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Carta aos 19% Caro desempregado, Em nome de Portugal, gostaria de agradecer o teu contributo para o sucesso económico do nosso país. Portugal tem tido um desempenho exemplar, e o ajustamento está a ser muito bem-sucedido, o que não seria possível sem a tua presença permanente na fila para o centro de emprego. Está a ser feito um enorme esforço para que Portugal recupere a confiança dos mercados e, pelos vistos, os mercados só confiam em Portugal se tu não puderes trabalhar. O teu desemprego, embora possa ser ligeiramente desagradável para ti, é medicinal para a nossa economia. Os investidores não apostam no nosso país se souberem que tu arranjaste emprego. Preferem emprestar dinheiro a pessoas desempregadas. Antigamente, estávamos todos a viver acima das nossas possibilidades. Agora estamos só a viver, o que aparentemente continua a estar acima das nossas possibilidades. Começamos a perceber que as nossas necessidades estão acima das nossas possibilidades. A tua necessidade de arranjar um emprego está muito acima das tuas possibilidades. É possível que a tua necessidade de comer também esteja. Tens de pagar impostos acima das tuas possibilidades para poderes viver abaixo das tuas necessidades. Viver mal é caríssimo. Não estás sozinho. O governo prepara-se para propor rescisões amigáveis a milhares de funcionários públicos. Vais ter companhia. Segundo o primeiro-ministro, as rescisões não são despedimentos, são janelas de oportunidade. O melhor é agasalhares-te bem, porque o governo tem aberto tantas janelas de oportunidade que se torna difícil evitar as correntes de ar de oportunidade. Há quem sinta a tentação de se abeirar de uma destas janelas de oportunidade e de se atirar cá para baixo. É mal pensado. Temos uma dívida enorme para pagar, e a melhor maneira de conseguir pagá-la é impedir que um quinto dos trabalhadores possa produzir. Aceita a tua função neste processo e não esperneies.

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Carta aos 19%Caro desempregado, Em nome de Portugal, gostaria de agradecer o teu contributo para o sucesso económico do nosso país. Portugal tem tido um desempenho exemplar, e o ajustamento está a ser muito bem-sucedido, o que não seria possível sem a tua presença permanente na fila para o centro de emprego. Está a ser feito um enorme esforço para que Portugal recupere a confiança dos mercados e, pelos vistos, os mercados só confiam em Portugal se tu não puderes trabalhar. O teu desemprego, embora possa ser ligeiramente desagradável para ti, é medicinal para a nossa economia. Os investidores não apostam no nosso país se souberem que tu arranjaste emprego. Preferem emprestar dinheiro a pessoas desempregadas. Antigamente, estávamos todos a viver acima das nossas possibilidades. Agora estamos só a viver, o que aparentemente continua a estar acima das nossas possibilidades. Começamos a perceber que as nossas necessidades estão acima das nossas possibilidades. A tua necessidade de arranjar um emprego está muito acima das tuas possibilidades. É possível que a tua necessidade de comer também esteja. Tens de pagar impostos acima das tuas possibilidades para poderes viver abaixo das tuas necessidades. Viver mal é caríssimo. Não estás sozinho. O governo prepara-se para propor rescisões amigáveis a milhares de funcionários públicos. Vais ter companhia. Segundo o primeiro-ministro, as rescisões não são despedimentos, são janelas de oportunidade. O melhor é agasalhares-te bem, porque o governo tem aberto tantas janelas de oportunidade que se torna difícil evitar as correntes de ar de oportunidade. Há quem sinta a tentação de se abeirar de uma destas janelas de oportunidade e de se atirar cá para baixo. É mal pensado. Temos uma dívida enorme para pagar, e a melhor maneira de conseguir pagá-la é impedir que um quinto dos trabalhadores possa produzir. Aceita a tua função neste processo e não esperneies. Tem calma. E não te preocupes. O teu desemprego está dentro das previsões do governo. Que diabo, isso tem de te tranquilizar de algum modo. Felizmente, a tua miséria não apanhou ninguém de surpresa, o que é excelente. A miséria previsível é a preferida de toda a gente. Repara como o governo te preparou para a crise. Se acontecer a Portugal o mesmo que ao Chipre, é deixá-los ir à tua conta bancária confiscar uma parcela dos teus depósitos. Já não tens lá nada para ser confiscado. Podes ficar tranquilo. E não tens nada que agradecer.

U omãi qe dava pulus (i põtapés na gueramática)

"Ser visto e ser ouvisto pelos portugueses é também uma razão de justificar o investimento" -  Miguel Relvas  A gente somos um país muita curioso. Houveram eleições e, com base no que tínhamos visto e ouvisto na campanha eleitoral, votámos maioritariamente nos partidos que assinaram com a troika um acordo, digamos, difícil de cumprir. Mas hádem dizer-me quantos são, mesmo entre os que votaram no seu partido, aqueles que admiram, respeitam ou sequer toleram o trabalho e a figura de Miguel Relvas. O ministro não

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parece ser muito popular, derivado do seu envolvimento em alguns escândalos como, por exemplo, o da licenciatura. Mas nem por isso deslarga o poder. Entrou para dentro do Governo, há dois anos atrás, e ninguém o tira de lá. Para fora. Prontos, mas as pessoas não são só defeitos. E Miguel Relvas tem o grande mérito de constituir um exemplo, parece-me a mim. Muitos desempregados não conseguem arranjar emprego por causa que têm habilitações a mais. Miguel Relvas obteve o seu com emprego mesmo tendo claramente habilitações a menos. Apontou para baixo e foi bem sucedido. Estabeleceu um objectivo mais modesto e atingiu-o. E ainda o acusam de ser muito ambicioso...Os cortes no Estado social não são uma necessidade de poupança, são uma estratégia de futuro. Relvas deseja que o Governo faça cortes na educação porque ele próprio cortou na sua e venceu. Conhece, por experiência própria, as vantagens de desinvestir na educação. É uum exemplo de sucesso de deformação profissional. Como cidadões, temos muito a aprender com ele. Ou a desaprender, já não sei.

Soares fala mal francês, Sócrates falava mal inglês e espanhol, e Relvas fala mal português. Quase todos os políticos que nos governam hoje falam mal português, aliás. Veja-se o caso de Angela Merkel. Saberá dizer duas, três palavras no máximo. Os nossos dirigentes sempre tiveram um problema com as línguas. E, tendo em conta o estado em que o país se encontra, também não parecem ser melhores nos números. Talvez tenham sido daqueles alunos que só eram bons em educação física.

Andava um burlão em Portugal mas identificaram-no

O leitor acompanhou a história daquele burlão que apareceu na comunicação social a dar falsas esperanças aos portugueses? Foi realmente incrível, a mensagem de Natal de Pedro Passos Coelho. Quando o primeiro-ministro prometeu que, para o ano, todos iríamos beneficiar de novas oportunidades, fiquei com a sensação de que, em 2013, o País ia ser um lugar de sonho, em que toda a gente conseguiria usufruir de condições excepcionais para subir na vida. No fundo, que o Portugal do ano que vem seria para os portugueses o que o BPN da última década foi para aqueles amigos do Presidente da República. Por isso mesmo, a promessa não me entusiasmou. Gozar daquele tipo de benefício pode ser agradável, no início, e até render milhões, mas depois sabemos como tudo acaba: olhe-se para as dezenas e dezenas de implicados no escândalo do BPN, para as fortunas que tiveram que devolver, para as duras penas de prisão que estão a cumprir. A esse preço, ninguém deseja ser bem-sucedido na vida.Falou-se ainda noutro burlão, mas confesso que não consegui perceber a história. Primeiro, a comunicação social disse que se tratava de um prestigiado professor de economia social e observador das Nações Unidas. Depois, a mesma comunicação social disse que era um charlatão. Eu, que não acredito em nada do que vem na comunicação social, fiquei satisfeito com a minha posição de princípio, mas sem saber o que pensar acerca deste caso concreto. Limitei-me a registar, com alguma surpresa, o entusiasmo dos que se gabaram de ter encontrado um burlão em Portugal. Olha que façanha. É por isto que o País não avança: as pessoas contentam-se com pouco. Muito menos compreendi a galhofa de quem assinalou que o burlão tivesse tido tempo de antena. Toda a gente sabe como funciona o mundo: um charlatão crítico da austeridade pode

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conseguir uma tribuna na televisão; um charlatão partidário da austeridade pode chegar a secretário de Estado. Ou até um pouco mais acima.Não quero fazer a rábula do cínico, mas a verdade é que o País já não me surpreende com estes truques antigos. Portugal terá de se esforçar muito mais se quiser impressionar-me - e acredito que queira. Sonho, por exemplo, com o dia em que não leremos considerações sobre o Natal no facebook de Pedro Passos Coelho, mas considerações sobre Pedro Passos Coelho no facebook do Natal. Bem sei que as quadras festivas não têm (por enquanto) facebook, mas seria tão estimulante para o povo português que os desabafos de Passos Coelho sobre o Natal fossem substituídos por desabafos do Natal sobre Passos Coelho. Exemplifico: "Amigos, este não era o primeiro-ministro que merecíamos. Muitas famílias não tiveram na Consoada os pratos a que se habituaram porque ele aumentou os impostos e cortou os subsídios, apesar de ter garantido que não o faria. A todos vós, no fim deste ano tão difícil em que tanto já nos foi pedido, peço apenas que procurem a força para, quando olharem os vossos filhos e netos, o façam não com vergonha por terem votado neste homem, mas com a esperança de quem sabe que a legislatura só dura até 2015 - ou mais cedo, se Paulo Portas entender que isso é benéfico para o CDS-PP. A Páscoa e eu desejamos a todos umas Festas Felizes. Um abraço, Natal." Isso seria suficientemente bizarro para conseguir ser surpreendente em Portugal. Ao menos, durante dez minutos.