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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA ESPANHOLA E LITERATURAS ESPANHOLA E HISPANO-AMERICANA JORGE RODRIGUES DE SOUZA JÚNIOR Cultura enquanto objeto discursivo - considerações e lineamentos sobre seu papel em práticas de ensino de língua estrangeira, especificamente nas de espanhol para brasileiros. Versão corrigida SÃO PAULO 2016

Cultura enquanto objeto discursivo - considerações e ... · JORGE RODRIGUES DE SOUZA JÚNIOR Cultura enquanto objeto discursivo - considerações e lineamentos sobre seu papel em

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA ESPANHOLA E

LITERATURAS ESPANHOLA E HISPANO-AMERICANA

JORGE RODRIGUES DE SOUZA JÚNIOR

Cultura enquanto objeto discursivo - considerações e

lineamentos sobre seu papel em práticas de ensino de língua

estrangeira, especificamente nas de espanhol para brasileiros.

Versão corrigida

SÃO PAULO

2016

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JORGE RODRIGUES DE SOUZA JÚNIOR

Cultura enquanto objeto discursivo - considerações e

lineamentos sobre seu papel em práticas de ensino de língua

estrangeira, especificamente nas de espanhol para brasileiros.

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Língua Espanhola e

Literaturas Espanhola e Hispano-Americana do Departamento de Letras

Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Letras.

Orientador: Profa. Dra. María Teresa Celada

Versão corrigida

De acordo,

_____________________________________

Profa. Dra. María Teresa Celada

São Paulo

2016

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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meioconvencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogação na PublicaçãoServiço de Biblioteca e Documentação

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

S719cSOUZA JÚNIOR, Jorge Rodrigues de Cultura enquanto objeto discursivo - consideraçõese lineamentos sobre seu papel em práticas de ensinode língua estrangeira, especificamente nas deespanhol para brasileiros. / Jorge Rodrigues deSOUZA JÚNIOR ; orientadora María Teresa CELADA. - SãoPaulo, 2016. 178 f.

Tese (Doutorado)- Faculdade de Filosofia, Letrase Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.Departamento de Letras Modernas. Área deconcentração: Língua Espanhola e Literaturas Espanholae Hispano-Americana.

1. Cultura. 2. Ensino de Língua Estrangeira. 3.Análise do Discurso. 4. Estudos Culturais. 5. LínguaEspanhola. I. CELADA, María Teresa , orient. II.Título.

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Nome: SOUZA JÚNIOR, J. R. de

Título: Cultura enquanto objeto discursivo - considerações e lineamentos sobre seu

papel em práticas de ensino de língua estrangeira, especificamente nas de espanhol

para brasileiros.

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Língua Espanhola e

Literaturas Espanhola e Hispano-Americana do Departamento de Letras

Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Letras.

Aprovado em:

Banca Examinadora

Profa. Dra. María Teresa Celada (Orientadora) Instituição: USP

Julgamento:______________ Assinatura:______________

Profa. Dra. Maria Onice Payer Instituição: UNIVAS

Julgamento:______________ Assinatura:______________

Profa. Dra. Fernanda Castelano Rodrigues Instituição: UFSCAR

Julgamento:______________ Assinatura:______________

Profa. Dra. María Zulma Moriondo Kulikowski Instituição: USP

Julgamento:______________ Assinatura:______________

Profa. Dra. Marisa Grigoletto Instituição: USP

Julgamento:______________ Assinatura:______________

SUPLENTES:

Profa. Dra. Claudia Pfeiffer (UNICAMP)

Prof. Dr. Antonio Francisco de Andrade Júnior (UFRJ)

Prof. Dr. Adrián Pablo Fanjul (USP)

Prof. Dr. Lynn Mario de Souza (USP)

Page 5: Cultura enquanto objeto discursivo - considerações e ... · JORGE RODRIGUES DE SOUZA JÚNIOR Cultura enquanto objeto discursivo - considerações e lineamentos sobre seu papel em

Ao meu querido sobrinho Arthur.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha orientadora, a Profa. María Teresa Celada, carinhosamente Maite,

por seu apoio como orientadora, professora e amiga na elaboração desta tese. Sou muito

grato por toda a sua disposição e dedicação em dialogar, em entender o meu processo e

cuja experiência e saber foram fundamentais para levar a cabo esta pesquisa.

À Maria Onice Payer, pela leitura cuidadosa e por suas valiosas contribuições na etapa

de qualificação desta tese, que foram fundamentais para o desenvolvimento desta

pesquisa.

À Marisa Grigoletto, pela leitura cuidadosa e por suas valiosas contribuições na etapa de

qualificação desta tese, que também foram fundamentais e contribuíram para o

desenvolvimento desta pesquisa.

À Fernanda Castelano Rodrigues e à María Zulma Moriondo Kulikowski, por terem

aceitado o convite para participar da banca de defesa desta tese.

À CAPES por ter financiado esta pesquisa entre 2012 e 2013.

Aos amigos que conquistei neste percurso do doutorado, ao voltar à USP, cujas

conversas e experiências compartilhadas foram enriquecedoras para mim: Ana Fabro,

Bárbara Silva, Bruna Macedo, Cibelle Silva, Daniela Ioná Brianezi, Flávia Krauss,

Michele Costa, Larissa Locosseli, Laura Sokolowicz, José Mauricio Rocha, meu muito

obrigado.

Às amigas Andreia Menezes, Greice Nóbrega e Rosângela Dantas, pelos encontros pela

manhã movidos a cafés e a textos dos Estudos Culturais, numa troca de leituras e de

interpretações que me ajudaram a entender essa rica área das ciências humanas.

Aos colegas, alunos e funcionários do Instituto Federal de São Paulo, campus São

Paulo, cujo apoio e troca de experiências em muito contribuíram para esta tese.

Aos amigos da vida, muito queridos e que me ajudaram a tornar essa experiência mais

leve neste difícil percurso: Felipe Tonelli, Filipe Miranda, Fernando Morari, Guilherme

Marinho, Elias Ribeiro, Leandro Inoue, Natália Espósito, Walker Pincerati, pelo carinho

e pela compreensão de minhas ausências, em muitos momentos. Sem vocês, meus

queridos, não saberia levar tudo isso.

Aos meus queridos Paco e Pepe Legrand, cuja dedicação e carinho preenchem meus

dias com alegria e amor.

A Rhuan Pereira, pelo sopro de vida que me permitiu sentir a leveza de ser o que se é,

ao mostrar-me a poesia, a simplicidade e a alegria das pequenas coisas.

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Às minhas queridas irmãs, Juciene Rodrigues e Bruna Souza, cujo apoio, beleza e

carinho traduzem para mim o significado da palavra família, mesmo quando estou

longe.

Ao meu amado sobrinho Arthur Souza, cuja querida chegada, ao final deste meu

percurso, me deu ânimo e força. Seja bem-vindo.

Aos meus queridos pais, Jorge Rodrigues de Souza e Marta Ferreira de Souza: a vocês,

todo o meu respeito e agradecimento. Não há palavras para expressar o que fizeram por

mim em toda a minha vida.

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“Caminé frente al muro, piedra tras piedra. Me alejaba unos pasos, lo contemplaba y

volvía a acercarme. Toqué las piedras con mis manos; seguí la línea ondulante,

imprevisible, como la de los ríos, en que se juntan los bloques de roca. En la oscura

calle, en el silencio, el muro parecía vivo, sobre la palma de mis manos llameaba la

juntura de las piedras que había tocado”.

José María Arguedas

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RESUMO

SOUZA JÚNIOR, J. R. Cultura enquanto objeto discursivo - considerações e

lineamentos sobre seu papel em práticas de ensino de língua estrangeira,

especificamente nas de espanhol para brasileiros. 2016. Tese (Doutorado) –

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

Esta tese discute a noção de cultura e realiza o movimento de alçá-la como um objeto

discursivo, a partir do seu papel em práticas de ensino/aprendizagem de línguas

estrangeiras, especificamente as de língua espanhola para brasileiros. Nesse movimento

de devolver historicidade ao termo, ao discutir sua relação com a história, parto de uma

série de trabalhos teóricos sobre cultura produzidos no campo dos Estudos Culturais, da

Sociologia e da Antropologia Cultural, mobilizando-os para o campo dos Estudos da

Linguagem (conforme a perspectiva teórica da Análise do Discurso materialista) e, mais

especificamente, o da reflexão sobre as práticas de ensino de línguas estrangeiras, em

especial as de língua espanhola. Esta pesquisa coloca em relação temas referentes a

cultura, identidade, ideologia e colonialidade, ao realizar um percurso teórico que se

materializa na elaboração de lineamentos a partir de textos da esfera literária, visando a

interlocução no campo de formação de professores. As reflexões aqui presentes

oferecem resistência a certas formas de trabalhar sobre e com a cultura, formas essas

que estão instaladas, de alguma maneira, em certos saberes estereotipados e

estabilizados sobre o outro e sobre a língua, e estão atravessadas pela colonialidade do

poder e do saber, em práticas relacionadas ao ensino de língua estrangeira.

Palavras-chave: Cultura; Ensino de Língua Estrangeira; Análise do Discurso; Estudos

Culturais; Língua Espanhola.

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ABSTRACT

SOUZA JÚNIOR, J. R. Culture as a discursive object: considerations and guidelines

on its role in practices for teaching/learning a foreign language, specifically for

teaching Spanish to Brazilians. 2016. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

This thesis discusses the notion of culture and addresses it as a discursive topic, aiming

to reflect on its role in practices for teaching/learning foreign languages, specifically for

teaching Spanish to Brazilians. This approach restores historicity to the term by

discussing its relationship with history based on a number of theoretical works

concerning culture produced in the fields of cultural studies, sociology and cultural

anthropology, putting them to use in the field of language studies (in accordance with

the theoretical perspective of materialist discourse analysis) and, more specifically, of

the reflection on practices for teaching foreign languages, especially Spanish, such that

this reflection has a resonance in the area of teacher training. This work concerns issues

related to culture, identity, ideology and coloniality, following a theoretical path that

results in the development of guidelines based on texts from the literary sphere aimed at

introducing them into the field of teacher training. The reflections presented here are

designed to provide resistance to certain types of work on culture and the ways these are

included in some manner in certain stereotyped and established knowledge about the

other and about language, affected by colonialities of power and knowledge in practices

related to the teaching of a foreign language.

Keywords: Culture; Foreign Language Teaching; Discourse Analysis; Cultural Studies;

Spanish Language.

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RESUMEN

SOUZA JÚNIOR, J. R. Cultura en tanto objeto discursivo: consideraciones y

lineamientos sobre su papel en prácticas de enseñanza/aprendizaje de lengua

extranjera, específicamente, en las de español para brasileños. 2016. Tese

(Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de

São Paulo.

Esta tesis discute la noción de cultura y realiza el movimiento de legitimarla como un

objeto discursivo, al reflexionar sobre su papel en prácticas de enseñanza/aprendizaje de

lenguas extranjeras, específicamente las de lengua española para brasileños. En este

movimiento, le devuelve historicidad al término, discutiendo su relación con la historia

a partir de una serie de trabajos teóricos sobre cultura producidos en el campo de los

Estudios Culturales, de la Sociología y de la Antropología Cultural que movilizo hacia

el campo de los Estudios del Lenguaje (a partir de la perspectiva teórica del Análisis del

Discurso materialista) y, más específicamente, hacia el campo de la reflexión sobre las

prácticas de enseñanza de lenguas extranjeras, en especial las de lengua española. El

objetivo es que tal reflexión resuene en el área de formación de profesores. Esta

investigación relaciona temas referentes a cultura, identidad, ideología y colonialidad y

realiza un recorrido teórico que se materializa en la elaboración de lineamientos a partir

de textos de la esfera literaria que buscan una interlocución con el campo de la

formación de profesores. Las reflexiones aquí presentes tienen el propósito de ofrecer

resistencia a ciertas formas de trabajar sobre y con la cultura, que están instaladas, de

alguna manera, en ciertos saberes estereotipados y estabilizados sobre el otro y sobre la

lengua, y están atravesadas por la colonialidad del poder y del saber, en prácticas

relacionadas a la enseñanza de la lengua extranjera.

Palabras clave: Cultura; Enseñanza de Lengua Extranjera; Análisis del Discurso;

Estudios Culturales; Lengua Española.

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Sumário

Introdução ....................................................................................................................... 15

Capítulo 1: ...................................................................................................................... 23

As condições de produção desta pesquisa ...................................................................... 23

1.1. Reflexões sobre a abordagem de cultura no ensino de línguas estrangeiras ....... 23

1.2. A literatura como materialidade discursiva para discussão de cultura ................ 32

1.3. Cultura no espaço de enunciação da língua espanhola ........................................ 39

1.4. Cultura e sua relação com atuais processos de globalização ............................... 44

1.5. Cultura e a identidade em práticas culturais ....................................................... 47

Capítulo 2: ...................................................................................................................... 49

Cultura – reflexões sobre seus diferentes sentidos ......................................................... 49

2.1. Os primeiros movimentos de cultura na história ................................................ 52

2.2. O trabalho dos Estados nacionais sobre cultura .................................................. 56

2.3. A dissociação entre cultura e civilização............................................................. 79

Capítulo 3: ...................................................................................................................... 89

Cultura e identidade – uma discussão ............................................................................ 89

3.1. O discurso colonial e a construção de alteridade ................................................. 92

3.2. A colonialidade do poder ................................................................................... 100

3.3. A identidade na pós-modernidade ..................................................................... 110

Capítulo 4: .................................................................................................................... 117

Lineamentos para discussão de cultura em práticas de ensino de línguas ................... 117

4.1. O pensamento fronteiriço como gesto de interpretação ..................................... 118

4.2. Delimitação do corpus – o romance indigenista ................................................ 121

4.3. A produção de lineamentos ................................................................................ 131

4.3.1. A partir de Los ríos profundos .................................................................... 131

4.3.2. A partir de La tumba del relámpago ........................................................... 151

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Considerações finais ..................................................................................................... 164

Referências Bibliográficas ............................................................................................ 170

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Introdução

Esta pesquisa de doutorado dá prosseguimento à discussão que iniciei em minha

dissertação de mestrado, intitulada “A literatura no ensino de espanhol a brasileiros: o

teatro como centro de uma prática multidimensional-discursiva”1 (SOUZA JUNIOR,

2010). Nesse trabalho propus analisar duas coleções de materiais didáticos2 de ensino de

espanhol para brasileiros, utilizados em contexto formal de aprendizagem, adotando o

parâmetro de tomar o livro didático como um gênero discursivo, além de propor

lineamentos3 para a abordagem de textos literários, por serem pouco trabalhados em

aula de língua estrangeira, a partir de temas discutidos por uma unidade de cada um dos

livros que compuseram o corpus, pelo viés do currículo multidimensional-discursivo

(SERRANI, 2005). Para tal, parti da postulação de Bakhtin (2006) de que cada campo

de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados (ibid., p.

261), considerando o livro didático (LD), conforme essa definição, como um gênero

discursivo. Desta forma, analisei a estrutura e organização dos dois LDs que

compuseram o corpus, destacando suas condições de produção, sua estrutura e

funcionamento.

Também compôs o trabalho a realização de uma análise, mediada pelo currículo

multidimensional-discursivo, nesse ínterim proposto como metodologia de trabalho

(SERRANI, 2005), de uma unidade de cada um dos dois livros, como modo de reflexão

sobre sua estruturação e seu funcionamento discursivo; após essa análise propus discutir

1 Defendi essa dissertação junto ao Programa de Linguística Aplicada do Instituto de Estudos da

Linguagem da UNICAMP, em 2010, sob a orientação da Profa. Dra. Silvana Serrani.

2 BRIONES, A. et alii. Español ahora. São Paulo: Moderna, 2005 e BRUNO, F. C.; MENDONZA, M.

A. C. L.. Hacia el español. São Paulo: Saraiva, 2005. A escolha dos livros didáticos analisados foi

decidida conforme a Portaria SEB (da Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação) Nº 28,

de 1º de dezembro de 2005, que até aquele momento era o único documento oficial que havia selecionado

os livros, as gramáticas e os dicionários a serem oferecidos aos professores do Ensino Médio que

lecionavam espanhol na rede pública.

3 Na linha de trabalho adotado por Serrani (2005), considero lineamentos como linhas gerais de trabalho,

à guisa de traços ou de primeiros contornos de uma discussão. À diferença dessa autora, e do trabalho que

realizei em minha dissertação, nesta tese não formularei lineamentos visando a proposição de um

currículo multidimensional-discursivo para discussão do universo que se designa mediante a mobilização

do termo “cultura”, em aulas de ensino/aprendizagem de espanhol para brasileiros, mas como um modo

de trabalho possível de ser adotado a partir deste tema específico.

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o trabalho com textos teatrais em aula de espanhol a partir dos temas apresentados por

cada uma dessas unidades, por ser o único gênero literário ausente em tais livros.

A análise realizada constatou o apagamento da relação que se poderia

estabelecer entre os diferentes temas “apresentados como culturais” e a materialidade

linguístico-discursiva dos textos abordados nas práticas propostas por esses livros. A

análise também permitiu mostrar que a formulação e a disposição de saberes nas

unidades didáticas constituíam um determinado efeito de sentido: à guisa de uma

“colagem”, operava aí uma sobreposição de diferentes discursos não submetidos à

interpretação em atividades de compreensão e de produção, propostas apenas para o

trabalho com aspectos gramaticais da língua estudada. Por fim, o trabalho desenvolvido

possibilitou observar que o “algo em comum” entre as propostas e as atividades de cada

unidade era somente o seu “tema” (conforme este é concebido na Abordagem

Comunicativa), registrado no título e que cito aqui a modo de exemplo: “¿Qué te

gusta?”, “En el restaurante”, “En familia”, “De vacaciones”, etc. E cabe observar ainda

que tais propostas e atividades, de forma regular, quando se referem, por exemplo, a um

texto literário, lançam mão, para contextualizar essa leitura, de quadros lexicais (à guisa

de vocabulário), de “pequena biografia do autor” de um texto ou de legendas abaixo das

fotos ali registradas.

Conclui que mediante a textualização presente nos LD’s analisadosse realiza um

apagamento das condições de produção dos discursos aí “citados” – mais do que

realmente mobilizados. Além disso, nas unidades analisadas, observei um apagamento

da heterogeneidade de hábitos e de modos de consumo – dois aspectos que sempre

aparecem vinculados – das sociedades e dos sujeitos ali representados. Esse

funcionamento produz, como efeito de sentido, a naturalização de determinados hábitos

e práticas sociais (implicando a exclusão de outras) que funcionam como se fossem as

“de todos” e que projetam um modelo de vida específico e restrito, além de construir

evidências que produzem a neutralização de conflitos – sociais, étnicos, políticos, dentre

os principais.

Desta forma, constatei que “a cultura” associada à língua é produzida

“mercadologicamente”, a partir da retomada de evidências e a produção de totalizações

– do funcionamento de uma metonímia que implica que se tome a parte como o todo –

que a apresentam como um produto, como algo dado e fechado, desde um lugar que a

relaciona a processos de consumo. Além disso, o que me interessa frisar é que o

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trabalho proposto aos sujeitos-aprendizes, no que se refere à “cultura”, não passava –

como já antecipei – pela materialidade linguístico-discursiva da língua, pois ela era

apresentada e representada sem relação com esta, de forma isolada; tal observação me

permite dizer, neste ponto, que “a cultura” funciona aí como um lugar outro da língua,

algo que retomarei e explorarei mais adiante nesta tese.

Nesse contexto, e a partir de meu lugar de professor de espanhol e de

pesquisador sobre os processos de ensino/aprendizagem do ensino dessa língua para

brasileiros, esta pesquisa de doutorado insere-se no âmbito dos estudos culturais, na

discussão de temas referentes a cultura, identidade e ideologia em práticas de ensino de

espanhol como língua estrangeira (doravante E/LE) para brasileiros. Proponho, assim,

realizar um movimento de devolver ao termo “cultura” a sua historicidade –

estabelecendo a sua relação com a história – a partir de uma série de trabalhos teóricos

sobre essa noção produzidos no campo dos Estudos Culturais, da Sociologia e da

Antropologia Cultural, para o campo dos Estudos da Linguagem e, mais

especificamente, o da reflexão sobre as práticas de ensino de línguas estrangeiras, em

especial de língua espanhola, no intuito de que tal reflexão essa ressoe na área de

formação de professores. Para tal recorrerei à discussão sobre cultura realizada nos

campos teóricos acima citados, a partir da perspectiva da Análise do Discurso

materialista (doravante AD).

Essa perspectiva se justifica pelo fato de que a AD materialista, em seu

imbricamento com a Linguística, as Ciências Sociais e a Psicanálise, propicia e

possibilita colocar em relação a reflexão sobre cultura realizada nos Estudos Culturais

com questões que são caras à discussão que aqui realizo, como as relacionadas a sujeito,

língua e cultura. Nesse sentido, estabeleço como fundamental discutir a noção de

cultura e realizar o movimento de tomá-la como objeto de observação para alçá-la a

objeto discursivo, partindo de dois pontos de articulação: como processo de

interpelação e como arquivo, articulação que discutirei no capítulo 1.

Nesse sentido, considero válido, ao abordar o trabalho com “a cultura” 4

,

vinculada a essa língua que “se ensina”, discutir que dentro dessas práticas de

ensino/aprendizado, ao mobilizar determinada noção de cultura, funciona, sobretudo em

contexto escolar, um processo de interpelação cujo efeito leve o aprendiz a ocupar

4 Coloco o artigo entre parênteses para marcar a força desse determinante linguístico que acompanha,

regularmente, esse substantivo e que gera um efeito de determinação discursiva (PAYER, 1993, p. 45),

efeito de sentido que esta tese focalizará de maneira específica.

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determinadas posições (e não outras), se identifique com determinados sentidos e, desta

forma formule seus gestos de interpretação. Isto ficará claro ao observar que a noção

mais regular em tais práticas está filiada, claramente, a um funcionamento ideológico.

Como arquivo, a partir da definição de Foucault (2008) sobre esse termo, há um

funcionamento cristalizado de cultura que funcionaria como algo que dá base aos

enunciados sobre esse termo.

Em relação ao primeiro ponto dessa articulação para alçar cultura como objeto

discursivo considero importante fazer um esclarecimento com relação a como concebo

as práticas de ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras. De acordo com observações

de Celada (2013), penso que estas fazem parte das condições de produção de um

processo que – com base em definições de Serrani-Infante (1997a, p. 49), formuladas a

partir da matriz teórica da AD materialista – entendo como sendo de inscrição por parte

dos sujeitos-aprendizes na ordem – no funcionamento – da língua outra. Entendo,

também, que o termo “inscrição” especifica um determinado processo de identificação

(cf. SERRANI-INFANTE, 1997b) e, por tanto, implica questões identitárias.

Levar em conta que há um processo por parte do sujeito aprendiz de inscrição na

ordem da língua outra e que o contexto imediato é constituído – dentre outros aspectos –

pelas práticas de ensino/aprendizado significa subordinar estas a esse processo, que

concebo como central. Isto implica privilegiar o reconhecimento de que há aí uma série

de movimentos de identificação (ou não) por parte do aprendiz – como sujeito da

linguagem –, movimentos na procura (e volto a insistir: ou não) dessa inscrição. Assim,

esse sujeito, como diria Celada (2013), vai deslizando, “capturado por formas e sentidos

dessa língua”,

[...] e essa série de capturas vai tramando sua inscrição na ordem

da língua outra, aspecto que nos leva a frisar que tudo isso não

tem como acontecer a não ser como vinculado (“entrelaçado” ao

processo – maior, mais amplo – de subjetivação, nunca

encerrado) cujo protagonista é o sujeito da linguagem

(CELADA, id., p. 49).

Em minha pesquisa, portanto, tenho como foco a relação entre línguas5 que se realiza na

trama de uma subjetividade (CELADA, 2013), ao apresentar uma discussão que leva em

5 Fundamentalmente entre a materna/nacional – na (des)continuidade que aponta Celada com base em

distinções de Payer (2007) –, outras que possam habitar a relação linguagem/sujeito, e a estrangeira.

Para o trabalho no qual Celada realiza essa observação, cf. Payer e Celada (2011).

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consideração a abordagem de aspectos que entram nesse processo de inscrição que um

sujeito atravessa – numa verdadeira travessia – ao “aprender” uma língua.

Além de estabelecer o objetivo de devolver historicidade ao termo cultura,

visando sua discussão em práticas de ensino de línguas estrangeiras, abordarei textos da

esfera literária como materialidade discursiva, analisando-os como processos

enunciativos e discursivos configurados e constituídos historicamente pela relação

dinâmica estabelecida entre a forma dos textos e os processos históricos e as práticas

sociais que participam de suas condições de produção. Tal análise me levará a realizar a

elaboração de lineamentos6 para colocar em funcionamento (como diria PÊCHEUX,

1999) variados textos conforme suas condições de produção, visando que tais

lineamentos possam dar subsídio a processos de formação de professores.

Nesse sentido, meu escopo está restrito a textos literários narrativos. Conforme

Serrani (2005) e Souza Júnior (2010), nas práticas de ensino de língua às quais me referi

acima opera uma dicotomia entre língua e literatura que justifica a importância da

discussão da noção de cultura e a realização de lineamentos para ver como esta funciona

em diversos textos.

Também especifico o caráter da esfera literária como materialidade linguística

para esse trabalho, pois, para mim, a literatura apresenta práticas discursivas que não

estão totalmente ausentes em gêneros de outras esferas, mas, ao alçá-la como objeto de

discussão de lineamentos para a abordagem de aspectos culturais que possam contribuir

nos processos de formação de professores, realizo um movimento de ressignificação da

literatura em práticas de ensino. Essa esfera geralmente é negligenciada na elaboração

de práticas de livros didáticos de ensino de línguas, apesar de que ultimamente alguns

gestos de inclusão já têm sido realizados em relação a ela; neste trabalho, reivindico a

importância de seu lugar dentro de tais práticas.

Em relação à série de sentidos que, de modo privilegiado, é vinculada ao termo

“a cultura” em práticas de ensino e de aprendizagem de língua estrangeira,

especificamente as de E/LE para brasileiros, estabeleço como eixo central desta tese

discutir cultura e realizar o movimento de tomá-la enquanto objeto de observação,

coisificado, um suposto saber do nível do imaginário, para alçá-la como objeto

discursivo, de caráter simbólico, pela perspectiva teórica da AD materialista. Destaco

6 Remeto a nota anterior a consideração que faço sobre esse termo: considero lineamentos como linhas

gerais de trabalho, à guisa de traços ou de primeiros contornos de uma discussão

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que, apesar de haver alguns trabalhos da esfera teórica da AD materialista que abordam

questões referentes à noção de cultura, como os de Rodríguez-Alcalá (2004), De Nardi

(2007) e Ferreira (2011), considero necessário fazer um movimento de discussão sobre

cultura na história a partir de como esta noção é discutida fortemente em outros lugares

teóricos – como os dos Estudos Culturais, da Sociologia e da Antropologia Cultural.

A discussão do termo cultura que proponho implicará, nesse sentido, num gesto

de interpretação baseado na articulação e revisão que realizarei pelo viés teórico da AD

materialista. Deste modo, por um gesto condizente com a constituição interdisciplinar

da AD, mobilizarei o paradigma teórico dos Estudos Culturais sobre cultura,

colonização e colonialidades do poder e do saber, colocando-os em relação com

saberes específicos de outras disciplinas e de meu lugar teórico.

Considerando a discussão que realizarei a partir dos estudos ao redor do termo

cultura, serão mobilizados os trabalhos de Bhabha (2007), García Canclini (1997),

Eagleton (2011 e 2005b), Hall (2001 e 2009), Mignolo (2003a, b) e, para abordar o

processo histórico e econômico que determinam a colonialidade do saber a partir da

configuração de centros e periferia, contradição que seria determinante dos processos de

globalização que atualmente configuram as relações entre nações e a circulação de

saberes, os trabalhos de Benko (1999), Castells (1999) e Ianni (1999).

Pelo fato de que a AD se apresenta como um dispositivo teórico que o analista

mobiliza, de acordo com seu corpus e seu gesto de análise, como dispositivo analítico,

nesta tese opto por não fazer uma apresentação inicial de todos os conceitos desse

campo disciplinar que serão trabalhados, mas por ir trazendo-os pontualmente, na

medida que se tornem necessários.

Entretanto, considero importante trazer o que Ferreira (2011), justamente numa

reflexão realizada a partir da AD, considera sobre cultura. Diz a autora (ibid., p. 59) que

cultura se apresenta como “um lugar de produção de sentidos, que muitas vezes são

naturalizados e passam a reforçar o efeito de apagamento da historicidade de certos

fatos sociais”. Nessa linha de reflexão, Ferreira propõe pensar – em analogia à ordem do

discurso e à ordem da história – a ordem da cultura7: se trataria de uma “ancoragem”

que estabelece esta última como forma de resistência às normas e preceitos reguladores

7 Orlandi (1996) considera que tanto o discurso quanto a língua possuem sua ordem própria, da esfera do

real, e esta se manifesta e se mostra na organização. Há uma tensão entre a ordem e a organização da

língua (e, paralelamente, eu poderia observar, entre a ordem e organização da história, e entre a ordem e a

organização da cultura).

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de uma dada configuração histórica-social (ibid., p. 60). Meu movimento, nesta

pesquisa, vai na direção, justamente, de trabalhar tal ancoragem, tentando atravessar a

organização que faz operar, nas práticas de ensino/aprendizagem de língua espanhola,

uma determinada sobre “a cultura”, e colocar cultura na ordem do funcionamento dos

textos, do discurso.

Passo, a seguir, a apresentar a estrutura desta tese. Explicito a estrutura dos

capítulos que a compõem, na estrutura definida para textualizar a pesquisa

desenvolvida.

No primeiro capítulo exporei as condições de produção desta pesquisa e

discutirei a relação que no trabalho será estabelecida sobre o termo cultura a partir do

campo dos Estudos Culturais, da Sociologia e da Antropologia Cultural e o campo dos

Estudos da Linguagem, sendo tal movimento discutido pela perspectiva materialista da

AD. Também discutirei, inicialmente, questões que serão trabalhadas nos capítulos

seguintes, pois a reflexão inicial apresentada nesse primeiro capítulo será um ponto de

partida sobre o percurso teórico que embasou o recorte teórico e analítico que adotei na

realização desta tese.

No segundo capítulo problematizo cultura enquanto termo, ao deslocar o

sintagma determinado em sua indeterminação: “a cultura”, – tão frequente em práticas

de ensino, nas quais se frisa a necessidade de que, ao ensinar a língua, é preciso ensinar

“a cultura”. Para tal, colocarei esse objeto em relação com as diversas séries de sentidos

(cf. ACHARD, 1999) às quais foi se vinculando, isto é, em filiações de memória

discursiva – gesto este que suporá já uma ressignificação do termo. Nesse trabalho, o

termo irá se historicizando, fundamentalmente, a partir de saberes mobilizados no

campo dos Estudos Culturais. Conjuntamente, também discutireia vinculação de cultura

com os processos de interpelação e de subjetivação, realizados por parte do Estado, ao

amalgamar tradições e identidades sob o viés do nacional.

O terceiro capítulo parte da reflexão realizada no anterior para discutir

especificamente a questão da identidade, que se vincula fortemente à de cultura. Nele

também apresento um debate sobre a questão da identidade enquanto processo de

subjetivação e de interpelação de sujeitos, processos esses mediados por um Estado que

realiza um trabalho de organização simbólica e imaginária de sentidos. Nesse capítulo 3,

ademais dessas considerações, também discuto a relação da identidade com os

processos de colonização e de constituição dos Estados nacionais da região designada

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como América Latina, processos esses contraditórios e clivados e que estão diretamente

relacionados com as identidades que se localizam nesse espaço.

No capítulo 4, realizo um movimento de transferência de toda a discussão

teórica realizada na tese no sentido de elaborar lineamentos para a discussão da noção

de cultura, para ver como esta funciona em diversos textos, visando processos de

formação para professores de língua estrangeira, especificamente os de língua espanhola

para brasileiros.

Passo, a seguir, ao primeiro capítulo desta tese.

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Capítulo 1:

As condições de produção desta pesquisa

Neste primeiro capítulo, como dito anteriormente, apresentarei uma reflexão

sobre as condições de produção desta pesquisa, ao estabelecer uma discussão sobre o

termo cultura a partir do campo dos Estudos Culturais, da Sociologia e da Antropologia

Cultural e o campo dos Estudos da Linguagem, mobilizando tal debate a partir da

perspectiva materialista da AD.

Para expor as condições de produção desta pesquisa dividirei este capítulo em

itens. No primeiro deles vinculo cultura a práticas de ensino de línguas, refletindo sobre

o modo como esse termo geralmente é abordado, a partir de meu percurso de

pesquisador sobre o ensino de espanhol para brasileiros e como professor dessa língua

nesse contexto específico. Em seguida faço uma discussão, como contraponto a este

modo genérico de abordar cultura, a partir de uma breve reflexão sobre o caráter da

literatura enquanto materialidade discursiva para discussão de cultura em práticas de

ensino de línguas. No terceiro item faço um agenciamento de cultura a um contexto de

produção específico, o espaço de enunciação da língua espanhola. No quarto item

apresento reflexões iniciais sobre o vínculo de cultura com processos sociais e

econômicos vinculados à globalização e, por último, no quinto item, o vínculo de

cultura com identidade. Todas essas questões serão trabalhadas nos capítulos seguintes,

pois a reflexão inicial que aqui apresento funcionará como um ponto de partida sobre o

percurso teórico que embasou o recorte teórico e analítico que adotei na realização desta

tese.

1.1. Reflexões sobre a abordagem de cultura no ensino de línguas

estrangeiras

Em relação sobre a abordagem de cultura em práticas de ensino de língua

estrangeiras, considero importante observar como opera o termo cultura no processo de

interpelação a que – como observei na Introdução – sujeitos-aprendizes brasileiros de

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E/LE estão submetidos em âmbito escolar8, pois creio que, como conceito, não foi

suficientemente debatido para que permeie de outro modo as práticas de

ensino/aprendizagem de língua. Dessa perspectiva, cabe discutir se a revisão da noção

de cultura poderia instaurar novas séries de sentido que permitam interromper certas

rotinas dominantes no funcionamento da memória discursiva que vinculam “a cultura” a

certos saberes.

Pêcheux, em seu texto “Papel da memória” (ACHARD et al., 2007, p. 49-57),

toma considerações realizadas por Achard em “Memória e produção discursiva do

sentido” (ACHARD et al, 2007, p. 11-17) sobre a “regularização”, que aconteceria

através de “remissões, retomadas e de efeitos de paráfrase” (ibid., p. 52), que

permitiriam o funcionamento de implícitos que dariam sustentação à interpretação de

determinados discursos. Ao recuperar esse conceito, Pêcheux discute “a questão da

memória como reestruturação de materialidade discursiva” (ibid.), e considera que

“seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer

os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e

relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível

em relação ao próprio legível” (PÊCHEUX, 1999, p. 52). Ainda nessa retomada das

formulações de Achard, Pêcheux (ibid.) considera que tal “regularização discursiva, que

tende assim a formar a lei da série do legível, é sempre suscetível de ruir sob o peso do

acontecimento discursivo novo, que vem perturbar a memória” (ibid.). Do meu ponto de

vista, justamente, a revisão da noção de cultura poderia vir a instaurar novas séries de

sentido no funcionamento da memória, desmanchando a regularização que há em torno

desse conceito – altamente cristalizado – nas aulas de língua estrangeira: poderia

funcionar deslocando e desregulando “os implícitos associados ao sistema da

regularização anterior” (ibid.).

De meu ponto de vista, a instauração de novas séries de sentido através da

revisão do termo cultura poderia contribuir justamente a promover ou propiciar a

produção da identificação simbólica do sujeito aprendiz com a língua outra. Neste

segundo sentido, a mobilização de aspectos culturais, a partir dessa revisão, poderia

chegar a interferir na relação dos aprendizes com a língua e interromper certas projeções

ou identificações imaginárias de língua como “gramática” ou, no caso específico do

8 Realizo a especificação aqui com relação à disciplina de língua espanhola; porém, a noção de cultura à

qual faço referência atravessa outras disciplinas aos quais os sujeitos-aprendizes de E/LE estão

submetidos, como a de língua portuguesa, por exemplo.

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espanhol, como “a escrita da escola” (cf. CELADA, 2002), por efeito do modo como é

trabalhada nas práticas a “organização” da língua9.

Ter isso em consideração é importante, pois, do meu ponto de vista, as práticas

de ensino de línguas estrangeiras estão centradas em livros didáticos que, como

instrumentos linguísticos (cf. AUROUX, 1992), recortam uma língua – inclusive,

chegando a funcionar como “reguladores” de sentidos e de dizeres nessa língua – e que,

com relação à forma de abordar “a cultura”, realizam um trabalho de estereotipização e

de homogeneização de sentidos10

. Tal funcionamento possui um modo regular em que

não ocorre a instauração de novas séries de sentido, mas sim o uso recorrente da

paráfrase, na ordem do repetível, de sentidos que remetem a lugares de saber tomados

como evidentes, pensados em relação a sujeitos de uma específica formação social e

econômica, conforme especificarei a seguir.

Considerando as práticas sob a Abordagem Comunicativa de ensino de línguas,

poderia dizer ainda que numa relação de tensão com esse movimento que acabei de

descrever aparece um outro que, entrelaçado ao primeiro, vai pinçando hábitos – no

caso, de “uma dada sociedade” – passíveis de serem contabilizados na esfera do

“exótico”. Com ambos movimentos “a cultura” fica vinculada a registros tomados como

“espontâneos” – porque, como se fossem do nível do fisiológico, estariam livres de

determinação histórica e desvinculados de uma memória discursiva – e “autênticos” –

dados por uma tradição que os validaria e da qual “todos sabemos” – em uma dada

sociedade ou grupo social.

À guisa de exemplificação do segundo movimento, vale a pena mencionar –

dentre tantos casos – a vinculação do tango aos argentinos, do sombrero aos mexicanos,

9 Orlandi (1996) considera que tanto o discurso quanto a língua possuem sua ordem própria e esta ordem

se manifesta e se mostra na organização. Ainda segundo a autora (ibid., p. 45-51), há uma tensão entre

essas instâncias: em contraposição à ordem, na organização – sendo a esfera imaginária dos sentidos –

prevalecem a regra e a sistematicidade. Em práticas de ensino de línguas, “a língua” enquanto “unidade”,

vinculada a exigências de normatização, é um efeito de sentido bastante comum e se materializa quase

exclusivamente através de formulações de regras e de combinatórias, de exemplos e de exercícios.

10

Serrani (1998b), ao discutir o uso de manuais de ensino de línguas estrangeiras (que aqui tomo como

instrumentos linguísticos, baseado em Auroux [1992]), crê que é fundamental manter, em uma

perspectiva pragmático-discursiva, “el carácter mediador de los manuales, ejercicios, metalenguaje, etc. a

fin de no perder de vista la relación efectiva con el objeto de conocimiento” (ibid., p. 186, grifos meus).

A autora (id.) considera que uma prática contrária teria, como consequência, não a aprendizagem de uma

língua mas sim dos instrumentos linguísticos usados nas práticas de ensino, como “el manual, el

cuaderno de ejercicios, el metalenguaje”. A partir dessa observação, considero que o risco de tomá-los

como objeto de conhecimento, e não como um material de apoio, é o de cristalizar uma determinada

“memória representada” (Motta, 2010) de língua, atravessada e constituída pela materialidade desses

instrumentos linguísticos.

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do “universo andino” quase que exclusivamente aos bolivianos. Esses gestos aparecem

no meio de um efeito de sentido: o de uma “normalidade” advinda da naturalização dos

hábitos e das práticas sociais da sociedade espanhola (esta também sob um efeito de

homogeneização), tomada como modelar. Esse é um funcionamento discursivo que

caracteriza, de modo regular, os livros didáticos de E/LE.

A apresentação, sob um efeito de evidência, de determinadas formas de vida e de

sociedade, contribui a uma naturalização e homogeneização de hábitos de consumo, e à

estereotipia de tipos sociais e coletivos (o professor, o advogado, o médico, o pai como

chefe familiar; a família composta por pai, mãe e filho), sendo o que escapa a essas

“regularizações” tomado como “exótico”. A partir do funcionamento decorrente desses

efeitos de evidência, em ambos os movimentos, ressoam sentidos de “civilização”, de

“nação” e de “sociedade” numa série de estereótipos e clichês constitutivos de um

processo que possibilita a reprodução de certas formações imaginárias, mas que também

permite a instauração e a formação de novas séries de sentidos, sempre moventes. E é

neste último viés que considero importante investir.

A série de sentidos de que falei anteriormente, assim posta em relação na

materialidade do livro didático, em circulação nas práticas de ensino e de aprendizagem

de língua estrangeira que se centram nele, dá continuidade a um processo ideológico –

ao retomar ou reproduzir suas bases de significação – sendo, assim, partícipe de tal

processo de interpelação de alta regularidade no capitalismo atual.

“A cultura” – assim determinada11

e, portanto, tomada como algo fechado nos

livros didáticos analisados (e nas práticas que retomam essa concepção) – é mobilizada

apenas enquanto tema e é isto o que me levou, acima, a dizer que ela é trabalhada como

lugar outro da língua, sem referência à materialidade linguística. Para avançar sobre

esta afirmação, tomo a definição de Pêcheux (1993b) (também retomada por ORLANDI

[1988]), segundo a qual a língua constitui uma base material e, em tal base, se

produzem efeitos de sentidos ligados a uma memória discursiva constituída sócio-

11 Payer apresenta uma reflexão, a partir de discussões de Haroche e Henry, sobre os mecanismos de

determinação. Segundo a autora (1993, p. 45), “(...) caracterizam-se [...] como mecanismos de linguagem

privilegiados para se perceber a realização textual da impressão de que se atinge de fato um objeto em sua

unicidade, em sua invariância, e de que aprisiona na língua esse objeto que parece só poder ser este,

assim, desta forma. A determinação supõe, deste modo, a possibilidade de uma ‘ancoragem da

significação’ em um referente exato, definido, individual”. Decorrente deste funcionamento discursivo é o

efeito de unidade e de evidencia que se alojam ao objeto discursivo que é determinado, o que corrobora a

interpretação colocada acima sobre os sentidos decorrentes da determinação de “cultura” nos livros

didáticos.

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27

historicamente. A língua, então, não é independente de tal memória, tampouco esta

dessa base material, relação que constitui o caráter processual da linguagem – a língua

como vinculação entre a materialidade linguística e a memória discursiva que a

permeia.

O efeito de sentido que produz o sintagma “a cultura” como lugar outro da

língua, que apaga a memória discursiva vinculada a essa língua, está permeado de

representações de sociedade, de sujeitos e de hábitos, estas apresentadas e reproduzidas

sem serem submetidas a uma reflexão teórica e, portanto, sujeitas a uma filosofia

espontânea (PÊCHEUX, 2008). Tal funcionamento vai em direção de retomar e

legitimar um processo de naturalização – já instaurado ideologicamente – de tais

representações que, dadas como “verdadeiras”, instalam o que interpreto como uma

dicotomia entre língua e cultura – por isso, já expressei tal interpretação, mediante a

formulação “cultura como um lugar outro da língua” – e, ainda, como também já disse,

contribuem a um processo de estereotipia do outro.

Neste capítulo considero importante, em relação à dicotomia entre língua e

cultura que mencionei anteriormente, observar que a noção de cultura que aí opera –

como produto mercadológico, idealizado12

e desistoricizado13

– está vinculada a uma

exterioridade fora da língua, ao diluir o linguístico e silenciar o político, em um

processo de homogeneização que apaga as contradições inerentes a este último14

.

Tenho como hipótese que não é possível pensar “a cultura” como separada dos

processos históricos e discursivos constitutivos de uma língua, por isso considero que

não é “algo” que esteja fora desta. A língua possui uma constituição no modo relacional

entre o discurso e a história; nela, em sua memória (PAYER, 2007) e em como esta

opera no discurso ficam inscritos processos de diferenciação, da ordem da alteridade. É

possível pensar esta última em sua relação com a ordem da cultura, tentando escapar da

12

Produz-se uma cultura idealizada, no sentido de “neutra” e “sem conflitos”.

13

De acordo com a AD, a exterioridade funciona como “historicidade” (ORLANDI, 2008) no interior do

discurso (inclusive, pelo que acabei de discutir anteriormente sobre a língua como base material), sendo

possível analisar como um acontecimento se inscreve no discurso (cf. ACHARD et alii, 2007). Penso

que “a cultura” atravessa essa exterioridade – atravessa, com sua especificidade, o real da história – e que,

portanto, é possível trabalhar seu funcionamento como inscrito no interior de um texto, no interior do

discurso.

14

Diniz (2012) apresenta em sua tese processo semelhante ao analisar materiais didáticos e discursos

produzidos pelo corpo diplomático brasileiro sobre a cultura do Brasil em processos de ensino e

aprendizagem de Português como Língua Estrangeira na América Latina.

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“organização” – numa espécie de quase “administração” imaginária – à qual ela é

submetida no funcionamento da “noção de cultura” à que me referi acima e que opera,

regularmente, nas práticas de ensino/aprendizagem que aqui me ocupam15

.

Inerente a estas questões está o modo relacional entre língua, discurso, cultura e

história, vinculação que discutirei adiante e que me leva a pensar como Mignolo

(2003a) quando este reflete sobre esta questão. Para este autor, manter os laços entre

língua, literatura (a canônica), cultura (a nacional, sob o poder ou a organização de um

Estado) e território (vinculado a um Estado nacional) supõe reproduzir as localizações

imperiais, ou seja, os privilégios e lugares sociais estabelecidos pelo imperialismo

econômico. Segundo o mesmo autor, “los fuertes lazos existentes entre lengua,

literatura, cultura y territorio presentados como una configuración neutral en el siglo

XIX se están viendo constantemente desacoplados por transformaciones sociales así

como por prácticas culturales” (MIGNOLO, 2003a, p. 309), pois a base material

inerente a esses elementos são uma construção histórica e não da natureza, em constante

mudança. Para Mignolo a língua não deve ser considerada como fato, tomada como

fruto da natureza, mas dotada de uma corporeidade e de uma cultura tomadas dos

sujeitos que a falam, construída na história e vinculada a um espaço territorial

construído sob a égide do Estado (e sob o efeito deste). Conforme Mignolo (2003a, p.

292):

Una de las armas más eficaces para la construcción de

comunidades imaginadas homogéneas fue la creencia en una

lengua nacional, ligada a una literatura nacional y que

contribuía, en el campo de la lengua, a la cultura nacional.

Además, la complicidad entre lengua, literatura, cultura y nación

estaba relacionada también con el orden geopolítico y las

fronteras geográficas.

Deste modo, discutir a dicotomia entre língua e cultura existente em propostas

de práticas incluídas em livros didáticos, que vincula cultura a uma exterioridade fora

da língua abre espaço para a revisão de certas questões, como o silenciamento do

político, alçando-o e dando visibilidade às contradições inerentes de toda sociedade e,

ao mesmo tempo, legitimando histórias locais que se colocam como resistência a

15 Cabe dizer que me sirvo aqui de formulações elaboradas por Ferreira (2011).

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processos de homogeneização cultural e linguísticos levados a cabo pelo Estado na

administração imaginária dos sentidos vinculados a (à) cultura e à língua.

Tal administração se realiza sob um trabalho de sobredeterminação discursiva

ao deslocar da esfera do sujeito para a esfera do Estado o conceito que tomo de Pêcheux

(2009)16

e também da reflexão de Payer (1993), efeito de generalização, abstrato e

racional, construído empiricamente através de uma formação discursiva dominante e

sua relação com outras formações discursivas, a partir da força que se estabelece entre

elas. Ao analisar a fala de lideranças sindicais rurais sobre as relações de trabalho no

campo, Payer (1993, p. 45) detectou o que denominou como sobredeterminação.

Segundo a autora, nos enunciados desses sujeitos,

[s]eus sentidos outros, seus objetos de referência próprios, seu

saber e seu não-saber constitutivos, suas ambiguidades e

indeterminações, são assim tornados claros, precisos,

determinados, à luz de alguns olhares que o “aplainam”, que lhe

podam as arestas mais confusas, higienizando-o para (ao)

“compreende-lo”, ao “conhecê-lo”, enquanto um “caso

concreto”; um exemplo eficaz para tornar evidentes outros

campos de sentidos; uma referência para a ancoragem de outra

significação: a generalização assim realizada explica para ele o

que ele é, arrebatando-lhe as próprias referências gerais, seu

“território” de representações, e atribuindo-lhe o estatuto

anônimo (embora supostamente mais digno de reconhecimento

nas categorias discursivas) de um elemento a mais no domínio

de outras referências gerais, de outras formações de discursos

(PAYER, 1993, p. 45).

Ou seja, ao determinar certos dizeres referentes à sua prática o sujeito se

determina também, o que leva Payer a denominar esse processo como

sobredeterminação. Se em processos de determinação discursiva ocorre um trabalho

sob o efeito de unidade e de evidência, com “um referente exato, definido, individual”

(PAYER, 1993, p. 45), a sobredeterminação é um processo mais intenso, pois

“projetados frequentemente como determinados, são, nas relações interdiscursivas,

sobredeterminados por outros dizeres” (ibid., p. 54). Isso me leva a afirmar que há um

processo de sobredeterminação, por parte do Estado, dos sentidos vinculados a cultura

16 A data original desse trabalho de Pêcheux é 1975.

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e à língua, através de movimentos realizados por esta instituição ao definir sentidos e

estabelecer discursos relacionados à língua, cultura e nação e sobre si mesmo como

instituição. Tais movimentos estabelecem pilares sobre os quais a identidade nacional se

colocaria e legitima o Estado como entidade administradora de um espaço

imaginariamente regulado.

A série de considerações aqui feitas me permite passar para o segundo ponto de

articulação do eixo central que determinei anteriormente: a importância de discutir o

funcionamento discursivo do termo cultura em práticas de ensino/aprendizagem de

língua estrangeira como arquivo, este constituído a partir do núcleo duro de um pré-

construído.

De minha perspectiva, ao redor do funcionamento do efeito de pré-

construído que atravessa “a cultura” organizou-se um arquivo, no sentido em que

Foucault (2008) considera este termo. Conforme o autor:

Entre a língua que define o sistema de construção de frases

possíveis e o corpus que recolhe passivamente as palavras

pronunciadas, o arquivo define um nível particular: o de uma

prática que faz surgir uma multiplicidade de enunciados como

tantos acontecimentos regulares, como tantas coisas oferecidas

ao tratamento e à manipulação. (...) [E]ntre a tradição e o

esquecimento, ele faz aparecerem as regras de uma prática que

permite aos enunciados subsistirem e, ao mesmo tempo, se

modificarem regularmente. É o sistema geral da formação e da

transformação dos enunciados (FOUCAULT, 2008, p. 147-

148).

A partir deste termo, como algo que dá base à enunciabilidade de discursos

produzidos, penso no efeito de “organização” e, sobretudo, de “fechamento” que atribuo

ao “arquivo” (de materiais e de temas) que se organizou a partir do funcionamento do

pré-construído acima referido e na possibilidade de sua abertura e discussão. Abri-lo

implica, justamente, na possibilidade de ressignificá-lo, deslocando modos regulares e

estabilizados partícipes da construção de efeitos de evidência que relacionam cultura

com algo “específico”, isolado da língua.

A necessidade de revisar “a cultura” e de abrir um arquivo, tal como acabo de

discutir neste capítulo, se relaciona com o fato de que nas práticas de ensino centradas

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em diversos livros didáticos de espanhol17

, consideração que faço a partir de minha

experiência de professor e de pesquisador, opera um efeito de homogeneização da

língua, pois neles esta é vinculada a determinados traços de como funciona em certos

espaços territoriais. Nesse sentido, nesses livros são reproduzidos certos imaginários

sobre o que seria próprio da língua de cada espaço, sem que isso seja submetido à

pesquisa, ou seja, revisado à luz dos estudos da linguagem (da Pragmática, da

Sociolinguística, da Teoria da Enunciação, da Análise do Discurso, entre outras) e das

ciências sociais. Assim, neles não são considerados, por exemplo, aspectos relacionados

aos processos de formação dos Estados nacionais que possuem a língua espanhola como

oficial, que implicaram em políticas linguísticas e processos de gramatização

específicos (AUROUX, 1992) – mediante, inclusive, a elaboração de instrumentos

linguísticos – que instauraram determinadas contradições na construção da “unidade”

linguística da língua espanhola falada em cada um desses Estados. Por efeito de tudo

isso, essa língua, nas práticas de ensino/aprendizagem, de forma regular, é apresentada

de forma homogênea (através do apagamento da diversidade sob o prisma da

variedade18

) e funciona sob um efeito de evidência que não dá conta de sua

heterogeneidade constitutiva. Ao considerar este aspecto em sua relação com o

tratamento que aí se faz de “a cultura” (esta quase como um simulacro), é possível

deduzir que o processo de homogeneização funciona, ao menos em duas vertentes, e

opera sob o efeito de uma heterogeneidade aparente e rasa.

17 Considero que atualmente há uma sensibilização, por parte de alguns autores brasileiros de livros

didáticos, em deslocar esse efeito de homogeneização, sobretudo devido ao conhecimento acadêmico

produzido no Brasil sobre funcionamento da língua espanhola. Há de se considerar, também, o

surgimento do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) que, especificamente a partir de 2010, tem

mediado e até direcionado a produção editorial de livros didáticos de língua espanhola em nosso país.

Sobre o mercado editorial brasileiro de livros didáticos de espanhol, consultar SOKOLOWICZ (2014).

18 De forma regular, essa “variedade” é apresentada, mesmo que de maneira não explícita, como

pressupondo um núcleo central e duro ao redor do qual ocorreria a variação. De fato, por efeito de fortes

gestos de política linguística e de um processo de colonização, na língua espanhola, tal como mobilizada

em diversos instrumentos linguísticos, a “variedade” centro-peninsular da Espanha (ou melhor, uma

representação desta) funciona como esse núcleo ao que faço referência, dentro de um processo de

silenciamento de diversas formas da heterogeneidade dessa língua. Considero que o conceito de

heterogeneidade é mais produtivo e, de acordo com Serrani-Infante (1997a), implica duas instâncias: a da

diversidade – formas não semelhantes que se distinguem e se colocam em contraste – e a da alteridade,

na qual a análise dessas formas se realiza à luz da diferença dada pela história e pelo social.

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Após a série de considerações feitas até o momento, é importante destacar que a

problematização de diferentes sentidos de cultura e de sua abordagem, enquanto lugar

de discussão de representações (de povos, de identidades) em processos de ensino e de

aprendizagem de língua estrangeira, tem chamado a atenção de linguistas aplicados

brasileiros há algum tempo. Nesses trabalhos há uma abordagem de cultura como algo

determinado, não levantando uma problematização em torno desse termo, mas somente

considerações sobre a sua importância no ensino de línguas estrangeiras para

brasileiros19

. Entretanto, na contramão desses trabalhos, há outros desenvolvidos na

direção de deslocar reflexões pautadas apenas por aspectos gramaticais e

morfossintáticos das línguas estrangeiras para a consideração da importância de se

discutir as representações, os imaginários e aspectos dos processos de identificação que

permeiam toda aprendizagem de uma língua estrangeira e o papel que a língua materna

desempenha na aprendizagem daquela: cito, a modo de exemplo, os de PERUCHI

(2004), RUFINO (2003), MOITA LOPES (1996) e CORACINI (2003b), sobre o ensino

de línguas estrangeiras como o inglês e o francês, e os de CELADA (2002), SANTOS

(2005) e DE NARDI (2007), sobre o ensino de espanhol para brasileiros.

Neste ponto passo, a seguir, para o segundo item deste capítulo, em que

apresentarei, como contraponto a este modo genérico de abordar cultura, uma breve

reflexão sobre o caráter da literatura enquanto materialidade discursiva para discussão

de cultura em práticas de ensino de línguas.

1.2. A literatura como materialidade discursiva para discussão de

cultura

Neste ponto, passo a realizar reflexões para a escolha de textos da esfera literária

na formação do corpus mobilizado para a elaboração de lineamentos. Parto das

discussões20

de Mignolo (2003a) ao estabelecer a prática literária como reflexão. Nesse

movimento, ao contrapor a literatura não canônica às culturas acadêmicas, estas

últimas geralmente tomadas como espaço legitimado de pensamento reflexivo, o autor

19

Ademais, neles vinculam-se “à cultura” representações da realidade, estereótipos, clichês e questões de

identidade, o que considero como análises de funcionamentos discursivos, ou de efeitos de sentidos, que

se contabilizam na esfera do que é tomado como cultura. 20

Mantenho essa afirmação de Mignolo, provavelmente muito ligada a questões específicas no jogo de

forças do debate acadêmico desenvolvido nos Estados Unidos sobre a América Latina, em respeito a

coerência ideológica de seu pensamento.

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33

considera que temas que são comumente silenciados pelas culturas acadêmicas são

legitimados pela literatura não canônica. O que esse autor coloca, ao meu ver, é a

crítica em relação às práticas institucionais e tradicionais de algumas áreas da academia.

Com base nesta discordância apresento a reflexão de Tatián (2012) sobre a posição da

universidade em relação ao seu papel crítico frente ao Mercado – e, por conseguinte, a

outros lugares institucionais21

. Para esse autor (2012), uma universidade de cunho

democrático consegue manter “una importante dimensión conservacionista, capaz de

invocar contenidos antiguos en alianza con otros nuevos”, pois, afirma, “en la

encrucijada crítica de memoria e invención, radica quizá la mayor contribución

democrática de la universidad pública”.

Relativizada esta posição de Mignolo, considero, entretanto, que sua reflexão

sobre o trabalho de organização realizado pelas instituições22

acadêmicas, através de

reguladores de sentidos como “la estructura gramatical, la coherencia del discurso y la

lógica argumentativa” (MIGNOLO, 2003a, p. 297), gerou um efeito de sentido que se

materializou em regras que operam nas culturas acadêmicas até hoje e que produz uma

diferença imperial23

ao colocar em lados opostos a ciência e a literatura e também

produz uma diferença colonial, ao estabelecer o que é literatura canônica, difundida

pelas instituições e tomada como objeto de estudo na escola, e o que escapa a ela como

literatura não canônica.

21

Há de se considerar, entretanto, que a universidade, enquanto instituição, se apoia em lugares mais

“conservadores” na produção de saber ou, então, mais vinculados aos paradigmas de uma produtividade

concebida em termos de Mercado, como afirma Tatián. Porém, certos lugares acadêmicos mobilizam a

universidade para uma reflexão que contribui à democracia, oferecendo resistência a lugares estabilizados

de produção de saber e de sua utilização como produto.

22 Nesse sentido trago uma reflexão de Haroche (1992), que será trabalhada posteriormente, em relação ao

papel que a cultura acadêmica teve na conformação dos Estados nacionais para gerir as subjetividades.

Segundo a autora, “a língua, a sua gramática e a psicologia são o lugar [de] mecanismos individualizantes

que induzem a uma psicologia específica” dos sujeitos, em um trabalho realizado pelo Estado na

elaboração de “uma psicologia do indivíduo médio” (idem) que pautaria suas políticas de conformação

das subjetividades, em um processo de homogeneização cultural e política cuja gestão passava pela

ciência. E, nesse sentido Haroche afirma que “a universidade, com efeito, se dedica, de certa forma, ‘a

desassujeitar’ o sujeito da religião, para assujeitá-la então ao Estado” (1992, p. 218).

23 A diferença imperial e a diferença colonial são dois mecanismos gerados pela colonialização, nos quais

me deterei com mais atenção no capítulo 3. A diferença imperial, nos processos de colonização que

deram continuidade à colonialidade do poder nos países independentes, atuou em complementação com a

diferença colonial, já que a primeira serviria para diferenciar diferentes modos de organização social e a

segunda como índice de classificação e hierarquização de pessoas por índices como “sus lenguas, sus

religiones, sus nacionales, su color de piel, su grado de inteligência” (MIGNOLO, 2003a, p. 43).

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34

Conforme esta divisão, para Mignolo (ibid., p. 297-298) a ciência é padronizada

por práticas realizadas e impostas desde os grandes centros de produção do

conhecimento, relegando a literatura ao lugar de trabalho artístico e cultural – a

diferença imperial; na clivagem produzida pela diferença colonial, a literatura não

canônica, local, de saber popular, expõe as contradições sociais e históricas que

escapam à homogeneização, sendo que aquela classifica o que escapa desta – e o que

não é tratado pela literatura canônica – como folclore. Conforme o autor (ibid.), a

literatura canônica e a cultura acadêmica são processos a serviço de uma construção

imaginária de uma identidade nacional homogênea e apagada de contradições.

Nesse movimento de legitimação da literatura como prática reflexiva, Mignolo

(2003a) estabelece como marco de discussão o que ele denomina de pensamiento

fronterizo (doravante pensamento fronteiriço). Em relação a esta posição caberia dizer,

neste momento, pois pretendo desenvolver esta questão na presente tese, que o

pensamento fronteiriço é um conceito elaborado por este autor para conciliar, em

territorialidades que passaram por processos de colonização, a relação entre os

conhecimentos globais – estes atravessados pela diferença imperial e ocidental,

historicamente legitimados sob o imaginário da civilização ocidental e impossíveis de

serem silenciados, por já terem sido legitimados institucionalmente – e os

conhecimentos locais – estes historicamente silenciados e atravessados pela diferença

colonial, ademais de afetados pela diferença imperial.

A diferença imperial produz, entre os diferentes saberes, a legitimação de áreas

vinculadas ao mercado e à ciência, e a diferença colonial produz, a partir dessa divisão

estabelecida, outra diferenciação (por exemplo, a legitimação de uma literatura

canônica, vinculada aos saberes legitimados institucionalmente e produzida a partir de

saberes imperiais, em contraposição a uma literatura não canônica, considerada

“menor” porque escapa a essa padronização, realizada a partir de saberes locais).

Conforme Mignolo (2003a) pelo pensamento fronteiriço emergiria uma

consciência fronteiriça e mestiça, que trabalharia de igual modo esses discursos

atravessados. Esse trabalho não se faria, segundo Mignolo, se se for partir desde

lugares legitimados pelas instituições, como a literatura canônica e a cultura acadêmica,

pelas razões colocadas acima. Deste modo, para este autor, haveria a necessidade de se

criar

Page 35: Cultura enquanto objeto discursivo - considerações e ... · JORGE RODRIGUES DE SOUZA JÚNIOR Cultura enquanto objeto discursivo - considerações e lineamentos sobre seu papel em

35

(…) un marco en el que la práctica literaria no se conciba como

objeto de estudio (estético, lingüístico o sociológico), sino como

producción del conocimiento teórico; no como ‘representación’

de algo, sociedad o ideas, sino como reflexión específicamente

propia sobre los problemas humanos e históricos (MIGNOLO,

2003a, p. 297).

Se conforme o pensamento fronteiriço é necessário estabelecer um novo

paradigma de literatura, Mignolo (ibid.) também considera necessário que isso seja

realizado em relação à língua – o que vai ao encontro do paradigma teórico que aqui

adoto, o da AD materialista, conforme a relação entre língua e cultura. Na relação entre

literatura e língua esta última se consideraria não necessariamente em termos

gramaticais e normativos24

, mas em termos de uma política linguística que reivindicaria

e atenderia

(…) a las distintas formas en que las prácticas literarias se han

vinculado, en el sistema-mundo moderno/colonial, a la

colonialidad del poder en sus versiones colonial y nacional. La

lengua también implica la cuestión de la formación de cánones,

la forma en que se han entretejido los valores nacionales y

occidentales para producir mapas lingüísticos, geografías

históricas y panoramas culturales del sistema-mundo

moderno/colonial25

dentro de su lógica interna (conflictos

imperiales) así como en sus fronteras externas (conflictos con

“otras” culturas; la diferencia colonial) (MIGNOLO, 2003a, p.

297-298).

Como outra posição sobre a justificativa de trabalhar especificamente com os

gêneros da esfera literária, me apoio também na definição de Bakhtin (2003) sobre

gêneros primários e secundários. Esse autor considera, conforme disse anteriormente em

nota de rodapé, que “cada campo de utilização da língua elabora seus tipos

relativamente estáveis de enunciados, os quais se denominam gêneros do discurso”

(ibid., p. 261). Deste modo, “o caráter e as formas de uso da linguagem são tão

24 No campo dos estudos da linguagem a língua não se reduz a “termos gramaticais e normativos”, porém

deixo o sintagma conforme formulado por Mignolo, que se refere ao modo de tomar a língua em diversas

práticas, inclusive institucionais.

25 Essa relação de pares que Mignolo estabelece será discutida no capítulo 3 desta tese.

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36

multiformes quanto os campos da atividade humana” (ibid.) e a partir desse “uso” 26

Bakhtin classifica os gêneros discursivos, conforme sua natureza heterogênea, entre

gêneros discursivos primários (simples) e secundários (complexos). Estes últimos,

conforme o autor (idem, p. 263):

(...) surgem nas condições de um convívio cultural mais

complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado (...).

No processo de sua formação eles incorporam e reelaboram

diversos gêneros primários (simples), que se formaram nas

condições da comunicação discursiva imediata.

Conforme essa definição (ibid.), os gêneros literários seriam secundários por

retomar em sua formulação variados gêneros primários formulados em diversos

“campos da atividade humana”. Mesmo sendo de base ficcional, tais gêneros, ao

retomar os primários, “diretamente relacionados a contextos de enunciação” – como

diria o próprio Bakhtin27

– também retomam os elementos discursivos que compõem a

sua estabilização (da esfera do que determina um gênero discursivo) e, ao mesmo

tempo, mobilizam saberes e sentidos que remetem a uma dada configuração cultural e

histórica, os elementos constitutivos de toda materialidade discursiva, ou seja, suas

condições de produção.

Sob meu ponto de vista, outra consideração sobre gêneros discursivos da esfera

literária que reforça o recorte adotado nesta tese é algo que se relaciona com o caráter

do que se designa regularmente como originalidade e que eu abordo aqui como um

aspecto das condições de produção de tal gênero. Penso que há, no modo especifico

como a “função-autor” (cf. ORLANDI, 1996) atravessa um texto literário um

movimento “criativo” que interpreto como um gesto por parte do sujeito-autor: ao

elaborar um discurso dessa esfera, que se relaciona diretamente à reelaboração e

articulação de gêneros primários, considero que há uma tomada de posição28

de

26 Observo que, da perspectiva da AD, não se falaria em “uso” mas em “funcionamento”.

27

Segundo o autor (ibid.), os gêneros primários, ao fazer parte do acontecimento artístico, “perdem sua

relação imediata com a realidade e com os enunciados reais de outros”.

28 Sobre o conceito de tomada de posição, mobilizo a reflexão que Pêcheux (2009) realiza sobre o sujeito

do discurso. Diz Pêcheux (ibid., p. 198) que a interpelação do indivíduo em sujeito falante “por

formações discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são

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37

“autoria”. Parece-me que o gesto de interpretação dessa subjetividade e o singular

agenciamento da linguagem nesse trabalho artístico são determinantes na configuração

desse gênero, tornando visível determinados modos de representação, descontruindo

certos efeitos de evidência, por exemplo.

Ademais desse trabalho que considero como de elaboração simbólica, Bakhtin

(2003), ao discutir o que o autor realiza na construção de uma personagem de romance,

formula o conceito de excedente de visão29

, “sempre presente em face de qualquer outro

indivíduo (...), condicionado pela singularidade e pela insubstituibilidade do meu lugar

no mundo” (ibid., p. 21). Tal funcionamento coloca em movimento uma interpretação

de si mesmo e do outro, um trabalho em que o autor, a partir desse lugar, se mobilizaria

na elaboração de uma personagem. Conforme Bakhtin (ibid., p. 6), o autor:

(...) é a única energia ativa e formadora, dada não na consciência

psicologicamente agregativa mas em um produto cultural de

significação estável, e sua reação ativa é dada na estrutura – que

ela mesma condiciona – da visão ativa da personagem como um

todo, na estrutura da sua imagem, no ritmo de seu aparecimento,

na estrutura da entonação e na escolha dos elementos

semânticos.

De fato, considero que aspectos como os que acabo de mobilizar são

determinantes na materialização dos discursos na esfera literária, e são significativos na

compreensão de suas condições de produção: o movimento de interpretação que exigem

correspondentes (...) ‘se realiza pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina’”

(idem). A partir dessas considerações o autor propõe que essa interpelação supõe um desdobramento da

forma-sujeito, em que “um dos termos representa o (...) ‘sujeito da enunciação’”, responsabilizado pelo

que coloca, “‘que toma posição’ com total conhecimento de causa”; e o outro termo representa o “sujeito

universal, sujeito da ciência ou do que se pretende como tal” (ibid.). Tal desdobramento, segundo

Pêcheux (ibid., p. 199) pode assumir diferentes modalidades, sendo duas evidentes: a primeira se define

como uma “superposição entre o sujeito da enunciação e o sujeito universal”, que configura a “tomada de

posição do sujeito” por um assujeitamento em que “o interdiscurso determina a formação discursiva com

a qual o sujeito (...) se identifica”, com o sujeito sofrendo “cegamente essa determinação” (ibid.); a

segunda é uma separação (...) com o sujeito universal, o que faz com que a tomada de posição se realize

contra a evidência ideológica, esta afetada pela negação”, em uma contra-identificação do sujeito com a

formação discursiva determinada pelo interdiscurso (ibid.).

29 Citando Bakhtin (2003, p. 21): “Quando contemplo no todo um homem situado fora e diante de mim,

nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem. Porque em qualquer situação ou

proximidade que esse outro que contemplo possa estar em relação a mim, sempre verei e saberei algo que

ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver: (...) toda uma série de objetos e relações que, em

função dessa ou daquela relação de reciprocidade entre nós, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele”.

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se apresenta como algo produtivo quando se trabalha em práticas de

ensino/aprendizagem de língua estrangeira e se consideram saberes culturais e sociais.

Parece-me relevante, neste ponto, realizar uma observação: por mais que esta

tomada de posição de autoria funcione como efeito de unidade e de objetivação do

discurso, tal lugar apresenta contradições que remetem às condições de produção de um

discurso; no caso da esfera literária, o trabalho do autor é determinante, ao mobilizar

saberes e sentidos que remetem a uma dada configuração cultural e histórica – sempre

em determinadas condições de produção30

.

Ao pensar em um trabalho a partir de gêneros da esfera literária, em práticas de

ensino e de aprendizagem de língua estrangeira, também é fundamental levar em

consideração dois funcionamentos discursivos relacionados à autoria, o nome de autor

(FOUCAULT, 1992) e a função-autor (conforme ORLANDI, 1987).

O nome de autor é uma categorização que contribui não somente para o sentido

de evidência que caracteriza um determinado discurso como único, mas também o

remete a uma memória que o relaciona com os demais textos que compõem a obra desse

autor específico e ao nome deste31

. As relações de sentido que se estabelecem entre um

texto e seu autor produzem efeitos que “classificam” e “encaixam” o primeiro em uma

memória, sendo tal associação um elemento determinante na interpretação desse texto,

pois pode lhe conferir uma legitimidade (que configura a própria circulação da obra em

questão). Conforme FOUCAULT (1992, p. 12-13):

O nome do autor não é, pois, exatamente um nome próprio

como os outros. [...] Um nome de autor não é simplesmente um

elemento em um discurso (que pode ser sujeito ou

complemento, que pode ser substituído por um pronome etc.);

ele exerce um certo papel em relação ao discurso: assegura uma

função classificatória; tal nome permite reagrupar um certo

número de textos, delimitá-los, deles excluir alguns, opô-los a

outros.

30 E, cabe apontar, o trabalho com textos da esfera literária não vai barrar um trabalho que se faz presente

de modo muito específico com gêneros discursivos produzidos em uma língua estrangeira: o que implica

investir no trabalho com a memória discursiva, pois, como a materialidade linguística é determinante na

constituição e formulação dos discursos, a produção de sentidos aí reclama a necessária reposição de

determinados implícitos como diria Pêcheux, com base em formulações de Achard (1999).

31 Quanto mais reconhecido for o nome de autor, mais este será significativo na circulação e interpretação

de um determinado texto.

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A função-autor (ORLANDI, 1987) está diretamente relacionada à textualização,

aos efeitos que delimitam uma leitura e uma interpretação conforme a materialidade do

discurso – tal função deixa marcas que determinam sua interpretação, constituindo um

"efeito-leitor" –, sendo que tais efeitos conferem unidade ao discurso e o individualiza.

Pela função-autor, enunciados dispersos no discurso se reúnem em um texto por uma

ilusão de unidade, delimitando-o no espaço e no tempo como um discurso único,

remetido imaginariamente a um sujeito que se configura como o seu autor. A força

dessa função organizativa se faz pela configuração do autor como fonte do dizer, e

desse lugar de autor são realizadas cobranças em relação à clareza, coesão e coerência.

Historicamente, conforme cada gênero discursivo, há certos aspectos

estabilizados aos quais o sujeito, para ocupar um lugar de autoria, é obrigado a seguir.

As condições de produção desse discurso, já determinadas por uma memória que

configura a constituição, a formulação e a circulação do gênero, determinam o

funcionamento da função-autor do sujeito que se coloca em posição de autoria.

No prosseguimento de refletir sobre o funcionamento de cultura como pré-

construído, apresento a seguir um agenciamento de cultura a um contexto de produção

específico, o espaço de enunciação da língua espanhola, gesto de interpretação que

considero necessário para a abordagem do trabalho com cultura vinculada a uma língua

que se ensina – sendo esta, especificamente neste trabalho, a língua espanhola para

brasileiros.

1.3. Cultura no espaço de enunciação da língua espanhola

Considerando a discussão e revisão teórica que proponho nesta tese, visando

realizar o movimento de alçar cultura a objeto discursivo; e o fato de que esta tese

também tem por objetivo contribuir para a área de formação de professores de língua

estrangeira – e, em especial, de espanhol para brasileiros –, penso que é absolutamente

relevante levar em conta os percursos históricos de constituição dos Estados nacionais

nos quais hoje essa língua é oficial. E este aspecto entra em clara relação com a

necessidade de considerar a complexa série de exploração e de colonização pelos quais

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passaram os países que hoje compõem a região conhecida politicamente como América

Latina.

Com base nisso, interpreto esse território da América Latina como um espaço de

enunciação (GUIMARAES, 2002) habitado por sujeitos constituídos e divididos por

diversas línguas, que entram em específicas relações. Talvez um dos aspectos que

marcam tais relações é o fato de haver duas línguas “majoritárias” nacionais, o espanhol

e o português, protagonistas na discussão aqui realizada pois esta visa, sobretudo, os

processos de ensino/aprendizagem aos quais o aprendiz brasileiro de espanhol se

submete, sujeito esse que compreendo como sujeitos do discurso. Neste sentido,

começo, aqui, por mobilizar o que Orlandi (2008, p. 100) formula em relação ao

processo de constituição destes últimos. Esta autora considera um duplo movimento de

constituição da subjetividade. O primeiro movimento seria o processo de interpelação

do indivíduo em sujeito, realizado pela ideologia, em um processo simbólico. O

segundo movimento é o realizado pelo Estado, ao estabelecer diferentes formas de

individualização do sujeito, enquanto partícipe de uma coletividade, com direitos e

deveres. De minha perspectiva, considero que não se trata de dois, mas de um único

movimento no processo de constituição do sujeito do discurso. Assim, a interpelação

deste pela ideologia, que se dá na linearidade do intradiscurso (ou na sua

horizontalidade), é constitutiva das formas de individualização do sujeito por parte do

Estado, este já atravessado pelo funcionamento da ideologia.

Levando-se em consideração os sujeitos da língua como sujeitos do discurso,

será necessário mobilizar um conjunto de saberes32

que significam esse espaço e

determinam esses sujeitos, cuja cultura, em processos de ensino/aprendizagem de língua

espanhola por brasileiros, se trata de conhecer. O intuito é produzir uma aproximação da

América Latina como um espaço de enunciação, atravessado por diversos processos de

colonização realizados em diferentes épocas e por diferentes agentes imperiais que a

alojaram na periferia do processo de produção instaurado pelo capitalismo, este

determinante na produção e circulação de saberes atualmente.

Em relação a esse espaço de enunciação designado como América Latina, diz

Mignolo (2003a), que sua colonização, na passagem da Idade Média para a Idade

Moderna, foi o disparador da modernidade no mundo ocidental, do processo de

32 Sendo eles, como já antecipei, objeto de discussão do campo dos Estudos Culturais, da Sociologia e da

Antropologia Cultural; como o leitor sabe, a alguns deles fiz referência anteriormente.

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formação dos Estados nacionais e do estabelecimento das relações comerciais entre

estes, pois, de fato, a colonização pelos europeus de territórios em outros continentes

deu sustentação à formação desses Estados que se estabeleceram, sobretudo, devido às

trocas comerciais realizadas entre eles. Tais trocas, ainda segundo esse estudioso (ibid.),

seriam o embrião do capitalismo que depois conformaria formas de civilização ao redor

do mundo, atravessadas por fortes divisões que estabeleceram regiões privilegiadas de

criação e de consumo de produtos e de estilo de vida, e outras de exploração de recursos

naturais e de mão-de-obra para a sustentação dos meios de produção.

Nesta linha de argumentação, García Canclini (1997), também antropólogo

cultural, aborda especificamente o processo de formação dos países latino-americanos o

qual, segundo o autor, instaurou a contradição hoje manifestada pelo “hibridismo

cultural” que funciona nesses países, e cuja base é a modernização proporcionada pelo

capital, que mantem as divisões de classe e a hierarquia dos saberes culturais. Através

de processos que ainda reproduzem práticas e hábitos herdados da colonização, o autor

considera que

[...] (a)ssim como a fragmentação privatizada do espaço urbano

permite a uma minoria reduzir seu trato com as ‘massas’, a

organização segmentada e mercantil das comunicações

especializa os consumos e distancia os estratos sociais. Na

medida em que diminui o papel do poder público como garantia

da democratização informativa, da socialização de bens

científicos e artísticos de interesse coletivo, esses bens deixam

de ser acessíveis para a maioria (ibid., pág. 372).

A partir das colocações de García Canclini (1997) e de Mignolo (2003 a, b)

considero que a formação social e histórica das nações latino-americanas está

atravessada não somente por práticas culturais e sociais herdadas do colonialismo, mas

também pela contradição que implica que estas práticas foram forjadas a partir dos

países colonizadores, realizadas de modo diferente daquelas presentes nos países

colonizados, consideração que abordarei nos capítulos seguintes. Ademais, sendo a

colonização o processo que deu condições ao surgimento de práticas comerciais que

antecederiam o modo de produção capitalista de hoje em dia, é impossível

desconsiderar a importância do capitalismo na conformação de práticas sociais e

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históricas que ressoam em práticas culturais nos países colonizados – a colonialidade do

poder33

.

A divisão apontada por García Canclini (1997) – isto é, o “hibridismo cultural”

que mantém as divisões de classe e a hierarquia dos saberes culturais, conforme citação

anterior – nas atuais formações sociais dos países latino-americanos é também

acentuada nas representações dessas sociedades nos livros didáticos de E/LE. Por isso,

essa questão é primordial para a análise da circulação de temas e saberes circunscritos a

uma territorialidade dominante – no caso a Espanha – em detrimento de um

subcontinente inteiro – a América conhecida, dentro do espaço mais amplo da América

Latina, como hispânica ou de fala espanhola34

. Nesse sentido, essas representações são

atravessadas por modos de significar uma “sociedade espanhola” como mais

homogênea, vinculada a uma civilização ocidental e a padrões de consumo tomados de

forma desistoricizada, quando comparada ao referido subcontinente, e que funciona

como padrão em relação a este.

Cabe aqui introduzir um parêntese para discutir a política linguística

centralizadora sobre o espanhol realizada atualmente desde a Espanha. Fanjul (2011)

considera que o Estado espanhol, conjuntamente com setores econômicos desse país,

passam a realizar um papel de tutelar as diferentes variedades de prestígio da língua

espanhola, prática iniciada por um processo de internacionalização do país, ao final dos

anos 70. Tal tutela coincidiu com a recuperação econômica que alçou a Espanha como

um país desenvolvido e que a inseriu na globalização. Conforme o autor, esse processo

de tutelar as diferentes variedades do espanhol, levado a cabo principalmente por

considerar a língua “como um ‘ativo econômico’ internacional” (ibid., p. 318), foi antes

impossibilitado pela dificuldade de impor-se a variedade de prestígio espanhola como a

variedade de todo um subcontinente (a América Latina de fala espanhola), pois até os

anos 70 nenhum país hispano-falante se sobressaía política e economicamente sobre os

demais. Nesse processo de reafirmação de uma posição, marcada por uma tentativa

“administradora” da língua espanhola, Fanjul discute que seria “inexato identificá-lo

com a Espanha como Estado nacional” pois, apesar que tal política “conta com o apoio

33 Esse conceito será trabalhado no capítulo 3 desta tese.

34 Algo que já foi observado, de modo muito incipiente, neste capítulo.

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político e orçamentário do Estado espanhol”, “ela é protagonizada e sustentada

fundamentalmente por um conjunto de empresas [espanholas] de capital transnacional”

(ibid.). Cabe discutir pelo viés econômico, inerente ao processo capitalista e a esse

processo de centralização realizado desde a Espanha por diversos atores, o fato de que a

língua e os seus instrumentos linguísticos se converteram em “produtos de mercado”.

O processo de homogeneização de identidades e de saberes diversos realizado

sob a representação da latinidade35

, esta última pautada, sobretudo, pelas noções de

hispanidade e/ou de hispanofonia – posições das quais eu me afasto por considerá-las

agentes de estereotipia em tal processo –, possui como produto o apagamento das

diversas línguas e culturas presentes no continente, que escapam a tal homogeneização

(ibid). Mignolo (2003a), ao partir do imaginário de hemisfério ocidental, estruturado em

relações de poder mediadas pela colonialidade do poder, mobiliza um conceito que se

contrapõe a esse imaginário, para descrever as contradições sociais e políticas que

fragilizam esse processo de homogeneização. Em direção a uma mudança que o autor

acredita ser radical no imaginário e na compreensão e discussão das estruturas de poder

do mundo moderno/colonial, a partir de considerações de Quijano e Wallerstein (1992),

introduz o conceito de colonialidade.

Mignolo (2003b, p. 63) considera que tal conceito, à diferença de “colonialismo”

(este vinculado à formação do capitalismo), é resultado “de la construcción de mundo

moderno en el ejercicio de la colonialidad del poder”, processo que – como produto

direto da modernidade, como bem demonstra o próprio autor (ibid.), é consequência da

história colonial europeia na América – produziu homogeneizações, clivagens,

apagamento e deslocamento de saberes. Desta forma, segundo o autor (ibid., p. 63):

El imaginario del mundo moderno/colonial surgió de la

compleja articulación de fuerzas, de voces oídas o apagadas, de

memorias compactas o fracturadas, de historias contadas desde

un solo lado que suprimieron otras memorias y de historias que

se contaron y cuentan desde la doble conciencia que genera la

diferencia colonial.

35 Segundo Mignolo (2007, p. 100), “[q]uien contribuyó a imponer la idea de ‘latinidad’ en la América

hispana fue un intelectual francés poco conocido, Michel Chevalier”. Mignolo também observa que “[l]as

dos ramas, la latina y la germánica, se han producido en el Nuevo Mundo. Al igual que la Europa

meridional, América del Sur es latina y católica; América del Norte, en cambio, tiene una población

protestante y anglosajona”.

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Considerando o processo de colonização empreendido desde a Europa na

América, García Canclini (1997, p. 23) pontua que este gerou contradições hoje

determinantes nas sociedades dos atuais países americanos de língua espanhola,

passíveis de serem entendidas pelos termos “modernidade, modernização e

modernismo” 36

. A revisão da noção de cultura deve levar em consideração que esta é

um processo, com base em tudo o que aqui tenho desenvolvido, atravessado fortemente

por questões econômicas que configuram essa colonialidade do saber de que fala

Mignolo (2003a) com o estabelecimento de lugares que ocupam o centro de produção e

de irradiação cultural, feitos e sustentados pelo econômico e ocupado por países

desenvolvidos, e o de lugares destinados a somente consumir o que é produzido nesse

centro, em um batimento constante entre o que é o local e o global.

A partir desta definição considero que o conceito de colonialidade do saber

mobilizado por Mignolo (2003a) é atuante na formação de saberes culturais, levada a

cabo principalmente pela indústria cultural, processo que gera hierarquicamente

materialidades culturais que circulam de forma heterogênea, associadas a determinadas

formas de vida e modos de consumo, que se converteram em produtos lucrativos. Tal

processo decorre da ressignificação pela qual passaram os modos de produção de

mercadoria na segunda metade do século XX, conforme a interpretação de Benko

(1999) que apresento a seguir, ao apresentar reflexões iniciais sobre o vínculo de cultura

com processos sociais e econômicos vinculados à globalização.

1.4. Cultura e sua relação com atuais processos de globalização

Considero fundamental recorrer à análise que Benko37

(ibid.) realiza sobre a

mudança dos modos de produção capitalista ocorrida no século XX, como disse acima,

para compreender o modo como hoje circulam determinados saberes culturais tomados

como “produtos”, produzidos desde uma indústria de massa, a partir de territorialidades

que ocupam atualmente posições dominadoras na produção de mercadorias.

36 Tratarei desta questão no capítulo 3 desta tese.

37 Georges Benko é geógrafo francês e discute conceitos como os de mundialização e de metropolização

mundial, que designam processos decorrentes da atual polarização da economia em torno das grandes

cidades mundiais.

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Benko (1999), que se deteve na análise de processos de constituição e de

expansão do capitalismo moderno, discute a reestruturação pela qual a produção de

capital passou a partir dos anos 60, quando o fordismo, enquanto técnica de produção de

riqueza a partir da exploração do trabalho, dava mostras de declínio e não conseguia

gerar lucros rentáveis que cobrissem suficientemente os gastos de produção. O modelo,

– continua o autor (ibid.) – durante 30 anos após a crise de 1929, promoveu um grande

acúmulo de capital e permitiu o crescimento econômico e o poderio militar dos Estados

Unidos e dos países para cuja reconstrução este estado ajudou pós-Segunda Guerra

Mundial. Nos anos 60, em um período de estagnação, esse modelo passou a criar

obstáculos à acumulação capitalista, pois ele perdia força conforme as novas

configurações sociais e políticas ocorridas com a descolonização e a formação de novos

países no continente africano e asiático, devido à sua rigidez baseada, sobretudo, na

exploração econômica dos recursos naturais das colônias europeias na Ásia e África.

Ainda segundo Benko (ibid.), entrava em funcionamento um paradoxo: como

promover uma mudança que permitisse o crescimento do capital, mas sem permitir sua

divisão e desvalorização, ou seja, um novo modelo que desse vazão a esse crescimento

e, ao mesmo tempo, mantivesse a divisão social do trabalho e de acumulação do

capital.

Nesta linha de argumentação, Castells (1999) analisa, também a partir do campo

da Sociologia, a importância da mercantilização de saberes no estabelecimento de novas

formas de consumo, processo decorrente do panorama apontado por Benko (ibid.) na

geração de novas necessidades econômicas. Ao apresentar e abordar o conceito de

capitalismo informacional, de sua autoria, Castells (1999.) apresenta a tecnologia da

informação como o paradigma atual das contradições do capitalismo, o seu novo rosto a

partir do final do século XX.

Conforme o autor (ibid.), as velhas relações sistêmicas mantêm-se nesta nova

configuração, em que a informação e as novas tecnologias são o novo produto

mercantilizado. Como ele mesmo afirma (ibid., p. 100), “(e)xistem relações sistêmicas

entre capitalismo informacional, reestruturação do capitalismo, tendências presentes nas

relações de produção e novas tendências de distribuição” que reafirmam as diferenças

entre os países nos modos em que ocorrem as divisões sociais e a desigualdade.

A partir dessas relações – continua o autor (id.) – instala-se uma separação entre

aqueles que detêm a posse da tecnologia e do capital e os que não os possuem, cabendo

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a estes não o desenvolvimento de novas mercadorias, saberes e produtos da indústria de

massa – essenciais para a configuração e a dinâmica do que atualmente se configura

como uma sociedade “em rede” e globalizada – mas somente o seu consumo. Nessa

configuração, saberes são valorizados e outros silenciados, mercantilizados e

disseminados em um intento de padronização e de homogeneização de hábitos

realizados através de uma construção que apaga as contradições inerentes aos processos

históricos.

Nesta linha de argumentação Ianni (1999), também sociólogo, discute o

processo decorrente desta nova configuração: a globalização. Por ela, segundo o autor,

o capitalismo submeteu as forças consumidoras e produtivas de nosso planeta,

colocando-as ao mesmo tempo como parte e fora dos sistemas de decisões, dando a

falsa ilusão de todos serem partícipes de tal processo. Em sua leitura deste fenômeno,

Ianni (ibid.) considera que há uma homogeneização, apenas aparente, que está imersa

em um contexto de extrema desigualdade, de contradições e de diversidades de sujeitos

e de posturas.

Conforme Ianni (ibid.), há uma desterritorialização das forças produtivas e dos

saberes que se rearrajam em qualquer lugar, através do processo de globalização. As

cidades globais, grandes aglomerados urbanos e símbolo da nova socialização e

ocupação da terra em nosso planeta, atuam como agentes do processo de

desterritorialização das forças produtivas e da geração de saberes. Entretanto, observa

Ianni (ibid.), as corporações determinam os processos de decisão dos mercados e estão

acima dos estados e nações, dos grupos e das coletividades. Assim, acrescenta (ibid.),

determinam e geram buscas de forças de trabalho, que estão aquém das condições

sociais de configuração e de organização social e política dos Estados. Essas

corporações geram novos saberes e práticas culturais, disseminados enquanto produtos,

determinantes na homogeneização de saberes e na produção de práticas culturais

voltadas à massa.

Esta série de questões implicará um impacto sobre a identidade dos sujeitos aí

envolvidos, conforme será possível ver no próximo item, o último deste capítulo, ao

discutir,de forma inicial, o vínculo de cultura com identidade.

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1.5. Cultura e a identidade em práticas culturais

Autores como Hall (2001), da antropologia cultural, sensíveis à configuração

estabelecida atualmente pelo processo de globalização acima referido, consideram a

identidade um conceito pouco desenvolvido nas Ciências Sociais, mas em mobilização

devido a uma mudança estrutural que está transformando as sociedades modernas

atualmente. O que Hall (ibid.) define como paisagens culturais de classe, gênero,

sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que no passado eram localizações sólidas de

indivíduos sociais, hoje estão em transformação, o que afeta e muda as identidades

pessoais e a ideia de que todos somos sujeitos integrados. Há a perda de um “sentido de

si” estável, definida por Hall (ibid.) como um deslocamento ou descentramento do

sujeito, o que gera a este último uma crise de identidade: essa perda é provocada por um

duplo deslocamento realizado tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si

mesmo.

Em relação aos processos econômicos e políticos que a globalização instaura na

conformação política e social atual, Hall (ibid., p. 75) discute como tais processos

conformam hábitos e identidades acima das representações de cultura e de identidade

nacionais:

Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global

de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas

imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente

interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas –

desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições

específicos e parecem ‘flutuar livremente’. Somos confrontados

por uma gama de diferentes identidades (cada qual nos fazendo

apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós),

dentre as quais parece possível fazer uma escolha. Foi a difusão

do consumismo, seja como realidade, seja como sonho, que

contribuiu para esse efeito de ‘supermercado cultural’. No

interior do discurso do consumismo global, as diferenças e as

distinções culturais, que até então definiam a identidade, ficam

reduzidas a uma espécie de língua franca internacional ou de

moeda global, em termos das quais todas as tradições

específicas e todas as diferentes identidades podem ser

traduzidas. Este fenômeno é conhecido como homogeneização

cultural.

Entretanto, segundo Eagleton (2011) tal processo é contraditório: ao mesmo

tempo em que há uma homogeneização cultural de hábitos e de identidades, a

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globalização, enquanto processo capitalista, promove uma diversidade de articulações

que valorizam o local frente ao global, aquele enquanto possuidor de valor diferenciado

e, por isso, de maior valor em relação ao global (ibid., p.116-7). Além disso, conforme

esse autor (ibid., p. 97), também promove uma ocidentalização de hábitos, que

interpelam sujeitos de realidades diferentes ao dos grandes centros para processos

imigratórios, em busca de um estilo e de um consumo idealizado; e um acirramento do

fortalecimento das identidades locais, que geram processos xenófobos, nacionalistas e

fundamentalistas, ao estabelecer critérios construídos sócio-historicamente como

classificação de identidades e de sujeitos.

De fato, considero importante que, no que se refere ao funcionamento da noção

de cultura, aspectos que se vinculam diretamente à questão da heterogeneidade de uma

sociedade sejam discutidos levando em conta a diversidade em relação a identidades

sociais, sexuais e profissionais, estas consideradas – conforme Hall (2001, p. 8) – como

identidades modernas “‘descentradas’, (...), deslocadas ou fragmentadas”. Em relação

ao campo do ensino de línguas estrangeiras, há de se observar a problemática de abordar

temas culturais a partir de uma territorialidade ou de um padrão, conforme expus

anteriormente sobre o papel de referência ocupado pela Espanha nos livros didáticos de

E/LE (que se vincula à própria homogeneização que produz o processo de

globalização)38

, pois, como observa Bhabha (2007, p. 24), “[o]s próprios conceitos de

culturas nacionais homogêneas, a transmissão consensual ou contígua de tradições

históricas, ou comunidades étnicas ‘orgânicas’ (...) estão em profundo processo de

redefinição”.

Rever como esses estudos (enlaçados nas três “séries de saberes” que acabei de

apresentar segmentalmente) abordam o papel do Estado e dos processos econômicos

mediados pela globalização enquanto reguladores de sentidos, ao conformar noções de

identidades e de culturas, é um ponto de análise a ser realizado nesta tese. Após as

considerações apresentadas neste capítulo, passo, então, ao segundo.

38 Como observa Revuz (1998), opera uma “uniformização relativa de modo de vida e de produção em

escala internacional”.

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Capítulo 2:

Cultura – reflexões sobre seus diferentes sentidos

A noção de cultura, tão recorrente nas práticas de ensino e de aprendizagem de

línguas, apresenta, como já antecipei, um funcionamento tomado por uma “alta

determinação discursiva” (PAYER 1993; INDURSKY, 2013) – em contraposição com

o sintagma, quase despojado de determinação linguística, “a cultura” – pois, na verdade,

entra em relação com sentidos de “evidência” e de “completude”, que raramente são

postos em discussão. Nesse sentido, cabe observar que, dentre as diferentes disciplinas

que na área de humanas a consideram como objeto de estudo, a de Estudos Culturais,

em especial, realiza uma forte discussão sobre os diferentes sentidos aos quais foi se

associando ao longo da história.

Como já observei no capítulo 1, a problematização de cultura e de sua

abordagem, enquanto lugar de discussão vinculado a representações de identidades e de

universos de práticas culturais a elas relacionadas em processos de ensino/aprendizagem

de língua estrangeira, tem chamado a atenção de diversos pesquisadores, sobretudo nos

estudos vinculados aos referidos processos. Em alguns destes, há uma abordagem sobre

cultura que não levanta uma problematização em torno do termo. Especificamente,

nesse campo de estudos e, portanto, no da produção de livros didáticos e outros

instrumentos linguísticos e no das próprias práticas de ensino de línguas estrangeiras,

essa noção parece funcionar como um obstáculo epistemológico (BACHELARD (1996)

apud CELADA, 2002)39

um lugar comum que se situou nesses campos de saber,

produzindo um impedimento para avançar na reflexão, ao barrar certos sentidos e só

propiciar a reprodução daqueles fortemente cristalizados, como um efeito de pré-

construído (HENRY, 1990). Desta forma, nesses campos são recorrentes certos

enunciados, tais como: “é importante aprender a cultura ao estudar uma língua

estrangeira”; “para os alunos a cultura é um motivo a mais para aprender uma língua

estrangeira”; ou “a cultura é uma forma de conhecer a língua viva” (grifos meus). Esse

39

BACHELARD, G. (1996). O novo espírito científico. (Trad. por António José Pinto Ribeiro). Lisboa:

Edições 70. (Original em francês: Le nouvel esprit scientifique. Presses Universitaires de France, 1934.

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funcionamento me levou a afirmar que o artigo “a”, presente no sintagma “a cultura”, já

abordado no capítulo 1, parece dar sustento ao funcionamento do mesmo como um pré-

construído, tramado em sua objetividade e evidência, como fazendo parte da “realidade”

– isto é, de um sistema de sentidos experimentados e aceitos, como diria Pêcheux

(2009). A partir do funcionamento dessa determinação discursiva (em contraposição a

uma baixa determinação linguística: apenas um artigo ao lado do nome), sob o efeito

desse pré-construído, o termo cultura, nesses estudos, apresenta-se desistoricizado.

De fato, é uma preocupação, neste trabalho, problematizar cultura distanciando-

me de tomá-la como algo determinado em sua indeterminação (“a cultura”), numa

relação de transparência que o faz funcionar como uma evidência – fato este que

contribui para fechar sua interpretação, ademais de realizar o apagamento de sua

história. Ao contrário, mobilizarei as diferentes ressignificações de cultura enquanto

termo ou sintagma que faz referência a um “objeto do mundo” (enquanto objeto no

funcionamento de uma formação social40

), recuperando suas filiações com a memória

discursiva (cujo funcionamento está submetido a paráfrases e deslocamentos) a partir de

saberes elaborados, fundamentalmente, no campo dos Estudos Culturais, no qual ele é

tomado como “conceito” ou “noção”.

Segmento este capítulo em três itens, que correspondem aos deslocamentos de

sentidos que afetaram o termo cultura ao longo da história, a partir do trabalho de

interpretação realizado no já referido campo de estudos, principalmente a partir da

reflexão desenvolvida por Eagleton (2011), enlaçando-a com pressupostos e trabalhos

teóricos realizados pela Análise do Discurso materialista. Neste gesto, ao relacionar

cultura com as diversas séries de sentidos (cf. ACHARD, 1999) às quais foi se

vinculando na história, tornar-se-á visível a historicidade que funciona no interior desse

significante. Neste gesto de interpretação é inerente considerar que esses sentidos ao

longo da história, como todo discurso, são contraditórios, ou seja, não devem ser

tomados como dados e evidentes; são tomados como movimentos que, expostos às

relações de força na história, apresentam em determinado momento sentidos que

prevalecem como mais evidentes e hegemônicos que outros – o que também é possível

de ser remetido ao efeito de universalização projetado a partir de uma formação

discursiva. Nesta consideração me aproximo à reflexão de Eagleton de que “todas as

40 Esclareço que sempre que mobilizar o sintagma “o termo cultura” o estarei significando neste sentido.

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culturas são autocontraditórias” (ibid., p. 39), o que remeto à questão de que cada

movimento desse termo na história possui em si mesmo “as forças” que promovem seu

deslocamento e sua interlocução com os demais sentidos de cultura.

No primeiro item dessa segmentação abordarei dois deslizamentos de sentido do

termo cultura. O primeiro deles decorre da palavra em latim colere, da qual surge o

substantivo cultura, com sentidos que remetem à modificação ou manipulação da

natureza. Essa interpretação seria o primeiro movimento na história do termo: este

denominaria os traços inerentes de um trabalho, de uma atividade humana, em

contraposição ao “estado natural das coisas”. A partir daí, o termo se ressignificou numa

clara relação com acontecimentos da história e, assim, cultura passou a vincular-se aos

sentidos de civilização. Esse movimento foi realizado sob um forte trabalho do Estado e

gerou um pré-construído, fortemente cristalizado, que associou sujeito, língua e cultura

como índices de identificação da nacionalidade de um Estado.

No segundo item, embora ainda mobilize reflexões formuladas no campo dos

Estudos Culturais – fundamentalmente mediante autores como Eagleton (2011) e

Bauman (2012) –, discutirei pelo viés da Análise do Discurso materialista esse trabalho

de interpelação produzido pelo Estado que interpreto que – dentro do processo de

ressignificação do termo cultura – implicou um dos mais fortes efeitos de estabilização

lógica de sentidos associados a esse significante. De fato, na associação de cultura com

civilização, promoveu-se um “enrijecimento” de sua série de significações, através da

regulação de aparatos como a língua e o arquivo jurídico, aspecto que provavelmente se

relacione com o papel fundamental que a cultura, como será possível ver, teve na

formação dos Estados nacionais na Europa.

No terceiro item, abordarei dois deslocamentos no sentido do termo ou da noção

de cultura que oponho, a partir de uma interpretação, à primeira série apresentada.

Ambos, tomando como base Eagleton (2011) e Bauman (2012), se caracterizariam por

uma forte capacidade de descristalização de sentidos instaurados pelo funcionamento do

Estado e da homogeneização realizada por este através do processo que teria levado a

que cultura equivalha a civilização. De acordo com o primeiro deslocamento, cultura

passa a significar como modo de vida característico estabelecendo a dissociação da

sinonímia entre cultura e civilização, principalmente pelo fato de que este último termo

adquiriu uma conotação relacionada ao modo de vida burguês europeu e fortemente

associada ao imperialismo empreendido pelas nações europeias na África e Ásia. Desse

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modo, conforme Eagleton (2011), para esse movimento foi fundamental a crítica

realizada pelos liberais a este modelo econômico dos Estados nacionais na Europa,

baseado na exploração e submissão de povos que possuíam modos de vida distintos aos

dos europeus; o conhecimento dessas formas, proporcionado pelo acirramento dos

processos de colonização, passou a ser considerado como cerne desse deslocamento dos

sentidos do termo cultura. O último movimento que abordarei, o segundo deslocamento

da série abordada neste item 3, se relaciona com o processo pelo qual cultura passa a

significar prática artística. Este, em contraposição aos anteriores, se vincula à

mobilização e à estabilização dos sentidos das três ressignificações anteriores, aqui

apresentada: realiza uma descristalização de cultura e sua relação com o Estado de

forma mais contida, pois estaria composto por uma retomada de algumas questões

vinculadas a civilização, de modo mais atemporal, não tão situado na história. Tal

retomada, pois, reforça um lugar de estabilização ao vincular-se às atividades tomadas

como criativas e imaginativas na esfera do sujeito – com valores associados ao consumo

e ao mercado, vinculados aos bens de produção, sendo impulsionados por uma indústria

cultural de massa. Entretanto, também é partícipe de cultura como prática artística um

movimento de mobilização vinculado à História e às atividades de vanguarda, artísticas

e intelectuais, através das artes e da academia, o que gera uma descristalização da

relação de cultura com sentidos fortemente estabilizados com posições hegemônicas,

sejam elas realizadas pelo Estado ou por setores econômicos.

Descritas, de forma inicial, as ressignificações pelas quais passou o termo

cultura na história, passarei a discutir cada uma das duas séries aqui apresentadas.

Vamos, então, para a primeira delas.

2.1. Os primeiros movimentos de cultura na história

Mais de um autor, no campo dos Estudos Culturais, ao problematizar questões

referentes à noção de cultura, retoma sua etimologia41

para compreender sua

complexidade. A palavra em latim colere, da qual surgiu cultura, retoma sentidos

41 A partir da AD esse gesto poderia ser interpretado como uma tentativa de colocar o conceito com uma

memória, de tentar compreender como uma exterioridade vai se materializando na relação

significante/sentido.

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relacionados à “lavoura”, a “cultivo agrícola”, a “colono” e à “colônia” (CEVASCO,

2008; EAGLETON, 2011), tanto em práticas relacionadas ao plantio quanto à criação

de animais. Segundo Eagleton (2011, p.11-12), um olhar sobre essa etimologia

possibilita ver o sentido de um trabalho de “modificação da natureza” e enxergar uma

oposição que atravessaria o funcionamento do próprio termo: natureza – homem42

.

O percurso de um termo que designava tipos de técnicas materiais (PÊCHEUX,

2008, p. 30) rudimentares para um termo que as ressignificava, de caráter mais

“sofisticado” e “abstrato”, deu-se durante séculos, na transição pela qual passou a

Europa da Idade Moderna à Idade Contemporânea. Eagleton (2011) chama a atenção

para essa mudança semântica, pois, se em seu inicio o conceito remetia às práticas

realizadas por sujeitos em sua relação com os trabalhos rurais, já na virada semântica

produzida nessa transformação passa a remeter àquelas próprias de sujeitos urbanos. A

forma derivada cultus, que remete a “culto”, também produziu sentidos que relacionam

“cultura” ao religioso: na Idade Moderna, conforme o mesmo autor, a ideia de cultura

“coloca-se no lugar de um sentido desvanecente de divindade e transcendência”

(EAGLETON, ibid., p. 10); assim, “herda o manto imponente da autoridade religiosa”

(idem, p. 11).

À semelhança de Eagleton (ibid.), Bauman (2012, p. 16), retoma na transição do

Moderno ao Contemporâneo o processo que instaurou a “dúvida corrosiva quanto à

fidedignidade das garantias divinas da condição humana” (ibid.) na consolidação da

emancipação do homem em sua liberdade; segundo ele, cultura foi fundamental em

estabelecer tal emancipação além da justa medida de tal liberdade. Afinal, nessa virada

em que o homem torna-se centro das atenções, no surgimento do antropocentrismo em

contraposição ao teocentrismo, “a apoteose da liberdade humana era uma regra

complementada pela preocupação com os limites que precisavam ser impostos às ações

dos protagonistas” (BAUMAN, 2012, p. 16). A cultura, nessa transição do Medieval ao

Moderno, permitia e restringia a liberdade dos sujeitos, características que, segundo esse

autor (ibid.), sempre estiveram presentes na “ideia de cultura”:

42 Esta oposição passou por várias tensões ao longo da história, entretanto, nenhuma delas foi capaz de

apagar a vinculação com natureza. Apesar de prevalecer o sentido de cultura enquanto trabalho de

modificação da natureza, por conectar-se com aquilo que é específico do homem, elemento que

diferenciaria este em relação ao mundo natural, em ressignificações posteriores cultura se associa ao que

era oposto ao artificial e ao civilizado, conforme discutirei neste capítulo.

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O caráter de dois gumes – simultaneamente “permitindo” e

“restringindo” – da cultura, sobre o qual muito se tem escrito

nos últimos anos, na verdade estava presente desde o começo.

Num modelo ‘universalmente humano’ de cultura, duas

características muito diferentes do homem se fundiram numa

condição conjunta; assim, desde o início, houve um paradoxo

endêmico a essa noção (BAUMAN, 2012, p. 16).

Neste processo de afastamento de cultura relacionado à natureza e à concepção

de que esta deve ser transformada pelo homem – processo que marcará a passagem do

teocentrismo ao antropocentrismo, do rural ao urbano, do natural ao social e econômico

– Eagleton (2011) discute o funcionamento de uma dualidade constitutiva da noção de

cultura que, da minha perspectiva, entendo como uma contradição que resulta de uma

dupla filiação de memória. Assim, a noção estaria determinada por sentidos que

remetiam ao que o termo significava anteriormente e por sentidos surgidos pelo

acontecimento da transição do Moderno ao Contemporâneo. Sob o meu ponto de vista,

esta dupla filiação é determinante na circulação da noção de cultura no processo que

estabelece o antropocentrismo – ao codificar, como observa o próprio autor (ibid., p.

11), questões filosóficas “fundamentais” que marcarão o seu entendimento – e também

na função que exercerá sobre as práticas sociais na instituição em que se configura o

Estado moderno. Nesse sentido, observa:

Neste único termo [cultura], entram indistintamente em foco

questões de liberdade e determinismo, o fazer e o sofrer,

mudança e identidade, o dado e o criado. Se cultura significa

cultivo, um cuidar, que é ativo, daquilo que cresce naturalmente,

o termo sugere uma dialética entre o artificial e o natural, entre o

que fazemos ao mundo e o que o mundo nos faz. É uma noção

‘realista’, no sentido epistemológico, já que implica a existência

de uma natureza ou matéria-prima além de nós; mas tem

também uma dimensão ‘construtivista’, já que essa matéria-

prima precisa ser elaborada numa forma humanamente

significativa. Assim, trata-se menos de uma questão de

desconstruir a oposição entre cultura e natureza do que de

reconhecer que o termo ‘cultura’ já é uma tal desconstrução

(ibid., p. 11).

A partir de tal desconstrução, observa Cevasco (2008), transições políticas e

sociais determinaram o estatuto de distintas concepções de cultura, abarcadoras de

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diferentes interpretações, portadoras das transformações sociais e políticas ocorridas ao

longo da história, deslizamentos de sentido que considero fundamentais na constituição

de uma memória discursiva sobre esse termo nos dias de hoje. Dentre estes, o mais forte

parece consistir na mobilização de cultura como substantivo abstrato e o

estabelecimento de uma relação sinonímica com civilização, ao passar a designar “um

processo geral de progresso intelectual e espiritual tanto na esfera pessoal como na

social – o processo secular de desenvolvimento humano, como cultura e civilização

europeia” (ibid., p. 09-10). Ao descrever tal sinonímia, a autora (ibid.) expõe que ambos

os termos são ao mesmo tempo descritivos e normativos, ou seja, nominam e qualificam

distintos processos43

.

Na associação de cultura com civilização, cabe retomar o que consideram

Eagleton (2011) e Bauman (2012) sobre o papel desempenhado pelo primeiro no

deslocamento do divino e no estabelecimento do humano no marco da consolidação dos

Estados nacionais na Europa na passagem do teocentrismo para o antropocentrismo.

Ambos os autores consideram o processo pelo qual a série de sentidos vinculada a

“cultura” se afasta daqueles associados a “natureza” como fundamental na consolidação

dos Estados nacionais e no fortalecimento destes enquanto instituição na Idade

Moderna, resultante, sobretudo, do deslocamento da religião como centro regulador das

ações do homem e da instauração da racionalidade como padrão. Nesse sentido, esses

autores concluem que esse afastamento dos sentidos vinculados a natureza e a virada

em direção a civilização é, ao mesmo tempo, causa e consequência do

antropocentrismo.

Segundo Bauman, “a ideia de cultura foi uma invenção histórica instigada pelo

impulso de assimilar, do ponto de vista intelectual, uma experiência inegavelmente

histórica” (BAUMAN, 2012, p. 19); porém, ao refletir sobre o processo de

determinação da ordem do Estado em relação ao sujeito, sem romper com a

possibilidade da liberdade de ação deste último, Bauman considera que tal experiência

não poderia ser concebida de “outra maneira senão em termos supra-históricos da

condição humana como tal” (ibid.), o que considero que foi realizado mediante uma

43 Por exemplo, a forma cultura ou civilização inca funcionaria como descritiva e o par civilização-

cultura versus barbárie – este último como justificativa do colonialismo empreendido pelos países

europeus em zonas geográficas distantes, processo que instaurou o capitalismo – funcionaria como

normativo.

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“desistoricização”, ao silenciar sentidos e conflitos relativos à interpretação histórica da

constituição do Estado – em um processo ideológico, acrescento, de naturalização e de

construção de evidências.

Nesse contexto, a concepção de cultura – enquanto disposição espiritual,

desistoricizada – regula interesses contraditórios na relação entre a instituição e o

sujeito. Sendo o Estado o “âmbito transcendente no qual [as divisões impelidas por

interesses opostos] podem ser harmoniosamente reconciliadas” (EAGLETON, 2011, p.

16), a cultura funciona como um processo pelo qual esse Estado, aplacando na

sociedade civil “os rancores [desta] e refinando suas sensibilidades”, seria uma “espécie

de pedagogia ética que nos torna aptos para a cidadania política ao liberar o eu ideal ou

coletivo escondido dentre de cada um de nós, um eu que encontra sua representação

suprema no âmbito universal do Estado” (ibid., p. 17).

Descritos os dois movimentos iniciais de cultura na memória discursiva, a partir

das considerações de Eagleton (2011) e Bauman (2012), a seguir e antes de abordar a

série dos outros dois deslizamentos de sentido que afetaram o termo cultura que

discutirei nesta tese, realizo uma discussão fortemente centrada na AD materialista ao

analisar especificamente os gestos produzidos pelo Estado que promoveram uma forte

cristalização de um pré-construído de cultura pela história. Essa reflexão, justifico, é

fundamental pelo fato de que esse processo pelo qual cultura passou a significar

civilização foi essencial na formação dos Estados nacionais na Europa, além de que

contribuiu a instaurar, sob o efeito de um pré-construído, uma forte vinculação de

cultura (como projeção imaginária e como simbólico) com Estado nacional (e como

disse anteriormente, também com a língua deste último), cuja força ressoa até hoje,

apesar de diversos movimentos de descristalização desse pré-construído, sobre os quais

me debruçarei no terceiro item deste capítulo.

2.2. O trabalho dos Estados nacionais sobre cultura

Começo a reflexão o objeto deste item partindo das considerações que

Rodríguez-Alcalá (2004), de uma perspectiva discursiva, realiza sobre o papel da

cultura na constituição do Estado nacional, discutindo-o enquanto elemento atuante nos

processos de identificação do sujeito com esse Estado. Os processos de identificação

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nacional estariam, conforme a autora (2004, p. 1), vinculados a processos de

identificação cultural, que constituíram uma memória na relação do sujeito com o

Estado, memória que configura “o atual funcionamento político do apelo à cultura

enquanto elemento que está na base de um modo particular de legitimação do poder

do(s) Estado(s) sobre seus cidadãos”.

Como processo de identificação, cultura – ainda de acordo com Rodríguez-

Alcalá (ibid., p. 3) – se articula, na consolidação dos Estados nacionais e no papel do

homem como agente na sociedade, à ideia de nação em seu papel homogeneizador de

hábitos, costumes e tradições sociais, e todos estes – segundo a própria estudiosa –

operam como “índices de pertencimento a uma nacionalidade, não mais a uma religião”.

A autora observa que a mudança deste paradigma refletiu também na língua, pois esta,

no feudalismo, era utilizada como arma em favor da religião e, a partir do deslocamento

sofrido, passa a ser concebida como extensão da “cultura de uma nacionalidade”, do

“modo de ser de um povo”. Desta forma, observa,

(...) é através da cultura nacional, enquanto fenômeno de caráter

particular e diferenciado, que os sujeitos são interpelados para

identificarem-se com um Estado, através de suas leis, e não com

outro. As leis devem mostrar-se adequadas à cultura da nação

com a qual os sujeitos se identificam, sendo essa adequação

aquilo que justifica a subordinação a elas. É nessa confluência

da identificação dos sujeitos e das políticas instituídas em torno

da nação, através da cultura, que o Estado constrói sua

legitimidade (ibid.).

Nesse jogo de relações, a língua também funciona como partícipe da unificação

do Estado sob um imaginário de nação, conforme Rodríguez-Alcalá (2004), pois, para

tanto, trabalha-se sua unidade. Um indício que coloca em evidência o funcionamento

eficaz do imaginário de uma língua única é o fato de que essa língua, quando exposta à

relação com outras línguas, passa a ser defendida contra aquilo que representa uma

ameaça à nacionalidade e à cultura de uma dada nação, pois esse fato (a partir,

inclusive, de jogos de força, da hegemonia de certos paradigmas científicos e a tradução

de termos, por exemplo) geraria cisões à homogeneidade aparente de uma

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nacionalidade: a língua, de fato, funciona aí como materialidade e representação desta

nacionalidade44

. Nesse sentido, Rodríguez-Alcalá (ibid., p. 3) observa:

A questão mobilizada pelas políticas de língua passou, ao longo

dos séculos, da defesa da religião, da fé verdadeira, à defesa da

nação, de sua cultura autêntica; da consequente necessidade da

cristianização dos termos da língua para a de sua

nacionalização; do risco da heresia para o dos estrangeirismos,

desvios que em todos os casos são objeto de controle e, algumas

vezes, de punição por parte das políticas instituídas (itálicos da

autora).

Na esteira do que apresenta a autora sobre cultura como civilização e o seu

funcionamento discursivo como representação de uma nacionalidade, retomo a

consideração de Orlandi (2008) sobre o processo de constituição do sujeito do discurso,

do qual fiz referência no capítulo 1. Como já afirmei anteriormente, no processo de

constituição do sujeito do discurso, a interpelação do sujeito pela ideologia, que se dá

na linearidade do intradiscurso (ou na sua horizontalidade), mas que vai produzindo

memória, no irremediável jogo interdiscursivo, é constitutiva das formas de

individualização do sujeito por parte do Estado, este já atravessado pelo funcionamento

da ideologia. Nesta mesma linha, Eagleton (2011) considera que “devemos nossa noção

moderna de cultura em grande parte ao nacionalismo e ao colonialismo, juntamente com

o desenvolvimento de uma Antropologia a serviço do poder imperialista” (ibid., p. 42),

o que foi determinante para a força desse sentido específico de cultura.

Nesta linha de argumentação cabe retomar a reflexão de Eagleton (ibid.) sobre o

processo de constituição dos Estados modernos, quando discute o papel que significou o

alçamento da cultura sobre política, e descreve o processo – decisivo para a regulação

dos sujeitos no funcionamento dos Estados enquanto instituição – que se estabelece

quando primeiro se considera o homem e depois o cidadão, o que segundo o estudioso

foi determinante para apagar o político. Neste sentido, é preciso registrar que tal

44

Para ilustrar essa afirmação, a própria Rodriguez-Alcalá (ibid.) lembra que recentemente houve, no

Brasil, uma polêmica que envolveu projetos de lei que buscavam proteger a língua da presença de

estrangeirismos. De minha perspectiva e nesse mesmo sentido, considero relevante observar, também,

que o imaginário de uma nação, sob a égide de uma língua e de uma cultura, foi fundamental na

imposição de uma interpretação dos europeus sobre o mundo aos colonizados, relação que discutirei no

capítulo 3. Inclusive, considero que a língua, nos processos de colonização, funcionou como arma de

ataque e também de defesa contra a “barbárie” dos colonos.

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processo, segundo o autor (ibid., p. 17), alçou a importância da cultura em relação à

política, colocando em questão um tipo particular de política, apaziguando-a, pois “[a]

cultura, ou o Estado, são uma espécie de utopia prematura, abolindo a luta em um nível

imaginário a fim de não precisar resolvê-la em um nível político”. Esse deslocamento é

fundamental, do meu ponto de vista, para as formas de individualização do sujeito por

parte do Estado e para o processo de homogeneização de hábitos e de neutralização de

conflitos na caracterização de uma cultura própria do Estado vinculada à nacionalidade.

Na sinonímia estabelecida entre cultura e civilização, determinante para os processos de

colonização aos quais se lançaram os Estados europeus, e na configuração destes como

instituições, Eagleton (2011, p. 17-18) observa que

(...) [n]ada poderia ser menos politicamente inocente do que um

denegrecimento da política em nome do humano. Aqueles que

proclamam a necessidade de um período de incubação ética para

preparar homens e mulheres para a cidadania política são

também aqueles que negam a povos colonizados o direito de

autogovernar-se até que estejam “civilizados” o suficiente para

exercê-lo responsavelmente.

Nesse processo histórico no qual fica claro o papel central do silenciamento do político

na constituição do Estado moderno, a cultura constrói um denominador comum, de

interpelação subjetiva, com o qual o sujeito, conforme Eagleton (ibid.), se identifica. De

acordo com o que já foi exposto, no que do ponto de vista discursivo chamaria de

“processo de interpelação”, cultura destila “nossa humanidade comum a partir de nossos

eus políticos sectários, resgatando dos sentidos o espírito, arrebatando do temporal o

imutável e arrancando da diversidade a unidade” (ibid., p. 18).

Eagleton (2011) considera que a denominação “Estado-nação” é o “correlato

político da unidade do individual e do universal” (ibid., p. 88). Conforme ele, o hífen

entre ambas as palavras (que coloco em itálico) significaria uma ligação entre política e

cultura, pois “nação”, uma ideia abstrata, necessitaria de ser moldada institucionalmente

para a construção de uma unidade que permitisse sustentação política ao Estado. Desta

forma:

O Estado-nação não celebra inteiramente sem reservas a ideia de

cultura. Ao contrário, qualquer cultura particular nacional ou

étnica realizará seu potencial somente por meio do princípio

unificador do Estado, e não pela própria força. As culturas são

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intrinsecamente incompletas45

, e precisam da complementação

do Estado para se tornar verdadeiramente elas mesmas (ibid., p.

90).

Como outro lado deste processo, contraditório porém fundamental para o

funcionamento ideológico do Estado, aponto que tal concepção de cultura permite ao

sujeito certa liberdade de ação, condizente com o estabelecimento do novo homem do

Iluminismo, “racional e espontâneo”; entretanto, na concepção desta liberdade, há a

regulação da ordem pelo Estado, e nela a cultura funciona como mudança e controle da

natureza, ao impor limites e regulações não somente à natureza física, mas também aos

corpos dos seres vivos (incluindo aí o homem). Eagleton (ibid.) observa, nesse sentido,

a tensão que se estabelece, a partir do papel desempenhado pela cultura como um

espaço da liberdade e também da restrição entre “fazer e ser feito, racionalidade e

espontaneidade” (ibid., p. 14), na contradição instalada pela censura do intelecto livre

que o Iluminismo trouxe em sua concepção de homem e sociedade.

Tal contradição é inerente aos diferentes sentidos de cultura que se

sobrepuseram posteriormente, conforme discute Bauman (2012). A mesma se ampara

numa ambiguidade: na “criatividade” e na “regulação normativa” que produz sentido e

que é fundamental na constituição da sociedade moderna. O autor considera que a ideia

compósita de cultura

significa tanto inventar como preservar; descontinuidade e

prosseguimento, novidade e tradição; rotina e quebra de

padrões; seguir as normas e transcende-las; o ímpar e o regular;

a mudança e a monotonia da reprodução; o inesperado e o

previsível (ibid., p. 18).

Tal funcionamento, de minha perspectiva, faz parte das condições da interpelação do

sujeito por parte do Estado, produzindo para aquele a ilusão de liberdade em relação ao

seu modo de vida, regulando seus sentidos. Bauman (ibid.), ainda, observa que:

O conceito de cultura (...) [i]ncorpora a visão da moderna

condição humana já reciclada em paradoxo lógico. Seu objetivo

é superar a oposição entre autonomia e vulnerabilidade,

concebidas como proposições – enquanto encobre a contradição

45 Aqui discordo de Eagleton, por considerar tal afirmação um efeito de imaginário.

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da “vida real” entre o autônomo e o vulnerável: entre a tarefa da

autoconstituição e o fato de ser constituído (ibid., p. 18).

O próprio autor, ao tratar da importância da sinonímia estabelecida entre cultura

e civilização na constituição dos Estados modernos, recorda que o processo civilizatório

foi levado a cabo pelas elites, mediante a autosseparação destas em relação aos outros

sujeitos. Assim, acrescenta, “[f]undido à força, apesar de toda variedade interna”

produziu-se uma classe homogênea elitizada, por efeito de um processo de

dessincronização cultural aguda (ibid., p. 49). E ainda conforme ele, o lado ativo,

composto pelas elites, produziu modos de “autoformação”, de “autotreinamento” e de

“autoperfeiçoamento”, em um esforço de constituir-se como lugar de produção de

saberes e de domínio em relação aos que estavam fora desse processo (ibid.). Outro lado

atuante, não composto pela elite mas a favor dela, foi responsável por elaborar

mecanismos de biologização, de medicalização e de criminalização, dispostos a policiar

e manejar as massas, em um esforço de civilizá-las; e, nesse sentido, observa (ibid.):

no limiar da modernidade, encontra-se o processo de

autoformação da elite letrada ou esclarecida (que agora se

distingue por seus ‘modos civilizados’, com suas duas faces de

refinamento espiritual e adestramento corporal) que foi, ao

mesmo tempo, um processo de formação orientada das ‘massas’

como campo potencial da função, ação e responsabilidade de

supervisão das elites. A responsabilidade era conduzir as massas

à humanidade; a ação podia tomar forma de persuasão ou

coação. Eram essa responsabilidade e o impulso vinculado de

agir que definiam “as massas” – em suas duas encarnações

coexistentes e mutuamente complementares, ainda que em

aparência opostas: “a turba” (que assumia a dianteira sempre

que a força estava na ordem do dia) e “o povo” (invocado

quando se esperava que a educação tornasse redundante a

coação) (BAUMAN, 2012, p. 49).

Bauman (2012) conclui que tal processo foi fundamental na constituição do

Estado moderno pelo fato de que, apesar da cisão necessária para regular a sociedade e

manter o controle, era necessário que houvesse a ilusão da integração entre os diversos

membros da sociedade. O próprio autor (ibid.) discute que o processo de regulação da

criatividade, realizado pelo imaginário de uma “cultura comum” – esta associada ao

nacionalismo – foi mais um processo de dominação que deveria camuflar-se em práticas

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que iam além da sublimação da divisão de riquezas e divisas produzidas pelo Estado e

não divididas igualmente entre todos. As relações de poder, observa o autor,

constituídas na formação do Estado moderno, se propõem a “moldar os espíritos e

corpos dos sujeitos, penetrar profundamente em sua conduta diária e na construção de

seus mundos de vida” (ibid., p. 50).

A partir dessa afirmação de Bauman (2012) sobre o processo de determinação da

ordem do Estado em relação ao sujeito, em que este seria livre para realizar suas

vontades, porém tutelado pelo Estado e subordinado às ações deste, é necessário pontuar

algumas considerações sobre o papel que essa instituição realizou no controle das

diferenças, na construção de uma “universalização” sob a guarda de uma nacionalidade.

Se no processo de formação dos Estados nacionais na Europa a noção de cultura

serviu como um aglutinador de identidades, visando conformar uma identidade nacional

mediante um processo de homogeneização de hábitos e de tradições, é importante

considerar o trabalho realizado por esta instituição para alcançar este objetivo. Um deles

é o da organização da língua, que foi fundamental para a conformação das

subjetividades dos sujeitos (HAROCHE, 1992); o outro, a criação de um aparato

jurídico institucional que administrasse as contradições sob o guarda-chuva da

igualdade. Para tal, me apoio fundamentalmente nos trabalhos de Haroche (1992), Payer

(1993), Gadet e Pêcheux (2004), Guimarães (2002) e Pêcheux (2009) sobre o papel do

Estado na elaboração de processos de individualização do sujeito, fundamental para a

construção de um imaginário de “universalidade” que também permitisse o controle e a

divisão social.

Haroche (1992, p. 21), ao considerar os “elementos ligados aos processos de

individualização do sujeito” na história da gramática, considera o papel que o Estado

desempenhou na conformação das subjetividades. Segundo a autora (ibid.), “o poder, o

Estado, o direito, coagem o sujeito, insinuam-se nele de forma discreta”. Através de

diversos autores que trataram desta questão, e principalmente a partir de um processo

que Foucault (1984)46

denominou de “governo pela individualização”, Haroche afirma

que o Estado se firmou como instituição por um trabalho de classificação dos

“indivíduos em categorias”, identificando-os, amarrando-os e aprisionando-os em sua

46 FOUCAULT, M. “Deux essais sur le sujet et le pouvoir: Pourquoi étudier le pouvoir: la question du

sujet”, p. 302. In.: DREYFUS, H., RABINOW, P. Michel Foucault, un parcours philosophique (au-

delà de l’objectivité et de la subjectivité), Paris, Gallimard, 1984.

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identidade (ibid.). Segundo a autora, “a língua, a sua gramática e a psicologia são o

lugar [de] mecanismos individualizantes que induzem a uma psicologia específica”, em

um trabalho realizado pelo Estado na elaboração de “uma psicologia do indivíduo

médio” (ibid.) que pautaria suas políticas de conformação das subjetividades, em um

processo de homogeneização cultural e política cuja gestão passava pela ciência. Para

Haroche, “a universidade, com efeito, se dedica, de certa forma, ‘a desassujeitar’ o

sujeito da religião, para assujeitá-la então ao Estado” (ibid., p. 216).

Para o Estado, enquanto instituição, foi de fundamental importância realizar um

trabalho de apagamento das diferenças e contradições na construção de uma identidade

vinculada à nação. Com a transição do teocentrismo para o antropocentrismo, era

necessário ocupar o lugar deixado pela religião no controle e na regulação dos sujeitos,

ao mesmo tempo em que estes tivessem a ilusão de usufruírem de liberdade e de

independência na realização de suas ações, status advindo dessa transição – o homem

como centro do universo. Segundo Haroche (1992) a partir do século XVI é pelo direito

e pela língua que esse trabalho é realizado; no século XIX, com essas instituições e os

seus instrumentos já consolidados, seria pela universidade (que privilegia o exercício da

razão, e não com o da fé), e por áreas de saber como a filosofia e a psicologia, que tal

trabalho de apagamento e de controle das ambiguidades e diferenças seria realizado.

É importante considerar que analisar os mecanismos linguísticos de

determinação possibilitou a Haroche olhar sobre a questão específica da materialidade

linguística, mas que diz respeito diretamente a efeitos de sentido que estão diretamente

conectados aos processos discursivos relacionados à gestão da subjetividade por parte

do Estado. Para a autora – a partir da perspectiva que Pêcheux (2009 [1975]) adota em

sua obra – os mecanismos linguísticos da ambiguidade, dos quais a determinação na

gramática se propõe a dar conta, conforme esse autor, “formam igualmente o fundo de

uma reflexão filosófica” e “pertencem à zona de articulação da linguística com a

história dos processos ideológicos e científicos” (PÊCHEUX, 2009 [1975], p. 81 apud

HAROCHE, 1992, p. 45). Apesar de que qualquer mecanismo linguístico esteja sujeito

à articulação da materialidade linguística com os processos discursivos que a permeiam,

a determinação incide sobre postulados como o da completude, da evidência e da

transparência da linguagem, elementos formais das línguas que incorrem diretamente no

controle das subjetividades: conforme Payer (1993, p. 46), a partir de Henry (1990), a

noção de determinação, que se apresenta na gramática e na linguística, opera

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com elementos de duas ordens distintas: a ordem das “coisas ou

do pensamento” e a ordem “da linguagem, do discurso”, que ali

são supostas como duas ordens separadas, independentes, sendo

que a ordem das coisas ou do pensamento teria uma garantia

anterior à linguagem, e esta se colocaria depois, como a

primeira.

Essa noção, segundo Payer (ibid., p. 44), caracteriza-se como um mecanismo

privilegiado

para se perceber a realização textual da impressão de que se

atinge de fato um objeto em sua unicidade, em sua invariância, e

de que aprisiona na língua esse objeto que parece só poder ser

este, assim, desta forma. A determinação supõe, deste modo, a

possibilidade de uma “ancoragem da significação” em um

referente exato, definido, individual.

No que se refere à língua, afirma Haroche (1992, p. 22) é pela gramática que o

Estado realiza o trabalho de “transparência, a exigência de clareza, o ideal de

completude”, mecanismos que tornam o sujeito “o lugar de coerções na gramática e na

língua”. Segundo a própria autora, “os mecanismos de individualização se inscrevem

assim no postulado geral que subentende toda gramática: a exigência de clareza, de

desambiguização, de determinação, de perfeita legibilidade” (ibid.). Conforme ela:

Muitos dos funcionamentos na gramática parecem assim

responder aos imperativos de um poder que, procurando fazer

do homem uma entidade homogênea e transparente, faz do

explícito, da exigência de dizer tudo e da “completude” as regras

que contribuem para uma forma de assujeitamento paradoxal. A

exigência de desambiguização/determinação aparece, na língua

francesa em particular, como uma das manifestações do

empreendimento geral de normalização que se desenha no fim

da época clássica: no século XVII, ela está no cerne desses

mecanismos individualizantes; a história de sua formação, o

estudo de seu funcionamento nos esclarecem sobre eles (ibid., p.

23).

Pelo conceito de determinação Haroche analisou, particularmente na língua

francesa, como um trabalho de “empreendimento geral de normalização” (ibid.) se

converte em um lugar de exigência de ordem, em um imperativo de submissão do

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sujeito ao poder, ao estudar o funcionamento de tal mecanismo na religião, no jurídico e

na língua. Estas duas últimas inflexões, especialmente, se realizam sob o trabalho do

Estado, tratando de “resolver as contradições” (ibid., p. 215) e assim realizar um

processo que evitasse a ambiguidade. A análise sobre esse funcionamento linguístico,

conforme a autora (ibid., p. 150), deve-se ao fato de que

A função determinativa, que se realiza através dos

procedimentos de determinação, consiste no acréscimo, ao

termo comum, de um ou vários chamados “determinantes”

(artigos, adjetivos, demonstrativos, possessivos, interrogativos,

numerais, certos adjetivos indefinidos...). Ela pode se realizar

também a partir do complemento de nome, da proposição

relativa e também do epíteto. Os determinantes, chamados

também determinativos, não acrescentam, em teoria, nenhuma

significação nova ao termo determinado: eles intervêm somente

para limitar sua extensão. Como podemos ver, a preocupação

geral não é abrir a significação, mas restringi-la, em suma,

delimitá-la (ibid., p. 150).

Pela análise que realizou deste mecanismo em gramáticas, Haroche considera

que a determinação visa desambiguizar a língua e apagar as contradições ao restringir e

delimitar a significação. Durante séculos houve um trabalho de abordagem sobre a

materialidade linguística, por parte de teóricos e gramáticos, em que os problemas

referentes a esse tema tiveram, como questão de fundo, elementos que não remetiam a

problemas históricos, lexicais, sintáticos ou semânticos (ibid.), mas a questões

relacionadas à referência e ao sujeito, “de uma possibilidade de referência para o

sujeito” (ibid., p. 150). Dessa forma, os gramáticos fazem do tema da determinação “a

marca da expressão da vontade e da liberdade do sujeito” (ibid., p. 151). Para a

construção de uma homogeneidade nacional, na administração das diferenças e pela

restrição do que pode ser dito, o Estado realiza esse trabalho sobre a determinação na

língua; assim, para a autora,

[...] se a determinação constitui um efeito de sentido (melhor

valeria dizer um efeito de sentido ligado ao sujeito), aí intervêm,

com toda evidência, não só a sintaxe e fatores semânticos, mas

também elementos ‘individualizantes’ ligados aos mecanismos

do aparelho jurídico (ibid., p. 152).

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Para Haroche (1992) o acirramento desse processo se daria, por parte do Estado,

na elaboração de um aparelho jurídico, de um aparato de leis e de regras para a

construção de um espaço de regularidades visando à universalização de direitos e

deveres. Esse processo foi gradual, à medida que a estrutura econômica passou por

mudanças. A economia rural baseada na estrutura do feudalismo, na Idade Média,

quando ainda não havia a noção de lucro, dado que a produção se realizava unicamente

para subsistência, gradualmente vai passando por mudanças que a transformam em

urbana. O surgimento de trocas comerciais e a consolidação de centros urbanos, em que

a acumulação financeira e o lucro promovem novas formas de economia são elementos

decorrentes destas transformações e que provocam mudanças na configuração social e

política na relação entre senhores e servos, impulsionando o crescimento demográfico e

as relações comerciais entre diferentes territorialidades. Conforme Haroche (ibid.), “a

sedentarização do comércio está ligada aos progressos da instrução, da escrita, das

trocas escritas. Ela se inscreve necessariamente no progresso do aparelho jurídico”

(ibid., p. 68), o que gera incidências sobre as relações entre os sujeitos, na sua relação

com o Outro e com a instituição reguladora, seja a religião inicialmente, seja

posteriormente o Estado47

. Todo esse processo altera a relação que o sujeito, naquele

momento, possuía com a religião, pois com o progresso do Direito e a laicização do

Estado, segundo Haroche, o “mecanismo de dominação do sujeito pelo religioso fica

[...] abalado em profundidade” (ibid., p. 69).

Se foi com o estabelecimento do Estado enquanto instituição que o Direito se

fortaleceu como organismo, há de se considerar que antes do estabelecimento de tal

instituição não havia a possibilidade de se considerar o sujeito-de-direito em um sistema

hierárquico que estava baseado fortemente na desigualdade social, como o feudal.

Durante a transição do feudalismo para a economia de mercado as relações entre

sujeitos foram mudando gradualmente e deram condições para o posterior

estabelecimento do sujeito-de-direito: do senhor que cedia terras ao vassalo, numa

relação de direitos e deveres de ambos os lados, com o primeiro obtendo mais vantagens

através da exploração direta do segundo, a relação que antes era pessoal gradativamente

passa a ser econômica, pois “a ‘sujeição’ dos camponeses ao senhor vai, com efeito,

tomar a forma de foros mais do que da exploração direta dos serviços camponeses”

47 Aqui entra o que Payer (1993) conceitualiza como sobredeterminação, algo que pontuei no primeiro

capítulo e sobre o qual voltarei ainda neste.

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(HAROCHE, ibid., p. 69). Os vassalos passam a assumir compromissos financeiros

com os senhores, visando à aquisição de terras e, consequentemente, a sua liberdade;

com tal operação os senhores obtêm lucros com o empréstimo de dinheiro aos vassalos,

o que permite “a transformação econômica capital, ideológica e necessariamente

jurídica do século XIII: o sujeito, de doméstico que era, se torna paradoxalmente um

homem ‘livre’ graças à possibilidade que lhe dá o senhor de se tornar ‘sujeito-à-

exação’” (ibid.).

Somente com o surgimento da economia de mercado e da construção de uma

universalização, mesmo que imaginária, por parte do Estado, que foi possível

estabelecer o sujeito-de-direito e a mediação da igualdade entre os sujeitos pela escrita

da lei. Era necessário administrar as diferenças, criar consenso, mesmo que tal

administração mantivesse as divisões sociais. Segundo Haroche (1992):

A ideologia de “sujeitos-de-direito” idênticos e autônomos é

impossível no sistema [da feudalidade] porque esta

representação é ao mesmo tempo inútil e perigosa no mundo que

vive (...) da feudalidade (...). Se, diferentemente do escravo, o

servo é um sujeito de direito, não é entretanto um sujeito-de-

direito comparável, a fortiori, equivalente, àquele que encarna o

senhor (...). Em definitivo, não há estatuto jurídico comum que

sirva de equivalente, de medida. Não há “sujeito-de-direito”

abstrato (MIAILLE48

(1976) apud HAROCHE, 1992, p. 68).

Essa transição proporcionada pelo econômico desloca os mecanismos de

dominação que estavam associados ao religioso antes da consolidação dos Estados

nacionais. Conforme Haroche (ibid., p. 70), “um direito que repousa na sujeição pessoal

ao senhor juridicamente todo-poderoso se substitui um direito menos local, menos

costumeiro”, o que configura uma nova concepção de sujeito. E acrescenta:

O próprio mecanismo de dominação do sujeito pelo religioso

fica assim abalado em profundidade com o progresso do Direito

e sua laicização. Atribui-se maior importância ao sujeito em si

mesmo, a suas intenções, a suas motivações, à sua vontade: uma

concepção absolutamente nova de sujeito aparece, aliando

obrigação econômica à liberdade jurídica, o sujeito torna-se,

assim, “livre para se obrigar” (ibid., p. 69).

48 MIAILLE, M. Une introduction critique du droit. Paris: Maspero, 1976.

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68

É importante considerar, nessa transição econômica do feudalismo para uma

economia baseada em trocas comerciais, o alçamento de uma nova classe social, a

burguesa, e a importância que esse grupo desempenhou no processo de conformação de

uma identidade nacional, mais até que o grupo dos aristocratas que exerciam grande

poder no sistema político das monarquias absolutistas. Em relação a esse processo

Eagleton (2011) e Bauman (2012) são unânimes em assinalar a importância do papel

que a noção de cultura desempenhou, construída a partir de hábitos, valores e tradições

tomadas como índices de pertencimento comuns a todos os sujeitos. Sobre a burguesia

Gadet e Pêcheux (2004) consideram que essa classe, no processo de universalização de

direitos e deveres pelo Estado, trabalhou para “reapropriar-se dos grandes formalismos

religiosos, jurídicos e linguísticos pré-capitalistas (universais escolásticos, direito

romano, gramática latina)” (GADET & PÊCHEUX, 2004, p. 36). Ou seja, na

constituição de uma homogeneidade se elaborou, por parte do Estado, a partir de lugares

institucionais como o Direito e a Educação, um conceito de sujeito universal que

passou, necessariamente, pela criação de índices de interpretação elaborados a partir

desses formalismos. A preponderância de uma ideologia burguesa na conformação dos

Estados nacionais europeus, segundo os autores, se realizou por um processo de

reorganização das relações dessas “três ‘ordens’ sem jamais questioná-las” (ibid., p. 36).

Em relação à língua, a consideração que Gadet e Pêcheux (2004) realizam sobre

o seu estatuto, desde o feudalismo até a consolidação dos Estados nacionais, aponta um

olhar sobre como a administração ideológica de sua materialidade foi fundamental para

a construção desse imaginário de universalidade. Na época do feudalismo, segundo

esses autores, a ideologia dominante supunha a “existência material de uma barreira

linguística separando aqueles que, por sua condição social, eram os únicos capazes de

ouvirem claramente o que devia ser dito, e a massa de todos os outros” (ibid., p. 37).

Não havia uma política da língua durante o feudalismo e na consolidação das

monarquias absolutistas: “‘o corpo linguístico’ da época feudal, o mosaico dos falares e

dos dialetos, permanecia tão intocável quanto o corpo do rei, por razões paradoxalmente

idênticas” (ibid.). A “tagarelice retórica da religião e do poder”, ainda conforme Gadet e

Pêcheux, determinava socialmente aqueles que teriam acesso à interpretação, uma

administração do dizer que visava manter a divisão imposta e a impedir mudanças e

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69

mobilizações entre os sujeitos – a administração dos sentidos mantinha a estrutura das

relações sociais naquele momento.

Com a constituição dos Estados nacionais e a administração dos sentidos levada

a cabo por suas instituições, movimentos esses que determinaram a construção de um

ambiente imaginário de igualdade e de universalidade, a burguesia, como grupo social

de forte influência política e econômica, impõe uma nova agenda, que “transforma a

rigidez das ordens em terreno de confronto das diferenças” (GADET & PÊCHEUX,

ibid., p. 37). A elaboração desse novo projeto político para a língua nacional, no âmbito

do Estado, coloca uma nova questão linguística, segundo Gadet e Pêcheux, como um

projeto político que realiza, na “constituição da língua nacional através da alfabetização,

aprendizagem e utilização legal dessa língua nacional” (ibid.), um movimento similar e

concomitante ao da elaboração de um aparelho jurídico. Sobre isso os autores assinalam

o trabalho que a burguesia realiza na administração das diferenças na língua e no

jurídico:

O feudalismo mantinha a ordem dominante “traduzindo-a” em

formas específicas de representações e imagens próprias às

diversas classes dominadas. A particularidade das revoluções

burguesas é de tender a absorver essas diferenças para

universalizar as relações jurídicas, no momento em que se

universaliza a circulação do dinheiro, das mercadorias... e dos

trabalhadores “livres” (ibid., p. 37).

A ascensão da burguesia como classe social dominante passou pela

administração dos índices e códigos que a classe dominante até aquele momento (a

aristocracia) possuía. A burguesia, entretanto, realizou um forte trabalho de

administração desses índices: conforme a consideração de Eagleton (2011) sobre tais

índices, os quais ele chama de formas de autoformação, de autotreinamento e de

autoperfeiçoamento, já mencionados anteriormente. Tais códigos, desde o meu ponto de

vista, se constituíram em lugar de produção e de regulação de saberes e de práticas

sociais, através da institucionalização de lugares (como a escola e a universidade) e de

instrumentos (como a gramática e a legislação) destinados à produção e intepretação de

tais índices, indispensáveis para o seu domínio, além de agentes reguladores. Entretanto,

o acesso a esses lugares e instrumentos, apesar de universal, era determinado por

condições materiais, o que também determinava quem tinha acesso a eles e o domínio

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em relação aos que estavam fora desse processo, o que garantiu a continuidade de

privilégios e de práticas dominantes, agora disfarçadas sob um trabalho de

universalização de condições e de acesso aos bens materiais. Conforme Gadet e

Pêcheux, “para se tornarem cidadãos, os sujeitos devem portanto se liberar dos

particularismos históricos que os entravam: seus costumes locais, suas concepções

ancestrais, seus ‘preconceitos’... e sua língua materna”. (ibid., p. 37).

Em relação à administração e organização realizada sobre a língua, vale

considerar a contradição constitutiva desse processo (e que pode ser considerada como

um paradoxo de todo processo de universalização realizado pelo Estado, este também

como produção de um efeito imaginário, constituído sob o efeito de universalidade que

toda formação discursiva produz). Se no feudalismo a divisão entre as classes sociais

era estabelecida e mesmo estimulada, na transição que culmina no estabelecimento de

uma economia de mercado tal divisão é silenciada, em busca de uma universalização de

sentidos, de extremo interesse ao sistema. A construção de uma língua nacional única,

de Estado, foi a matéria principal de tal imaginário. O impossível de tal processo era

silenciar a diferença de sentidos e de dizeres, constitutiva na estrutura da língua, em sua

ordem49

, sendo tal diferença silenciada na sua organização, o que gera uma disjunção

fundante entre as duas esferas. Em relação a essa questão, a administração da

organização da língua (em boa parte realizada mediante os processos de gramatização

que implica [AUROUX, 1992]) traz questões que afetam diretamente as subjetividades.

A burguesia, nesse sentido, conforme Gadet e Pêcheux (2004, p. 37), realiza um

trabalho de organização imaginária, altamente eficaz, da igualdade pela língua (e

também pelo jurídico) sem abrir mão de sua posição privilegiada: uma língua única,

falada igualmente por todos, como “uma das condições efetivas da liberdade dos

cidadãos”; concomitantemente a essa organização da língua, a burguesia realiza um

trabalho de “organizar uma desigualdade real, estruturalmente reproduzida por uma

divisão política no ensino da gramática” (ibid.) – assim, consequentemente, o Estado se

constitui como produção de um efeito imaginário, como havia pontuado anteriormente.

Dessa forma, segundo esses autores, a questão da língua é

49 Conforme a consideração de Orlandi (1996) sobre a ordem e a organização da língua, que trabalhei no

capítulo 1 desta tese.

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uma questão de Estado, com uma política de invasão, de

absorção e de anulação das diferenças, que supõe antes de tudo

que estas últimas sejam reconhecidas: a alteridade constitui na

sociedade burguesa um estado da natureza quase biológica, a ser

transformado politicamente (ibid.).

Nesse duplo trabalho de administração da diferença, que aqui discuto a partir do

que consideram Bauman (2012) e Eagleton (2011) sobre a cultura e a formação dos

Estados nacionais e do que consideram Haroche (1992) e Gadet e Pêcheux (2004) sobre

a gestão realizada pela burguesia e pelo Estado na administração da língua e do jurídico,

creio que cultura atua como uma materialidade que sustenta a universalidade imaginária

construída pela burguesia e pelo Estado nacional. A noção de cultura, nesse momento, é

valorizada a partir de índices tais como os valores tradicionais e as identidades comuns,

reunidos sob o caráter de uma identidade nacional – o pertencimento ao Estado passa

pela vinculação a esses índices50

.

Em relação a esse processo de universalização realizado pelo Estado, é

importante ter em conta o que Pêcheux (2009) discute em outra obra, retomando

Fuchs51

, o que denominou mito continuísta empírico-subjetivista, efeito que “pretende

que, a partir do sujeito concreto individual ‘em situação’ (ligado a seus preceitos e a

suas noções), se efetue um apagamento progressivo da situação por uma via que leva

diretamente ao sujeito universal”, este que está “situado em toda parte e em lugar

nenhum, e que pensa por meio de conceitos” (ibid., p.117). Tal “sujeito universal”, livre

de particularismos e de efeitos de sentido, será o projetado na elaboração de políticas

específicas em relação à língua e ao arquivo jurídico. Considero esses conceitos aos

quais Pêcheux se refere como índices de interpretação tomados como culturais, ou seja,

50 Segundo Gadet e Pêcheux (2004), nesse movimento que o Estado realiza na construção da

universalidade, o poder do Estado burguês – formulação que revela a força investida pela burguesia no

agenciamento de seus interesses, confundindo-se com o próprio Estado – se vale, ao mesmo tempo, da

“forma logicista de um sistema jurídico concentrado em um foco único e (da) forma sociologista de uma

absorção negociada da diversidade” (ibid., p. 38). Conforme esses autores, tal poder investido funciona

“simultaneamente segundo a figura jurídica do Direito e segundo a figura biológica da Vida” (idem), o

que constitui uma divisão que dará uma configuração dual à linguística, característica que a define

atualmente. Pelo lado do Direito, se institui “a circulação oficial das significações garantidas por uma

autoridade central”; pelo lado da Vida, “as múltiplas práticas fragmentárias, indefinidamente reelaboradas

e aperfeiçoadas pelas quais a divisão estratégica burguesa encontra o caminho de seu exercício” (ibid., p.

38).

51 Não foi possível recuperar a referência dessa obra a partir de Pêcheux (2009).

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valores que constituem uma certa visão de mundo, construídos a partir daquilo que deu

base ao processo de universalização levado a cabo pelo Estado.

Ao tratar de Estado não se pode deixar de tratar do político, no sentido genérico

do termo, ou de práticas políticas, em relação às ações levadas a cabo pelo Estado na

gestão da diferença. Considero esta diferenciação fundamental pelo fato de que o

político não está restrito às questões administrativas do Estado-nação, sendo essas o que

relaciono como práticas políticas. Retomo a consideração que Guimarães (2002) realiza

sobre o político, constitutivo das relações sociais, e fundamental para entender o

processo de universalização realizado pelo Estado e a homogeneização de identidades

decorrente desse processo:

O político, ou a política, é para mim caracterizado pela

contradição de uma normatividade que estabelece

(desigualmente) uma divisão do real e a afirmação de

pertencimento dos que não estão incluídos. Deste modo o

político é um conflito entre uma divisão normativa e desigual do

real e uma redivisão pela qual os desiguais afirmam seu

pertencimento. Mais importante ainda para mim é que deste

ponto de vista o político é incontornável porque o homem fala.

O homem está sempre a assumir a palavra, por mais que esta lhe

seja negada. (...) O Político está assim sempre dividido pela

desmontagem da contradição que o constitui. De tal modo que o

estabelecimento da desigualdade se apresenta como necessária à

vida social e a afirmação de pertencimento, e de igualdade, é

significada como abuso, impropriedade. Esta desmontagem é o

esforço do poder em silenciar a contradição, na busca de um

político como ação homogeneizadora que ora se esgota no

administrativo, ora naquilo que Racière chamou de polícia, e

que ele opõe à política (GUIMARÃES, 2002, p. 16).

Nessa administração em silenciar a contradição, conforme Guimarães (2002)

assinala como uma “ação homogeneizadora” realizada pelo Estado, trago a reflexão que

Pêcheux (2009) realiza sobre as condições ideológicas da reprodução/transformação

das relações de produção, ao esclarecer “os fundamentos de uma teoria materialista do

discurso”. Para este trabalho me interessa a discussão que o autor faz sobre o papel da

Ideologia na formação do Estado enquanto instituição e na relação entre o sujeito e as

instituições.

Retomo novamente a citação de Guimarães (2002), em que este autor discorre

sobre a “ação homogeneizadora” do Estado e sobre o trabalho realizado pelo Político,

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que considero importante trazer aqui pela sua definição “desmontar a contradição que o

constitui”. Relaciono-a com a discussão que Pêcheux (2009) estabelece ao considerar

sobre as condições ideológicas, quando reflete sobre o papel que a Ideologia

desempenha nas relações de produção. Ao considerar a expressão “condições

ideológicas da reprodução/transformação das relações de produção”, Pêcheux realiza

um movimento de explicação sobre ela, primeiramente delimitando que a Ideologia não

é o “único elemento dentro do qual se efetuaria a reprodução/transformação das relações

de produção de uma formação social” (PÊCHEUX, 2009, p. 129). O autor considera

que não é possível ignorar as determinações econômicas que condicionam esse processo

“no próprio interior da produção econômica” e para tal passa a tecer reflexões sobre o

papel da Ideologia na conformação do Estado e das subjetividades.

Ao tratar da reprodução e transformação das relações de produção o autor em

questão considera que “a luta de classes atravessa o modo de produção em seu conjunto,

o que, na área da ideologia, significa que a luta de classes ‘passa por’ aquilo que L.

Althusser chamou os aparelhos ideológicos de Estado” (ibid,, p. 130). Tal consideração

justifica a sua posição de não “localizar em pontos diferentes, de um lado, o que

contribui para a reprodução das relações de produção e, de outro, o que contribui para

sua transformação” (ibid.). Ao estabelecer estas questões, Pêcheux destaca a

importância de considerar, para uma reflexão sobre uma teoria materialista do discurso,

“(a) teoria das ideologias, (a) prática de produção dos conhecimentos e (a) prática

política” (ibid., p. 129), questões importantes para a reflexão sobre o papel da cultura na

conformação do Estado enquanto instituição reguladora de sentidos e dizeres.

Para a problematização das relações do Estado com o sujeito, esse mesmo autor

(2009) as considera em um vínculo que é ideológico e determinado historicamente. Para

tal, Pêcheux coloca em relação as “condições contraditórias” em que as “condições

ideológicas da reprodução/transformação das relações de produção” são constituídas. A

partir dessa posição, o autor destaca que essas condições são constituídas em um

momento histórico específico, em uma dada formação social e “pelo conjunto complexo

dos aparelhos ideológicos de Estado” dessa formação (ibid.). Por “conjunto complexo”

Pêcheux entende que há relações de “contradição-desigualdade-subordinação” atuantes

entre os diversos elementos, o que problematiza as divergências, as diferenças e as

contradições que haveriam entre tais aparelhos e também coloca em uma relação

histórica e específica tais condições. Dessa forma, segundo Pêcheux,

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O aspecto ideológico da luta para a transformação das relações

de produção se localiza, pois, antes de mais nada, na luta para

impor, no interior do complexo dos aparelhos ideológicos de

Estado, novas relações de desigualdade-subordinação (o que se

encontra expresso, por exemplo, na palavra de ordem “colocar a

política no posto de comando”) que acarretariam uma

transformação do conjunto do “complexo dos aparelhos

ideológicos de Estado” em sua relação com o aparelho de

Estado e uma transformação do próprio aparelho de Estado

(ibid., p. 133).

A esse estabelecimento de transformações das relações de produção associo o

movimento que Eagleton (2011) e Bauman (2012) descrevem em relação à cultura no

processo de consolidação do Estado nacional: ao estabelecer um espaço imaginário

comum a todos, em que o sujeito se sente livre e independente, há também uma

restrição imposta, um processo em que o sujeito é responsabilizado por seus atos,

sujeito à letra da Lei. Ao mesmo tempo em que os sujeitos, dentro do sistema, possuem

a ilusão de liberdade e também de mobilidade na estrutura social, a estrutura do sistema

em si pouco muda, mantendo-se as mesmas bases dominantes e de dominação pelos

aparelhos ideológicos do Estado. A essa questão Pêcheux (2009) afirma:

a objetividade material da instância ideológica é caracterizada

pela estrutura de desigualdade-subordinação do “todo complexo

com o dominante” das formações ideológicas de uma formação

social dada, estrutura que não é senão a da contradição

reprodução/transformação que constitui a luta ideológica de

classes (ibid., p. 134).

A luta de classes, conforme esse autor, não é simétrica: ela se dá mediada por

relações de força, no espaço da sociedade organizada pelo Estado, “como terreno dessa

luta” (ibid.). Nesse processo de homogeneização organizado pelo Estado, conforme

Pêcheux (ibid.) baseado em Balibar52

, “a relação de classes é dissimulada no

funcionamento do aparelho de Estado pelo próprio mecanismo que a realiza” (ibid.) –

graças ao “esforço do poder em silenciar a contradição, na busca de um político como

ação homogeneizadora”, conforme definição que reproduzi acima de Guimarães (2002,

p.16), “de modo que a sociedade, o Estado e os sujeitos de direito (livres e iguais em

52 Não foi possível recuperar a referência dessa obra a partir de Pêcheux (2009).

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direito no modo de produção capitalista) são produzidos-reproduzidos como ‘evidências

naturais’” (Pêcheux, 2009, p. 134), processo que considero também ser propiciado pelo

Direito e pela naturalização das relações sociais mediada pela cultura.

Sobre a questão de que o sujeito é interpelado pela Ideologia, Pêcheux assinala o

equívoco de associá-la à formulação do paradoxo de que “o sujeito é chamado à

existência” (ibid., p. 141); segundo o autor, a “’Ideologia interpela os indivíduos em

sujeitos’” (ibid.), sendo que tal formulação designa “que ‘o não-sujeito’ é interpelado-

constituído em sujeito pela Ideologia” (ibid.). O paradoxo anteriormente citado seria

explicado, segundo Pêcheux, pelo fato de “que a interpelação tem, por assim dizer, um

efeito retroativo que faz com que todo indivíduo seja ‘sempre-já-sujeito’” (ibid.), o que

dá condições para a evidência do sujeito “como único, insubstituível e idêntico a si

mesmo”, desde sempre “um indivíduo interpelado em sujeito” (ibid.).

Um fator determinante para a construção da evidência do sujeito é o efeito de

pré-construído. Pêcheux considera

o efeito de pré-construído como a modalidade discursiva da

discrepância pela qual o indivíduo é interpelado em sujeito... ao

mesmo tempo em que é ‘sempre-já sujeito’ (pois tal)

discrepância (entre a estranheza familiar desse fora situado

antes, em outro lugar, independentemente, e o sujeito

identificável, responsável, que dá conta de seus atos) funciona

‘por contradição’, quer o sujeito, em toda sua ignorância, se

submeta a ela, quer, ao contrário, ele a apreenda por meio de sua

agudeza de ‘espírito’ (ibid., p. 142).

Essa questão trazida por Pêcheux é fundamental para discutir o “efeito de

evidência” do sujeito em crer ser quem é. Tal efeito diz respeito ao “processo de

interpelação-identificação que produz o sujeito no lugar deixado vazio: ‘aquele que...’

(...) sob diversas formas, impostas pelas ‘relações jurídico-ideológicas’” (ibid., p. 145).

Essa posição remete à discussão da importância sobre o papel exercido pelo Jurídico, na

conformação das relações sociais a partir de uma identidade comum balizada pela

escrita da Lei, papel que instaurou novas práticas de dominação. É importante destacar,

como já foi dito anteriormente a partir de Haroche (1992) que esse lugar ocupado pelo

Jurídico decorre de práticas construídas historicamente, quando o Direito se desprende

da religião e ocupa o lugar anteriormente ocupado por esta no controle das

subjetividades.

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Pêcheux realiza uma série de considerações sobre o papel do funcionamento da

Ideologia na interpelação dos indivíduos em sujeitos – e em sujeitos de seu discurso,

definição que se torna essencial para uma teoria materialista do discurso: a interpelação

“se realiza através do complexo das formações ideológicas (e, especificamente, através

do interdiscurso intrincado nesse complexo)” (PÊCHEUX, 2009, p. 149) e também é

determinante na construção de um sistema de evidências que fornece “‘a cada sujeito’

sua ‘realidade’, enquanto sistema de evidências e de significações percebidas – aceitas –

experimentadas” (ibid.).

Posteriormente Pêcheux elaborou uma retificação53

sobre o papel da Ideologia

no processo de interpelação do indivíduo em sujeito, principalmente em relação às

considerações que elaborara sobre a “forma sujeito”. Publicada como o anexo III na

edição brasileira54

, o autor tece algumas reflexões a partir de críticas tecidas a

“Aparelhos Ideológicos de Estado”, de Althusser55

, quanto ao “eternitarismo apolítico”

dessa obra (ibid., p. 274), “investigando de que modo, no absurdo círculo de evidência

constituído pela interpelação, ‘o sujeito é produzido’ como historicamente capaz (...) de

se voltar contra causas que o determinam, porque elas as apreende teórica e

praticamente” (ibid., p. 275). Isso justificaria a necessidade de uma reformulação, que

não anula de todo o papel da Ideologia no processo de interpelação e de identificação do

sujeito: na verdade, “levar demasiadamente a sério a ilusão de um ego-sujeito-pleno em

que nada falha, eis precisamente algo que falha em Les vérités de La Palice56” (ibid.).

Segundo o autor, a partir dessa questão, a retificação era necessária, pois

(...) eu me apoiava em uma exterioridade radical marxista-

leninista para desvendar o ponto em que o absurdo reaparece

sob a evidência, determinando, assim, a possibilidade de uma

espécie de pedagogia da ruptura das identificações imaginárias

em que o sujeito se encontra, logo a possibilidade de uma

“interpelação às avessas” atuando na prática política do

proletariado (...) (ibid., p. 275).

53 Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação. Segundo os

tradutores da edição brasileira, esse texto foi redigido durante o inverno político francês de 1978-1979.

54 A edição brasileira que utilizo é a quarta edição, de 2009.

55 ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de Estado. 2ª ed. Trad. de Walter J. Evangelista e Maria Laura

V. de Castro. RJ: Graal, 1985

56 Nome original em francês da obra citada.

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Ao formular a noção de sujeito do discurso, Pêcheux considerou um sujeito cujo

centro era o ego, um “ego-sujeito-pleno”, forma que defino aproximada à do sujeito

considerado pelo jurídico, evidente e responsável pelo seu dizer, sem falhas, sem levar

em consideração o sujeito clivado pelo inconsciente. Conforme o autor, “o algo que

falha” na elaboração anterior deve-se ao fato

de que o non-sens do inconsciente, em que a interpelação

encontra onde se agarrar, nunca é inteiramente recoberto nem

obstruído pela evidência do sujeito-centro-sentido que é seu

produto, porque o tempo da produção e o do produto não são

sucessivos como para o mito platônico, mas estão inscritos na

simultaneidade de um batimento, de uma “pulsação” pela qual o

non-sens inconsciente não para de voltar no sujeito e no sentido

que nele pretende se instalar (ibid., p. 276).

A partir da formulação de Lacan de que “só há causa daquilo que falha”,

Pêcheux (ibid.) legitima a importância do inconsciente na teoria materialista do discurso

e do seu papel na compreensão dos processos de interpelação e de identificação

determinados ideologicamente no sujeito. Dessa forma, o autor considera que “(...) os

traços inconscientes do significante não são jamais ‘apagados’ ou ‘esquecidos’, mas

trabalham, sem se deslocar, na pulsação sentido/non-sens do sujeito dividido” (ibid., p.

276-277).

Creio que considerar que o sujeito está submetido a uma falha é também

considerar que a interpelação ideológica também está, o que possibilita que o sujeito

esteja/seja mobilizado por diferentes formações ideológicas, contraditórias ou não,

através de rupturas e falhas que as constituem. Pela formulação de Lacan, o gesto de

Pêcheux (ibid.) permite realizar uma reflexão sobre as desestabilizações e as

transformações que as falhas que provocam e determinam os diferentes processos de

interpelação e de identificação.

A partir dessas questões considero que mesmo que haja uma submissão do

sujeito às estabilizações realizadas pelo Estado, através das gestões realizadas pelo

Jurídico e pela Língua na administração das subjetividades, “a possibilidade de revolta

se sustenta na existência de uma divisão do sujeito, inscrita no simbólico” (ibid., 2009,

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p. 279), o que permite que haja “causa naquilo que falha”, o espaço para o surgimento

de sentidos que escapem a essa estabilização levada a cabo pelo Estado.

A discussão aqui realizada sobre o trabalho do Estado na administração de

cultura e de sua vinculação com nação – processo esse que acirrou o movimento

segundo o qual cultura passa a significar como civilização – seguiu o movimento de um

duplo reconhecimento. Começou por uma forte necessidade de abordar, talvez com

excessivo detalhamento, em seus vários aspectos, o papel do Estado no que se refere aos

processos de homogenização dos que precisou para funcionar e, posteriormente, foi

passando para o segundo reconhecimento: aquele segundo o qual os processos de

interpelação falham, o jogo ou a luta do político faz surgir outros sentidos e outros

sujeitos (em outras posições), e a heterogeneidade aflora e estilhaça o efeito de

homogenização – apesar, poderia acrescentar, da eficácia dos rituais instalados pela

máquina do Estado.

Cabe observar que, no caso da língua espanhola, esta discussão se faz

especialmente necessária pelo fato de se tratar de uma língua nacional e oficial (em

muitos casos em relação de co-oficialidade com outra ou outras) em vários Estados, fato

que leva a realizar o reconhecimento, no real, do diverso ou do heterogêneo, habitado

irremediavelmente pela alteridade. Cabe, no caso, citar um fragmento do trabalho de

Celada (2002, p. 160), segundo quem:

Essa língua espanhola, cuja “homogeneidade” é efeito do

processo de colonização, está clivada, em vários sentidos, por

processos históricos que trabalham sua heterogeneidade, que

talham nessa língua diversos “pontos de disjunção” – (...) essa

observação que Orlandi57

formula para distinguir o português

brasileiro e o português de Portugal.

E eu poderia acrescentar: clivada pelos diversos processos de gramatização (AUROUX,

1992) vinculados aos diversos estados nacionais e todos eles, cada um com sua

especificidade, numa forte filiação com a memória de colonização.

Passo agora ao terceiro item deste capítulo, onde apresento – a partir, sobretudo,

da discussão realizada por Eagleton (2011) – ressignificações que afetam cultura na

história.

57 ORLANDI, E. “A língua brasileira”. In.: Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas: Unicamp, nº

23, p. 29-36, 1994.

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No período posterior ao da formação dos Estados modernos, segundo Cevasco

(2008, p. 10), quando se constitui sua consolidação, surge a concepção de cultura

enquanto crítica ao funcionamento deste Estado. A transição social provocada pela

Revolução Industrial – primeiro no Reino Unido, depois na Europa – e o fortalecimento

do imperialismo dos países europeus ao colonizar e explorar territórios pelo planeta, na

consolidação do capitalismo na transição do Moderno ao Contemporâneo, levou à

mudança da concepção que estabelecia a relação civilização-cultura. Conforme a

autora, mudanças radicais na configuração das sociedades urbanas europeias durante o

século XIX e as contradições geradas por essa mudança levaram ao afastamento de tal

par: cultura, que antes remetia ao “treinamento de faculdades mentais”, passa a abarcar

os sentidos de um “termo que enfeixa uma reação e uma crítica – em nome dos valores

humanos – à sociedade em processo acelerado de transformação” (ibid., p. 10).

Essa mudança em relação à série de sentidos que se vincula ao termo cultura

será discutida, primeiro abordando o conceito de cultura como modo de vida

característico e, posteriormente, como prática artística (EAGLETON, 2011).

2.3. A dissociação entre cultura e civilização

A dissociação da sinonímia estabelecida entre cultura e civilização deveu-se ao

fato de que civilização adquiriu uma conotação relacionada ao modo de vida burguês

europeu e fortemente associada ao imperialismo empreendido pelas nações europeias na

África e Ásia, em contraposição ao modo de vida existente nestas territorialidades.

Eagleton (2011) considera como fundamental nessa mudança a crítica realizada pelos

liberais a este modelo econômico, baseado na exploração e submissão de povos que

possuíam modos de vida distintos aos dos europeus. Na argumentação a favor dessa

prática por parte dos que apoiavam esse modelo político e econômico estava, como

observa o autor, a defesa do nacionalismo: “a ‘civilização’ minimizava as diferenças

nacionais, ao passo que a ‘cultura’ as realçava” (ibid., p. 20).

Nesta transição, era necessário, segundo o estudioso, outro termo para designar e

caracterizar “como a vida social deveria ser em vez de como era” (ibid., p. 22, grifos

meus). A partir do idealismo alemão, o termo culture, do francês – este fortemente

associado à civilização, com sentidos que remetiam ao convívio em sociedade, ao

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“espírito cordial”, às “maneiras agradáveis” – foi ressignificado na forma Kultur da

língua alemã. Nesta ressignificação, cultura passou a ser considerada “algo inteiramente

mais solene, espiritual, crítico e de altos princípios” (ibid.).

A Kulturkritik alemã, segundo a observação realizada por Eagleton a partir dos

estudos de Raymond Williams, rompe a associação de cultura e civilização e estabelece

uma atitude crítica em relação à última. Assim, explicita Eagleton (ibid.), civilização, no

reforço da distinção estabelecida em relação ao seu antigo par, passa a ser associada a

termos como “abstrata, alienada, fragmentada, mecanicista, utilitária, escrava de uma

crença obtusa no progresso material” (EAGLETON, 2011, p. 23); e cultura passa a ser

associada ao holístico, “orgânica, sensível, autotélica, recordável”, numa construção que

se propõe a ser contraponto e crítica à civilização, mas que a considerava como algo a

ser salvo – isto é, ressignificado mas não destruído. Ainda conforme esse autor (ibid.), a

“civilização era no seu todo burguesa, enquanto a cultura era ao mesmo tempo

aristocrática e populista”, assumindo um dos significados que atualmente se lhe

atribuem: o de modo de vida característico.

A concepção de cultura como modo de vida característico indica um movimento

de desconstrução da série de sentidos que foi determinante na configuração do Estado

moderno. Conforme Eagleton, que toma como base reflexões de Von Herder58

, ao

estabelecer que há diferenças e alternativas no modelo de civilização em funcionamento

nos Estados nacionais, que universalizavam ou naturalizavam um modo de vida que na

verdade era de poucos, a nova concepção estabelecia a possibilidade de considerar “uma

diversidade de formas de vida específicas, cada uma com suas leis evolutivas próprias e

peculiares” (Von Herder (1968) apud EAGLETON, 2011, p. 23). Observo ainda com

base nessas formulações que tal acontecimento instaurará uma série de sentidos no

funcionamento da memória discursiva que dará condições a movimentos de valorização

de formas de vida específicas futuramente, tais como o feminismo, o ativismo negro e o

gay. Isto entra em relação com a seguinte colocação de Eagleton (2011.):

A origem da ideia de cultura como modo de vida característico,

então, está estreitamente ligada a um pendor romântico

anticolonialista por sociedades “exóticas” subjugadas. O

exotismo ressurgirá no século XX nos aspectos primitivistas do

58 VON HERDER, J. G. Reflections on the Philosophy of the History of Mankinf. 1784-91. Chicago,

1968: p. 49.

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modernismo, um primitivismo que segue de mãos dadas com o

crescimento da moderna antropologia cultural. Ele aflorará bem

mais tarde, dessa vez numa roupagem pós-moderna, numa

romantização da cultura popular, que agora assume o papel

expressivo, espontâneo e quase utópico que tinham

desempenhado anteriormente as culturas “primitivas” (ibid., p.

25).

Conforme esse mesmo estudioso (ibid.), na consolidação da nova concepção de

cultura estabelece-se uma quase oposição entre cultura-civilização. Cultura se relaciona

com o exótico, o particular, o tribal, porém deslocada e mobilizada somente quando se

trata de sociedades “selvagens” e não de sociedades “civilizadas”. Para os críticos

românticos, esta concepção coloca-se também como uma representação idealizada em

relação à sociedade daquele momento.

Nesta nova configuração que estabelece, de fato, a oposição entre cultura como

orgânica (pensando na série mais antiga, que ligava o termo a “natureza”) e cultura

como civilidade (pensando na sinonímia entre cultura e civilização), conforme Eagleton

(ibid.), instaura-se um jogo entre fato e valor: “fato”, no sentido de que a nova

concepção é uma categorização de formas de vida já existentes; “valor”, porque se

considera uma tradição, justamente, “de valores” reconhecida pelo Estado naquele

momento. Será tal fusão do descritivo (cultura como orgânica) e do normativo (cultura

como civilidade) a que, segundo Eagleton (ibid.), em filiação tanto com ‘civilização’

quanto com o sentido universalista de ‘cultura’, despontará na nossa própria época sob a

roupagem de relativismo cultural” (ibid., p. 26).

Na trajetória de opor-se à homogeneização de hábitos, sob o caráter da tradição,

a concepção de cultura como modo de vida característico tornou-se tão específica que

incorreu em uma radicalização de identidades, em uma consideração de pluralidades de

modos de vida, cada um deles sob a representação de uma identidade fechada e

homogênea. Para Eagleton (ibid.), tal configuração deu bases à individualização de

diversas formas de vida, incorrendo em um pluralismo que contribuiu à multiplicação

de identidades – em uma banalização que levaria a considerar a valorização de uma

diversidade de hábitos que caracterizariam formas de cultura, mas não culturas

propriamente ditas. A partir desse novo lugar, surgem termos relacionados a esta

concepção que põem em relevo sentidos contraditórios em relação ao movimento que

havia vinculado a cultura a uma nação.

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É importante observar, a partir de formulações de Eagleton (ibid.), que a

concepção de cultura como modo de vida característico deu bases a outros termos que

hoje possuem forte vinculação com esse termo, como hibridização cultural e pluralismo

cultural. Em relação a esses, por exemplo, considero que se o primeiro conceito

pressupõe pureza, uma cultura original fechada que se hibridiza ao entrar em contato

com outras, o segundo pressupõe “identidade”, e não “cultura”, pois pensar num

“pluralismo cultural” implicaria colocar em relação uma grande diversidade de

identidades distintas, considerando-as cada uma delas monolíticas, homogêneas e

particulares.

Ao apresentar outro olhar, porém complementar, sobre a virada semântica de

cultura como modo de vida característico, Bauman (2012, p. 55) recorda que o

processo de homogeneização empreendido pela formação dos Estados modernos foi

gerido pela elite como processo de dominação e de alienação social sobre as massas e

possuía como propósito enfraquecer ou romper “o controle sob o qual as ‘comunidades’

(tradições, costumes, dialetos, calendários, lealdades locais) mantinham os potenciais

patriotas da nação una e indivisível”. A imposição de um modo de vida único –

continua o autor (ibid.) – sobre os particularismos da sociedade nacional, nesses

Estados, levou a processos de desmantelamento e desempoderamento dos poderes

intermediários, enfraquecendo “qualquer unidade menor que o Estado-nação”.

Porém, esse processo levado a cabo pelo Estado-nação não foi de todo exitoso e

o resultado decorrente foi a fragmentação do imaginário de tal unidade. Bauman (2012),

citando Taylor59

considera que o Estado-nação não pôde assegurar, por muito tempo, a

ilusão de unidade e de igualdade de condições dentre os diferentes membros da

sociedade, falindo como fonte de “escolhas significativas quanto ao modo de vida”;

ademais, acrescenta Bauman (ibid., p. 56):

(...) [o] nacionalismo, despido de seu alicerce no Estado, perdeu

a autoridade sem a qual a abolição dos direitos individuais de

escolha não seria viável nem aceitável; e de que, no vácuo

resultante, as ‘minorias em luta’ é que agora são vistas como a

segunda linha de trincheiras, onde a ‘escolha significativa’ pode

ser protegida da extinção; agora se espera que elas tenham êxito

na tarefa que o Estado-nação definitivamente deixou de realizar.

59 Charles Taylor, Can liberalism be communitarian?, Helotes, Texas: Critical Review, v. 8, nº2, 1994.

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A concepção de cultura como modo de vida característico adveio, segundo

Bauman (ibid.), da impossibilidade do Estado-nação construir “a clareza e a segurança

da existência” humana característica da Idade Média, ilusão que em tal época era

apoiada no transcendentalismo e que passou a ser sustentada, na Idade Moderna, como

algo a ser proporcionado pelo antropocentrismo, com o homem, dotado de razão, com

as rédeas de sua vida nas mãos. Conforme o autor (ibid.), a esperança de tal sentimento

manteve-se na configuração da unidade da organização social superior e supralocal da

sociedade; entretanto, a não correspondência entre a esperança de liberdade individual e

o papel exercido pelo Estado na mediação dos diferentes conflitos e interesses

constitutivos da sociedade foram determinantes para o estabelecimento de uma

mudança.

Considerando esse contexto, o Estado-nação, segundo Bauman (ibid., p. 57),

mediado por relações econômicas de mercado advindas dos processos mercantis do

recém-estabelecido capitalismo (processo gerado pelo imperialismo empreendido pelas

nações europeias e mediado por relações de poder geridas pela elite na gestão das

massas) foi o “incubador de uma sociedade moderna governada (...) pela diversidade de

interesses de mercado”. Ainda segundo Bauman:

(...) as tão desprezadas comunidades de origem, locais e

necessariamente menos importantes que o Estado-nação –

descritas pela propaganda modernizante como paroquiais,

atrasadas, dominadas pelo preconceito, opressivas e absurdas, e

transformadas em alvos de cruzadas culturais organizadas em

nome das ‘escolhas significativas’ –, é que são vistas com

esperança como executoras confiáveis dessa racionalização,

desaleatorização, saturação de significados das escolhas

humanas que o Estado-nação e a cultura nacional

abominavelmente deixaram de promover (ibid., p. 58).

Neste movimento descrito pelo estudioso surge, em contraposição ao

nacionalismo e a cultura do Estado-nação, o comunitarismo, que se contrapunha e se

colocava de forma independente frente ao Estado e à “cultura nacional”. Em seu cerne

há a esperança a que Bauman (ibid.) anteriormente se referiu e que o Estado-nação não

conseguiu realizar: a da liberdade individual. Segundo o autor (ibid., p. 60), estaria

nesse processo a recuperação e a valorização de uma identidade, local e particular e por

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isso mais próxima ao sujeito, que reconheceria o seu modo de vida característico, o que

lhe daria condições para exercer sua liberdade criativa; assim, não estariam mais o

Estado-nação nem as elites gerenciando a vida desses sujeitos.

Conforme Bauman (2012), a proclamação de cultura como sistema através da

promoção do Estado-nacional configurava-se em “uma totalidade encerrada em si

mesma” (ibid., p. 59), em um processo de eliminação de hábitos e costumes que não

condiziam com a cultura do Estado-nação, falhando na promoção da liberdade

individual como valor universal. O surgimento de um comunitarismo que estabeleceu

cultura como modo de vida característico, entretanto, não foi determinante para

instaurar essa liberdade; como observa o estudioso:

O projeto da cultura nacional e os projetos comunitaristas são

unânimes quanto à inviabilidade da solução alternativa: a de

tornar a liberdade e a autoafirmação realmente universais,

fornecendo a cada indivíduo os recursos necessários e a

autoconfiança que os acompanha, tornando redundante a

compensação [pelo desarraigamento dos indivíduos produzido

pelo mercado] (ibid., p. 61).

Não somente o comunitarismo não conseguiu corresponder ao anseio da

liberdade da autoafirmação como também não rompeu com o conceito de totalidade e

de homogeneização inerente à concepção de cultura, sentido que se filia a cultura

pensada como civilização. Cada comunidade cultural atuou como uma coerção sobre o

sujeito, na oposição construída entre os diferentes tipos de cultura: o comunitarismo,

diz Bauman (ibid., p. 63), “[t]em a ver com o cerceamento da livre escolha, com a

promoção da preferência por uma escolha cultural e a protelação de todas as outras –

com vigilância e censura estritas”. Na pluralização estabelecida na comparação e na

oposição entre diferentes culturas, considera-se cada uma delas como uma totalidade

fechada, sem relação uma com as outras – e, nessa observação, Bauman (2012) se

aproxima de Eagleton (2011) quando reflete sobre o perigo das identidades

pulverizadas. Bauman (ibid., p. 63), ademais, crê que há “todas as razões para se ter a

expectativa de que as comunidades empurrem sua intolerância cultural até limites que o

menos tolerante dos Estados-nações dificilmente atingiu”.

Para este mesmo autor (2012), cultura como modo de vida característico (ou

comunitarismo, ou comunidade cultural) por estar mais próxima ao sujeito, é uma série

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de sentidos que funciona de modo mais coercitivo que cultura como civilização, pois

participa do dia a dia do sujeito, de sua rotina, do que lhe é mais familiar. A

comunidade cultural – afirma o autor (ibid., p. 64) – utiliza-se de processos de

interpelação e de submissão que se constituem em uma coerção cultural, mais “dolorosa

por ser vivenciada”, “vivida” como tal. Assim, a coerção empreendida pelo

comunitarismo é mais forte do que a realizada pelo Estado-nação, não somente por estar

mais próxima do sujeito, mas também por ser mais débil, por não estar amparada em um

aparato institucional. Conforme Bauman (ibid., p. 64):

(...) [a comunidade cultural] [s]ó pode sobreviver à custa da

liberdade de escolha de seus membros. Não pode perpetuar-se

sem vigilância estrita, exercícios de disciplina e penalidades

severas para qualquer desvio em relação às normas. É, assim,

não tanto “pós-moderna” mas “anti-moderna”: propõe

reproduzir, de forma ainda mais severa e impiedosa, todos os

excessos mais sinistros e odiosos das cruzadas culturais contra a

ambivalência associadas ao processo de construção nacional,

enquanto milita contra a autoafirmação e a responsabilidade

individual, também produtos da revolução moderna, que

costumavam contrabalançar e amortecer as pressões

homogeneizantes.

Detive-me, especialmente, nesta série de observações sobre o comunitarismo

porque esta concepção permitiu o surgimento de dois termos fortemente vinculados,

hoje, ao conceito de cultura: multiculturalismo e multicomunitarismo. O primeiro,

segundo Bauman (ibid., p. 65), abarca a possibilidade de convivência de múltiplas

manifestações culturais, sendo a diversidade “universalmente enriquecedora”. O

segundo termo, mais restrito, reforça o caráter particular de cada cultura e considera os

valores universais como fator enfraquecedor desse caráter, ao empobrecer a identidade

característica de cada cultura; neste caso, o comunitarismo promove o fechamento em si

mesmo, o que gera como resultado a “intolerância e separação social e cultural” (ibid.).

Entretanto, tanto multiculturalismo quanto multicomunitarismo, conforme

Bauman (ibid., p. 66), “são duas diferentes estratégias para enfrentar uma situação do

mesmo modo diagnosticada: a copresença de muitas culturas numa mesma sociedade”.

As duas formas concordariam, uma mais explicitamente que a outra, com uma visão

“totalista” e “sistêmica” de cultura – se diferem no sentido de que uma aceita a relação

entre as diversas culturas na diversidade e a outra a rejeita. As duas concepções teriam

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dificuldades em solucionar as “diferenças” e em estabelecer um consenso entre elas na

atual configuração de identidades presentes na sociedade, com o tráfego entre fronteiras

limitado, controlado ou interditado, com posições fortemente marcadas entre o “dentro”

e o “fora” de cada cultura. Atualmente, conforme Bauman (ibid., p. 66):

A característica mais preeminente da vida contemporânea é a

variedade cultural das sociedades, e não a variedade de culturas

numa sociedade: aceitar ou rejeitar uma forma cultural não é

mais algo negociável (se é que já foi); não exige a aceitação ou

rejeição de todo o estoque nem significa uma ‘conversão

cultural’. Mesmo que no passado as culturas fossem sistemas

completos, em que todas as unidades eram fundamentais e

indispensáveis para a sobrevivência de todas as outras, com

certeza elas deixaram de ser assim. A fragmentação afetou todos

os campos da vida, e a cultura não é exceção.

O autor (ibid.), a partir de Hall60

, considera que uma compreensão “discursiva”

de identidades “consegue apreender o verdadeiro caráter dos processos de identidade

contemporâneos”, em oposição a uma compreensão naturalista que considere

identidade cultural como algo fechado e natural, compartilhada de igual modo por todos

os sujeitos que com ela se identifiquem. Uma compreensão discursiva de identidade, de

acordo ainda com esse autor, considera esta última como uma construção histórica,

sempre em processo, nunca inacabado, “sempre ‘sendo feito’” (HALL (1996) apud

BAUMAN, 2012, p. 66).

Após as considerações sobre cultura como modo de vida característico,

apresento, a partir de Eagleton (2011), quem o considera como o mais restritivo, um

quarto deslocamento ou ressignificação de cultura na história. Trata-se da concepção de

cultura como criação artística, que passa a ser um sentido decorrente desse processo

transformador do termo, que se associa às formas de manifestação artística, sejam elas

das artes plásticas, da literatura e da música.

Conforme Eagleton (ibid., p. 29), tal sentido pode ser tomado tanto de forma

mais abrangente, para designar uma especialização das artes ou de uma atividade

intelectual em geral, vinculada às áreas de saber das Humanidades; ou mais restritiva,

considerando-se somente atividades tomadas como criativas ou “imaginativas”, por

60 Stuart Hall, “Who needs identity?”, in Stuart Hall e Paul Du Gay (orgs.), Questions of Cultural

Identity, Londres, Sage, 1996, p.3-4.

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exemplo a “Música, a Pintura e a Literatura”. Considero a forma abrangente com maior

capacidade de descristalizar os sentidos mais estabilizados de cultura, como os que se

vinculam a nação, por exemplo; chamar a alguém de culto61

, observa (ibid.), atualmente

refere-se a concepção mais restritiva, o que considero menos descristalizadora sobre os

sentidos mais estabilizados de cultura, mais vinculada aos bens de produção e

despolitizada em relação à história.

O autor critica o empobrecimento e a especificidade instaurados por esta última

concepção de cultura, ao especializar a criatividade, determinando esta última como

algo específico do âmbito da arte – sem relação com outras práticas e atividades

humanas. Cabe lembrar, conforme Eagleton (ibid.), que a prática artística é realizada

por poucos sujeitos e restringir a cultura somente a algo específico de um grupo instala

duas questões: em primeiro lugar, a de significar “as artes” como único âmbito no qual

há cultura, tornando esta elitista e sectária, desconsiderando outras práticas culturais

populares ou engajadas; em segundo lugar, ao atribuir uma significação social às artes,

nota-se a sua impossibilidade de representar o divino ou a felicidade a serviço da

humanidade, o que levou que fosse adotada, no pós-modernismo, uma certa

independência que livrasse as artes de “profundidade” ou da obrigação de explicar o

mundo, o que tornou-as frágeis frente ao político e às questões sociais e econômicas.

Cultura como prática artística, conforme Eagleton (ibid.), retoma o embate

entre o universal e o individual presentes nos outros sentidos de cultura. Segundo esse

autor, “o artefato estético foi a outra grande solução da modernidade para um de seus

mais renitentes problemas: a muito discutida relação entre o individual e o universal”

(ibid. p. 93). A obra de arte apresenta-se como uma totalidade que remete aos seus

“particulares sensíveis”, obedecendo a questões estéticas que se colocam em uma

sociedade cada vez mais pautada por relações de mercado e pela falta de tempo para a

arte, conforme o autor. A cultura como prática artística, fetichizada como uma

totalidade e com um status de consumível, desemboca no que ele (ibid.) considera,

atualmente, como cultura consumista do capitalismo avançado. Como “produto”,

afirma o próprio autor (ibid., p. 96), a cultura é também modelo, “(...) a arte indicando

61 Vale lembrar que a forma derivada de colere, cultus, remete ao substantivo culto, acepção do âmbito da

religião, que não possui relação com o adjetivo culto, usado somente para denominar algo relacionado a

essa quarta série de sentidos com a qual entra em relação o termo “cultura”.

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um refinamento de vida ao qual a sociedade ela mesma deveria aspirar. A arte define

para quê vivemos, mas não é para a arte que vivemos”.

A cultura como modelo, sentido inerente à cultura como prática artística,

converte-se em símbolo do capitalismo avançado e entra em relação com a cultura

como identidade, sentidos mais significativos na Contemporaneidade, dados os

processos migratórios e a intensa circulação de saberes e de produtos culturais pelas

redes de informação e de comércio, conforme Eagleton (ibid.). Tal embate configura-se,

segundo ele (ibid.), em um “dos principais conflitos políticos de nosso tempo” e cabe

uma discussão a parte, que será a que realizarei no capítulo 3, por estar em relação com

processos econômicos e sociais que se agudizaram nos Estados nacionais, cuja

formação se deu dentro de processos de (des)colonização. Para tal, retomarei a

caracterização desse embate proposto por Eagleton (2011) e a consideração que Bhabha

(1998) e Hall (2001) realizam sobre tal embate em sociedades decorrentes de processos

de colonização; e também a discussão realizada García Canclini (1998), Hall (2001;

2012), Mignolo (2003a, b, c & 2007) e Bhabha (2007) sobre essas questões no âmbito

dos países da América Latina, especialmente os de colonização hispânica, que hoje têm

como língua oficial o espanhol.

No capítulo seguinte, discutirei especificamente distintos processos que são

constitutivos dos sentidos produzidos pela relação do sujeito com a linguagem,

materialidade esta que é constitutiva da identidade de um sujeito. Deste modo, ao tratar-

se desses processos de subjetivação, faz-se obrigatório discutir especificamente a

questão da identidade e de sua vinculação com cultura, o que será o tema do capítulo 3 a

seguir.

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Capítulo 3:

Cultura e identidade – uma discussão

Neste capítulo, sem perder de vista o objetivo de realizar um agenciamento de

saberes que ressoem no campo de formação de professores, abordarei questões que se

vinculam a um nome, a um “substantivo”, com frequência colocado em relação com o

termo cultura – ou com sua inflexão como adjetivo: cultural [-ais]. Refiro-me ao termo

identidade(es). E, neste caso, deverei submeter a discussão a uma especificação: a que

supõe relacionar a língua espanhola com o espaço que habita, um espaço de enunciação

(GUIMARAES, 2002) no qual ocupa o estatuto de língua oficial de Estados nacionais,

e numa memória de colonização.

Para introduzir o que aqui focalizarei farei uma retomada do realizado nos dois

capítulos anteriores. No primeiro, discuti que considero que as práticas de

ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras participam das condições de produção de

um processo que entendo como sendo de inscrição, por parte dos sujeitos-aprendizes, na

ordem da língua outra. Este processo está marcado por movimentos de identificação, em

que o sujeito é tomado pelo significante, e também é interpelado pelas próprias formas

de ensinar e pelos sentidos que estas, regularmente, reproduzem. O que me interessa

observar é que neste último caso, se dá prosseguimento a certos processos de

interpelação dos sujeitos-aprendizes, não opondo resistência de modo à naturalização de

sentidos, que se apresentam como evidências.

No capítulo 2 desta tese discuti com especial atenção o efeito de

homogeneização produzido pelo processo de interpelação dos indivíduos realizado ao

longo da história de constituição do(s) Estado(s) nacional(-ais), marcado por gestos e

movimentos de universalização. Nele foi trabalhada a relação desse Estado na

construção do sujeito identificado com uma língua, uma identidade e uma cultura

vinculadas a valores e tradições fortemente associados ao nacional – fato que produz,

justamente, identidades nacionais. Mesmo que esses processos respondam a um ritual

no qual sempre é possível a falha (Pêcheux, 2009), tal como vimos no capítulo 2, – e

mesmo que o sujeito possa escapar a esse ritual – ocorre, nas práticas de ensino, por

parte tanto do sujeito-professor quanto do sujeito-aprendiz, a ocupação de certas

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posições, nas quais essa interpelação opera – posições que estão relacionadas com a

forma com que estes sujeitos foram interpelados, e se constituíram62. Isto,

evidentemente, entra em relação com os processos de formação de professores de

línguas.

Por isso, nas práticas de ensino/aprendizagem, esses sujeitos, tomados pela

evidência da existência do(s) Estado(s) nacional(-is) e sejam eles brasileiros, franceses

ou peruanos, introduzem ou reproduzem certas formas de dizer que supõem

generalizações como, por exemplo, a apresentação de hábitos culturais por remissão à

nacionalidade (predicando sobre o chileno, o argentino, os peruanos, os espanhóis,

etc.); e, também, nesse mesmo sentido, reproduzem o apagamento de uma diversidade

ou de uma heterogeneidade própria de um país como Espanha ou como qualquer um

daqueles que habitam a América conhecida como de “fala espanhola”, desconhecendo

inclusive os processos de conquista e colonização respectivos.

Na segunda parte desse segundo capítulo, discuti que a associação de cultura

com uma nação e com uma identidade nacional (com uma nacionalidade) se ressignifica

na história, através de gestos de resistência que se opuseram a essa associação, dando

visibilidade à questão da identidade, pois, nesse movimento, cultura passa a se

ressignificar como modo de vida característico. Nesta última ressignificação opera a

desvinculação desse termo com relação ao Estado: se associa, então, a “formas de vida”,

o que rompe a sinonímia estabelecida com civilização; entretanto, mais adiante, cultura

não consegue se desvincular de outros movimentos de estabilização, que serão

realizados pela sua vinculação com a indústria cultural de massa e com outros sentidos

determinados pelo Mercado.

Nesse sentido, neste capítulo realizo dois movimentos. De acordo com o

primeiro, pensando especialmente em relação ao espanhol na América Latina e ao

ensino dessa língua para brasileiros, realizo um específico agenciamento de saberes com

o intuito de que passem a produzir efeitos no campo da produção de conhecimento

sobre ensino de línguas, no da formação docente e, também, no das respectivas práticas.

A partir de autores como Bhabha (2007), Mignolo (2003a) e Quijano (2000), abordarei,

no item 3.1., aspectos relativos ao discurso colonial e, no item 3.2., ao conceito de

conialidade do poder e do saber, justamente com o intuito de conhecer melhor a

62 Aqui faço uma relação com a consideração de Orlandi (2008) sobre o processo de constituição do

sujeito do discurso, do qual fiz referência em capítulos anteriores.

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constituição de identidades culturais no espaço que me ocupa – oferecendo, assim, a

devida resistência aos diversos processos de homogeneização dos quais já tratei (o

civilizatório, muito vinculado, aos de conquista e colonização e à formação dos Estados;

os referidos à atual globalização). Portanto, nesses dois itens, passarei de tratar, a partir

das considerações de Bhabha (ibid.), o discurso colonial como aparato de poder para

abordar a colonialidade do poder. Como um dispositivo constituído na história, esta

(QUIJANO, 2000; MIGNOLO, 2003a), a meu ver, está estruturada discursivamente por

um discurso colonial cujo funcionamento, conforme a definição do próprio Bhabha

(ibid.), dá sustentação e mobilidade para esse dispositivo, que está diretamente

relacionado às questões de identidade e de alteridade em espaços que passaram por

processos de colonização. Apesar de que o gesto de construir uma nação implica a

construção de uma autonomia e de uma ruptura com os processos de colonização,

conforme disse anteriormente, a colonialidade do poder está diretamente relacionada

com o funcionamento específico de uma memória relacionada a esses processos, o que

produz uma heterogeneidade: as identidades, mediadas pelos sentidos decorrentes desse

dispositivo, se vinculam ao heterogêneo.

De acordo com o segundo movimento, no item 3.3., abordarei, de modo

sucinto,– a partir fundamentalmente, de García Canclini (1998) e de Rolnik (1997), e

em parte de Castells (1999),– que, após a ressignificação de cultura como modo de vida

característico, há processos que ocorrem por efeito de um forte gesto de interpelação de

indivíduos, por parte do Mercado, como poder econômico. Neste caso, trata-se da

vinculação de identidades a determinadas formas de consumo63, por modos de

estabilização que ocorrerão por efeito de um forte gesto de controle dessas identidades

por parte do poder econômico, realizado através de diversos processos determinados,

fundamentalmente, pelo atual processo de globalização – que se dá a partir dos anos 90

– na produção de identidades associadas às formas de consumo. Nesse terceiro item

deste capítulo tratarei sobre a identidade na pós-modernidade, a partir da reflexão de

que o papel exercido pelo Estado nacional na conformação de uma identidade é

deslocado pelo “econômico” que, apesar de dar lugar a diferentes representações

63 Lembro que Eagleton (2011) já ressignificava cultura como prática artística vinculando-a a processos

de consumo relacionados ao Mercado.

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92

identitárias, não desloca a memória discursiva decorrente dos processos de colonização

e clivada pela colonialidade do poder.

O propósito deste capítulo é o de trazer à reflexão essas questões para fazer ruir

determinadas séries de sentido segundo as quais cultura se associa a uma identidade

nacional e, também, a uma identidade associada a formas de vida determinadas pelo

Mercado e que seria “de todos”. Dessa forma, tento apresentar insumos para melhor

compreender a enorme heterogeneidade e variedade que permeiam o espaço de

enunciação do espanhol como língua oficial, conforme se poderá ver nos lineamentos

propostos no capítulo 4. A discussão sobre essas formas de vida heterogêneas permite

um caminho, ao realizar um movimento de saída desses efeitos de homogeneização em

direção à diversidade, o que, na América Latina, não poderia ocorrer sem a discussão

dos efeitos de sentido decorrentes da colonialidade.

3.1. O discurso colonial e a construção de alteridade

A reflexão sobre a construção de alteridade pelo discurso colonial, conforme a

perspectiva de Bhabha (2007) que considera esse discurso como aparato de poder, é de

fundamental importância para a discussão que aqui realizo quando se leva em conta os

processos de subjetivação e de interpelação mediados pela formação de Estados

nacionais, vinculados a uma memória de colonização. Digo isso pelo fato de que a

cultura em espaços que passaram por tais processos exerce papel central na legitimação

e no apagamento de saberes e sentidos ao longo da história.

Apesar de que essa perspectiva de Bhabha (ibid.) esteja pautada por uma

reflexão realizada a partir de obras literárias produzidas em contextos de colonização

distintos dos ocorridos na América Latina, devido ao fato de serem mais recentes,

considero a reflexão desse autor sobre os discursos coloniais, realizada por um viés pós-

estruturalista e a partir do campo da Psicanálise, como uma perspectiva a mais para

discutir os processos de colonização nesse sub-continente. Entendo que tais processos

estabeleceram sentidos clivados pela história, constitutivos da relação entre o

colonizador e o colonizado que, por mais que haja ressignificado a relação entre eles,

uma série de efeitos de pré-construído (HENRY, 1990) mediam saberes e valores

culturais que hoje são tomados como naturalizados, como evidências.

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93

Bhabha (ibid.), na descrição que realiza sobre o discurso colonial, considera que

um dos elementos estruturantes da alteridade construída a partir desse discurso é a

categoria de raça. Conforme discutirei adiante neste trabalho, para Quijano (2000) e

Mignolo (2003a), essa categoria, assim como o conceito de racialidade decorrente dela,

foram alguns dos balizadores da colonialidade do poder que estabeleceram as diferenças

imperial e colonial nas sociedades que surgiram dos processos de colonização. Para

Bhabha (2007), a identidade colonial, assim como os sentidos que decorreram dela, são

afetados diretamente pela questão da raça, sendo essa constitutiva da alteridade que

emerge da relação entre os diferentes sujeitos no contexto colonial. Essa alteridade,

ainda segundo o autor (ibid.), é determinante no estabelecimento de uma diferença, o

que interpreto como algo que vai de encontro ao imaginário construído pelo Estado

nacional de que os sujeitos sejam constituídos por identidades estanques, fechadas e

isoladas. Para esse autor:

Não é o Eu colonialista nem o Outro colonizado, mas a

perturbadora distância entre os dois que constitui a figura da

alteridade colonial – o artifício do homem branco inscrito no

corpo do homem negro. É em relação a esse objeto impossível

que emerge o problema liminar da identidade colonial e suas

vicissitudes (ibid., p. 76).

Segundo Bhabha (ibid.), o discurso colonial realiza uma articulação das formas

da diferença, sendo essas de ordem racial e sexual, o que é determinante para a

construção do sujeito colonial do discurso, assim como para o exercício do poder

colonial64. Segundo esse autor, tal articulação torna-se crucial pelo fato de que “o corpo

está sempre simultaneamente (mesmo que de modo conflituoso) inscrito tanto na

economia do prazer e do desejo como na economia do discurso, da dominação e do

poder” (ibid., p. 107). Para Bhabha (ibid., p. 107), “há um espaço teórico e um lugar

político para tal articulação – no sentido em que a palavra nega uma identidade

‘original’ ou uma ‘singularidade’ aos objetos da diferença – sexual ou racial” (ibid.), o

64 A isso se vincula o que Pêcheux (2008, p. 30) designa como “técnicas de gestão social dos indivíduos”.

Para esse autor, ao lado da ocorrência de um número de técnicas materiais que serviriam para produzir

transformações “físicas ou biofísicas” que visassem tirar partido dos processos naturais, ao

instrumentalizá-los para usufruto, haveria a “multiplicidade das ‘técnicas’ de gestão social dos indivíduos:

marcá-los, identificá-los,classificá-los, compará-los, colocá-los em ordem, em colunas, em tabelas, reuni-

los e separá-los segundo critérios definidos, a fim de colocá-los no trabalho, a fim de instruí-los, de fazê-

los sonhar ou delirar, de protegê-los e de vigiá-los, de leva-los à guerra e de lhes fazer filhos...” (ibid.).

Page 94: Cultura enquanto objeto discursivo - considerações e ... · JORGE RODRIGUES DE SOUZA JÚNIOR Cultura enquanto objeto discursivo - considerações e lineamentos sobre seu papel em

94

que classifico como a presença de uma contradição em relação ao papel do Estado. O

discurso colonial, como articulação, realiza um papel fundamental ao estabelecer uma

ligação de “uma série de diferenças e discriminações que embasam as práticas

discursivas e políticas de hierarquização racial e cultural” (ibid.), o que gera uma

administração que, segundo Bhabha (ibid., p. 107), exige “um cálculo específico e

estratégico de seus efeitos”.

Como aparato de poder, conforme Bhabha (ibid.), o discurso colonial é

dependente de uma “fixidez” para construir ideologicamente a alteridade entre os

sujeitos. Essa fixidez, de acordo com o autor, para dar conta das diferentes contradições

da colonialidade, “como signo da diferença cultural/histórica/racial no discurso do

colonialismo, é um modo de representação paradoxal: conota rigidez e ordem imutável

como também desordem, degeneração e repetição demoníaca” (ibid., p. 105). Para

corresponder ao funcionamento do discurso colonial, essa fixidez possui como principal

estratégia discursiva o estereótipo, que Bhabha define como “uma forma de

conhecimento e identificação que vacila entre o que está sempre ‘no lugar’, já

conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido” (ibid.). Para esse autor

É esse processo de ambivalência, central para o estereótipo

[colonial] (...) [que dá a ele] sua validade: (...) garante sua

repetibilidade em conjunturas históricas e discursivas mutantes;

embasa suas estratégias de individuação e marginalização;

produz aquele efeito de verdade probabilística e predictabilidade

que, para o estereótipo, deve sempre estar em excesso do que

pode ser provado empiricamente ou explicado logicamente”

(ibid., p. 105-106).

Diante do funcionamento desse discurso colonial, qualquer forma de

intervenção, segundo Bhabha (ibid.), não se realizaria em torno de um reconhecimento

de imagens que seriam positivas ou negativas, mas sim por meio de uma compreensão

“dos processos de subjetivação tornados passíveis (e plausíveis) através do discurso do

estereótipo” (ibid., p. 106). Segundo o autor,

Julgar a imagem estereotipada com base em uma normatividade

política prévia é descartá-la, não deslocá-la, o que só é possível

ao se lidar com sua eficácia, com o repertório de posições de

poder e resistência, dominação e dependência, que constrói o

sujeito da identificação colonial (tanto colonizador como

colonizado). (...) Para compreender a produtividade do poder

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95

colonial é crucial construir o seu regime de verdade e não

submeter suas representações a um julgamento normatizante. Só

então torna-se possível compreender a ambivalência produtiva

do objeto do discurso colonial – aquela ‘alteridade’ que é ao

mesmo tempo um objeto de desejo e escárnio, uma articulação

da diferença contida dentro da fantasia da origem e da

identidade.

O funcionamento discursivo do discurso colonial como aparato de poder, para

Bhabha (ibid.), também se apoia no reconhecimento, dada a impossibilidade de

apagamento, e também no repúdio das diferenças raciais, culturais e históricas. Desse

modo, tal funcionamento cria “um espaço para ‘povos sujeitos’ através da produção de

conhecimentos em termos dos quais se exerce vigilância e se estimula uma forma

complexa de prazer/desprazer” (ibid., p. 111). Suas estratégias são legitimadas, segundo

o autor, por um funcionamento que produz conhecimentos tanto do colonizador quanto

do colonizado, conhecimentos que são estereotipados “mas avaliados antiteticamente”

(ibid.). No sistema político estabelecido na colônia, o discurso colonial tem, como

objetivo, “apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados com base

na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de

administração e instrução” (ibid.). Segundo meu ponto de vista, isso gerou um efeito de

pré-construído que permitiu, apesar das contradições e dos diferentes jogos de poder e

de “posicionalidades deslizantes de seus sujeitos (por exemplo, efeitos de classe,

gênero, ideologia, formações sociais diferentes, sistemas diversos de colonização, e

assim por diante)” (ibid.), a existência de uma forma de poder que, “ao delimitar uma

‘nação sujeita’, apropria, dirige e domina suas várias esferas de atividade” (ibid.). Esse

jogo é crucial para a manutenção das relações de poder e para a produção de uma

realidade social em que o colonizado é, ao mesmo tempo, “um ‘outro’ e ainda assim

inteiramente apreensível e visível” (ibid., p. 111). O discurso colonial, dessa forma,

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96

“lembra uma forma de narrativa pela qual a produtividade e a circulação de sujeitos e

signos estão agregadas em uma totalidade reformada e reconhecível”, empregando um

sistema de representação tomado, segundo o autor (ibid.), como um regime de verdade.

Como exemplo do efeito do discurso colonial como aparato de poder, Bhabha

(ibid.) cita a reflexão que Edward Said65 realiza sobre os discursos europeus que

constituem o Oriente como uma zona homogênea, o que esse último autor denomina de

Orientalismo. O Orientalismo está estruturado por um feixe de discursos que são

elaborados por diversas estratégias, como a repetição, o emprego de tempos verbais

atemporais e o uso da cópula “é”. Conforme Bhabha (ibid., p. 112), Said considera que

“a cópula parece ser o ponto no qual o racionalismo ocidental preserva as fronteiras do

sentido para si próprio” (ibid., p. 112). Este fato, segundo o próprio Said, não impede a

existência de uma polaridade ou divisão nesses discursos que constituem o

Orientalismo: segundo observa Bhabha, por um lado, é “um tópico de aprendizado,

descoberta, prática”; por outro, “é um território de sonhos, imagens, fantasias, mitos,

obsessões e requisitos” (ibid.). Além disso, para Bhabha (ibid.) a partir de Said, o

Orientalismo

é um sistema estático de “essencialismo sincrônico”, um

conhecimento de “significantes de estabilidade” como o

lexicográfico e o enciclopédico. No entanto, esse território está

continuadamente sob ameaça por parte de formas diacrônicas de

história e narrativa, signos de instabilidade. E, finalmente, dá-se

a essa linha de pensamento uma forma análoga à da construção

do sonho quando Said se refere explicitamente a uma distinção

entre “uma positividade inconsciente”, que ele denomina

orientalismo latente, e a visões e saberes estabelecidos sobre o

Oriente que ele chama de orientalismo manifesto (ibid., p. 112).

O trabalho de Said, considerando o que expus em nota anterior a partir das

observações de Grigoletto (2002, p. 76), apresenta uma reflexão sobre a importância do

discurso na representação da alteridade nos processos de colonização. A partir da

65 SAID, E. Orientalism. London: Routledge & Kegan Paul, 1978. Para Grigoletto (2002), o trabalho de

Said apresenta “o orientalismo como uma categoria abrangente demais, à qual aparentemente todos os

discursos (político, filosófico, outros gêneros do discurso científico etc.) estariam subsumidos” (idem, p.

76). Para essa autora, a questão abordada por Said seria mais complexa, pelo fato de que “esses outros

discursos também construíram concepções sobre povos e culturas fora da Europa que exerceram

influência no projeto e discurso coloniais” (ibid.). Grigoletto considera, entretanto, a importância da

discussão do trabalho de Said pelo fato de que sua discussão ressalta “o papel crucial do discurso”.

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releitura de Said, Bhabha (2007) considera que há um elo funcional entre a fixação do

fetiche e do estereótipo no discurso colonial. Para esse autor (ibid., p.116) há tanto uma

“justificativa estrutural como uma funcional para se ler o estereótipo racial do discurso

colonial em termos de fetichismo”. Assim, o fetichismo, termo que toma de Freud,

como a recusa da diferença, é o que a psicanálise considera como “a cena repetitiva em

torno do problema da castração”, ou seja, a questão da diferença que se estabelece entre

os sexos, a falta do falo como o reconhecimento da diferença sexual, sendo que esse

reconhecimento, segundo ele, “(...) é recusado pela fixação em um objeto que mascara

aquela diferença e restaura uma presença original” (ibid.).

O elo funcional entre a fixação do fetiche e o estereótipo, segundo Bhabha

(ibid., p.116), o que ele também define mediante a expressão “o estereótipo como

fetiche”, é uma questão mais relevante na reflexão sobre o discurso colonial pois

o fetichismo é sempre um “jogo” ou vacilação entre a afirmação

arcaica de totalidade/similaridade – em termos freudianos:

“Todos os homens têm pênis”; em nossos termos: “Todos os

homens têm a mesma pele/raça/cultura” – e a ansiedade

associada com a falta e a diferença – ainda, para Freud: “Alguns

não têm pênis”; para nós: “Alguns não têm a mesma

pele/raça/cultura”. Dentro do discurso, o fetiche representa o

jogo simultâneo entre a metáfora como substituição

(mascarando a ausência e a diferença) e a metonímia (que

registra contiguamente a falta percebida).

Nas regiões colonizadas do globo, tal elo foi constitutivo na construção de

identidades, o que deu base para a formação de alteridades relacionadas aos povos

originários e aos colonizadores. Para Bhabha (ibid.), o papel do fetiche e do estereótipo

na consideração sobre as identidades no mundo colonial é de fundamental importância,

pois dão “acesso a uma ‘identidade’ baseada tanto na dominação e no prazer quanto na

ansiedade e na defesa, pois é uma fonte de crença múltipla e contraditória em seu

reconhecimento da diferença e recusa da mesma”.

A cena do fetichismo é o espaço para a repetição e a reativação da fantasia

primária do desejo por uma origem pura, sem contradições, que eu não apenas

considero que funciona na esfera singular de cada sujeito, mas também na configuração

do espaço social comum desses sujeitos (ibid.). Entretanto, essa cena não deixa de ser

contraditória, pelo fato de que a originalidade ansiada é fantasiosa, “ameaçada pelas

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diferenças de raça, cor e cultura” (ibid., p. 117), e soa como uma simplificação não por

ser uma “falsa representação de uma dada realidade” (ibid.), mas sim por ser “uma

forma presa, fixa, de representação que, ao negar o jogo da diferença (...) constitui um

problema para a representação do sujeito em significações de relações psíquicas e

sociais” (ibid.).

Sobre essas questões, a partir de Fanon66, Bhabha discute o posicionamento que

aquele autor faz sobre o sujeito no discurso estereotipado do colonialismo, e o usa como

argumento de suas considerações sobre o papel do estereótipo no discurso colonial. Sem

pretender retomar toda a discussão que esse autor realiza sobre a obra de Fanon,

considero interessante, como embasamento da discussão que estabeleço aqui sobre

cultura e sobre essa questão central do estereótipo no discurso colonial, a reflexão que

Bhabha (ibid.) toma, justamente a partir do trabalho desse autor, a respeito da negação

que ocorre sobre o reconhecimento da diferença, sendo que esta funciona a todo o

momento em situações em que o negro está submetido, tanto no corpo quanto no

imaginário:

As lendas, estórias, histórias e anedotas de uma cultura colonial

oferecem ao sujeito um “Ou/Ou” primordial. Ou ele está fixado

em uma consciência do corpo como uma atividade unicamente

negadora ou como um novo tipo de homem, uma nova espécie

(ibid. p. 117).

Para Bhabha (ibid.), a partir da discussão de Fanon, o que se nega ao sujeito

colonial, tanto como colonizador quanto como colonizado, é “aquela forma de negação”

que permitiria o reconhecimento da diferença, o que estabeleceria a “possibilidade de

diferença e circulação que liberaria o significante de pele/cultura das fixações da

tipologia racial e cultural, ou da degeneração” (ibid.). Para o negro, “sua raça se torna o

signo não-erradicável da diferença negativa nos discursos coloniais. Isto porque o

estereótipo impede a circulação e a articulação do significante de ‘raça’ a não ser em

sua fixidez enquanto racismo” (ibid.).

Nessa contradição na qual se instala o estereótipo, ao negar o jogo da diferença,

porém sem conseguir negá-lo de todo, constata-se que o estereótipo é um “modo retido,

fetichista de representação, dentro de seu campo de identificação”, o que leva Bhabha a

66 FANON, F. Black Skin, White Masks. London: Pluto Press, 1991.

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relacionar tal funcionamento ao “esquema lacaniano do imaginário” (ibid., p. 119).

Como disse anteriormente neste trabalho, ao retomar o conceito de imaginário de Lacan

para elaborar o que ele denomina de “anatomia do discurso colonial”, Bhabha (ibid.)

considera que “as duas formas de identificação associadas com o imaginário”, isto é, o

“narcisismo” e a “agressividade”, são decorrentes da não correspondência da imagem

que o sujeito constrói de si mesmo com a imagem que é construída de si pelos outros.

Essa imagem é o que permite ao sujeito postular uma diferenciação sua frente aos outros

sujeitos e objetos do mundo. Para Bhabha (ibid.) o narcisismo e a agressividade, como

formas de identificação associadas com o imaginário, são o método dominante do poder

colonial exercido “em relação ao estereótipo que, como uma forma de crença múltipla e

contraditória, reconhece a diferença e simultaneamente a recusa ou mascara” (ibid.). A

realização da completude do estereótipo, segundo o autor (ibid.), ou seja, “sua imagem

enquanto identidade”, está “sempre ameaçada pela ‘falta’”.

No ato da recusa e da fixação, o sujeito colonial é remetido de

volta ao narcisismo do imaginário e sua identificação de um ego

ideal que é branco e inteiro. Isto porque o que essas cenas

primárias67 ilustram é que olhar/ouvir/ler como lugares de

subjetificação no discurso colonial são prova da importância do

imaginário visual e auditivo para as histórias das sociedades

(ibid., p. 118).

Cabe retomar a consideração que fiz sobre o estereótipo como efeito de pré-

construído (HENRY, 1990) no discurso colonial, cujo funcionamento discursivo é “uma

forma presa, fixa, de representação que, ao negar o jogo da diferença (que a negação do

Outro permite), constitui um problema para a representação do sujeito em significações

de relações psíquicas e sociais” (Bhabha, 2007, p. 117). Como havia dito anteriormente,

ao meu ver, essa consideração está diretamente relacionada aos efeitos de

homogeneização e aos processos de universalização constitutivos realizados pelos

Estados nacionais, na história.

O estereótipo também pode ser visto como aquela forma

particular, “fixada”, do sujeito colonial que facilita as relações

coloniais e estabelece uma forma discursiva de oposição racial e

67 Discutidas por Fanon em Peles Negras, Máscaras Brancas.

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cultural em termos da qual é exercido o poder colonial (ibid., p.

121).

Creio que na operação que o Estado realiza ao objetificar uma cultura,

vinculando-a à ideia de nação, há uma memória discursiva constitutiva advinda desse

funcionamento específico de cultura, permeada pelo imaginário e baseada num

estereótipo que, ao interditar ao sujeito colonial, tanto como colonizador quanto

colonizado, “aquela forma de negação que dá acesso ao reconhecimento da diferença”

(ibid.), também permite a ele a construção de uma diferença, que por sua vez foi

constitutiva para as alteridades em jogo. Desta forma, há a evidência de uma unidade,

porém contraditória em si mesma.

Após essa discussão sobre o funcionamento do discurso colonial, passo a seguir

a discutir o dispositivo da colonialidade do poder de Quijano (2000). Antes de mais

nada, faço uma relação entre esse dispositivo e o funcionamento do discurso colonial

como aparato de poder pois considero que é base e também estrutura desse dispositivo,

pois este, por ser decorrente dos processos de colonização, produz, em seu

funcionamento, a colonialidade do saber e a diferença colonial (Mignolo, 2003a). As

clivagens decorrentes desse funcionamento legitimam e silenciam saberes e sentidos em

espaços que passaram por processos de colonização, determinantes na configuração do

que é tomado como cultura nesses lugares, discussão que será o eixo do próximo item

deste capítulo.

3.2. A colonialidade do poder

O processo histórico da formação dos países que hoje possuem o espanhol como

língua oficial na América Latina é decorrente de um processo em que as contradições

políticas partícipes dessa formação são geralmente silenciadas. Tais contradições – o

que remeto ao que Pêcheux (1990) designa como contradição histórica – não somente

são do âmbito político e do econômico, mas também estão diretamente relacionadas ao

âmbito do saber, posição que discuto a partir de alguns autores que mencionei

anteriormente.

Para tal, comparto da reflexão de Mignolo (2003a) de que as diferenças

econômicas e sociais entre os países convencionalmente chamados de ocidentais e os

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demais países do globo, instauradas pelo imperialismo decorrente dos processos de

colonização, são fruto de acontecimentos da ordem da história que ainda estão em

curso. Realizarei algumas reflexões que permitam compreender aspectos da relação

identidade/cultura vinculadas a determinados saberes, clivados pela colonialidade do

poder (QUIJANO, 1992 e 2000)68 e pelas diferenças colonial e imperial (MIGNOLO,

2003a).

Conforme Mignolo (2003a), há uma lógica, ainda em funcionamento e surgida

ao longo dos processos de colonização, que serviu em seu início para justificar a

empreitada dessa tarefa pelos países ditos “civilizados”, o Norte, em oposição ao Sul,

dois termos usados aqui não como designações de localizações geográficas, mas como

metáforas em oposição para marcar uma polaridade, sendo o Sul uma metáfora utilizada

por Souza Santos69 (1998 apud Mignolo [ibid., p. 34]) para remeter aos lugares do globo

em que a exploração e a opressão foram impostas pelo Norte, na colonização; a partir do

Norte, em direção ao Sul, esse processo de colonização moldou saberes que hoje

embasam a modernidade e que estão fundamentados em quatro ideologias. Segundo

Mignolo (ibid.), o cristianismo e as ideologias seculares advindas da Revolução

Francesa: o conservadorismo, o liberalismo e o socialismo.

De minha perspectiva, o funcionamento discursivo dessas “ideologias” – tal

como as designa Mignolo (ibid.) –, que sustentaram discursos vinculados a saberes e

poderes impostos desde o Norte, silenciou (cf. ORLANDI, 2007) saberes (e sentidos)

presentes no Sul que estavam em circulação antes da chegada dos europeus. Desta

forma, neste último espaço, a colonização gerou um sistema, contraditório e clivado,

apoiado em duas bases que se convencionou em apresentá-las como separadas: a

modernidade e a colonialidade.

Essas ideologias, detectadas por Mignolo (2003a) como sendo fundamento da

modernidade e da colonialidade, constituíram saberes que hoje estão associados a

avanços científicos e econômicos, geralmente relacionados ao bem-estar social, e que

estão associados atualmente à modernidade, sendo esses saberes fortemente vinculados

ao sistema capitalista. Tais saberes advêm de práticas produzidas graças à existência de

68 A obra de 1992, como se observará posteriormente, será discutida a partir de Mignolo (2003a).

69 El norte, el sur y la utopía. In: De la mano de Alicia. Lo social y lo político en la postmodernidad.

Bogotá: Universidad de los Andes, 1998, pp. 369-454.

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um capital decorrente da exploração econômica do Sul, acumulado durante séculos pelo

Norte ao longo da colonização, o que instala uma contradição histórica (Pêcheux, 1990)

no Sul, onde coexistem as benesses da modernidade e os problemas sociais e

econômicos advindos de diferentes colonizações. Em síntese, segundo Mignolo (ibid.),

desde o século XVI, a modernidade e a colonialidade vão juntas: “aunque los discursos

(…) pronunciados desde la perspectiva de la modernidad (…) presentan a la

colonialidad no como un fenómeno constitutivo sino derivativo” (ibid., p. 34). Para esse

autor, a modernidade nasceu como resultado dos processos coloniais levados a cabo

desde o século XVI e, portanto, necessita da colonialidade para “instalarse, construirse y

subsistir” (ibid., p: 35).

Em relação a esses temas, que são fundamentais na consideração dessas

questões, o termo que embasa a discussão empreendida por Mignolo foi cunhado por

Quijano (2000), colonialidade do poder; conforme o primeiro autor, este, como

dispositivo, é a força motriz que gera a diferença colonial e a diferença imperial,

conceitos que discuto a seguir.

A colonialidade do poder70, conforme Quijano (2000 apud MIGNOLO, ibid., p.

44-50), envolve categorias diversas que se estruturam em três diferentes conjuntos.

Antes de passar a abordá-las, considero necessário observar que tais categorias não

somente são decorrentes de processos de colonização no passado como também,

atualmente, estruturam novas formas de colonização. Se entre os séculos XVI e XVIII

ocorreu uma colonialidade baseada no imperialismo e na religião, que foi deslocando-se

aos poucos para uma colonialidade imperial (a partir do século XVIII até a segunda

metade do século XX, sob a égide de algumas nações), hoje temos um novo tipo de

colonialidade, a que Mignolo (2003a) denomina de global e que se baseia numa

“integração” entre todos os países. Castells (1999) denomina essa integração de

sociedade em rede, conforme apontei no capítulo 1, em cujo cerne a tecnologia da

informação funciona como o paradigma atual das contradições do capitalismo, o seu

novo rosto a partir do final do século XX, gerador de um funcionamento discursivo que

regula saberes e sentidos que se conhece popularmente como globalização.

70 QUIJANO, A. “Colonialidad del poder y Clasificación Social”. Journal World-Systems Research,

V1/2, pp. 342-386, 2000. Neste ponto opto por citar esse trabalho a partir da leitura feita por Mignolo

(2003a).

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A formulação de Quijano (2000 apud MIGNOLO, ibid., p. 44-50) sobre a

colonialidade do poder contempla, como acabo de antecipar, três conjuntos de

categorias. São eles: raça, trabalho e gênero/sexualidade; exploração, dominação e

conflito no mundo moderno/colonial71; e o último, composto pelo trabalho,

gênero/sexualidade, a autoridade e a subjetividade na economia capitalista. Todos esses

conjuntos foram determinantes na constituição de um trabalho de homogeneização e de

regularização da memória ao impor um padrão tomado do modelo civilizatório europeu,

sendo que tal modelo também se reafirmou nesse processo numa relação de alteridade

com as categorias que existiam nos espaços que passaram por colonização – conforme a

discussão que apresentei no capítulo 2 acerca da reflexão de Eagleton (2011) sobre as

ressignificações do termo cultura, em específico, o da sinonímia com civilização, tão

relevante na conformação dos Estados nacionais. Conforme esse processo, constituído

na história, produziu um efeito de sentido de naturalização desses padrões, houve

movimentos que opuseram resistência à regularização desses sentidos numa clara não

identificação, como diria Pêcheux (2009), e que levaram ao reconhecimento de modos

de vida característicos, que – como também vimos no segundo capítulo – produziram a

dissociação entre cultura e civilização.

O conceito de colonialidade de poder e a reflexão realizada por Mignolo

(2003a), a partir de Quijano, sobre o processo “civilizatório” imposto às colônias coloca

um ponto de inflexão a ser considerado a partir da perspectiva da AD materialista.

Considero relevante dizer que tal conceito permite analisar a força das filiações, dentro

do funcionamento de uma memória vinculada aos saberes legitimados como

civilizatórios/civilizados, que permaneceram presentes, apesar do movimento de

resistência a tais saberes – conforme discuti a partir de Eagleton (2011) no capítulo 2 –

realizado a partir de um reconhecimento de formas de saber que escapavam ao conceito

“civilizatório”, ou mesmo ocidental, de cultura. Esse último movimento de não

71

Wallerstein (1974) apud Mignolo (2003a) nomeia de sistema/mundo moderno/colonial o sistema de

trocas econômicas baseado na acumulação do capital, decorrente das relações entre o capital e o trabalho.

Sua teoria sobre esse sistema nomeia a relação desigual entre diferentes agentes (os Estados-nação), que

em concorrência disputam o capital disponível. Segundo esse autor, tal sistema teve início com o

estabelecimento das trocas comerciais promovidas pela colonização a partir do século XVI, marco do

mundo moderno. Graças ao acúmulo de capital de alguns países, houve um desencadeamento de um

sistema de trocas comerciais que hoje é global, em que todos os países estão incorporados, porém em

posições desiguais – uns modernos, outros coloniais. A obra do autor citado por Mignolo é:

WALLERSTEIN, I. The modern world-system: capitalist agriculture and the origins of the european

world-economy in the sixteenth century. New York: Academic Press, 1974.

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104

identificação com os sentidos da “civilização”, que passou pelo reconhecimento de

cultura como modos de vida característicos, trabalhou em oposição à padronização de

cultura como civilização, porém não contribuiu para fazer ruir a série de valores

culturais relacionados ao Ocidente. De todo modo, esse último movimento foi

determinante para a constituição de uma memória vinculada aos saberes locais. A

coexistência dessas duas filiações de memória instaurou uma contradição histórica (nos

termos de Pêcheux, 1990) – e que aqui relaciono ao conceito de colonialidade do poder

– que caracteriza o mundo moderno/colonial e é exemplo da força desses ideais

civilizatórios impostos pela colonização, com a prevalência da memória vinculada aos

saberes legitimados como civilizatórios/civilizados como padrão da colonialidade do

poder, sobretudo devido ao funcionamento do discurso colonial como aparato de poder,

conforme Bhabha (2007).

Após essas considerações iniciais sobre a colonialidade do poder, passo agora a

abordar os três conjuntos de categorias que esse dispositivo contempla, apresentando o

primeiro deles, composto pelas categorias de raça, trabalho e gênero/sexualidade,

conforme Mignolo (2003a). Esta última, a de gênero/sexualidade, segundo o autor, é a

mais antiga delas; tomada do relato bíblico das histórias de Adão e Eva e de Noé, que

estruturou, na civilização ocidental, a relação desigual entre os gêneros masculino e

feminino e o modelo patriarcal de família. O mito do dilúvio e o povoamento dos

continentes pelos descendentes dos filhos de Noé serviram, desde a Europa e pela

perspectiva do cristianismo ocidental – que naquele momento acreditava que o mundo

estava dividido em três continentes (África, Ásia e Europa) –, como justificativa para

estruturá-lo geopoliticamente conforme o valor de cada um desses filhos. Dessa forma,

segundo Mignolo (ibid., p. 45), a África foi considerada uma terra amaldiçoada por ter

sido povoada por descendentes do filho mais depreciável de Noé, Caim, e validou-se a

posição da Europa como hegemônica por essa ser povoada pelos descendentes de Jafet,

sendo estes dotados de valores de expansão e visão de futuro. Esse mito, conforme

Mignolo (ibid.), também serviu como base para a categoria de raça, que foi construída

desde o olhar de pensadores que viveram, diretamente ou indiretamente, a experiência

colonial. Essa categoria, até o momento vigente, surgiu com a necessidade de distinguir

as pessoas com base na religião e em um primeiro momento foi estabelecida pelo

sangue e não pela pele. A “pureza do sangue” funcionou como “distinción y

categorización racial” (ibid., p. 46), e sobre esta se assentou a construção da Europa

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moderna e que posteriormente foi substituída por índices como a cor da pele e as

características fenotípicas (QUIJANO, 2000, p. 353), que foram usadas como modo de

classificação de identidades superiores e inferiores. Segundo Quijano (ibid.), essa

mudança da categoria de raça, que começou na América Latina, foi mundialmente

imposto:

La población de todo el mundo fue clasificada, ante todo, en

identidades “raciales” y dividida entre los dominantes/superiores

“europeos” y los dominados/inferiores “no-europeos.” (…) Las

diferencias fenotípicas fueron usadas, definidas, como expresión

externa de las diferencias “raciales.” En un primer período,

principalmente el “color” de la piel y del cabello y la forma y el

color de los ojos. Más tarde, en los siglos XIX y XX, también

otros rasgos como la forma de la cara, el tamaño del cráneo, la

forma y el tamaño de la nariz. (…) El “color” de la piel fue

definido como la marca “racial” diferencial más significativa,

por más visible, entre los dominantes/superiores o “europeos,”

de un lado, y el conjunto de los dominados/inferiores “no-

europeos,” del otro lado. (…) De ese modo, se adjudicó a los

dominadores/superiores “europeos el atributo de “raza blanca” y

a todos los dominados/inferiores “no-europeos,” el atributo de

“razas de color.” La escalera de gradación entre el “blanco” de

la “raza blanca” y cada uno de los otros “colores” de la piel, fue

asumida como una gradación entre lo superior y lo inferior en la

clasificación social “racial”.

A partir dessa classificação social que Quijano (ibid.) registra, Mignolo (2003a)

afirma que categorias como a de mestiçagem e a de mulatagem, são invenções

modernas/coloniais nas quais se assentou a Europa moderna/colonial (ibid., p. 46). Essa,

presente apenas nas colônias durante o século XVI, hoje está no Velho Continente

devido aos fluxos migratórios constantes que ocorrem atualmente, o que já não permite

a diferenciação, segundo Mignolo, entre a Europa moderna e a Europa

moderna/colonial em seu próprio continente.

A categorização de raça também serviu como parâmetro para o trabalho, pela

“racialização”, segundo Mignolo (ibid.), de pessoas e de países. Conforme Quijano

(ibid., p. 352), essa racialização serviu como dispositivo de naturalização e como

justificativa das relações de exploração econômica do trabalho de pessoas e de

classificação de países como inferiores em relação ao Ocidente, o que embasou o

desenvolvimento (ou a modernidade) do qual os países do Norte usufruíram. Se no

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século XVI “ciertos sectores del planeta necesitaban ser cristianizados” (MIGNOLO,

ibid., p. 46), a partir do século XVII esses setores necessitavam ser civilizados – pelas

relações de trabalho impostas pela colonização. Sobre a racialização, afirma Quijano

(ibid., p. 352):

La “racialización” de las relaciones de poder entre las nuevas

identidades sociales y geo-culturales, fue el sustento y la

referencia legitimatoria fundamental del carácter eurocentrado

del patrón de poder, material e intersubjetivo. Es decir, de su

colonialidad. Se convirtió, así, en el más específico de los

elementos del patrón mundial de poder capitalista eurocentrado

y colonial/moderno y pervadió cada una de las áreas de la

existencia social del patrón de poder mundial, eurocentrado,

colonial/moderno.

Descrito o primeiro conjunto categorial que sustenta a colonialidade do poder,

passo a abordar o segundo conjunto, composto pela tríade exploração, dominação e

conflito no mundo moderno/colonial, “cuya estrutura económica es el capitalismo”

(MIGNOLO, ibid., p. 47). Como eu disse anteriormente, Mignolo (ibid.) considera o

capitalismo e o mundo moderno/colonial como duas caras da mesma moeda, que impõe

relatos, legitima saberes e silencia outros, segundo esse autor, a partir da perspectiva de

somente uma dessas caras, a moderna. A relação entre saber e poder não é gratuita, pois

os centros de concentração de poder econômico foram também os de concentração de

capital intelectual, relação que contribuiu, conforme esse mesmo autor, ao

silenciamento de saberes produzidos em locais dominados e à imposição de saberes

produzidos desde localizações imperiais. A esse respeito, Mignolo (ibid., p. 47)

considera que mesmo relatos que foram realizados a favor dos explorados foram

contados a partir da perspectiva da metrópole e, como exemplo, cita os escritos de

Bartolomé de Las Casas72 a favor dos índios.

72 Bartolomé de las Casas (1474-1566) foi um religioso e cronista espanhol e grande parte de sua obra

atuou como defensor dos indígenas no processo de conquista do território do Novo Mundo pela Espanha,

no início do século XV.

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107

No que diz respeito a esse segundo conjunto, de minha perspectiva, o que afirma

Mignolo (ibid.) acerca da releitura que Dussel73 realizou, a partir de Marx, sobre a

categoria de dependência vem complementar a reflexão de Quijano (2000), em relação

às categorias de exploração e de dominação. Para Dussel, segundo Mignolo (2003a, p.

47-48), há uma distinção entre exploração, denominação que utiliza para explicar as

relações laborais entre o capitalista e o trabalhador, e dominação, que consiste nas

relações de dependência entre as burguesias metropolitanas (onde se acumula o capital e

o saber) e as burguesias periféricas – relações que estruturam a colonialidade do poder.

Se, para Mignolo (ibid.), Dussel restringe o conceito de exploração e de

dominação a esses lugares, Quijano (2000 apud Mignolo, ibid.) amplia a influência das

categorias desse segundo conjunto em relação aos quatro domínios sociais nos quais as

relações de poder ocorrem: dois deles já apareceram neste trabalho, o domínio de

dominação e o de exploração. Em relação à dominação, Quijano (ibid. apud

MIGNOLO, ibid., p. 49) a considera como a condição básica do poder, ao se mostrar de

forma mais visível “en el control de la autoridad colectiva (el Estado) y en el control de

la subjetividad/intersubjetividad que se encarna en la idea de ‘raza’ y de conocimiento”.

Conforme esse paradigma, segundo Mignolo (ibid.), raça é uma categoria epistêmica de

controle de conhecimento e da intersubjetividade.

Em relação à exploração, Quijano (apud MIGNOLO, ibid., p. 49) considera essa

categoria como um modo de obter algo em benefício próprio, através da ação de

alguém, sem que haja retribuição ou co-participação, sendo o trabalho o âmbito central

dessa categoria, apesar de que a relação desigual entre os gêneros, mediada pela

sexualidade, é outro âmbito em que a exploração ocorre. A condição para que a

exploração ocorra, então, é a dominação, o que para Mignolo (ibid.) é válido afirmar

que “mientras toda explotación es dominación, no toda dominación se concreta en la

explotación”, afirmação que leva à reflexão de que o desmonte das relações de

dominação desmontariam também as relações de exploração.

Descrito o segundo conjunto de categorias que embasa a colonialidade do poder,

descrevo a seguir o terceiro conjunto. Para Quijano (ibid. apud Mignolo, ibid.) esse

terceiro conjunto é composto por distintos âmbitos sociais nos quais se estrutura a

colonialidade do poder na economia capitalista e, conforme Mignolo, também no

73 DUSSEL, E. Towards an Unknown Marx. A commentary on the Manuscript of 1861-1863. Nova

Iorque, Routledge, 2001.

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imaginário do mundo moderno/colonial. Esses âmbitos são o trabalho, o par

gênero/sexualidade, a autoridade e a subjetividade, que estão estruturados e inter-

relacionados, pois são conflitos, segundo o autor (ibid., p. 50), de dominação e

exploração “destinados al control del trabajo, del género/sexualidad, de la autoridad y

de la subjetividad en lo que atañe a sus recursos y a sus productos”. Para o estudioso:

(...) en el ámbito del trabajo, la explotación/dominación está

gobernada por la economía capitalista; la del género/sexo, por la

estructura de la ‘sagrada familia’ que revela la complicidad entre

capitalismo, cristianismo y familia burguesa. En el ámbito de la

autoridad, el control y los conflictos se generan en el orden del

Estado; y en cuanto al ámbito de la subjetividad, su control y sus

conflictos se materializan en el orden del conocimiento (ibid.).

A diferença colonial, a meu ver, expõe as contradições que surgem da imposição

da colonialidade do poder pelo sistema moderno/imperial, que se reproduz nos países

que passaram por processos de colonização pelo funcionamento do sistema

moderno/colonial. Para Mignolo (ibid., p. 39), a colonialidade do poder

es el dispositivo que produce y reproduce la diferencia colonial.

La diferencia colonial consiste en clasificar grupos de gentes o

poblaciones e identificarlos en sus faltas o excesos, lo cual

marca la diferencia y la inferioridad con respeto a quien

clasifica. La colonialidad del poder es, sobre todo, el lugar

epistémico de enunciación en el que se describe y se legitima el

poder. En este caso, el poder colonial.

A colonialidade é a cara oculta da modernidade, pois, como sistema, e em

estreita relação com o que Pêcheux (2008) denomina de “’técnicas’ de gestão social dos

indivíduos” (ibid., p. 30)74, na construção de uma “homogeneidade lógica” (de espaços

logicamente estabilizados que vão recobrindo um real) (ibid., p. 31-32), permitiu o

acúmulo do capital que sustentou modelos políticos e econômicos que embasaram a

modernidade, modelos que também foram impostos nas áreas exploradas como colônia

e que conformaram as instituições de poder dessas áreas, quando essas se tornaram

países independentes – a colonialidade do poder.

74 Que estão em direta relação com as técnicas materiais, conforme apontei anteriormente em nota de

rodapé.

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Dessa forma, a colonialidade do poder também estabelece a diferença imperial

nas ex-colônias entre os setores que se vinculam ao poder, pois por ela se fixam os

índices de classificação que determinam os valores e os silenciamentos a favor de um

padrão, tomados de uma classe dominante, em relação aos demais setores da sociedade.

Segundo Mignolo (ibid., p. 39), a diferença imperial opera de modo semelhante à

diferença colonial, mas estabelece outros sentidos:

La diferencia imperial opera [de modo semelhante à diferença

colonial], pero al mismo tempo establece otras reglas del juego.

Los turcos son diferentes a los cristianos, y también lo son los

moros y los chinos. En este nivel, el de la diferencia imperial, la

colonialidad del poder sólo opera como mecanismo

clasificatorio a la espera (…) de que las condiciones cambien y

las condiciones de colonización sean propicias. [Bartolomé] de

las Casas contribuyó a establecer la diferencia imperial con el

Imperio otomano y el islámico (…) [y] sirvió, más que nada,

para afirmar la mismidad y la diferencia de la cristiandad. En

cambio, la diferencia colonial con los indios americanos fue

necesaria para justificar el proyecto expansivo de la cristiandad.

A colonialidade, dessa forma, se coloca como determinante na divisão

econômica e social entre os países que empreenderam a colonização e os que a sofreram

– divisão essa que estimula sentidos vinculados à diferença colonial, o que gera

diferenças em várias esferas de atividade humana, ou seja, como diz o próprio Mignolo

(ibid., p. 43): a “jerarquización de seres humanos en una escala que va de la barbarie a

la civilización” (ibid.). Entretanto, na configuração do que era civilizado e do que era

barbárie, estaria também o trabalho realizado pela diferença imperial que operaria, nos

países colonizados, como uma clivagem entre os sujeitos pertencentes a uma elite local,

reproduzindo internamente os sistemas e os índices que estão vinculados a uma elite

econômica mundial75, e os que estão fora dela.

75 Mignolo vai além na descrição dos efeitos provocados pela diferença imperial na configuração do

Ocidente, pois se em um primeiro momento ela serviu para distinguir os cristãos europeus dos praticantes

de outras religiões que viviam em regiões dotadas de uma certa civilização, posteriormente ela serviu para

estabelecer uma distinção entre os diferentes graus de desenvolvimento pelos quais a Europa passou, que

culminou na oposição, no século XVIII, entre a Europa do Norte, protestante e mais desenvolvida

economicamente, e a Europa do Sul, católica e mais pobre, diferença imperial que ainda produz sentido

na contemporânea União Europeia. Em relação ao contraste entre o Ocidente e o Oriente, principalmente

em relação a países como a China e a Rússia, que nunca foram colonizados, a diferença imperial atuou

em complementação com a diferença colonial, já que a primeira serviria para contrastar diferentes modos

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Por esses processos, Mignolo (ibid.) considera que a colonialidade do poder

gerou clivagens cujos efeitos não se sentem somente no econômico, mas principalmente

na elaboração e propagação de saberes e de produtos culturais vinculados à ciência e à

indústria, saberes que hoje circulam tanto em lugares institucionais diversos como a

academia e a universidade, quanto em ambientes diretamente relacionados com a

economia de mercado, passando pela indústria cultural de massa.

Lembrando que a reflexão desenvolvida nesta pesquisa se relaciona fortemente

com o objetivo de fazer um agenciamento de conhecimento que possa dar subsídios ao

próprio campo dos Estudos de Linguagem, nos quais se reflete o ensino de línguas e, em

particular, o de espanhol, o que representa um impacto direto na formação dos

professores de línguas, considero que não há como ignorar a conformação de saberes e

de sentidos realizados pela colonialidade do poder. De minha perspectiva, ignorar essa

questão é também ignorar que “el colonialismo es la mala conciencia del imperialismo;

la colonialidad, el lado oscuro y necesario de la modernidad” (ibid., p. 30).

Após apresentar esta reflexão sobre o discurso colonial e a colonialidade do

poder, refletindo sobre seus papéis na constituição sobre a identidade e a cultura em

processos de subjetivação e de interpelação em contexto de colonização, realizo um

novo agenciamento de saberes produzidos no campo da Antropologia Cultural e da

Filosofia, para discutir a identidade na pós-modernidade, no item a seguir.

3.3. A identidade na pós-modernidade

As discussões realizadas até o momento me permitem realizar a vinculação dos

efeitos do discurso colonial como aparato de poder (BHABHA, 2007) a um

funcionamento discursivo relacionado às práticas determinadas pelas colonialidades do

poder e a do saber (MIGNOLO, 2003a e QUIJANO, 2000), práticas essas impostas,

como discutido neste capítulo, por diferentes processos de colonização realizados desde

o Norte no Sul. Essa relação atualmente estabelece, nesse espaço territorial conhecido

como América Latina, um ambiente de contradição histórica (Pêcheux, 1990) passível

de ser relacionado através da série composta pelos termos modernismo, modernidade e

de organização social e a segunda para classificar e hierarquizar pessoas por índices como “sus lenguas,

sus religiones, sus nacionales, su color de piel, su grado de inteligência” (ibid., p. 43).

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modernização, discussão que aqui estabeleço conforme a reflexão empreendida por

García Canclini (1997) sobre eles. Se os termos dessa série se diferenciam, em sua

materialidade linguística, pela marca de sufixos que não conseguem determinar uma

grande diferenciação entre os mesmos, no funcionamento discursivo essa marca

materializa sentidos que os caracterizam como processos com uma regularidade própria

e às vezes contraditórios entre si.

Nesse sentido García Canclini (ibid., p. 23) considera que os três termos

implicam diretamente os efeitos decorrentes dos diferentes processos de colonização ao

longo da história que ocorrreram no espaço do sub-continente latino-americano. A

Modernidade e a Modernização, de acordo com esse autor, são traços econômicos

característicos de uma sociedade contemporânea que passou por um processo de

colonização no passado; e se a Modernidade – ou mesmo a Pós-Modernidade, como

consideram alguns teóricos – refere à caracterização atual das nações desenvolvidas,

com modos de vida facilitados pela tecnologia, pelos saberes oferecidos pela ciência em

todas as áreas de conhecimento e pelos grandes índices de indicadores sociais, a

Modernização é a sua ausência. A Modernização, segundo García Canclini (ibid.),

supõe a necessidade de transformar padrões sociais e econômicos para que uma

determinada sociedade possa resolver problemas relacionados à pobreza e às condições

mínimas de conforto, muito distantes do nível tecnológico e econômico das sociedades

ditas desenvolvidas deste século XXI.

Em países que passaram por processos de colonização, tanto a Modernidade

quanto a Modernização, conforme esse autor (ibid.), coexistem e constituem processos

inerentes às nações em desenvolvimento: o primeiro termo, caracteriza modos de vida

de classes sociais mais abastadas, e o segundo, a necessidade de mudança dos padrões

de vida das classes sociais mais baixas, para que essas possam inserir-se como

consumidores no processo de produção capitalista. Apesar desta contradição instaurada

nos países que passaram por colonizações, os movimentos culturais associados ao

Modernismo (e a arte produzidas por eles) sempre estiveram a par, ou mesmo em

posição de vanguarda, em relação aos saberes e às práticas culturais do universo do

cotidiano. Em relação a essa questão, e usando o sintagma Modernismo como

metonímia de arte, García Canclini (ibid., p. 23) discute a real necessidade de uma

valorização dos saberes vinculados à cultura como prática artística, principalmente

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aqueles produzidos em regiões/sociedades desenvolvidas, promovidos e valorizados

desde lugares institucionais em lugares que devem lidar com problemas característicos

de uma configuração social sem Modernização, como a ausência de recursos básicos de

saúde e de educação. Tal contradição da Contemporaneidade – conclui o autor (ibid.) –

é gerada, principalmente, pelo fato de esses saberes vinculados à arte serem

mercantilizados e transformados em produtos de consumo pela indústria cultural, sem

considerar os processos culturais, históricos e sociais da elaboração desses artefatos, o

que faz com que, simplesmente, sejam consumidos como qualquer produto de uma

grande rede de varejo ou de comida fast-food. Vale pontuar que tal processo foi

abordado no capítulo 2 e que está diretamente relacionado com os sentidos da última

ressignificação de cultura de acordo com a interpretação de Eagleton (2011), o de

cultura como prática artística.

Considerando que a série de aspectos observados por García Canclini – que

interpreto vinculados ao funcionamento da contradição histórica (Pêcheux, 1990) –

constituem as condições de produção tanto dos discursos quanto das práticas

relacionadas à modernidade e à pós-modernidade, é necessário tê-las em consideração

ao discutir modos de interpelação de sujeitos na Contemporaneidade e os efeitos que

estes representam, em termos de “identidades”. Com relação a isso é importante dizer

sobre o processo de globalização em curso atualmente e como ele afeta a relação entre

cultura e identidades.

Sobre essa questão, Castells (1999) considera que na Contemporaneidade “a

sociedade em rede está fundamentada na disjunção sistêmica entre o local e o global

para a maioria dos indivíduos e grupos sociais” (ibid.), e nessas condições a sociedade

civil se desarticula e se encolhe, “pois não há mais continuidade entre a lógica da

criação de poder na rede global e a lógica de associação e representação em sociedades

e culturas específicas” (ibid., p. 27). Sobre esse funcionamento outros autores discutidos

nesta tese, como Eagleton (2011) e Bauman (2012), também refletiram sobre o

surgimento de identidades específicas, “comunais” segundo Castells (ibid.), o que

permitiu a legitimidade de diferentes identidades, num pluralismo que ressalta o local

no acirramento deste com o global (como o fundamentalismo religioso, o nacionalismo

dos países recém-independentes surgidos após a desintegração da União Soviética, as

identidades étnicas e as vinculadas às minorias). Conforme também discutido neste

trabalho, vinculo essa disjunção sistêmica citada por Castells (ibid.) entre o local e o

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global à clivagem produzida, ao longo da história, pela colonialidade do poder e aos

mecanismos gerados por ela na sujeição dos sujeitos.

Sobre essa questão Rolnik (1997) considera que o papel exercido pela

globalização – que, como disse anteriormente, é o novo rosto da colonialidade imperial

– ao intensificar as misturas e pulverizar as identidades, também produz “kits de perfis-

padrão de acordo com cada órbita do mercado, para serem consumidos pelas

subjetividades, independentemente de contexto geográfico, nacional, cultural, etc”

(ibid., p. 19). Tal processo gera o desaparecimento, segundo a autora, de “identidades

locais fixas” que dão lugar a “identidades globalizadas flexíveis que mudam ao sabor

dos movimentos do mercado e com igual velocidade” (ibid.).

Entretanto, em relação a esse contexto, a existência dessas identidades não leva

ao “abandono da referência identitária” para o sujeito, pois a “representação de si”

funciona como um modo de organização das forças que constituem e desestabilizam as

subjetividades, segundo a autora (ibid.). Para Rolnik (ibid.), frente a essas forças, “as

subjetividades tendem a insistir em sua figura moderna, ignorando as forças que as

constituem e as desestabilizam por todos os lados”, para organizar-se em torno “de uma

representação de si dada a priori, mesmo que, na atualidade, não seja sempre a mesma

esta representação”. Segundo a autora, a insistência para uma referência identitária para

o sujeito, em meio a tantos sentidos colocados em jogo pela globalização atualmente,

ocorrem nas subjetividades através de dois processos que correspondem a destinos

opostos “em meio ao terremoto que transforma irreversivelmente a paisagem subjetiva”.

De um lado, “o enrijecimento de identidades locais”; de outro, “a ameaça de

pulverização total de toda e qualquer identidade” (ibid., p. 21).

Sobre o fato de que atualmente, pelos processos de subjetivação observados por

Rolnik, as identidades sofram os impactos de uma pulverização, há o risco, creio eu, de

se estabelecerem culturas tão diversas como formas de vida, o que segundo Eagleton

(2011) seria uma radicalização de cultura como modo de vida característico. Para essa

autora, a pulverização de identidades e o enrijecimento das locais geram uma

polarização76

; num dos dois polos:

76 Isto tem a ver com cultura significada como formas de vida.

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as ondas de reivindicação identitária das chamadas minorias

sexuais, étnicas, religiosas, nacionais, raciais, etc. Ser viciado

em identidade nestas condições é considerado politicamente

correto, pois se trataria de uma rebelião contra a globalização da

identidade. Movimentos coletivos deste tipo são sem dúvida

necessários para combater injustiças de que são vítimas tais

grupos; mas no plano da subjetividade trata-se aqui de um falso

problema (1997, p. 21).

Para a autora (ibid.) a interrogação principal no atual contexto é o fato de que a

polarização entre as identidades locais e as globais não é uma questão, tampouco entre

uma identidade em geral e uma identidade pulverizada. O jogo discursivo imposto pela

globalização, segundo ela, coloca algo mais pertinente: a questão de que a referência

identitária deve ser combatida, “não em nome da pulverização (o fascínio niilista pelo

caos), mas para dar lugar aos processos de singularização, de criação existencial,

movidos pelo vento dos acontecimentos” (ibid., p. 22). Ou seja, a reivindicação de

identidade “pode ter o sentido conservador de resistência a embarcar em tais processos”

(ibid.).

Em relação ao segundo polo referente à pulverização de identidades e o

enrijecimento de identidades locais, estaria a “assim chamada ‘síndrome do pânico’. Ela

acontece quando a desestabilização atual é levada a um tal ponto de exacerbação que se

ultrapassa um limiar de suportabilidade” (ibid.).

A questão da identidade na pós-modernidade, dado o intenso efeito de

homogeneização empreendido pela globalização, gera estratégias que visam tanto “a

volta às identidades locais, quanto as que visam a sustentação das identidades globais”

(ibid.), sendo que a globalização, ainda segundo a autora, tem como meta a

domesticação de forças. Rolnik acrescenta que essa tentativa “malogra

necessariamente”, o que eu considero como efeito da falha (Pêcheux, 2009) a que todo

processo de interpelação está sujeito. Porém, de acordo com a filósofa, não há como

desconsiderar o efeito dessas estratégias: “neutraliza-se a tensão contínua entre figura e

forças, despotencializa-se o poder disruptivo e criador desta tensão, brecam-se os

processos de subjetivação”, o que produz “a resistência ao contemporâneo” (ibid.),

aspecto que denota a força desse processo de interpelação empreendido pela

globalização.

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115

Um enfrentamento a essa questão, segundo Rolnik (ibid.), seria fruir da “riqueza

da atualidade”, o que “depende das subjetividades enfrentarem os vazios de sentido

provocados pelas dissoluções das figuras em que se reconhecem a cada momento”

(ibid.). Esse enfrentamento geraria o investimento “da rica densidade de universos” que

povoam as subjetividades, “de modo a pensar o impensável e inventar possibilidades de

vida” (ibid.).

Terminada essa discussão, cabe traçar algumas considerações sobre o que foi

discutido neste capítulo. Nele realizei um movimento que nos coloca em melhores

condições para pensar na diversidade e na heterogeneidade cultural com as quais

trabalharei no capítulo 4, e que se relacionam diretamente com o que escapa aos

diversos processos de homogeneização instalados pelo processo civilizatório. Para tal,

nesse próximo capítulo, por amostragem, tentarei dar visibilidade a manifestações de

universos vinculados a identidades culturais objeto de exclusão e de deslegitimação no

funcionamento da contradição histórica que funda esse longo processo histórico do

espaço de enunciação que abordo quando penso especificamente na língua espanhola, e

que também são regulamente excluídas da reflexão desenvolvida no campo dos estudos

da linguagem, dos processos de formação de professores e, portanto, das práticas de

ensino/ aprendizagem de línguas.

A mobilização de saberes realizada neste capítulo permite compreender que, no

caso da língua espanhola, estamos diante de um espaço de enunciação no qual há uma

pluralidade de justaposições de técnicas materiais e de gestão social dos indivíduos,

vinculadas a memórias diferentes e a um trabalho de exclusão e inclusão que funciona

sobre a contradição historicamente instalada (Pêcheux, 1990). Essa série de técnicas,

como já foi dito, recobre o real mediante a instalação de espaços logicamente

estabilizados.

Isso me leva a recorrer a Celada (2002, p. 125-126), a partir da reflexão que

estabelece com Kusch77 (1953) e Morse78 (1990), quando esta autora analisa o trabalho

77 KUSCH, R. La seducción de la barbarie. Análisis herético de un continente mestizo. Buenos Aires:

Raigal, 1953.

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116

realizado pelos materiais didáticos na amostragem de um real homogêneo. Segundo

Celada (ibid.), o que escapa à construção desse real homogêneo se vincula ao exótico,

ao “mundo do ‘natural’ ou ‘autóctone’”, como “um ‘furo’ ou como um defeito do real –

a expressão é de Pêcheux (cf. 1990b)79”. Para a autora, tal funcionamento se realiza

como um “resíduo anacrônico ou uma simples supervivência de interesse folclórico e

turístico” (ibid.), o que significa aquilo que escapa dos processos de civilização

vinculados ao Ocidente como algo que “irrompe sob a forma da dúvida, da sombra que

instala a própria linha e luz da razão” (ibid.). A autora conclui que “esses furos instáveis

e sombrios não representam nada mais do que o fardo determinista que a civilização

carrega nas costas e, em nosso caso aparecem, sobretudo, quando se trata de falar da

América Hispânica” (ibid.).

Neste capítulo trouxe à discussão elementos que funcionam como índices de que

opera um efeito de justaposição dessas técnicas e das práticas que a elas se vinculam,

nos espaços afetados pela colonialidade, e que foi se dando ao longo da formação do

Estado nacional, vinculado aos processos de colonização e, posteriormente, aos efeitos

da interpelação pelo Mercado. Resta de tudo isso uma complexa heterogeneidade; o que

farei, como acabei de antecipar, é puxar de alguns fios da memória para mobilizar, por

amostragem, recortes nos quais apareçam práticas, sentidos e sujeitos vinculados a

identidades culturais outras – sem reafirmar a presença apenas daquelas que, por

regularidades, já funcionam como estereótipos e como modelos a serem atingidos, como

o “branco, o limpo, o bonito” – e que serão mobilizadas, um pouco e por amostragem,

no que será discutido no capítulo 4.

78 MORSE, R. A linguagem na América. In.: _____. A volta de McLuhanaíma. Cinco estudos solenes e

uma brincadeira séria. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 23-86.

79 Nesta tese, Pêcheux, 2008.

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117

Capítulo 4:

Lineamentos para discussão de cultura em práticas de ensino

de línguas

Como já foi anunciado, neste último capítulo mobilizo a discussão teórica

realizada nos capítulos prévios para elaborar lineamentos que discutam questões

relativas a cultura, visando a interlocução no campo de formação de professores de

língua estrangeira, especificamente de espanhol para brasileiros. Mediante a realização

desse trabalho, tenho como objetivo apresentar caminhos, apoiados em reflexões, que

visam oferecer resistência a formas de trabalhar sobre cultura, formas essas que estão

instaladas, de alguma maneira, em certos saberes estereotipados e estabilizados sobre o

outro e sobre a língua, esses atravessados pela colonialidade do poder e a do saber, nas

práticas relacionadas ao ensino de língua estrangeira, conforme discuti no capítulo 1. Na

elaboração de tais lineamentos também tenho como propósito ver como cultura

funciona em diversos textos. Para tal mobilizarei textos da esfera literária, pois

considero que as condições de produção específicas desse gênero, como expliquei

anteriormente nesta tese, constituem uma materialidade discursiva propícia para esse

trabalho.

Há de se ressaltar, de fato, que a literatura apresenta práticas discursivas que não

estão totalmente ausentes em gêneros de outras esferas, o que possibilitaria elaborar

lineamentos a partir de qualquer materialidade discursiva. Entretanto, ao alçar textos

dessa esfera como objeto de discussão de lineamentos para discussão de cultura, realizo

um movimento de ressignificação da literatura e de reivindicação de seu espaço em

práticas de ensino/aprendizagem de língua estrangeira. Tal esfera geralmente é

negligenciada na elaboração de práticas de livros didáticos de ensino de línguas, apesar

de que ultimamente alguns gestos de inclusão já têm sido realizados em relação a ela.

Neste capítulo abordo, então, textos da esfera literária como materialidade

discursiva, analisando-os como processos enunciativos e discursivos, configurados e

constituídos historicamente pela relação dinâmica estabelecida entre sua forma e os

processos históricos e as práticas sociais que participam de suas condições de produção.

Dessa forma, esse gesto de interpretação me levará a realizar a elaboração de

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lineamentos para colocar em funcionamento, como diria Pêcheux (1999), variados

textos.

A seguir traço algumas reflexões sobre o recorte de gênero que realizei na esfera

da literatura para este trabalho, a partir de Mignolo (2003a), em relação à discussão que

esse autor estabelece entre literatura canônica e não canônica, e também sobre as

observações que realiza ao formular o conceito de pensamento fronteiriço, elaborado

por ele para a reflexão de saberes atravessados pelas colonialidade do poder e do saber

em países que passaram por processos de colonização.

4.1. O pensamento fronteiriço como gesto de interpretação

Retomo aqui a discussão que realizei no capítulo 180

a partir de formulações de

Mignolo (2003a) ao estabelecer a prática literária como reflexão. Antes de partir para o

estudo desse autor, ressalvo que, ao propor a literatura como materialidade discursiva

para trabalhar com cultura, não deixo de recorrer a uma construção ideológica, de forte

recorrência que associa literatura a um lugar de saber. Entretanto, no trabalho que aqui

realizo, há um forte gesto político e acadêmico por trás dessa decisão. Tal gesto é

motivado, sobretudo, a partir do que Mignolo (ibid.) considera sobre a prática literária

como reflexão, ao estabelecer uma diferença entre a literatura não canônica e a

canônica, e a relação desse primeiro grupo com as culturas acadêmicas. Para Mignolo

(ibid.) temas que são comumente silenciados pela literatura canônica são legitimados

pela literatura não canônica. Conforme dito anteriormente neste trabalho, tenho minha

discordância com esta posição específica de Mignolo (2003a)81

. O que esse autor

coloca, ao meu ver, é a crítica em relação às práticas institucionais e tradicionais de

algumas áreas da academia.

80

Nesse capítulo expus algumas reflexões sobre o caráter específico da esfera literária como

materialidade discursiva para discussão de aspectos relacionados às possíveis formas de abordar o cultural

neles, as quais não retomo aqui por considerar que foi suficientemente debatida, desenvolvendo neste

item apenas as relacionadas especificamente com o pensamento fronteiriço.

81

Anteriormente, sobre esta questão, apontei minha discordância em relação a essa posição de Mignolo

(2003a) em relação à cultura acadêmica, pelo fato de a universidade, como lugar institucional e

acadêmico, permitir deslocamentos e transferências de sentidos que mobilizam conceitos e práticas

estabilizadas, como é o caso desta tese (conforme o trabalho específico que proponho e dentro do alcance

desta pesquisa de doutorado).

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119

Com base nesta discordância apresentei a reflexão de Tatián (2012) sobre a

posição da universidade em relação ao seu papel crítico frente ao Mercado – e, por

conseguinte, a outros lugares institucionais. Para esse autor, uma universidade de cunho

democrático consegue manter “una importante dimensión conservacionista, capaz de

invocar contenidos antiguos en alianza con otros nuevos. (…) en la encrucijada crítica

de memoria e invención, radica quizá la mayor contribución democrática de la

universidad pública” (TATIÁN, 2012).Como toda instituição, a universidade também

possui lugares de forte cristalização em relação à produção de saber, muitos deles

vinculados ao Mercado, conforme os paradigmas a que Tatián (2012) faz referência.

Apesar disso, certas posições teóricas e acadêmicas fazem frente a lugares estabilizados

de produção de saber, entre elas a literatura.

Retomo, também, a importância da posição de Mignolo (2003a) em relação à

colonialidade do poder, dispositivo cuja força se faz presente nessas relações entre as

instituições e os sujeitos. Apesar desta relativização sobre a consideração desse autor

acerca da literatura canônica, não há como deixar de pontuar o trabalho de

“organização” realizado por instituições ou por sujeitos do conhecimento, do campo

acadêmico, identificados com sentidos estabilizados pelo Estado. Esse trabalho de

organização gerou um efeito de sentido que se materializou em regras que operam nas

culturas acadêmicas até hoje e que produziu uma diferença imperial ao colocar em lados

opostos a ciência e a literatura, e também uma diferença colonial, ao estabelecer o que é

literatura canônica, difundida pelas instituições e tomada como objeto de estudo na

escola, e o que escapa a ela como não canônica82

. Conforme considerações desse autor

(ibid.), a literatura canônica e a cultura acadêmica são processos a serviço de uma

construção imaginária de uma identidade nacional homogênea e livre de contradições83

.

Neste capítulo, ao realizar um recorte do corpus que servirá de base aos

lineamentos com textos do romance indigenista, me baseei, justamente, na reflexão de

Mignolo (ibid.) sobre o pensamento fronteiriço. Por esse conceito, segundo o autor,

emergiria uma consciência fronteiriça e mestiça, que trabalharia de igual modo esses

82

Os conceitos de diferença imperial e diferença colonial foram desenvolvidos em detalhe no capítulo 3.

83

Ressalto que volto a me distanciar da afirmação taxativa de Mignolo (2003a), provavelmente ligada a

questões da relação de forças no debate acadêmico desenvolvido nos Estados Unidos sobre a América

Latina. Mantenho as relações estabelecidas pelo autor respeitando a coerência ideológica de seu

pensamento.

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120

discursos atravessados por relações de poder e pela colonialidade. Para Mignolo (ibid.),

haveria a necessidade de se criar um quadro – e que aqui nesta tese adoto como uma

linha de trabalho – em que a literatura não seja tomada como “objeto de estudio

(estético, lingüístico o sociológico), sino como producción del conocimiento teórico”,

nem “como ‘representación’ de algo, sociedad o ideas, sino como reflexión

específicamente propia sobre los problemas humanos e históricos” (ibid., p. 297)84

. A

ideia é mobilizar uma forma de abordar cultura pela materialidade dos textos literários,

para colocá-los em funcionamento (PÊCHEUX, 1999) conforme suas condições de

produção, mediante uma reflexão que leve em consideração esse conceito trabalhado

por Mignolo (ibid.).

Ou seja, esse gesto de interpretação que aqui realizo, baseado nas reflexões

sobre o pensamento fronteiriço de Mignolo (ibid.), pautará o trabalho que me proponho

realizar neste capítulo: mobilizar estruturas da língua espanhola (campos lexicais

específicos, formas de tratamento, expressões relacionadas com determinadas práticas,

dentre outras) analisando como no linguístico se materializam as relações de força. Com

base na reflexão desse autor realizada no capítulo 3 e que vem ao encontro de princípios

da AD de linha materialista que aqui assumo, creio que na relação entre literatura e

língua há a necessidade de que esta última seja considerada em termos de uma reflexão

que, conscientemente atravessada pelo político, reivindique e atenda

a las distintas formas en que las prácticas literarias se han

vinculado, en el sistema-mundo moderno/colonial, a la

colonialidad del poder en sus versiones colonial y nacional. La

lengua también implica la cuestión de la formación de cánones,

la forma en que se han entretejido los valores nacionales y

occidentales para producir mapas lingüísticos, geografías

históricas y panoramas culturales del sistema-mundo

moderno/colonial dentro de su lógica interna (conflictos

imperiales) así como en sus fronteras externas (conflictos con

“otras” culturas; la diferencia colonial) (MIGNOLO, 2003a, p.

297-298).

Descritas as bases da decisão de tomar a esfera literária como fundamento para

reflexão que pautará a elaboração dos lineamentos que apresentarei neste capítulo, passo

84

A observação do autor vem ao encontro do que, na AD, é possível pensar sobre a literatura.

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a seguir à descrição, realizada a partir de Cozman (2005) e Cornejo Polar (2005) – além

de outros autores que este último mobiliza, como Mariátegui e Rama – sobre o romance

indigenista.

4.2. Delimitação do corpus – o romance indigenista

O romance indigenista, como gênero da esfera literária, ocorreu no Peru e teve

seu auge entre a primeira e a segunda metade do século XX, apesar de estar presente

durante toda a história literária peruana (CORNEJO POLAR, 2005). Segundo Cozman,

em prefácio à obra de Cornejo Polar (2005, p. 12) e tomando conceitos formulados por

este, o gênero literário conhecido como indigenista permite “articular una reflexión

acerca de la identidade nacional” (ibid.) a partir de algumas das obras que

caracterizaram essa escola literária, por evidenciar “un cruce de culturas, una lengua

híbrida y el processo de asimilación de componentes del pensar mítico en el ámbito de

la literatura ilustrada” (COZMAN, 2005, p. 12). Esta última, escrita em espanhol, se

utiliza de modelos tomados de gêneros europeus, como o romance. Com base nessa

afirmação, considero que a partir de características tomadas desse modelo ilustrado de

literatura, os romances indigenistas tratam das contradições e das questões culturais

inerentes ao processo de formação do Peru enquanto país, processo esse clivado por

saberes pautados pelo dispositivo instaurado pela colonização – a colonialidade do

poder.

Para Cozman (ibid., p. 13-14), Cornejo Polar considerava a literatura peruana

como não possuidora de unidade, mas de pluralidade “contrastante y conflictiva”

construída entre três sistemas literários: o da literatura ilustrada, composto por gêneros

literários copiados de modelos europeus (como o romance e a poesia); o das literaturas

aborígenes, um sistema híbrido entre oralidade e escrita; e o sistema da literatura

popular, em língua espanhola, onde há uma vinculação entre a oralidade e a música.

Segundo esse estudioso, Cornejo Polar considerava que esses sistemas estavam em

permanente correlação, sendo que cada um deles poderia assimilar elementos dos

demais sistemas. Dentro desse contexto, o romance indigenista, ademais de apresentar

uma hibridez em relação aos temas que tratava, também era híbrido em sua forma,

conforme essa pluralidade, segundo o gesto de escrita de cada autor.

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122

Há de se considerar que, como qualquer materialidade discursiva, o romance

indigenista é contraditório. Entretanto, para mim, é justamente essa contradição que se

torna produtiva para a realização dos lineamentos que tenho como propósito formular

neste capítulo, pois expõe uma heterogeneidade que Cozman (ibid.) chama de hibridez.

Para este autor (ibid.), o romance indigenista é um “caso ejemplar de la hibridez de la

literatura latino-americana”: uma hibridez que proponho como uma contradição na

história (Pêcheux, 2009), pois o conceito de híbrido acarretaria uma mescla de

diferentes elementos em igualdade de condições, sem considerar lugares legitimados

(produzidos pela diferença na história) no jogo de relações de força. No entanto, ao

passar a pensar em contradição (constituída não no plano da lógica, mas no real da

história, como observa Pêcheux [ibid.]), esta me permite formular relações com a

estrutura e o agenciamento que a função-autor (ORLANDI, 1987) realiza do tema, e

com as identidades e os lugares institucionais – ou legitimados socialmente – que

circulam nesses romances.

Segundo Cozman (2005), essa contradição em relação ao modo como esse

gênero se materializa deve-se, primeiramente, a uma de suas principais fontes, o modelo

das crônicas de tradição espanhola, da época da Conquista. Essas crônicas (cf. ibid.)

tratavam de explicar a realidade das colônias através de comparações e da construção de

equivalências para que o leitor ocidental pudesse entender o Novo Mundo recém-

conquistado. Nesse gênero específico, o autor realiza um trabalho materialmente escrito,

mas cujo discurso é matizado com “la asimilación creativa de la oralidad”, comenta

Cozman, (ibid., p. 14). Para este, o indigenismo reúne, portanto, as principais

características da crônica; vejamos como caracteriza esta última:

La crónica es, en primer lugar, un discurso escrito que sigue las

convenciones de la época. Además, el cronista construye un

lector modelo occidental, vale decir, el receptor construido por

el texto es un lector español, a quien el cronista explica rasgos

del mundo prehispánico. El procedimiento es la famosa

explicación por semejanza. Por ejemplo, se explica la distancia

entre dos pueblos del Perú afirmando que es como la distancia

que hay entre Salamanca y Madrid. En otras palabras, tanto el

cronista (nos referimos a los cronistas españoles y mestizos, no

tanto a los indígenas) como el lector pertenecen

fundamentalmente al mundo occidental (COZMAN, 2005, p.

14).

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123

Segundo o próprio Cozman (ibid.), entretanto, há outros fatores que contribuem

para a especificidade do romance indigenista: o fato de que, apesar do referente desse

romance corresponder ao mundo indígena, há matizes que o afastam desse mundo. O

romance indigenista é escrito em espanhol e não em uma língua indígena como o

quéchua ou o aimará; como gênero, é de estrutura ocidental e emprega o sistema

alfabético indo-europeu; o leitor projetado para a leitura, ainda segundo Cozman (ibid.)

é uma pessoa distante do universo indígena, e que não corresponde ao homem andino,

pois a interlocução com o leitor é materializada por estratégias narrativas fortemente

tomadas das crônicas espanholas do século XVI às quais acabei de referir. Entretanto,

para Cornejo Polar85

, (1980, apud COZMAN, ibid., p. 15), é o referente pertencente ao

universo índio o elemento que, “al escapar al orden occidentalizado que preside a los

otros, crea la heterogeneidad de la novela indigenista”. Ou, diria eu, estabelece

contradições com narrativas fortemente vinculadas à colonialidade do saber,

atravessadas pelos sentidos presentes no que Mignolo (2003a) denomina de pensamento

fronteiriço.

Ao meu ver, a colonialidade do poder instalou contradições que, segundo a

reflexão de Cornejo Polar (2005, p. 22) em relação ao debate sobre a sociedade peruana

que se realizou nos anos 60, materializou um universo dividido não somente no âmbito

social, mas também cultural. O Peru, com contradições econômicas inerentes a qualquer

sociedade capitalista, também apresenta um sistema econômico dualista que, conforme

o autor, abarca práticas econômicas capitalistas e práticas econômicas feudais – ou pré-

capitalistas (CORNEJO POLAR, 2005, p. 22), que estavam muito consolidadas no auge

da produção do romance indigenista. Certos setores, segundo Cornejo Polar (ibid.),

buscavam negar essa divisão dualista, mas, devido à força dessas contradições

econômicas, não deixavam de reconhecer “un polo hegemónico y otro dependiente” e

acrescenta: “al margen de que ambos, por certo, están sometidos a los intereses del

imperialismo” (ibid.).

Entretanto, segundo o mesmo autor (ibid.), apesar dessas diferentes

interpretações sobre a configuração social no Peru, havia um consenso sobre o papel

que as contradições instauradas pelo processo da colonização espanhola realizaram em

relação à cultura no espaço atualmente delimitado como Peru. Para ele, era possível

85

Antonio Cornejo Polar. Literatura y sociedad en el Perú: la novela indigenista. Lima: Lasontay, 1980.

p. 66.

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124

distinguir “un sistema históricamente dependiente de la cultura impuesta a partir de la

Conquista y otro que responde, en consonancia con su propio desarrollo histórico, a las

culturas nativas” (íbid., p. 23). Sobre essa questão, o próprio Cornejo Polar (ibid.)

ressalva, já com posterioridade à formação do Estado nacional, que não se tratava de

uma separação entre uma cultura “ocidental e cristã” e outra “inca”, mas de uma

convivência, em um único espaço, de pelo menos duas culturas que se interpenetraram

sem chegar a fundirem-se (2005, p. 23). Sobre esse processo trago uma reflexão de

Arguedas86

citada por Cornejo Polar:

Al hablar de la supervivencia de la cultura antigua del Perú nos

referimos a la existencia actual de una cultura denominada india

que se ha mantenido, a través de los siglos, diferenciada de la

occidental. Esta cultura, a la que llamamos india porque no

existe ningún otro término que la nombre con la misma claridad,

es el resultado del largo proceso de evolución y cambio que ha

sufrido la antigua cultura peruana desde el tiempo en que recibió

el impacto de la invasión española.

La vitalidad de la cultura prehispánica ha quedado comprobada

en su capacidad de cambio, de asimilación de elementos ajenos.

La organización social y económica, la religión, el régimen de la

familia, las técnicas de fabricación y construcción de los

llamados elementos materiales de la cultura, de las artes; todo ha

cambiado desde los tiempos de la Conquista, pero ha

permanecido, a través de tantos cambios importantes, distinta a

la occidental (ARGUEDAS (1975) apud CORNEJO POLAR,

2005, p. 23).

Como gênero atravessado pela colonialidade do poder e do saber, ao ser escrito

em espanhol e projetar um leitor falante dessa língua, branco (ou pelo menos não

andino), conforme Cornejo Polar (ibid.), o indigenismo apresenta contradições que,

apesar de não se propor a retomar uma consciência que esse estudioso (ibid., p. 24)

denomina de pré-científica (ou seja, pré-colonial), a toma como base e elabora uma

“densa reflexión en la que hay tantos elementos de examen científico-social cuanto

factores de interpretación puramente ideológica” (ibid.). É necessário pontuar este

aspecto, pois considero que não é impedimento para a realização de um trabalho de

interpretação sobre textos desse gênero para discutir os efeitos da colonialidade do

poder e do saber sobre a sociedade peruana.

86

ARGUEDAS, J. M. El complejo cultural en Perú. In.: Formación de una cultura nacional

indoamericana. Seleção e prólogo de Ángel Rama. México: Siglo XXI, 1975. p. 1-2.

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125

O indigenismo, conforme Cornejo Polar (ibid., p. 33-34), ao realizar uma

operação intelectual e artística, toma forma através de uma ação, de fatores adscritos à

cultura ocidental. Essa operação, de fato, se utiliza de “procedimientos, formas y

valores” que não são os mesmos que aparecem na cultura quéchua. Para o estudioso, o

indigenismo deve ser compreendido como “la movilización de los atributos de una

cultura para dar razón de otra distinta” (ibid., p. 34).

Em relação ao funcionamento discursivo do dispositivo narrativo desse gênero,

esse mesmo autor destaca ainda dois aspectos:

de un lado, la actualización de concepciones del mundo, global

o parcialmente presentes, en el sustrato primero de la

producción indigenista: a grandes rasgos, el mundo indígena es

interpretado bajo códigos que corresponden, inicialmente, a la

cosmovisión cristiana, y más tarde, a partir de finales del siglo

XIX, con criterios dependientes del positivismo y del marxismo.

De otro lado, en el campo específico de la literatura, la

revelación del mundo indígena se procesa mediante formas

adscritas al sistema literario del Occidente. Es claro que en

ambas dimensiones (…) la cultura quechua ofrece alternativas

sustancialmente diferentes (ibid., p. 34).

Segundo o autor (ibid., p. 26) estaria no cerne do indigenismo a reflexão de

Mariátegui (escritor cuja obra se inscreve nesse gênero87

), sobreposta a ideias que

ressaltavam o dualismo de duas culturas ou mesmo uma reivindicação de um autêntico

indigenismo, um lugar original que apagasse as contradições instaladas pela

colonização. Seria propósito desse gênero, pois, discutir outras questões anteriores, que

estão em conformidade com a discussão que Mignolo (2003) e Quijano (2000)

estabeleceram sobre a colonialidade do saber e do poder:

En el Perú el problema de la unidad es mucho más hondo,

porque no hay aquí que resolver una pluralidad de tradiciones

locales o regionales sino una dualidad de raza, de lengua y de

sentimiento, nacida de la invasión y conquista del Perú

autóctono por una raza extranjera que no ha podido fusionarse

87

José Carlos Mariátegui (Moquegua, Peru, 1894- Lima, Peru, 1930) é considerado um dos mais

importantes marxistas latino-americanos, cujo “marxismo herético tem profundas afinidades com alguns

dos grandes pensadores do marxismo ocidental: Gramsci, Lukács e Walter Benjamin” (LÖWY, M.,2011).

Sua obra teve influência em muitos dos escritores indigenistas do século XX.

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126

con la raza indígena ni eliminarla ni absorberla

(MARIÁTEGUI88

(1963) apud CORNEJO POLAR, 2005, p.

26).

Além dessas questões, considero que a “relação entre línguas” num mesmo

espaço de enunciação (GUIMARÃES, 2002) também traz reflexões acerca das

contradições que os dispositivos da colonialidade do poder e do saber produzem no

romance indigenista. Sobre essa questão, segundo Cornejo Polar (ibid., p. 24) a

heterogeneidade cultural se instala no indigenismo pelo fato de que tal gênero literário é

escrito em língua espanhola, o que para ele implica numa dupla determinação, dada a

impossibilidade de atualizar, na literatura, tradições orais quéchuas. Essa dupla

determinação, conforme esse autor (ibid.), se realiza na implicação de que, nesse gênero

específico, toda “atividade indigenista” é materializada por uma operação de tradução,

que ocorre no plano da língua porque não se escreve em quéchua e porque essa

materialidade vai estar atravessada por antecipações imaginárias ao serviço de que o

outro, o leitor, possa interpretar os temas tratados, já que o destinatário do discurso

indigenista, conforme esse autor, “nunca es el índio89

” (ibid.). Para Cornejo Polar

(ibid.), o romance indigenista expõe a heterogeneidade cultural do Peru de forma mais

aguda – e também mais conflitiva – que sua heterogeneidade social90

. Segundo ele,

En efecto, si en el plano social puede encontrarse una cierta

asimilación de intereses, en el horizonte de la cultura la

convergencia adelgaza considerablemente. Adviértase que la

raíz mágica de la cultura quechua choca frontalmente contra el

racionalismo occidental, y que no parece haber, entre ambos

extremos, un margen suficiente de convivencialidad o

conciliación. A este respecto conviene recordar la exactitud de

la observación de José María Arguedas acerca de los múltiples

cambios sufridos por la cultura quechua bajo la influencia de la

cultura hispánica, y la persistencia como sistema diferencial –

pese a todos esos cambios – de la cultura nativa (CORNEJO

POLAR, 2005, p. 34-35) .

88

MARIÁTEGUI, J. C. Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana. 9ª ed. Lima: Amauta,

1963. 89

Sic no original.

90

Registro a consideração do estudioso, porém considero, a partir da AD, que essa separação entre ambas

heterogeneidades é impossível.

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127

Em relação à obra de Arguedas e ao papel central que ela desempenhou no

paradigma do romance indigenista, é interessante considerar o que Andrade (2009)

discute sobre a relação existente entre a biografia desse autor e sua produção. Pelo fato

de ter sido um sujeito que viveu entre duas culturas, suas obras mobilizam sentidos que

foram fundamentais para sua formação enquanto sujeito e que são constitutivos da

relação de oposição que se estabelece nelas entre o branco e o índio. Considero isso

fundamental para traçar um vínculo entre o pensamento fronteiriço de Mignolo (2003a)

e a obra de Arguedas, ele próprio um sujeito fronteiriço entre dois mundos, o branco e o

ameríndio91

.

A obra de autores como Arguedas e Scorza, segundo Rama (2008), põe em

cheque o imaginário de uma unidade regional, baseada na visão de uma América Latina

de cultura única, imagem que se construiu desde fora desse sub-continente e que atuou

verticalmente sobre a diversidade e a heterogeneidade culturais que habitam esse

espaço. Esse efeito imaginário funcionou, conforme o autor (ibid., p. 70), não somente

como um efeito de uma unidade regional latino-americana durante muito tempo nesse

sub-continente, como também foi um fator de alteridade, ao funcionar como uma

diferenciação dessa região em relação às culturas externas (como a América anglo-saxã

e as referentes ao que Rama denomina de culturas progenitoras – Espanha e Portugal,

sobretudo). Entretanto, para o próprio estudioso, esses autores, em suas obras,

conseguiram manejar vertical e horizontalmente esse efeito imaginário de unidade ao

tratar da diversidade cultural e também social presentes na América Latina expondo

suas contradições, o que permite, segundo ele, “el análisis de una subcultura regional”

que reconstrói “con mayor rigor el funcionamiento de la sociedad” (ibid., p. 77-78).

Arguedas, segundo esse estudioso (ibid.), uniu em sua obra “la condición de etnólogo a

la de narrador”, o que lhe permitiu apresentar “un panorama completo, no solo de las

clases sociales de la sierra, sino de las formas culturales dentro de las cuales sus

criaturas narrativas se articulaban”. Apoiado nesta afirmação e em observações

realizadas pelo próprio Rama, creio que esse olhar etnográfico e ao mesmo tempo

literário de Arguedas lhe proporcionou a possibilidade de elaborar uma obra em que

91

No caso de Arguedas, se está diante de alguém que, enquanto etnógrafo, conforme citação de Rama

(2008) reflete sobre a condição do ameríndio na sociedade peruana e, como narrador, mobiliza uma

memória fortemente associada à sua biografia (um branco que viveu entre índios); no caso de Scorza se

está diante de um branco sensibilizado com questões sociais que afetam os ameríndios no espaço político

peruano.

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128

discute “patrones de comportamientos [que] han sido internalizados, convalidados y

aceptados, de padres a hijos, durante generaciones”, enquanto etnógrafo, e expor,

enquanto literato, as contradições históricas e sociais de uma sociedade através de

conflitos, pois, “[s]ólo catástrofes, sólo la brusca inserción modernizadora, parecen

capaces de evidenciar a la conciencia las rígidas estratificaciones que sostienen el

edificio social regional” ( ibid.).

É necessário, também, pontuar uma diferença entre os termos indigenismo e

indianismo. O primeiro se refere a uma literatura, que segundo Cornejo Polar (ibid., p.

35), está diferenciada de forma real do universo indígena. Tal diferenciação deve-se ao

fato de que o indigenismo é uma expressão possível, dentre outras que poderiam ter sido

realizadas, a partir da reflexão aguda de uma contradição, decorrente de processos

históricos. Essa contradição, de base social e cultural, é decorrente ou de uma quebra

histórica entre o feudalismo e o capitalismo na configuração territorial peruana, que

gerou clivagens na sociedade que habita esse espaço (caso se parta de uma perspectiva

que valide essa configuração) ou de uma existência de dois pólos desigualmente

desenvolvidos de uma única estrutura capitalista instaurada pelo colonialismo (caso se

considere desde esta perspectiva). Se essa contradição, conforme Cornejo Polar (ibid.),

fosse resolvida em algum momento, o indigenismo perderia sua base de sustentação.

Segundo esse autor:

la nota definitoria es la heterogeneidad de los componentes que

forman el indigenismo, producto de una sociedad y una cultura

que movilizan sus recursos para revelar la índole de la otra

sociedad y la otra cultura con las que comparten

conflictivamente un solo espacio nacional. El indigenismo es un

movimiento pluricultural y plurisocial: en el plano literario

representa la manifestación más profunda del carácter no

orgánicamente nacional que Mariátegui percibió – lúcidamente

– en la literatura peruana (CORNEJO POLAR, ibid., p. 36).

Em relação ao segundo termo, o indianismo, seria um equívoco para Cornejo

Polar (idem, p. 39) tomá-lo como índice para considerar essas questões. esse termo seria

mais adequado ao considerá-lo como incorporação ao sistema estético e ideológico do

romantismo – ou seja, um indigenismo romântico (CORNEJO POLAR, 2005, p. 39).

Entretanto, teria sua vantagem, caso fosse usado para evitar “una periodización

absolutizada, con etapas que en verdad es imposible distinguir con rigor” ao longo de

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129

toda a história literária peruana; pelo contrario, permitiria notar o indigenismo como

uma ampla e quase ininterrupta sequência, cuja origem está nas crônicas dos

conquistadores espanhóis do período colonial, “que se plasma diferencialmente de

acuerdo con las variantes que la historia general de la literatura peruana puede detectar

con relativa facilidad” (CORNEJO POLAR, ibid., p. 40). Conforme esse autor, o

indigenismo romântico, ou o indianismo,

es simplemente una etapa de un largo y accidentado proceso que

recorre, y en certo modo vertebra, el curso de la literatura

peruana. De esta manera la oposición entre indianismo e

indigenismo pierde importancia, sin desaparecer del todo por

supuesto, para permitir una comprensión más cabal de la

profundidad histórica del indigenismo (ibid., p. 40).

Neste ponto, afirmo que a escolha do romance indigenista foi motivada a partir

da série de considerações que apresentei até o momento. Entretanto, a visão de que há

duas culturas estanques constituídas na história, conforme se pode ler nas considerações

de Mariátegui e de Cornejo Polar, deve ser colocada em discussão. Conforme a reflexão

que venho realizando nesta tese em relação ao conceito de cultura, creio que esses

autores estariam sob um gesto de interpretação fortemente influenciado por movimentos

de estabilização e de homogeneização, apesar de problematizarem contradições sociais

e históricas sobre a sociedade peruana. Conforme entrevista ao escritor Degregori,

diversas culturas estão em relação nesse ambiente:

Al lado de la cultura criolla en el Perú conviven otros universos

culturales como el indígena y el andino. El primero lo integran

los sectores indígenas herederos de las numerosas etnias que

habitaron en el territorio peruano antes de la llegada de los

españoles y que todavía mantienen algunas lenguas propias

como el quechua y el aimara y decenas de lenguas amazónicas

aunque con pequeña cantidad de hablantes. Por cultura andina,

en cambio, se suele entender la que suma a las raíces culturales

indígenas muchos elementos de la cultura occidental (OLMOS,

CELADA, GASPARINI, 2015, p. 396).

Como lugar de interpretação, o romance indigenista me permite discutir

contradições que irrompem de sua materialidade, além de romper com sentidos e efeitos

de homogeneização decorrentes da colonialidade do poder e do saber. Nesse confronto

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de saberes e de sentidos, me proponho a elaborar os lineamentos para discutir modos de

abordar cultura, por uma sintaxe específica que escapa aos efeitos da atual globalização

e que tem um impacto sobre o conceito de “cultura”: esta, apesar de também possuir

suas particularidades – e passível de ser discutida em outras materialidades discursivas

– está em alto processo de regularização, sem determinação, que produz uma

generalização cujo efeito de sentido é a falta do específico, do que é particular.

Nesse contexto, “a cultura” funciona como fortemente vinculada a lugares

estabilizados por um efeito de homogeneização e de vinculação a certas formas

específicas tomadas como genéricas, ademais de estarem fortemente associadas ao

mercado e a bens de consumo. Além disso, é abordada como “algo fora da língua”, tal

como observei no capítulo 1. Meu propósito, ao trabalhar com o romance indigenista –

e apesar das contradições já apontadas neste item com relação à sua materialidade – me

permite mobilizar saberes que, conforme o paradigma do pensamento fronteiriço

(MIGNOLO, 2003a), possam ser discutidos em relação à história, na relação entre o

global (ou o tomado como ocidental) e o local (o específico, o particular, no caso, o

indígena,), mediados pela colonialidade do poder e do saber.

Para a elaboração dos lineamentos elaborei um corpus, composto por trechos de

dois romances indigenistas: La tumba del relámpago (quinto cantar) (1979), de Manuel

Scorza92

, e Los ríos profundos (1958), de José Maria Arguedas93

. Como disse

anteriormente, pautará o trabalho de realização desses lineamentos a reflexão sobre

certos campos lexicais específicos, as formas de tratamento presentes nos textos

selecionados e expressões de determinadas práticas, colocados em relação na história,

analisando como as relações de força escapam aos processos de agenciamento das

contradições (conforme variados movimentos discutidos nos capítulos anteriores) e

como elas se materializam, de determinadas formas, no linguístico. Como forma de

organização, apresentarei o corpus dividido em dois grupos, um para cada uma das

obras relacionadas.

92

Manuel Scorza (Lima, 1928 – Madri, 1983) foi um poeta e romancista peruano.

93

José María Arguedas (Andahuaylas, 1911 – Lima, 1969) foi um escritor, poeta, tradutor, professor,

antropólogo e etnólogo peruano.

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131

4.3. A produção de lineamentos

Para cada um dos livros que compõem o corpus que servirá de base à produção

de lineamentos ou orientações, selecionei diferentes capítulos para elaborar os

lineamentos que servirão de base para discussão de cultura, visando a interlocução no

campo de formação de professores. Em relação a Los ríos profundos (4.3.1.) selecionei

dois capítulos e em relação a La tumba del relámpago, três (4.3.2.).

Cada um dos capítulos desses livros será abordado separadamente (Texto 1 e

Texto 2) mediante a mobilização mediante mobilização de amostras, recortadas como

sequências discursivas (doravante SD), que serão numeradas. Cada SD foi tomada como

uma série de efeitos decorrentes de um gesto de interpretação que se constrói desde o

meu lugar de pesquisador brasileiro, através do cruzamento de variáveis históricas,

relativas com diversos efeitos de sentido e com práticas específicas, ou seja, com as

condições de interpretação decorrentes das condições produção desse texto, que serão

postos em relação com a mobilização teórica que realizei neste trabalho.

4.3.1. A partir de Los ríos profundos

Em Los ríos profundos, considerada uma obra importante de José María

Arguedas, Ernesto, personagem principal da trama, é um adolescente de 14 anos, tendo

somente o seu pai como família. Não há dados da época em que transcorre a narrativa,

porém, se levar em consideração que a obra é de cunho autobiográfico94

, provavelmente

ocorra na primeira metade do século XX. Como narrador em primeira pessoa, já adulto,

conta suas impressões sobre diversos fatos durante sua estadia num internato para

meninos em Abancay, cidade localizada ao sul dos Andes peruanos, onde é considerado

um forasteiro pelo fato de não ter nascido ali. Seu pai é um advogado de comunidades,

itinerante, que percorre cidades em busca de demandas junto aos índios e outras pessoas

de baixa renda; depois de não ter encontrado trabalho em Abancay e antes de partir para

outra cidade, matricula seu filho nesse colégio interno de padres, que reproduz, em sua

organização e estrutura, as contradições da sociedade peruana. A narrativa do livro

94 Há um desdobramento entre uma memória de etnógrafo e um gesto de autoria literária, como foi

antecipado a partir de Rama (2008).

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refere a esse período de sua vida em que ficou internado nesse colégio, até o dia em que

seu pai o manda buscar.

Devido à profissão de seu pai, Ernesto conheceu diversas comunidades

ameríndias que viviam nos Andes e essa convivência foi a responsável por criar uma

grande afinidade com o modo de vida dos índios e, apesar de ser um deles, uma

“incompatibilidade” com o modo de vida dos brancos que habitam esse espaço.

Segundo Vargas Llosa, no prefácio dessa obra, podem ser estabelecidas algumas

relações com a biografia do próprio Arguedas que, filho de um juiz que exerceu a

profissão em várias cidades, antes de perder o cargo por motivos políticos e trabalhar

como advogado, também viveu em Abancay e estudou em um colégio interno quando

tinha a idade de Ernesto. O conhecimento que possuía de quéchua e sobre o modo de

vida dos índios deveu-se ao fato de que sofrera violência, quando criança, do filho de

sua madrasta e também dela, que obrigavam que ele convivesse grande parte do seu

tempo com os colonos indígenas que trabalhavam para o seu pai, conforme a biografia

presente ao final da edição de Los ríos profundos que aqui mobilizo.

Como já antecipei, abordarei separadamente os dois capítulos pinçados desse

livro: o capítulo II – Los viajes será o Texto 1 e o capítulo VII: El motín, o Texto 2. No

próximo item apresento, então, o Texto 1, mediante a mobilização das referidas SD’s

que darão sustento à elaboração de possíveis trilhas ou caminhos a serem seguidos para

a abordagem de cultura numa reconhecida relação com a materialidade da língua.

Texto 1 – Los viajes

No capítulo II de Los ríos profundos , “Los viajes”, o eu narrador relata as

viagens que fez na infância e no início da adolescência antes de chegar a Abancay,

cidade onde – como acabei de relatar – seu pai o matricula num colégio interno católico

para seguir viagem em busca de trabalho.

Passo, agora a abordar a série de SD’s recortadas.

SD.1.

Mi padre no pudo encontrar nunca dónde fijar su residencia; fue un abogado

de provincias, inestable y errante. Con él conocí más de doscientos

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pueblos. Temía a los valles cálidos y sólo pasaba por ellos como viajero; se

quedaba a vivir algún tiempo en los pueblos de clima templado: Pampas,

Huaytará, Coracora, Puquio, Andahuaylas, Yauyos, Cangallo…

(ARGUEDAS, 1958, p. 19) (grifos meus).

Como discutido no primeiro capítulo desta tese, em práticas de ensino de línguas

estrangeiras muitos aspectos são abordados mediante generalizações que apagam o

específico e que não mostram o diverso. Dentre esses aspectos, estão as relações de

trabalho e, dentro desse universo, a série de identidades profissionais existentes. A

heterogeneidade de atividades profissionais (ligadas a diversos âmbitos: o comercial, o

industrial, etc.) é apagada e submetida a um processo de homogeneização de práticas

sociais que passa por lugares estabilizados, vinculados ao Mercado.

Na SD.1. temos uma amostra de como há possibilidades de abordar relações de

trabalho que não se encaixem nessa configuração. O trabalho de “advogado de

províncias” implicava ser advogado dos comuneros (índios que trabalhavam em

fazendas), pois esse profissional viajava de comunidade em comunidade angariando

demandas judiciais entre os índios que possuíam relações de trabalho em condições

análogas às da escravidão. Abordar essa relação de trabalho específica entre um

abogado comunero (como também era conhecido) e os índios é um modo de deslocar o

“lugar comum” em relação ao trabalho. Em relação à profissão de advogado, há o senso

comum de que seja uma profissão bem remunerada, devido ao status de que goza na

sociedade. Abordar essa profissão como algo “inestable y errante” é colocar em relação

as formas de trabalho e os lugares institucionais que permitem que uma profissão seja

valorizada95

. Na SD.1. o lugar do advogado em questão está deslocado a respeito de

sentidos que apresentam uma estabilidade lógica e que são altamente regulares em

discursividades predominantes no mundo contemporâneo; de fato, em seu trabalho esse

sujeito se relaciona com o específico funcionamento de uma formação social, em

condições marcadas historicamente.

A relação com o espaço também é possível de ser destacada: a oposição entre

lugares de clima “templado” e “cálido” e a ingerência que o clima pode exercer na vida

das pessoas.

95

Permite trabalhar na contramão de sentidos que promovem a figura do “sujeito bem sucedido”

(PAYER, 2005).

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134

SD.2. Las grandes piedras detienen el agua de esos ríos pequeños; y se forman los

remansos, las cascadas, los remolinos, los vados. Los puentes de madera o

los puentes colgantes y las oroyas, se apoyan en ellas. En el sol, brillan. Es

difícil escalarlas porque casi siempre son compactas y pulidas. Pero desde

esas piedras se ve cómo se remonta el río, cómo aparece en los recodos,

cómo en sus aguas se refleja la montaña. Los hombres nadan para alcanzar

las grandes piedras, cortando el río, llegan a ellas y duermen allí. Porque de

ningún otro sitio se oye mejor el sonido del agua. En los ríos anchos y

grandes no todos llegan hasta las piedras. Sólo los nadadores, los audaces,

los héroes; los demás, los humildes y los niños se quedan; miran desde la

orilla, cómo los fuertes nadan en la corriente, donde el río es hondo,

cómo llegan hasta las piedras solitarias, cómo las escalan, con cuánto

trabajo, y luego se yerguen para contemplar la quebrada, para aspirar

la luz del río, el poder con que marcha y se interna en las regiones

desconocidas (ibid., p. 19) (grifos meus).

Na SD.2. a relação entre homem e natureza não é colocada em oposição, mas em

harmonia. Um dois fragmentos nos quais se materializa o que observo é: “Los hombres

nadan para alcanzar las grandes piedras, cortando el río, llegan a ellas y duermen allí.

Porque de ningún otro sitio se oye mejor el sonido del agua.”, sendo que a direção de

sentidos aí instalada vai culminar no fragmento que marcamos com letra em negrito.

Conforme visto no capítulo 2, a significação de cultura como civilização foi

baseada principalmente na oposição entre cultura e natureza, relação que posteriormente

foi aproximada na consideração de cultura como modo de vida característico. É

possível fazer uma analogia sobre a interação entre homem e natureza para discutir as

técnicas do homem que nela se apoiam, ou que pouco a modificam, em oposição a

outras técnicas que a modificam totalmente96

, pois aqui ela é base de apoio ao que é

artificial, construído pelo homem, como se pode ler no seguinte trecho: “Las grandes

piedras detienen el agua de esos ríos pequeños; y se forman los remansos, las cascadas,

los remolinos, los vados. Los puentes de madera o los puentes colgantes y las oroyas, se

apoyan en ellas”, pois o que é produzido pelo homem só é possível de existir ao apoiar-

se nas pedras, elemento da natureza. A SD.2. permite discutir relações entre homem e

natureza, técnicas e trabalho, práticas culturais que se relacionam com a preservação ou

a modificação da natureza.

96

Faço remissão ao “grande número de técnicas materiais (todas as que visam produzir transformações

físicas ou biofísicas)” de que fala Pêcheux (2008, p. 30), reflexão que discuti anteriormente no capítulo 3.

Tais técnicas, segundo o autor, visam obter um resultado que aproveite, da melhor forma possível, os

processos naturais, instrumentalizando-os.

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Nesse sentido também é possível discutir a relação que García Canclini (1997, p.

23) estabelece entre modernidade e modernização, a qual discuti no capítulo 3 desta

tese: apesar de haver, no momento da ação da narrativa, técnicas materiais que

poderiam garantir a autonomia de construções em relação a obstáculos naturais,

características da modernidade, há a possibilidade de existir técnicas de construção de

meios artificiais de baixa complexidade, característicos de lugares que não passaram por

processos de modernização ou que não dominam técnicas decorrentes da modernidade.

Na SD.2. aparecem “pontes” e o que considero mais importante é ressaltar que estas

surgem porque o olhar do narrador repara nelas e as inclui na descrição ao passar os

olhos pela paisagem, na qual essas produções do homem (essas intervenções na

natureza) parecem estar integradas. Tais relações podem ser discutidas pelo viés da

colonialidade do saber –, na comparação entre as técnicas mais modernas de engenharia

e técnicas rudimentares de construção.

SD.3.

A mi padre le gustaba oír huaynos97

; no sabía cantar, bailaba mal, pero

recordaba a qué pueblo, a qué comunidad, a qué valle pertenecía tal o cual

canto. A los pocos días de haber llegado a un pueblo averiguaba quién era el

mejor arpista, el mejor tocador de charango, de violín y de guitarra. Los

llamaba, y pasaban en la casa toda una noche. En esos pueblos sólo los

indios tocan arpa y violín. Las casas que alquilaba mi padre eran las más

baratas de los barrios centrales. El piso era de tierra y las paredes de

adobe desnudo o enlucido con barro. Una lámpara de kerosene nos

alumbraba. Las habitaciones eran grandes; los músicos tocaban en una

esquina. Los arpistas indios tocan con los ojos cerrados. La voz del arpa

parecía brotar de la oscuridad que hay dentro de la caja; y el charango

formaba un torbellino que grababa en la memoria la letra y la música de los

cantos (ibid., p. 20) (grifos meus).

A SD.3. apresenta um ponto de reflexão sobre uma prática artística específica dos

Andes que se desenvolve ao redor do huayno, que ademais de implicar canto também

envolve dança e rituais próprios (são tocados certos instrumentos, sendo que alguns

deles somente os índios poderiam tocar; há huaynos específicos de cada região). Não há

menção, na SD em destaque, sobre detalhes que poderiam caracterizar a composição

huayno e sua interpretação de modo específico; entretanto a SD.3. permite discutir

97 Canción y baile popular de origen incaico – nota do autor (ARGUEDAS, 1958, p. 20).

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aspectos de uma prática social que identifica determinada comunidade em forte relação

com os espaços: “a qué pueblo98

, a qué comunidad, a qué valle pertenecía tal o cual

canto”; também abordar os instrumentos musicais específicos que fazem parte dessa

prática (“arpa y violín”; “charango”) e as sensações provocadas ao ouvir um huayno:

observe-se que “a voz” desliza em metonímia e é atribuída à “arpa” no fragmento: “La

voz del arpa parecía brotar de la oscuridad que hay dentro de la caja; y el charango

formaba un torbellino que grababa en la memoria la letra y la música de los cantos”.

Ademais, rituais sociais relacionados a essa atividade são possíveis de serem discutidos,

quando o narrador observa que somente os índios poderiam tocar determinados

instrumentos99

.

Toda essa série de aspectos se entrelaça na SD.3. com os que se vinculam ao tipo

de moradia de Ernesto e seu pai, o que mobilizaria reflexões sobre a vivência em

lugares urbanos e rurais, dando sustento para discussões que vão na contramão de uma

tipologia de moradias descontextualizada ou estereotipada, como é de praxe nas

atividades de ensino de línguas sobre tipos de casa, em que se toma como modelo as de

estilo urbano, com os cômodos e móveis que “todos e qualquer um” poderiam ter. O

específico e o particular (mediante a inclusão do detalhe) entra em oposição ao que é

submetido a uma generalização ou é tomado como pertencente a “todo lugar” –

poderíamos dizer aqui: “globalizado” 100

.

Parece ficar claro que a apresentação de técnicas materiais e de objetos vinculados

a determinado espaço (ou espaços), ou a determinadas práticas sociais e culturais

constituem possíveis pontos de discussão sobre processos históricos e culturais a partir

da SD.3.

98

Cidade pequena, povoado.

99

A relação dessa questão com práticas musicais da realidade do aluno pode ser um contraponto ao

huayno, ou seja: uma discussão a partir de uma pesquisa sobre atividades musicais do contexto do aluno e

sua comparação com as práticas descritas pelo autor sobre o huayno, questão que poderia ser explorada

conforme a reflexão de Eagleton (2011) sobre cultura como prática artística, discutindo práticas culturais

artísticas vinculadas a determinados grupos étnicos e sociais e práticas mais legitimadas de arte, como as

vinculadas com a indústria cultural de massa, globalizada.

100

Conforme a reflexão de Revuz (1998) sobre “o estrangeiro reduzido ao mesmo”, quando a língua

estrangeira é reduzida a um código técnico. Um modo de se contrapor a isso é a postulação, por parte da

autora, de que aprender uma língua “é fazer a experiência de seu próprio estranhamento no mesmo

momento em que nos familiarizamos com o estranho da língua e da comunidade que a faz viver” (ibid., p.

229).

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137

SD.4. Cierta vez llegamos a un pueblo cuyos vecinos principales odian a los

forasteros. El pueblo es grande y con pocos indios. Las faldas de los cerros

están cubiertas por extensos campos de linaza. Todo el valle parece

sembrado de lagunas. La flor azul de la linaza tiene el color de las aguas de

altura. Los campos de linaza parecen lagunas agitadas; y, según el poder del

viento, las ondas son menudas o extensas.

Cerca del pueblo, todos los caminos están orillados de árboles de capulí.

Eran unos árboles frondosos, altos, de tronco luminoso; los únicos árboles

frutales del valle. Los pájaros de pico duro, la tuya, el viuda-pisk’o, el

chihuaco, rodaban las huertas. Todos los niños del pueblo se lanzaban sobre

los árboles, en la tarde y al mediodía. Nadie que los haya visto podrá olvidar

la lucha de los niños de ese pueblo contra los pájaros. En los pueblos

trigueros, se arma a los niños con hondas y latas vacías; los niños caminan

por las sendas que cruzan los trigales; hacen tronar sus hondas, cantan y

agitan del badajo de las latas. Ruegan a los pájaros en sus canciones, les

avisan: ‘¡Está envenenado el trigo! ¡Idos, idos! ¡Volad, volad! Es del señor

cura. ¡Salid! ¡Buscad otros campos!’. En el pueblo del que hablo, todos los

niños estaban armados con hondas de jebe; cazaban a los pájaros como a

enemigos de guerra; reunían a los cadáveres a la salida de las huertas, en el

camino, y los contaban: veinte tuyas, cuarenta chihuacos, diez viuda pisk’os

(ibid., p. 20-21).

Na SD.4. a relação entre homem e natureza é um tema central, além de questões

relacionadas à alteridade. A primeira delas surge do estranhamento do eu narrador com

um determinado povoado e parece ter a ver com dois desconfortos: com o fato de ser

um forasteiro, o que não era aceitável para os moradores desse lugar: “Cierta vez

llegamos a un pueblo cuyos vecinos principales odian a los forasteiros”; e com a

modalidade da composição da população do lugar: “El pueblo es grande y con pocos

índios” pois, devido ao trabalho de seu pai, Ernesto tinha pouco contato com brancos,

apesar de também ser um deles. Essa relação de alteridade é um ponto passível de

discussão, pois denota uma divisão na construção de uma identidade nacional. Nessa

direção, vale a pena colocar o fragmento em relação com a consideração de Cornejo

Polar, sobre a heterogeneidade social peruana: “no parece haber, entre ambos extremos,

un margen suficiente de convivencialidad o conciliación” (2005, p. 34).

A partir dessa questão inicial, o narrador descreve a natureza do lugar –

novamente o destaque sobre o particular e o específico relacionado ao espaço,

movimento que desloca o desconforto inicial provocado pelas relações de alteridade em

jogo. Estas últimas têm mais a ver com o movimento de cultura como modo de vida

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característico, conforme Eagleton (2011) o define, porém contraditório e sem laço com

o comunitarismo a que Bauman (2012) faz referência – conforme discussão que

apresentei no capítulo 2 sobre as significações de cultura na história –, pois aqui está

deslocado esse processo que recupera e valoriza uma identidade, local, particular e

próxima ao sujeito: Ernesto é branco, mais não se reconhece conforme uma identidade

comunitária branca específica desse povoado; se sente deslocado, pela relação de

alteridade que o constitui, por se tratar de um lugar com poucos índios. Na continuação

da SD.4., o eu narrador realiza um trabalho de descrição desse lugar, pautado sobretudo

por sua percepção de elementos que remetem à natureza – em contraste com a

urbanidade de um grande povoado.

Afetado por sua relação com os animais e as plantas, Ernesto estranha as atitudes

distintas com os animais, numa relação que poderia ser vinculada a uma oposição entre

civilização e natureza: apesar de mobilizar sensações e atitudes relacionadas à infância,

elas são opostas conforme as tradições e os costumes marcados por identidades e

culturas diferentes; essa oposição é marcada conforme o modo como as crianças dos

“pueblos trigueros” e do “pueblo (...) con pocos índios” tratam os animais.

Nesta SD. há uma questão de caráter linguístico, diretamente relacionada à

diversidade, conforme as instâncias da heterogeneidade linguística que discuti

anteriormente no capítulo 1, a partir de Serrani-Infante (1997a). Na SD.4. há

ocorrências verbais da segunda pessoa do plural, vosotros, “¡Idos, idos! ¡Volad, volad!

Es del señor cura. ¡Salid! ¡Buscad otros campos!” e que, segundo obras consultadas,

não ocorreriam no espaço da América de fala espanhola: segundo Carricaburo (1997) e

Fontanella de Weinberg (1993), haveria a neutralização da diferença entre “vosotros” e

“ustedes”, a favor da última forma, em situações de interlocução com a segunda pessoa

do plural. Isto nos leva a pensar na possibilidade de explorar a mobilização dessas

formas101

.

SD.5.

101

A ocorrência de formas verbais conjugadas na segunda pessoa do plural leva a pensar na possibilidade

de explorar a mobilização dessas formas de tratamento, conforme o paradigma de suas regularidades no

espaço americano ou das diferenças dessas regularidades na comparação com as que ocorrem no espaço

espanhol.

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139

Un cerro alto y puntiagudo era el vigía del pueblo. En la cumbre estaba

clavada una cruz; la más grande y poderosa de cuantas he visto. En mayo la

bajaron al pueblo para que fuera bendecida. Una multitud de indios vinieron

de las comunidades del valle; y se reunieron con los pocos comuneros del

pueblo, al pie del cerro. Ya estaban borrachos, y cargaban odres llenos de

aguardiente. Luego escalaron el cerro, lanzando gritos, llorando.

Desclavaron la cruz y la bajaron en peso. Vinieron por las faldas erizadas y

peladas de la montaña y llegaron de noche.

Yo abandoné ese pueblo cuando los indios velaban su cruz en medio de la

plaza. Se habían reunido con sus mujeres, alumbrándose con lámparas y

pequeñas fogatas. Era pasada la medianoche. Clavé en las esquinas unos

carteles en que me despedía de los vecinos del pueblo, los maldecía. Salí a

pie, hacia Huancayo.

En ese pueblo quisieron matarnos de hambre; apostaron un celador en cada

esquina de nuestra casa para amenazar a los litigantes que iban al estudio de

mi padre; odiaban a los forasteros como a las bandas de langostas. Mi padre

viajaría en un camión, al amanecer; yo salí a pie en la noche. La cruz estaba

tendida en la plaza. Había poca música; la voz de unas cuantas arpas opacas

se perdía en la pampa. Los indios hacen bulla durante las vísperas, pero en

esa plaza estaban echados, hombres y mujeres; hablaban junto a la cruz, en

la sombra, como los sapos grandes que croan desde los pantanos.

Lejos de allí, ya en la cordillera, encontré otros pueblos que velaban su cruz.

Cantaban sin mucho ánimo. Pero estaban bien alumbrados; centenares de

velas iluminaban las paredes en las que habían reclinado las cruces.

Era un pueblo hostil que vive en la rabia, y la contagia. En la esquina de una

calle donde crecía yerba de romaza que escondía grillos y sapos, había una

tienda. Vivía allí una joven alta, de ojos azules. Varias noches fui a esa

esquina a cantar huaynos que jamás se habían oído en el pueblo. Desde el

abra podía ver la esquina; casi terminaba allí el pueblo. Fue un homenaje

desinteresado. Robaba maíz al comenzar la noche, cocinaba choclos con mi

padre en una olla de barro, la única de nuestra casa. Después de comer,

odiábamos al pueblo y planeábamos nuestra fuga. Al fin nos acostábamos;

pero yo me levantaba cuando mi padre empezaba a roncar.

(…)

Cuando salía en la noche, los sapos croaban a intervalos; su coro frío me

acompañaba varias cuadras. Llegaba a la esquina, y junto a la tienda de

aquella joven que parecía ser la única que no miraba con ojos severos a los

extraños, cantaba huaynos de Querobamba, de Lambrama, de Sañayca, de

Toraya, de Andahuaylas… de los pueblos más lejanos; cantos de las

quebradas profundas. Me desahogaba; vertía el desprecio amargo y el

odio con que en ese pueblo nos miraban, el fuego de mis viajes por las

grandes cordilleras, la imagen de tantos ríos, de los puentes que cuelgan

sobre el agua que corre desesperada, la luz resplandeciente y la sombra

de las nubes más altas y temibles. Luego regresaba a mi casa, despacio,

pensando con lucidez en el tiempo en que alcanzaría la edad y la

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140

decisión necesarias para acercarme a una mujer hermosa; tanto más

bella si vivía en pueblos hostiles (ibid., p. 21-22) (grifos meus).

Ao abordar a SD.5., é possível afirmar que um dos temas passíveis de discussão é

o que se relaciona com as divisões sociais promovidas por algumas categorias que

estruturam a colonialidade do poder de Quijano (2000). A principal delas é o

cristianismo, que Quijano (ibid.) aponta como ideologia, além da categoria de raça,

categorias102

que instalaram clivagens sociais a partir da colonização. A contradição

decorrente desse processo pode ser lida na descrição que o eu narrador realiza na SD.5.:

é uma cena em que há uma procissão composta por comuneros (índios que trabalham

para os brancos) embriagados, vindos de outras comunidades, que se juntam aos poucos

que viviam no povoado em que ele se encontrava. A relação contraditória entre a

embriaguez alcoólica e o ritual religioso produz um sincretismo que se aproxima e, ao

mesmo tempo, se diferencia das práticas religiosas dos brancos, como em um transe

proporcionado pelo ritual e pelo álcool que se aproximaria de outras práticas religiosas

– porém deslocada, realizada de forma diferente, pois os rituais cristãos não fazem uso

do álcool: “Ya estaban borrachos, y cargaban odres llenos de aguardiente. Luego

escalaron el cerro, lanzando gritos, llorando. Desclavaron la cruz y la bajaron en peso”.

Há, nesse episódio, uma ordem da cultura (FERREIRA, 2011) atravessando a

organização instalada pelas técnicas materiais e, sobretudo, pelas de gestão social

(PÊCHEUX, 2008): no caso, afetando a estabilização de um ritual religioso.

A “relação de alteridade” que observei em SD.4. também está presente em SD.5.,

quando o eu narrador faz menção ao ódio desse povoado em relação aos forasteiros,

ódio que é característico das relações de poder instaladas pela história nesse espaço: “En

ese pueblo quisieron matarnos de hambre; apostaron un celador en cada esquina de

nuestra casa para amenazar a los litigantes que iban al estudio de mi padre; odiaban a

los forasteros como a las bandas de langostas”.

Essas relações são características de um espaço habitado por uma história, por um

jogo de tensões e de forças que se materializam nas relações entre os sujeitos. Os

litigantes a que Ernesto faz referência, conforme a característica do trabalho de seu pai,

provavelmente são índios; estes, submetidos a relações de forças instauradas pela

colonialidade do poder, são determinados por esse jogo em que se estabelecem as

102

Aqui voltam as “técnicas de gestão social dos indivíduos” das quais falei anteriormente (PÊCHEUX

2008, p. 30).

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141

relações sociais, em oposição a um imaginário de uma sociedade homogênea sob a

tutela de um Estado, em que direitos e deveres seriam realizados a partir de um arquivo

jurídico em iguais condições, sobre o papel do Estado nos processos de interpelação dos

indivíduos103

.

Outras relações de alteridade também habitam esse espaço, na configuração das

relações sociais. Quando Ernesto relata seu interesse por uma “joven alta, de ojos

azules”, passa a frequentar o local onde são cantados huaynos nunca ouvidos naquele

lugar – o que marca sua diferença por uma prática artística que produz não somente uma

clivagem cultural (cantar huaynos) mas, ao mesmo tempo, uma posição identitária: um

branco conhecedor de práticas culturais andinas, que naquele espaço não somente marca

uma posição – huaynos nunca ouvidos naquele lugar –, mas também de cultura – uma

prática cultural dos índios – em relação à jovem branca, apesar de ele também ser

branco. Esse acontecimento (uma reunião em torno do cantar) aí narrado coloca em

questão os jogos de força que marcam a diferença e que habitam esse espaço,

constituídos na história, atravessando os corpos desses sujeitos, tal como penso que fica

registrado no fragmento marcado por mim em negrito.

SD.6.

De Cangallo seguimos viaje a Huamanga, por la pampa de los indios

morochucos. Jinetes de rostro europeo, cuatreros legendarios, los

morochucos son descendientes de los almagristas excomulgados que se

refugiaron en esa pampa fría, aparentemente inhospitalaria y estéril. Tocan

charango y wad’rapucu, raptan mujeres y vuelan en espera en caballos

pequeños que corren como vicuñas. El arriero que nos guiaba no cesó de

rezar mientras trotábamos en la pampa. Pero no vimos ninguna tropa de

morochucos en el camino. Cerca de Huamanga, cuando bajábamos

lentamente la cuesta, pasaron como diez de ellos; descendían cortando

camino, al galope. Apenas pude verles el rostro. Iban emponchados; una alta

bufanda les abrigaba el cuello; los largos ponchos caían sobre los costados

del caballo. Varios llevaban wad’rapucus a la espalda, unas trompetas de

cuerno ajustadas con anillos de plata. Muy abajo, cerca de un bosque

reluciente de molles, tocaron sus cornetas anunciando su llegada a la ciudad.

El canto de los wad’rapucus subía a las cumbres como un coro de toros

encelados e iracundos.

Nosotros seguimos viaje con una lentitud inagotable (ibid., p. 25).

103

Conforme discussão que mobilizei a partir de vários autores da AD: Haroche (1992), Payer (1993),

Gadet e Pêcheux (2004), Guimarães (2002) e Pêcheux (2009).

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142

Na SD.6. aparece uma trama de questões históricas: os índios morochucos, povo

mestiço, (“jinetes de rostro europeo”), cuja principal atividade é a criação de gados, são

descendentes de europeus que participaram de várias lutas que dividiram os

conquistadores espanhóis no início da colonização do Peru e que perderam a batalha de

Chupas, em 1592, comandados por Almagro El Mozo, filho de Diego de Almagro, um

dos primeiros conquistadores espanhóis que ali chegaram. Almagro El Mozo era

também um mestiço, filho de Diego com uma índia, e ocupou o cargo de governador do

Peru em 1541, quando se rebelou contra a Coroa espanhola. Derrotados, os almagristas

se refugiaram no centro sul do território peruano e, segundo cronistas dessa época,

constituíram uma tribo com os índios que viviam nessa região. Esse dado histórico,

relatado como literatura, é um traço característico das crônicas espanholas sobre a

Conquista104

, artificio muito presente nos romances indigenistas – conforme a relação

que Cozman (2005, p. 14) estabelece entre o indigenismo e as primeiras crônicas

espanholas produzidas no Peru.

A remissão a fatos históricos na literatura, registrada na SD.6., também está

presente no relato sobre os índios morochucos e o temor que se tem deles: “Tocan

charango y wad’rapucu, raptan mujeres y vuelan en espera en caballos pequeños que

corren como vicuñas. El arriero que nos guiaba no cesó de rezar mientras trotábamos en

la pampa. Pero no vimos ninguna tropa de morochucos en el camino”. A descrição

continua através da caracterização de suas vestimentas: “Iban emponchados; una alta

bufanda les abrigaba el cuello; los largos ponchos caían sobre los costados del caballo”,

como marca de identidade e de diferenciação a respeito de outros grupos étnicos.

A descrição sobre esse povo não se realiza somente por esse índice, pois há

também menção a um artefato, descrito minuciosamente, destinado a práticas

específicas, o wad’rapucus, no fragmento: “Varios llevaban wad’rapucus a la espalda,

unas trompetas de cuerno ajustadas con anillos de plata”. Se em um primeiro momento

104

Para relatos deste tipo, há diversas obras como as seguintes:

DEL BUSTO DUTHURBURU, J. A. Diccionario Histórico Biográfico de los Conquistadores del Perú.

Tomo I. Lima: Editorial Arica, 1973.

_____. La pacificación del Perú. Lima: Librería Studium Editores, 1984.

DEL PINO, A. T. Enciclopedia Ilustrada del Perú. Tomo 1. Lima: PEISA, 2001.

GARCILASO DE LA VEGA, I. Historia general del Perú. Tomo I. Lima: Editorial Universo, 1972.

HUERTA, C.: Cronología de la Conquista de los Reinos del Perú: (1524 - 1572). Lima: Editorial

Independiente, 2013.

PRESCOTT, G.: Historia de la conquista del Perú. Tomo III. Lima: Editorial Universo, 1972.

VARGAS UGARTE, R.: Historia General del Perú. Tomo I. Lima: Editor Carlos Milla Batres, 1981.

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143

da SD.6., esse instrumento se vincula a uma prática artística (“Tocan charango y

wad’rapucus”), há depois a menção de que ele também se vincula a rituais específicos

dessa tribo, que podem ser associados a um modo de proceder em sociedade ou a uma

prática artística: “Muy abajo, cerca de un bosque reluciente de molles, tocaron sus

cornetas anunciando su llegada a la ciudad. El canto de los wad’rapucus subía a las

cumbres como un coro de toros encelados e iracundos”. Esse relato apresenta uma

heterogeneidade apoiada em diversos temas: histórico, cultural e linguístico, que

funciona como um contraponto em relação ao relato de práticas genéricas de trabalho,

de sociedade e de vestimenta em aulas de língua estrangeira.

Texto 2 – El motín

O segundo texto tomado de Los ríos profundos corresponde ao capítulo VII – El

Motín. Já aluno do colégio interno de padres, Ernesto e os demais alunos são

surpreendidos por uma manifestação que acontece nos arredores do colégio, na cidade

de Abancay. Várias chicheras, pessoas que se dedicam a fabricar e a vender chicha,

uma bebida alcóolica feita de milho, que trabalhavam em chicherías (lugar onde se

vende chicha) da cidade, se revoltam com os preços definidos por uma salineira

(empresa que comercializava sal). A manifestação ganha ares de revolta, pois as

chicheras saqueiam os depósitos de sal e distribuem várias sacas desse produto dentre a

população mais pobre. No entremeio das ações, o padre da cidade, também diretor do

colégio, tenta mediar o conflito, mas não consegue impedir o saque e a distribuição de

sal. Após a invasão da salineira, as chicheras se dirigem ao bairro mais pobre da cidade,

onde vivem os índios comuneros, para distribuir sal entre essa população. Todos os

eventos são narrados de perto por Ernesto, quem observa e também participa do protesto

e da passeata até o bairro dos comuneros. Causa estranhamento a ele que estes,

fortemente vigiados por pessoas armadas que trabalham para os donos da terra onde

aqueles trabalham, não aceitem a oferta das chicheras em um primeiro momento, oferta

que depois é recebida por causa da insistência destas últimas. Quando estas vão embora,

os capatazes dos senhores de terra invadem as casas dos comuneros e tomam de volta o

sal que havia sido entregue pelas mulheres. A líder do movimento, Doña Filipa, torna-se

fugitiva da polícia e passa a ser perseguida pelo exército por ter liderado a revolta.

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144

Após ter apresentado uma síntese do relato que acontece no capítulo que abordo,

passo a tratar as sequências retiradas dele.

SD.8.105

Las mujeres que ocupaban el atrio y la vereda ancha que corría frente al

templo, cargaban en la mano izquierda un voluminoso atado de piedras.

Desde el borde del parque pudimos ver a la mujer que hablaba en el arco de

entrada a la torre. No era posible avanzar más. En la vereda la multitud era

compacta. Sudaban las mujeres; los aretes de plata y de quintos de oro que

llevaban algunas, brillaban con el sol. La mujer que ocupaba el arco de la

torre era una chichera famosa; su cuerpo gordo cerraba completamente

el arco; su monillo azul, adornado de cintas de terciopelo y de piñes, era

de seda, y relucía. La cinta del sombrero brillaba, aun en la sombra;

era de raso y parecía en alto relieve sobre el albayalde blanquísimo del

sombrero recién pintado. La mujer tenía cara ancha, toda picada de

viruelas; su busto gordo, levantado como una trinchera, se movía; era

visible, desde lejos, su ritmo de fuelle, a causa de la respiración honda.

Hablaba en quechua. Las ces suavísimas, del dulce quechua de Abancay

sólo parecían ahora notas de contraste, especialmente escogidas, para que

fuera más duro el golpe de los sonidos guturales que alcanzaban a todas las

paredes de la plaza.

– ¡Mánan!¡ Kunankamallam suark’aku…! – decía.

(¡No! ¡Sólo hasta hoy robaron la sal! Hoy vamos a expulsar de Abancay a

todos los ladrones. ¡Gritad, mujeres; gritad fuerte; que lo oiga el mundo

entero! ¡Morirán los ladrones!)

– ¡Kunanmi suakuna wañunk’aku! (¡Hoy van a morir los ladrones!)

Cuando volvieron a repetir el grito, yo también lo coreé.

(…)

En ese instante llegó hasta nosotros un movimiento de la multitud, como un

oleaje. El Padre Director avanzaba entre las mujeres, escoltado por dos

frailes. Sus vestiduras blancas se destacaban entre los rebozos multicolores

de las mujeres. Le hacían campo y entraba con cierta rapidez. Llegó junto al

arco de la torre, frente a la chichera. Levantó el brazo derecho como para

bendecirla; luego le habló. No podíamos oír la voz del Padre; pero por la

expresión de la mujer comprendimos que le rogaba. Las mujeres guardaron

silencio; y, poco a poco, el silencio se extendió a toda la plaza. Podía

escucharse el caer del sol sobre el cuerpo de las mujeres, sobre las hojas

destrozadas de los lirios del parque… Oímos entonces las palabras del

Padre. Habló en quechua.

105

Lembro que a numeração das sequências continuará a iniciada na seção anterior.

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145

–…No hija. No ofendas a Dios. Las autoridades no tienen la culpa. Yo te lo

digo en nombre de Dios.

– ¿Y quién ha vendido la sal para las vacas de las haciendas? ¿Las vacas son

antes que la gente, Padrecito Linares?

La pregunta de la chichera se escuchó claramente en el parque. La esquina

que formaban los muros de la torre y del templo servían como caja de

resonancia.

– ¡No me retes, hija! ¡Obedece a Dios!

– Dios castiga a los hombres, Padrecito Linares – dijo a voces la chichera, y

se inclinó ante el Padre. El Padre digo algo y la mujer lanzó un grito:

– ¡Maldita no, padrecito! ¡Maldición a los ladrones!

Agitó el brazo derecho, como si sacudiera una cuerda. Todas las campanas

se lanzaron a vuelo, tocando nuevamente a rebato.

– ¡Yastá! ¡Avanzo, avanzo! – gritó la chichera, en castellano (ibid., p. 73-

74) (grifos meus).

Na SD.8. a descrição da multidão que participava da manifestação e da chichera

que a comandava permite abordar elementos relacionados ao corpo e a modos de vestir

específicos. No plano das práticas de ensino de línguas estrangeiras, tais elementos,

mais uma vez, deslocam abordagens neutras e estereotipadas sobre o corpo e as

vestimentas, essas últimas associadas ao consumo e a uma homogenização estabilizada

pelo Mercado.

A multidão composta pelas chicheras também apresenta peculiaridades que aqui

vinculo ao gesto de especificação que me parece importante para trazer o plano da

alteridade, do que tem a ver com a cultura tal como tento compreendê-la: “Sudaban las

mujeres; los aretes de plata y de quintos de oro que llevaban algunas, brillaban con el

sol”. A maneira de vestir da líder, descrita em detalhes (no fragmento em negrito), com

um vocabulário específico de vestimentas e adereços, permite relacionar o corpo (fora

dos padrões de beleza, descrito em movimento, em ação, e marcado por uma história) e

os hábitos particulares com o lugar – com os modos de vida característicos: o corpo

aparece vinculado aos objetos produzidos por determinadas práticas filiadas a uma

memória; isso se materializa em fragmentos como “La cinta del sombrero brillaba, aun

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en la sombra; era de raso y parecía en alto relieve sobre el albayalde blanquísimo del

sombrero recién pintado”. Nele aparecem as referências, em detalhe, de gestos

peculiares. O corpo da descrição assume o corpo do real: “su cuerpo gordo cerraba

completamente el arco”, “la mujer tenía cara ancha, toda picada de viruelas”, com um

toque de humor por parte de um narrador que se sente à vontade para fazer deslizar o

dizer e a língua: “su busto gordo, levantado como una trinchera, se movía; era visible,

desde lejos, su ritmo de fuelle, a causa de la respiración honda”.

Na SD.8. há a única observação de caráter linguístico, em relação ao quéchua,

no corpus que aqui recorto: “Hablaba en quechua. Las ces suavísimas, del dulce

quechua de Abancay sólo parecían ahora notas de contraste, especialmente escogidas,

para que fuera más duro el golpe de los sonidos guturales que alcanzaban a todas las

paredes de la plaza”. A descrição dos sons expõe traços que rompem com o imaginário

de uma homogeneidade linguística (“el dulce quechua de Abancay” – fazendo

referência ao agenciamento singular dessa língua) e funciona como uma marca de

identidade, da qual o eu narrador não compartia, pois Ernesto falava outra variante de

quéchua, e era forasteiro, conforme trechos da narrativa que aqui não reproduzo, o que

lhe permitia fazer tal observação. Esse traço linguístico não somente pontua que as

línguas são heterogêneas, como também funcionam como marca de identidade, afetando

não somente os sujeitos falantes, mas também aqueles que as escutam.

Ademais dessas questões, a SD.8. possibilita discutir a relação entre línguas em

um mesmo espaço de enunciação (GUIMARÃES, 2002); neste caso específico, entre o

espanhol e o quéchua. Não somente há a questão de que o texto de Los ríos profundos

está escrito em espanhol, o que decorre de uma questão da função-autor (ORLANDI,

1987) desse gênero, que se escreve nessa língua por questões históricas, como também

o autor se utiliza de comentários (em boca do narrador) para localizar o leitor que não é

falante de quéchua (“Hablaba en quechua”).

Em vista disto, o singular agenciamento do autor, ao transitar entre as duas

línguas, coloca a questão de que a língua em que escreve – a do colonizador – marca a

entrada do quéchua e sua tradução, ora realizada pelo narrador ora na nota, nesse

movimento entre a figura do etnógrafo e do autor de literatura que apontava Rama

(2008). As relações entre as línguas nesse espaço se materializam de diferentes modos:

um deles é que aparecem vinculadas a determinadas interlocuções. Vemos isso no

diálogo da chichera com o padre Linares, no qual ela – que fala em quéchua em outras

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situações – o faz em espanhol com o padre. E vemos como essas línguas constituem

esses sujeitos e permeiam as diversas práticas que nesse espaço podem acontecer,

marcando inclusive em qual língua pode se enunciar.

Desde minha perspectiva, tais relações são mediadas, sobretudo, pelo aparato de

poder do que Bhabha (2007) chama de discurso colonial. Este, conforme foi discutido

no capítulo 3, é estruturante da construção ideológica da alteridade entre os sujeitos

colonizado e colonizador; e a especificação que realiza sobre esse discurso, a partir de

Foucault, como aparato, discute a sua articulação entre os modos “de diferenciação,

defesa, fixação, hierarquização” (ibid., p. 115).

A SD.8., então, apresenta a interlocução – atravessada pelas correspondentes

relações de forças – entre a chichera, cujo nome não é apresentado, e o Padre Linares,

diretor do colégio. O papel de líder religioso da cidade é alçado a um lugar político-

institucional, pois este toma para si o protagonismo de resolver a situação de conflito

instalada. Este aspecto possibilita uma reflexão sobre os aparelhos ideológicos de

Estado e o seu papel na conformação das identidades dos sujeitos, conforme discutido

no capítulo 2 desta tese, e sobre os processos de interpelação do sujeito a partir da

ideologia. Tal como foi colocado no capítulo 2 desta tese, com relação à questão de

Lacan de que “só há causa daquilo que falha”, problematizada por Pêcheux (2009) para

discutir os processos de interpelação e de identificação por parte do sujeito, esse está

submetido a uma falha e como tal a interpelação ideológica também, o que permite que

o sujeito esteja/seja mobilizado por diferentes formações ideológicas. Esta observação

permite uma reflexão sobre as desestabilizações e as transformações que as falhas

provocam, o que é determinante para a ocorrência de diferentes processos de

interpelação e de identificação. Desse modo, a força da interpelação da Igreja e de seu

papel institucional – ou mesmo político, pois o ato de Padre Linares o coloca como um

lugar de Estado – não são suficientes para submeter a chichera à ação do padre, o que

provoca uma tensão. Há também um jogo de relações de força mediada pela categoria

de gênero/sexualidade, instaurada pelo dispositivo da colonialidade do poder, que

produz uma hierarquização entre homem e mulher (“El Padre Director avanzaba entre

las mujeres, escoltado por dos frailes”), hierarquia que é deslocada na SD.8., mas que

permite que o Padre Linares aja com uma postura incisiva em relação à chichera (“¡No

me retes, hija!”), que logo em seguida é atenuada ao recorrer-se à religião (“¡Obedece a

Dios!”).

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148

SD.9.

Empezaron a arrastrar los sacos de sal hasta el patio.

Ante el asombro y el griterío de las mujeres, sacaron cuarenta costales de sal

blanca al patio.

– ¡Padrecito Linares: ven! – exclamó con un grito prolongado la chichera –.

¡Padrecito Linares, ahistá sal! – hablaba en castellano –. ¡Ahistá sal! ¡Ahistá

sal! ¡Este sí ladrón! ¡Este sí maldecido!

La multitud se detuvo, como si fuera necesario guardar un instante de

silencio para que las palabras de la chichera alcanzaran su destino. Una vez

más volvió a llamar la mujer:

– ¡Padrecito Linares…!

Luego bajó del poyo, por un instante; hizo despejar la puerta del

almacién106

; dio varias órdenes y las mujeres formaron una calle,

aplastándose unas a otras.

Y comenzó el reparto.

Presidió ella, desde lo alto del poyo. No hubo desorden. Con cuchillos, las

chicheras encargadas abrían los sacos y llenaban las mantas de las mujeres.

Luego ellas salían por la tienda y las que estaban hacia el zaguán, se

acercaban.

En los pueblos de indios las mujeres guardan silencio cuando los hombres

celebran reuniones solemnes. En las fiestas familiares, aun en los cabildos,

los indios hablan a gritos y a un mismo tiempo. Cuando se observan desde

afuera esas asambleas parecen una reunión de gente desaforada. ¿Quién

habla a quién? Sin embargo existe un orden, el pensamiento llega a su

destino y los cabildos concluyen en acuerdos. La mujer que es callada

cuando los hombres intervienen en los cabildos, chilla, vocifera, es

incontenible en las riñas y en los tumultos.

¿Por qué en el patio de la Salinera no se arañaban, no se destrozaban a

gritos? ¿Cómo no insultaban o llamaban las que aún permanecían fuera del

zaguán, en la calle? Si una sola hubiera podido gritar como cuando era libre,

habría incendiado a la multitud y la hubiera destrozado.

Pero ahí estaba ella, la cabecilla, regulando desde lo alto del poyo hasta los

latidos del corazón de cada una de las enfurecidas y victoriosas cholas. Al

menor intento de romper el silencio, ella miraba, y las propias mujeres se

empujaban unas a otras, imponiéndose orden, buscando equilibrio. Del

106

Grafado assim no original.

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149

rostro ancho de la chichera, de su frente pequeña, de sus ojos apenas

visibles, brotaba una fuerza reguladora que envolvía, que detenía y

ahuyentaba el temor. Su sombrero reluciente le daba sombra hasta los

párpados. Un contraste había entre la frente que permanecía en la

sombra y su mandíbula redonda, su boca cerrada y los hoyos negros de

viruela que se exhibían al sol (ibid., p. 76-77) (grifos meus).

Algumas questões discutidas na SD.8. também podem ser discutiras na SD.9.

Por exemplo, o espanhol falado pela chichera é novamente apresentado com marcas de

oralidade e enunciado em formulações curtas, o que corrobora as afirmações feitas

anteriormente sobre essa questão, como se pode ver neste trecho: “– ¡Padrecito Linares:

ven! – exclamó con un grito prolongado la chichera –. ¡Padrecito Linares, ahistá sal! –

hablaba en castellano –. ¡Ahistá sal! ¡Ahistá sal! ¡Este sí ladrón! ¡Este sí maldecido!”,

fragmento no qual aparecem diminutivos, formulações como “Ahistá”, que parece

referir ao sentido de “Ahí está”, repetições marcadas pelas emoções do momento da

enunciação, para apontar algumas das referidas marcas relativas ao oral. Também é

possível estabelecer reflexões sobre a forma em que é descrito o corpo, possibilitando –

quando pensamos em práticas de ensino – a quebra de listas de palavras ou de certas

oposições (“alto/bajo”, “gordo/flaco”, “feo/bonito”, etc.) que geralmente são tomadas,

em relação a esse tema, de forma estereotipada e, de novo, amparando um gesto de

generalização e de indeterminação que abre mão do específico e, portanto, do que a

alteridade (o outro) implica em termos de peculiar, de diferente.

No fragmento que mobilizo, mais uma vez, o recurso ao que é específico e

particular desmobiliza estereótipos e lugares comuns, como se pode ver a seguir: “Del

rostro ancho de la chichera, de su frente pequeña, de sus ojos apenas visibles, brotaba

una fuerza reguladora que envolvía, que detenía y ahuyentaba el temor. Su sombrero

reluciente le daba sombra hasta los párpados. Un contraste había entre la frente que

permanecía en la sombra y su mandíbula redonda, su boca cerrada y los hoyos negros de

viruela que se exhibían al sol”.

É de se relevar, também, toda a ação presente nesse capítulo VII de Los ríos

profundos e que está em destaque na SD.9.: as decisões tomadas pelo coletivo, a partir

de uma liderança. Toda a ação é narrada pelo eu narrador de forma que se estabelece um

paralelo entre a situação específica do saque à salineira e as práticas coletivas de

tomadas de decisões realizadas pelos índios em suas práticas cotidianas. Esse paralelo é

estabelecido pelo acesso a uma memória, a um funcionamento específico, que remete a

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150

uma questão cultural, a uma prática mediada entre o silêncio e a voz, e também entre

gênero/sexualidade e coletivo/individual. Essas últimas categorias (gêneros/sexualidade

e coletivo/individual) mediam práticas culturais tradicionais dos índios, relatadas pelo

eu narrador como modo de comparação com a ação principal do capítulo e que está

recortada na SD.9. Há o recurso ao específico, ao que é particular, ao que se vincula à

história: “En los pueblos de indios las mujeres guardan silencio cuando los hombres

celebran reuniones solemnes. / En las fiestas familiares, aun en los cabildos, los indios

hablan a gritos y a un mismo tiempo. / ¿Quién habla a quién? Sin embargo existe un

orden, el pensamiento llega a su destino y los cabildos concluyen en acuerdos. / La

mujer que es callada cuando los hombres intervienen en los cabildos, chilla, vocifera, es

incontenible en las riñas y en los tumultos”.

O que explicaria a diferença dessas práticas coletivas, próprias das comunidades

indígenas, com o que é relatado como ação daquele momento, é a forma de proceder das

mulheres diante de uma situação que poderia requerer ações semelhantes às que

ocorriam nessas práticas realizadas nessas comunidades, mas que naquele momento não

foram mobilizadas. O estranhamento do eu narrador sobre essa questão permite uma

reflexão sobre o ineditismo daquele ato, realizado em um lugar clivado pela

colonialidade do poder e que por isso não permitiria um modo de proceder típico das

comunidades (realizado em outro lugar, sem a presença masculina, com uma posição

inédita de protagonismo das mulheres). Essa diferença é mediada pelas relações de

força existentes nesse espaço, instaladas pela história e que deslocam a forma de agir

das chicheras: “¿Por qué en el patio de la Salinera no se arañaban, no se destrozaban a

gritos? ¿Cómo no insultaban o llamaban las que aún permanecían fuera del zaguán, en

la calle? Si una sola hubiera podido gritar como cuando era libre, habría incendiado a la

multitud y la hubiera destrozado”, o que poderia gerar uma violência de proporções

inimagináveis.

Após mobilizar as noves SD’s tomadas dos dois corpus de Los ríos profundos,

de José María Arguedas, passo a apresentar os lineamentos, elaborados a partir de La

tumba del relámpago, de Manuel Scorza. O modo de apresentação será o mesmo;

entretanto, à diferença de Los ríos profundos, para os lineamentos de La tumba del

relámpago selecionei três capítulos, pelo fato de que esses são menos extensos.

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151

4.3.2. A partir de La tumba del relámpago

La tumba del relâmpago (quinto cantar) (1979), de Manuel Scorza, é o quinto

de uma série de livros sobre rebeliões indígenas contra companhias mineiras

testemunhadas pelo autor, que ocorreram no Peru no começo dos anos 60. São os

primeiros quatro: Redoble por Rancas (1970), Garabombo el invisible (1972), El jinete

insomne (1977), e Cantar de Agapito Robles (1977).

Nesse livro, Scorza realiza a narração, na forma de crônicas, de fatos da história

do Peru desde a colonização, relacionando-os a elementos ficcionais que relata como

romance. O fio que une todos esses elementos é a chegada do advogado Genaro

Ledesma à cidade de Pasco, para trabalhar como professor na escola da cidade. O

período da ação remete às rebeliões indígenas contra diversas multinacionais, que

ocorreram no Peru durante os anos 60. O contato que esse personagem passa a ter com a

realidade social do lugar é o mote para tratar de temas relacionados à exploração, por

parte de multinacionais: trabalho semi-escravo dos comuneros indígenas, a

concentração de terras por parte de latifundiários e outros problemas sociais, de base

histórica, instalados – como poderíamos dizer – pela colonialidade do poder. Tocado

por essas questões, Ledesma passa a trabalhar como advogado defensor dos direitos da

população mais pobre, convertendo-se em um advogado comunero, de comunidades

indígenas da região.

Assim como procedi com os recortes realizados a partir de Los ríos profundos,

também adotei a divisão em itens para os três trechos recortados desse livro: o Capítulo

8 – Comprobable informe sobre la represa Bombón será o Texto 1; o Capítulo 12 – La

rabia comienza a sofocar a Genaro Ledesma, será o Texto 2; e o Capítulo 14 –

Exaltación Travesaño le dice a Genaro Ledesma: “Soy alguien que morirá sin ver la

Justicia” o Texto 3. No próximo item apresento o Texto 1 – e as SD’s que mobilizarei

para a elaboração dos lineamentos para discussão de cultura.

Texto 1 - Comprobable informe sobre la represa Bombón

No capítulo 8 de La tumba del relámpago – Comprobable informe sobre la

represa Bombón – Scorza relata a construção de uma represa por parte de uma

multinacional americana, a Cerro de Pasco Corporation, e a forma opressora com que a

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empresa realizou tal tarefa, passando por cima de comunidades e governos. Seguindo o

procedimento mediante o qual abordei os capítulos de Los ríos profundos, começo com

a SD.1. que apresento a seguir.

SD.1.

El año 1931 la compañía minera norteamericana ‘Cerro de Pasco

Corporation, Inc.’ de Delaware decidió aumentar la capacidad de su planta

eléctrica de Bombón, en la pampa Junín. Construyó una represa que contuvo

las aguas que el lago Junín vierte en el río Mantaro, bordeando cuyas orillas

se levantan Pari, Ondores, Huayllay, Cochamarca, Ninaragrac, Yarusyacán,

Uco, aldeas de pastores que salpican la desolada tundra.

Las empresas extranjeras que operaban entonces en el Perú no solicitaban,

desde luego, el consentimiento de las comarcar que explotaban. El pueblo

de Pari se enteró de los rebalses de la represa Bombón el día en que las

aguas invadieron sus pastizales. El agua cubrió los campos lentamente. Pari

logró salvar sus rebaños pero perdió tres mil hectáreas de sus mejores

pastos. Pari, que vivía del comercio de carne con la ‘Cerro de Pasco

Corporation’, se hubiera resignado a su suerte si los rebalses no

hubieron sumergido un centenar de casas de su Barrio Bajo. El pueblo

discutió en un Cabildo Abierto: el personero Romualdo propuso

constituir una comisión para quejarse ante las autoridades de Lima.

Aunque Pari compartía su indignación, en el Cabildo Abierto se

impusieron quienes sostenían que además de la posibilidad de perder a

su mejor cliente, Pari arriesgaba algo peor. Pari está próxima a la planta

eléctrica de Malpaso donde en 1931 se atrincheraron los primeros

huelguistas de la ‘Cerro de Pasco Corporation’; allí mismo los fusilaron.

Para antever las consecuencias de un conflicto con la todopoderosa

Compañía, los vecinos de Pari sólo tienen que atravesar el cementerio donde

los héroes de Malpaso están enterrados. Pari decidió trasladar a los

damnificados de las tierras bajas a las tierras altas. Por fortuna, las aguas se

detuvieron. Pari retornó a su paz bovina (SCORZA, 1979, p. 49) (grifos

meus).

A SD.1. apresenta a relação que a multinacional Cerro de Pasco Corporation

possuía com as comunidades indígenas que viviam em torno das minas exploradas pela

companhia. Assim, expõe as relações de poder instaladas pelo sistema econômico,

desiguais entre si, sem a mediação do Estado como aparelho regulador das diferenças

(cf. capítulo 2 desta tese). A relação desta empresa com as aldeias de pastores em volta

das minas é representativa da discussão que Mignolo (2003a) realiza, e que apresentei

no capítulo 3 deste trabalho, sobre o segundo conjunto que compõe o dispositivo da

colonialidade do poder, a tríade exploração, dominação e conflito no mundo

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moderno/colonial, “cuya estrutura económica es el capitalismo” (MIGNOLO, 2003a, p.

47).

Sobre o efeito dessas categorias, práticas sociais e históricas se vinculam, o que

permite que esta SD.1. se coloque como questão para discussão de temas culturais no

que tange às relações em sociedade. Tais práticas são contraditórias entre si: a empresa

toma decisões de forma unilateral, sem diálogo ou debate com os sujeitos envolvidos:

“Las empresas extranjeras que operaban entonces en el Perú no solicitaban, desde luego,

el consentimiento de las comarcar que explotaban”; os comuneros, ao contrário, tomam

suas decisões em coletivo, por meio de discussões realizadas por um cabildo, termo que

designa, em espanhol, um organismo coletivo de decisões que regulam práticas de uma

determinada comunidade, onde as demandas são colocadas em discussão, conforme

fragmento em negrito acima. A contradição que focalizo não somente é decorrente de

formas de procedimento distintas, mas também dos papéis que se vinculam a uma

empresa multinacional (regularmente associada a sentidos e práticas “civilizadas” do

Ocidente, onde o debate e a negociação fariam parte de decisões tomadas) e a uma

comunidade indígena (geralmente associada, de forma estereotipada, a práticas “não

civilizadas”, por não “dominar códigos” ocidentais de vivência em sociedade).

As relações de poder entre os grupos envolvidos, mediadas pelo econômico,

constituem uma oportunidade de deslocar situações em sociedade tratadas de forma

genérica, sem conflitos, situações essas vinculadas a uma cultura globalizada, a relações

de poder. Essas relações que hoje se colocam associadas à globalização também

possuem suas particularidades, mas são tratadas, em aulas de língua estrangeira, de

forma genérica, sem relação com condições específicas. Na SD.1. essas questões são

problematizadas pelas contradições instaladas pela colonialidade do poder, que mediam

– ou antes impõem – determinadas práticas em sociedade: “Para antever las

consecuencias de un conflicto con la todopoderosa Compañía, los vecinos de Pari sólo

tienen que atravesar el cementerio donde los héroes de Malpaso están enterrados. Pari

decidió trasladar a los damnificados de las tierras bajas a las tierras altas. Por fortuna,

las aguas se detuvieron. Pari retornó a su paz bovina”.

SD.2.

En 1958 la ‘Cerro de Pasco Corporation’ decidió aumentar, otra vez, la

capacidad de la planta eléctrica de Bombón. (…) El personero Toribio

decidió enjuiciar a la Compañía. En 1960, para sorpresa de los que, más que

rebelde lo consideraban loco simpático, la Corte Superior de Huánuco falló

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a favor de Pari y condenó a la Compañía a rehabilitar la carretera y pagar

500 000 soles de indemnización. Ante la estupefacción general, la ‘Cerro de

Pasco Corporation’ acató la sentencia.

Poco después los Estados Unidos de Norteamérica redujeron la cuota de

minerales peruanos – plata, cobre, plomo, zinc. Para enfrentarse a la crisis,

la ‘Cerro de Pasco Corporation’ – fabulosamente enriquecida por la

demanda de minerales provocada por la Guerra de Corea –, decidió licenciar

buena parte de sus 15 000 trabajadores (ibid., p. 50).

Na SD.2. também há a possibilidade de discutir relações de poder entre os

grupos envolvidos, mediadas pelo econômico. O trecho em questão faz referência à

mediação realizada pelo corpo jurídico do Estado para resolver o enfrentamento entre

forças desiguais: “la Corte Superior de Huánuco falló a favor de Pari y condenó a la

Compañía a rehabilitar la carretera y pagar 500 000 soles de indemnización. Ante la

estupefacción general, la ‘Cerro de Pasco Corporation’ acató la sentencia”; entretanto,

tal mediação não é suficiente, pois a empresa, apoiada por seu país, realiza uma

retaliação, ao demitir um grande número de empregados, o que denota a incapacidade

do Estado para mediar esses conflitos entre forças desiguais, já que não possui poder

frente às grandes organizações econômicas: o que representa um deslocamento na

história em relação aos gestos realizados institucionalmente na conformação do Estado

nacional, conforme a discussão que apresentei no capítulo 2.

Nessa questão a configuração de poder se coloca nas mãos das grandes

empresas, com uma ausência do Estado ou esse a serviço dessas empresas, processo

descrito por Ianni (1999) como uma consequência da globalização. Sobre essa questão

retomo o que apontei no capítulo 1 deste trabalho, quando o estudioso observa que as

corporações determinam os processos de decisão dos mercados e estão acima dos

estados e nações, dos grupos e das coletividades. Assim, essas empresas determinam e

geram buscas de forças de trabalho, que estão aquém das condições sociais de

configuração e de organização social e política dos Estados.

A seguir apresento as SD’s mobilizadas do segundo grupo do corpus recortado

de La tumba del relámpago, o Texto 2, que corresponde ao capítulo 12 – La rabia

comienza a sofocar a Genaro Ledesma. A numeração das SD’s continua da anterior.

Apresentarei um pequeno resumo do Texto 2 e os lineamentos elaborados a partir das

SD’s, sendo a primeira desse grupo a SD.3.

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Texto 2 - La rabia comienza a sofocar a Genaro Ledesma

O capítulo 12 de La tumba del relámpago, La rabia comienza a sofocar a

Genaro Ledesma, gira em torno do trabalho de Genaro Ledesma como advogado de

comunidades, ao receber visitas de comuneros que necessitavam de assessoria jurídica

em demandas contra ações de violência e opressão realizadas por empresas e famílias

poderosas. O contato com as histórias desses comuneros gerava em Ledesma reflexões

sobre o processo histórico de formação do Peru e sobre as histórias de exploração e de

opressão das comunidades indígenas. A SD.3. apresenta uma reflexão do personagem

sobre estas questões.

SD.3.

¿Y si en los Andes la vanguardia revolucionaria no es la inexistente clase

obrera sino la esquilmada clase campesina? El aletazo de un pensamiento

sombrío lo rozó: las revoluciones campesinas fracasaron siempre. Por eso

nos fascinan. Los Emiliano Zapata, los Garabombo, los Raymundo Herrera,

los Agapito Robles mueren puros. Los campesinos no llegan al poder: no

tienen oportunidad de corromperse. La injusticia de la historia los preserva.

No les da ocasión de transformarse de oprimidos en opresores. ¿Y la

Revolución China? En China los campesinos vencieron pero la vanguardia

fue la clase obrera. Miró los penachos de humo que rubricaban el cielo

pizarra de Cerro de Pasco. ¿Ese proletariado encabezaría la marcha de un

millón de campesinos hacia Lima, la Capital perpetuamente nublada,

perpetuamente egoísta, perpetuamente corrompida? (SCORZA, 1979, p.

62).

Nessa sequência os dados históricos permitem contextualizar as relações de poder

instauradas pela colonialidade do poder (MIGNOLO, 2003). Populações oprimidas no

espaço afetado por esse dispositivo, como a classe campesina, somente alcançariam a

liberdade – segundo o advogado Ledesma – pela revolução. A constatação de que no

Peru não havia classe trabalhadora, mas somente campesina, tem a ver com a reflexão

de Cornejo Polar (2005) sobre a existência de dois pólos desigualmente desenvolvidos

de uma única estrutura capitalista instaurada pelo colonialismo. De minha perspectiva, é

possível relacionar a reflexão do personagem com a discussão de que no Peru há setores

que usufruem dos saberes proporcionados e instaurados pelas colonialidades do poder e

do saber, fortemente vinculados aos processos decisórios instalados na consolidação do

estado peruano, a partir de um sistema imposto pela colonização, que oprimem e se

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validam de sua posição sobre setores que estão à margem desses processos: “Los

campesinos no llegan al poder: no tienen oportunidad de corromperse. La injusticia de

la historia los preserva. No les da ocasión de transformarse de oprimidos en opresores”.

Diferentes saberes de diferentes civilizações se rivalizam no jogo de poder instaurado

pela colonialidade, sendo que alguns deles, os mais deslocados desse paradigma,

sucumbem diante de práticas históricas mediadas por relações de poder, o que gera o

contraste citado por García Canclini (1997) entre Modernidade e Modernização,

discutido no capítulo 2 deste trabalho.

SD.4.

Las calles de la ciudad [Huánuco] que desde hacía cuatrocientos años

alojaban una de las más fabulosas vetas de América, no tenían veredas.

Los americanos habían extraído en cuarenta años (recordó los balances

de la Compañía publicados por Peruvian Times) más de mil millones de

dólares de utilidad. ¡Qué carajo les importaba! Ellos habitaban una

pequeña ciudad separada de la miseria por alambradas erizadas de

guardias armados: la ciudadela ‘La Esperanza’: chalets ultramodernos,

dotados de calefacción y de todas las comodidades posibles: el siglo

veinte junto al siglo quince. Por fin llegó a su Estudio. En la sala esperaban

rostros inescrutables, trajes raídos, bufandas sucias. Rápidamente se había

difundido que Genaro Ledesma era ‘abogado de comunidades’, un abogado

‘garantizado por las comunidades de la pampa Junín’. Entre los grandes

hacendados y el Poder Judicial existe un intermediario temible: el abogado.

Los comuneros no sabían ya si era mejor ganar o perder un juicio. Los

juicios se eternizaban, duraban generaciones (ibid., p. 62-63) (grifos meus).

A SD.4. entra em relação com a SD.3. por permitir a mobilização dos mesmos

temas de discussão. As contradições instauradas pela colonialidade do poder estão

materializadas no espaço público, no choque entre Modernidade e Modernização de que

fala García Canclini (1997), cujas práticas históricas, realizadas por percursos

diferentes, são representativas dos grupos sociais que o habitam, numa oposição que é

metafórica das relações sociais desses grupos e que se materializa claramente no

fragmento que destaco em negrito.

Práticas institucionais que não correspondem às necessidades e especificidades de

certos grupos sociais – que contradizem o propósito do arquivo jurídico do Estado em

amainar as diferenças, conforme discussão realizada no capítulo 2 – entram em

oposição com práticas não legitimadas institucionalmente, como as realizadas em

comunidade pelos comuneros; ao Estado não lhe interessa atender às demandas desse

grupo: “Los comuneros no sabían ya si era mejor ganar o perder un juicio. Los juicios

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se eternizaban, duraban generaciones”. Além do mais, esta posição desprestigiada se

materializa nos corpos desses sujeitos, no modo de se vestirem, o que permite uma

discussão sobre vestimentas (e/ou formas de vestir) e sobre estas como traço de

identificação social de sujeitos: “En la sala esperaban rostros inescrutables, trajes raídos,

bufandas sucias”. Essa discussão entraria em contraposição a modos de trabalhar sobre

esse tema nas práticas de ensino de língua, nas quais se reproduzem e reforçar sentidos

altamente estabilizados e, vinculados ao Mercado e a uma “cultura” supostamente

globalizada, por efeito de um processo de “uniformização relativa dos modos de vida e

de produção em escala internacional”, como diria Revuz (1998, p. 228).

SD.5.

– Nos gustaría entrevistarnos con el doctor.

– Yo soy. ¿En qué puedo servirlos, señores? – contestó con formalidad.

Dirigirse a los ceremoniosos comuneros familiarmente, sin conocerlos, es

ofenderlos.

– Somos representantes de la comunidad de Chinchán, doctor. Julio

González Marcelo, personero, a sus órdenes. Por la vestimenta y la manera

de hablar: comunero vivido en Lima. Hemos oído hablar del Estudio y

venimos a solicitar su ayuda.

– Por favor, pasen. ¡Siéntense!

– Aquí nomás, doctor.

No insistió.

– ¿Con quién están en conflicto?

– Con la hacienda Ninao, pero estamos descontentos de cómo se tramita

nuestro reclamo.

– No camina – intervino un comunero corpulento –. Hace setenta años que

esperamos el fallo. Los que iniciaron el juicio han muerto. Los dueños

contra los que reclamábamos, han muerto. Los jueces han muerto. ¡Aún no

hay fallo!

– ¿Setenta años?

– Setenta y seis, doctor – corrigió un comunero fornido, cara oscura, ojos

vivos, aire reposado: Saturnino Inocente.

– A principios del siglo la hacienda Ninao usurpó nuestras tierras. En esa

época eran dueños los Tello, ya difuntos. La comunidad inició juicio. Los

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Tello decidieron asaltar Ninao: nos mataron a nueve comuneros. La

Gendarmería, maliciosamente informada por los Tello, que pretextaban que

nuestros abuelos se habían rebelado, mató a seis más. El juicio siguió. La

hacienda cambió de dueño. Los Neyra, nuevos dueños, la perdieron en una

mesa de juego. La hacienda pasó a manos de los Malpartida. El juicio

siguió. Los Malpartida vendieron la hacienda a los Vega. El juicio siguió.

En 1925, con motivo de una delimitación de linderos, los Vega mataron a

quince comuneros. Esta vez no actuó la policía: puros caporales. En 1932 la

hacienda cambió otra vez de propietario. La compraron los Palacio. El juicio

siguió. Esta vez el Poder Judicial falló.

– ¿A favor de los Palacio?

– No, a favor de nosotros.

– ¿Los Palacio respetaron el fallo?

– En esa época nuestros personeros no sabían leer. Los Palacio

fingieron aceptar la sentencia, congratularon hipócritamente a nuestras

autoridades. Las invitaron a celebrar y solicitaron que, en señal de

conformidad, firmaran la sentencia. Nuestras autoridades colocaron sus

huellas digitales. ¡Ignoraban que ese papel no era la sentencia sino la

minuta de una venta simulada!

– ¡La puta madre!

– ¡Así son, doctor! Pero nosotros seguimos el juicio. Queremos darnos una

última oportunidad y si no obtenemos justicia nos la buscaremos por otro

rumbo (ibid., p. 63-64) (grifos meus).

A SD.5. apresenta um diálogo entre Ledesma e os comuneros, em que é possível

discutir relações e formas de tratamento pelo viés das relações entre sujeitos que,

ademais de não se conhecerem, ocupam posições diferentes socialmente, o que pode ser

tomado como um traço cultural ao considerar o comentário do narrador: “¿En qué

puedo servirlos, señores? – contestó con formalidad. Dirigirse a los ceremoniosos

comuneros familiarmente, sin conocerlos, es ofenderlos”107

. A SD.5. também entra em

relação com a SD.4., por apresentar detalhadamente algumas das questões já discutidas

nesta última. Em relação ao papel do Estado em não atender às demandas dos

comuneros, esse grupo desamparado institucionalmente, o diálogo entre os personagens

permite abordar essa questão com mais dados, a partir do relato que aqueles fazem do

107

Em espanhol essa observação se materializa no tratamento de usted, cujas marcas destaco no texto;

além de se expressar também na sintaxe com um todo.

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julgamento sobre o conflito com a fazenda Ninao. O tempo de julgamento desse

conflito e as reviravoltas desse caso são mostras das contradições instauradas pelas

colonialidades do poder e do saber: práticas institucionais mediadas por relações de

poder e em favor de determinados grupos; deturpação das práticas institucionais,

apoiada às vezes por agentes do Estado (“En 1925, con motivo de una delimitación de

linderos, los Vega mataron a quince comuneros. Esta vez no actuó la policía: puros

caporales”) e pelo conhecimento letrado do arquivo jurídico imposto pelo Estado na

mediação das diferenças, conforme fragmento destacado em negrito.

SD.6.

Durante años el ex cabo Saturnino Inocente había recorrido el Perú batiendo

abigeos, capturando ladrones, masacrando campesinos, pateando inocentes

o perdonando, amparando, comprendiendo. En todo pueblecito, un cabo de

la Guardia Civil es un notable. Harto de rodar, un día decidió volver a

Chinchán. Los comuneros, que desconfiaban de todos los uniformados, lo

acogieron con recelo. Yo no nací uniformado. Es cierto, pero fuiste

uniformado. Inocente se dedicó a la agricultura. Participaba con prudencia

en las asambleas. Sobre todo cuando las autoridades afrontaban problemas

legales, su experiencia servía. Demoró en ser electo autoridad. Durante tres

años, mientras daba pruebas de lealtad, la comunidad le encomendó cargos

ínfimos. Después lo eligieron presidente. ‘Setenta años’, pensó Ledesma.

Sintió, de pronto, el peso de las esperanzas que depositaban en él. ¿En

cuánto tiempo lograría un fallo? ¿Y de lograrlo, serviría? (SCORZA, 1979,

p. 64).

A SD.6. apresenta questões relacionadas aos processos de interpelação e de

identificação ideológica por parte do sujeito, aspectos que apresentei no capítulo 2 desta

tese: apesar de que esses processos estão submetidos a falhas, a interpelação do sujeito

se dá pela ideologia, na linearidade do intradiscurso (ou na sua horizontalidade),

produzindo memória, no irremediável jogo interdiscursivo. O personagem de Saturnino

Inocente, enquanto cabo da guarda civil, é interpelado pela ideologia da corporação,

conforme se pode ver em SD.6., por praticar atos de opressão específicos, associados a

um lugar de repressão: “Durante años el ex cabo Saturnino Inocente había recorrido el

Perú batiendo abigeos, capturando ladrones, masacrando campesinos, pateando

inocentes o perdonando, amparando, comprendiendo. En todo pueblecito, un cabo de la

Guardia Civil es un notable”, um lugar que também lhe dava status. Entretanto, essa

memória produzida por esse processo, no irremediável jogo interdiscursivo, como disse

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anteriormente, está submetido a falhas, o que pode explicar a mudança produzida em

Saturnino ao deixar de ser cabo. De qualquer forma, o vínculo com essa memória

produz estranhamentos por parte dos demais sujeitos (“Los comuneros, que

desconfiaban de todos los uniformados, lo acogieron con recelo”), mas a recusa de

Saturnino em voltar à posição anterior, já tomado por um novo processo de

interpelação, se faz patente ao enunciar: “Yo no nací uniformado”, fragmento que

irrompe no discurso do narrador sob as formas do indireto livre108

. Essas questões são

possíveis de serem discutidas tendo em consideração as diversas formas de

individualização do sujeito por parte do Estado, este já atravessado pelo funcionamento

da ideologia, processo que expõe as contradições inerentes a uma cultura que se vincula

ao Estado e a uma nação.

A seguir passo ao Texto 3, que corresponde ao capítulo 14 – Exaltación

Travesaño le dice a Genaro Ledesma: “Soy alguien que morirá sin ver la Justicia”. A

numeração das SD’s será continuada a partir da anterior. Também apresentarei um

pequeno resumo do Texto 3 e os lineamentos elaborados a partir das SD’s.

Texto 3 - Exaltación Travesaño le dice a Genaro Ledesma: “Soy alguien que

morirá sin ver la Justicia”

No capítulo 14 de La tumba del relámpago, Exaltación Travesaño le dice a

Genaro Ledesma: “Soy alguien que morirá sin ver la Justicia”, Genaro Ledesma viaja

para atender uma demanda dos comuneros de Quiparacra com outros comuneros

vizinhos. Inconformado com a luta entre iguais, Ledesma vai para essa aldeia, para

convencê-los a lutar na justiça, lado a lado com os demais povoados, contra os

opressores de suas comunidades, como as empresas multinacionais e os latifundiários.

Essa situação lhe produz reflexões sobre a história do país e sobre o que ele considera

“la fatalidade de la lucha campesina”: a desunião. A seguir apresento as SD’s que

embasam os lineamentos referentes a este corpus, a partir da SD.7.

108

E não irrompe apenas o dizer do outro, mas também o dizer do próprio sujeito do discurso, que retoma

uma interpelação possível, mas que não se materializa na enunciação, retomada pelo sujeito por já ter sido

dita em algum momento.

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161

SD.7. Esos campesinos de Quiparacra, en lugar de fusilar a otros campesinos, ¿por

qué no ejecutaban a un hacendado? En todas partes era igual; los

campesinos defendían sus intereses o los de su comunidad pero, raras veces,

los de su clase. La tragedia de las luchas campesinas es la lucha aislada. La

comunidad, creación genial de la sociedad india, le permitió atravesar

cuatrocientos años de genocidio. Pero la comunidad protege a sus

miembros: no defiende a los otros campesinos, a su clase. Ésa es la fatalidad

de las luchas campesinas. Los grandes rebeldes Túpac Amaru, Atusparia,

Uchu Pedro, Santos Atahualpa, y el desconcertante Rumimaki, fueron

combatidos y derrotados por sus propios hermanos armados por sus

opresores. ¡Indios combatieron contra indios! Hacia cuatrocientos años que

guerreaban sin tregua. Solitariamente padecían los abusos; solitariamente

los masacraban. Era imprescindible que se unieran. ¡Ah, si las

comunidades juntaran sus combates dispersos! Si los fusiles que en

horas de extravío apuntaban contra el pecho de sus hermanos, se

volvieran contra sus verdaderos enemigos. Imaginó cien mil campesinos

alzados en las anfractuosidades de esa cordillera donde la tropa limeña,

ahogada por la altura, sobrellevaba apenas el peso de sus mochilas (SCORZA, 1979, p. 74) (grifos meus).

A SD.7. retoma questões históricas sobre a formação do Peru, diretamente

relacionadas à colonialidade do poder e do saber, instauradas pela colonização. A

contradição decorrente desse processo, apesar da intensa violência que ocorreu durante

a conquista por parte da Espanha, não conseguiu desconstruir um dos principais legados

da sociedade índia, a comunidade: “La comunidad, creación genial de la sociedad india,

le permitió atravesar cuatrocientos años de genocidio”. Entretanto, essa organização

social não conseguiu silenciar as contradições instaladas pela colonialidade; de fato, a

SD.7. apresenta uma descrição das comunidades muito próxima ao conceito de

comunitarismo que Bauman debateu, cuja reflexão discuti no capítulo 2 e cuja citação

reproduzo novamente. Conforme esse autor, o comunitarismo “[t]em a ver com o

cerceamento da livre escolha, com a promoção da preferência por uma escolha cultural

e a protelação de todas as outras – com vigilância e censura estritas” (BAUMAN, 2012,

p. 63). O que caracterizaria cada uma dessas comunidades, e impediria a sua união com

as demais, seria a valorização do que é próprio e particular a cada uma delas, através da

história por relações de conflito e de interesses: “En todas partes era igual; los

campesinos defendían sus intereses o los de su comunidad pero, raras veces, los de su

clase”.

Tal constatação, feita por parte de um descendente de espanhol, permite discutir

que por mais que as comunidades indígenas sejam tomadas como algo homogêneo, há

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162

diferenças significativas que afetam sua relação com o espaço e com o outro. Desta

forma o conflito estabelecido nessas relações de alteridade entre as comunidades

indígenas permitiu o êxito da conquista do território pelos espanhóis: “Los grandes

rebeldes Túpac Amaru, Atusparia, Uchu Pedro, Santos Atahualpa, y el desconcertante

Rumimaki, fueron combatidos y derrotados por sus propios hermanos armados por sus

opresores. ¡Indios combatieron contra indios! Hacia cuatrocientos años que guerreaban

sin tregua”.

As práticas culturais específicas de cada comunidade poderiam ser a chave de

interpretação desta falta de união: práticas constituídas ao longo da história, que

configuraram identidades distintas e sem conciliação entre si: “Solitariamente padecían

los abusos; solitariamente los masacraban”. Segundo Ledesma, somente o

enfrentamento, pela revolução, das contradições impostas pela colonialidade do poder –

revolução que na SD.7. ele classifica como “união” (“Era imprescindible que se

unieran”) – seria capaz de produzir uma mudança de paradigma, derrotando o bastião

simbólico de tais contradições, Lima, capital do Peru e local institucional do poder

exercido pelo econômico e pelo político na relação entre os diferentes sujeitos nesse

espaço, conforme destaque em negrito.

SD.8.

Se alojaron en casa de Travesaño: allí esperaban los comuneros de

Tambopampa: rostros tostados por el frío, ponchos oscuros uniformados por

los mismos gestos, los mismos silencios. Le ofrecieron sopa de carnero y un

guiso demasiado grasoso. Ledesma prefirió no comer. En la altura la

digestión demora el doble que en la costa. Pero rechazar un plato es un

desaire. El Chino salvó la situación: comió por los dos. Más que calentados,

durmieron agobiados por pesadísimas frazadas. Se despertó reposado. El día

mostró una lejanía de pampas dentadas por resplandecientes picos nevados.

En la puerta esperaban esos caballos menudos, por cuya facha no se daría un

real, y que son sin embargo infinitamente más resistentes que cualquier otra

bestia de estampa, inadaptable a semejante altura. Una mancha de jinetes se

aproximó, desmontó, se acercó. Entre los emponchados distinguió al ex

personero Corasma que lo saludó un poco pálido, cortado. Le sirvieron

desayuno de autoridad: bistec con papas fritas en manteca rancia, café, pan,

quesillo. Lo disfrutó mientras trataba de absolver una confusa consulta legal

de un sobrino de Travesaño. Salieron (ibid., p. 76).

A SD.8. apresenta práticas culturais específicas, relacionadas à alimentação.

Como apontei anteriormente em outros lineamentos, o olhar sobre o específico e sobre o

particular permite abordar jogos de força que se materializam em modos de

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163

procedimento vinculados a determinadas práticas. Tais elementos deslocam abordagens

neutras e estereotipadas sobre determinados temas, e nesta SD.8., especificamente, a

particular relação dos sujeitos com a alimentação permite discutir este tema de forma

menos genérica e estereotipada que a realizada comumente em práticas de ensino de

línguas estrangeiras. As relações entre sujeitos, mediadas por essas práticas, permite

discutir traços particulares vinculados com o movimento de cultura como modo de vida

característico (EAGLETON, 2011): “Le ofrecieron sopa de carnero y un guiso

demasiado grasoso. Ledesma prefirió no comer. En la altura la digestión demora el

doble que en la costa. Pero rechazar un plato es un desaire. El Chino salvó la situación:

comió por los dos”. Sobre alimentação, há outro traço particular, relacionado ao café da

manhã: “Le sirvieron desayuno de autoridad: bistec con papas fritas en manteca rancia,

café, pan, quesillo”, que não somente pode ser característico de um espaço específico,

mas também como modo de identificação de práticas sociais entre sujeitos.

Sobre os lineamentos aqui apresentados, penso, de minha perspectiva, que eles

colocam claramente o específico, o particular (o “próprio” na relação com o que é do

outro). Assim, também colocam em revisão um constante processo de “generalização”,

que ocorre nas práticas de ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras e ao qual fiz

menção em vários momentos, que justamente apaga o específico e o particular e vincula

cultura a formas genéricas e estereotipadas sobre o outro e sobre a língua do outro.

Esse movimento de generalização que, como observa Sokolowicz (2014), em

determinados livros didáticos de espanhol, se materializa em sintagmas como “Los

españoles son”, “En América Latina” (aos que seria possível somar outros como “los

argentinos”, “En Colombia se dice X e no Y”) se alia a um processo altamente

determinado discursivamente, conforme Indursky (2013). Se vincula, de modo mais

amplo, aos processos que tomam a língua como mercadoria e, no caso do espanhol, à

política que se conhece especificamente como pan-hispanismo. O processo de

generalização de que falo produz um efeito sobre o par língua-cultura: tira dele

especificidades e propriedades que é justamente o contrário do que aconteceu na

materialidade de nosso corpus, no qual aparece “um mundo” de formas linguístico-

culturais específicas, amostras do real que estão vinculadas a um determinado espaço,

atravessado por uma história também determinada.

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Considerações finais

Esta pesquisa de doutorado, cuja perspectiva foi realizar um diálogo entre os

Estudos Culturais e a Análise do Discurso materialista, teve como objetivo discutir a

noção de cultura, partindo da análise de como ela funciona em práticas de ensino de

línguas estrangeiras e em determinadas regiões do campo dos Estudos da linguagem –

que foram sitiadas por esse “obstáculo epistemológico” (BACHELARD, 1996, apud

CELADA, 2002) – e passar a explorá-la como um objeto discursivo.

A presente tese, como textualização dessa pesquisa, teve como propósito

devolver historicidade ao termo, discutir sua relação com a história e com a memória

discursiva, a partir de uma série de trabalhos teóricos produzidos no campo dos Estudos

Culturais, da Sociologia e da Antropologia Cultural, mobilizando-os para o campo dos

Estudos da Linguagem e, mais especificamente, da reflexão sobre as práticas de ensino

de línguas estrangeiras, em especial as de língua espanhola, no intuito de que tal

reflexão ressoe na área de formação de professores.

Nesse gesto estabeleci um percurso, pautado por leituras e reflexões, colocando

em relação – a partir do específico agenciamento que consegui realizar da série de

saberes mobilizados – aspectos relativos a cultura, identidade, ideologia e colonialidade,

os quais serviram de base, a partir do agenciamento realizado de uma série de saberes,

para a elaboração de lineamentos a partir de fragmentos de textos da esfera literária.

Como propósito deste trabalho, apresentei uma reflexão que visa oferecer resistência a

certas formas de trabalhar sobre “a cultura”, sintagma abordado no primeiro capítulo.

Este, como foi reiterado em vários momentos, funcionaria como a materialização de um

pré-construído, contribuindo a reproduzir, em práticas relacionadas ao ensino de língua

estrangeira, saberes estereotipados e estabilizados sobre “o outro” e sobre a língua do

outro.

A produção dos referidos lineamentos foi fruto de um gesto de interpretação

construído a partir de meu lugar de professor de espanhol e de pesquisador brasileiro: ou

seja, a partir da diferença com o outro (determinados falantes de língua espanhola) e,

também, com a língua – determinadas formas da língua espanhola que habitam certos

espaços do que hoje se conhece como Peru, materializadas nos textos que compõem o

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corpus desta pesquisa. Nesse trabalho foi fundamental abordar tais textos a partir de suas

condições de produção, de uma perspectiva discursiva como a que aqui adoto.

Nesse sentido, os lineamentos apresentados confirmam a hipótese inicial que

estabeleci no capítulo 1 desta tese: a impossibilidade de pensar a cultura como separada

dos processos históricos e discursivos constitutivos de uma língua, ou seja, a cultura não

é “algo” que esteja fora desta. Um determinado funcionamento, recorrente nas práticas

de ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras, gera uma dicotomia entre língua e

cultura principalmente pelo fato de a noção de cultura que aí opera – regularmente,

ligada a discursividades do Mercado – está vinculada a uma concepção que dilui o

linguístico e silencia o político, em um processo de homogeneização (“globalização”)

que apaga as contradições inerentes a este último.

Para essa constatação foi de fundamental importância ver como o termo cultura

se significou ao longo da história, movimento que realizei no capítulo 2 desta tese. Esse

gesto de interpretação, na interlocução teórica entre os Estudos Culturais e a AD

materialista, me permitiu ver como os sentidos que constituem a memória discursiva

não se apagam facilmente. Considerar cultura é considerar sua relação com seus vários

sentidos constituídos historicamente, que estabelecem um confronto entre memória e

atualidade, sendo que todos os sentidos que aqui discuti dão peso à constituição deste

termo – ou melhor, deste conceito. O que estou querendo frisar é que, por movimentos

na história que Pêcheux (2007), a partir de Achard (2007) classifica como “remissões,

retomadas e de efeitos de paráfrase” (ibid, p. 52), cultura se desestruturaria e se

reestruturaria por um percurso que não se desfilia dos sentidos anteriores e tampouco se

desfaz ao longo do tempo109. Nesse sentido, o forte trabalho do Estado enquanto

instituição (ou articulador de instituições) na regulação dos sentidos sobre cultura para

significá-la como um “valor” da nação foi um processo realizado a partir da associação

de cultura com civilização, associação fortemente cristalizada até hoje porém, também,

já colocada em xeque pelo surgimentos de outras e novas significações.

Em relação a isso, retomo nestas considerações finais a reflexão segundo a qual

a revisão da noção de cultura realizada coloca novas séries de sentido em relação a esse

termo, quando pensado tal como funciona regularmente nas práticas de ensino de

109

Estou tomando como base a definição segundo a qual o trabalho da memória pode ser pensado como

“reestruturação de materialidade discursiva” (PÊCHEUX, 1999, p. 52). Assim, termo cultura se iria

ressignificando a partir dos “pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos”

(PÊCHEUX, 2008, p. 56).

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línguas. Como, nestas, o protagonista é o processo de subjetivação de um sujeito

aprendiz, é relevante se atentar com relação ao modo como acontece aí a interpelação

que se materializa também – como disse no capítulo 1 – pela forma de ensinar língua-

cultura. Desta forma, trazer aqui – a partir da revisão da noção – novas séries de sentido

que devolvam sua densidade ao termo cultura pode promover ou propiciar a produção

da identificação simbólica do sujeito aprendiz com a língua outra, consideração que

embasou a elaboração dos lineamentos apresentados nesta tese.

Meu gesto de interpretação, entretanto, não considerou suficiente essa reflexão

sobre os movimentos de cultura na história para alçá-la como objeto do discurso.

Também achou necessário discutir distintos processos que são constitutivos dos

sentidos produzidos pela relação do sujeito com a linguagem, materialidade esta que é

constitutiva de sua identidade, gesto que realizei no capítulo 3, ao abordar

especificamente a questão da identidade e de sua vinculação com cultura.

Esse trabalho foi realizado a partir da relação de diferentes autores e buscou

ressaltar a pertinência de vincular identidade e cultura a processos constitutivos na

história, por práticas determinadas em espaços específicos, mediadas pela colonialidade

do poder e a do saber. Ou seja, para discutir “cultura” em processos de

ensino/aprendizagem de uma língua estrangeira – e, no caso específico desta tese, os

referentes à língua espanhola para brasileiros –, considerei que aspectos relacionados ao

identitário são inerentes aos processos culturais e como tal deveriam ser abordados de

forma específica em relação a esses processos também específicos. Como afirmei no

referido capítulo 3, esta posição seria necessária, pois, conforme as práticas comumente

realizadas em aulas de língua estrangeira, a antecipação de cultura está muito próxima

do conceito de identidade nacional, pois se apresenta vinculada a um Estado, em

decorrência de um processo de homogeneização cultural, naturalizada e cuja

historicidade é apagada sob o guarda-chuva de uma identidade genérica.

Para realizar essa problematização, visando especificamente os lineamentos que

seriam elaborados nesta tese, relacionei cultura, identidade e colonização. Esse trabalho

levou em consideração o processo histórico de formação dos Estados latino-americanos

que possuem essa língua como oficial e a relação desse processo com uma memória de

colonização, além de relações de colonização posteriores.

Conforme já dito nesta tese, é inerente à formação de qualquer país e, por

consequência, aos processos históricos e discursivos constitutivos das línguas que

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compõem o espaço de enunciação (GUIMARÃES, 2002) desses Estados, em especial a

língua espanhola, a relação entre língua, discurso, cultura e história. De fato, essa

relação considera que aspectos que se vinculam diretamente à questão da

heterogeneidade de uma sociedade sejam discutidos levando em conta a diversidade em

relação a identidades sociais, sexuais, profissionais, dentre outras, todas elas

consideradas – conforme Hall (2001: p. 8) – como identidades modernas

“‘descentradas’, (...), deslocadas ou fragmentadas”, tal como também afirmei no

capítulo 3.

Para tal, mobilizei a reflexão sobre a construção de alteridade pelo discurso

colonial, da perspectiva de Bhabha (2007), que o considera como um aparato de poder.

Nos países que passaram por processos de colonização, a “cultura nacional”, estruturada

sob o aparato do discurso colonial, exerce papel central na legitimação e no apagamento

de saberes e sentidos ao longo da história, constitutivos dos modos de subjetivação

nesse espaço. Entendo que tais processos constituíram sentidos clivados pela história, a

partir dessa relação que se estabeleceu entre o colonizador e o colonizado, e pela força

de um efeito de pré-construído (HENRY, 1990) ainda mediam saberes culturais que

hoje são tomados como naturalizados e desistoricizados, estruturados pelos dispositivos

da colonialidade do poder e do saber, conforme Mignolo (2003) e Quijano (2000) os

consideram.

Essa mobilização teórica me permitiu, na elaboração dos lineamentos do

capítulo 4, propô-los como possíveis trilhas de um caminho, de uma reflexão que

ofereça resistência a certas formas de trabalhar cristalizadas e regularizadas,

atravessadas pela colonialidade do poder e do saber, e por uma determinada noção de

cultura, empobrecida. Esses lineamentos expõem, de fato, uma reflexão sobre as

condições de produção de uma leitura do corpus e as possibilidades de trabalho a partir

de tais condições, o que permite abordar as contradições sociais e históricas instaladas

nas textualidades objeto de estudo.

Um exemplo expressivo é o caso das listas de vocabulário e das oposições entre

termos que as compõem, relacionadas ao campo lexical das descrições de pessoas:

“gordo/delgado”, “alto/bajo”, “blanco/negro”, apresentadas como formas de uma

tipologia geral, sem inflexões relativas a espaço e/ou tempo.

Esse movimento que procurei fazer nos referidos lineamentos tem a ver com o

fato de que neles tentei sempre aproveitar a materialidade dos textos da esfera literária

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mobilizados para dar visibilidade ao fato de que o linguístico (os adjetivos, a sintaxe da

descrição, os substantivos, etc.) aparece com a especificidade marcada por também

específicas condições de produção.

Nesses lineamentos, cultura designaria algo que emerge na forte relação entre

língua e exterioridade – o que na AD pode ser tomado como as condições de produção –

explorando o modo como a história funciona no texto, isto é, como nele se materializa.

A pergunta poderia ser: isso não seria discursivo? E penso, para dar resposta, que o

discursivo favorece e propicia a emergência da ordem da cultura (FERREIRA, 2011),

sem dúvida; no entanto, essa ordem surge na relação com o específico, o particular,

totalmente vinculado ao espaço e à história que o atravessa, e à língua que o habita – até

na relação que esta trava com outras línguas. Isso que se apresenta como específico,

como próprio de algum espaço atravessado por uma determinada história, com seus

sujeitos e suas práticas e que surge na comparação ou na relação com o que justamente é

diferente (sempre nesse movimento de comparação com o outro, com a alteridade)

parece ser algo que está muito presente quando se fala de cultura no campo do ensino de

línguas. O que estou fazendo é dando visibilidade a essa série de sentidos: o diferente, o

diverso, o específico (“de cada povo”) traria a promessa do rico, daquilo que se designa

como riqueza cultural. E é justamente isto, tão valorizado, o que ao mesmo tempo,

como venho insistindo em frisar, se constitui como objeto de apagamento – tanto nas

práticas de ensino de línguas quanto em certas esferas dos estudos ou da reflexão sobre

estas.

Cultura, então, surge de uma operação relacional e decanta como uma série de

sentidos que surgem na diferença, pelo cruzamento de variáveis relativas às condições

de produção da prática que estivermos abordando. A língua, por sua parte, possui uma

constituição no modo relacional entre o discurso e a história; nela, em sua memória

(PAYER, 2007) e em como esta opera no discurso, ficam inscritos diversos processos

dessa diferenciação, que é da ordem da alteridade. É nesse sentido que ela guarda uma

forte relação com a ordem da cultura110. Desde minha perspectiva, cultura é atravessada

não pelo homogêneo, mas pela contradição histórica, por isso, ela também escapa aos

110

Insisto com este conceito porque quero frisar a necessidade de escapar da “organização” – numa

espécie de quase “administração” imaginária – à qual ela é submetida no funcionamento das práticas de

ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras.

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processos de homogeneização produzidos por órgãos reguladores de sentidos, como é o

caso daqueles vinculados ao Estado.

Ao não se problematizar o termo, nem o conceito, o cultural nas práticas de

ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras está atravessado pela colonialidade do

poder e do saber, sem que se pratique nenhum reconhecimento nesse sentido111. O

debate – como o aqui realizado e como outros que poderiam ser mobilizados – desloca,

ao menos, os sentidos dominantes e determina que é possível trabalhar “esse cultural”

na língua, e não fora dela. Aliás, trabalhar a cultura fora da língua pode favorecer o fato

de que esta última fique – como uma língua desistoricizada – marcada pelo genérico,

“livre das contradições históricas” e vinculada a estruturas vistas como estáveis.

Na relação entre o local e o global, ocorre o apagamento de saberes e de sentidos

que escapam a este último. O gesto que realizei ao elaborar os lineamentos consistiu

colocar em relação os sentidos e os saberes legitimados pela colonialidade do poder e do

saber com aqueles por estas não legitimados. Esse gesto de interpretação, levado a cabo

nesta tese, estabeleceu o que Mignolo (2003a) denomina pensamento fronteiriço, em

que saberes geralmente silenciados são legitimados na sua relação com saberes

estabilizados e institucionalizados. Desta forma, tentei estabelecer uma relação com a

alteridade, com o outro – investindo numa ressignificação de sentidos que tomara seja

expressiva para o campo de formação de professores de línguas estrangeiras.

111

Este fato favorece a abordagem da “cultura globalizada”, essa última como se fosse de todos,

apagando a história que a injunção contemporânea à uniformização supõe.

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