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CRUZEIRO A VALADA Desde 91 ou 92 que não subia o rio. Nessa altura fui só até Salvaterra, integrado no Cruzeiro do Tejo, prova anual muito popular e creio que única no nosso meio náutico, organizada pelo Alhandra S.C. (este ano na 37ª edição). A convite do Jorge Meneses e com o seu First 35 S 5 “Andorinha do Mar” como meio de transporte, realizei esta subida do Tejo no fim de semana de Maio (12/13/14), para aproveitar marés maiores e lua cheia, tendo também a companhia do Emanuel. Tínhamos igualmente algumas expectativas quanto à observação de aves, pois estávamos em pleno período de nidificação. Saímos da Doca do Espanhol com a abertura da ponte ás 09:30 na sexta 12, estando a maré a começar a encher. Já sabíamos que ia ser um fim-de-semana sem vento, pelo que o Jorge atestou de gasoil. Com 1800 rpm de “vento de porão” iniciámos a subida do rio a fazer 5.5 nós à água e 6.5 ao fundo e observando a cidade a BB.

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CRUZEIRO A VALADA

Desde 91 ou 92 que não subia o rio. Nessa altura fui só até Salvaterra, integrado noCruzeiro do Tejo, prova anual muito popular e creio que única no nosso meio náutico,organizada pelo Alhandra S.C. (este ano na 37ª edição).A convite do Jorge Meneses e com o seu First 35 S 5 “Andorinha do Mar” comomeio de transporte, realizei esta subida do Tejo no fim de semana de Maio (12/13/14),para aproveitar marés maiores e lua cheia, tendo também a companhia do Emanuel.Tínhamos igualmente algumas expectativas quanto à observação de aves, poisestávamos em pleno período de nidificação.Saímos da Doca do Espanhol com a abertura da ponte ás 09:30 na sexta 12, estandoa maré a começar a encher. Já sabíamos que ia ser um fim-de-semana sem vento, peloque o Jorge atestou de gasoil. Com 1800 rpm de “vento de porão” iniciámos a subidado rio a fazer 5.5 nós à água e 6.5 ao fundo e observando a cidade a BB.

A partir da Expo e da Ponte Vasco da Gama começámos a guiar-nos pelo roteiro daANC o qual data de 91 com algumas, poucas, actualizações. O GPS-Plotter do barcoe as minhas recordações acabaram por ser mais importantes até porque numa dasbalizas que o roteiro mandava dar EB e dez metros de resguardo, umas duas milhasacima da ponte, tocámos no fundo e lá parámos por dez minutos até que, com omotor à ré, genoa desenrolada e maré a subir, nos libertámos e seguimos viagem…Há locais onde mesmo indo de olho na sonda não dá para escapar, mas o que é umasubida do Tejo sem pelo menos um encalhanço inofensivo?De qualquer forma deu para perceber que se deve sair da zona de Alcântara com pelomenos uma hora de enchente a fim de evitar a passagem nos pontos complicadoscom pouca água. Há barcos com menos calado que o Andorinha do Mar (1.95 m)que não terão estes problemas e esse era o caso do “ Birinight” ( First Class 8) domeu irmão. Quando tocava no fundo lá ia eu a correr dar à manivela e levantar opatilhão…Numa Regata Entre Pontes que fiz no Brisa Express, à vinda de V.F.Xira, lembro-mede andar aos bordos, a lavrar no lodo lá pelas bandas de Alverca, sem que tenhamosparado e isso valeu-nos a vitória!Prosseguindo a subida, fomos passando pelos mouchões da lezíria, com poucos ounenhum avistamento de aves.Na ponte de Vila Franca e dado o mastro ser alto, passámos entre os dois pilares domeio e mesmo assim devemos ter andado perto do limite para barcos à vela.O Emanuel foi entretanto aquecer as favas com entrecosto que já vinham semi-preparadas e, em andamento, lá pelas 12:30 , devorámo-las regadas com “Meandro”(tinto do Douro).

Ligeiramente acima da Vala do Carregado passámos pelos pilares em construção danova ponte sobre o Tejo ( auto estrada A-10 ) devidamente assinalada com bóias ecuja cota, segundo sei, vai ser igual à ponte de V.F.Xira ( Marechal Carmona)A partir desta altura o rio passa a ter as margens bem revestidas de arvoredo, sobretudochorões e salgueiros, que debruçando-se sobre a água tornam a paisagem bem diferentedo troço anterior. Sendo mais fundo habitualmente junto ás margens “côncavas”,onde o rio corre mais rápido, é também altura de se ouvir o cantar de muitas daspequenas aves que por aí andam sobretudo os pequenos e esquivos “rouxinóis doscaniços” (Acrocephalus scirpaceus) com o seu forte e sonoro trinado.Por alturas dos cabos de alta tensão e do Cais da Ferra atravessa-se o rio para amargem esquerda, rumo ao Conchoso (tomadas de água e antena) onde numas barreirasquase junto à água observei pela primeira vez precisamente as denominadas “andorinhasdas barreiras”(Riparia riparia). São acastanhadas, mais pequenas que as duas espéciesmais comuns em Portugal e nota-se um colar peitoral característico. Formam colóniasnumerosas e os ninhos são orifícios com cerca de 5 cm de diâmetro e até um metrode comprimento, construídos em barreiras de terra ou areia.

Na margem direita do rio observa-se por esta altura a entrada da Vala Real da Azambujae os três pequenos mouchões que a assinalam.Por entre o arvoredo alto distingue-se também um palácio, que noutros tempos foiestalagem de nobres e ricos que subiam e desciam o rio em viagens menos perigosasque aquelas feitas de carruagem.

Pouco depois deixámos por EB a Vala de Benavente e mais adiante a de Salvaterraque até tem honras de letreiro à entrada, pendurado na margem, informando quedali dista uma milha até à vila.Para montante de Salvaterra era rio desconhecido para mim, pelo que para alémdo referido roteiro, muni-me duma cábula que fui tirar do Google Earth, tãoaproximado quanto o meu jeito me permitiu e que assinalava dois troços que mepareciam mais complicados de passar.

Foi com curiosidade quepor esta altura nos surgiupela proa o primeiro dedois batelões de areia queconnosco se cruzaram.Por nós passou tambémum pequeno barco a motorde dois cascos cilíndricoscom uns se is a o i toturistas.

Areeiro carrregado descndo o rio.

O cruzamento com o segundo batelão de areia deu-nos a ideia do rumo a seguir nãosó direito ao Escaroupim como depois a mudança final rumo a Valada, tornando tudo

mais fácil.C h e g a d o spelas 15:30pe rcebemosque nestasmarés grandesainda tínhamosmais umasduas horas deenchente!

Ao passar no Escaroupim verificámos que a ES deixámos uma ilha cheia de aves dafamília das garças e a BB outra com uma éguada de Lusitanos, pelo que pensámosdesde logo o que havia a fazer no dia seguinte, sábado.Na aproximação a Valada fomos vendo a grande quantidade de batelões da areia aív a r a d o s ,alguns ema d i a n t a d oestado dedegradação,o que élamentávelpara ap a i s a g e mribeirinha.

Atracámos no pontão, tipo marina, ali existente e fomos informados que o melhorera ir amarrar a uma poita vaga um pouco a jusante, porque nos dias seguintesia haver provas de motonáutica… e se iriam precisamente servir do pontão.Felizmente que o Jorge trazia o bote com respectivo motor auxiliar! Assim foibem melhor porque o Andorinha do Mar ficou num local óptimo, confirmandomais uma vez que quando o fundeadouro é bom, a vantagem em termos de desfrutaro barco é bem superior comparado com o ficar numa marina.

Andorinha do Mar à chegada a Valada

Tratámos de encher o bote de borracha, montar o motor e fomos a terra dar umavolta por Valada. Trata-se de uma localidade protegida por um dique construídonoutros tempos, em que as cheias eram devastadoras para as populações, apesarde deixarem as terras bem fertilizadas após baixarem as águas. Valada é uma terracom tradições, sobretudo agrícolas, vendo-se alguns edifícios que espelham umpassado com história.Aproveitando a tarde amena, subimos o rio, no bote, junto à margem e até pertodo Porto de Muge. Tivemos oportunidade de ver a tomada de água que a EPALtem por aqui e da qual se socorre em épocas de seca. Certamente têm de a filtrarmuito bem porque vai muito suja, por culpa das mexidas dos areeiros que poraqui há e das descargas das celuloses. Ainda pensei dar umas braçadas, mas aoolhar para a água perdi a vontade. Ficou o regalo das vistas.Ao jantar acabámos com o que tinha sobrado do almoço e tivemos fruta e bolode chocolate. O café fomos bebê-lo a terra, mas foi uma desilusão para uma sextaà noite porque o movimento era nulo e cafés só há dois.De regresso ao barco, ia a passar com a vazante uma prancha de cortiça com umacandeia acesa em cima !!! Achámos que seria o pagamento de alguma promessa,mas depois percebemos que era uma arte de pesca que se estendia dali até aooutro lado do rio, onde um saveiro levava a outra ponta de uma rede ! Seguia rioabaixo tentando a captura de sável e saboga, que também é da mesma família eque sobem para desovar em Abril e Maio. A lanterna serve para o pescador ircontrolando a rede.

Nem se deu pela noite, tal a calma que se vive por aqui. O amanhecer é o que seobserva pela imagem…autêntico bilhete-postal.Tomado o pequeno-almoço a bordo, partimos para a expedição da manhãcomeçando por observar do bote, a Ilha das Garças (se não tinha este nome, passaa ter…). Nesta altura do ano é um autêntico paraíso para observação dos casaisnos ninhos, com muitos juvenis de todos os tamanhos, mas houve que ter muitocuidado para não os perturbar.

Verifica-se a oco-rrência, para além damuito vulgar garçaboieira ou carraceiro(Bubulcus íbis) e dagarça branca pequena(Egretta garzetta), deduas outras espéciesraras. Uma é o Goraz( N y c t i c o r a xnycticorax), avemuito esquiva comnome de peixe, asaspretas e cinzentas,carapuço preto eolhos vermelhos.

Outra é o Colhereiro(Platalea leucorodia),ave branca grande combico compridoterminando em forma decolher. Curiosamente osjuvenis observados nosninhos têm os bicosgrossos e alaranjados,mas ainda sem a colherdesenvolvida. Em vooalto avistámos tambémnumerosas cegonhasbrancas.

Estando pertodo Escaroupimfomos a terrapara observar ol u g a r .P e r m a n e c eparcialmentecomo terra depescadores dorio, mas daspalafitas quasenada resta. Hám u i t a sh a b i t a ç õ e srecentes e atéum modernorestaurante commuito boma s p e c t o .A c t i v i d a d ep i s c a t ó r i a

parece existir, mas em perguntas que fizemos a algumas pessoas, a resposta era quenão dá para viver só dessa actividade, porque nem se pescam enguias, nem sáveis,nem lampreias. Só fataças e poucas. Observámos armações, guardadas nos quintais,de rede muito fina e soubemos que a GNR tinha apreendido dias antes várias redesilegais para a pesca do meixão. Fiquei no entanto com a impressão que não queremconversa sobre o assunto… A actividade secundária é agricultura de subsistência.

A estas artes para a enguia dão o nome de Narsas e Galrichos

Saveiros no Escaroupim

Escaroupim em preia mar.

Descendo o rio, acompanhámos a margem esquerda e conseguimos ver algunsexemplares de Milhafre Preto (Milvus migrans), rapina relativamente rara e avistámosnuma árvore junto ao rio um ninho destas.

Atravessando para o lado contrárioe um pouco a jusante fomos visitara Palhota, igualmente aldeia deantigos avieiros. É notório oabandono do local.Apenas nos apercebemos de duasou três famílias residentes e emcasas já pouco a ver com o queera tradicional nesta comunidade.Nem vida, nem romantismo…nemtraços de Alves Redol.Lembro-me do meu pai me contarque fez a viagem de lua-de-mel em1944 (tempos de guerra), subindoo rio num pequeno barco à vela atéSantarém. Nessa altura, segundoele, a vida ribeirinha era bemdiferente do que se observa hoje.A viagem foi feita no fim de Julhosó à vela e tiveram o auxílio e acompanhia constante das gentes dorio, que lhes ofereciam os maisdiversos bens comestíveis (peixe,legumes, melões, etc.) … A Palhotanesse tempo era mais importanteque o Escaroupim, as casas eramde madeira, construídas em cimade estacas altas (palafitas)

De volta, rio acima, avistámos um Pato Real (Anasplatyrhynchos) e um par de GarçasReais (Ardea cinerea), ave grande de cor cinzenta e relativamente frequente.Contornámos um mouchão de tamanho considerável que baptizei de Ilha dos Cavalos.Havia uma “éguada” de lusitanos a pastar, que ali são deixados pelo proprietário e quenão têm problema em atravessar a nado para a margem… quando lhes apetece, talcomo observámos quando por ali passávamos.Aproximando-se a hora do almoço, rumámos a Valada, seguindo pela margemdireita e vimos muitos pescadores de linha. Pelo que observámos, iam tendobons resultados ao pescarem fataças com uma técnica de pesca que eu não supunharesultar com este peixe. Pescam-nas com uma amostra, ao corrico, tal como ofazem os pescadores de robalo no mar… O que é certo é que resulta e passamuns momentos agradáveis com a família.

Casco de rebocador abandonado.

O almoço ab o r d o ,depois deuma entradade paté deperdiz, tevecomo pratop r i n c i p a larroz depato noforno e foiregado comtinto dascaves doAndorinha-d o - m a r ;desta vezera um

Ribera del Duero. A sobremesa constou de ananás ao natural e bolo de chocolate.O café, tomámo-lo em terra, naesplanada junto ao rio, observando achegada dos concorrentes que iamparticipar nas provas de motonáuticado fim-de-semana.

Para fugir a esta barafunda, fomos meter-nos noutra. A convite do meu filho maisvelho e da minha nora, visitámos aExpocaça em Santarém, onde estavamcom um stand. Jantámos por lá e noregresso foi uma Valada já calma queencontrámos.

Depois de outra noite sossegada,decidimos partir cedo no domingo eassim, pelas sete da manhã, aproveitandoo início da vazante, largámos rio abaixocom alguma neblina e água espelhada.

Tivemos os mesmos cuidados de percurso em relação à subida, mas a sondamarcou sempre cotas bem mais seguras. Este percurso serviu como que umarevisão da matéria dada, em termos de navegação. Aproveitou-se para tirar maisumas fotos.Certos troços do rio têm correntes de 2,5 nós, pelo que por um período longoo motor indo apenas ás 1200 rpm , impelia o barco a quatro nós à água e aquase sete ao fundo!

ConchosoEsta autêntica auto-estrada estava hoje com um “piso” óptimo e sem trânsito. Nãonos cruzámos com ninguém até à Vala do Carregado.Chegados ás proximidades de Vila Franca por volta das dez da manhã, achámossensato parar por ali ou em Alhandra e aguardar pelo virar da maré.

Estando o portão do pontão fechado, à guarda do clube Vilafranquense, seguimospara Alhandra por ser local que conheço melhor de outras digressões. Amarradossem dificuldade, saltámos a terra e fomos visitar a localidade com apreciação dacaracterística arquitectura local. Foi interessante o passeio pela vila, até porqueos comentários do Emanuel, que é arqueólogo de profissão, ajudaram a melhorentender o que víamos.Há no entanto um certo ar de paragem no tempo. Foi, há séculos, a primeiraterra importante para quem subia o Tejo depois de Lisboa e onde desembarcouCristóvão Colombo, ao chegar à capital vindo de descobrir as Caraíbas(América ?).Soube que D. João II estava perto da Azambuja, refugiado da peste que grassavaem Lisboa e trazia a “obrigação” de lhe revelar o que tinha descoberto antes derumar a Espanha. Mas isso são outras histórias ainda hoje controversas.A zona ribeirinha foi completamente requalificada recentemente, com passeiopúblico e jardins, incluindo a demolição da barracaria dos pescadores artesanais.Realojaram-nos e construíram-lhes um pontão de amarração próprio.

Era hora de almoço e o Emanuel confeccionou “fusilli (massa) à la carbonara” compedaços de bacon, acompanhado com o tinto habitual. Antes de largarmos, fomosbeber café ao bar do clube. Tendo virado a maré cerca das 13:30, era hora de partir.Como é lógico fizemos todo o trajecto contra a corrente a uma velocidade relativamentebaixa, mas com segurança.Por ser domingo, cruzámo-nos com inúmeros barcos de pesca desportiva.Com uma navegação sem percalços foi pelas 16:30 que entrámos na Doca de Alcântara.

A fábrica de cimentos, omnipresente, dá também uma carga negativa a Alhandra.

Maio 2006

Texto : João Guimarães MarquesFotografia : Jorge Meneses

Versão integral enviada para publicação na DaVela.Marques, J. 2006. in DaVela. Setembro/Outubro. nº 8.pag. 46-49.