundo
prático no discurso jurídico, eliminando-se, de tal modo, a necessidade de recorrer-se à
discricionariedade judicial.
Assim, na esteira desse novo paradigma, o texto jurídico – visto pelo positivismo
como dotado de uma textura aberta – encontrará o fechamento necessário na história
institucional do direito (mundo prático), que será reconstruída por meio dos princípios. Com
isso, passa a ser possível (e necessário) falar em resposta correta (verdade) diante de um caso
jurídico concreto, já que o texto normativo não mais está entregue à sua própria
(in)suficiência ôntica, mas é integrado pela realidade histórica da qual emerge.
Por fim, o caso Lamarca-Miraguella bem ilustra o quanto a pré-compreensão é
necessária para uma atribuição de sentido legítima ao texto normativo. Em resumo, o
intérprete não está a salvo dos condicionamentos linguísticos que lhe chegam da tradição e,
portanto, não é livre para interpretar. Logo, pode-se falar em verdade, e isso, como faz ver
Gadamer, não é uma questão de método, mas de conexão com o mundo prático.
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REFERÊNCIAS
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