Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro

O Tratamento Jurdico das Relaes Simultneas sob a tica da Dignidade da Pessoa Humana

Luciana Najan Silva da Cruz

Rio de Janeiro

2010

LUCIANA NAJAN SILVA DA CRUZ

O Tratamento Jurdico das Relaes Simultneas sob a tica da Dignidade da Pessoa Humana

Artigo Cientfico apresentado Escola de

Magistratura do Estado do Rio de Janeiro,

como exigncia para obteno do ttulo de

Ps- Graduao.

Orientadores: Prof. Nli Fetzner

Prof. Nelson Tavares

Rio de Janeiro

2010

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O RECONHECIMENTO JURDICO DA UNIO ESTVEL PUTATIVA COMO

COROLRIO DO PRINCPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Luciana Najan Silva da Cruz

Graduada pela Universidade Federal do

Estado do Rio de Janeiro UNIRIO. Advogada.

Resumo: A famlia uma das formas de realizao do indivduo e a sua proteo decorre de

um imperativo do princpio da dignidade da pessoa humana. Com o passar do tempo as

relaes familiares deixaram de se restringir forma tradicional do casamento para ampliar as

suas representaes e o ordenamento jurdico no permaneceu alheio s mudanas. Falar em

Direitos das Famlias e entidades familiares falar de relaes afetivas e, como tais, so

amplas e diversificadas. Nesse passo, tambm merecem proteo jurdica as unies

simultneas, as quais ensejam divergncias doutrinrias e jurisprudenciais. A essncia deste

trabalho promover um estudo de tais relaes simultneas e como so tratadas pelo

ordenamento jurdico, abordando as principais divergncias doutrinrias e jurisprudenciais

sobre o tema.

Palavras-chave: Direito das Famlias. Dignidade da Pessoa Humana. Relaes Paralelas.

Entidade Familiar.

Sumrio: Introduo. 1. Evoluo histrica das relaes familiares. 2. Discusses

doutrinrias acerca das unies simultneas. 3. O reconhecimento jurdico da unio simultnea

luz da dignidade da pessoa humana. 4. Anlise Jurisprudencial. Concluso. Referncias.

1 - INTRODUO

O trabalho ora proposto enfoca a temtica da unio simultnea ou paralela. O Cdigo

Civil de 1916, visando proteo da famlia constituda segundo os ditames sociais daquele

momento regulou apenas as relaes matrimoniais, ou seja, o casamento. Qualquer outra

relao afetiva que no se constitusse por meio do casamento no possua proteo legal. No

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entanto, tal situao no impediu que outras formas de unio se formassem ainda que

destitudas de amparo legal. Nesse passo, inicialmente, a jurisprudncia, buscando solucionar

os conflitos decorrentes das relaes afetivas, e, posteriormente, a prpria legislao, passou a

reconhecer que o casamento no , e nem poderia ser, a nica forma de entidade familiar a

merecer especial proteo jurdica. Tanto assim, que o legislador constituinte reconheceu a

unio estvel como entidade familiar, assim como a famlia monoparental e, ainda, hoje se

discute a necessidade do reconhecimento da unio homoafetiva como famlia.

Portanto, tem-se que a famlia no um instituto com forma e molde previamente

estipulados que poderia ser congelado em conceituaes jurdicas imutveis. Ao contrrio, a

famlia um fato social e, como tal, sofre inmeras modificaes de acordo com os conceitos

e valores de determinado momento histrico. No entanto, por sua importncia na realizao

pessoal do indivduo e dentro da sociedade, a famlia merece especial proteo do Direito,

como bem assevera o artigo 226 da Constituio. E, o Direito das Famlias que regula tais

relaes afetivas, sendo certo que diversos so os princpios que regem a matria, dentre eles,

o da dignidade da pessoa humana, da afetividade, do pluralismo familiar e da monogamia.

O presente trabalho busca problematizar esse ltimo princpio mencionado diante da

realidade social que remete existncia de relaes simultneas, de modo a relativizar o

referido princpio luz da dignidade da pessoa humana. A monogamia no um princpio

constitucional, em verdade, a monogamia tem uma funo ordenadora da famlia de modo que

o direito no reconhece relaes decorrentes da violao do dever moral de fidelidade. Assim

que a lei determina os impedimentos matrimoniais e tais impedimentos se estendem unio

estvel j que esta se equipara ao casamento para efeitos legais, bem como determina que a

bigamia causa de anulao do casamento.

Nada obstante, nas relaes cotidianas comum que uma nica pessoa mantenha duas

relaes familiares, so as relaes simultneas, que, apesar de no possurem previso legal,

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no deixam de produzir efeitos jurdicos. Ressalta-se que no se refere aqui a relaes

extramatrimoniais eventuais, mas a relaes que possuem todos os requisitos elencados na lei

como caracterizadores da unio estvel, tais como, a convivncia pblica, a continuidade da

relao e o nimo de constituir famlia. No se pode deixar de reconhecer que tais

relacionamentos produzem efeitos jurdicos, haja vista que aqueles envolvidos numa relao

de concubinato podem, por exemplo, construir patrimnio e ter filhos. Logo, a monogamia o

modelo familiar tpico das sociedades ocidentais e o presente trabalho no busca negar essa

condio, tampouco pregar outro modelo institucional. O que se objetiva um estudo do

tratamento dos efeitos jurdicos que decorrem das relaes simultneas, realidade ftica que

no pode ficar margem do Direito.

O tratamento e a proteo jurdica que se d a essas segundas relaes, portanto, o

objeto do presente artigo. Ao longo do artigo, sero analisados os princpios norteadores do

Direito das Famlias, as discusses doutrinrias e jurisprudenciais que o tema enseja, a

necessidade do reconhecimento das tais relaes quando se analisa a questo sob a tica da

dignidade da pessoa humana e a soluo dos tribunais para as questes referentes ao tema que

so levadas ao Judicirio.

O objetivo principal partir da anlise da evoluo histrica das relaes familiares e

do tratamento jurdico dado a elas ao longo do tempo para melhor compreender e interpretar a

legislao vigente acerca do tema e os direcionamentos que a doutrina e a jurisprudncia vm

buscando.

A pesquisa adotou o procedimento qualitativo do tipo descritivo e parcialmente

exploratria.

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1 EVOLUO HISTRICA DAS RELAES FAMILIARES

A unio de pessoas pelo vnculo familiar no fato recente. Ao contrrio, enquanto

seres sociais, os homens sempre buscaram a manuteno de vnculos, seja por interesses de

classes, por relaes trabalhistas ou relaes de amizade, interesses polticos, e, tambm,

relaes de afeto.

Antes de tudo, portanto, a famlia uma construo social e como tal se organiza

segundo as normas ditadas pela cultura do local onde est inserida, o que se altera de acordo

com o momento histrico e com a evoluo dos anseios da sociedade, sendo certo que em

diferentes sociedades possvel se encontrar diferentes formas de organizaes familiares. O

que se quer dizer com isso que famlia no um conceito congelado, esttico e imutvel,

mas uma instituio que sofre modificaes de acordo com a evoluo social.

um fato natural que, no entanto, gera diversas situaes que interessam ao Direito,

tais como a filiao, a construo de patrimnio comum, o uso do nome, a dependncia

econmica entre os cnjuges, o dever de sustento, a separao, dentre outros.

Por tal razo, se impe a interveno estatal por meio da ordem jurdica para regular as

relaes familiares, de modo a no deixar os efeitos que delas decorrem livre disposio das

partes envolvidas. Essa interveno do Estado nas relaes privadas, como expe DIAS

(2009, p.27), levou instituio do casamento: conveno social para organizar os vnculos

interpessoais. Assim que em determinado momento histrico a sociedade convencionou o

matrimnio como regra de conduta, como sendo o pilar da estrutura familiar.

Na sociedade pr-revoluo industrial, a famlia era uma entidade patrimonializada e

hierarquizada, centrada na figura do homem, chefe da famlia. Tratava-se de uma sociedade

patriarcal, na qual a famlia era formada por todos os parentes, funcionando como uma

unidade de produo, sem deixar de buscar a procriao.

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A revoluo industrial, por sua vez, iniciou uma mudana nesse padro de famlia. A

mulher foi inserida ainda que de forma incipiente no mercado de trabalho e aos pouco a

famlia foi perdendo o carter meramente produtivo e reprodutivo. Com a expanso das

cidades, a famlia passou a ocupar espaos menores, diminuindo o ncleo familiar e vindo a

ser cada vez mais prestigiada a relao de afeto em detrimento dos interesses sociais e

polticos.

E o Direito, buscando a proteo da famlia, sem, no entanto, engessar a instituio

tambm foi sofrendo modificaes, ainda que se considere que as transformaes sociais so

to dinmicas que o processo legislativo no consegue acompanh-las de forma efetiva.

No Brasil, o Cdigo Civil de 1916 regulava um modelo de famlia hierarquizada e

patriarcal, centrada no casamento. Dessa forma, s se considerava como entidade familiar

aquela fundada no casamento entre homem e mulher. Nenhuma outra relao era considerada

como famlia perante a legislao vigente, restando qualquer outra modalidade de unio

afetiva desprovida de proteo legal. A legislao previa a indissolubilidade do casamento, a

obrigatoriedade de identificao da famlia pelo nome do cnjuge varo, a incapacidade

relativa da mulher, o no reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento. De acordo

com DIAS (2009, p.45), certo que o Estado sempre resistiu em admitir vnculos de

convivncia formados sem o selo da oficialidade.

Com as mudanas sociais, o modelo matrimonial de famlia sofreu transformaes. As

relaes extramatrimoniais, que sempre foram uma realidade, passaram a ser reconhecidas

pela jurisprudncia, que concedia indenizao pela prestao de servios domsticos como

meio de garantir os alimentos quando do fim da relao extramatrimonial. O STF editou o

enunciado 380 da smula de sua jurisprudncia dominante, o qual estabelecia a sociedade de

fato entre casal unido por vnculos afetivos, mas que no era casado, a fim de conferir efeitos

jurdicos relao e evitar o enriquecimento sem causa.

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A evoluo da famlia levou s alteraes legislativas. Em 1962 foi editado o Estatuto

da Mulher Casada (Lei 4.121/62), que previu a plena capacidade da mulher casada.

Posteriormente, foi institudo o divrcio pela Emenda Constitucional 9/77 e pela Lei

6.515/77, rompendo, assim, com a noo de indissolubilidade do casamento, e, finalmente, a

Constituio de 1988 que, tendo a dignidade da pessoa humana como princpio basilar,

passou a reconhecer como famlia outras relaes que no aquelas formadas pelo casamento,

tal como a famlia monoparental e a unio estvel, bem como previu a igualdade entre os

filhos, sejam eles havidos ou no do casamento, como se verifica no artigo 226, 4.

A Constituio consagrou os princpios da igualdade, da liberdade, do pluralismo das

entidades familiares e da afetividade. Conforme destaca ALBUQUERQUE FILHO (2001, p.

2), o princpio do pluralismo das entidades familiares, encarado como o reconhecimento pelo

Estado da existncia de vrias possibilidades de arranjos familiares, rompe com a orientao

legal centenria, que vem desde as Ordenaes do Reino (...).

O Cdigo Civil de 2002 buscou atualizar e adequar as normas aos novos conceitos de

famlia e s novas situaes que surgiram, sendo certo que o projeto desse Cdigo data de

1975, razo pela qual deixou de cuidar de situaes mais recentes como a unio homoafetiva

e as unies simultneas, objeto do presente estudo, bem como a questo da filiao

socioafetiva.

Dessa forma, o que se verifica que a evoluo social gerou uma mudana no prprio

conceito de famlia, que deixou de ser relacionado necessariamente ao casamento, passando a

ser reconhecidas outras formas de unio. E, apesar da Constituio possuir previso expressa

apenas da unio estvel e da unio monoparental, no se pode deixar de interpretar as normas

luz do princpio da dignidade da pessoa humana e da realidade social. Nesse sentido, DIAS

(2009, p. 41) afirma que: A consagrao da igualdade o reconhecimento da existncia de

outras estruturas de convvio, a liberdade de reconhecer filhos havidos fora do casamento

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operam verdadeira transformao na famlia. Vale ressaltar que a existncia de novas

estruturas e o seu reconhecimento no ordenamento jurdico no significa que o casamento

deixou de ser prestigiado pela sociedade. Ao contrrio, o casamento ainda instituto usual,

mas deixou de ser o nico e exclusivo modelo de estrutura familiar.

A mesma autora supramencionada define as diversas unies existentes atualmente,

valendo ressaltar que os exemplos no so exaustivos, sendo possvel que surjam novas

formas ainda no vislumbradas. Alguns dos modelos familiares citados pela autora em

comento, alm do matrimonial, so: a unio informal, caracterizada pela chamada hoje de

unio estvel; a unio homoafetiva, que aquela entre pessoas do mesmo sexo; a unio

monoparental, formada por qualquer dos pais e os filhos; a famlia anaparental, formada pela

convivncia como estrutura familiar de irmos, por exemplo.

O ordenamento jurdico, mesmo com todas as alteraes legislativas, no conceitua o

que seria a famlia atual e nem poderia, pois, como afirmado, h novos pilares e novos

padres e a lei no poderia conceituar a nova realidade que est em constante transformao.

Ademais, estabelecer conceitos no tarefa do legislador.

No obstante, a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) que trata da violncia domstica

prev no seu artigo 5, III, um conceito que se coaduna com o quadro atual acerca das

famlias, qual seja, qualquer relao baseada no afeto.

Com efeito, o afeto a palavra de ordem quando o assunto famlia. A unio que

pode ser tida como famlia deve ser aquela fundada no afeto, na solidariedade, na satisfao

da dignidade humana. O princpio da afetividade indica que o este um elemento da famlia,

que deriva da convivncia cotidiana e no de laos de sangue.

Mas no somente isso. LOBO (2010) elenca algumas caractersticas comuns a todos

os tipos familiares. Alm do afeto, esto tambm presentes, a estabilidade, de modo a excluir

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os relacionamentos casuais, e a ostensibilidade, o que significa que a famlia se apresenta

assim publicamente.

No h, por conseguinte, um rol exaustivo do que seria famlia, seja na Constituio,

seja na legislao infraconstitucional. a realidade, as situaes fticas que mostraro se a

relao em questo pode ser considerada famlia ou no.

nesse contexto que se insere a discusso acerca das unies simultneas, ou seja, a

unio em que um dos conviventes casado ou mantm outra relao de unio estvel. Nelas

esto presentes todos os elementos caracterizadores das relaes familiares, mas h forte

resistncia tanto na doutrina quanto na jurisprudncia ao seu reconhecimento como famlia,

deixando tais unies margem do Direito das Famlias, sem proteo jurdica, apesar de ser

uma realidade ftica que no se pode negar.

As unies simultneas se baseiam no afeto entre os conviventes, na relao duradoura,

muitas vezes pblica, com filhos, mas a questo no pacfica em nossa jurisprudncia, nem

mesmo na doutrina, como se ver.

2 DISCUSSES DOUTRINRIAS ACERCA DAS UNIES SIMULTNEAS

O reconhecimento jurdico da unio estvel foi fruto de um processo de evoluo

histrico-social, ao qual o ordenamento brasileiro teve que se adequar de modo a no deixar

de tutelar determinadas situaes de fato, que se tornaram cada vez mais recorrentes na

sociedade, tais como a unio afetiva de indivduos no unidos pelo casamento, bem como

para incluir sob a proteo da legislao os indivduos que se encontravam nessa condio.

Isso porque o indivduo , induvidosamente, a finalidade principal de um Estado

Democrtico de Direito e, sob esse prisma, cabe cincia jurdica acompanhar a realidade

social e se adequar aos novos anseios e prticas sociais, seja por meio da edio de leis que

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tutelem novos direitos, seja por meio da atividade dos magistrados. E, nesse ponto, a atuao

da doutrina e da jurisprudncia exerce papel fundamental de interpretao da legislao

vigente em vistas da realidade, na medida em que o processo legislativo no to clere

quanto as transformaes sociais.

nesse contexto que se enquadra a discusso acerca do reconhecimento jurdico das

unies simultneas. No h previso expressa do instituto na legislao vigente e a doutrina e

jurisprudncia na busca de tutelar os interesses individuais divergem acerca da possibilidade

de se reconhecer efeitos jurdicos a tais unies. A anlise envolve a interpretao sistemtica e

teleolgica da legislao referente ao Direito das Famlias.

Inicialmente, a doutrina diferenciava o concubinato puro, do concubinato impuro.

Considerava-se como concubinato puro a relao afetiva e no eventual de pessoas que

poderiam casar, mas que por razes de ordem pessoal optavam por no faz-lo. Por sua vez, o

concubinato impuro se caracterizava pela unio de pessoas legalmente impedidas de casar.

Com o advento da Constituio de 1988 e o reconhecimento da unio estvel, ou seja, a unio

afetiva e no eventual de pessoas que no esto impedidas de casar, o termo concubinato

passou a se referir apenas quele impuro, j que o chamado concubinato puro passou a ser

titulado de unio estvel.

O Cdigo Civil de 2002, ao disciplinar a unio estvel, fez expressa diferenciao em

relao ao concubinato, apenas dando reconhecimento de entidade familiar primeira.

Nesse sentido, o artigo 1.723, 1, do Cdigo Civil de 2002 estabelece que a unio

estvel no se constituir se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521. E, o referido artigo

1.521, em seu inciso VI, estabelece que as pessoas casadas so impedidas de contrair novo

matrimnio durante da vigncia do casamento.

Tais artigos explicitam que a bigamia vedada pela legislao brasileira, de modo que

no se admite que um indivduo mantenha duas relaes familiares simultaneamente.

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Por sua vez, o artigo 1727, do Cdigo Civil de 2002 define que as relaes no

eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.

A anlise dos dispositivos legais leva concluso de que o ordenamento jurdico

brasileiro no reconhece como entidade familiar as relaes concubinrias, ainda que

ostentem as mesmas caractersticas da unio estvel e de um matrimnio.

No obstante as disposies legais, as relaes simultneas existem, so recorrentes na

sociedade e, no raro, questes versando sobre o tema so levadas ao Judicirio. Apesar de

legalmente no serem tratados como entidade familiar, os parceiros unidos em relao de fato

constituem patrimnio comum, tm filhos, estabelecem dependncia econmica e emocional.

Enquadram-se, portanto, em todas as caractersticas de uma unio estvel, mas a legislao

ainda no alcanou a realidade.

Diante disso, as opinies doutrinrias se divididiram em trs principais correntes

acerca da matria.

Um primeiro entendimento esposado, por exemplo, por CAMBI, citado por GOEKS

(2008), advoga que nenhum tipo de relao simultnea deve ser reconhecido com status de

entidade familiar, tendo em vista a existncia de impedimento matrimonial legal. Seus efeitos,

portanto, devem ser tutelados pelo Direito Obrigacional e nunca pelo Direito das Famlias, de

modo que ser dado o tratamento de sociedade de fato.

Por conseguinte, se os integrantes da relao simultnea adquirirem patrimnio por

esforo comum, a dissoluo da sociedade dever tramitar na Vara Cvel competente,

devendo ser provada a colaborao recproca na aquisio do patrimnio para que haja a

partilha dos bens. No ser presumido o esforo comum.

Tambm no sero devidos alimentos entre os ex-parceiros j que no h relao de

parentesco que possa legitimar o pedido, tampouco reconhecida como entidade familiar

fundada no afeto.

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Tal posicionamento corroborado, ainda, por limites que o direito brasileiro impe ao

concubinato, como por exemplo, a vedao de que seja feita doao em favor da concubina ou

concubino artigo 550, do Cdigo Civil -; a proibio de se estipular seguro de vida em favor

da concubina ou concubino artigo 793, do Cdigo Civil -; bem como a proibio de a

concubina ou concubino ser contemplado como beneficirio de testamento, seja a ttulo de

herana ou de legado artigo 1.801, III, do Cdigo Civil.

Uma segunda vertente do pensamento jurdico sobre o tema distingue as relaes

simultneas da unio estvel putativa, sendo a boa-f o elemento diferenciador. Nesse passo,

quando uma das partes da relao no tem conhecimento acerca do impedimento que macula

a unio familiar, h que ser protegida sua boa-f e reconhecida a unio estvel putativa,

dando-lhe o mesmo tratamento dispensado unio estvel: a tutela pelas normas do Direito

das Famlias.

Por outro lado, ausente a boa-f das partes, trata-se de unio paralela no reconhecida

como entidade familiar por ferir o sistema monogmico. Seus efeitos, consequentemente,

devem ser regidos pelo Direito Obrigacional, a fim de que se evite o enriquecimento sem

causa de uma das partes em detrimento da outra.

Para corroborar o tratamento jurdico das relaes obrigacionais, h o Enunciado 380,

da Smula da jurisprudncia do STF, o qual define que, restando comprovada a existncia de

sociedade de fato entre os concubinos, cabvel a dissoluo judicial com a partilha do

patrimnio adquirido pelo esforo comum.

O que se conclui desse entendimento que a cincia de uma das partes acerca do

impedimento caracteriza m-f capaz de desconfigurar a relao familiar e, portanto, a tutela

do Direito das Famlias.

Adota esse posicionamento AZEVEDO (2001, p. 211), ao afirmar que: (...)

concubinato impuro ou concubinagem, no deve merecer apoio dos rgos pblicos e,

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mesmo, da sociedade. Entendemos, ainda, que deste no deve surtir efeito, a no ser o

concubinato de boa-f, como acontece, analogamente, com o casamento putativo, (...). O

autor equipara a unio estvel putativa ao casamento putativo e defende que deve ser dada

quela a mesma proteo que a lei confere a este.

A terceira linha de pensamento, adota uma posio vanguardista ao defender que todos

os tipos de relao afetiva devem ser reconhecidas como entidade familiar e tratadas segundo

as regras do Direito das Famlias. A famlia atualmente no se limita ao casamento, ou a unio

estvel. Ao contrrio, vige o princpio da pluralidade das entidades familiares que devem ser

tuteladas luz da dignidade da pessoa humana.

Segundo esse entendimento, preciso analisar a questo sob uma tica constitucional,

considerando que a Constituio ao tratar das entidades familiares no apresenta um rol

taxativo, mas exemplificativo, de modo que plenamente possvel o reconhecimento jurdico

de outras entidades familiares, inclusive as unies simultneas, tendo em vista que existem de

fato, so fundadas na afetividade e possuem as mesmas caractersticas da unio estvel ou do

casamento.

Conforme ressalta GOEKS (2008), tal doutrina assevera que no cabe ao Estado

ignorar a realidade social que se apresenta, como se as relaes concomitantes fossem deixar

de existir pelo seu no reconhecimento jurdico. Ao contrrio, a famlia guarda lugar de

fundamental importncia para a dignidade da pessoa humana, e ao negar a tutela legal e

deixar tais relaes margem do ordenamento, o Estado acaba por atentar contra o referido

princpio maior que alicera todo o Direito.

Nesse sentido, DIAS (2009) destaca que descabe realizar juzo prvio de reprovao,

sob pena de expulsar da tutela jurdica unies duradouras, cristalizadas e reconhecidas

socialmente.

Tal posicionamento ser detalhado no captulo seguinte.

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3. O RECONHECIMENTO JURDICO DA UNIO SIMULTNEA LUZ DA

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O princpio da Dignidade da Pessoa Humana o principal pilar da Constituio de

1988, a qual pretendeu ampliar os direitos e garantias individuais, bem como os mecanismos

para a sua tutela e proteo. Importa traar algumas linhas sobre seus principais aspectos.

O referido princpio possui previso logo no artigo 1, inciso III, da Carta Magna, que

o define como um dos fundamentos do Estado Democrtico de Direito, decorrendo dessa

previso o carter estruturante da Dignidade da Pessoa Humana. Diz-se estruturante porque,

na lio de FACHIN (2006), tal princpio serve como diretriz bsica de toda a ordem

constitucional.

Isso demonstra de forma clara a noo de que o Estado deve se voltar para a proteo

do indivduo. Ele, Estado, no um fim em si mesmo, mas uma forma de tutelar os interesses

individuais e sociais, e, assim, proteger a vida em sociedade.

O valor essencial do ser humano j foi alado a um consenso terico, como ressalta

BARCELLOS (2002). Muito se discute acerca do conceito e dos limites da dignidade

humana, mas no mais se discute o valor da raa humana, esta, sim, um fim em si mesmo e,

como tal, portador de uma dignidade intrnseca.

O princpio da Dignidade da Pessoa Humana tem carter genrico e abstrato, o que

torna difcil a sua conceituao. Ele se relaciona diretamente com os direitos fundamentais, de

modo que se pode dizer que tem a sua dignidade respeitada aquele indivduo que tem

respeitados seus direitos fundamentais, sem deixar de reconhecer que a dignidade no se

esgota apenas neles (BARCELLOS, 2002).

Nesse mesmo sentido, esclarece SARLET (2001, p. 87) que a dignidade da pessoa

humana, na condio de valor (e princpio normativo) fundamental que atrai o contedo de

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todos os direitos fundamentais, exige e pressupe o reconhecimento e proteo dos direitos

fundamentais de todas as dimenses.

E, os direitos fundamentais podem ser divididos em direitos de primeira, segunda e

terceira gerao. Diz-se de primeira gerao os direitos individuais, identificados como

direitos da liberdade, tais como liberdade de pensamento, religiosa, profissional, de opinio,

de expresso, sexual, dentre tantos outros. So direitos que garantem a liberdade individual,

sem que haja interveno do Estado.

Os direitos de segunda gerao so os chamados direitos polticos, os quais

instrumentalizam a democracia representativa, a participao do indivduo na atuao estatal

por meio de seus representantes. Podem ser exemplificados pelo direito de votar e ser votado,

bem como pelos institutos do plebiscito e do referendo.

Os direitos de terceira gerao so os direitos sociais, econmicos e culturais. So

considerados direitos positivos porque ligados a uma necessria atuao do Estado no sentido

de promover o bem-estar social. Incluem o direito sade, educao, ao lazer, dentre outros.

Ressalta-se, ainda, doutrina mais moderna que aponta para direitos de quarta gerao,

que seriam aqueles decorrentes da biotecnologia, tais como os direitos referentes ao

patrimnio gentico.

O que se percebe com essa breve explanao que a Dignidade da Pessoa Humana se

caracteriza como a diretriz do ordenamento constitucional e se concretiza por meio dos

direitos fundamentais e das normas tanto constitucionais, como infraconstitucionais, que

criam ou regulamentam tais direitos, sempre tendo em vista que a satisfao do ser humano e

da sociedade o objetivo principal do Estado e das normas jurdicas.

No que se refere especificamente ao Direito das Famlias, o princpio da Dignidade da

Pessoa Humana se mostra por meio do reconhecimento jurdico da famlia como instrumento

de proteo do indivduo. A famlia sob uma tica constitucional, luz da Constituio de

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1988, passa a ser encarada como uma instituio plural que une pessoas por vnculos

biolgicos ou afetivos ou ambos, a fim de desenvolver a personalidade de cada um dos

integrantes da entidade familiar.

Nesse passo, afirma CHAVES (2010, p.9) que a famlia do novo milnio

igualitria, democrtica e plural e, principalmente, no mais casamentria. O autor segue

esclarecendo que a proteo no se d famlia pela famlia, mas protege-se a instituio

familiar como meio de tutela do ser humano. Por conseguinte, a proteo de todo e qualquer

modelo de unio afetiva que extrapole a mera relao de sociedade de fato um corolrio da

Dignidade da Pessoa Humana.

Nesse passo, a pluralidade das relaes familiares reconhecida pela prpria

Constituio significou um importante avano, tendo como consequncia, inclusive, a

mudana na nomenclatura da matria que, segundo moderna doutrina, deixa de se chamar

Direitos de Famlia para se chamar Direito das Famlias.

nesse contexto que se enquadra a questo jurdica das unies simultneas. Conforme

j explicitado no presente artigo, trata-se de unio afetiva e no meramente de uma sociedade

de fato. Nas relaes simultneas, certo que uma das partes possui vnculo matrimonial ou

de unio estvel anterior e mantem ambas as unies.

A situao no possui amparo legal, mas uma realidade social, a qual o Direito no

pode deixar de tutelar, sob pena de violao dignidade da pessoa humana, haja vista que,

como dito, o Estado possui como finalidade primordial a tutela dos indivduos, de modo a

garantir-lhes a dignidade.

O no reconhecimento jurdico das relaes simultneas importa em ofensa ao

princpio da Dignidade da Pessoa Humana em diversos sentidos. Em um primeiro momento,

h violao do princpio no que tange a nomenclatura dada pela doutrina e jurisprudncia

majoritrias. Denominam-se tais relaes de concubinato. O termo est eivado de preconceito.

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Nos dizeres de DIAS (2009, p. 163) a palavra concubinato carrega consigo o estigma de

relacionamento alvo de preconceito. Historicamente, sempre traduziu relao escusa e

pecaminosa, quase uma depreciao moral. PEREIRA (2004) comunga do mesmo

entendimento ao afirmar que o termo concubinato remete a uma relao desonesta. Tanto

assim que a aludida expresso era utilizada para designar a hoje chamada de unio estvel,

mas foi substituda pela Constituio de 1988, que no artigo 226, 3, passou a utilizar a

nomenclatura unio estvel.

O legislador civil, por sua vez, insistiu na utilizao do termo ao designar em seu

artigo 1.727 que as relaes no eventuais entre homem e mulher constituem concubinato. Em

verdade, pretendeu o legislador diferenciar a unio estvel das relaes simultneas, deixando

de amparar legalmente as ltimas.

H, ainda, violao Dignidade da Pessoa Humana por esse desamparo assumir

verdadeiro carter punitivo e de julgamento moral, em detrimento das escolhas individuais.

Quando o legislador opta por tratar as relaes simultneas como se no existissem, relega

tais relaes invisibilidade, deixa os companheiros juridicamente desprotegidos e enseja

injustias, dando margem, por exemplo, ao enriquecimento sem causa. Acaba por punir o

indivduo que, por razes que no cabe ao Direito ou ao legislador o julgamento, mantem

relao estvel, duradoura, pblica e familiar com pessoa impedida legalmente de casar ou de

constituir unio estvel.

Ao falar em relaes simultneas cuja necessidade de proteo jurdica se impe, no

se quer defender os relacionamentos eventuais, passageiros e fugazes tidos por pessoa casada

ou que vive uma unio estvel, trazendo proteo legal aos amantes eventuais. Ao contrrio,

quer proteger companheiros de fato, que so uma realidade social.

Pessoas que vivem relaes simultneas podem ter filhos, constituir patrimnio

comum com unio de esforos e criar relao de dependncia no apenas emocional, como

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tambm econmica, em pblica unio familiar. Da mesma forma, possvel o desfazimento

de tais relaes, o que implicar em partilha de bens ou necessidade de fixao de penso

alimentcia entre os ex-companheiros, sob pena de enriquecimento sem causa para uma das

partes, ou mesmo de deixar ao completo desamparo a companheira ou companheiro que

dependia economicamente de seu parceiro.

A melhor soluo no pode ser o absoluto no reconhecimento, pois essas relaes

iro repercutir no mundo jurdico. Ademais, essa soluo significa um julgamento moral feito

de forma geral e abstrata pela lei e amparado pela doutrina e jurisprudncia, sem considerar

que, no obstante a rejeio social, as relaes simultneas no deixam de existir, bem como

no deixam de repercutir no mundo jurdico.

Essa repercusso jurdica levou os Tribunais a tratarem como sociedade de fato, com

aplicao do Enunciado 380, da Smula da jurisprudncia do STF. O Enunciado estabelece

que cabvel a dissoluo judicial com a partilha de bens adquiridos pelo esforo comum em

casos de existncia de sociedade de fato entre concubinos. O termo concubinato utilizado,

ainda, se referindo unio estvel, tendo em vista que a disposio anterior Constituio

de 1988 e buscava tratar da unio no eventual de pessoas no impedidas de casar.

Entretanto, o tratamento como sociedade de fato inadequado, pois o instituto da

sociedade de fato tutela relaes unicamente patrimoniais e, como tais, no sujeitas s normas

do Direito das Famlias. As relaes simultneas, por sua vez, so, inegavelmente, relaes

familiares e como tais devem ser tratadas. O tratamento jurdico de sociedade de fato

configura proteo deficiente de direitos, e como tal inconstitucional, haja vista que a

proteo deficiente de direito fundamental se equipara a ausncia de tutela.

Alm disso, gera manifestas injustias e um pensamento contraditrio em seus

alicerces. Isso porque, h doutrina e decises judiciais, conforme demonstrado no captulo

anterior, no sentido de dar reconhecimento jurdico s relaes simultneas quando uma das

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partes desconhece absolutamente o impedimento. Busca-se, assim, proteger a boa-f.

Reconhece, ento, que a unio simultnea , em verdade, unio familiar, unida por vnculo de

afetividade, a qual se optou por chamar de unio estvel putativa. Sob essa tica, essa mesma

relao que, se presente a boa-f, considerada entidade familiar, por outro lado, um nada

jurdico se h conhecimento do impedimento pela parte no impedida. Mas os elementos so

os mesmos, a relao a mesma. Os requisitos que fazem uma unio ser familiar ou esto

presentes, ou esto ausentes, sendo um contra senso utilizar apenas a boa-f como meio de

diferenciar a natureza da entidade, j que a relao que a constitui , necessariamente, a

mesma, havendo ou no impedimento.

Nesse sentido, DIAS (2009, p. 51) destaca que quando a pluralidade pblica,

ostensiva, e mesmo assim ambas as famlias se mantm ntegras, a simultaneidade no

desleal.

Outra contradio do modelo atualmente vigente est na vedao prevista no artigo

550, do Cdigo Civil que estabelece ser anulvel a doao do cnjuge adltero concubina.

Alm da forte carga preconceituosa que se mostra na escolha dos termos pelo legislador, o

dispositivo legitima que o indivduo, desde que no ofenda a legtima dos herdeiros, possa

dispor livremente de seu patrimnio, realizando doaes para quaisquer pessoas, exceto para a

sua concubina, ou seja, pode doar seus bens at mesmo para um desconhecido, mas no

para a pessoa que com ele divide tambm a vida. No h razoabilidade no dispositivo, pois,

mais uma vez, pressupe que apenas a concubina seria a responsvel pela relao afetiva e

que deve ser punida.

O principal argumento contrrio ao reconhecimento jurdico das unies simultneas

o princpio da monogamia. A monogamia uma regra que probe que a mesma pessoa

constitua mais de uma relao matrimonializada, sob a chancela do Estado.

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No se trata de um princpio constitucional, tendo em vista que alm de no possuir

previso na Constituio, est mais relacionado com uma funo ordenadora da famlia do

que com um parmetro hermenutico constitucional acerca das entidades familiares, tpico

dos princpios.

A famlia regida pela afetividade e pela dignidade da pessoa humana, de modo que a

monogamia no pode se sobrepor a tais princpios, ignorando a realidade social e os novos

anseios sociais, em detrimento da ampla tutela jurisdicional.

Outro argumento segue no sentido de que no poderia o Estado, em afronta aos

valores sociais vigentes, proteger relaes adulterinas. Tal argumento, tampouco, prospera

diante da detida anlise da situao. Esse pensamento acaba por proteger o infiel e tratar o

outro envolvido na relao como merecedor de punio pelo fato de optar por se relacionar

com pessoa casada. Novamente, restringe-se a questo um julgamento unicamente moral.

Uma relao afetiva envolve dois indivduos que devem possuir igual tratamento

jurdico. No permitir a tutela do Estado privilegia o infiel que, por exemplo, sustenta

financeiramente sua companheira simultnea, e, no fim da unio estvel no ser obrigado a

prestar-lhe alimentos. O nico no responsabilizado por suas escolhas o infiel.

Alm disso, h que se considerar que a famlia uma esfera privada, onde se deve

respeitar os interesses legtimos dos indivduos sem que haja interferncia demasiada do

Estado, sob pena de violao da privacidade e da autonomia privada.

No trato da questo imprescindvel uma viso menos carregada de julgamentos

morais, com vistas realidade social, solidariedade e dignidade da pessoal humana.

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4. ANLISE JURISPRUDENCIAL

A jurisprudncia dos Tribunais acompanha o entendimento majoritrio no sentido de

no reconhecer juridicamente as relaes simultneas. Diversas so as decises nesse sentido

nos Tribunais.

Nesse passo, no julgamento do Recurso Especial 684407, em 03 de maio de 2005, o

ministro Relator Jorge Scartezzini, da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justia, decidiu

pela impossibilidade de reconhecimento de unio estvel entre mulher e homem casado, mas

no separado de fato, por ofensa ao artigo 226, 3, da Magna Carta. Em sua deciso, o

ministro ressalta o entendimento da Corte no sentido de que a existncia de impedimento para

casar por parte de um dos companheiros obsta a constituio da unio estvel.

Da mesma forma, no Recurso Especial 931155, julgado em 07 de agosto de 2007 e

publicado no dia 20 do mesmo ms e ano, a ministra Relatora Nancy Andrighi, da Terceira

Turma do referido Tribunal Superior, proferiu deciso nos mesmos moldes da acima

mencionada. Nesse julgamento, a relatora destacou que a unio estvel pressupe a ausncia

de impedimentos para o casamento, ou, pelo menos, que o companheiro esteja separado de

fato, sob pena de se caracterizar o concubinato. Este ltimo dito como a unio entre pessoas

impedidas de casar. No caso, a companheira pretendia a partilha dos bens deixados pelo

companheiro casado, tendo o pleito sido negado ao argumento de que o Direito das Famlias

brasileiro no alberga a prerrogativa de partilha dos bens deixados pelo concubino e que a

simultaneidade das relaes conjugal e do concubinato impe a prevalncia dos interesses da

mulher casada em detrimento dos alegados direitos subjetivos da chamada concubina.

No Tribunal de Justia do Estado do Rio de Janeiro no so poucas as decises que

acompanham o entendimento do Superior Tribunal de Justia. Nesse passo, na Apelao

Cvel n 0015100-93.2005.8.19.0202, julgada em 14 de fevereiro de 2008, a desembargadora

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Relatora Marilene Melo Alves negou o reconhecimento da unio estvel ao considerar a

exclusividade da relao afetiva como requisito para a caracterizao do status de convivente,

bem como o fato da ordem jurdica consagrar a unio monogmica.

Por sua vez, a desembargadora Simone Gastesi Chevrand, integrante da Quinta

Cmara Cvel, ao julgar a Apelao n 0001276-90.2007.8.19.0204, em 28 de outubro de

2008, em sede de ao de reconhecimento e dissoluo de unio estvel decidiu que, restando

demonstrada a manuteno simultnea de relacionamentos afetivos, constata-se a ausncia

dos requisitos necessrios para a caracterizao da unio estvel, dentre eles a inteno de

constituir famlia.

Na detida anlise das decises supra mencionadas se verifica que a jurisprudncia

segue uma viso tradicionalista da famlia, negando reconhecimento unio simultnea, ainda

que presentes os requisitos dispostos no artigo 1723, do Cdigo Civil, tais como a

durabilidade e publicidade da relao e o intuito de constituir famlia. Considera-se que, se h

uma relao paralela ao casamento, ela no tem o condo de demonstrar inteno de constituir

famlia pelo nico fato de ser uma relao paralela. Trata-se mais de um julgamento moral, do

que uma soluo jurdica justa. Esse carter de julgamento moral fica explcito no acrdo da

relatoria do desembargador Srgio Cavalieri Filho, da Dcima Terceira Cmara Cvel do

Tribunal de Justia do Estado do Rio de Janeiro, que, no julgamento da Apelao n 0006472-

81.2006.8.19.0008, em 07 de maio de 2008, negou companheira simultnea o direito a

penso alimentcia, sustentando que A convivncia simultnea com a esposa e outra mulher,

alm de no constituir unio estvel de que trata a Constituio, tipifica conduta ilcita

reprovada pela lei e pela moral.

No obstante tal entendimento, cedio que as relaes simultneas geram efeitos

jurdicos, fato no ignorado pela jurisprudncia que, de modo a evitar o enriquecimento sem

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causa e buscando dar soluo a determinadas questes patrimoniais garante o tratamento legal

de sociedade de fato.

nesse sentido o acrdo proferido em 29 de junho de 2004, no Recurso Especial

257115, da Quarta Turma, da relatoria do ministro Fernando Gonalves, em que ele admite a

possibilidade da dissoluo de sociedade de fato, ainda que um dos concubinos seja casado,

com a aplicabilidade do Enunciado 380, da Smula da jurisprudncia do STF, desde que haja

prova do esforo comum.

Por outro lado, havia no Superior Tribunal de Justia decises que autorizavam o

rateio da penso por morte do consorte falecido entre a esposa e a companheira em casos de

comprovada simultaneidade das relaes pblicas e duradouras. O INSS, por sua vez,

concedia o rateio da penso administrativamente, sem necessidade de se recorrer via

judicial.

Verifica-se o entendimento nos acrdos proferidos nos Recursos Especiais 362743,

julgado em 21 de setembro de 2004, pelo ministro Relator Jorge Sacartezzini, da Quarta

Turma do Superior Tribunal de Justia, em que restou consignado como correto o rateio da

penso entre a viva e companheira de fato.

Deciso semelhante foi proferida no Recurso Especial 742685, pelo Relator Jos

Arnaldo da Fonseca, da Quinta Turma, julgado em 04 de agosto de 2005, no qual o ministro

decidiu que diante da longa durao das relaes simultneas deveria ser reconhecido o

direito ao rateio da penso, ainda mais quando se considera seu carter de assistncia social,

de modo a no deixar desamparada a concubina.

O entendimento esposado pelo Superior Tribunal de Justia acerca da possibilidade de

rateio da penso previdenciria j se encontrava pacificado nos Tribunais. Entretanto, em 03

de junho de 2008, o Supremo Tribunal Federal mudou o entendimento em acrdo proferido

nos autos do Recuso Extraordinrio 397762, julgado pela Primeira Turma, cujo Relator foi o

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ministro Marco Aurlio. Em tal recurso, em verdadeiro retrocesso, restou decidido que a

proteo do Estado unio estvel se limita a situaes consideradas como legtimas, dentre

as quais no se incluiriam as relaes simultneas. O relator ressaltou que no seria possvel a

partilha da penso por morte de servidor pblico falecido que manteve por longo perodo

relao simultnea ao casamento, haja vista que no poderia a concubina ser beneficiada em

detrimento da famlia.

O ministro, acompanhando a doutrina majoritria, toma como paradigma a noo de

que a relao simultnea no constitui entidade familiar, desconsiderando, assim, o princpio

da pluralidade das entidades familiares que rege o Direito das Famlias hodiernamente, bem

como o princpio da Dignidade da Pessoa Humana.

Nesse julgado, h interessante voto vencido do ministro Carlos Brito, no qual ele

ressalta que o conceito de unio estvel que merece proteo constitucional dado por

excluso. Constitui-se unio estvel a entidade familiar que no seja monoparental, ou

formada pelo casamento. uma terceira via que abarca casais desimpedidos para o casamento

civil, bem como aqueles que ainda no alcanaram essa condio jurdica. Destaca o ministro

que companheiro aquele que mantem relao domstica estvel, sem essa palavra azeda,

feia, discriminadora, preconceituosa, do concubinato. Estou a dizer: no h concubinos para a

Lei Mais Alta do nosso pas, porm casais em situao de companheirismo. At porque o

concubinato implicaria em discriminar eventuais filhos do casal.

O ministro segue afirmando que o importante para a configurao da unio familiar a

formao de um novo e duradouro ncleo domstico, de modo que pouco importa para tanto

se o indivduo mantem relaes com idntico carter simultaneamente.

O Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul em muitas decises acolhe o

entendimento minoritrio, reconhecendo as relaes simultneas como entidade familiar.

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Destaca-se o acrdo proferido nos autos da Apelao Cvel n 70016969552, da

relatoria da desembargadora Maria Berenice Dias, no sentido de que o Judicirio no pode

deixar de tutelar relaes baseadas no afeto. Com essa posio, a desembargadora determinou

a partilha de bens adquiro por casal em que uma das partes mantinha relao simultnea.

No mesmo sentido o acrdo da Apelao n 70011962503, da relatoria do

desembargador Rui Portanova, da Oitava Cmara Cvel, do mesmo Tribunal, julgada em 17

de novembro de 2005, no qual restou consignado que diante da prova robusta da existncia de

unio estvel em perodo concomitante ao casamento, possvel o reconhecimento de unio

dplice.

A anlise do acervo jurisprudencial permite constatar que a jurisprudncia dos

Tribunais, incluindo os Tribunais Superiores acompanha o entendimento da doutrina

majoritria. Mas a questo no pacfica e no so poucas as decises que enfrentam a

matria e reconhecem que no se trata de tema pacfico suscetvel de mero juzo moral e de

adequao legal. Mesmo porque, nos dizeres do ministro Carlos Brito, em seu voto

supramencionado, ao Direito no dado sentir cimes pela parte supostamente trada, sabido

que esse rgo chamado corao terra que ningum nunca pisou.

CONCLUSO

O tema tratado no presente artigo no pacfico na doutrina e na jurisprudncia,

tampouco est perto de chegar a um consenso. Os valores sociais, tais como o dever de

fidelidade e a monogamia so tidos como verdadeiros dogmas e, como tais, acabam por se

caracterizar como uma barreira ao reconhecimento de outras entidades familiares que

ultrapassam os limites do modelo tradicional de famlia, baseada no casamento.

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Entretanto, diante dos novos arranjos familiares e dos princpios que, hodiernamente,

regem o Direito das Famlias, tais como a pluralidade das entidades familiares, a solidariedade

e a dignidade da pessoa humana, se impe uma releitura da questo, com olhos voltados para

a satisfao plena do indivduo, pois s assim o Direito ter atingido sua finalidade principal.

Relegar as relaes simultneas invisibilidade, como se disse, significa punir aquele

que se relaciona afetivamente com pessoa comprometida e, beneficiar o infiel, nico a no ser

responsabilizado por suas escolhas. Trata-se de um julgamento moral que no cabe ao Direito,

menos ainda ao Direito das Famlias em que deve haver interferncia mnima do Estado, pois

em tal ramo a autonomia privada, o direito intimidade e privacidade que so

merecedores de absoluta proteo.

Reconhecer juridicamente as relaes simultneas no significa autorizar a bigamia ou

o proclamar o fim das relaes monogmicas, mas entender que s leis e aos Tribunais no

cabe se esquivar da tutela jurisdicional, tampouco desconsiderar a realidade social. E as

relaes simultneas so uma realidade e so fundadas no afeto como toda e qualquer

entidade familiar, de modo que devem ser tratadas como tais.

A lei e a jurisprudncia no podem fomentar o preconceito, mas dar proteo e tutela

aos direitos individuais, autonomia privada, liberdade de escolha e, principalmente,

dignidade da pessoa humana e solidariedade, princpios intrinsecamente ligados justia.

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