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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA ESPANHOLA E
LITERATURAS ESPANHOLA E HISPANO-AMERICANA
JORGE RODRIGUES DE SOUZA JÚNIOR
Cultura enquanto objeto discursivo - considerações e
lineamentos sobre seu papel em práticas de ensino de língua
estrangeira, especificamente nas de espanhol para brasileiros.
Versão corrigida
SÃO PAULO
2016
JORGE RODRIGUES DE SOUZA JÚNIOR
Cultura enquanto objeto discursivo - considerações e
lineamentos sobre seu papel em práticas de ensino de língua
estrangeira, especificamente nas de espanhol para brasileiros.
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Língua Espanhola e
Literaturas Espanhola e Hispano-Americana do Departamento de Letras
Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Letras.
Orientador: Profa. Dra. María Teresa Celada
Versão corrigida
De acordo,
_____________________________________
Profa. Dra. María Teresa Celada
São Paulo
2016
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meioconvencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação na PublicaçãoServiço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
S719cSOUZA JÚNIOR, Jorge Rodrigues de Cultura enquanto objeto discursivo - consideraçõese lineamentos sobre seu papel em práticas de ensinode língua estrangeira, especificamente nas deespanhol para brasileiros. / Jorge Rodrigues deSOUZA JÚNIOR ; orientadora María Teresa CELADA. - SãoPaulo, 2016. 178 f.
Tese (Doutorado)- Faculdade de Filosofia, Letrase Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.Departamento de Letras Modernas. Área deconcentração: Língua Espanhola e Literaturas Espanholae Hispano-Americana.
1. Cultura. 2. Ensino de Língua Estrangeira. 3.Análise do Discurso. 4. Estudos Culturais. 5. LínguaEspanhola. I. CELADA, María Teresa , orient. II.Título.
FOLHA DE APROVAÇÃO
Nome: SOUZA JÚNIOR, J. R. de
Título: Cultura enquanto objeto discursivo - considerações e lineamentos sobre seu
papel em práticas de ensino de língua estrangeira, especificamente nas de espanhol
para brasileiros.
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Língua Espanhola e
Literaturas Espanhola e Hispano-Americana do Departamento de Letras
Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Letras.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Profa. Dra. María Teresa Celada (Orientadora) Instituição: USP
Julgamento:______________ Assinatura:______________
Profa. Dra. Maria Onice Payer Instituição: UNIVAS
Julgamento:______________ Assinatura:______________
Profa. Dra. Fernanda Castelano Rodrigues Instituição: UFSCAR
Julgamento:______________ Assinatura:______________
Profa. Dra. María Zulma Moriondo Kulikowski Instituição: USP
Julgamento:______________ Assinatura:______________
Profa. Dra. Marisa Grigoletto Instituição: USP
Julgamento:______________ Assinatura:______________
SUPLENTES:
Profa. Dra. Claudia Pfeiffer (UNICAMP)
Prof. Dr. Antonio Francisco de Andrade Júnior (UFRJ)
Prof. Dr. Adrián Pablo Fanjul (USP)
Prof. Dr. Lynn Mario de Souza (USP)
Ao meu querido sobrinho Arthur.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha orientadora, a Profa. María Teresa Celada, carinhosamente Maite,
por seu apoio como orientadora, professora e amiga na elaboração desta tese. Sou muito
grato por toda a sua disposição e dedicação em dialogar, em entender o meu processo e
cuja experiência e saber foram fundamentais para levar a cabo esta pesquisa.
À Maria Onice Payer, pela leitura cuidadosa e por suas valiosas contribuições na etapa
de qualificação desta tese, que foram fundamentais para o desenvolvimento desta
pesquisa.
À Marisa Grigoletto, pela leitura cuidadosa e por suas valiosas contribuições na etapa de
qualificação desta tese, que também foram fundamentais e contribuíram para o
desenvolvimento desta pesquisa.
À Fernanda Castelano Rodrigues e à María Zulma Moriondo Kulikowski, por terem
aceitado o convite para participar da banca de defesa desta tese.
À CAPES por ter financiado esta pesquisa entre 2012 e 2013.
Aos amigos que conquistei neste percurso do doutorado, ao voltar à USP, cujas
conversas e experiências compartilhadas foram enriquecedoras para mim: Ana Fabro,
Bárbara Silva, Bruna Macedo, Cibelle Silva, Daniela Ioná Brianezi, Flávia Krauss,
Michele Costa, Larissa Locosseli, Laura Sokolowicz, José Mauricio Rocha, meu muito
obrigado.
Às amigas Andreia Menezes, Greice Nóbrega e Rosângela Dantas, pelos encontros pela
manhã movidos a cafés e a textos dos Estudos Culturais, numa troca de leituras e de
interpretações que me ajudaram a entender essa rica área das ciências humanas.
Aos colegas, alunos e funcionários do Instituto Federal de São Paulo, campus São
Paulo, cujo apoio e troca de experiências em muito contribuíram para esta tese.
Aos amigos da vida, muito queridos e que me ajudaram a tornar essa experiência mais
leve neste difícil percurso: Felipe Tonelli, Filipe Miranda, Fernando Morari, Guilherme
Marinho, Elias Ribeiro, Leandro Inoue, Natália Espósito, Walker Pincerati, pelo carinho
e pela compreensão de minhas ausências, em muitos momentos. Sem vocês, meus
queridos, não saberia levar tudo isso.
Aos meus queridos Paco e Pepe Legrand, cuja dedicação e carinho preenchem meus
dias com alegria e amor.
A Rhuan Pereira, pelo sopro de vida que me permitiu sentir a leveza de ser o que se é,
ao mostrar-me a poesia, a simplicidade e a alegria das pequenas coisas.
Às minhas queridas irmãs, Juciene Rodrigues e Bruna Souza, cujo apoio, beleza e
carinho traduzem para mim o significado da palavra família, mesmo quando estou
longe.
Ao meu amado sobrinho Arthur Souza, cuja querida chegada, ao final deste meu
percurso, me deu ânimo e força. Seja bem-vindo.
Aos meus queridos pais, Jorge Rodrigues de Souza e Marta Ferreira de Souza: a vocês,
todo o meu respeito e agradecimento. Não há palavras para expressar o que fizeram por
mim em toda a minha vida.
“Caminé frente al muro, piedra tras piedra. Me alejaba unos pasos, lo contemplaba y
volvía a acercarme. Toqué las piedras con mis manos; seguí la línea ondulante,
imprevisible, como la de los ríos, en que se juntan los bloques de roca. En la oscura
calle, en el silencio, el muro parecía vivo, sobre la palma de mis manos llameaba la
juntura de las piedras que había tocado”.
José María Arguedas
RESUMO
SOUZA JÚNIOR, J. R. Cultura enquanto objeto discursivo - considerações e
lineamentos sobre seu papel em práticas de ensino de língua estrangeira,
especificamente nas de espanhol para brasileiros. 2016. Tese (Doutorado) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Esta tese discute a noção de cultura e realiza o movimento de alçá-la como um objeto
discursivo, a partir do seu papel em práticas de ensino/aprendizagem de línguas
estrangeiras, especificamente as de língua espanhola para brasileiros. Nesse movimento
de devolver historicidade ao termo, ao discutir sua relação com a história, parto de uma
série de trabalhos teóricos sobre cultura produzidos no campo dos Estudos Culturais, da
Sociologia e da Antropologia Cultural, mobilizando-os para o campo dos Estudos da
Linguagem (conforme a perspectiva teórica da Análise do Discurso materialista) e, mais
especificamente, o da reflexão sobre as práticas de ensino de línguas estrangeiras, em
especial as de língua espanhola. Esta pesquisa coloca em relação temas referentes a
cultura, identidade, ideologia e colonialidade, ao realizar um percurso teórico que se
materializa na elaboração de lineamentos a partir de textos da esfera literária, visando a
interlocução no campo de formação de professores. As reflexões aqui presentes
oferecem resistência a certas formas de trabalhar sobre e com a cultura, formas essas
que estão instaladas, de alguma maneira, em certos saberes estereotipados e
estabilizados sobre o outro e sobre a língua, e estão atravessadas pela colonialidade do
poder e do saber, em práticas relacionadas ao ensino de língua estrangeira.
Palavras-chave: Cultura; Ensino de Língua Estrangeira; Análise do Discurso; Estudos
Culturais; Língua Espanhola.
ABSTRACT
SOUZA JÚNIOR, J. R. Culture as a discursive object: considerations and guidelines
on its role in practices for teaching/learning a foreign language, specifically for
teaching Spanish to Brazilians. 2016. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
This thesis discusses the notion of culture and addresses it as a discursive topic, aiming
to reflect on its role in practices for teaching/learning foreign languages, specifically for
teaching Spanish to Brazilians. This approach restores historicity to the term by
discussing its relationship with history based on a number of theoretical works
concerning culture produced in the fields of cultural studies, sociology and cultural
anthropology, putting them to use in the field of language studies (in accordance with
the theoretical perspective of materialist discourse analysis) and, more specifically, of
the reflection on practices for teaching foreign languages, especially Spanish, such that
this reflection has a resonance in the area of teacher training. This work concerns issues
related to culture, identity, ideology and coloniality, following a theoretical path that
results in the development of guidelines based on texts from the literary sphere aimed at
introducing them into the field of teacher training. The reflections presented here are
designed to provide resistance to certain types of work on culture and the ways these are
included in some manner in certain stereotyped and established knowledge about the
other and about language, affected by colonialities of power and knowledge in practices
related to the teaching of a foreign language.
Keywords: Culture; Foreign Language Teaching; Discourse Analysis; Cultural Studies;
Spanish Language.
RESUMEN
SOUZA JÚNIOR, J. R. Cultura en tanto objeto discursivo: consideraciones y
lineamientos sobre su papel en prácticas de enseñanza/aprendizaje de lengua
extranjera, específicamente, en las de español para brasileños. 2016. Tese
(Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo.
Esta tesis discute la noción de cultura y realiza el movimiento de legitimarla como un
objeto discursivo, al reflexionar sobre su papel en prácticas de enseñanza/aprendizaje de
lenguas extranjeras, específicamente las de lengua española para brasileños. En este
movimiento, le devuelve historicidad al término, discutiendo su relación con la historia
a partir de una serie de trabajos teóricos sobre cultura producidos en el campo de los
Estudios Culturales, de la Sociología y de la Antropología Cultural que movilizo hacia
el campo de los Estudios del Lenguaje (a partir de la perspectiva teórica del Análisis del
Discurso materialista) y, más específicamente, hacia el campo de la reflexión sobre las
prácticas de enseñanza de lenguas extranjeras, en especial las de lengua española. El
objetivo es que tal reflexión resuene en el área de formación de profesores. Esta
investigación relaciona temas referentes a cultura, identidad, ideología y colonialidad y
realiza un recorrido teórico que se materializa en la elaboración de lineamientos a partir
de textos de la esfera literaria que buscan una interlocución con el campo de la
formación de profesores. Las reflexiones aquí presentes tienen el propósito de ofrecer
resistencia a ciertas formas de trabajar sobre y con la cultura, que están instaladas, de
alguna manera, en ciertos saberes estereotipados y estabilizados sobre el otro y sobre la
lengua, y están atravesadas por la colonialidad del poder y del saber, en prácticas
relacionadas a la enseñanza de la lengua extranjera.
Palabras clave: Cultura; Enseñanza de Lengua Extranjera; Análisis del Discurso;
Estudios Culturales; Lengua Española.
Sumário
Introdução ....................................................................................................................... 15
Capítulo 1: ...................................................................................................................... 23
As condições de produção desta pesquisa ...................................................................... 23
1.1. Reflexões sobre a abordagem de cultura no ensino de línguas estrangeiras ....... 23
1.2. A literatura como materialidade discursiva para discussão de cultura ................ 32
1.3. Cultura no espaço de enunciação da língua espanhola ........................................ 39
1.4. Cultura e sua relação com atuais processos de globalização ............................... 44
1.5. Cultura e a identidade em práticas culturais ....................................................... 47
Capítulo 2: ...................................................................................................................... 49
Cultura – reflexões sobre seus diferentes sentidos ......................................................... 49
2.1. Os primeiros movimentos de cultura na história ................................................ 52
2.2. O trabalho dos Estados nacionais sobre cultura .................................................. 56
2.3. A dissociação entre cultura e civilização............................................................. 79
Capítulo 3: ...................................................................................................................... 89
Cultura e identidade – uma discussão ............................................................................ 89
3.1. O discurso colonial e a construção de alteridade ................................................. 92
3.2. A colonialidade do poder ................................................................................... 100
3.3. A identidade na pós-modernidade ..................................................................... 110
Capítulo 4: .................................................................................................................... 117
Lineamentos para discussão de cultura em práticas de ensino de línguas ................... 117
4.1. O pensamento fronteiriço como gesto de interpretação ..................................... 118
4.2. Delimitação do corpus – o romance indigenista ................................................ 121
4.3. A produção de lineamentos ................................................................................ 131
4.3.1. A partir de Los ríos profundos .................................................................... 131
4.3.2. A partir de La tumba del relámpago ........................................................... 151
Considerações finais ..................................................................................................... 164
Referências Bibliográficas ............................................................................................ 170
15
Introdução
Esta pesquisa de doutorado dá prosseguimento à discussão que iniciei em minha
dissertação de mestrado, intitulada “A literatura no ensino de espanhol a brasileiros: o
teatro como centro de uma prática multidimensional-discursiva”1 (SOUZA JUNIOR,
2010). Nesse trabalho propus analisar duas coleções de materiais didáticos2 de ensino de
espanhol para brasileiros, utilizados em contexto formal de aprendizagem, adotando o
parâmetro de tomar o livro didático como um gênero discursivo, além de propor
lineamentos3 para a abordagem de textos literários, por serem pouco trabalhados em
aula de língua estrangeira, a partir de temas discutidos por uma unidade de cada um dos
livros que compuseram o corpus, pelo viés do currículo multidimensional-discursivo
(SERRANI, 2005). Para tal, parti da postulação de Bakhtin (2006) de que cada campo
de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados (ibid., p.
261), considerando o livro didático (LD), conforme essa definição, como um gênero
discursivo. Desta forma, analisei a estrutura e organização dos dois LDs que
compuseram o corpus, destacando suas condições de produção, sua estrutura e
funcionamento.
Também compôs o trabalho a realização de uma análise, mediada pelo currículo
multidimensional-discursivo, nesse ínterim proposto como metodologia de trabalho
(SERRANI, 2005), de uma unidade de cada um dos dois livros, como modo de reflexão
sobre sua estruturação e seu funcionamento discursivo; após essa análise propus discutir
1 Defendi essa dissertação junto ao Programa de Linguística Aplicada do Instituto de Estudos da
Linguagem da UNICAMP, em 2010, sob a orientação da Profa. Dra. Silvana Serrani.
2 BRIONES, A. et alii. Español ahora. São Paulo: Moderna, 2005 e BRUNO, F. C.; MENDONZA, M.
A. C. L.. Hacia el español. São Paulo: Saraiva, 2005. A escolha dos livros didáticos analisados foi
decidida conforme a Portaria SEB (da Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação) Nº 28,
de 1º de dezembro de 2005, que até aquele momento era o único documento oficial que havia selecionado
os livros, as gramáticas e os dicionários a serem oferecidos aos professores do Ensino Médio que
lecionavam espanhol na rede pública.
3 Na linha de trabalho adotado por Serrani (2005), considero lineamentos como linhas gerais de trabalho,
à guisa de traços ou de primeiros contornos de uma discussão. À diferença dessa autora, e do trabalho que
realizei em minha dissertação, nesta tese não formularei lineamentos visando a proposição de um
currículo multidimensional-discursivo para discussão do universo que se designa mediante a mobilização
do termo “cultura”, em aulas de ensino/aprendizagem de espanhol para brasileiros, mas como um modo
de trabalho possível de ser adotado a partir deste tema específico.
16
o trabalho com textos teatrais em aula de espanhol a partir dos temas apresentados por
cada uma dessas unidades, por ser o único gênero literário ausente em tais livros.
A análise realizada constatou o apagamento da relação que se poderia
estabelecer entre os diferentes temas “apresentados como culturais” e a materialidade
linguístico-discursiva dos textos abordados nas práticas propostas por esses livros. A
análise também permitiu mostrar que a formulação e a disposição de saberes nas
unidades didáticas constituíam um determinado efeito de sentido: à guisa de uma
“colagem”, operava aí uma sobreposição de diferentes discursos não submetidos à
interpretação em atividades de compreensão e de produção, propostas apenas para o
trabalho com aspectos gramaticais da língua estudada. Por fim, o trabalho desenvolvido
possibilitou observar que o “algo em comum” entre as propostas e as atividades de cada
unidade era somente o seu “tema” (conforme este é concebido na Abordagem
Comunicativa), registrado no título e que cito aqui a modo de exemplo: “¿Qué te
gusta?”, “En el restaurante”, “En familia”, “De vacaciones”, etc. E cabe observar ainda
que tais propostas e atividades, de forma regular, quando se referem, por exemplo, a um
texto literário, lançam mão, para contextualizar essa leitura, de quadros lexicais (à guisa
de vocabulário), de “pequena biografia do autor” de um texto ou de legendas abaixo das
fotos ali registradas.
Conclui que mediante a textualização presente nos LD’s analisadosse realiza um
apagamento das condições de produção dos discursos aí “citados” – mais do que
realmente mobilizados. Além disso, nas unidades analisadas, observei um apagamento
da heterogeneidade de hábitos e de modos de consumo – dois aspectos que sempre
aparecem vinculados – das sociedades e dos sujeitos ali representados. Esse
funcionamento produz, como efeito de sentido, a naturalização de determinados hábitos
e práticas sociais (implicando a exclusão de outras) que funcionam como se fossem as
“de todos” e que projetam um modelo de vida específico e restrito, além de construir
evidências que produzem a neutralização de conflitos – sociais, étnicos, políticos, dentre
os principais.
Desta forma, constatei que “a cultura” associada à língua é produzida
“mercadologicamente”, a partir da retomada de evidências e a produção de totalizações
– do funcionamento de uma metonímia que implica que se tome a parte como o todo –
que a apresentam como um produto, como algo dado e fechado, desde um lugar que a
relaciona a processos de consumo. Além disso, o que me interessa frisar é que o
17
trabalho proposto aos sujeitos-aprendizes, no que se refere à “cultura”, não passava –
como já antecipei – pela materialidade linguístico-discursiva da língua, pois ela era
apresentada e representada sem relação com esta, de forma isolada; tal observação me
permite dizer, neste ponto, que “a cultura” funciona aí como um lugar outro da língua,
algo que retomarei e explorarei mais adiante nesta tese.
Nesse contexto, e a partir de meu lugar de professor de espanhol e de
pesquisador sobre os processos de ensino/aprendizagem do ensino dessa língua para
brasileiros, esta pesquisa de doutorado insere-se no âmbito dos estudos culturais, na
discussão de temas referentes a cultura, identidade e ideologia em práticas de ensino de
espanhol como língua estrangeira (doravante E/LE) para brasileiros. Proponho, assim,
realizar um movimento de devolver ao termo “cultura” a sua historicidade –
estabelecendo a sua relação com a história – a partir de uma série de trabalhos teóricos
sobre essa noção produzidos no campo dos Estudos Culturais, da Sociologia e da
Antropologia Cultural, para o campo dos Estudos da Linguagem e, mais
especificamente, o da reflexão sobre as práticas de ensino de línguas estrangeiras, em
especial de língua espanhola, no intuito de que tal reflexão essa ressoe na área de
formação de professores. Para tal recorrerei à discussão sobre cultura realizada nos
campos teóricos acima citados, a partir da perspectiva da Análise do Discurso
materialista (doravante AD).
Essa perspectiva se justifica pelo fato de que a AD materialista, em seu
imbricamento com a Linguística, as Ciências Sociais e a Psicanálise, propicia e
possibilita colocar em relação a reflexão sobre cultura realizada nos Estudos Culturais
com questões que são caras à discussão que aqui realizo, como as relacionadas a sujeito,
língua e cultura. Nesse sentido, estabeleço como fundamental discutir a noção de
cultura e realizar o movimento de tomá-la como objeto de observação para alçá-la a
objeto discursivo, partindo de dois pontos de articulação: como processo de
interpelação e como arquivo, articulação que discutirei no capítulo 1.
Nesse sentido, considero válido, ao abordar o trabalho com “a cultura” 4
,
vinculada a essa língua que “se ensina”, discutir que dentro dessas práticas de
ensino/aprendizado, ao mobilizar determinada noção de cultura, funciona, sobretudo em
contexto escolar, um processo de interpelação cujo efeito leve o aprendiz a ocupar
4 Coloco o artigo entre parênteses para marcar a força desse determinante linguístico que acompanha,
regularmente, esse substantivo e que gera um efeito de determinação discursiva (PAYER, 1993, p. 45),
efeito de sentido que esta tese focalizará de maneira específica.
18
determinadas posições (e não outras), se identifique com determinados sentidos e, desta
forma formule seus gestos de interpretação. Isto ficará claro ao observar que a noção
mais regular em tais práticas está filiada, claramente, a um funcionamento ideológico.
Como arquivo, a partir da definição de Foucault (2008) sobre esse termo, há um
funcionamento cristalizado de cultura que funcionaria como algo que dá base aos
enunciados sobre esse termo.
Em relação ao primeiro ponto dessa articulação para alçar cultura como objeto
discursivo considero importante fazer um esclarecimento com relação a como concebo
as práticas de ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras. De acordo com observações
de Celada (2013), penso que estas fazem parte das condições de produção de um
processo que – com base em definições de Serrani-Infante (1997a, p. 49), formuladas a
partir da matriz teórica da AD materialista – entendo como sendo de inscrição por parte
dos sujeitos-aprendizes na ordem – no funcionamento – da língua outra. Entendo,
também, que o termo “inscrição” especifica um determinado processo de identificação
(cf. SERRANI-INFANTE, 1997b) e, por tanto, implica questões identitárias.
Levar em conta que há um processo por parte do sujeito aprendiz de inscrição na
ordem da língua outra e que o contexto imediato é constituído – dentre outros aspectos –
pelas práticas de ensino/aprendizado significa subordinar estas a esse processo, que
concebo como central. Isto implica privilegiar o reconhecimento de que há aí uma série
de movimentos de identificação (ou não) por parte do aprendiz – como sujeito da
linguagem –, movimentos na procura (e volto a insistir: ou não) dessa inscrição. Assim,
esse sujeito, como diria Celada (2013), vai deslizando, “capturado por formas e sentidos
dessa língua”,
[...] e essa série de capturas vai tramando sua inscrição na ordem
da língua outra, aspecto que nos leva a frisar que tudo isso não
tem como acontecer a não ser como vinculado (“entrelaçado” ao
processo – maior, mais amplo – de subjetivação, nunca
encerrado) cujo protagonista é o sujeito da linguagem
(CELADA, id., p. 49).
Em minha pesquisa, portanto, tenho como foco a relação entre línguas5 que se realiza na
trama de uma subjetividade (CELADA, 2013), ao apresentar uma discussão que leva em
5 Fundamentalmente entre a materna/nacional – na (des)continuidade que aponta Celada com base em
distinções de Payer (2007) –, outras que possam habitar a relação linguagem/sujeito, e a estrangeira.
Para o trabalho no qual Celada realiza essa observação, cf. Payer e Celada (2011).
19
consideração a abordagem de aspectos que entram nesse processo de inscrição que um
sujeito atravessa – numa verdadeira travessia – ao “aprender” uma língua.
Além de estabelecer o objetivo de devolver historicidade ao termo cultura,
visando sua discussão em práticas de ensino de línguas estrangeiras, abordarei textos da
esfera literária como materialidade discursiva, analisando-os como processos
enunciativos e discursivos configurados e constituídos historicamente pela relação
dinâmica estabelecida entre a forma dos textos e os processos históricos e as práticas
sociais que participam de suas condições de produção. Tal análise me levará a realizar a
elaboração de lineamentos6 para colocar em funcionamento (como diria PÊCHEUX,
1999) variados textos conforme suas condições de produção, visando que tais
lineamentos possam dar subsídio a processos de formação de professores.
Nesse sentido, meu escopo está restrito a textos literários narrativos. Conforme
Serrani (2005) e Souza Júnior (2010), nas práticas de ensino de língua às quais me referi
acima opera uma dicotomia entre língua e literatura que justifica a importância da
discussão da noção de cultura e a realização de lineamentos para ver como esta funciona
em diversos textos.
Também especifico o caráter da esfera literária como materialidade linguística
para esse trabalho, pois, para mim, a literatura apresenta práticas discursivas que não
estão totalmente ausentes em gêneros de outras esferas, mas, ao alçá-la como objeto de
discussão de lineamentos para a abordagem de aspectos culturais que possam contribuir
nos processos de formação de professores, realizo um movimento de ressignificação da
literatura em práticas de ensino. Essa esfera geralmente é negligenciada na elaboração
de práticas de livros didáticos de ensino de línguas, apesar de que ultimamente alguns
gestos de inclusão já têm sido realizados em relação a ela; neste trabalho, reivindico a
importância de seu lugar dentro de tais práticas.
Em relação à série de sentidos que, de modo privilegiado, é vinculada ao termo
“a cultura” em práticas de ensino e de aprendizagem de língua estrangeira,
especificamente as de E/LE para brasileiros, estabeleço como eixo central desta tese
discutir cultura e realizar o movimento de tomá-la enquanto objeto de observação,
coisificado, um suposto saber do nível do imaginário, para alçá-la como objeto
discursivo, de caráter simbólico, pela perspectiva teórica da AD materialista. Destaco
6 Remeto a nota anterior a consideração que faço sobre esse termo: considero lineamentos como linhas
gerais de trabalho, à guisa de traços ou de primeiros contornos de uma discussão
20
que, apesar de haver alguns trabalhos da esfera teórica da AD materialista que abordam
questões referentes à noção de cultura, como os de Rodríguez-Alcalá (2004), De Nardi
(2007) e Ferreira (2011), considero necessário fazer um movimento de discussão sobre
cultura na história a partir de como esta noção é discutida fortemente em outros lugares
teóricos – como os dos Estudos Culturais, da Sociologia e da Antropologia Cultural.
A discussão do termo cultura que proponho implicará, nesse sentido, num gesto
de interpretação baseado na articulação e revisão que realizarei pelo viés teórico da AD
materialista. Deste modo, por um gesto condizente com a constituição interdisciplinar
da AD, mobilizarei o paradigma teórico dos Estudos Culturais sobre cultura,
colonização e colonialidades do poder e do saber, colocando-os em relação com
saberes específicos de outras disciplinas e de meu lugar teórico.
Considerando a discussão que realizarei a partir dos estudos ao redor do termo
cultura, serão mobilizados os trabalhos de Bhabha (2007), García Canclini (1997),
Eagleton (2011 e 2005b), Hall (2001 e 2009), Mignolo (2003a, b) e, para abordar o
processo histórico e econômico que determinam a colonialidade do saber a partir da
configuração de centros e periferia, contradição que seria determinante dos processos de
globalização que atualmente configuram as relações entre nações e a circulação de
saberes, os trabalhos de Benko (1999), Castells (1999) e Ianni (1999).
Pelo fato de que a AD se apresenta como um dispositivo teórico que o analista
mobiliza, de acordo com seu corpus e seu gesto de análise, como dispositivo analítico,
nesta tese opto por não fazer uma apresentação inicial de todos os conceitos desse
campo disciplinar que serão trabalhados, mas por ir trazendo-os pontualmente, na
medida que se tornem necessários.
Entretanto, considero importante trazer o que Ferreira (2011), justamente numa
reflexão realizada a partir da AD, considera sobre cultura. Diz a autora (ibid., p. 59) que
cultura se apresenta como “um lugar de produção de sentidos, que muitas vezes são
naturalizados e passam a reforçar o efeito de apagamento da historicidade de certos
fatos sociais”. Nessa linha de reflexão, Ferreira propõe pensar – em analogia à ordem do
discurso e à ordem da história – a ordem da cultura7: se trataria de uma “ancoragem”
que estabelece esta última como forma de resistência às normas e preceitos reguladores
7 Orlandi (1996) considera que tanto o discurso quanto a língua possuem sua ordem própria, da esfera do
real, e esta se manifesta e se mostra na organização. Há uma tensão entre a ordem e a organização da
língua (e, paralelamente, eu poderia observar, entre a ordem e organização da história, e entre a ordem e a
organização da cultura).
21
de uma dada configuração histórica-social (ibid., p. 60). Meu movimento, nesta
pesquisa, vai na direção, justamente, de trabalhar tal ancoragem, tentando atravessar a
organização que faz operar, nas práticas de ensino/aprendizagem de língua espanhola,
uma determinada sobre “a cultura”, e colocar cultura na ordem do funcionamento dos
textos, do discurso.
Passo, a seguir, a apresentar a estrutura desta tese. Explicito a estrutura dos
capítulos que a compõem, na estrutura definida para textualizar a pesquisa
desenvolvida.
No primeiro capítulo exporei as condições de produção desta pesquisa e
discutirei a relação que no trabalho será estabelecida sobre o termo cultura a partir do
campo dos Estudos Culturais, da Sociologia e da Antropologia Cultural e o campo dos
Estudos da Linguagem, sendo tal movimento discutido pela perspectiva materialista da
AD. Também discutirei, inicialmente, questões que serão trabalhadas nos capítulos
seguintes, pois a reflexão inicial apresentada nesse primeiro capítulo será um ponto de
partida sobre o percurso teórico que embasou o recorte teórico e analítico que adotei na
realização desta tese.
No segundo capítulo problematizo cultura enquanto termo, ao deslocar o
sintagma determinado em sua indeterminação: “a cultura”, – tão frequente em práticas
de ensino, nas quais se frisa a necessidade de que, ao ensinar a língua, é preciso ensinar
“a cultura”. Para tal, colocarei esse objeto em relação com as diversas séries de sentidos
(cf. ACHARD, 1999) às quais foi se vinculando, isto é, em filiações de memória
discursiva – gesto este que suporá já uma ressignificação do termo. Nesse trabalho, o
termo irá se historicizando, fundamentalmente, a partir de saberes mobilizados no
campo dos Estudos Culturais. Conjuntamente, também discutireia vinculação de cultura
com os processos de interpelação e de subjetivação, realizados por parte do Estado, ao
amalgamar tradições e identidades sob o viés do nacional.
O terceiro capítulo parte da reflexão realizada no anterior para discutir
especificamente a questão da identidade, que se vincula fortemente à de cultura. Nele
também apresento um debate sobre a questão da identidade enquanto processo de
subjetivação e de interpelação de sujeitos, processos esses mediados por um Estado que
realiza um trabalho de organização simbólica e imaginária de sentidos. Nesse capítulo 3,
ademais dessas considerações, também discuto a relação da identidade com os
processos de colonização e de constituição dos Estados nacionais da região designada
22
como América Latina, processos esses contraditórios e clivados e que estão diretamente
relacionados com as identidades que se localizam nesse espaço.
No capítulo 4, realizo um movimento de transferência de toda a discussão
teórica realizada na tese no sentido de elaborar lineamentos para a discussão da noção
de cultura, para ver como esta funciona em diversos textos, visando processos de
formação para professores de língua estrangeira, especificamente os de língua espanhola
para brasileiros.
Passo, a seguir, ao primeiro capítulo desta tese.
23
Capítulo 1:
As condições de produção desta pesquisa
Neste primeiro capítulo, como dito anteriormente, apresentarei uma reflexão
sobre as condições de produção desta pesquisa, ao estabelecer uma discussão sobre o
termo cultura a partir do campo dos Estudos Culturais, da Sociologia e da Antropologia
Cultural e o campo dos Estudos da Linguagem, mobilizando tal debate a partir da
perspectiva materialista da AD.
Para expor as condições de produção desta pesquisa dividirei este capítulo em
itens. No primeiro deles vinculo cultura a práticas de ensino de línguas, refletindo sobre
o modo como esse termo geralmente é abordado, a partir de meu percurso de
pesquisador sobre o ensino de espanhol para brasileiros e como professor dessa língua
nesse contexto específico. Em seguida faço uma discussão, como contraponto a este
modo genérico de abordar cultura, a partir de uma breve reflexão sobre o caráter da
literatura enquanto materialidade discursiva para discussão de cultura em práticas de
ensino de línguas. No terceiro item faço um agenciamento de cultura a um contexto de
produção específico, o espaço de enunciação da língua espanhola. No quarto item
apresento reflexões iniciais sobre o vínculo de cultura com processos sociais e
econômicos vinculados à globalização e, por último, no quinto item, o vínculo de
cultura com identidade. Todas essas questões serão trabalhadas nos capítulos seguintes,
pois a reflexão inicial que aqui apresento funcionará como um ponto de partida sobre o
percurso teórico que embasou o recorte teórico e analítico que adotei na realização desta
tese.
1.1. Reflexões sobre a abordagem de cultura no ensino de línguas
estrangeiras
Em relação sobre a abordagem de cultura em práticas de ensino de língua
estrangeiras, considero importante observar como opera o termo cultura no processo de
interpelação a que – como observei na Introdução – sujeitos-aprendizes brasileiros de
24
E/LE estão submetidos em âmbito escolar8, pois creio que, como conceito, não foi
suficientemente debatido para que permeie de outro modo as práticas de
ensino/aprendizagem de língua. Dessa perspectiva, cabe discutir se a revisão da noção
de cultura poderia instaurar novas séries de sentido que permitam interromper certas
rotinas dominantes no funcionamento da memória discursiva que vinculam “a cultura” a
certos saberes.
Pêcheux, em seu texto “Papel da memória” (ACHARD et al., 2007, p. 49-57),
toma considerações realizadas por Achard em “Memória e produção discursiva do
sentido” (ACHARD et al, 2007, p. 11-17) sobre a “regularização”, que aconteceria
através de “remissões, retomadas e de efeitos de paráfrase” (ibid., p. 52), que
permitiriam o funcionamento de implícitos que dariam sustentação à interpretação de
determinados discursos. Ao recuperar esse conceito, Pêcheux discute “a questão da
memória como reestruturação de materialidade discursiva” (ibid.), e considera que
“seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer
os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e
relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível
em relação ao próprio legível” (PÊCHEUX, 1999, p. 52). Ainda nessa retomada das
formulações de Achard, Pêcheux (ibid.) considera que tal “regularização discursiva, que
tende assim a formar a lei da série do legível, é sempre suscetível de ruir sob o peso do
acontecimento discursivo novo, que vem perturbar a memória” (ibid.). Do meu ponto de
vista, justamente, a revisão da noção de cultura poderia vir a instaurar novas séries de
sentido no funcionamento da memória, desmanchando a regularização que há em torno
desse conceito – altamente cristalizado – nas aulas de língua estrangeira: poderia
funcionar deslocando e desregulando “os implícitos associados ao sistema da
regularização anterior” (ibid.).
De meu ponto de vista, a instauração de novas séries de sentido através da
revisão do termo cultura poderia contribuir justamente a promover ou propiciar a
produção da identificação simbólica do sujeito aprendiz com a língua outra. Neste
segundo sentido, a mobilização de aspectos culturais, a partir dessa revisão, poderia
chegar a interferir na relação dos aprendizes com a língua e interromper certas projeções
ou identificações imaginárias de língua como “gramática” ou, no caso específico do
8 Realizo a especificação aqui com relação à disciplina de língua espanhola; porém, a noção de cultura à
qual faço referência atravessa outras disciplinas aos quais os sujeitos-aprendizes de E/LE estão
submetidos, como a de língua portuguesa, por exemplo.
25
espanhol, como “a escrita da escola” (cf. CELADA, 2002), por efeito do modo como é
trabalhada nas práticas a “organização” da língua9.
Ter isso em consideração é importante, pois, do meu ponto de vista, as práticas
de ensino de línguas estrangeiras estão centradas em livros didáticos que, como
instrumentos linguísticos (cf. AUROUX, 1992), recortam uma língua – inclusive,
chegando a funcionar como “reguladores” de sentidos e de dizeres nessa língua – e que,
com relação à forma de abordar “a cultura”, realizam um trabalho de estereotipização e
de homogeneização de sentidos10
. Tal funcionamento possui um modo regular em que
não ocorre a instauração de novas séries de sentido, mas sim o uso recorrente da
paráfrase, na ordem do repetível, de sentidos que remetem a lugares de saber tomados
como evidentes, pensados em relação a sujeitos de uma específica formação social e
econômica, conforme especificarei a seguir.
Considerando as práticas sob a Abordagem Comunicativa de ensino de línguas,
poderia dizer ainda que numa relação de tensão com esse movimento que acabei de
descrever aparece um outro que, entrelaçado ao primeiro, vai pinçando hábitos – no
caso, de “uma dada sociedade” – passíveis de serem contabilizados na esfera do
“exótico”. Com ambos movimentos “a cultura” fica vinculada a registros tomados como
“espontâneos” – porque, como se fossem do nível do fisiológico, estariam livres de
determinação histórica e desvinculados de uma memória discursiva – e “autênticos” –
dados por uma tradição que os validaria e da qual “todos sabemos” – em uma dada
sociedade ou grupo social.
À guisa de exemplificação do segundo movimento, vale a pena mencionar –
dentre tantos casos – a vinculação do tango aos argentinos, do sombrero aos mexicanos,
9 Orlandi (1996) considera que tanto o discurso quanto a língua possuem sua ordem própria e esta ordem
se manifesta e se mostra na organização. Ainda segundo a autora (ibid., p. 45-51), há uma tensão entre
essas instâncias: em contraposição à ordem, na organização – sendo a esfera imaginária dos sentidos –
prevalecem a regra e a sistematicidade. Em práticas de ensino de línguas, “a língua” enquanto “unidade”,
vinculada a exigências de normatização, é um efeito de sentido bastante comum e se materializa quase
exclusivamente através de formulações de regras e de combinatórias, de exemplos e de exercícios.
10
Serrani (1998b), ao discutir o uso de manuais de ensino de línguas estrangeiras (que aqui tomo como
instrumentos linguísticos, baseado em Auroux [1992]), crê que é fundamental manter, em uma
perspectiva pragmático-discursiva, “el carácter mediador de los manuales, ejercicios, metalenguaje, etc. a
fin de no perder de vista la relación efectiva con el objeto de conocimiento” (ibid., p. 186, grifos meus).
A autora (id.) considera que uma prática contrária teria, como consequência, não a aprendizagem de uma
língua mas sim dos instrumentos linguísticos usados nas práticas de ensino, como “el manual, el
cuaderno de ejercicios, el metalenguaje”. A partir dessa observação, considero que o risco de tomá-los
como objeto de conhecimento, e não como um material de apoio, é o de cristalizar uma determinada
“memória representada” (Motta, 2010) de língua, atravessada e constituída pela materialidade desses
instrumentos linguísticos.
26
do “universo andino” quase que exclusivamente aos bolivianos. Esses gestos aparecem
no meio de um efeito de sentido: o de uma “normalidade” advinda da naturalização dos
hábitos e das práticas sociais da sociedade espanhola (esta também sob um efeito de
homogeneização), tomada como modelar. Esse é um funcionamento discursivo que
caracteriza, de modo regular, os livros didáticos de E/LE.
A apresentação, sob um efeito de evidência, de determinadas formas de vida e de
sociedade, contribui a uma naturalização e homogeneização de hábitos de consumo, e à
estereotipia de tipos sociais e coletivos (o professor, o advogado, o médico, o pai como
chefe familiar; a família composta por pai, mãe e filho), sendo o que escapa a essas
“regularizações” tomado como “exótico”. A partir do funcionamento decorrente desses
efeitos de evidência, em ambos os movimentos, ressoam sentidos de “civilização”, de
“nação” e de “sociedade” numa série de estereótipos e clichês constitutivos de um
processo que possibilita a reprodução de certas formações imaginárias, mas que também
permite a instauração e a formação de novas séries de sentidos, sempre moventes. E é
neste último viés que considero importante investir.
A série de sentidos de que falei anteriormente, assim posta em relação na
materialidade do livro didático, em circulação nas práticas de ensino e de aprendizagem
de língua estrangeira que se centram nele, dá continuidade a um processo ideológico –
ao retomar ou reproduzir suas bases de significação – sendo, assim, partícipe de tal
processo de interpelação de alta regularidade no capitalismo atual.
“A cultura” – assim determinada11
e, portanto, tomada como algo fechado nos
livros didáticos analisados (e nas práticas que retomam essa concepção) – é mobilizada
apenas enquanto tema e é isto o que me levou, acima, a dizer que ela é trabalhada como
lugar outro da língua, sem referência à materialidade linguística. Para avançar sobre
esta afirmação, tomo a definição de Pêcheux (1993b) (também retomada por ORLANDI
[1988]), segundo a qual a língua constitui uma base material e, em tal base, se
produzem efeitos de sentidos ligados a uma memória discursiva constituída sócio-
11 Payer apresenta uma reflexão, a partir de discussões de Haroche e Henry, sobre os mecanismos de
determinação. Segundo a autora (1993, p. 45), “(...) caracterizam-se [...] como mecanismos de linguagem
privilegiados para se perceber a realização textual da impressão de que se atinge de fato um objeto em sua
unicidade, em sua invariância, e de que aprisiona na língua esse objeto que parece só poder ser este,
assim, desta forma. A determinação supõe, deste modo, a possibilidade de uma ‘ancoragem da
significação’ em um referente exato, definido, individual”. Decorrente deste funcionamento discursivo é o
efeito de unidade e de evidencia que se alojam ao objeto discursivo que é determinado, o que corrobora a
interpretação colocada acima sobre os sentidos decorrentes da determinação de “cultura” nos livros
didáticos.
27
historicamente. A língua, então, não é independente de tal memória, tampouco esta
dessa base material, relação que constitui o caráter processual da linguagem – a língua
como vinculação entre a materialidade linguística e a memória discursiva que a
permeia.
O efeito de sentido que produz o sintagma “a cultura” como lugar outro da
língua, que apaga a memória discursiva vinculada a essa língua, está permeado de
representações de sociedade, de sujeitos e de hábitos, estas apresentadas e reproduzidas
sem serem submetidas a uma reflexão teórica e, portanto, sujeitas a uma filosofia
espontânea (PÊCHEUX, 2008). Tal funcionamento vai em direção de retomar e
legitimar um processo de naturalização – já instaurado ideologicamente – de tais
representações que, dadas como “verdadeiras”, instalam o que interpreto como uma
dicotomia entre língua e cultura – por isso, já expressei tal interpretação, mediante a
formulação “cultura como um lugar outro da língua” – e, ainda, como também já disse,
contribuem a um processo de estereotipia do outro.
Neste capítulo considero importante, em relação à dicotomia entre língua e
cultura que mencionei anteriormente, observar que a noção de cultura que aí opera –
como produto mercadológico, idealizado12
e desistoricizado13
– está vinculada a uma
exterioridade fora da língua, ao diluir o linguístico e silenciar o político, em um
processo de homogeneização que apaga as contradições inerentes a este último14
.
Tenho como hipótese que não é possível pensar “a cultura” como separada dos
processos históricos e discursivos constitutivos de uma língua, por isso considero que
não é “algo” que esteja fora desta. A língua possui uma constituição no modo relacional
entre o discurso e a história; nela, em sua memória (PAYER, 2007) e em como esta
opera no discurso ficam inscritos processos de diferenciação, da ordem da alteridade. É
possível pensar esta última em sua relação com a ordem da cultura, tentando escapar da
12
Produz-se uma cultura idealizada, no sentido de “neutra” e “sem conflitos”.
13
De acordo com a AD, a exterioridade funciona como “historicidade” (ORLANDI, 2008) no interior do
discurso (inclusive, pelo que acabei de discutir anteriormente sobre a língua como base material), sendo
possível analisar como um acontecimento se inscreve no discurso (cf. ACHARD et alii, 2007). Penso
que “a cultura” atravessa essa exterioridade – atravessa, com sua especificidade, o real da história – e que,
portanto, é possível trabalhar seu funcionamento como inscrito no interior de um texto, no interior do
discurso.
14
Diniz (2012) apresenta em sua tese processo semelhante ao analisar materiais didáticos e discursos
produzidos pelo corpo diplomático brasileiro sobre a cultura do Brasil em processos de ensino e
aprendizagem de Português como Língua Estrangeira na América Latina.
28
“organização” – numa espécie de quase “administração” imaginária – à qual ela é
submetida no funcionamento da “noção de cultura” à que me referi acima e que opera,
regularmente, nas práticas de ensino/aprendizagem que aqui me ocupam15
.
Inerente a estas questões está o modo relacional entre língua, discurso, cultura e
história, vinculação que discutirei adiante e que me leva a pensar como Mignolo
(2003a) quando este reflete sobre esta questão. Para este autor, manter os laços entre
língua, literatura (a canônica), cultura (a nacional, sob o poder ou a organização de um
Estado) e território (vinculado a um Estado nacional) supõe reproduzir as localizações
imperiais, ou seja, os privilégios e lugares sociais estabelecidos pelo imperialismo
econômico. Segundo o mesmo autor, “los fuertes lazos existentes entre lengua,
literatura, cultura y territorio presentados como una configuración neutral en el siglo
XIX se están viendo constantemente desacoplados por transformaciones sociales así
como por prácticas culturales” (MIGNOLO, 2003a, p. 309), pois a base material
inerente a esses elementos são uma construção histórica e não da natureza, em constante
mudança. Para Mignolo a língua não deve ser considerada como fato, tomada como
fruto da natureza, mas dotada de uma corporeidade e de uma cultura tomadas dos
sujeitos que a falam, construída na história e vinculada a um espaço territorial
construído sob a égide do Estado (e sob o efeito deste). Conforme Mignolo (2003a, p.
292):
Una de las armas más eficaces para la construcción de
comunidades imaginadas homogéneas fue la creencia en una
lengua nacional, ligada a una literatura nacional y que
contribuía, en el campo de la lengua, a la cultura nacional.
Además, la complicidad entre lengua, literatura, cultura y nación
estaba relacionada también con el orden geopolítico y las
fronteras geográficas.
Deste modo, discutir a dicotomia entre língua e cultura existente em propostas
de práticas incluídas em livros didáticos, que vincula cultura a uma exterioridade fora
da língua abre espaço para a revisão de certas questões, como o silenciamento do
político, alçando-o e dando visibilidade às contradições inerentes de toda sociedade e,
ao mesmo tempo, legitimando histórias locais que se colocam como resistência a
15 Cabe dizer que me sirvo aqui de formulações elaboradas por Ferreira (2011).
29
processos de homogeneização cultural e linguísticos levados a cabo pelo Estado na
administração imaginária dos sentidos vinculados a (à) cultura e à língua.
Tal administração se realiza sob um trabalho de sobredeterminação discursiva
ao deslocar da esfera do sujeito para a esfera do Estado o conceito que tomo de Pêcheux
(2009)16
e também da reflexão de Payer (1993), efeito de generalização, abstrato e
racional, construído empiricamente através de uma formação discursiva dominante e
sua relação com outras formações discursivas, a partir da força que se estabelece entre
elas. Ao analisar a fala de lideranças sindicais rurais sobre as relações de trabalho no
campo, Payer (1993, p. 45) detectou o que denominou como sobredeterminação.
Segundo a autora, nos enunciados desses sujeitos,
[s]eus sentidos outros, seus objetos de referência próprios, seu
saber e seu não-saber constitutivos, suas ambiguidades e
indeterminações, são assim tornados claros, precisos,
determinados, à luz de alguns olhares que o “aplainam”, que lhe
podam as arestas mais confusas, higienizando-o para (ao)
“compreende-lo”, ao “conhecê-lo”, enquanto um “caso
concreto”; um exemplo eficaz para tornar evidentes outros
campos de sentidos; uma referência para a ancoragem de outra
significação: a generalização assim realizada explica para ele o
que ele é, arrebatando-lhe as próprias referências gerais, seu
“território” de representações, e atribuindo-lhe o estatuto
anônimo (embora supostamente mais digno de reconhecimento
nas categorias discursivas) de um elemento a mais no domínio
de outras referências gerais, de outras formações de discursos
(PAYER, 1993, p. 45).
Ou seja, ao determinar certos dizeres referentes à sua prática o sujeito se
determina também, o que leva Payer a denominar esse processo como
sobredeterminação. Se em processos de determinação discursiva ocorre um trabalho
sob o efeito de unidade e de evidência, com “um referente exato, definido, individual”
(PAYER, 1993, p. 45), a sobredeterminação é um processo mais intenso, pois
“projetados frequentemente como determinados, são, nas relações interdiscursivas,
sobredeterminados por outros dizeres” (ibid., p. 54). Isso me leva a afirmar que há um
processo de sobredeterminação, por parte do Estado, dos sentidos vinculados a cultura
16 A data original desse trabalho de Pêcheux é 1975.
30
e à língua, através de movimentos realizados por esta instituição ao definir sentidos e
estabelecer discursos relacionados à língua, cultura e nação e sobre si mesmo como
instituição. Tais movimentos estabelecem pilares sobre os quais a identidade nacional se
colocaria e legitima o Estado como entidade administradora de um espaço
imaginariamente regulado.
A série de considerações aqui feitas me permite passar para o segundo ponto de
articulação do eixo central que determinei anteriormente: a importância de discutir o
funcionamento discursivo do termo cultura em práticas de ensino/aprendizagem de
língua estrangeira como arquivo, este constituído a partir do núcleo duro de um pré-
construído.
De minha perspectiva, ao redor do funcionamento do efeito de pré-
construído que atravessa “a cultura” organizou-se um arquivo, no sentido em que
Foucault (2008) considera este termo. Conforme o autor:
Entre a língua que define o sistema de construção de frases
possíveis e o corpus que recolhe passivamente as palavras
pronunciadas, o arquivo define um nível particular: o de uma
prática que faz surgir uma multiplicidade de enunciados como
tantos acontecimentos regulares, como tantas coisas oferecidas
ao tratamento e à manipulação. (...) [E]ntre a tradição e o
esquecimento, ele faz aparecerem as regras de uma prática que
permite aos enunciados subsistirem e, ao mesmo tempo, se
modificarem regularmente. É o sistema geral da formação e da
transformação dos enunciados (FOUCAULT, 2008, p. 147-
148).
A partir deste termo, como algo que dá base à enunciabilidade de discursos
produzidos, penso no efeito de “organização” e, sobretudo, de “fechamento” que atribuo
ao “arquivo” (de materiais e de temas) que se organizou a partir do funcionamento do
pré-construído acima referido e na possibilidade de sua abertura e discussão. Abri-lo
implica, justamente, na possibilidade de ressignificá-lo, deslocando modos regulares e
estabilizados partícipes da construção de efeitos de evidência que relacionam cultura
com algo “específico”, isolado da língua.
A necessidade de revisar “a cultura” e de abrir um arquivo, tal como acabo de
discutir neste capítulo, se relaciona com o fato de que nas práticas de ensino centradas
31
em diversos livros didáticos de espanhol17
, consideração que faço a partir de minha
experiência de professor e de pesquisador, opera um efeito de homogeneização da
língua, pois neles esta é vinculada a determinados traços de como funciona em certos
espaços territoriais. Nesse sentido, nesses livros são reproduzidos certos imaginários
sobre o que seria próprio da língua de cada espaço, sem que isso seja submetido à
pesquisa, ou seja, revisado à luz dos estudos da linguagem (da Pragmática, da
Sociolinguística, da Teoria da Enunciação, da Análise do Discurso, entre outras) e das
ciências sociais. Assim, neles não são considerados, por exemplo, aspectos relacionados
aos processos de formação dos Estados nacionais que possuem a língua espanhola como
oficial, que implicaram em políticas linguísticas e processos de gramatização
específicos (AUROUX, 1992) – mediante, inclusive, a elaboração de instrumentos
linguísticos – que instauraram determinadas contradições na construção da “unidade”
linguística da língua espanhola falada em cada um desses Estados. Por efeito de tudo
isso, essa língua, nas práticas de ensino/aprendizagem, de forma regular, é apresentada
de forma homogênea (através do apagamento da diversidade sob o prisma da
variedade18
) e funciona sob um efeito de evidência que não dá conta de sua
heterogeneidade constitutiva. Ao considerar este aspecto em sua relação com o
tratamento que aí se faz de “a cultura” (esta quase como um simulacro), é possível
deduzir que o processo de homogeneização funciona, ao menos em duas vertentes, e
opera sob o efeito de uma heterogeneidade aparente e rasa.
17 Considero que atualmente há uma sensibilização, por parte de alguns autores brasileiros de livros
didáticos, em deslocar esse efeito de homogeneização, sobretudo devido ao conhecimento acadêmico
produzido no Brasil sobre funcionamento da língua espanhola. Há de se considerar, também, o
surgimento do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) que, especificamente a partir de 2010, tem
mediado e até direcionado a produção editorial de livros didáticos de língua espanhola em nosso país.
Sobre o mercado editorial brasileiro de livros didáticos de espanhol, consultar SOKOLOWICZ (2014).
18 De forma regular, essa “variedade” é apresentada, mesmo que de maneira não explícita, como
pressupondo um núcleo central e duro ao redor do qual ocorreria a variação. De fato, por efeito de fortes
gestos de política linguística e de um processo de colonização, na língua espanhola, tal como mobilizada
em diversos instrumentos linguísticos, a “variedade” centro-peninsular da Espanha (ou melhor, uma
representação desta) funciona como esse núcleo ao que faço referência, dentro de um processo de
silenciamento de diversas formas da heterogeneidade dessa língua. Considero que o conceito de
heterogeneidade é mais produtivo e, de acordo com Serrani-Infante (1997a), implica duas instâncias: a da
diversidade – formas não semelhantes que se distinguem e se colocam em contraste – e a da alteridade,
na qual a análise dessas formas se realiza à luz da diferença dada pela história e pelo social.
32
Após a série de considerações feitas até o momento, é importante destacar que a
problematização de diferentes sentidos de cultura e de sua abordagem, enquanto lugar
de discussão de representações (de povos, de identidades) em processos de ensino e de
aprendizagem de língua estrangeira, tem chamado a atenção de linguistas aplicados
brasileiros há algum tempo. Nesses trabalhos há uma abordagem de cultura como algo
determinado, não levantando uma problematização em torno desse termo, mas somente
considerações sobre a sua importância no ensino de línguas estrangeiras para
brasileiros19
. Entretanto, na contramão desses trabalhos, há outros desenvolvidos na
direção de deslocar reflexões pautadas apenas por aspectos gramaticais e
morfossintáticos das línguas estrangeiras para a consideração da importância de se
discutir as representações, os imaginários e aspectos dos processos de identificação que
permeiam toda aprendizagem de uma língua estrangeira e o papel que a língua materna
desempenha na aprendizagem daquela: cito, a modo de exemplo, os de PERUCHI
(2004), RUFINO (2003), MOITA LOPES (1996) e CORACINI (2003b), sobre o ensino
de línguas estrangeiras como o inglês e o francês, e os de CELADA (2002), SANTOS
(2005) e DE NARDI (2007), sobre o ensino de espanhol para brasileiros.
Neste ponto passo, a seguir, para o segundo item deste capítulo, em que
apresentarei, como contraponto a este modo genérico de abordar cultura, uma breve
reflexão sobre o caráter da literatura enquanto materialidade discursiva para discussão
de cultura em práticas de ensino de línguas.
1.2. A literatura como materialidade discursiva para discussão de
cultura
Neste ponto, passo a realizar reflexões para a escolha de textos da esfera literária
na formação do corpus mobilizado para a elaboração de lineamentos. Parto das
discussões20
de Mignolo (2003a) ao estabelecer a prática literária como reflexão. Nesse
movimento, ao contrapor a literatura não canônica às culturas acadêmicas, estas
últimas geralmente tomadas como espaço legitimado de pensamento reflexivo, o autor
19
Ademais, neles vinculam-se “à cultura” representações da realidade, estereótipos, clichês e questões de
identidade, o que considero como análises de funcionamentos discursivos, ou de efeitos de sentidos, que
se contabilizam na esfera do que é tomado como cultura. 20
Mantenho essa afirmação de Mignolo, provavelmente muito ligada a questões específicas no jogo de
forças do debate acadêmico desenvolvido nos Estados Unidos sobre a América Latina, em respeito a
coerência ideológica de seu pensamento.
33
considera que temas que são comumente silenciados pelas culturas acadêmicas são
legitimados pela literatura não canônica. O que esse autor coloca, ao meu ver, é a
crítica em relação às práticas institucionais e tradicionais de algumas áreas da academia.
Com base nesta discordância apresento a reflexão de Tatián (2012) sobre a posição da
universidade em relação ao seu papel crítico frente ao Mercado – e, por conseguinte, a
outros lugares institucionais21
. Para esse autor (2012), uma universidade de cunho
democrático consegue manter “una importante dimensión conservacionista, capaz de
invocar contenidos antiguos en alianza con otros nuevos”, pois, afirma, “en la
encrucijada crítica de memoria e invención, radica quizá la mayor contribución
democrática de la universidad pública”.
Relativizada esta posição de Mignolo, considero, entretanto, que sua reflexão
sobre o trabalho de organização realizado pelas instituições22
acadêmicas, através de
reguladores de sentidos como “la estructura gramatical, la coherencia del discurso y la
lógica argumentativa” (MIGNOLO, 2003a, p. 297), gerou um efeito de sentido que se
materializou em regras que operam nas culturas acadêmicas até hoje e que produz uma
diferença imperial23
ao colocar em lados opostos a ciência e a literatura e também
produz uma diferença colonial, ao estabelecer o que é literatura canônica, difundida
pelas instituições e tomada como objeto de estudo na escola, e o que escapa a ela como
literatura não canônica.
21
Há de se considerar, entretanto, que a universidade, enquanto instituição, se apoia em lugares mais
“conservadores” na produção de saber ou, então, mais vinculados aos paradigmas de uma produtividade
concebida em termos de Mercado, como afirma Tatián. Porém, certos lugares acadêmicos mobilizam a
universidade para uma reflexão que contribui à democracia, oferecendo resistência a lugares estabilizados
de produção de saber e de sua utilização como produto.
22 Nesse sentido trago uma reflexão de Haroche (1992), que será trabalhada posteriormente, em relação ao
papel que a cultura acadêmica teve na conformação dos Estados nacionais para gerir as subjetividades.
Segundo a autora, “a língua, a sua gramática e a psicologia são o lugar [de] mecanismos individualizantes
que induzem a uma psicologia específica” dos sujeitos, em um trabalho realizado pelo Estado na
elaboração de “uma psicologia do indivíduo médio” (idem) que pautaria suas políticas de conformação
das subjetividades, em um processo de homogeneização cultural e política cuja gestão passava pela
ciência. E, nesse sentido Haroche afirma que “a universidade, com efeito, se dedica, de certa forma, ‘a
desassujeitar’ o sujeito da religião, para assujeitá-la então ao Estado” (1992, p. 218).
23 A diferença imperial e a diferença colonial são dois mecanismos gerados pela colonialização, nos quais
me deterei com mais atenção no capítulo 3. A diferença imperial, nos processos de colonização que
deram continuidade à colonialidade do poder nos países independentes, atuou em complementação com a
diferença colonial, já que a primeira serviria para diferenciar diferentes modos de organização social e a
segunda como índice de classificação e hierarquização de pessoas por índices como “sus lenguas, sus
religiones, sus nacionales, su color de piel, su grado de inteligência” (MIGNOLO, 2003a, p. 43).
34
Conforme esta divisão, para Mignolo (ibid., p. 297-298) a ciência é padronizada
por práticas realizadas e impostas desde os grandes centros de produção do
conhecimento, relegando a literatura ao lugar de trabalho artístico e cultural – a
diferença imperial; na clivagem produzida pela diferença colonial, a literatura não
canônica, local, de saber popular, expõe as contradições sociais e históricas que
escapam à homogeneização, sendo que aquela classifica o que escapa desta – e o que
não é tratado pela literatura canônica – como folclore. Conforme o autor (ibid.), a
literatura canônica e a cultura acadêmica são processos a serviço de uma construção
imaginária de uma identidade nacional homogênea e apagada de contradições.
Nesse movimento de legitimação da literatura como prática reflexiva, Mignolo
(2003a) estabelece como marco de discussão o que ele denomina de pensamiento
fronterizo (doravante pensamento fronteiriço). Em relação a esta posição caberia dizer,
neste momento, pois pretendo desenvolver esta questão na presente tese, que o
pensamento fronteiriço é um conceito elaborado por este autor para conciliar, em
territorialidades que passaram por processos de colonização, a relação entre os
conhecimentos globais – estes atravessados pela diferença imperial e ocidental,
historicamente legitimados sob o imaginário da civilização ocidental e impossíveis de
serem silenciados, por já terem sido legitimados institucionalmente – e os
conhecimentos locais – estes historicamente silenciados e atravessados pela diferença
colonial, ademais de afetados pela diferença imperial.
A diferença imperial produz, entre os diferentes saberes, a legitimação de áreas
vinculadas ao mercado e à ciência, e a diferença colonial produz, a partir dessa divisão
estabelecida, outra diferenciação (por exemplo, a legitimação de uma literatura
canônica, vinculada aos saberes legitimados institucionalmente e produzida a partir de
saberes imperiais, em contraposição a uma literatura não canônica, considerada
“menor” porque escapa a essa padronização, realizada a partir de saberes locais).
Conforme Mignolo (2003a) pelo pensamento fronteiriço emergiria uma
consciência fronteiriça e mestiça, que trabalharia de igual modo esses discursos
atravessados. Esse trabalho não se faria, segundo Mignolo, se se for partir desde
lugares legitimados pelas instituições, como a literatura canônica e a cultura acadêmica,
pelas razões colocadas acima. Deste modo, para este autor, haveria a necessidade de se
criar
35
(…) un marco en el que la práctica literaria no se conciba como
objeto de estudio (estético, lingüístico o sociológico), sino como
producción del conocimiento teórico; no como ‘representación’
de algo, sociedad o ideas, sino como reflexión específicamente
propia sobre los problemas humanos e históricos (MIGNOLO,
2003a, p. 297).
Se conforme o pensamento fronteiriço é necessário estabelecer um novo
paradigma de literatura, Mignolo (ibid.) também considera necessário que isso seja
realizado em relação à língua – o que vai ao encontro do paradigma teórico que aqui
adoto, o da AD materialista, conforme a relação entre língua e cultura. Na relação entre
literatura e língua esta última se consideraria não necessariamente em termos
gramaticais e normativos24
, mas em termos de uma política linguística que reivindicaria
e atenderia
(…) a las distintas formas en que las prácticas literarias se han
vinculado, en el sistema-mundo moderno/colonial, a la
colonialidad del poder en sus versiones colonial y nacional. La
lengua también implica la cuestión de la formación de cánones,
la forma en que se han entretejido los valores nacionales y
occidentales para producir mapas lingüísticos, geografías
históricas y panoramas culturales del sistema-mundo
moderno/colonial25
dentro de su lógica interna (conflictos
imperiales) así como en sus fronteras externas (conflictos con
“otras” culturas; la diferencia colonial) (MIGNOLO, 2003a, p.
297-298).
Como outra posição sobre a justificativa de trabalhar especificamente com os
gêneros da esfera literária, me apoio também na definição de Bakhtin (2003) sobre
gêneros primários e secundários. Esse autor considera, conforme disse anteriormente em
nota de rodapé, que “cada campo de utilização da língua elabora seus tipos
relativamente estáveis de enunciados, os quais se denominam gêneros do discurso”
(ibid., p. 261). Deste modo, “o caráter e as formas de uso da linguagem são tão
24 No campo dos estudos da linguagem a língua não se reduz a “termos gramaticais e normativos”, porém
deixo o sintagma conforme formulado por Mignolo, que se refere ao modo de tomar a língua em diversas
práticas, inclusive institucionais.
25 Essa relação de pares que Mignolo estabelece será discutida no capítulo 3 desta tese.
36
multiformes quanto os campos da atividade humana” (ibid.) e a partir desse “uso” 26
Bakhtin classifica os gêneros discursivos, conforme sua natureza heterogênea, entre
gêneros discursivos primários (simples) e secundários (complexos). Estes últimos,
conforme o autor (idem, p. 263):
(...) surgem nas condições de um convívio cultural mais
complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado (...).
No processo de sua formação eles incorporam e reelaboram
diversos gêneros primários (simples), que se formaram nas
condições da comunicação discursiva imediata.
Conforme essa definição (ibid.), os gêneros literários seriam secundários por
retomar em sua formulação variados gêneros primários formulados em diversos
“campos da atividade humana”. Mesmo sendo de base ficcional, tais gêneros, ao
retomar os primários, “diretamente relacionados a contextos de enunciação” – como
diria o próprio Bakhtin27
– também retomam os elementos discursivos que compõem a
sua estabilização (da esfera do que determina um gênero discursivo) e, ao mesmo
tempo, mobilizam saberes e sentidos que remetem a uma dada configuração cultural e
histórica, os elementos constitutivos de toda materialidade discursiva, ou seja, suas
condições de produção.
Sob meu ponto de vista, outra consideração sobre gêneros discursivos da esfera
literária que reforça o recorte adotado nesta tese é algo que se relaciona com o caráter
do que se designa regularmente como originalidade e que eu abordo aqui como um
aspecto das condições de produção de tal gênero. Penso que há, no modo especifico
como a “função-autor” (cf. ORLANDI, 1996) atravessa um texto literário um
movimento “criativo” que interpreto como um gesto por parte do sujeito-autor: ao
elaborar um discurso dessa esfera, que se relaciona diretamente à reelaboração e
articulação de gêneros primários, considero que há uma tomada de posição28
de
26 Observo que, da perspectiva da AD, não se falaria em “uso” mas em “funcionamento”.
27
Segundo o autor (ibid.), os gêneros primários, ao fazer parte do acontecimento artístico, “perdem sua
relação imediata com a realidade e com os enunciados reais de outros”.
28 Sobre o conceito de tomada de posição, mobilizo a reflexão que Pêcheux (2009) realiza sobre o sujeito
do discurso. Diz Pêcheux (ibid., p. 198) que a interpelação do indivíduo em sujeito falante “por
formações discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são
37
“autoria”. Parece-me que o gesto de interpretação dessa subjetividade e o singular
agenciamento da linguagem nesse trabalho artístico são determinantes na configuração
desse gênero, tornando visível determinados modos de representação, descontruindo
certos efeitos de evidência, por exemplo.
Ademais desse trabalho que considero como de elaboração simbólica, Bakhtin
(2003), ao discutir o que o autor realiza na construção de uma personagem de romance,
formula o conceito de excedente de visão29
, “sempre presente em face de qualquer outro
indivíduo (...), condicionado pela singularidade e pela insubstituibilidade do meu lugar
no mundo” (ibid., p. 21). Tal funcionamento coloca em movimento uma interpretação
de si mesmo e do outro, um trabalho em que o autor, a partir desse lugar, se mobilizaria
na elaboração de uma personagem. Conforme Bakhtin (ibid., p. 6), o autor:
(...) é a única energia ativa e formadora, dada não na consciência
psicologicamente agregativa mas em um produto cultural de
significação estável, e sua reação ativa é dada na estrutura – que
ela mesma condiciona – da visão ativa da personagem como um
todo, na estrutura da sua imagem, no ritmo de seu aparecimento,
na estrutura da entonação e na escolha dos elementos
semânticos.
De fato, considero que aspectos como os que acabo de mobilizar são
determinantes na materialização dos discursos na esfera literária, e são significativos na
compreensão de suas condições de produção: o movimento de interpretação que exigem
correspondentes (...) ‘se realiza pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina’”
(idem). A partir dessas considerações o autor propõe que essa interpelação supõe um desdobramento da
forma-sujeito, em que “um dos termos representa o (...) ‘sujeito da enunciação’”, responsabilizado pelo
que coloca, “‘que toma posição’ com total conhecimento de causa”; e o outro termo representa o “sujeito
universal, sujeito da ciência ou do que se pretende como tal” (ibid.). Tal desdobramento, segundo
Pêcheux (ibid., p. 199) pode assumir diferentes modalidades, sendo duas evidentes: a primeira se define
como uma “superposição entre o sujeito da enunciação e o sujeito universal”, que configura a “tomada de
posição do sujeito” por um assujeitamento em que “o interdiscurso determina a formação discursiva com
a qual o sujeito (...) se identifica”, com o sujeito sofrendo “cegamente essa determinação” (ibid.); a
segunda é uma separação (...) com o sujeito universal, o que faz com que a tomada de posição se realize
contra a evidência ideológica, esta afetada pela negação”, em uma contra-identificação do sujeito com a
formação discursiva determinada pelo interdiscurso (ibid.).
29 Citando Bakhtin (2003, p. 21): “Quando contemplo no todo um homem situado fora e diante de mim,
nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem. Porque em qualquer situação ou
proximidade que esse outro que contemplo possa estar em relação a mim, sempre verei e saberei algo que
ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver: (...) toda uma série de objetos e relações que, em
função dessa ou daquela relação de reciprocidade entre nós, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele”.
38
se apresenta como algo produtivo quando se trabalha em práticas de
ensino/aprendizagem de língua estrangeira e se consideram saberes culturais e sociais.
Parece-me relevante, neste ponto, realizar uma observação: por mais que esta
tomada de posição de autoria funcione como efeito de unidade e de objetivação do
discurso, tal lugar apresenta contradições que remetem às condições de produção de um
discurso; no caso da esfera literária, o trabalho do autor é determinante, ao mobilizar
saberes e sentidos que remetem a uma dada configuração cultural e histórica – sempre
em determinadas condições de produção30
.
Ao pensar em um trabalho a partir de gêneros da esfera literária, em práticas de
ensino e de aprendizagem de língua estrangeira, também é fundamental levar em
consideração dois funcionamentos discursivos relacionados à autoria, o nome de autor
(FOUCAULT, 1992) e a função-autor (conforme ORLANDI, 1987).
O nome de autor é uma categorização que contribui não somente para o sentido
de evidência que caracteriza um determinado discurso como único, mas também o
remete a uma memória que o relaciona com os demais textos que compõem a obra desse
autor específico e ao nome deste31
. As relações de sentido que se estabelecem entre um
texto e seu autor produzem efeitos que “classificam” e “encaixam” o primeiro em uma
memória, sendo tal associação um elemento determinante na interpretação desse texto,
pois pode lhe conferir uma legitimidade (que configura a própria circulação da obra em
questão). Conforme FOUCAULT (1992, p. 12-13):
O nome do autor não é, pois, exatamente um nome próprio
como os outros. [...] Um nome de autor não é simplesmente um
elemento em um discurso (que pode ser sujeito ou
complemento, que pode ser substituído por um pronome etc.);
ele exerce um certo papel em relação ao discurso: assegura uma
função classificatória; tal nome permite reagrupar um certo
número de textos, delimitá-los, deles excluir alguns, opô-los a
outros.
30 E, cabe apontar, o trabalho com textos da esfera literária não vai barrar um trabalho que se faz presente
de modo muito específico com gêneros discursivos produzidos em uma língua estrangeira: o que implica
investir no trabalho com a memória discursiva, pois, como a materialidade linguística é determinante na
constituição e formulação dos discursos, a produção de sentidos aí reclama a necessária reposição de
determinados implícitos como diria Pêcheux, com base em formulações de Achard (1999).
31 Quanto mais reconhecido for o nome de autor, mais este será significativo na circulação e interpretação
de um determinado texto.
39
A função-autor (ORLANDI, 1987) está diretamente relacionada à textualização,
aos efeitos que delimitam uma leitura e uma interpretação conforme a materialidade do
discurso – tal função deixa marcas que determinam sua interpretação, constituindo um
"efeito-leitor" –, sendo que tais efeitos conferem unidade ao discurso e o individualiza.
Pela função-autor, enunciados dispersos no discurso se reúnem em um texto por uma
ilusão de unidade, delimitando-o no espaço e no tempo como um discurso único,
remetido imaginariamente a um sujeito que se configura como o seu autor. A força
dessa função organizativa se faz pela configuração do autor como fonte do dizer, e
desse lugar de autor são realizadas cobranças em relação à clareza, coesão e coerência.
Historicamente, conforme cada gênero discursivo, há certos aspectos
estabilizados aos quais o sujeito, para ocupar um lugar de autoria, é obrigado a seguir.
As condições de produção desse discurso, já determinadas por uma memória que
configura a constituição, a formulação e a circulação do gênero, determinam o
funcionamento da função-autor do sujeito que se coloca em posição de autoria.
No prosseguimento de refletir sobre o funcionamento de cultura como pré-
construído, apresento a seguir um agenciamento de cultura a um contexto de produção
específico, o espaço de enunciação da língua espanhola, gesto de interpretação que
considero necessário para a abordagem do trabalho com cultura vinculada a uma língua
que se ensina – sendo esta, especificamente neste trabalho, a língua espanhola para
brasileiros.
1.3. Cultura no espaço de enunciação da língua espanhola
Considerando a discussão e revisão teórica que proponho nesta tese, visando
realizar o movimento de alçar cultura a objeto discursivo; e o fato de que esta tese
também tem por objetivo contribuir para a área de formação de professores de língua
estrangeira – e, em especial, de espanhol para brasileiros –, penso que é absolutamente
relevante levar em conta os percursos históricos de constituição dos Estados nacionais
nos quais hoje essa língua é oficial. E este aspecto entra em clara relação com a
necessidade de considerar a complexa série de exploração e de colonização pelos quais
40
passaram os países que hoje compõem a região conhecida politicamente como América
Latina.
Com base nisso, interpreto esse território da América Latina como um espaço de
enunciação (GUIMARAES, 2002) habitado por sujeitos constituídos e divididos por
diversas línguas, que entram em específicas relações. Talvez um dos aspectos que
marcam tais relações é o fato de haver duas línguas “majoritárias” nacionais, o espanhol
e o português, protagonistas na discussão aqui realizada pois esta visa, sobretudo, os
processos de ensino/aprendizagem aos quais o aprendiz brasileiro de espanhol se
submete, sujeito esse que compreendo como sujeitos do discurso. Neste sentido,
começo, aqui, por mobilizar o que Orlandi (2008, p. 100) formula em relação ao
processo de constituição destes últimos. Esta autora considera um duplo movimento de
constituição da subjetividade. O primeiro movimento seria o processo de interpelação
do indivíduo em sujeito, realizado pela ideologia, em um processo simbólico. O
segundo movimento é o realizado pelo Estado, ao estabelecer diferentes formas de
individualização do sujeito, enquanto partícipe de uma coletividade, com direitos e
deveres. De minha perspectiva, considero que não se trata de dois, mas de um único
movimento no processo de constituição do sujeito do discurso. Assim, a interpelação
deste pela ideologia, que se dá na linearidade do intradiscurso (ou na sua
horizontalidade), é constitutiva das formas de individualização do sujeito por parte do
Estado, este já atravessado pelo funcionamento da ideologia.
Levando-se em consideração os sujeitos da língua como sujeitos do discurso,
será necessário mobilizar um conjunto de saberes32
que significam esse espaço e
determinam esses sujeitos, cuja cultura, em processos de ensino/aprendizagem de língua
espanhola por brasileiros, se trata de conhecer. O intuito é produzir uma aproximação da
América Latina como um espaço de enunciação, atravessado por diversos processos de
colonização realizados em diferentes épocas e por diferentes agentes imperiais que a
alojaram na periferia do processo de produção instaurado pelo capitalismo, este
determinante na produção e circulação de saberes atualmente.
Em relação a esse espaço de enunciação designado como América Latina, diz
Mignolo (2003a), que sua colonização, na passagem da Idade Média para a Idade
Moderna, foi o disparador da modernidade no mundo ocidental, do processo de
32 Sendo eles, como já antecipei, objeto de discussão do campo dos Estudos Culturais, da Sociologia e da
Antropologia Cultural; como o leitor sabe, a alguns deles fiz referência anteriormente.
41
formação dos Estados nacionais e do estabelecimento das relações comerciais entre
estes, pois, de fato, a colonização pelos europeus de territórios em outros continentes
deu sustentação à formação desses Estados que se estabeleceram, sobretudo, devido às
trocas comerciais realizadas entre eles. Tais trocas, ainda segundo esse estudioso (ibid.),
seriam o embrião do capitalismo que depois conformaria formas de civilização ao redor
do mundo, atravessadas por fortes divisões que estabeleceram regiões privilegiadas de
criação e de consumo de produtos e de estilo de vida, e outras de exploração de recursos
naturais e de mão-de-obra para a sustentação dos meios de produção.
Nesta linha de argumentação, García Canclini (1997), também antropólogo
cultural, aborda especificamente o processo de formação dos países latino-americanos o
qual, segundo o autor, instaurou a contradição hoje manifestada pelo “hibridismo
cultural” que funciona nesses países, e cuja base é a modernização proporcionada pelo
capital, que mantem as divisões de classe e a hierarquia dos saberes culturais. Através
de processos que ainda reproduzem práticas e hábitos herdados da colonização, o autor
considera que
[...] (a)ssim como a fragmentação privatizada do espaço urbano
permite a uma minoria reduzir seu trato com as ‘massas’, a
organização segmentada e mercantil das comunicações
especializa os consumos e distancia os estratos sociais. Na
medida em que diminui o papel do poder público como garantia
da democratização informativa, da socialização de bens
científicos e artísticos de interesse coletivo, esses bens deixam
de ser acessíveis para a maioria (ibid., pág. 372).
A partir das colocações de García Canclini (1997) e de Mignolo (2003 a, b)
considero que a formação social e histórica das nações latino-americanas está
atravessada não somente por práticas culturais e sociais herdadas do colonialismo, mas
também pela contradição que implica que estas práticas foram forjadas a partir dos
países colonizadores, realizadas de modo diferente daquelas presentes nos países
colonizados, consideração que abordarei nos capítulos seguintes. Ademais, sendo a
colonização o processo que deu condições ao surgimento de práticas comerciais que
antecederiam o modo de produção capitalista de hoje em dia, é impossível
desconsiderar a importância do capitalismo na conformação de práticas sociais e
42
históricas que ressoam em práticas culturais nos países colonizados – a colonialidade do
poder33
.
A divisão apontada por García Canclini (1997) – isto é, o “hibridismo cultural”
que mantém as divisões de classe e a hierarquia dos saberes culturais, conforme citação
anterior – nas atuais formações sociais dos países latino-americanos é também
acentuada nas representações dessas sociedades nos livros didáticos de E/LE. Por isso,
essa questão é primordial para a análise da circulação de temas e saberes circunscritos a
uma territorialidade dominante – no caso a Espanha – em detrimento de um
subcontinente inteiro – a América conhecida, dentro do espaço mais amplo da América
Latina, como hispânica ou de fala espanhola34
. Nesse sentido, essas representações são
atravessadas por modos de significar uma “sociedade espanhola” como mais
homogênea, vinculada a uma civilização ocidental e a padrões de consumo tomados de
forma desistoricizada, quando comparada ao referido subcontinente, e que funciona
como padrão em relação a este.
Cabe aqui introduzir um parêntese para discutir a política linguística
centralizadora sobre o espanhol realizada atualmente desde a Espanha. Fanjul (2011)
considera que o Estado espanhol, conjuntamente com setores econômicos desse país,
passam a realizar um papel de tutelar as diferentes variedades de prestígio da língua
espanhola, prática iniciada por um processo de internacionalização do país, ao final dos
anos 70. Tal tutela coincidiu com a recuperação econômica que alçou a Espanha como
um país desenvolvido e que a inseriu na globalização. Conforme o autor, esse processo
de tutelar as diferentes variedades do espanhol, levado a cabo principalmente por
considerar a língua “como um ‘ativo econômico’ internacional” (ibid., p. 318), foi antes
impossibilitado pela dificuldade de impor-se a variedade de prestígio espanhola como a
variedade de todo um subcontinente (a América Latina de fala espanhola), pois até os
anos 70 nenhum país hispano-falante se sobressaía política e economicamente sobre os
demais. Nesse processo de reafirmação de uma posição, marcada por uma tentativa
“administradora” da língua espanhola, Fanjul discute que seria “inexato identificá-lo
com a Espanha como Estado nacional” pois, apesar que tal política “conta com o apoio
33 Esse conceito será trabalhado no capítulo 3 desta tese.
34 Algo que já foi observado, de modo muito incipiente, neste capítulo.
43
político e orçamentário do Estado espanhol”, “ela é protagonizada e sustentada
fundamentalmente por um conjunto de empresas [espanholas] de capital transnacional”
(ibid.). Cabe discutir pelo viés econômico, inerente ao processo capitalista e a esse
processo de centralização realizado desde a Espanha por diversos atores, o fato de que a
língua e os seus instrumentos linguísticos se converteram em “produtos de mercado”.
O processo de homogeneização de identidades e de saberes diversos realizado
sob a representação da latinidade35
, esta última pautada, sobretudo, pelas noções de
hispanidade e/ou de hispanofonia – posições das quais eu me afasto por considerá-las
agentes de estereotipia em tal processo –, possui como produto o apagamento das
diversas línguas e culturas presentes no continente, que escapam a tal homogeneização
(ibid). Mignolo (2003a), ao partir do imaginário de hemisfério ocidental, estruturado em
relações de poder mediadas pela colonialidade do poder, mobiliza um conceito que se
contrapõe a esse imaginário, para descrever as contradições sociais e políticas que
fragilizam esse processo de homogeneização. Em direção a uma mudança que o autor
acredita ser radical no imaginário e na compreensão e discussão das estruturas de poder
do mundo moderno/colonial, a partir de considerações de Quijano e Wallerstein (1992),
introduz o conceito de colonialidade.
Mignolo (2003b, p. 63) considera que tal conceito, à diferença de “colonialismo”
(este vinculado à formação do capitalismo), é resultado “de la construcción de mundo
moderno en el ejercicio de la colonialidad del poder”, processo que – como produto
direto da modernidade, como bem demonstra o próprio autor (ibid.), é consequência da
história colonial europeia na América – produziu homogeneizações, clivagens,
apagamento e deslocamento de saberes. Desta forma, segundo o autor (ibid., p. 63):
El imaginario del mundo moderno/colonial surgió de la
compleja articulación de fuerzas, de voces oídas o apagadas, de
memorias compactas o fracturadas, de historias contadas desde
un solo lado que suprimieron otras memorias y de historias que
se contaron y cuentan desde la doble conciencia que genera la
diferencia colonial.
35 Segundo Mignolo (2007, p. 100), “[q]uien contribuyó a imponer la idea de ‘latinidad’ en la América
hispana fue un intelectual francés poco conocido, Michel Chevalier”. Mignolo também observa que “[l]as
dos ramas, la latina y la germánica, se han producido en el Nuevo Mundo. Al igual que la Europa
meridional, América del Sur es latina y católica; América del Norte, en cambio, tiene una población
protestante y anglosajona”.
44
Considerando o processo de colonização empreendido desde a Europa na
América, García Canclini (1997, p. 23) pontua que este gerou contradições hoje
determinantes nas sociedades dos atuais países americanos de língua espanhola,
passíveis de serem entendidas pelos termos “modernidade, modernização e
modernismo” 36
. A revisão da noção de cultura deve levar em consideração que esta é
um processo, com base em tudo o que aqui tenho desenvolvido, atravessado fortemente
por questões econômicas que configuram essa colonialidade do saber de que fala
Mignolo (2003a) com o estabelecimento de lugares que ocupam o centro de produção e
de irradiação cultural, feitos e sustentados pelo econômico e ocupado por países
desenvolvidos, e o de lugares destinados a somente consumir o que é produzido nesse
centro, em um batimento constante entre o que é o local e o global.
A partir desta definição considero que o conceito de colonialidade do saber
mobilizado por Mignolo (2003a) é atuante na formação de saberes culturais, levada a
cabo principalmente pela indústria cultural, processo que gera hierarquicamente
materialidades culturais que circulam de forma heterogênea, associadas a determinadas
formas de vida e modos de consumo, que se converteram em produtos lucrativos. Tal
processo decorre da ressignificação pela qual passaram os modos de produção de
mercadoria na segunda metade do século XX, conforme a interpretação de Benko
(1999) que apresento a seguir, ao apresentar reflexões iniciais sobre o vínculo de cultura
com processos sociais e econômicos vinculados à globalização.
1.4. Cultura e sua relação com atuais processos de globalização
Considero fundamental recorrer à análise que Benko37
(ibid.) realiza sobre a
mudança dos modos de produção capitalista ocorrida no século XX, como disse acima,
para compreender o modo como hoje circulam determinados saberes culturais tomados
como “produtos”, produzidos desde uma indústria de massa, a partir de territorialidades
que ocupam atualmente posições dominadoras na produção de mercadorias.
36 Tratarei desta questão no capítulo 3 desta tese.
37 Georges Benko é geógrafo francês e discute conceitos como os de mundialização e de metropolização
mundial, que designam processos decorrentes da atual polarização da economia em torno das grandes
cidades mundiais.
45
Benko (1999), que se deteve na análise de processos de constituição e de
expansão do capitalismo moderno, discute a reestruturação pela qual a produção de
capital passou a partir dos anos 60, quando o fordismo, enquanto técnica de produção de
riqueza a partir da exploração do trabalho, dava mostras de declínio e não conseguia
gerar lucros rentáveis que cobrissem suficientemente os gastos de produção. O modelo,
– continua o autor (ibid.) – durante 30 anos após a crise de 1929, promoveu um grande
acúmulo de capital e permitiu o crescimento econômico e o poderio militar dos Estados
Unidos e dos países para cuja reconstrução este estado ajudou pós-Segunda Guerra
Mundial. Nos anos 60, em um período de estagnação, esse modelo passou a criar
obstáculos à acumulação capitalista, pois ele perdia força conforme as novas
configurações sociais e políticas ocorridas com a descolonização e a formação de novos
países no continente africano e asiático, devido à sua rigidez baseada, sobretudo, na
exploração econômica dos recursos naturais das colônias europeias na Ásia e África.
Ainda segundo Benko (ibid.), entrava em funcionamento um paradoxo: como
promover uma mudança que permitisse o crescimento do capital, mas sem permitir sua
divisão e desvalorização, ou seja, um novo modelo que desse vazão a esse crescimento
e, ao mesmo tempo, mantivesse a divisão social do trabalho e de acumulação do
capital.
Nesta linha de argumentação, Castells (1999) analisa, também a partir do campo
da Sociologia, a importância da mercantilização de saberes no estabelecimento de novas
formas de consumo, processo decorrente do panorama apontado por Benko (ibid.) na
geração de novas necessidades econômicas. Ao apresentar e abordar o conceito de
capitalismo informacional, de sua autoria, Castells (1999.) apresenta a tecnologia da
informação como o paradigma atual das contradições do capitalismo, o seu novo rosto a
partir do final do século XX.
Conforme o autor (ibid.), as velhas relações sistêmicas mantêm-se nesta nova
configuração, em que a informação e as novas tecnologias são o novo produto
mercantilizado. Como ele mesmo afirma (ibid., p. 100), “(e)xistem relações sistêmicas
entre capitalismo informacional, reestruturação do capitalismo, tendências presentes nas
relações de produção e novas tendências de distribuição” que reafirmam as diferenças
entre os países nos modos em que ocorrem as divisões sociais e a desigualdade.
A partir dessas relações – continua o autor (id.) – instala-se uma separação entre
aqueles que detêm a posse da tecnologia e do capital e os que não os possuem, cabendo
46
a estes não o desenvolvimento de novas mercadorias, saberes e produtos da indústria de
massa – essenciais para a configuração e a dinâmica do que atualmente se configura
como uma sociedade “em rede” e globalizada – mas somente o seu consumo. Nessa
configuração, saberes são valorizados e outros silenciados, mercantilizados e
disseminados em um intento de padronização e de homogeneização de hábitos
realizados através de uma construção que apaga as contradições inerentes aos processos
históricos.
Nesta linha de argumentação Ianni (1999), também sociólogo, discute o
processo decorrente desta nova configuração: a globalização. Por ela, segundo o autor,
o capitalismo submeteu as forças consumidoras e produtivas de nosso planeta,
colocando-as ao mesmo tempo como parte e fora dos sistemas de decisões, dando a
falsa ilusão de todos serem partícipes de tal processo. Em sua leitura deste fenômeno,
Ianni (ibid.) considera que há uma homogeneização, apenas aparente, que está imersa
em um contexto de extrema desigualdade, de contradições e de diversidades de sujeitos
e de posturas.
Conforme Ianni (ibid.), há uma desterritorialização das forças produtivas e dos
saberes que se rearrajam em qualquer lugar, através do processo de globalização. As
cidades globais, grandes aglomerados urbanos e símbolo da nova socialização e
ocupação da terra em nosso planeta, atuam como agentes do processo de
desterritorialização das forças produtivas e da geração de saberes. Entretanto, observa
Ianni (ibid.), as corporações determinam os processos de decisão dos mercados e estão
acima dos estados e nações, dos grupos e das coletividades. Assim, acrescenta (ibid.),
determinam e geram buscas de forças de trabalho, que estão aquém das condições
sociais de configuração e de organização social e política dos Estados. Essas
corporações geram novos saberes e práticas culturais, disseminados enquanto produtos,
determinantes na homogeneização de saberes e na produção de práticas culturais
voltadas à massa.
Esta série de questões implicará um impacto sobre a identidade dos sujeitos aí
envolvidos, conforme será possível ver no próximo item, o último deste capítulo, ao
discutir,de forma inicial, o vínculo de cultura com identidade.
47
1.5. Cultura e a identidade em práticas culturais
Autores como Hall (2001), da antropologia cultural, sensíveis à configuração
estabelecida atualmente pelo processo de globalização acima referido, consideram a
identidade um conceito pouco desenvolvido nas Ciências Sociais, mas em mobilização
devido a uma mudança estrutural que está transformando as sociedades modernas
atualmente. O que Hall (ibid.) define como paisagens culturais de classe, gênero,
sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que no passado eram localizações sólidas de
indivíduos sociais, hoje estão em transformação, o que afeta e muda as identidades
pessoais e a ideia de que todos somos sujeitos integrados. Há a perda de um “sentido de
si” estável, definida por Hall (ibid.) como um deslocamento ou descentramento do
sujeito, o que gera a este último uma crise de identidade: essa perda é provocada por um
duplo deslocamento realizado tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si
mesmo.
Em relação aos processos econômicos e políticos que a globalização instaura na
conformação política e social atual, Hall (ibid., p. 75) discute como tais processos
conformam hábitos e identidades acima das representações de cultura e de identidade
nacionais:
Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global
de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas
imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente
interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas –
desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições
específicos e parecem ‘flutuar livremente’. Somos confrontados
por uma gama de diferentes identidades (cada qual nos fazendo
apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós),
dentre as quais parece possível fazer uma escolha. Foi a difusão
do consumismo, seja como realidade, seja como sonho, que
contribuiu para esse efeito de ‘supermercado cultural’. No
interior do discurso do consumismo global, as diferenças e as
distinções culturais, que até então definiam a identidade, ficam
reduzidas a uma espécie de língua franca internacional ou de
moeda global, em termos das quais todas as tradições
específicas e todas as diferentes identidades podem ser
traduzidas. Este fenômeno é conhecido como homogeneização
cultural.
Entretanto, segundo Eagleton (2011) tal processo é contraditório: ao mesmo
tempo em que há uma homogeneização cultural de hábitos e de identidades, a
48
globalização, enquanto processo capitalista, promove uma diversidade de articulações
que valorizam o local frente ao global, aquele enquanto possuidor de valor diferenciado
e, por isso, de maior valor em relação ao global (ibid., p.116-7). Além disso, conforme
esse autor (ibid., p. 97), também promove uma ocidentalização de hábitos, que
interpelam sujeitos de realidades diferentes ao dos grandes centros para processos
imigratórios, em busca de um estilo e de um consumo idealizado; e um acirramento do
fortalecimento das identidades locais, que geram processos xenófobos, nacionalistas e
fundamentalistas, ao estabelecer critérios construídos sócio-historicamente como
classificação de identidades e de sujeitos.
De fato, considero importante que, no que se refere ao funcionamento da noção
de cultura, aspectos que se vinculam diretamente à questão da heterogeneidade de uma
sociedade sejam discutidos levando em conta a diversidade em relação a identidades
sociais, sexuais e profissionais, estas consideradas – conforme Hall (2001, p. 8) – como
identidades modernas “‘descentradas’, (...), deslocadas ou fragmentadas”. Em relação
ao campo do ensino de línguas estrangeiras, há de se observar a problemática de abordar
temas culturais a partir de uma territorialidade ou de um padrão, conforme expus
anteriormente sobre o papel de referência ocupado pela Espanha nos livros didáticos de
E/LE (que se vincula à própria homogeneização que produz o processo de
globalização)38
, pois, como observa Bhabha (2007, p. 24), “[o]s próprios conceitos de
culturas nacionais homogêneas, a transmissão consensual ou contígua de tradições
históricas, ou comunidades étnicas ‘orgânicas’ (...) estão em profundo processo de
redefinição”.
Rever como esses estudos (enlaçados nas três “séries de saberes” que acabei de
apresentar segmentalmente) abordam o papel do Estado e dos processos econômicos
mediados pela globalização enquanto reguladores de sentidos, ao conformar noções de
identidades e de culturas, é um ponto de análise a ser realizado nesta tese. Após as
considerações apresentadas neste capítulo, passo, então, ao segundo.
38 Como observa Revuz (1998), opera uma “uniformização relativa de modo de vida e de produção em
escala internacional”.
49
Capítulo 2:
Cultura – reflexões sobre seus diferentes sentidos
A noção de cultura, tão recorrente nas práticas de ensino e de aprendizagem de
línguas, apresenta, como já antecipei, um funcionamento tomado por uma “alta
determinação discursiva” (PAYER 1993; INDURSKY, 2013) – em contraposição com
o sintagma, quase despojado de determinação linguística, “a cultura” – pois, na verdade,
entra em relação com sentidos de “evidência” e de “completude”, que raramente são
postos em discussão. Nesse sentido, cabe observar que, dentre as diferentes disciplinas
que na área de humanas a consideram como objeto de estudo, a de Estudos Culturais,
em especial, realiza uma forte discussão sobre os diferentes sentidos aos quais foi se
associando ao longo da história.
Como já observei no capítulo 1, a problematização de cultura e de sua
abordagem, enquanto lugar de discussão vinculado a representações de identidades e de
universos de práticas culturais a elas relacionadas em processos de ensino/aprendizagem
de língua estrangeira, tem chamado a atenção de diversos pesquisadores, sobretudo nos
estudos vinculados aos referidos processos. Em alguns destes, há uma abordagem sobre
cultura que não levanta uma problematização em torno do termo. Especificamente,
nesse campo de estudos e, portanto, no da produção de livros didáticos e outros
instrumentos linguísticos e no das próprias práticas de ensino de línguas estrangeiras,
essa noção parece funcionar como um obstáculo epistemológico (BACHELARD (1996)
apud CELADA, 2002)39
um lugar comum que se situou nesses campos de saber,
produzindo um impedimento para avançar na reflexão, ao barrar certos sentidos e só
propiciar a reprodução daqueles fortemente cristalizados, como um efeito de pré-
construído (HENRY, 1990). Desta forma, nesses campos são recorrentes certos
enunciados, tais como: “é importante aprender a cultura ao estudar uma língua
estrangeira”; “para os alunos a cultura é um motivo a mais para aprender uma língua
estrangeira”; ou “a cultura é uma forma de conhecer a língua viva” (grifos meus). Esse
39
BACHELARD, G. (1996). O novo espírito científico. (Trad. por António José Pinto Ribeiro). Lisboa:
Edições 70. (Original em francês: Le nouvel esprit scientifique. Presses Universitaires de France, 1934.
50
funcionamento me levou a afirmar que o artigo “a”, presente no sintagma “a cultura”, já
abordado no capítulo 1, parece dar sustento ao funcionamento do mesmo como um pré-
construído, tramado em sua objetividade e evidência, como fazendo parte da “realidade”
– isto é, de um sistema de sentidos experimentados e aceitos, como diria Pêcheux
(2009). A partir do funcionamento dessa determinação discursiva (em contraposição a
uma baixa determinação linguística: apenas um artigo ao lado do nome), sob o efeito
desse pré-construído, o termo cultura, nesses estudos, apresenta-se desistoricizado.
De fato, é uma preocupação, neste trabalho, problematizar cultura distanciando-
me de tomá-la como algo determinado em sua indeterminação (“a cultura”), numa
relação de transparência que o faz funcionar como uma evidência – fato este que
contribui para fechar sua interpretação, ademais de realizar o apagamento de sua
história. Ao contrário, mobilizarei as diferentes ressignificações de cultura enquanto
termo ou sintagma que faz referência a um “objeto do mundo” (enquanto objeto no
funcionamento de uma formação social40
), recuperando suas filiações com a memória
discursiva (cujo funcionamento está submetido a paráfrases e deslocamentos) a partir de
saberes elaborados, fundamentalmente, no campo dos Estudos Culturais, no qual ele é
tomado como “conceito” ou “noção”.
Segmento este capítulo em três itens, que correspondem aos deslocamentos de
sentidos que afetaram o termo cultura ao longo da história, a partir do trabalho de
interpretação realizado no já referido campo de estudos, principalmente a partir da
reflexão desenvolvida por Eagleton (2011), enlaçando-a com pressupostos e trabalhos
teóricos realizados pela Análise do Discurso materialista. Neste gesto, ao relacionar
cultura com as diversas séries de sentidos (cf. ACHARD, 1999) às quais foi se
vinculando na história, tornar-se-á visível a historicidade que funciona no interior desse
significante. Neste gesto de interpretação é inerente considerar que esses sentidos ao
longo da história, como todo discurso, são contraditórios, ou seja, não devem ser
tomados como dados e evidentes; são tomados como movimentos que, expostos às
relações de força na história, apresentam em determinado momento sentidos que
prevalecem como mais evidentes e hegemônicos que outros – o que também é possível
de ser remetido ao efeito de universalização projetado a partir de uma formação
discursiva. Nesta consideração me aproximo à reflexão de Eagleton de que “todas as
40 Esclareço que sempre que mobilizar o sintagma “o termo cultura” o estarei significando neste sentido.
51
culturas são autocontraditórias” (ibid., p. 39), o que remeto à questão de que cada
movimento desse termo na história possui em si mesmo “as forças” que promovem seu
deslocamento e sua interlocução com os demais sentidos de cultura.
No primeiro item dessa segmentação abordarei dois deslizamentos de sentido do
termo cultura. O primeiro deles decorre da palavra em latim colere, da qual surge o
substantivo cultura, com sentidos que remetem à modificação ou manipulação da
natureza. Essa interpretação seria o primeiro movimento na história do termo: este
denominaria os traços inerentes de um trabalho, de uma atividade humana, em
contraposição ao “estado natural das coisas”. A partir daí, o termo se ressignificou numa
clara relação com acontecimentos da história e, assim, cultura passou a vincular-se aos
sentidos de civilização. Esse movimento foi realizado sob um forte trabalho do Estado e
gerou um pré-construído, fortemente cristalizado, que associou sujeito, língua e cultura
como índices de identificação da nacionalidade de um Estado.
No segundo item, embora ainda mobilize reflexões formuladas no campo dos
Estudos Culturais – fundamentalmente mediante autores como Eagleton (2011) e
Bauman (2012) –, discutirei pelo viés da Análise do Discurso materialista esse trabalho
de interpelação produzido pelo Estado que interpreto que – dentro do processo de
ressignificação do termo cultura – implicou um dos mais fortes efeitos de estabilização
lógica de sentidos associados a esse significante. De fato, na associação de cultura com
civilização, promoveu-se um “enrijecimento” de sua série de significações, através da
regulação de aparatos como a língua e o arquivo jurídico, aspecto que provavelmente se
relacione com o papel fundamental que a cultura, como será possível ver, teve na
formação dos Estados nacionais na Europa.
No terceiro item, abordarei dois deslocamentos no sentido do termo ou da noção
de cultura que oponho, a partir de uma interpretação, à primeira série apresentada.
Ambos, tomando como base Eagleton (2011) e Bauman (2012), se caracterizariam por
uma forte capacidade de descristalização de sentidos instaurados pelo funcionamento do
Estado e da homogeneização realizada por este através do processo que teria levado a
que cultura equivalha a civilização. De acordo com o primeiro deslocamento, cultura
passa a significar como modo de vida característico estabelecendo a dissociação da
sinonímia entre cultura e civilização, principalmente pelo fato de que este último termo
adquiriu uma conotação relacionada ao modo de vida burguês europeu e fortemente
associada ao imperialismo empreendido pelas nações europeias na África e Ásia. Desse
52
modo, conforme Eagleton (2011), para esse movimento foi fundamental a crítica
realizada pelos liberais a este modelo econômico dos Estados nacionais na Europa,
baseado na exploração e submissão de povos que possuíam modos de vida distintos aos
dos europeus; o conhecimento dessas formas, proporcionado pelo acirramento dos
processos de colonização, passou a ser considerado como cerne desse deslocamento dos
sentidos do termo cultura. O último movimento que abordarei, o segundo deslocamento
da série abordada neste item 3, se relaciona com o processo pelo qual cultura passa a
significar prática artística. Este, em contraposição aos anteriores, se vincula à
mobilização e à estabilização dos sentidos das três ressignificações anteriores, aqui
apresentada: realiza uma descristalização de cultura e sua relação com o Estado de
forma mais contida, pois estaria composto por uma retomada de algumas questões
vinculadas a civilização, de modo mais atemporal, não tão situado na história. Tal
retomada, pois, reforça um lugar de estabilização ao vincular-se às atividades tomadas
como criativas e imaginativas na esfera do sujeito – com valores associados ao consumo
e ao mercado, vinculados aos bens de produção, sendo impulsionados por uma indústria
cultural de massa. Entretanto, também é partícipe de cultura como prática artística um
movimento de mobilização vinculado à História e às atividades de vanguarda, artísticas
e intelectuais, através das artes e da academia, o que gera uma descristalização da
relação de cultura com sentidos fortemente estabilizados com posições hegemônicas,
sejam elas realizadas pelo Estado ou por setores econômicos.
Descritas, de forma inicial, as ressignificações pelas quais passou o termo
cultura na história, passarei a discutir cada uma das duas séries aqui apresentadas.
Vamos, então, para a primeira delas.
2.1. Os primeiros movimentos de cultura na história
Mais de um autor, no campo dos Estudos Culturais, ao problematizar questões
referentes à noção de cultura, retoma sua etimologia41
para compreender sua
complexidade. A palavra em latim colere, da qual surgiu cultura, retoma sentidos
41 A partir da AD esse gesto poderia ser interpretado como uma tentativa de colocar o conceito com uma
memória, de tentar compreender como uma exterioridade vai se materializando na relação
significante/sentido.
53
relacionados à “lavoura”, a “cultivo agrícola”, a “colono” e à “colônia” (CEVASCO,
2008; EAGLETON, 2011), tanto em práticas relacionadas ao plantio quanto à criação
de animais. Segundo Eagleton (2011, p.11-12), um olhar sobre essa etimologia
possibilita ver o sentido de um trabalho de “modificação da natureza” e enxergar uma
oposição que atravessaria o funcionamento do próprio termo: natureza – homem42
.
O percurso de um termo que designava tipos de técnicas materiais (PÊCHEUX,
2008, p. 30) rudimentares para um termo que as ressignificava, de caráter mais
“sofisticado” e “abstrato”, deu-se durante séculos, na transição pela qual passou a
Europa da Idade Moderna à Idade Contemporânea. Eagleton (2011) chama a atenção
para essa mudança semântica, pois, se em seu inicio o conceito remetia às práticas
realizadas por sujeitos em sua relação com os trabalhos rurais, já na virada semântica
produzida nessa transformação passa a remeter àquelas próprias de sujeitos urbanos. A
forma derivada cultus, que remete a “culto”, também produziu sentidos que relacionam
“cultura” ao religioso: na Idade Moderna, conforme o mesmo autor, a ideia de cultura
“coloca-se no lugar de um sentido desvanecente de divindade e transcendência”
(EAGLETON, ibid., p. 10); assim, “herda o manto imponente da autoridade religiosa”
(idem, p. 11).
À semelhança de Eagleton (ibid.), Bauman (2012, p. 16), retoma na transição do
Moderno ao Contemporâneo o processo que instaurou a “dúvida corrosiva quanto à
fidedignidade das garantias divinas da condição humana” (ibid.) na consolidação da
emancipação do homem em sua liberdade; segundo ele, cultura foi fundamental em
estabelecer tal emancipação além da justa medida de tal liberdade. Afinal, nessa virada
em que o homem torna-se centro das atenções, no surgimento do antropocentrismo em
contraposição ao teocentrismo, “a apoteose da liberdade humana era uma regra
complementada pela preocupação com os limites que precisavam ser impostos às ações
dos protagonistas” (BAUMAN, 2012, p. 16). A cultura, nessa transição do Medieval ao
Moderno, permitia e restringia a liberdade dos sujeitos, características que, segundo esse
autor (ibid.), sempre estiveram presentes na “ideia de cultura”:
42 Esta oposição passou por várias tensões ao longo da história, entretanto, nenhuma delas foi capaz de
apagar a vinculação com natureza. Apesar de prevalecer o sentido de cultura enquanto trabalho de
modificação da natureza, por conectar-se com aquilo que é específico do homem, elemento que
diferenciaria este em relação ao mundo natural, em ressignificações posteriores cultura se associa ao que
era oposto ao artificial e ao civilizado, conforme discutirei neste capítulo.
54
O caráter de dois gumes – simultaneamente “permitindo” e
“restringindo” – da cultura, sobre o qual muito se tem escrito
nos últimos anos, na verdade estava presente desde o começo.
Num modelo ‘universalmente humano’ de cultura, duas
características muito diferentes do homem se fundiram numa
condição conjunta; assim, desde o início, houve um paradoxo
endêmico a essa noção (BAUMAN, 2012, p. 16).
Neste processo de afastamento de cultura relacionado à natureza e à concepção
de que esta deve ser transformada pelo homem – processo que marcará a passagem do
teocentrismo ao antropocentrismo, do rural ao urbano, do natural ao social e econômico
– Eagleton (2011) discute o funcionamento de uma dualidade constitutiva da noção de
cultura que, da minha perspectiva, entendo como uma contradição que resulta de uma
dupla filiação de memória. Assim, a noção estaria determinada por sentidos que
remetiam ao que o termo significava anteriormente e por sentidos surgidos pelo
acontecimento da transição do Moderno ao Contemporâneo. Sob o meu ponto de vista,
esta dupla filiação é determinante na circulação da noção de cultura no processo que
estabelece o antropocentrismo – ao codificar, como observa o próprio autor (ibid., p.
11), questões filosóficas “fundamentais” que marcarão o seu entendimento – e também
na função que exercerá sobre as práticas sociais na instituição em que se configura o
Estado moderno. Nesse sentido, observa:
Neste único termo [cultura], entram indistintamente em foco
questões de liberdade e determinismo, o fazer e o sofrer,
mudança e identidade, o dado e o criado. Se cultura significa
cultivo, um cuidar, que é ativo, daquilo que cresce naturalmente,
o termo sugere uma dialética entre o artificial e o natural, entre o
que fazemos ao mundo e o que o mundo nos faz. É uma noção
‘realista’, no sentido epistemológico, já que implica a existência
de uma natureza ou matéria-prima além de nós; mas tem
também uma dimensão ‘construtivista’, já que essa matéria-
prima precisa ser elaborada numa forma humanamente
significativa. Assim, trata-se menos de uma questão de
desconstruir a oposição entre cultura e natureza do que de
reconhecer que o termo ‘cultura’ já é uma tal desconstrução
(ibid., p. 11).
A partir de tal desconstrução, observa Cevasco (2008), transições políticas e
sociais determinaram o estatuto de distintas concepções de cultura, abarcadoras de
55
diferentes interpretações, portadoras das transformações sociais e políticas ocorridas ao
longo da história, deslizamentos de sentido que considero fundamentais na constituição
de uma memória discursiva sobre esse termo nos dias de hoje. Dentre estes, o mais forte
parece consistir na mobilização de cultura como substantivo abstrato e o
estabelecimento de uma relação sinonímica com civilização, ao passar a designar “um
processo geral de progresso intelectual e espiritual tanto na esfera pessoal como na
social – o processo secular de desenvolvimento humano, como cultura e civilização
europeia” (ibid., p. 09-10). Ao descrever tal sinonímia, a autora (ibid.) expõe que ambos
os termos são ao mesmo tempo descritivos e normativos, ou seja, nominam e qualificam
distintos processos43
.
Na associação de cultura com civilização, cabe retomar o que consideram
Eagleton (2011) e Bauman (2012) sobre o papel desempenhado pelo primeiro no
deslocamento do divino e no estabelecimento do humano no marco da consolidação dos
Estados nacionais na Europa na passagem do teocentrismo para o antropocentrismo.
Ambos os autores consideram o processo pelo qual a série de sentidos vinculada a
“cultura” se afasta daqueles associados a “natureza” como fundamental na consolidação
dos Estados nacionais e no fortalecimento destes enquanto instituição na Idade
Moderna, resultante, sobretudo, do deslocamento da religião como centro regulador das
ações do homem e da instauração da racionalidade como padrão. Nesse sentido, esses
autores concluem que esse afastamento dos sentidos vinculados a natureza e a virada
em direção a civilização é, ao mesmo tempo, causa e consequência do
antropocentrismo.
Segundo Bauman, “a ideia de cultura foi uma invenção histórica instigada pelo
impulso de assimilar, do ponto de vista intelectual, uma experiência inegavelmente
histórica” (BAUMAN, 2012, p. 19); porém, ao refletir sobre o processo de
determinação da ordem do Estado em relação ao sujeito, sem romper com a
possibilidade da liberdade de ação deste último, Bauman considera que tal experiência
não poderia ser concebida de “outra maneira senão em termos supra-históricos da
condição humana como tal” (ibid.), o que considero que foi realizado mediante uma
43 Por exemplo, a forma cultura ou civilização inca funcionaria como descritiva e o par civilização-
cultura versus barbárie – este último como justificativa do colonialismo empreendido pelos países
europeus em zonas geográficas distantes, processo que instaurou o capitalismo – funcionaria como
normativo.
56
“desistoricização”, ao silenciar sentidos e conflitos relativos à interpretação histórica da
constituição do Estado – em um processo ideológico, acrescento, de naturalização e de
construção de evidências.
Nesse contexto, a concepção de cultura – enquanto disposição espiritual,
desistoricizada – regula interesses contraditórios na relação entre a instituição e o
sujeito. Sendo o Estado o “âmbito transcendente no qual [as divisões impelidas por
interesses opostos] podem ser harmoniosamente reconciliadas” (EAGLETON, 2011, p.
16), a cultura funciona como um processo pelo qual esse Estado, aplacando na
sociedade civil “os rancores [desta] e refinando suas sensibilidades”, seria uma “espécie
de pedagogia ética que nos torna aptos para a cidadania política ao liberar o eu ideal ou
coletivo escondido dentre de cada um de nós, um eu que encontra sua representação
suprema no âmbito universal do Estado” (ibid., p. 17).
Descritos os dois movimentos iniciais de cultura na memória discursiva, a partir
das considerações de Eagleton (2011) e Bauman (2012), a seguir e antes de abordar a
série dos outros dois deslizamentos de sentido que afetaram o termo cultura que
discutirei nesta tese, realizo uma discussão fortemente centrada na AD materialista ao
analisar especificamente os gestos produzidos pelo Estado que promoveram uma forte
cristalização de um pré-construído de cultura pela história. Essa reflexão, justifico, é
fundamental pelo fato de que esse processo pelo qual cultura passou a significar
civilização foi essencial na formação dos Estados nacionais na Europa, além de que
contribuiu a instaurar, sob o efeito de um pré-construído, uma forte vinculação de
cultura (como projeção imaginária e como simbólico) com Estado nacional (e como
disse anteriormente, também com a língua deste último), cuja força ressoa até hoje,
apesar de diversos movimentos de descristalização desse pré-construído, sobre os quais
me debruçarei no terceiro item deste capítulo.
2.2. O trabalho dos Estados nacionais sobre cultura
Começo a reflexão o objeto deste item partindo das considerações que
Rodríguez-Alcalá (2004), de uma perspectiva discursiva, realiza sobre o papel da
cultura na constituição do Estado nacional, discutindo-o enquanto elemento atuante nos
processos de identificação do sujeito com esse Estado. Os processos de identificação
57
nacional estariam, conforme a autora (2004, p. 1), vinculados a processos de
identificação cultural, que constituíram uma memória na relação do sujeito com o
Estado, memória que configura “o atual funcionamento político do apelo à cultura
enquanto elemento que está na base de um modo particular de legitimação do poder
do(s) Estado(s) sobre seus cidadãos”.
Como processo de identificação, cultura – ainda de acordo com Rodríguez-
Alcalá (ibid., p. 3) – se articula, na consolidação dos Estados nacionais e no papel do
homem como agente na sociedade, à ideia de nação em seu papel homogeneizador de
hábitos, costumes e tradições sociais, e todos estes – segundo a própria estudiosa –
operam como “índices de pertencimento a uma nacionalidade, não mais a uma religião”.
A autora observa que a mudança deste paradigma refletiu também na língua, pois esta,
no feudalismo, era utilizada como arma em favor da religião e, a partir do deslocamento
sofrido, passa a ser concebida como extensão da “cultura de uma nacionalidade”, do
“modo de ser de um povo”. Desta forma, observa,
(...) é através da cultura nacional, enquanto fenômeno de caráter
particular e diferenciado, que os sujeitos são interpelados para
identificarem-se com um Estado, através de suas leis, e não com
outro. As leis devem mostrar-se adequadas à cultura da nação
com a qual os sujeitos se identificam, sendo essa adequação
aquilo que justifica a subordinação a elas. É nessa confluência
da identificação dos sujeitos e das políticas instituídas em torno
da nação, através da cultura, que o Estado constrói sua
legitimidade (ibid.).
Nesse jogo de relações, a língua também funciona como partícipe da unificação
do Estado sob um imaginário de nação, conforme Rodríguez-Alcalá (2004), pois, para
tanto, trabalha-se sua unidade. Um indício que coloca em evidência o funcionamento
eficaz do imaginário de uma língua única é o fato de que essa língua, quando exposta à
relação com outras línguas, passa a ser defendida contra aquilo que representa uma
ameaça à nacionalidade e à cultura de uma dada nação, pois esse fato (a partir,
inclusive, de jogos de força, da hegemonia de certos paradigmas científicos e a tradução
de termos, por exemplo) geraria cisões à homogeneidade aparente de uma
58
nacionalidade: a língua, de fato, funciona aí como materialidade e representação desta
nacionalidade44
. Nesse sentido, Rodríguez-Alcalá (ibid., p. 3) observa:
A questão mobilizada pelas políticas de língua passou, ao longo
dos séculos, da defesa da religião, da fé verdadeira, à defesa da
nação, de sua cultura autêntica; da consequente necessidade da
cristianização dos termos da língua para a de sua
nacionalização; do risco da heresia para o dos estrangeirismos,
desvios que em todos os casos são objeto de controle e, algumas
vezes, de punição por parte das políticas instituídas (itálicos da
autora).
Na esteira do que apresenta a autora sobre cultura como civilização e o seu
funcionamento discursivo como representação de uma nacionalidade, retomo a
consideração de Orlandi (2008) sobre o processo de constituição do sujeito do discurso,
do qual fiz referência no capítulo 1. Como já afirmei anteriormente, no processo de
constituição do sujeito do discurso, a interpelação do sujeito pela ideologia, que se dá
na linearidade do intradiscurso (ou na sua horizontalidade), mas que vai produzindo
memória, no irremediável jogo interdiscursivo, é constitutiva das formas de
individualização do sujeito por parte do Estado, este já atravessado pelo funcionamento
da ideologia. Nesta mesma linha, Eagleton (2011) considera que “devemos nossa noção
moderna de cultura em grande parte ao nacionalismo e ao colonialismo, juntamente com
o desenvolvimento de uma Antropologia a serviço do poder imperialista” (ibid., p. 42),
o que foi determinante para a força desse sentido específico de cultura.
Nesta linha de argumentação cabe retomar a reflexão de Eagleton (ibid.) sobre o
processo de constituição dos Estados modernos, quando discute o papel que significou o
alçamento da cultura sobre política, e descreve o processo – decisivo para a regulação
dos sujeitos no funcionamento dos Estados enquanto instituição – que se estabelece
quando primeiro se considera o homem e depois o cidadão, o que segundo o estudioso
foi determinante para apagar o político. Neste sentido, é preciso registrar que tal
44
Para ilustrar essa afirmação, a própria Rodriguez-Alcalá (ibid.) lembra que recentemente houve, no
Brasil, uma polêmica que envolveu projetos de lei que buscavam proteger a língua da presença de
estrangeirismos. De minha perspectiva e nesse mesmo sentido, considero relevante observar, também,
que o imaginário de uma nação, sob a égide de uma língua e de uma cultura, foi fundamental na
imposição de uma interpretação dos europeus sobre o mundo aos colonizados, relação que discutirei no
capítulo 3. Inclusive, considero que a língua, nos processos de colonização, funcionou como arma de
ataque e também de defesa contra a “barbárie” dos colonos.
59
processo, segundo o autor (ibid., p. 17), alçou a importância da cultura em relação à
política, colocando em questão um tipo particular de política, apaziguando-a, pois “[a]
cultura, ou o Estado, são uma espécie de utopia prematura, abolindo a luta em um nível
imaginário a fim de não precisar resolvê-la em um nível político”. Esse deslocamento é
fundamental, do meu ponto de vista, para as formas de individualização do sujeito por
parte do Estado e para o processo de homogeneização de hábitos e de neutralização de
conflitos na caracterização de uma cultura própria do Estado vinculada à nacionalidade.
Na sinonímia estabelecida entre cultura e civilização, determinante para os processos de
colonização aos quais se lançaram os Estados europeus, e na configuração destes como
instituições, Eagleton (2011, p. 17-18) observa que
(...) [n]ada poderia ser menos politicamente inocente do que um
denegrecimento da política em nome do humano. Aqueles que
proclamam a necessidade de um período de incubação ética para
preparar homens e mulheres para a cidadania política são
também aqueles que negam a povos colonizados o direito de
autogovernar-se até que estejam “civilizados” o suficiente para
exercê-lo responsavelmente.
Nesse processo histórico no qual fica claro o papel central do silenciamento do político
na constituição do Estado moderno, a cultura constrói um denominador comum, de
interpelação subjetiva, com o qual o sujeito, conforme Eagleton (ibid.), se identifica. De
acordo com o que já foi exposto, no que do ponto de vista discursivo chamaria de
“processo de interpelação”, cultura destila “nossa humanidade comum a partir de nossos
eus políticos sectários, resgatando dos sentidos o espírito, arrebatando do temporal o
imutável e arrancando da diversidade a unidade” (ibid., p. 18).
Eagleton (2011) considera que a denominação “Estado-nação” é o “correlato
político da unidade do individual e do universal” (ibid., p. 88). Conforme ele, o hífen
entre ambas as palavras (que coloco em itálico) significaria uma ligação entre política e
cultura, pois “nação”, uma ideia abstrata, necessitaria de ser moldada institucionalmente
para a construção de uma unidade que permitisse sustentação política ao Estado. Desta
forma:
O Estado-nação não celebra inteiramente sem reservas a ideia de
cultura. Ao contrário, qualquer cultura particular nacional ou
étnica realizará seu potencial somente por meio do princípio
unificador do Estado, e não pela própria força. As culturas são
60
intrinsecamente incompletas45
, e precisam da complementação
do Estado para se tornar verdadeiramente elas mesmas (ibid., p.
90).
Como outro lado deste processo, contraditório porém fundamental para o
funcionamento ideológico do Estado, aponto que tal concepção de cultura permite ao
sujeito certa liberdade de ação, condizente com o estabelecimento do novo homem do
Iluminismo, “racional e espontâneo”; entretanto, na concepção desta liberdade, há a
regulação da ordem pelo Estado, e nela a cultura funciona como mudança e controle da
natureza, ao impor limites e regulações não somente à natureza física, mas também aos
corpos dos seres vivos (incluindo aí o homem). Eagleton (ibid.) observa, nesse sentido,
a tensão que se estabelece, a partir do papel desempenhado pela cultura como um
espaço da liberdade e também da restrição entre “fazer e ser feito, racionalidade e
espontaneidade” (ibid., p. 14), na contradição instalada pela censura do intelecto livre
que o Iluminismo trouxe em sua concepção de homem e sociedade.
Tal contradição é inerente aos diferentes sentidos de cultura que se
sobrepuseram posteriormente, conforme discute Bauman (2012). A mesma se ampara
numa ambiguidade: na “criatividade” e na “regulação normativa” que produz sentido e
que é fundamental na constituição da sociedade moderna. O autor considera que a ideia
compósita de cultura
significa tanto inventar como preservar; descontinuidade e
prosseguimento, novidade e tradição; rotina e quebra de
padrões; seguir as normas e transcende-las; o ímpar e o regular;
a mudança e a monotonia da reprodução; o inesperado e o
previsível (ibid., p. 18).
Tal funcionamento, de minha perspectiva, faz parte das condições da interpelação do
sujeito por parte do Estado, produzindo para aquele a ilusão de liberdade em relação ao
seu modo de vida, regulando seus sentidos. Bauman (ibid.), ainda, observa que:
O conceito de cultura (...) [i]ncorpora a visão da moderna
condição humana já reciclada em paradoxo lógico. Seu objetivo
é superar a oposição entre autonomia e vulnerabilidade,
concebidas como proposições – enquanto encobre a contradição
45 Aqui discordo de Eagleton, por considerar tal afirmação um efeito de imaginário.
61
da “vida real” entre o autônomo e o vulnerável: entre a tarefa da
autoconstituição e o fato de ser constituído (ibid., p. 18).
O próprio autor, ao tratar da importância da sinonímia estabelecida entre cultura
e civilização na constituição dos Estados modernos, recorda que o processo civilizatório
foi levado a cabo pelas elites, mediante a autosseparação destas em relação aos outros
sujeitos. Assim, acrescenta, “[f]undido à força, apesar de toda variedade interna”
produziu-se uma classe homogênea elitizada, por efeito de um processo de
dessincronização cultural aguda (ibid., p. 49). E ainda conforme ele, o lado ativo,
composto pelas elites, produziu modos de “autoformação”, de “autotreinamento” e de
“autoperfeiçoamento”, em um esforço de constituir-se como lugar de produção de
saberes e de domínio em relação aos que estavam fora desse processo (ibid.). Outro lado
atuante, não composto pela elite mas a favor dela, foi responsável por elaborar
mecanismos de biologização, de medicalização e de criminalização, dispostos a policiar
e manejar as massas, em um esforço de civilizá-las; e, nesse sentido, observa (ibid.):
no limiar da modernidade, encontra-se o processo de
autoformação da elite letrada ou esclarecida (que agora se
distingue por seus ‘modos civilizados’, com suas duas faces de
refinamento espiritual e adestramento corporal) que foi, ao
mesmo tempo, um processo de formação orientada das ‘massas’
como campo potencial da função, ação e responsabilidade de
supervisão das elites. A responsabilidade era conduzir as massas
à humanidade; a ação podia tomar forma de persuasão ou
coação. Eram essa responsabilidade e o impulso vinculado de
agir que definiam “as massas” – em suas duas encarnações
coexistentes e mutuamente complementares, ainda que em
aparência opostas: “a turba” (que assumia a dianteira sempre
que a força estava na ordem do dia) e “o povo” (invocado
quando se esperava que a educação tornasse redundante a
coação) (BAUMAN, 2012, p. 49).
Bauman (2012) conclui que tal processo foi fundamental na constituição do
Estado moderno pelo fato de que, apesar da cisão necessária para regular a sociedade e
manter o controle, era necessário que houvesse a ilusão da integração entre os diversos
membros da sociedade. O próprio autor (ibid.) discute que o processo de regulação da
criatividade, realizado pelo imaginário de uma “cultura comum” – esta associada ao
nacionalismo – foi mais um processo de dominação que deveria camuflar-se em práticas
62
que iam além da sublimação da divisão de riquezas e divisas produzidas pelo Estado e
não divididas igualmente entre todos. As relações de poder, observa o autor,
constituídas na formação do Estado moderno, se propõem a “moldar os espíritos e
corpos dos sujeitos, penetrar profundamente em sua conduta diária e na construção de
seus mundos de vida” (ibid., p. 50).
A partir dessa afirmação de Bauman (2012) sobre o processo de determinação da
ordem do Estado em relação ao sujeito, em que este seria livre para realizar suas
vontades, porém tutelado pelo Estado e subordinado às ações deste, é necessário pontuar
algumas considerações sobre o papel que essa instituição realizou no controle das
diferenças, na construção de uma “universalização” sob a guarda de uma nacionalidade.
Se no processo de formação dos Estados nacionais na Europa a noção de cultura
serviu como um aglutinador de identidades, visando conformar uma identidade nacional
mediante um processo de homogeneização de hábitos e de tradições, é importante
considerar o trabalho realizado por esta instituição para alcançar este objetivo. Um deles
é o da organização da língua, que foi fundamental para a conformação das
subjetividades dos sujeitos (HAROCHE, 1992); o outro, a criação de um aparato
jurídico institucional que administrasse as contradições sob o guarda-chuva da
igualdade. Para tal, me apoio fundamentalmente nos trabalhos de Haroche (1992), Payer
(1993), Gadet e Pêcheux (2004), Guimarães (2002) e Pêcheux (2009) sobre o papel do
Estado na elaboração de processos de individualização do sujeito, fundamental para a
construção de um imaginário de “universalidade” que também permitisse o controle e a
divisão social.
Haroche (1992, p. 21), ao considerar os “elementos ligados aos processos de
individualização do sujeito” na história da gramática, considera o papel que o Estado
desempenhou na conformação das subjetividades. Segundo a autora (ibid.), “o poder, o
Estado, o direito, coagem o sujeito, insinuam-se nele de forma discreta”. Através de
diversos autores que trataram desta questão, e principalmente a partir de um processo
que Foucault (1984)46
denominou de “governo pela individualização”, Haroche afirma
que o Estado se firmou como instituição por um trabalho de classificação dos
“indivíduos em categorias”, identificando-os, amarrando-os e aprisionando-os em sua
46 FOUCAULT, M. “Deux essais sur le sujet et le pouvoir: Pourquoi étudier le pouvoir: la question du
sujet”, p. 302. In.: DREYFUS, H., RABINOW, P. Michel Foucault, un parcours philosophique (au-
delà de l’objectivité et de la subjectivité), Paris, Gallimard, 1984.
63
identidade (ibid.). Segundo a autora, “a língua, a sua gramática e a psicologia são o
lugar [de] mecanismos individualizantes que induzem a uma psicologia específica”, em
um trabalho realizado pelo Estado na elaboração de “uma psicologia do indivíduo
médio” (ibid.) que pautaria suas políticas de conformação das subjetividades, em um
processo de homogeneização cultural e política cuja gestão passava pela ciência. Para
Haroche, “a universidade, com efeito, se dedica, de certa forma, ‘a desassujeitar’ o
sujeito da religião, para assujeitá-la então ao Estado” (ibid., p. 216).
Para o Estado, enquanto instituição, foi de fundamental importância realizar um
trabalho de apagamento das diferenças e contradições na construção de uma identidade
vinculada à nação. Com a transição do teocentrismo para o antropocentrismo, era
necessário ocupar o lugar deixado pela religião no controle e na regulação dos sujeitos,
ao mesmo tempo em que estes tivessem a ilusão de usufruírem de liberdade e de
independência na realização de suas ações, status advindo dessa transição – o homem
como centro do universo. Segundo Haroche (1992) a partir do século XVI é pelo direito
e pela língua que esse trabalho é realizado; no século XIX, com essas instituições e os
seus instrumentos já consolidados, seria pela universidade (que privilegia o exercício da
razão, e não com o da fé), e por áreas de saber como a filosofia e a psicologia, que tal
trabalho de apagamento e de controle das ambiguidades e diferenças seria realizado.
É importante considerar que analisar os mecanismos linguísticos de
determinação possibilitou a Haroche olhar sobre a questão específica da materialidade
linguística, mas que diz respeito diretamente a efeitos de sentido que estão diretamente
conectados aos processos discursivos relacionados à gestão da subjetividade por parte
do Estado. Para a autora – a partir da perspectiva que Pêcheux (2009 [1975]) adota em
sua obra – os mecanismos linguísticos da ambiguidade, dos quais a determinação na
gramática se propõe a dar conta, conforme esse autor, “formam igualmente o fundo de
uma reflexão filosófica” e “pertencem à zona de articulação da linguística com a
história dos processos ideológicos e científicos” (PÊCHEUX, 2009 [1975], p. 81 apud
HAROCHE, 1992, p. 45). Apesar de que qualquer mecanismo linguístico esteja sujeito
à articulação da materialidade linguística com os processos discursivos que a permeiam,
a determinação incide sobre postulados como o da completude, da evidência e da
transparência da linguagem, elementos formais das línguas que incorrem diretamente no
controle das subjetividades: conforme Payer (1993, p. 46), a partir de Henry (1990), a
noção de determinação, que se apresenta na gramática e na linguística, opera
64
com elementos de duas ordens distintas: a ordem das “coisas ou
do pensamento” e a ordem “da linguagem, do discurso”, que ali
são supostas como duas ordens separadas, independentes, sendo
que a ordem das coisas ou do pensamento teria uma garantia
anterior à linguagem, e esta se colocaria depois, como a
primeira.
Essa noção, segundo Payer (ibid., p. 44), caracteriza-se como um mecanismo
privilegiado
para se perceber a realização textual da impressão de que se
atinge de fato um objeto em sua unicidade, em sua invariância, e
de que aprisiona na língua esse objeto que parece só poder ser
este, assim, desta forma. A determinação supõe, deste modo, a
possibilidade de uma “ancoragem da significação” em um
referente exato, definido, individual.
No que se refere à língua, afirma Haroche (1992, p. 22) é pela gramática que o
Estado realiza o trabalho de “transparência, a exigência de clareza, o ideal de
completude”, mecanismos que tornam o sujeito “o lugar de coerções na gramática e na
língua”. Segundo a própria autora, “os mecanismos de individualização se inscrevem
assim no postulado geral que subentende toda gramática: a exigência de clareza, de
desambiguização, de determinação, de perfeita legibilidade” (ibid.). Conforme ela:
Muitos dos funcionamentos na gramática parecem assim
responder aos imperativos de um poder que, procurando fazer
do homem uma entidade homogênea e transparente, faz do
explícito, da exigência de dizer tudo e da “completude” as regras
que contribuem para uma forma de assujeitamento paradoxal. A
exigência de desambiguização/determinação aparece, na língua
francesa em particular, como uma das manifestações do
empreendimento geral de normalização que se desenha no fim
da época clássica: no século XVII, ela está no cerne desses
mecanismos individualizantes; a história de sua formação, o
estudo de seu funcionamento nos esclarecem sobre eles (ibid., p.
23).
Pelo conceito de determinação Haroche analisou, particularmente na língua
francesa, como um trabalho de “empreendimento geral de normalização” (ibid.) se
converte em um lugar de exigência de ordem, em um imperativo de submissão do
65
sujeito ao poder, ao estudar o funcionamento de tal mecanismo na religião, no jurídico e
na língua. Estas duas últimas inflexões, especialmente, se realizam sob o trabalho do
Estado, tratando de “resolver as contradições” (ibid., p. 215) e assim realizar um
processo que evitasse a ambiguidade. A análise sobre esse funcionamento linguístico,
conforme a autora (ibid., p. 150), deve-se ao fato de que
A função determinativa, que se realiza através dos
procedimentos de determinação, consiste no acréscimo, ao
termo comum, de um ou vários chamados “determinantes”
(artigos, adjetivos, demonstrativos, possessivos, interrogativos,
numerais, certos adjetivos indefinidos...). Ela pode se realizar
também a partir do complemento de nome, da proposição
relativa e também do epíteto. Os determinantes, chamados
também determinativos, não acrescentam, em teoria, nenhuma
significação nova ao termo determinado: eles intervêm somente
para limitar sua extensão. Como podemos ver, a preocupação
geral não é abrir a significação, mas restringi-la, em suma,
delimitá-la (ibid., p. 150).
Pela análise que realizou deste mecanismo em gramáticas, Haroche considera
que a determinação visa desambiguizar a língua e apagar as contradições ao restringir e
delimitar a significação. Durante séculos houve um trabalho de abordagem sobre a
materialidade linguística, por parte de teóricos e gramáticos, em que os problemas
referentes a esse tema tiveram, como questão de fundo, elementos que não remetiam a
problemas históricos, lexicais, sintáticos ou semânticos (ibid.), mas a questões
relacionadas à referência e ao sujeito, “de uma possibilidade de referência para o
sujeito” (ibid., p. 150). Dessa forma, os gramáticos fazem do tema da determinação “a
marca da expressão da vontade e da liberdade do sujeito” (ibid., p. 151). Para a
construção de uma homogeneidade nacional, na administração das diferenças e pela
restrição do que pode ser dito, o Estado realiza esse trabalho sobre a determinação na
língua; assim, para a autora,
[...] se a determinação constitui um efeito de sentido (melhor
valeria dizer um efeito de sentido ligado ao sujeito), aí intervêm,
com toda evidência, não só a sintaxe e fatores semânticos, mas
também elementos ‘individualizantes’ ligados aos mecanismos
do aparelho jurídico (ibid., p. 152).
66
Para Haroche (1992) o acirramento desse processo se daria, por parte do Estado,
na elaboração de um aparelho jurídico, de um aparato de leis e de regras para a
construção de um espaço de regularidades visando à universalização de direitos e
deveres. Esse processo foi gradual, à medida que a estrutura econômica passou por
mudanças. A economia rural baseada na estrutura do feudalismo, na Idade Média,
quando ainda não havia a noção de lucro, dado que a produção se realizava unicamente
para subsistência, gradualmente vai passando por mudanças que a transformam em
urbana. O surgimento de trocas comerciais e a consolidação de centros urbanos, em que
a acumulação financeira e o lucro promovem novas formas de economia são elementos
decorrentes destas transformações e que provocam mudanças na configuração social e
política na relação entre senhores e servos, impulsionando o crescimento demográfico e
as relações comerciais entre diferentes territorialidades. Conforme Haroche (ibid.), “a
sedentarização do comércio está ligada aos progressos da instrução, da escrita, das
trocas escritas. Ela se inscreve necessariamente no progresso do aparelho jurídico”
(ibid., p. 68), o que gera incidências sobre as relações entre os sujeitos, na sua relação
com o Outro e com a instituição reguladora, seja a religião inicialmente, seja
posteriormente o Estado47
. Todo esse processo altera a relação que o sujeito, naquele
momento, possuía com a religião, pois com o progresso do Direito e a laicização do
Estado, segundo Haroche, o “mecanismo de dominação do sujeito pelo religioso fica
[...] abalado em profundidade” (ibid., p. 69).
Se foi com o estabelecimento do Estado enquanto instituição que o Direito se
fortaleceu como organismo, há de se considerar que antes do estabelecimento de tal
instituição não havia a possibilidade de se considerar o sujeito-de-direito em um sistema
hierárquico que estava baseado fortemente na desigualdade social, como o feudal.
Durante a transição do feudalismo para a economia de mercado as relações entre
sujeitos foram mudando gradualmente e deram condições para o posterior
estabelecimento do sujeito-de-direito: do senhor que cedia terras ao vassalo, numa
relação de direitos e deveres de ambos os lados, com o primeiro obtendo mais vantagens
através da exploração direta do segundo, a relação que antes era pessoal gradativamente
passa a ser econômica, pois “a ‘sujeição’ dos camponeses ao senhor vai, com efeito,
tomar a forma de foros mais do que da exploração direta dos serviços camponeses”
47 Aqui entra o que Payer (1993) conceitualiza como sobredeterminação, algo que pontuei no primeiro
capítulo e sobre o qual voltarei ainda neste.
67
(HAROCHE, ibid., p. 69). Os vassalos passam a assumir compromissos financeiros
com os senhores, visando à aquisição de terras e, consequentemente, a sua liberdade;
com tal operação os senhores obtêm lucros com o empréstimo de dinheiro aos vassalos,
o que permite “a transformação econômica capital, ideológica e necessariamente
jurídica do século XIII: o sujeito, de doméstico que era, se torna paradoxalmente um
homem ‘livre’ graças à possibilidade que lhe dá o senhor de se tornar ‘sujeito-à-
exação’” (ibid.).
Somente com o surgimento da economia de mercado e da construção de uma
universalização, mesmo que imaginária, por parte do Estado, que foi possível
estabelecer o sujeito-de-direito e a mediação da igualdade entre os sujeitos pela escrita
da lei. Era necessário administrar as diferenças, criar consenso, mesmo que tal
administração mantivesse as divisões sociais. Segundo Haroche (1992):
A ideologia de “sujeitos-de-direito” idênticos e autônomos é
impossível no sistema [da feudalidade] porque esta
representação é ao mesmo tempo inútil e perigosa no mundo que
vive (...) da feudalidade (...). Se, diferentemente do escravo, o
servo é um sujeito de direito, não é entretanto um sujeito-de-
direito comparável, a fortiori, equivalente, àquele que encarna o
senhor (...). Em definitivo, não há estatuto jurídico comum que
sirva de equivalente, de medida. Não há “sujeito-de-direito”
abstrato (MIAILLE48
(1976) apud HAROCHE, 1992, p. 68).
Essa transição proporcionada pelo econômico desloca os mecanismos de
dominação que estavam associados ao religioso antes da consolidação dos Estados
nacionais. Conforme Haroche (ibid., p. 70), “um direito que repousa na sujeição pessoal
ao senhor juridicamente todo-poderoso se substitui um direito menos local, menos
costumeiro”, o que configura uma nova concepção de sujeito. E acrescenta:
O próprio mecanismo de dominação do sujeito pelo religioso
fica assim abalado em profundidade com o progresso do Direito
e sua laicização. Atribui-se maior importância ao sujeito em si
mesmo, a suas intenções, a suas motivações, à sua vontade: uma
concepção absolutamente nova de sujeito aparece, aliando
obrigação econômica à liberdade jurídica, o sujeito torna-se,
assim, “livre para se obrigar” (ibid., p. 69).
48 MIAILLE, M. Une introduction critique du droit. Paris: Maspero, 1976.
68
É importante considerar, nessa transição econômica do feudalismo para uma
economia baseada em trocas comerciais, o alçamento de uma nova classe social, a
burguesa, e a importância que esse grupo desempenhou no processo de conformação de
uma identidade nacional, mais até que o grupo dos aristocratas que exerciam grande
poder no sistema político das monarquias absolutistas. Em relação a esse processo
Eagleton (2011) e Bauman (2012) são unânimes em assinalar a importância do papel
que a noção de cultura desempenhou, construída a partir de hábitos, valores e tradições
tomadas como índices de pertencimento comuns a todos os sujeitos. Sobre a burguesia
Gadet e Pêcheux (2004) consideram que essa classe, no processo de universalização de
direitos e deveres pelo Estado, trabalhou para “reapropriar-se dos grandes formalismos
religiosos, jurídicos e linguísticos pré-capitalistas (universais escolásticos, direito
romano, gramática latina)” (GADET & PÊCHEUX, 2004, p. 36). Ou seja, na
constituição de uma homogeneidade se elaborou, por parte do Estado, a partir de lugares
institucionais como o Direito e a Educação, um conceito de sujeito universal que
passou, necessariamente, pela criação de índices de interpretação elaborados a partir
desses formalismos. A preponderância de uma ideologia burguesa na conformação dos
Estados nacionais europeus, segundo os autores, se realizou por um processo de
reorganização das relações dessas “três ‘ordens’ sem jamais questioná-las” (ibid., p. 36).
Em relação à língua, a consideração que Gadet e Pêcheux (2004) realizam sobre
o seu estatuto, desde o feudalismo até a consolidação dos Estados nacionais, aponta um
olhar sobre como a administração ideológica de sua materialidade foi fundamental para
a construção desse imaginário de universalidade. Na época do feudalismo, segundo
esses autores, a ideologia dominante supunha a “existência material de uma barreira
linguística separando aqueles que, por sua condição social, eram os únicos capazes de
ouvirem claramente o que devia ser dito, e a massa de todos os outros” (ibid., p. 37).
Não havia uma política da língua durante o feudalismo e na consolidação das
monarquias absolutistas: “‘o corpo linguístico’ da época feudal, o mosaico dos falares e
dos dialetos, permanecia tão intocável quanto o corpo do rei, por razões paradoxalmente
idênticas” (ibid.). A “tagarelice retórica da religião e do poder”, ainda conforme Gadet e
Pêcheux, determinava socialmente aqueles que teriam acesso à interpretação, uma
administração do dizer que visava manter a divisão imposta e a impedir mudanças e
69
mobilizações entre os sujeitos – a administração dos sentidos mantinha a estrutura das
relações sociais naquele momento.
Com a constituição dos Estados nacionais e a administração dos sentidos levada
a cabo por suas instituições, movimentos esses que determinaram a construção de um
ambiente imaginário de igualdade e de universalidade, a burguesia, como grupo social
de forte influência política e econômica, impõe uma nova agenda, que “transforma a
rigidez das ordens em terreno de confronto das diferenças” (GADET & PÊCHEUX,
ibid., p. 37). A elaboração desse novo projeto político para a língua nacional, no âmbito
do Estado, coloca uma nova questão linguística, segundo Gadet e Pêcheux, como um
projeto político que realiza, na “constituição da língua nacional através da alfabetização,
aprendizagem e utilização legal dessa língua nacional” (ibid.), um movimento similar e
concomitante ao da elaboração de um aparelho jurídico. Sobre isso os autores assinalam
o trabalho que a burguesia realiza na administração das diferenças na língua e no
jurídico:
O feudalismo mantinha a ordem dominante “traduzindo-a” em
formas específicas de representações e imagens próprias às
diversas classes dominadas. A particularidade das revoluções
burguesas é de tender a absorver essas diferenças para
universalizar as relações jurídicas, no momento em que se
universaliza a circulação do dinheiro, das mercadorias... e dos
trabalhadores “livres” (ibid., p. 37).
A ascensão da burguesia como classe social dominante passou pela
administração dos índices e códigos que a classe dominante até aquele momento (a
aristocracia) possuía. A burguesia, entretanto, realizou um forte trabalho de
administração desses índices: conforme a consideração de Eagleton (2011) sobre tais
índices, os quais ele chama de formas de autoformação, de autotreinamento e de
autoperfeiçoamento, já mencionados anteriormente. Tais códigos, desde o meu ponto de
vista, se constituíram em lugar de produção e de regulação de saberes e de práticas
sociais, através da institucionalização de lugares (como a escola e a universidade) e de
instrumentos (como a gramática e a legislação) destinados à produção e intepretação de
tais índices, indispensáveis para o seu domínio, além de agentes reguladores. Entretanto,
o acesso a esses lugares e instrumentos, apesar de universal, era determinado por
condições materiais, o que também determinava quem tinha acesso a eles e o domínio
70
em relação aos que estavam fora desse processo, o que garantiu a continuidade de
privilégios e de práticas dominantes, agora disfarçadas sob um trabalho de
universalização de condições e de acesso aos bens materiais. Conforme Gadet e
Pêcheux, “para se tornarem cidadãos, os sujeitos devem portanto se liberar dos
particularismos históricos que os entravam: seus costumes locais, suas concepções
ancestrais, seus ‘preconceitos’... e sua língua materna”. (ibid., p. 37).
Em relação à administração e organização realizada sobre a língua, vale
considerar a contradição constitutiva desse processo (e que pode ser considerada como
um paradoxo de todo processo de universalização realizado pelo Estado, este também
como produção de um efeito imaginário, constituído sob o efeito de universalidade que
toda formação discursiva produz). Se no feudalismo a divisão entre as classes sociais
era estabelecida e mesmo estimulada, na transição que culmina no estabelecimento de
uma economia de mercado tal divisão é silenciada, em busca de uma universalização de
sentidos, de extremo interesse ao sistema. A construção de uma língua nacional única,
de Estado, foi a matéria principal de tal imaginário. O impossível de tal processo era
silenciar a diferença de sentidos e de dizeres, constitutiva na estrutura da língua, em sua
ordem49
, sendo tal diferença silenciada na sua organização, o que gera uma disjunção
fundante entre as duas esferas. Em relação a essa questão, a administração da
organização da língua (em boa parte realizada mediante os processos de gramatização
que implica [AUROUX, 1992]) traz questões que afetam diretamente as subjetividades.
A burguesia, nesse sentido, conforme Gadet e Pêcheux (2004, p. 37), realiza um
trabalho de organização imaginária, altamente eficaz, da igualdade pela língua (e
também pelo jurídico) sem abrir mão de sua posição privilegiada: uma língua única,
falada igualmente por todos, como “uma das condições efetivas da liberdade dos
cidadãos”; concomitantemente a essa organização da língua, a burguesia realiza um
trabalho de “organizar uma desigualdade real, estruturalmente reproduzida por uma
divisão política no ensino da gramática” (ibid.) – assim, consequentemente, o Estado se
constitui como produção de um efeito imaginário, como havia pontuado anteriormente.
Dessa forma, segundo esses autores, a questão da língua é
49 Conforme a consideração de Orlandi (1996) sobre a ordem e a organização da língua, que trabalhei no
capítulo 1 desta tese.
71
uma questão de Estado, com uma política de invasão, de
absorção e de anulação das diferenças, que supõe antes de tudo
que estas últimas sejam reconhecidas: a alteridade constitui na
sociedade burguesa um estado da natureza quase biológica, a ser
transformado politicamente (ibid.).
Nesse duplo trabalho de administração da diferença, que aqui discuto a partir do
que consideram Bauman (2012) e Eagleton (2011) sobre a cultura e a formação dos
Estados nacionais e do que consideram Haroche (1992) e Gadet e Pêcheux (2004) sobre
a gestão realizada pela burguesia e pelo Estado na administração da língua e do jurídico,
creio que cultura atua como uma materialidade que sustenta a universalidade imaginária
construída pela burguesia e pelo Estado nacional. A noção de cultura, nesse momento, é
valorizada a partir de índices tais como os valores tradicionais e as identidades comuns,
reunidos sob o caráter de uma identidade nacional – o pertencimento ao Estado passa
pela vinculação a esses índices50
.
Em relação a esse processo de universalização realizado pelo Estado, é
importante ter em conta o que Pêcheux (2009) discute em outra obra, retomando
Fuchs51
, o que denominou mito continuísta empírico-subjetivista, efeito que “pretende
que, a partir do sujeito concreto individual ‘em situação’ (ligado a seus preceitos e a
suas noções), se efetue um apagamento progressivo da situação por uma via que leva
diretamente ao sujeito universal”, este que está “situado em toda parte e em lugar
nenhum, e que pensa por meio de conceitos” (ibid., p.117). Tal “sujeito universal”, livre
de particularismos e de efeitos de sentido, será o projetado na elaboração de políticas
específicas em relação à língua e ao arquivo jurídico. Considero esses conceitos aos
quais Pêcheux se refere como índices de interpretação tomados como culturais, ou seja,
50 Segundo Gadet e Pêcheux (2004), nesse movimento que o Estado realiza na construção da
universalidade, o poder do Estado burguês – formulação que revela a força investida pela burguesia no
agenciamento de seus interesses, confundindo-se com o próprio Estado – se vale, ao mesmo tempo, da
“forma logicista de um sistema jurídico concentrado em um foco único e (da) forma sociologista de uma
absorção negociada da diversidade” (ibid., p. 38). Conforme esses autores, tal poder investido funciona
“simultaneamente segundo a figura jurídica do Direito e segundo a figura biológica da Vida” (idem), o
que constitui uma divisão que dará uma configuração dual à linguística, característica que a define
atualmente. Pelo lado do Direito, se institui “a circulação oficial das significações garantidas por uma
autoridade central”; pelo lado da Vida, “as múltiplas práticas fragmentárias, indefinidamente reelaboradas
e aperfeiçoadas pelas quais a divisão estratégica burguesa encontra o caminho de seu exercício” (ibid., p.
38).
51 Não foi possível recuperar a referência dessa obra a partir de Pêcheux (2009).
72
valores que constituem uma certa visão de mundo, construídos a partir daquilo que deu
base ao processo de universalização levado a cabo pelo Estado.
Ao tratar de Estado não se pode deixar de tratar do político, no sentido genérico
do termo, ou de práticas políticas, em relação às ações levadas a cabo pelo Estado na
gestão da diferença. Considero esta diferenciação fundamental pelo fato de que o
político não está restrito às questões administrativas do Estado-nação, sendo essas o que
relaciono como práticas políticas. Retomo a consideração que Guimarães (2002) realiza
sobre o político, constitutivo das relações sociais, e fundamental para entender o
processo de universalização realizado pelo Estado e a homogeneização de identidades
decorrente desse processo:
O político, ou a política, é para mim caracterizado pela
contradição de uma normatividade que estabelece
(desigualmente) uma divisão do real e a afirmação de
pertencimento dos que não estão incluídos. Deste modo o
político é um conflito entre uma divisão normativa e desigual do
real e uma redivisão pela qual os desiguais afirmam seu
pertencimento. Mais importante ainda para mim é que deste
ponto de vista o político é incontornável porque o homem fala.
O homem está sempre a assumir a palavra, por mais que esta lhe
seja negada. (...) O Político está assim sempre dividido pela
desmontagem da contradição que o constitui. De tal modo que o
estabelecimento da desigualdade se apresenta como necessária à
vida social e a afirmação de pertencimento, e de igualdade, é
significada como abuso, impropriedade. Esta desmontagem é o
esforço do poder em silenciar a contradição, na busca de um
político como ação homogeneizadora que ora se esgota no
administrativo, ora naquilo que Racière chamou de polícia, e
que ele opõe à política (GUIMARÃES, 2002, p. 16).
Nessa administração em silenciar a contradição, conforme Guimarães (2002)
assinala como uma “ação homogeneizadora” realizada pelo Estado, trago a reflexão que
Pêcheux (2009) realiza sobre as condições ideológicas da reprodução/transformação
das relações de produção, ao esclarecer “os fundamentos de uma teoria materialista do
discurso”. Para este trabalho me interessa a discussão que o autor faz sobre o papel da
Ideologia na formação do Estado enquanto instituição e na relação entre o sujeito e as
instituições.
Retomo novamente a citação de Guimarães (2002), em que este autor discorre
sobre a “ação homogeneizadora” do Estado e sobre o trabalho realizado pelo Político,
73
que considero importante trazer aqui pela sua definição “desmontar a contradição que o
constitui”. Relaciono-a com a discussão que Pêcheux (2009) estabelece ao considerar
sobre as condições ideológicas, quando reflete sobre o papel que a Ideologia
desempenha nas relações de produção. Ao considerar a expressão “condições
ideológicas da reprodução/transformação das relações de produção”, Pêcheux realiza
um movimento de explicação sobre ela, primeiramente delimitando que a Ideologia não
é o “único elemento dentro do qual se efetuaria a reprodução/transformação das relações
de produção de uma formação social” (PÊCHEUX, 2009, p. 129). O autor considera
que não é possível ignorar as determinações econômicas que condicionam esse processo
“no próprio interior da produção econômica” e para tal passa a tecer reflexões sobre o
papel da Ideologia na conformação do Estado e das subjetividades.
Ao tratar da reprodução e transformação das relações de produção o autor em
questão considera que “a luta de classes atravessa o modo de produção em seu conjunto,
o que, na área da ideologia, significa que a luta de classes ‘passa por’ aquilo que L.
Althusser chamou os aparelhos ideológicos de Estado” (ibid,, p. 130). Tal consideração
justifica a sua posição de não “localizar em pontos diferentes, de um lado, o que
contribui para a reprodução das relações de produção e, de outro, o que contribui para
sua transformação” (ibid.). Ao estabelecer estas questões, Pêcheux destaca a
importância de considerar, para uma reflexão sobre uma teoria materialista do discurso,
“(a) teoria das ideologias, (a) prática de produção dos conhecimentos e (a) prática
política” (ibid., p. 129), questões importantes para a reflexão sobre o papel da cultura na
conformação do Estado enquanto instituição reguladora de sentidos e dizeres.
Para a problematização das relações do Estado com o sujeito, esse mesmo autor
(2009) as considera em um vínculo que é ideológico e determinado historicamente. Para
tal, Pêcheux coloca em relação as “condições contraditórias” em que as “condições
ideológicas da reprodução/transformação das relações de produção” são constituídas. A
partir dessa posição, o autor destaca que essas condições são constituídas em um
momento histórico específico, em uma dada formação social e “pelo conjunto complexo
dos aparelhos ideológicos de Estado” dessa formação (ibid.). Por “conjunto complexo”
Pêcheux entende que há relações de “contradição-desigualdade-subordinação” atuantes
entre os diversos elementos, o que problematiza as divergências, as diferenças e as
contradições que haveriam entre tais aparelhos e também coloca em uma relação
histórica e específica tais condições. Dessa forma, segundo Pêcheux,
74
O aspecto ideológico da luta para a transformação das relações
de produção se localiza, pois, antes de mais nada, na luta para
impor, no interior do complexo dos aparelhos ideológicos de
Estado, novas relações de desigualdade-subordinação (o que se
encontra expresso, por exemplo, na palavra de ordem “colocar a
política no posto de comando”) que acarretariam uma
transformação do conjunto do “complexo dos aparelhos
ideológicos de Estado” em sua relação com o aparelho de
Estado e uma transformação do próprio aparelho de Estado
(ibid., p. 133).
A esse estabelecimento de transformações das relações de produção associo o
movimento que Eagleton (2011) e Bauman (2012) descrevem em relação à cultura no
processo de consolidação do Estado nacional: ao estabelecer um espaço imaginário
comum a todos, em que o sujeito se sente livre e independente, há também uma
restrição imposta, um processo em que o sujeito é responsabilizado por seus atos,
sujeito à letra da Lei. Ao mesmo tempo em que os sujeitos, dentro do sistema, possuem
a ilusão de liberdade e também de mobilidade na estrutura social, a estrutura do sistema
em si pouco muda, mantendo-se as mesmas bases dominantes e de dominação pelos
aparelhos ideológicos do Estado. A essa questão Pêcheux (2009) afirma:
a objetividade material da instância ideológica é caracterizada
pela estrutura de desigualdade-subordinação do “todo complexo
com o dominante” das formações ideológicas de uma formação
social dada, estrutura que não é senão a da contradição
reprodução/transformação que constitui a luta ideológica de
classes (ibid., p. 134).
A luta de classes, conforme esse autor, não é simétrica: ela se dá mediada por
relações de força, no espaço da sociedade organizada pelo Estado, “como terreno dessa
luta” (ibid.). Nesse processo de homogeneização organizado pelo Estado, conforme
Pêcheux (ibid.) baseado em Balibar52
, “a relação de classes é dissimulada no
funcionamento do aparelho de Estado pelo próprio mecanismo que a realiza” (ibid.) –
graças ao “esforço do poder em silenciar a contradição, na busca de um político como
ação homogeneizadora”, conforme definição que reproduzi acima de Guimarães (2002,
p.16), “de modo que a sociedade, o Estado e os sujeitos de direito (livres e iguais em
52 Não foi possível recuperar a referência dessa obra a partir de Pêcheux (2009).
75
direito no modo de produção capitalista) são produzidos-reproduzidos como ‘evidências
naturais’” (Pêcheux, 2009, p. 134), processo que considero também ser propiciado pelo
Direito e pela naturalização das relações sociais mediada pela cultura.
Sobre a questão de que o sujeito é interpelado pela Ideologia, Pêcheux assinala o
equívoco de associá-la à formulação do paradoxo de que “o sujeito é chamado à
existência” (ibid., p. 141); segundo o autor, a “’Ideologia interpela os indivíduos em
sujeitos’” (ibid.), sendo que tal formulação designa “que ‘o não-sujeito’ é interpelado-
constituído em sujeito pela Ideologia” (ibid.). O paradoxo anteriormente citado seria
explicado, segundo Pêcheux, pelo fato de “que a interpelação tem, por assim dizer, um
efeito retroativo que faz com que todo indivíduo seja ‘sempre-já-sujeito’” (ibid.), o que
dá condições para a evidência do sujeito “como único, insubstituível e idêntico a si
mesmo”, desde sempre “um indivíduo interpelado em sujeito” (ibid.).
Um fator determinante para a construção da evidência do sujeito é o efeito de
pré-construído. Pêcheux considera
o efeito de pré-construído como a modalidade discursiva da
discrepância pela qual o indivíduo é interpelado em sujeito... ao
mesmo tempo em que é ‘sempre-já sujeito’ (pois tal)
discrepância (entre a estranheza familiar desse fora situado
antes, em outro lugar, independentemente, e o sujeito
identificável, responsável, que dá conta de seus atos) funciona
‘por contradição’, quer o sujeito, em toda sua ignorância, se
submeta a ela, quer, ao contrário, ele a apreenda por meio de sua
agudeza de ‘espírito’ (ibid., p. 142).
Essa questão trazida por Pêcheux é fundamental para discutir o “efeito de
evidência” do sujeito em crer ser quem é. Tal efeito diz respeito ao “processo de
interpelação-identificação que produz o sujeito no lugar deixado vazio: ‘aquele que...’
(...) sob diversas formas, impostas pelas ‘relações jurídico-ideológicas’” (ibid., p. 145).
Essa posição remete à discussão da importância sobre o papel exercido pelo Jurídico, na
conformação das relações sociais a partir de uma identidade comum balizada pela
escrita da Lei, papel que instaurou novas práticas de dominação. É importante destacar,
como já foi dito anteriormente a partir de Haroche (1992) que esse lugar ocupado pelo
Jurídico decorre de práticas construídas historicamente, quando o Direito se desprende
da religião e ocupa o lugar anteriormente ocupado por esta no controle das
subjetividades.
76
Pêcheux realiza uma série de considerações sobre o papel do funcionamento da
Ideologia na interpelação dos indivíduos em sujeitos – e em sujeitos de seu discurso,
definição que se torna essencial para uma teoria materialista do discurso: a interpelação
“se realiza através do complexo das formações ideológicas (e, especificamente, através
do interdiscurso intrincado nesse complexo)” (PÊCHEUX, 2009, p. 149) e também é
determinante na construção de um sistema de evidências que fornece “‘a cada sujeito’
sua ‘realidade’, enquanto sistema de evidências e de significações percebidas – aceitas –
experimentadas” (ibid.).
Posteriormente Pêcheux elaborou uma retificação53
sobre o papel da Ideologia
no processo de interpelação do indivíduo em sujeito, principalmente em relação às
considerações que elaborara sobre a “forma sujeito”. Publicada como o anexo III na
edição brasileira54
, o autor tece algumas reflexões a partir de críticas tecidas a
“Aparelhos Ideológicos de Estado”, de Althusser55
, quanto ao “eternitarismo apolítico”
dessa obra (ibid., p. 274), “investigando de que modo, no absurdo círculo de evidência
constituído pela interpelação, ‘o sujeito é produzido’ como historicamente capaz (...) de
se voltar contra causas que o determinam, porque elas as apreende teórica e
praticamente” (ibid., p. 275). Isso justificaria a necessidade de uma reformulação, que
não anula de todo o papel da Ideologia no processo de interpelação e de identificação do
sujeito: na verdade, “levar demasiadamente a sério a ilusão de um ego-sujeito-pleno em
que nada falha, eis precisamente algo que falha em Les vérités de La Palice56” (ibid.).
Segundo o autor, a partir dessa questão, a retificação era necessária, pois
(...) eu me apoiava em uma exterioridade radical marxista-
leninista para desvendar o ponto em que o absurdo reaparece
sob a evidência, determinando, assim, a possibilidade de uma
espécie de pedagogia da ruptura das identificações imaginárias
em que o sujeito se encontra, logo a possibilidade de uma
“interpelação às avessas” atuando na prática política do
proletariado (...) (ibid., p. 275).
53 Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação. Segundo os
tradutores da edição brasileira, esse texto foi redigido durante o inverno político francês de 1978-1979.
54 A edição brasileira que utilizo é a quarta edição, de 2009.
55 ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de Estado. 2ª ed. Trad. de Walter J. Evangelista e Maria Laura
V. de Castro. RJ: Graal, 1985
56 Nome original em francês da obra citada.
77
Ao formular a noção de sujeito do discurso, Pêcheux considerou um sujeito cujo
centro era o ego, um “ego-sujeito-pleno”, forma que defino aproximada à do sujeito
considerado pelo jurídico, evidente e responsável pelo seu dizer, sem falhas, sem levar
em consideração o sujeito clivado pelo inconsciente. Conforme o autor, “o algo que
falha” na elaboração anterior deve-se ao fato
de que o non-sens do inconsciente, em que a interpelação
encontra onde se agarrar, nunca é inteiramente recoberto nem
obstruído pela evidência do sujeito-centro-sentido que é seu
produto, porque o tempo da produção e o do produto não são
sucessivos como para o mito platônico, mas estão inscritos na
simultaneidade de um batimento, de uma “pulsação” pela qual o
non-sens inconsciente não para de voltar no sujeito e no sentido
que nele pretende se instalar (ibid., p. 276).
A partir da formulação de Lacan de que “só há causa daquilo que falha”,
Pêcheux (ibid.) legitima a importância do inconsciente na teoria materialista do discurso
e do seu papel na compreensão dos processos de interpelação e de identificação
determinados ideologicamente no sujeito. Dessa forma, o autor considera que “(...) os
traços inconscientes do significante não são jamais ‘apagados’ ou ‘esquecidos’, mas
trabalham, sem se deslocar, na pulsação sentido/non-sens do sujeito dividido” (ibid., p.
276-277).
Creio que considerar que o sujeito está submetido a uma falha é também
considerar que a interpelação ideológica também está, o que possibilita que o sujeito
esteja/seja mobilizado por diferentes formações ideológicas, contraditórias ou não,
através de rupturas e falhas que as constituem. Pela formulação de Lacan, o gesto de
Pêcheux (ibid.) permite realizar uma reflexão sobre as desestabilizações e as
transformações que as falhas que provocam e determinam os diferentes processos de
interpelação e de identificação.
A partir dessas questões considero que mesmo que haja uma submissão do
sujeito às estabilizações realizadas pelo Estado, através das gestões realizadas pelo
Jurídico e pela Língua na administração das subjetividades, “a possibilidade de revolta
se sustenta na existência de uma divisão do sujeito, inscrita no simbólico” (ibid., 2009,
78
p. 279), o que permite que haja “causa naquilo que falha”, o espaço para o surgimento
de sentidos que escapem a essa estabilização levada a cabo pelo Estado.
A discussão aqui realizada sobre o trabalho do Estado na administração de
cultura e de sua vinculação com nação – processo esse que acirrou o movimento
segundo o qual cultura passa a significar como civilização – seguiu o movimento de um
duplo reconhecimento. Começou por uma forte necessidade de abordar, talvez com
excessivo detalhamento, em seus vários aspectos, o papel do Estado no que se refere aos
processos de homogenização dos que precisou para funcionar e, posteriormente, foi
passando para o segundo reconhecimento: aquele segundo o qual os processos de
interpelação falham, o jogo ou a luta do político faz surgir outros sentidos e outros
sujeitos (em outras posições), e a heterogeneidade aflora e estilhaça o efeito de
homogenização – apesar, poderia acrescentar, da eficácia dos rituais instalados pela
máquina do Estado.
Cabe observar que, no caso da língua espanhola, esta discussão se faz
especialmente necessária pelo fato de se tratar de uma língua nacional e oficial (em
muitos casos em relação de co-oficialidade com outra ou outras) em vários Estados, fato
que leva a realizar o reconhecimento, no real, do diverso ou do heterogêneo, habitado
irremediavelmente pela alteridade. Cabe, no caso, citar um fragmento do trabalho de
Celada (2002, p. 160), segundo quem:
Essa língua espanhola, cuja “homogeneidade” é efeito do
processo de colonização, está clivada, em vários sentidos, por
processos históricos que trabalham sua heterogeneidade, que
talham nessa língua diversos “pontos de disjunção” – (...) essa
observação que Orlandi57
formula para distinguir o português
brasileiro e o português de Portugal.
E eu poderia acrescentar: clivada pelos diversos processos de gramatização (AUROUX,
1992) vinculados aos diversos estados nacionais e todos eles, cada um com sua
especificidade, numa forte filiação com a memória de colonização.
Passo agora ao terceiro item deste capítulo, onde apresento – a partir, sobretudo,
da discussão realizada por Eagleton (2011) – ressignificações que afetam cultura na
história.
57 ORLANDI, E. “A língua brasileira”. In.: Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas: Unicamp, nº
23, p. 29-36, 1994.
79
No período posterior ao da formação dos Estados modernos, segundo Cevasco
(2008, p. 10), quando se constitui sua consolidação, surge a concepção de cultura
enquanto crítica ao funcionamento deste Estado. A transição social provocada pela
Revolução Industrial – primeiro no Reino Unido, depois na Europa – e o fortalecimento
do imperialismo dos países europeus ao colonizar e explorar territórios pelo planeta, na
consolidação do capitalismo na transição do Moderno ao Contemporâneo, levou à
mudança da concepção que estabelecia a relação civilização-cultura. Conforme a
autora, mudanças radicais na configuração das sociedades urbanas europeias durante o
século XIX e as contradições geradas por essa mudança levaram ao afastamento de tal
par: cultura, que antes remetia ao “treinamento de faculdades mentais”, passa a abarcar
os sentidos de um “termo que enfeixa uma reação e uma crítica – em nome dos valores
humanos – à sociedade em processo acelerado de transformação” (ibid., p. 10).
Essa mudança em relação à série de sentidos que se vincula ao termo cultura
será discutida, primeiro abordando o conceito de cultura como modo de vida
característico e, posteriormente, como prática artística (EAGLETON, 2011).
2.3. A dissociação entre cultura e civilização
A dissociação da sinonímia estabelecida entre cultura e civilização deveu-se ao
fato de que civilização adquiriu uma conotação relacionada ao modo de vida burguês
europeu e fortemente associada ao imperialismo empreendido pelas nações europeias na
África e Ásia, em contraposição ao modo de vida existente nestas territorialidades.
Eagleton (2011) considera como fundamental nessa mudança a crítica realizada pelos
liberais a este modelo econômico, baseado na exploração e submissão de povos que
possuíam modos de vida distintos aos dos europeus. Na argumentação a favor dessa
prática por parte dos que apoiavam esse modelo político e econômico estava, como
observa o autor, a defesa do nacionalismo: “a ‘civilização’ minimizava as diferenças
nacionais, ao passo que a ‘cultura’ as realçava” (ibid., p. 20).
Nesta transição, era necessário, segundo o estudioso, outro termo para designar e
caracterizar “como a vida social deveria ser em vez de como era” (ibid., p. 22, grifos
meus). A partir do idealismo alemão, o termo culture, do francês – este fortemente
associado à civilização, com sentidos que remetiam ao convívio em sociedade, ao
80
“espírito cordial”, às “maneiras agradáveis” – foi ressignificado na forma Kultur da
língua alemã. Nesta ressignificação, cultura passou a ser considerada “algo inteiramente
mais solene, espiritual, crítico e de altos princípios” (ibid.).
A Kulturkritik alemã, segundo a observação realizada por Eagleton a partir dos
estudos de Raymond Williams, rompe a associação de cultura e civilização e estabelece
uma atitude crítica em relação à última. Assim, explicita Eagleton (ibid.), civilização, no
reforço da distinção estabelecida em relação ao seu antigo par, passa a ser associada a
termos como “abstrata, alienada, fragmentada, mecanicista, utilitária, escrava de uma
crença obtusa no progresso material” (EAGLETON, 2011, p. 23); e cultura passa a ser
associada ao holístico, “orgânica, sensível, autotélica, recordável”, numa construção que
se propõe a ser contraponto e crítica à civilização, mas que a considerava como algo a
ser salvo – isto é, ressignificado mas não destruído. Ainda conforme esse autor (ibid.), a
“civilização era no seu todo burguesa, enquanto a cultura era ao mesmo tempo
aristocrática e populista”, assumindo um dos significados que atualmente se lhe
atribuem: o de modo de vida característico.
A concepção de cultura como modo de vida característico indica um movimento
de desconstrução da série de sentidos que foi determinante na configuração do Estado
moderno. Conforme Eagleton, que toma como base reflexões de Von Herder58
, ao
estabelecer que há diferenças e alternativas no modelo de civilização em funcionamento
nos Estados nacionais, que universalizavam ou naturalizavam um modo de vida que na
verdade era de poucos, a nova concepção estabelecia a possibilidade de considerar “uma
diversidade de formas de vida específicas, cada uma com suas leis evolutivas próprias e
peculiares” (Von Herder (1968) apud EAGLETON, 2011, p. 23). Observo ainda com
base nessas formulações que tal acontecimento instaurará uma série de sentidos no
funcionamento da memória discursiva que dará condições a movimentos de valorização
de formas de vida específicas futuramente, tais como o feminismo, o ativismo negro e o
gay. Isto entra em relação com a seguinte colocação de Eagleton (2011.):
A origem da ideia de cultura como modo de vida característico,
então, está estreitamente ligada a um pendor romântico
anticolonialista por sociedades “exóticas” subjugadas. O
exotismo ressurgirá no século XX nos aspectos primitivistas do
58 VON HERDER, J. G. Reflections on the Philosophy of the History of Mankinf. 1784-91. Chicago,
1968: p. 49.
81
modernismo, um primitivismo que segue de mãos dadas com o
crescimento da moderna antropologia cultural. Ele aflorará bem
mais tarde, dessa vez numa roupagem pós-moderna, numa
romantização da cultura popular, que agora assume o papel
expressivo, espontâneo e quase utópico que tinham
desempenhado anteriormente as culturas “primitivas” (ibid., p.
25).
Conforme esse mesmo estudioso (ibid.), na consolidação da nova concepção de
cultura estabelece-se uma quase oposição entre cultura-civilização. Cultura se relaciona
com o exótico, o particular, o tribal, porém deslocada e mobilizada somente quando se
trata de sociedades “selvagens” e não de sociedades “civilizadas”. Para os críticos
românticos, esta concepção coloca-se também como uma representação idealizada em
relação à sociedade daquele momento.
Nesta nova configuração que estabelece, de fato, a oposição entre cultura como
orgânica (pensando na série mais antiga, que ligava o termo a “natureza”) e cultura
como civilidade (pensando na sinonímia entre cultura e civilização), conforme Eagleton
(ibid.), instaura-se um jogo entre fato e valor: “fato”, no sentido de que a nova
concepção é uma categorização de formas de vida já existentes; “valor”, porque se
considera uma tradição, justamente, “de valores” reconhecida pelo Estado naquele
momento. Será tal fusão do descritivo (cultura como orgânica) e do normativo (cultura
como civilidade) a que, segundo Eagleton (ibid.), em filiação tanto com ‘civilização’
quanto com o sentido universalista de ‘cultura’, despontará na nossa própria época sob a
roupagem de relativismo cultural” (ibid., p. 26).
Na trajetória de opor-se à homogeneização de hábitos, sob o caráter da tradição,
a concepção de cultura como modo de vida característico tornou-se tão específica que
incorreu em uma radicalização de identidades, em uma consideração de pluralidades de
modos de vida, cada um deles sob a representação de uma identidade fechada e
homogênea. Para Eagleton (ibid.), tal configuração deu bases à individualização de
diversas formas de vida, incorrendo em um pluralismo que contribuiu à multiplicação
de identidades – em uma banalização que levaria a considerar a valorização de uma
diversidade de hábitos que caracterizariam formas de cultura, mas não culturas
propriamente ditas. A partir desse novo lugar, surgem termos relacionados a esta
concepção que põem em relevo sentidos contraditórios em relação ao movimento que
havia vinculado a cultura a uma nação.
82
É importante observar, a partir de formulações de Eagleton (ibid.), que a
concepção de cultura como modo de vida característico deu bases a outros termos que
hoje possuem forte vinculação com esse termo, como hibridização cultural e pluralismo
cultural. Em relação a esses, por exemplo, considero que se o primeiro conceito
pressupõe pureza, uma cultura original fechada que se hibridiza ao entrar em contato
com outras, o segundo pressupõe “identidade”, e não “cultura”, pois pensar num
“pluralismo cultural” implicaria colocar em relação uma grande diversidade de
identidades distintas, considerando-as cada uma delas monolíticas, homogêneas e
particulares.
Ao apresentar outro olhar, porém complementar, sobre a virada semântica de
cultura como modo de vida característico, Bauman (2012, p. 55) recorda que o
processo de homogeneização empreendido pela formação dos Estados modernos foi
gerido pela elite como processo de dominação e de alienação social sobre as massas e
possuía como propósito enfraquecer ou romper “o controle sob o qual as ‘comunidades’
(tradições, costumes, dialetos, calendários, lealdades locais) mantinham os potenciais
patriotas da nação una e indivisível”. A imposição de um modo de vida único –
continua o autor (ibid.) – sobre os particularismos da sociedade nacional, nesses
Estados, levou a processos de desmantelamento e desempoderamento dos poderes
intermediários, enfraquecendo “qualquer unidade menor que o Estado-nação”.
Porém, esse processo levado a cabo pelo Estado-nação não foi de todo exitoso e
o resultado decorrente foi a fragmentação do imaginário de tal unidade. Bauman (2012),
citando Taylor59
considera que o Estado-nação não pôde assegurar, por muito tempo, a
ilusão de unidade e de igualdade de condições dentre os diferentes membros da
sociedade, falindo como fonte de “escolhas significativas quanto ao modo de vida”;
ademais, acrescenta Bauman (ibid., p. 56):
(...) [o] nacionalismo, despido de seu alicerce no Estado, perdeu
a autoridade sem a qual a abolição dos direitos individuais de
escolha não seria viável nem aceitável; e de que, no vácuo
resultante, as ‘minorias em luta’ é que agora são vistas como a
segunda linha de trincheiras, onde a ‘escolha significativa’ pode
ser protegida da extinção; agora se espera que elas tenham êxito
na tarefa que o Estado-nação definitivamente deixou de realizar.
59 Charles Taylor, Can liberalism be communitarian?, Helotes, Texas: Critical Review, v. 8, nº2, 1994.
83
A concepção de cultura como modo de vida característico adveio, segundo
Bauman (ibid.), da impossibilidade do Estado-nação construir “a clareza e a segurança
da existência” humana característica da Idade Média, ilusão que em tal época era
apoiada no transcendentalismo e que passou a ser sustentada, na Idade Moderna, como
algo a ser proporcionado pelo antropocentrismo, com o homem, dotado de razão, com
as rédeas de sua vida nas mãos. Conforme o autor (ibid.), a esperança de tal sentimento
manteve-se na configuração da unidade da organização social superior e supralocal da
sociedade; entretanto, a não correspondência entre a esperança de liberdade individual e
o papel exercido pelo Estado na mediação dos diferentes conflitos e interesses
constitutivos da sociedade foram determinantes para o estabelecimento de uma
mudança.
Considerando esse contexto, o Estado-nação, segundo Bauman (ibid., p. 57),
mediado por relações econômicas de mercado advindas dos processos mercantis do
recém-estabelecido capitalismo (processo gerado pelo imperialismo empreendido pelas
nações europeias e mediado por relações de poder geridas pela elite na gestão das
massas) foi o “incubador de uma sociedade moderna governada (...) pela diversidade de
interesses de mercado”. Ainda segundo Bauman:
(...) as tão desprezadas comunidades de origem, locais e
necessariamente menos importantes que o Estado-nação –
descritas pela propaganda modernizante como paroquiais,
atrasadas, dominadas pelo preconceito, opressivas e absurdas, e
transformadas em alvos de cruzadas culturais organizadas em
nome das ‘escolhas significativas’ –, é que são vistas com
esperança como executoras confiáveis dessa racionalização,
desaleatorização, saturação de significados das escolhas
humanas que o Estado-nação e a cultura nacional
abominavelmente deixaram de promover (ibid., p. 58).
Neste movimento descrito pelo estudioso surge, em contraposição ao
nacionalismo e a cultura do Estado-nação, o comunitarismo, que se contrapunha e se
colocava de forma independente frente ao Estado e à “cultura nacional”. Em seu cerne
há a esperança a que Bauman (ibid.) anteriormente se referiu e que o Estado-nação não
conseguiu realizar: a da liberdade individual. Segundo o autor (ibid., p. 60), estaria
nesse processo a recuperação e a valorização de uma identidade, local e particular e por
84
isso mais próxima ao sujeito, que reconheceria o seu modo de vida característico, o que
lhe daria condições para exercer sua liberdade criativa; assim, não estariam mais o
Estado-nação nem as elites gerenciando a vida desses sujeitos.
Conforme Bauman (2012), a proclamação de cultura como sistema através da
promoção do Estado-nacional configurava-se em “uma totalidade encerrada em si
mesma” (ibid., p. 59), em um processo de eliminação de hábitos e costumes que não
condiziam com a cultura do Estado-nação, falhando na promoção da liberdade
individual como valor universal. O surgimento de um comunitarismo que estabeleceu
cultura como modo de vida característico, entretanto, não foi determinante para
instaurar essa liberdade; como observa o estudioso:
O projeto da cultura nacional e os projetos comunitaristas são
unânimes quanto à inviabilidade da solução alternativa: a de
tornar a liberdade e a autoafirmação realmente universais,
fornecendo a cada indivíduo os recursos necessários e a
autoconfiança que os acompanha, tornando redundante a
compensação [pelo desarraigamento dos indivíduos produzido
pelo mercado] (ibid., p. 61).
Não somente o comunitarismo não conseguiu corresponder ao anseio da
liberdade da autoafirmação como também não rompeu com o conceito de totalidade e
de homogeneização inerente à concepção de cultura, sentido que se filia a cultura
pensada como civilização. Cada comunidade cultural atuou como uma coerção sobre o
sujeito, na oposição construída entre os diferentes tipos de cultura: o comunitarismo,
diz Bauman (ibid., p. 63), “[t]em a ver com o cerceamento da livre escolha, com a
promoção da preferência por uma escolha cultural e a protelação de todas as outras –
com vigilância e censura estritas”. Na pluralização estabelecida na comparação e na
oposição entre diferentes culturas, considera-se cada uma delas como uma totalidade
fechada, sem relação uma com as outras – e, nessa observação, Bauman (2012) se
aproxima de Eagleton (2011) quando reflete sobre o perigo das identidades
pulverizadas. Bauman (ibid., p. 63), ademais, crê que há “todas as razões para se ter a
expectativa de que as comunidades empurrem sua intolerância cultural até limites que o
menos tolerante dos Estados-nações dificilmente atingiu”.
Para este mesmo autor (2012), cultura como modo de vida característico (ou
comunitarismo, ou comunidade cultural) por estar mais próxima ao sujeito, é uma série
85
de sentidos que funciona de modo mais coercitivo que cultura como civilização, pois
participa do dia a dia do sujeito, de sua rotina, do que lhe é mais familiar. A
comunidade cultural – afirma o autor (ibid., p. 64) – utiliza-se de processos de
interpelação e de submissão que se constituem em uma coerção cultural, mais “dolorosa
por ser vivenciada”, “vivida” como tal. Assim, a coerção empreendida pelo
comunitarismo é mais forte do que a realizada pelo Estado-nação, não somente por estar
mais próxima do sujeito, mas também por ser mais débil, por não estar amparada em um
aparato institucional. Conforme Bauman (ibid., p. 64):
(...) [a comunidade cultural] [s]ó pode sobreviver à custa da
liberdade de escolha de seus membros. Não pode perpetuar-se
sem vigilância estrita, exercícios de disciplina e penalidades
severas para qualquer desvio em relação às normas. É, assim,
não tanto “pós-moderna” mas “anti-moderna”: propõe
reproduzir, de forma ainda mais severa e impiedosa, todos os
excessos mais sinistros e odiosos das cruzadas culturais contra a
ambivalência associadas ao processo de construção nacional,
enquanto milita contra a autoafirmação e a responsabilidade
individual, também produtos da revolução moderna, que
costumavam contrabalançar e amortecer as pressões
homogeneizantes.
Detive-me, especialmente, nesta série de observações sobre o comunitarismo
porque esta concepção permitiu o surgimento de dois termos fortemente vinculados,
hoje, ao conceito de cultura: multiculturalismo e multicomunitarismo. O primeiro,
segundo Bauman (ibid., p. 65), abarca a possibilidade de convivência de múltiplas
manifestações culturais, sendo a diversidade “universalmente enriquecedora”. O
segundo termo, mais restrito, reforça o caráter particular de cada cultura e considera os
valores universais como fator enfraquecedor desse caráter, ao empobrecer a identidade
característica de cada cultura; neste caso, o comunitarismo promove o fechamento em si
mesmo, o que gera como resultado a “intolerância e separação social e cultural” (ibid.).
Entretanto, tanto multiculturalismo quanto multicomunitarismo, conforme
Bauman (ibid., p. 66), “são duas diferentes estratégias para enfrentar uma situação do
mesmo modo diagnosticada: a copresença de muitas culturas numa mesma sociedade”.
As duas formas concordariam, uma mais explicitamente que a outra, com uma visão
“totalista” e “sistêmica” de cultura – se diferem no sentido de que uma aceita a relação
entre as diversas culturas na diversidade e a outra a rejeita. As duas concepções teriam
86
dificuldades em solucionar as “diferenças” e em estabelecer um consenso entre elas na
atual configuração de identidades presentes na sociedade, com o tráfego entre fronteiras
limitado, controlado ou interditado, com posições fortemente marcadas entre o “dentro”
e o “fora” de cada cultura. Atualmente, conforme Bauman (ibid., p. 66):
A característica mais preeminente da vida contemporânea é a
variedade cultural das sociedades, e não a variedade de culturas
numa sociedade: aceitar ou rejeitar uma forma cultural não é
mais algo negociável (se é que já foi); não exige a aceitação ou
rejeição de todo o estoque nem significa uma ‘conversão
cultural’. Mesmo que no passado as culturas fossem sistemas
completos, em que todas as unidades eram fundamentais e
indispensáveis para a sobrevivência de todas as outras, com
certeza elas deixaram de ser assim. A fragmentação afetou todos
os campos da vida, e a cultura não é exceção.
O autor (ibid.), a partir de Hall60
, considera que uma compreensão “discursiva”
de identidades “consegue apreender o verdadeiro caráter dos processos de identidade
contemporâneos”, em oposição a uma compreensão naturalista que considere
identidade cultural como algo fechado e natural, compartilhada de igual modo por todos
os sujeitos que com ela se identifiquem. Uma compreensão discursiva de identidade, de
acordo ainda com esse autor, considera esta última como uma construção histórica,
sempre em processo, nunca inacabado, “sempre ‘sendo feito’” (HALL (1996) apud
BAUMAN, 2012, p. 66).
Após as considerações sobre cultura como modo de vida característico,
apresento, a partir de Eagleton (2011), quem o considera como o mais restritivo, um
quarto deslocamento ou ressignificação de cultura na história. Trata-se da concepção de
cultura como criação artística, que passa a ser um sentido decorrente desse processo
transformador do termo, que se associa às formas de manifestação artística, sejam elas
das artes plásticas, da literatura e da música.
Conforme Eagleton (ibid., p. 29), tal sentido pode ser tomado tanto de forma
mais abrangente, para designar uma especialização das artes ou de uma atividade
intelectual em geral, vinculada às áreas de saber das Humanidades; ou mais restritiva,
considerando-se somente atividades tomadas como criativas ou “imaginativas”, por
60 Stuart Hall, “Who needs identity?”, in Stuart Hall e Paul Du Gay (orgs.), Questions of Cultural
Identity, Londres, Sage, 1996, p.3-4.
87
exemplo a “Música, a Pintura e a Literatura”. Considero a forma abrangente com maior
capacidade de descristalizar os sentidos mais estabilizados de cultura, como os que se
vinculam a nação, por exemplo; chamar a alguém de culto61
, observa (ibid.), atualmente
refere-se a concepção mais restritiva, o que considero menos descristalizadora sobre os
sentidos mais estabilizados de cultura, mais vinculada aos bens de produção e
despolitizada em relação à história.
O autor critica o empobrecimento e a especificidade instaurados por esta última
concepção de cultura, ao especializar a criatividade, determinando esta última como
algo específico do âmbito da arte – sem relação com outras práticas e atividades
humanas. Cabe lembrar, conforme Eagleton (ibid.), que a prática artística é realizada
por poucos sujeitos e restringir a cultura somente a algo específico de um grupo instala
duas questões: em primeiro lugar, a de significar “as artes” como único âmbito no qual
há cultura, tornando esta elitista e sectária, desconsiderando outras práticas culturais
populares ou engajadas; em segundo lugar, ao atribuir uma significação social às artes,
nota-se a sua impossibilidade de representar o divino ou a felicidade a serviço da
humanidade, o que levou que fosse adotada, no pós-modernismo, uma certa
independência que livrasse as artes de “profundidade” ou da obrigação de explicar o
mundo, o que tornou-as frágeis frente ao político e às questões sociais e econômicas.
Cultura como prática artística, conforme Eagleton (ibid.), retoma o embate
entre o universal e o individual presentes nos outros sentidos de cultura. Segundo esse
autor, “o artefato estético foi a outra grande solução da modernidade para um de seus
mais renitentes problemas: a muito discutida relação entre o individual e o universal”
(ibid. p. 93). A obra de arte apresenta-se como uma totalidade que remete aos seus
“particulares sensíveis”, obedecendo a questões estéticas que se colocam em uma
sociedade cada vez mais pautada por relações de mercado e pela falta de tempo para a
arte, conforme o autor. A cultura como prática artística, fetichizada como uma
totalidade e com um status de consumível, desemboca no que ele (ibid.) considera,
atualmente, como cultura consumista do capitalismo avançado. Como “produto”,
afirma o próprio autor (ibid., p. 96), a cultura é também modelo, “(...) a arte indicando
61 Vale lembrar que a forma derivada de colere, cultus, remete ao substantivo culto, acepção do âmbito da
religião, que não possui relação com o adjetivo culto, usado somente para denominar algo relacionado a
essa quarta série de sentidos com a qual entra em relação o termo “cultura”.
88
um refinamento de vida ao qual a sociedade ela mesma deveria aspirar. A arte define
para quê vivemos, mas não é para a arte que vivemos”.
A cultura como modelo, sentido inerente à cultura como prática artística,
converte-se em símbolo do capitalismo avançado e entra em relação com a cultura
como identidade, sentidos mais significativos na Contemporaneidade, dados os
processos migratórios e a intensa circulação de saberes e de produtos culturais pelas
redes de informação e de comércio, conforme Eagleton (ibid.). Tal embate configura-se,
segundo ele (ibid.), em um “dos principais conflitos políticos de nosso tempo” e cabe
uma discussão a parte, que será a que realizarei no capítulo 3, por estar em relação com
processos econômicos e sociais que se agudizaram nos Estados nacionais, cuja
formação se deu dentro de processos de (des)colonização. Para tal, retomarei a
caracterização desse embate proposto por Eagleton (2011) e a consideração que Bhabha
(1998) e Hall (2001) realizam sobre tal embate em sociedades decorrentes de processos
de colonização; e também a discussão realizada García Canclini (1998), Hall (2001;
2012), Mignolo (2003a, b, c & 2007) e Bhabha (2007) sobre essas questões no âmbito
dos países da América Latina, especialmente os de colonização hispânica, que hoje têm
como língua oficial o espanhol.
No capítulo seguinte, discutirei especificamente distintos processos que são
constitutivos dos sentidos produzidos pela relação do sujeito com a linguagem,
materialidade esta que é constitutiva da identidade de um sujeito. Deste modo, ao tratar-
se desses processos de subjetivação, faz-se obrigatório discutir especificamente a
questão da identidade e de sua vinculação com cultura, o que será o tema do capítulo 3 a
seguir.
89
Capítulo 3:
Cultura e identidade – uma discussão
Neste capítulo, sem perder de vista o objetivo de realizar um agenciamento de
saberes que ressoem no campo de formação de professores, abordarei questões que se
vinculam a um nome, a um “substantivo”, com frequência colocado em relação com o
termo cultura – ou com sua inflexão como adjetivo: cultural [-ais]. Refiro-me ao termo
identidade(es). E, neste caso, deverei submeter a discussão a uma especificação: a que
supõe relacionar a língua espanhola com o espaço que habita, um espaço de enunciação
(GUIMARAES, 2002) no qual ocupa o estatuto de língua oficial de Estados nacionais,
e numa memória de colonização.
Para introduzir o que aqui focalizarei farei uma retomada do realizado nos dois
capítulos anteriores. No primeiro, discuti que considero que as práticas de
ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras participam das condições de produção de
um processo que entendo como sendo de inscrição, por parte dos sujeitos-aprendizes, na
ordem da língua outra. Este processo está marcado por movimentos de identificação, em
que o sujeito é tomado pelo significante, e também é interpelado pelas próprias formas
de ensinar e pelos sentidos que estas, regularmente, reproduzem. O que me interessa
observar é que neste último caso, se dá prosseguimento a certos processos de
interpelação dos sujeitos-aprendizes, não opondo resistência de modo à naturalização de
sentidos, que se apresentam como evidências.
No capítulo 2 desta tese discuti com especial atenção o efeito de
homogeneização produzido pelo processo de interpelação dos indivíduos realizado ao
longo da história de constituição do(s) Estado(s) nacional(-ais), marcado por gestos e
movimentos de universalização. Nele foi trabalhada a relação desse Estado na
construção do sujeito identificado com uma língua, uma identidade e uma cultura
vinculadas a valores e tradições fortemente associados ao nacional – fato que produz,
justamente, identidades nacionais. Mesmo que esses processos respondam a um ritual
no qual sempre é possível a falha (Pêcheux, 2009), tal como vimos no capítulo 2, – e
mesmo que o sujeito possa escapar a esse ritual – ocorre, nas práticas de ensino, por
parte tanto do sujeito-professor quanto do sujeito-aprendiz, a ocupação de certas
90
posições, nas quais essa interpelação opera – posições que estão relacionadas com a
forma com que estes sujeitos foram interpelados, e se constituíram62. Isto,
evidentemente, entra em relação com os processos de formação de professores de
línguas.
Por isso, nas práticas de ensino/aprendizagem, esses sujeitos, tomados pela
evidência da existência do(s) Estado(s) nacional(-is) e sejam eles brasileiros, franceses
ou peruanos, introduzem ou reproduzem certas formas de dizer que supõem
generalizações como, por exemplo, a apresentação de hábitos culturais por remissão à
nacionalidade (predicando sobre o chileno, o argentino, os peruanos, os espanhóis,
etc.); e, também, nesse mesmo sentido, reproduzem o apagamento de uma diversidade
ou de uma heterogeneidade própria de um país como Espanha ou como qualquer um
daqueles que habitam a América conhecida como de “fala espanhola”, desconhecendo
inclusive os processos de conquista e colonização respectivos.
Na segunda parte desse segundo capítulo, discuti que a associação de cultura
com uma nação e com uma identidade nacional (com uma nacionalidade) se ressignifica
na história, através de gestos de resistência que se opuseram a essa associação, dando
visibilidade à questão da identidade, pois, nesse movimento, cultura passa a se
ressignificar como modo de vida característico. Nesta última ressignificação opera a
desvinculação desse termo com relação ao Estado: se associa, então, a “formas de vida”,
o que rompe a sinonímia estabelecida com civilização; entretanto, mais adiante, cultura
não consegue se desvincular de outros movimentos de estabilização, que serão
realizados pela sua vinculação com a indústria cultural de massa e com outros sentidos
determinados pelo Mercado.
Nesse sentido, neste capítulo realizo dois movimentos. De acordo com o
primeiro, pensando especialmente em relação ao espanhol na América Latina e ao
ensino dessa língua para brasileiros, realizo um específico agenciamento de saberes com
o intuito de que passem a produzir efeitos no campo da produção de conhecimento
sobre ensino de línguas, no da formação docente e, também, no das respectivas práticas.
A partir de autores como Bhabha (2007), Mignolo (2003a) e Quijano (2000), abordarei,
no item 3.1., aspectos relativos ao discurso colonial e, no item 3.2., ao conceito de
conialidade do poder e do saber, justamente com o intuito de conhecer melhor a
62 Aqui faço uma relação com a consideração de Orlandi (2008) sobre o processo de constituição do
sujeito do discurso, do qual fiz referência em capítulos anteriores.
91
constituição de identidades culturais no espaço que me ocupa – oferecendo, assim, a
devida resistência aos diversos processos de homogeneização dos quais já tratei (o
civilizatório, muito vinculado, aos de conquista e colonização e à formação dos Estados;
os referidos à atual globalização). Portanto, nesses dois itens, passarei de tratar, a partir
das considerações de Bhabha (ibid.), o discurso colonial como aparato de poder para
abordar a colonialidade do poder. Como um dispositivo constituído na história, esta
(QUIJANO, 2000; MIGNOLO, 2003a), a meu ver, está estruturada discursivamente por
um discurso colonial cujo funcionamento, conforme a definição do próprio Bhabha
(ibid.), dá sustentação e mobilidade para esse dispositivo, que está diretamente
relacionado às questões de identidade e de alteridade em espaços que passaram por
processos de colonização. Apesar de que o gesto de construir uma nação implica a
construção de uma autonomia e de uma ruptura com os processos de colonização,
conforme disse anteriormente, a colonialidade do poder está diretamente relacionada
com o funcionamento específico de uma memória relacionada a esses processos, o que
produz uma heterogeneidade: as identidades, mediadas pelos sentidos decorrentes desse
dispositivo, se vinculam ao heterogêneo.
De acordo com o segundo movimento, no item 3.3., abordarei, de modo
sucinto,– a partir fundamentalmente, de García Canclini (1998) e de Rolnik (1997), e
em parte de Castells (1999),– que, após a ressignificação de cultura como modo de vida
característico, há processos que ocorrem por efeito de um forte gesto de interpelação de
indivíduos, por parte do Mercado, como poder econômico. Neste caso, trata-se da
vinculação de identidades a determinadas formas de consumo63, por modos de
estabilização que ocorrerão por efeito de um forte gesto de controle dessas identidades
por parte do poder econômico, realizado através de diversos processos determinados,
fundamentalmente, pelo atual processo de globalização – que se dá a partir dos anos 90
– na produção de identidades associadas às formas de consumo. Nesse terceiro item
deste capítulo tratarei sobre a identidade na pós-modernidade, a partir da reflexão de
que o papel exercido pelo Estado nacional na conformação de uma identidade é
deslocado pelo “econômico” que, apesar de dar lugar a diferentes representações
63 Lembro que Eagleton (2011) já ressignificava cultura como prática artística vinculando-a a processos
de consumo relacionados ao Mercado.
92
identitárias, não desloca a memória discursiva decorrente dos processos de colonização
e clivada pela colonialidade do poder.
O propósito deste capítulo é o de trazer à reflexão essas questões para fazer ruir
determinadas séries de sentido segundo as quais cultura se associa a uma identidade
nacional e, também, a uma identidade associada a formas de vida determinadas pelo
Mercado e que seria “de todos”. Dessa forma, tento apresentar insumos para melhor
compreender a enorme heterogeneidade e variedade que permeiam o espaço de
enunciação do espanhol como língua oficial, conforme se poderá ver nos lineamentos
propostos no capítulo 4. A discussão sobre essas formas de vida heterogêneas permite
um caminho, ao realizar um movimento de saída desses efeitos de homogeneização em
direção à diversidade, o que, na América Latina, não poderia ocorrer sem a discussão
dos efeitos de sentido decorrentes da colonialidade.
3.1. O discurso colonial e a construção de alteridade
A reflexão sobre a construção de alteridade pelo discurso colonial, conforme a
perspectiva de Bhabha (2007) que considera esse discurso como aparato de poder, é de
fundamental importância para a discussão que aqui realizo quando se leva em conta os
processos de subjetivação e de interpelação mediados pela formação de Estados
nacionais, vinculados a uma memória de colonização. Digo isso pelo fato de que a
cultura em espaços que passaram por tais processos exerce papel central na legitimação
e no apagamento de saberes e sentidos ao longo da história.
Apesar de que essa perspectiva de Bhabha (ibid.) esteja pautada por uma
reflexão realizada a partir de obras literárias produzidas em contextos de colonização
distintos dos ocorridos na América Latina, devido ao fato de serem mais recentes,
considero a reflexão desse autor sobre os discursos coloniais, realizada por um viés pós-
estruturalista e a partir do campo da Psicanálise, como uma perspectiva a mais para
discutir os processos de colonização nesse sub-continente. Entendo que tais processos
estabeleceram sentidos clivados pela história, constitutivos da relação entre o
colonizador e o colonizado que, por mais que haja ressignificado a relação entre eles,
uma série de efeitos de pré-construído (HENRY, 1990) mediam saberes e valores
culturais que hoje são tomados como naturalizados, como evidências.
93
Bhabha (ibid.), na descrição que realiza sobre o discurso colonial, considera que
um dos elementos estruturantes da alteridade construída a partir desse discurso é a
categoria de raça. Conforme discutirei adiante neste trabalho, para Quijano (2000) e
Mignolo (2003a), essa categoria, assim como o conceito de racialidade decorrente dela,
foram alguns dos balizadores da colonialidade do poder que estabeleceram as diferenças
imperial e colonial nas sociedades que surgiram dos processos de colonização. Para
Bhabha (2007), a identidade colonial, assim como os sentidos que decorreram dela, são
afetados diretamente pela questão da raça, sendo essa constitutiva da alteridade que
emerge da relação entre os diferentes sujeitos no contexto colonial. Essa alteridade,
ainda segundo o autor (ibid.), é determinante no estabelecimento de uma diferença, o
que interpreto como algo que vai de encontro ao imaginário construído pelo Estado
nacional de que os sujeitos sejam constituídos por identidades estanques, fechadas e
isoladas. Para esse autor:
Não é o Eu colonialista nem o Outro colonizado, mas a
perturbadora distância entre os dois que constitui a figura da
alteridade colonial – o artifício do homem branco inscrito no
corpo do homem negro. É em relação a esse objeto impossível
que emerge o problema liminar da identidade colonial e suas
vicissitudes (ibid., p. 76).
Segundo Bhabha (ibid.), o discurso colonial realiza uma articulação das formas
da diferença, sendo essas de ordem racial e sexual, o que é determinante para a
construção do sujeito colonial do discurso, assim como para o exercício do poder
colonial64. Segundo esse autor, tal articulação torna-se crucial pelo fato de que “o corpo
está sempre simultaneamente (mesmo que de modo conflituoso) inscrito tanto na
economia do prazer e do desejo como na economia do discurso, da dominação e do
poder” (ibid., p. 107). Para Bhabha (ibid., p. 107), “há um espaço teórico e um lugar
político para tal articulação – no sentido em que a palavra nega uma identidade
‘original’ ou uma ‘singularidade’ aos objetos da diferença – sexual ou racial” (ibid.), o
64 A isso se vincula o que Pêcheux (2008, p. 30) designa como “técnicas de gestão social dos indivíduos”.
Para esse autor, ao lado da ocorrência de um número de técnicas materiais que serviriam para produzir
transformações “físicas ou biofísicas” que visassem tirar partido dos processos naturais, ao
instrumentalizá-los para usufruto, haveria a “multiplicidade das ‘técnicas’ de gestão social dos indivíduos:
marcá-los, identificá-los,classificá-los, compará-los, colocá-los em ordem, em colunas, em tabelas, reuni-
los e separá-los segundo critérios definidos, a fim de colocá-los no trabalho, a fim de instruí-los, de fazê-
los sonhar ou delirar, de protegê-los e de vigiá-los, de leva-los à guerra e de lhes fazer filhos...” (ibid.).
94
que classifico como a presença de uma contradição em relação ao papel do Estado. O
discurso colonial, como articulação, realiza um papel fundamental ao estabelecer uma
ligação de “uma série de diferenças e discriminações que embasam as práticas
discursivas e políticas de hierarquização racial e cultural” (ibid.), o que gera uma
administração que, segundo Bhabha (ibid., p. 107), exige “um cálculo específico e
estratégico de seus efeitos”.
Como aparato de poder, conforme Bhabha (ibid.), o discurso colonial é
dependente de uma “fixidez” para construir ideologicamente a alteridade entre os
sujeitos. Essa fixidez, de acordo com o autor, para dar conta das diferentes contradições
da colonialidade, “como signo da diferença cultural/histórica/racial no discurso do
colonialismo, é um modo de representação paradoxal: conota rigidez e ordem imutável
como também desordem, degeneração e repetição demoníaca” (ibid., p. 105). Para
corresponder ao funcionamento do discurso colonial, essa fixidez possui como principal
estratégia discursiva o estereótipo, que Bhabha define como “uma forma de
conhecimento e identificação que vacila entre o que está sempre ‘no lugar’, já
conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido” (ibid.). Para esse autor
É esse processo de ambivalência, central para o estereótipo
[colonial] (...) [que dá a ele] sua validade: (...) garante sua
repetibilidade em conjunturas históricas e discursivas mutantes;
embasa suas estratégias de individuação e marginalização;
produz aquele efeito de verdade probabilística e predictabilidade
que, para o estereótipo, deve sempre estar em excesso do que
pode ser provado empiricamente ou explicado logicamente”
(ibid., p. 105-106).
Diante do funcionamento desse discurso colonial, qualquer forma de
intervenção, segundo Bhabha (ibid.), não se realizaria em torno de um reconhecimento
de imagens que seriam positivas ou negativas, mas sim por meio de uma compreensão
“dos processos de subjetivação tornados passíveis (e plausíveis) através do discurso do
estereótipo” (ibid., p. 106). Segundo o autor,
Julgar a imagem estereotipada com base em uma normatividade
política prévia é descartá-la, não deslocá-la, o que só é possível
ao se lidar com sua eficácia, com o repertório de posições de
poder e resistência, dominação e dependência, que constrói o
sujeito da identificação colonial (tanto colonizador como
colonizado). (...) Para compreender a produtividade do poder
95
colonial é crucial construir o seu regime de verdade e não
submeter suas representações a um julgamento normatizante. Só
então torna-se possível compreender a ambivalência produtiva
do objeto do discurso colonial – aquela ‘alteridade’ que é ao
mesmo tempo um objeto de desejo e escárnio, uma articulação
da diferença contida dentro da fantasia da origem e da
identidade.
O funcionamento discursivo do discurso colonial como aparato de poder, para
Bhabha (ibid.), também se apoia no reconhecimento, dada a impossibilidade de
apagamento, e também no repúdio das diferenças raciais, culturais e históricas. Desse
modo, tal funcionamento cria “um espaço para ‘povos sujeitos’ através da produção de
conhecimentos em termos dos quais se exerce vigilância e se estimula uma forma
complexa de prazer/desprazer” (ibid., p. 111). Suas estratégias são legitimadas, segundo
o autor, por um funcionamento que produz conhecimentos tanto do colonizador quanto
do colonizado, conhecimentos que são estereotipados “mas avaliados antiteticamente”
(ibid.). No sistema político estabelecido na colônia, o discurso colonial tem, como
objetivo, “apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados com base
na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de
administração e instrução” (ibid.). Segundo meu ponto de vista, isso gerou um efeito de
pré-construído que permitiu, apesar das contradições e dos diferentes jogos de poder e
de “posicionalidades deslizantes de seus sujeitos (por exemplo, efeitos de classe,
gênero, ideologia, formações sociais diferentes, sistemas diversos de colonização, e
assim por diante)” (ibid.), a existência de uma forma de poder que, “ao delimitar uma
‘nação sujeita’, apropria, dirige e domina suas várias esferas de atividade” (ibid.). Esse
jogo é crucial para a manutenção das relações de poder e para a produção de uma
realidade social em que o colonizado é, ao mesmo tempo, “um ‘outro’ e ainda assim
inteiramente apreensível e visível” (ibid., p. 111). O discurso colonial, dessa forma,
96
“lembra uma forma de narrativa pela qual a produtividade e a circulação de sujeitos e
signos estão agregadas em uma totalidade reformada e reconhecível”, empregando um
sistema de representação tomado, segundo o autor (ibid.), como um regime de verdade.
Como exemplo do efeito do discurso colonial como aparato de poder, Bhabha
(ibid.) cita a reflexão que Edward Said65 realiza sobre os discursos europeus que
constituem o Oriente como uma zona homogênea, o que esse último autor denomina de
Orientalismo. O Orientalismo está estruturado por um feixe de discursos que são
elaborados por diversas estratégias, como a repetição, o emprego de tempos verbais
atemporais e o uso da cópula “é”. Conforme Bhabha (ibid., p. 112), Said considera que
“a cópula parece ser o ponto no qual o racionalismo ocidental preserva as fronteiras do
sentido para si próprio” (ibid., p. 112). Este fato, segundo o próprio Said, não impede a
existência de uma polaridade ou divisão nesses discursos que constituem o
Orientalismo: segundo observa Bhabha, por um lado, é “um tópico de aprendizado,
descoberta, prática”; por outro, “é um território de sonhos, imagens, fantasias, mitos,
obsessões e requisitos” (ibid.). Além disso, para Bhabha (ibid.) a partir de Said, o
Orientalismo
é um sistema estático de “essencialismo sincrônico”, um
conhecimento de “significantes de estabilidade” como o
lexicográfico e o enciclopédico. No entanto, esse território está
continuadamente sob ameaça por parte de formas diacrônicas de
história e narrativa, signos de instabilidade. E, finalmente, dá-se
a essa linha de pensamento uma forma análoga à da construção
do sonho quando Said se refere explicitamente a uma distinção
entre “uma positividade inconsciente”, que ele denomina
orientalismo latente, e a visões e saberes estabelecidos sobre o
Oriente que ele chama de orientalismo manifesto (ibid., p. 112).
O trabalho de Said, considerando o que expus em nota anterior a partir das
observações de Grigoletto (2002, p. 76), apresenta uma reflexão sobre a importância do
discurso na representação da alteridade nos processos de colonização. A partir da
65 SAID, E. Orientalism. London: Routledge & Kegan Paul, 1978. Para Grigoletto (2002), o trabalho de
Said apresenta “o orientalismo como uma categoria abrangente demais, à qual aparentemente todos os
discursos (político, filosófico, outros gêneros do discurso científico etc.) estariam subsumidos” (idem, p.
76). Para essa autora, a questão abordada por Said seria mais complexa, pelo fato de que “esses outros
discursos também construíram concepções sobre povos e culturas fora da Europa que exerceram
influência no projeto e discurso coloniais” (ibid.). Grigoletto considera, entretanto, a importância da
discussão do trabalho de Said pelo fato de que sua discussão ressalta “o papel crucial do discurso”.
97
releitura de Said, Bhabha (2007) considera que há um elo funcional entre a fixação do
fetiche e do estereótipo no discurso colonial. Para esse autor (ibid., p.116) há tanto uma
“justificativa estrutural como uma funcional para se ler o estereótipo racial do discurso
colonial em termos de fetichismo”. Assim, o fetichismo, termo que toma de Freud,
como a recusa da diferença, é o que a psicanálise considera como “a cena repetitiva em
torno do problema da castração”, ou seja, a questão da diferença que se estabelece entre
os sexos, a falta do falo como o reconhecimento da diferença sexual, sendo que esse
reconhecimento, segundo ele, “(...) é recusado pela fixação em um objeto que mascara
aquela diferença e restaura uma presença original” (ibid.).
O elo funcional entre a fixação do fetiche e o estereótipo, segundo Bhabha
(ibid., p.116), o que ele também define mediante a expressão “o estereótipo como
fetiche”, é uma questão mais relevante na reflexão sobre o discurso colonial pois
o fetichismo é sempre um “jogo” ou vacilação entre a afirmação
arcaica de totalidade/similaridade – em termos freudianos:
“Todos os homens têm pênis”; em nossos termos: “Todos os
homens têm a mesma pele/raça/cultura” – e a ansiedade
associada com a falta e a diferença – ainda, para Freud: “Alguns
não têm pênis”; para nós: “Alguns não têm a mesma
pele/raça/cultura”. Dentro do discurso, o fetiche representa o
jogo simultâneo entre a metáfora como substituição
(mascarando a ausência e a diferença) e a metonímia (que
registra contiguamente a falta percebida).
Nas regiões colonizadas do globo, tal elo foi constitutivo na construção de
identidades, o que deu base para a formação de alteridades relacionadas aos povos
originários e aos colonizadores. Para Bhabha (ibid.), o papel do fetiche e do estereótipo
na consideração sobre as identidades no mundo colonial é de fundamental importância,
pois dão “acesso a uma ‘identidade’ baseada tanto na dominação e no prazer quanto na
ansiedade e na defesa, pois é uma fonte de crença múltipla e contraditória em seu
reconhecimento da diferença e recusa da mesma”.
A cena do fetichismo é o espaço para a repetição e a reativação da fantasia
primária do desejo por uma origem pura, sem contradições, que eu não apenas
considero que funciona na esfera singular de cada sujeito, mas também na configuração
do espaço social comum desses sujeitos (ibid.). Entretanto, essa cena não deixa de ser
contraditória, pelo fato de que a originalidade ansiada é fantasiosa, “ameaçada pelas
98
diferenças de raça, cor e cultura” (ibid., p. 117), e soa como uma simplificação não por
ser uma “falsa representação de uma dada realidade” (ibid.), mas sim por ser “uma
forma presa, fixa, de representação que, ao negar o jogo da diferença (...) constitui um
problema para a representação do sujeito em significações de relações psíquicas e
sociais” (ibid.).
Sobre essas questões, a partir de Fanon66, Bhabha discute o posicionamento que
aquele autor faz sobre o sujeito no discurso estereotipado do colonialismo, e o usa como
argumento de suas considerações sobre o papel do estereótipo no discurso colonial. Sem
pretender retomar toda a discussão que esse autor realiza sobre a obra de Fanon,
considero interessante, como embasamento da discussão que estabeleço aqui sobre
cultura e sobre essa questão central do estereótipo no discurso colonial, a reflexão que
Bhabha (ibid.) toma, justamente a partir do trabalho desse autor, a respeito da negação
que ocorre sobre o reconhecimento da diferença, sendo que esta funciona a todo o
momento em situações em que o negro está submetido, tanto no corpo quanto no
imaginário:
As lendas, estórias, histórias e anedotas de uma cultura colonial
oferecem ao sujeito um “Ou/Ou” primordial. Ou ele está fixado
em uma consciência do corpo como uma atividade unicamente
negadora ou como um novo tipo de homem, uma nova espécie
(ibid. p. 117).
Para Bhabha (ibid.), a partir da discussão de Fanon, o que se nega ao sujeito
colonial, tanto como colonizador quanto como colonizado, é “aquela forma de negação”
que permitiria o reconhecimento da diferença, o que estabeleceria a “possibilidade de
diferença e circulação que liberaria o significante de pele/cultura das fixações da
tipologia racial e cultural, ou da degeneração” (ibid.). Para o negro, “sua raça se torna o
signo não-erradicável da diferença negativa nos discursos coloniais. Isto porque o
estereótipo impede a circulação e a articulação do significante de ‘raça’ a não ser em
sua fixidez enquanto racismo” (ibid.).
Nessa contradição na qual se instala o estereótipo, ao negar o jogo da diferença,
porém sem conseguir negá-lo de todo, constata-se que o estereótipo é um “modo retido,
fetichista de representação, dentro de seu campo de identificação”, o que leva Bhabha a
66 FANON, F. Black Skin, White Masks. London: Pluto Press, 1991.
99
relacionar tal funcionamento ao “esquema lacaniano do imaginário” (ibid., p. 119).
Como disse anteriormente neste trabalho, ao retomar o conceito de imaginário de Lacan
para elaborar o que ele denomina de “anatomia do discurso colonial”, Bhabha (ibid.)
considera que “as duas formas de identificação associadas com o imaginário”, isto é, o
“narcisismo” e a “agressividade”, são decorrentes da não correspondência da imagem
que o sujeito constrói de si mesmo com a imagem que é construída de si pelos outros.
Essa imagem é o que permite ao sujeito postular uma diferenciação sua frente aos outros
sujeitos e objetos do mundo. Para Bhabha (ibid.) o narcisismo e a agressividade, como
formas de identificação associadas com o imaginário, são o método dominante do poder
colonial exercido “em relação ao estereótipo que, como uma forma de crença múltipla e
contraditória, reconhece a diferença e simultaneamente a recusa ou mascara” (ibid.). A
realização da completude do estereótipo, segundo o autor (ibid.), ou seja, “sua imagem
enquanto identidade”, está “sempre ameaçada pela ‘falta’”.
No ato da recusa e da fixação, o sujeito colonial é remetido de
volta ao narcisismo do imaginário e sua identificação de um ego
ideal que é branco e inteiro. Isto porque o que essas cenas
primárias67 ilustram é que olhar/ouvir/ler como lugares de
subjetificação no discurso colonial são prova da importância do
imaginário visual e auditivo para as histórias das sociedades
(ibid., p. 118).
Cabe retomar a consideração que fiz sobre o estereótipo como efeito de pré-
construído (HENRY, 1990) no discurso colonial, cujo funcionamento discursivo é “uma
forma presa, fixa, de representação que, ao negar o jogo da diferença (que a negação do
Outro permite), constitui um problema para a representação do sujeito em significações
de relações psíquicas e sociais” (Bhabha, 2007, p. 117). Como havia dito anteriormente,
ao meu ver, essa consideração está diretamente relacionada aos efeitos de
homogeneização e aos processos de universalização constitutivos realizados pelos
Estados nacionais, na história.
O estereótipo também pode ser visto como aquela forma
particular, “fixada”, do sujeito colonial que facilita as relações
coloniais e estabelece uma forma discursiva de oposição racial e
67 Discutidas por Fanon em Peles Negras, Máscaras Brancas.
100
cultural em termos da qual é exercido o poder colonial (ibid., p.
121).
Creio que na operação que o Estado realiza ao objetificar uma cultura,
vinculando-a à ideia de nação, há uma memória discursiva constitutiva advinda desse
funcionamento específico de cultura, permeada pelo imaginário e baseada num
estereótipo que, ao interditar ao sujeito colonial, tanto como colonizador quanto
colonizado, “aquela forma de negação que dá acesso ao reconhecimento da diferença”
(ibid.), também permite a ele a construção de uma diferença, que por sua vez foi
constitutiva para as alteridades em jogo. Desta forma, há a evidência de uma unidade,
porém contraditória em si mesma.
Após essa discussão sobre o funcionamento do discurso colonial, passo a seguir
a discutir o dispositivo da colonialidade do poder de Quijano (2000). Antes de mais
nada, faço uma relação entre esse dispositivo e o funcionamento do discurso colonial
como aparato de poder pois considero que é base e também estrutura desse dispositivo,
pois este, por ser decorrente dos processos de colonização, produz, em seu
funcionamento, a colonialidade do saber e a diferença colonial (Mignolo, 2003a). As
clivagens decorrentes desse funcionamento legitimam e silenciam saberes e sentidos em
espaços que passaram por processos de colonização, determinantes na configuração do
que é tomado como cultura nesses lugares, discussão que será o eixo do próximo item
deste capítulo.
3.2. A colonialidade do poder
O processo histórico da formação dos países que hoje possuem o espanhol como
língua oficial na América Latina é decorrente de um processo em que as contradições
políticas partícipes dessa formação são geralmente silenciadas. Tais contradições – o
que remeto ao que Pêcheux (1990) designa como contradição histórica – não somente
são do âmbito político e do econômico, mas também estão diretamente relacionadas ao
âmbito do saber, posição que discuto a partir de alguns autores que mencionei
anteriormente.
Para tal, comparto da reflexão de Mignolo (2003a) de que as diferenças
econômicas e sociais entre os países convencionalmente chamados de ocidentais e os
101
demais países do globo, instauradas pelo imperialismo decorrente dos processos de
colonização, são fruto de acontecimentos da ordem da história que ainda estão em
curso. Realizarei algumas reflexões que permitam compreender aspectos da relação
identidade/cultura vinculadas a determinados saberes, clivados pela colonialidade do
poder (QUIJANO, 1992 e 2000)68 e pelas diferenças colonial e imperial (MIGNOLO,
2003a).
Conforme Mignolo (2003a), há uma lógica, ainda em funcionamento e surgida
ao longo dos processos de colonização, que serviu em seu início para justificar a
empreitada dessa tarefa pelos países ditos “civilizados”, o Norte, em oposição ao Sul,
dois termos usados aqui não como designações de localizações geográficas, mas como
metáforas em oposição para marcar uma polaridade, sendo o Sul uma metáfora utilizada
por Souza Santos69 (1998 apud Mignolo [ibid., p. 34]) para remeter aos lugares do globo
em que a exploração e a opressão foram impostas pelo Norte, na colonização; a partir do
Norte, em direção ao Sul, esse processo de colonização moldou saberes que hoje
embasam a modernidade e que estão fundamentados em quatro ideologias. Segundo
Mignolo (ibid.), o cristianismo e as ideologias seculares advindas da Revolução
Francesa: o conservadorismo, o liberalismo e o socialismo.
De minha perspectiva, o funcionamento discursivo dessas “ideologias” – tal
como as designa Mignolo (ibid.) –, que sustentaram discursos vinculados a saberes e
poderes impostos desde o Norte, silenciou (cf. ORLANDI, 2007) saberes (e sentidos)
presentes no Sul que estavam em circulação antes da chegada dos europeus. Desta
forma, neste último espaço, a colonização gerou um sistema, contraditório e clivado,
apoiado em duas bases que se convencionou em apresentá-las como separadas: a
modernidade e a colonialidade.
Essas ideologias, detectadas por Mignolo (2003a) como sendo fundamento da
modernidade e da colonialidade, constituíram saberes que hoje estão associados a
avanços científicos e econômicos, geralmente relacionados ao bem-estar social, e que
estão associados atualmente à modernidade, sendo esses saberes fortemente vinculados
ao sistema capitalista. Tais saberes advêm de práticas produzidas graças à existência de
68 A obra de 1992, como se observará posteriormente, será discutida a partir de Mignolo (2003a).
69 El norte, el sur y la utopía. In: De la mano de Alicia. Lo social y lo político en la postmodernidad.
Bogotá: Universidad de los Andes, 1998, pp. 369-454.
102
um capital decorrente da exploração econômica do Sul, acumulado durante séculos pelo
Norte ao longo da colonização, o que instala uma contradição histórica (Pêcheux, 1990)
no Sul, onde coexistem as benesses da modernidade e os problemas sociais e
econômicos advindos de diferentes colonizações. Em síntese, segundo Mignolo (ibid.),
desde o século XVI, a modernidade e a colonialidade vão juntas: “aunque los discursos
(…) pronunciados desde la perspectiva de la modernidad (…) presentan a la
colonialidad no como un fenómeno constitutivo sino derivativo” (ibid., p. 34). Para esse
autor, a modernidade nasceu como resultado dos processos coloniais levados a cabo
desde o século XVI e, portanto, necessita da colonialidade para “instalarse, construirse y
subsistir” (ibid., p: 35).
Em relação a esses temas, que são fundamentais na consideração dessas
questões, o termo que embasa a discussão empreendida por Mignolo foi cunhado por
Quijano (2000), colonialidade do poder; conforme o primeiro autor, este, como
dispositivo, é a força motriz que gera a diferença colonial e a diferença imperial,
conceitos que discuto a seguir.
A colonialidade do poder70, conforme Quijano (2000 apud MIGNOLO, ibid., p.
44-50), envolve categorias diversas que se estruturam em três diferentes conjuntos.
Antes de passar a abordá-las, considero necessário observar que tais categorias não
somente são decorrentes de processos de colonização no passado como também,
atualmente, estruturam novas formas de colonização. Se entre os séculos XVI e XVIII
ocorreu uma colonialidade baseada no imperialismo e na religião, que foi deslocando-se
aos poucos para uma colonialidade imperial (a partir do século XVIII até a segunda
metade do século XX, sob a égide de algumas nações), hoje temos um novo tipo de
colonialidade, a que Mignolo (2003a) denomina de global e que se baseia numa
“integração” entre todos os países. Castells (1999) denomina essa integração de
sociedade em rede, conforme apontei no capítulo 1, em cujo cerne a tecnologia da
informação funciona como o paradigma atual das contradições do capitalismo, o seu
novo rosto a partir do final do século XX, gerador de um funcionamento discursivo que
regula saberes e sentidos que se conhece popularmente como globalização.
70 QUIJANO, A. “Colonialidad del poder y Clasificación Social”. Journal World-Systems Research,
V1/2, pp. 342-386, 2000. Neste ponto opto por citar esse trabalho a partir da leitura feita por Mignolo
(2003a).
103
A formulação de Quijano (2000 apud MIGNOLO, ibid., p. 44-50) sobre a
colonialidade do poder contempla, como acabo de antecipar, três conjuntos de
categorias. São eles: raça, trabalho e gênero/sexualidade; exploração, dominação e
conflito no mundo moderno/colonial71; e o último, composto pelo trabalho,
gênero/sexualidade, a autoridade e a subjetividade na economia capitalista. Todos esses
conjuntos foram determinantes na constituição de um trabalho de homogeneização e de
regularização da memória ao impor um padrão tomado do modelo civilizatório europeu,
sendo que tal modelo também se reafirmou nesse processo numa relação de alteridade
com as categorias que existiam nos espaços que passaram por colonização – conforme a
discussão que apresentei no capítulo 2 acerca da reflexão de Eagleton (2011) sobre as
ressignificações do termo cultura, em específico, o da sinonímia com civilização, tão
relevante na conformação dos Estados nacionais. Conforme esse processo, constituído
na história, produziu um efeito de sentido de naturalização desses padrões, houve
movimentos que opuseram resistência à regularização desses sentidos numa clara não
identificação, como diria Pêcheux (2009), e que levaram ao reconhecimento de modos
de vida característicos, que – como também vimos no segundo capítulo – produziram a
dissociação entre cultura e civilização.
O conceito de colonialidade de poder e a reflexão realizada por Mignolo
(2003a), a partir de Quijano, sobre o processo “civilizatório” imposto às colônias coloca
um ponto de inflexão a ser considerado a partir da perspectiva da AD materialista.
Considero relevante dizer que tal conceito permite analisar a força das filiações, dentro
do funcionamento de uma memória vinculada aos saberes legitimados como
civilizatórios/civilizados, que permaneceram presentes, apesar do movimento de
resistência a tais saberes – conforme discuti a partir de Eagleton (2011) no capítulo 2 –
realizado a partir de um reconhecimento de formas de saber que escapavam ao conceito
“civilizatório”, ou mesmo ocidental, de cultura. Esse último movimento de não
71
Wallerstein (1974) apud Mignolo (2003a) nomeia de sistema/mundo moderno/colonial o sistema de
trocas econômicas baseado na acumulação do capital, decorrente das relações entre o capital e o trabalho.
Sua teoria sobre esse sistema nomeia a relação desigual entre diferentes agentes (os Estados-nação), que
em concorrência disputam o capital disponível. Segundo esse autor, tal sistema teve início com o
estabelecimento das trocas comerciais promovidas pela colonização a partir do século XVI, marco do
mundo moderno. Graças ao acúmulo de capital de alguns países, houve um desencadeamento de um
sistema de trocas comerciais que hoje é global, em que todos os países estão incorporados, porém em
posições desiguais – uns modernos, outros coloniais. A obra do autor citado por Mignolo é:
WALLERSTEIN, I. The modern world-system: capitalist agriculture and the origins of the european
world-economy in the sixteenth century. New York: Academic Press, 1974.
104
identificação com os sentidos da “civilização”, que passou pelo reconhecimento de
cultura como modos de vida característicos, trabalhou em oposição à padronização de
cultura como civilização, porém não contribuiu para fazer ruir a série de valores
culturais relacionados ao Ocidente. De todo modo, esse último movimento foi
determinante para a constituição de uma memória vinculada aos saberes locais. A
coexistência dessas duas filiações de memória instaurou uma contradição histórica (nos
termos de Pêcheux, 1990) – e que aqui relaciono ao conceito de colonialidade do poder
– que caracteriza o mundo moderno/colonial e é exemplo da força desses ideais
civilizatórios impostos pela colonização, com a prevalência da memória vinculada aos
saberes legitimados como civilizatórios/civilizados como padrão da colonialidade do
poder, sobretudo devido ao funcionamento do discurso colonial como aparato de poder,
conforme Bhabha (2007).
Após essas considerações iniciais sobre a colonialidade do poder, passo agora a
abordar os três conjuntos de categorias que esse dispositivo contempla, apresentando o
primeiro deles, composto pelas categorias de raça, trabalho e gênero/sexualidade,
conforme Mignolo (2003a). Esta última, a de gênero/sexualidade, segundo o autor, é a
mais antiga delas; tomada do relato bíblico das histórias de Adão e Eva e de Noé, que
estruturou, na civilização ocidental, a relação desigual entre os gêneros masculino e
feminino e o modelo patriarcal de família. O mito do dilúvio e o povoamento dos
continentes pelos descendentes dos filhos de Noé serviram, desde a Europa e pela
perspectiva do cristianismo ocidental – que naquele momento acreditava que o mundo
estava dividido em três continentes (África, Ásia e Europa) –, como justificativa para
estruturá-lo geopoliticamente conforme o valor de cada um desses filhos. Dessa forma,
segundo Mignolo (ibid., p. 45), a África foi considerada uma terra amaldiçoada por ter
sido povoada por descendentes do filho mais depreciável de Noé, Caim, e validou-se a
posição da Europa como hegemônica por essa ser povoada pelos descendentes de Jafet,
sendo estes dotados de valores de expansão e visão de futuro. Esse mito, conforme
Mignolo (ibid.), também serviu como base para a categoria de raça, que foi construída
desde o olhar de pensadores que viveram, diretamente ou indiretamente, a experiência
colonial. Essa categoria, até o momento vigente, surgiu com a necessidade de distinguir
as pessoas com base na religião e em um primeiro momento foi estabelecida pelo
sangue e não pela pele. A “pureza do sangue” funcionou como “distinción y
categorización racial” (ibid., p. 46), e sobre esta se assentou a construção da Europa
105
moderna e que posteriormente foi substituída por índices como a cor da pele e as
características fenotípicas (QUIJANO, 2000, p. 353), que foram usadas como modo de
classificação de identidades superiores e inferiores. Segundo Quijano (ibid.), essa
mudança da categoria de raça, que começou na América Latina, foi mundialmente
imposto:
La población de todo el mundo fue clasificada, ante todo, en
identidades “raciales” y dividida entre los dominantes/superiores
“europeos” y los dominados/inferiores “no-europeos.” (…) Las
diferencias fenotípicas fueron usadas, definidas, como expresión
externa de las diferencias “raciales.” En un primer período,
principalmente el “color” de la piel y del cabello y la forma y el
color de los ojos. Más tarde, en los siglos XIX y XX, también
otros rasgos como la forma de la cara, el tamaño del cráneo, la
forma y el tamaño de la nariz. (…) El “color” de la piel fue
definido como la marca “racial” diferencial más significativa,
por más visible, entre los dominantes/superiores o “europeos,”
de un lado, y el conjunto de los dominados/inferiores “no-
europeos,” del otro lado. (…) De ese modo, se adjudicó a los
dominadores/superiores “europeos el atributo de “raza blanca” y
a todos los dominados/inferiores “no-europeos,” el atributo de
“razas de color.” La escalera de gradación entre el “blanco” de
la “raza blanca” y cada uno de los otros “colores” de la piel, fue
asumida como una gradación entre lo superior y lo inferior en la
clasificación social “racial”.
A partir dessa classificação social que Quijano (ibid.) registra, Mignolo (2003a)
afirma que categorias como a de mestiçagem e a de mulatagem, são invenções
modernas/coloniais nas quais se assentou a Europa moderna/colonial (ibid., p. 46). Essa,
presente apenas nas colônias durante o século XVI, hoje está no Velho Continente
devido aos fluxos migratórios constantes que ocorrem atualmente, o que já não permite
a diferenciação, segundo Mignolo, entre a Europa moderna e a Europa
moderna/colonial em seu próprio continente.
A categorização de raça também serviu como parâmetro para o trabalho, pela
“racialização”, segundo Mignolo (ibid.), de pessoas e de países. Conforme Quijano
(ibid., p. 352), essa racialização serviu como dispositivo de naturalização e como
justificativa das relações de exploração econômica do trabalho de pessoas e de
classificação de países como inferiores em relação ao Ocidente, o que embasou o
desenvolvimento (ou a modernidade) do qual os países do Norte usufruíram. Se no
106
século XVI “ciertos sectores del planeta necesitaban ser cristianizados” (MIGNOLO,
ibid., p. 46), a partir do século XVII esses setores necessitavam ser civilizados – pelas
relações de trabalho impostas pela colonização. Sobre a racialização, afirma Quijano
(ibid., p. 352):
La “racialización” de las relaciones de poder entre las nuevas
identidades sociales y geo-culturales, fue el sustento y la
referencia legitimatoria fundamental del carácter eurocentrado
del patrón de poder, material e intersubjetivo. Es decir, de su
colonialidad. Se convirtió, así, en el más específico de los
elementos del patrón mundial de poder capitalista eurocentrado
y colonial/moderno y pervadió cada una de las áreas de la
existencia social del patrón de poder mundial, eurocentrado,
colonial/moderno.
Descrito o primeiro conjunto categorial que sustenta a colonialidade do poder,
passo a abordar o segundo conjunto, composto pela tríade exploração, dominação e
conflito no mundo moderno/colonial, “cuya estrutura económica es el capitalismo”
(MIGNOLO, ibid., p. 47). Como eu disse anteriormente, Mignolo (ibid.) considera o
capitalismo e o mundo moderno/colonial como duas caras da mesma moeda, que impõe
relatos, legitima saberes e silencia outros, segundo esse autor, a partir da perspectiva de
somente uma dessas caras, a moderna. A relação entre saber e poder não é gratuita, pois
os centros de concentração de poder econômico foram também os de concentração de
capital intelectual, relação que contribuiu, conforme esse mesmo autor, ao
silenciamento de saberes produzidos em locais dominados e à imposição de saberes
produzidos desde localizações imperiais. A esse respeito, Mignolo (ibid., p. 47)
considera que mesmo relatos que foram realizados a favor dos explorados foram
contados a partir da perspectiva da metrópole e, como exemplo, cita os escritos de
Bartolomé de Las Casas72 a favor dos índios.
72 Bartolomé de las Casas (1474-1566) foi um religioso e cronista espanhol e grande parte de sua obra
atuou como defensor dos indígenas no processo de conquista do território do Novo Mundo pela Espanha,
no início do século XV.
107
No que diz respeito a esse segundo conjunto, de minha perspectiva, o que afirma
Mignolo (ibid.) acerca da releitura que Dussel73 realizou, a partir de Marx, sobre a
categoria de dependência vem complementar a reflexão de Quijano (2000), em relação
às categorias de exploração e de dominação. Para Dussel, segundo Mignolo (2003a, p.
47-48), há uma distinção entre exploração, denominação que utiliza para explicar as
relações laborais entre o capitalista e o trabalhador, e dominação, que consiste nas
relações de dependência entre as burguesias metropolitanas (onde se acumula o capital e
o saber) e as burguesias periféricas – relações que estruturam a colonialidade do poder.
Se, para Mignolo (ibid.), Dussel restringe o conceito de exploração e de
dominação a esses lugares, Quijano (2000 apud Mignolo, ibid.) amplia a influência das
categorias desse segundo conjunto em relação aos quatro domínios sociais nos quais as
relações de poder ocorrem: dois deles já apareceram neste trabalho, o domínio de
dominação e o de exploração. Em relação à dominação, Quijano (ibid. apud
MIGNOLO, ibid., p. 49) a considera como a condição básica do poder, ao se mostrar de
forma mais visível “en el control de la autoridad colectiva (el Estado) y en el control de
la subjetividad/intersubjetividad que se encarna en la idea de ‘raza’ y de conocimiento”.
Conforme esse paradigma, segundo Mignolo (ibid.), raça é uma categoria epistêmica de
controle de conhecimento e da intersubjetividade.
Em relação à exploração, Quijano (apud MIGNOLO, ibid., p. 49) considera essa
categoria como um modo de obter algo em benefício próprio, através da ação de
alguém, sem que haja retribuição ou co-participação, sendo o trabalho o âmbito central
dessa categoria, apesar de que a relação desigual entre os gêneros, mediada pela
sexualidade, é outro âmbito em que a exploração ocorre. A condição para que a
exploração ocorra, então, é a dominação, o que para Mignolo (ibid.) é válido afirmar
que “mientras toda explotación es dominación, no toda dominación se concreta en la
explotación”, afirmação que leva à reflexão de que o desmonte das relações de
dominação desmontariam também as relações de exploração.
Descrito o segundo conjunto de categorias que embasa a colonialidade do poder,
descrevo a seguir o terceiro conjunto. Para Quijano (ibid. apud Mignolo, ibid.) esse
terceiro conjunto é composto por distintos âmbitos sociais nos quais se estrutura a
colonialidade do poder na economia capitalista e, conforme Mignolo, também no
73 DUSSEL, E. Towards an Unknown Marx. A commentary on the Manuscript of 1861-1863. Nova
Iorque, Routledge, 2001.
108
imaginário do mundo moderno/colonial. Esses âmbitos são o trabalho, o par
gênero/sexualidade, a autoridade e a subjetividade, que estão estruturados e inter-
relacionados, pois são conflitos, segundo o autor (ibid., p. 50), de dominação e
exploração “destinados al control del trabajo, del género/sexualidad, de la autoridad y
de la subjetividad en lo que atañe a sus recursos y a sus productos”. Para o estudioso:
(...) en el ámbito del trabajo, la explotación/dominación está
gobernada por la economía capitalista; la del género/sexo, por la
estructura de la ‘sagrada familia’ que revela la complicidad entre
capitalismo, cristianismo y familia burguesa. En el ámbito de la
autoridad, el control y los conflictos se generan en el orden del
Estado; y en cuanto al ámbito de la subjetividad, su control y sus
conflictos se materializan en el orden del conocimiento (ibid.).
A diferença colonial, a meu ver, expõe as contradições que surgem da imposição
da colonialidade do poder pelo sistema moderno/imperial, que se reproduz nos países
que passaram por processos de colonização pelo funcionamento do sistema
moderno/colonial. Para Mignolo (ibid., p. 39), a colonialidade do poder
es el dispositivo que produce y reproduce la diferencia colonial.
La diferencia colonial consiste en clasificar grupos de gentes o
poblaciones e identificarlos en sus faltas o excesos, lo cual
marca la diferencia y la inferioridad con respeto a quien
clasifica. La colonialidad del poder es, sobre todo, el lugar
epistémico de enunciación en el que se describe y se legitima el
poder. En este caso, el poder colonial.
A colonialidade é a cara oculta da modernidade, pois, como sistema, e em
estreita relação com o que Pêcheux (2008) denomina de “’técnicas’ de gestão social dos
indivíduos” (ibid., p. 30)74, na construção de uma “homogeneidade lógica” (de espaços
logicamente estabilizados que vão recobrindo um real) (ibid., p. 31-32), permitiu o
acúmulo do capital que sustentou modelos políticos e econômicos que embasaram a
modernidade, modelos que também foram impostos nas áreas exploradas como colônia
e que conformaram as instituições de poder dessas áreas, quando essas se tornaram
países independentes – a colonialidade do poder.
74 Que estão em direta relação com as técnicas materiais, conforme apontei anteriormente em nota de
rodapé.
109
Dessa forma, a colonialidade do poder também estabelece a diferença imperial
nas ex-colônias entre os setores que se vinculam ao poder, pois por ela se fixam os
índices de classificação que determinam os valores e os silenciamentos a favor de um
padrão, tomados de uma classe dominante, em relação aos demais setores da sociedade.
Segundo Mignolo (ibid., p. 39), a diferença imperial opera de modo semelhante à
diferença colonial, mas estabelece outros sentidos:
La diferencia imperial opera [de modo semelhante à diferença
colonial], pero al mismo tempo establece otras reglas del juego.
Los turcos son diferentes a los cristianos, y también lo son los
moros y los chinos. En este nivel, el de la diferencia imperial, la
colonialidad del poder sólo opera como mecanismo
clasificatorio a la espera (…) de que las condiciones cambien y
las condiciones de colonización sean propicias. [Bartolomé] de
las Casas contribuyó a establecer la diferencia imperial con el
Imperio otomano y el islámico (…) [y] sirvió, más que nada,
para afirmar la mismidad y la diferencia de la cristiandad. En
cambio, la diferencia colonial con los indios americanos fue
necesaria para justificar el proyecto expansivo de la cristiandad.
A colonialidade, dessa forma, se coloca como determinante na divisão
econômica e social entre os países que empreenderam a colonização e os que a sofreram
– divisão essa que estimula sentidos vinculados à diferença colonial, o que gera
diferenças em várias esferas de atividade humana, ou seja, como diz o próprio Mignolo
(ibid., p. 43): a “jerarquización de seres humanos en una escala que va de la barbarie a
la civilización” (ibid.). Entretanto, na configuração do que era civilizado e do que era
barbárie, estaria também o trabalho realizado pela diferença imperial que operaria, nos
países colonizados, como uma clivagem entre os sujeitos pertencentes a uma elite local,
reproduzindo internamente os sistemas e os índices que estão vinculados a uma elite
econômica mundial75, e os que estão fora dela.
75 Mignolo vai além na descrição dos efeitos provocados pela diferença imperial na configuração do
Ocidente, pois se em um primeiro momento ela serviu para distinguir os cristãos europeus dos praticantes
de outras religiões que viviam em regiões dotadas de uma certa civilização, posteriormente ela serviu para
estabelecer uma distinção entre os diferentes graus de desenvolvimento pelos quais a Europa passou, que
culminou na oposição, no século XVIII, entre a Europa do Norte, protestante e mais desenvolvida
economicamente, e a Europa do Sul, católica e mais pobre, diferença imperial que ainda produz sentido
na contemporânea União Europeia. Em relação ao contraste entre o Ocidente e o Oriente, principalmente
em relação a países como a China e a Rússia, que nunca foram colonizados, a diferença imperial atuou
em complementação com a diferença colonial, já que a primeira serviria para contrastar diferentes modos
110
Por esses processos, Mignolo (ibid.) considera que a colonialidade do poder
gerou clivagens cujos efeitos não se sentem somente no econômico, mas principalmente
na elaboração e propagação de saberes e de produtos culturais vinculados à ciência e à
indústria, saberes que hoje circulam tanto em lugares institucionais diversos como a
academia e a universidade, quanto em ambientes diretamente relacionados com a
economia de mercado, passando pela indústria cultural de massa.
Lembrando que a reflexão desenvolvida nesta pesquisa se relaciona fortemente
com o objetivo de fazer um agenciamento de conhecimento que possa dar subsídios ao
próprio campo dos Estudos de Linguagem, nos quais se reflete o ensino de línguas e, em
particular, o de espanhol, o que representa um impacto direto na formação dos
professores de línguas, considero que não há como ignorar a conformação de saberes e
de sentidos realizados pela colonialidade do poder. De minha perspectiva, ignorar essa
questão é também ignorar que “el colonialismo es la mala conciencia del imperialismo;
la colonialidad, el lado oscuro y necesario de la modernidad” (ibid., p. 30).
Após apresentar esta reflexão sobre o discurso colonial e a colonialidade do
poder, refletindo sobre seus papéis na constituição sobre a identidade e a cultura em
processos de subjetivação e de interpelação em contexto de colonização, realizo um
novo agenciamento de saberes produzidos no campo da Antropologia Cultural e da
Filosofia, para discutir a identidade na pós-modernidade, no item a seguir.
3.3. A identidade na pós-modernidade
As discussões realizadas até o momento me permitem realizar a vinculação dos
efeitos do discurso colonial como aparato de poder (BHABHA, 2007) a um
funcionamento discursivo relacionado às práticas determinadas pelas colonialidades do
poder e a do saber (MIGNOLO, 2003a e QUIJANO, 2000), práticas essas impostas,
como discutido neste capítulo, por diferentes processos de colonização realizados desde
o Norte no Sul. Essa relação atualmente estabelece, nesse espaço territorial conhecido
como América Latina, um ambiente de contradição histórica (Pêcheux, 1990) passível
de ser relacionado através da série composta pelos termos modernismo, modernidade e
de organização social e a segunda para classificar e hierarquizar pessoas por índices como “sus lenguas,
sus religiones, sus nacionales, su color de piel, su grado de inteligência” (ibid., p. 43).
111
modernização, discussão que aqui estabeleço conforme a reflexão empreendida por
García Canclini (1997) sobre eles. Se os termos dessa série se diferenciam, em sua
materialidade linguística, pela marca de sufixos que não conseguem determinar uma
grande diferenciação entre os mesmos, no funcionamento discursivo essa marca
materializa sentidos que os caracterizam como processos com uma regularidade própria
e às vezes contraditórios entre si.
Nesse sentido García Canclini (ibid., p. 23) considera que os três termos
implicam diretamente os efeitos decorrentes dos diferentes processos de colonização ao
longo da história que ocorrreram no espaço do sub-continente latino-americano. A
Modernidade e a Modernização, de acordo com esse autor, são traços econômicos
característicos de uma sociedade contemporânea que passou por um processo de
colonização no passado; e se a Modernidade – ou mesmo a Pós-Modernidade, como
consideram alguns teóricos – refere à caracterização atual das nações desenvolvidas,
com modos de vida facilitados pela tecnologia, pelos saberes oferecidos pela ciência em
todas as áreas de conhecimento e pelos grandes índices de indicadores sociais, a
Modernização é a sua ausência. A Modernização, segundo García Canclini (ibid.),
supõe a necessidade de transformar padrões sociais e econômicos para que uma
determinada sociedade possa resolver problemas relacionados à pobreza e às condições
mínimas de conforto, muito distantes do nível tecnológico e econômico das sociedades
ditas desenvolvidas deste século XXI.
Em países que passaram por processos de colonização, tanto a Modernidade
quanto a Modernização, conforme esse autor (ibid.), coexistem e constituem processos
inerentes às nações em desenvolvimento: o primeiro termo, caracteriza modos de vida
de classes sociais mais abastadas, e o segundo, a necessidade de mudança dos padrões
de vida das classes sociais mais baixas, para que essas possam inserir-se como
consumidores no processo de produção capitalista. Apesar desta contradição instaurada
nos países que passaram por colonizações, os movimentos culturais associados ao
Modernismo (e a arte produzidas por eles) sempre estiveram a par, ou mesmo em
posição de vanguarda, em relação aos saberes e às práticas culturais do universo do
cotidiano. Em relação a essa questão, e usando o sintagma Modernismo como
metonímia de arte, García Canclini (ibid., p. 23) discute a real necessidade de uma
valorização dos saberes vinculados à cultura como prática artística, principalmente
112
aqueles produzidos em regiões/sociedades desenvolvidas, promovidos e valorizados
desde lugares institucionais em lugares que devem lidar com problemas característicos
de uma configuração social sem Modernização, como a ausência de recursos básicos de
saúde e de educação. Tal contradição da Contemporaneidade – conclui o autor (ibid.) –
é gerada, principalmente, pelo fato de esses saberes vinculados à arte serem
mercantilizados e transformados em produtos de consumo pela indústria cultural, sem
considerar os processos culturais, históricos e sociais da elaboração desses artefatos, o
que faz com que, simplesmente, sejam consumidos como qualquer produto de uma
grande rede de varejo ou de comida fast-food. Vale pontuar que tal processo foi
abordado no capítulo 2 e que está diretamente relacionado com os sentidos da última
ressignificação de cultura de acordo com a interpretação de Eagleton (2011), o de
cultura como prática artística.
Considerando que a série de aspectos observados por García Canclini – que
interpreto vinculados ao funcionamento da contradição histórica (Pêcheux, 1990) –
constituem as condições de produção tanto dos discursos quanto das práticas
relacionadas à modernidade e à pós-modernidade, é necessário tê-las em consideração
ao discutir modos de interpelação de sujeitos na Contemporaneidade e os efeitos que
estes representam, em termos de “identidades”. Com relação a isso é importante dizer
sobre o processo de globalização em curso atualmente e como ele afeta a relação entre
cultura e identidades.
Sobre essa questão, Castells (1999) considera que na Contemporaneidade “a
sociedade em rede está fundamentada na disjunção sistêmica entre o local e o global
para a maioria dos indivíduos e grupos sociais” (ibid.), e nessas condições a sociedade
civil se desarticula e se encolhe, “pois não há mais continuidade entre a lógica da
criação de poder na rede global e a lógica de associação e representação em sociedades
e culturas específicas” (ibid., p. 27). Sobre esse funcionamento outros autores discutidos
nesta tese, como Eagleton (2011) e Bauman (2012), também refletiram sobre o
surgimento de identidades específicas, “comunais” segundo Castells (ibid.), o que
permitiu a legitimidade de diferentes identidades, num pluralismo que ressalta o local
no acirramento deste com o global (como o fundamentalismo religioso, o nacionalismo
dos países recém-independentes surgidos após a desintegração da União Soviética, as
identidades étnicas e as vinculadas às minorias). Conforme também discutido neste
trabalho, vinculo essa disjunção sistêmica citada por Castells (ibid.) entre o local e o
113
global à clivagem produzida, ao longo da história, pela colonialidade do poder e aos
mecanismos gerados por ela na sujeição dos sujeitos.
Sobre essa questão Rolnik (1997) considera que o papel exercido pela
globalização – que, como disse anteriormente, é o novo rosto da colonialidade imperial
– ao intensificar as misturas e pulverizar as identidades, também produz “kits de perfis-
padrão de acordo com cada órbita do mercado, para serem consumidos pelas
subjetividades, independentemente de contexto geográfico, nacional, cultural, etc”
(ibid., p. 19). Tal processo gera o desaparecimento, segundo a autora, de “identidades
locais fixas” que dão lugar a “identidades globalizadas flexíveis que mudam ao sabor
dos movimentos do mercado e com igual velocidade” (ibid.).
Entretanto, em relação a esse contexto, a existência dessas identidades não leva
ao “abandono da referência identitária” para o sujeito, pois a “representação de si”
funciona como um modo de organização das forças que constituem e desestabilizam as
subjetividades, segundo a autora (ibid.). Para Rolnik (ibid.), frente a essas forças, “as
subjetividades tendem a insistir em sua figura moderna, ignorando as forças que as
constituem e as desestabilizam por todos os lados”, para organizar-se em torno “de uma
representação de si dada a priori, mesmo que, na atualidade, não seja sempre a mesma
esta representação”. Segundo a autora, a insistência para uma referência identitária para
o sujeito, em meio a tantos sentidos colocados em jogo pela globalização atualmente,
ocorrem nas subjetividades através de dois processos que correspondem a destinos
opostos “em meio ao terremoto que transforma irreversivelmente a paisagem subjetiva”.
De um lado, “o enrijecimento de identidades locais”; de outro, “a ameaça de
pulverização total de toda e qualquer identidade” (ibid., p. 21).
Sobre o fato de que atualmente, pelos processos de subjetivação observados por
Rolnik, as identidades sofram os impactos de uma pulverização, há o risco, creio eu, de
se estabelecerem culturas tão diversas como formas de vida, o que segundo Eagleton
(2011) seria uma radicalização de cultura como modo de vida característico. Para essa
autora, a pulverização de identidades e o enrijecimento das locais geram uma
polarização76
; num dos dois polos:
76 Isto tem a ver com cultura significada como formas de vida.
114
as ondas de reivindicação identitária das chamadas minorias
sexuais, étnicas, religiosas, nacionais, raciais, etc. Ser viciado
em identidade nestas condições é considerado politicamente
correto, pois se trataria de uma rebelião contra a globalização da
identidade. Movimentos coletivos deste tipo são sem dúvida
necessários para combater injustiças de que são vítimas tais
grupos; mas no plano da subjetividade trata-se aqui de um falso
problema (1997, p. 21).
Para a autora (ibid.) a interrogação principal no atual contexto é o fato de que a
polarização entre as identidades locais e as globais não é uma questão, tampouco entre
uma identidade em geral e uma identidade pulverizada. O jogo discursivo imposto pela
globalização, segundo ela, coloca algo mais pertinente: a questão de que a referência
identitária deve ser combatida, “não em nome da pulverização (o fascínio niilista pelo
caos), mas para dar lugar aos processos de singularização, de criação existencial,
movidos pelo vento dos acontecimentos” (ibid., p. 22). Ou seja, a reivindicação de
identidade “pode ter o sentido conservador de resistência a embarcar em tais processos”
(ibid.).
Em relação ao segundo polo referente à pulverização de identidades e o
enrijecimento de identidades locais, estaria a “assim chamada ‘síndrome do pânico’. Ela
acontece quando a desestabilização atual é levada a um tal ponto de exacerbação que se
ultrapassa um limiar de suportabilidade” (ibid.).
A questão da identidade na pós-modernidade, dado o intenso efeito de
homogeneização empreendido pela globalização, gera estratégias que visam tanto “a
volta às identidades locais, quanto as que visam a sustentação das identidades globais”
(ibid.), sendo que a globalização, ainda segundo a autora, tem como meta a
domesticação de forças. Rolnik acrescenta que essa tentativa “malogra
necessariamente”, o que eu considero como efeito da falha (Pêcheux, 2009) a que todo
processo de interpelação está sujeito. Porém, de acordo com a filósofa, não há como
desconsiderar o efeito dessas estratégias: “neutraliza-se a tensão contínua entre figura e
forças, despotencializa-se o poder disruptivo e criador desta tensão, brecam-se os
processos de subjetivação”, o que produz “a resistência ao contemporâneo” (ibid.),
aspecto que denota a força desse processo de interpelação empreendido pela
globalização.
115
Um enfrentamento a essa questão, segundo Rolnik (ibid.), seria fruir da “riqueza
da atualidade”, o que “depende das subjetividades enfrentarem os vazios de sentido
provocados pelas dissoluções das figuras em que se reconhecem a cada momento”
(ibid.). Esse enfrentamento geraria o investimento “da rica densidade de universos” que
povoam as subjetividades, “de modo a pensar o impensável e inventar possibilidades de
vida” (ibid.).
Terminada essa discussão, cabe traçar algumas considerações sobre o que foi
discutido neste capítulo. Nele realizei um movimento que nos coloca em melhores
condições para pensar na diversidade e na heterogeneidade cultural com as quais
trabalharei no capítulo 4, e que se relacionam diretamente com o que escapa aos
diversos processos de homogeneização instalados pelo processo civilizatório. Para tal,
nesse próximo capítulo, por amostragem, tentarei dar visibilidade a manifestações de
universos vinculados a identidades culturais objeto de exclusão e de deslegitimação no
funcionamento da contradição histórica que funda esse longo processo histórico do
espaço de enunciação que abordo quando penso especificamente na língua espanhola, e
que também são regulamente excluídas da reflexão desenvolvida no campo dos estudos
da linguagem, dos processos de formação de professores e, portanto, das práticas de
ensino/ aprendizagem de línguas.
A mobilização de saberes realizada neste capítulo permite compreender que, no
caso da língua espanhola, estamos diante de um espaço de enunciação no qual há uma
pluralidade de justaposições de técnicas materiais e de gestão social dos indivíduos,
vinculadas a memórias diferentes e a um trabalho de exclusão e inclusão que funciona
sobre a contradição historicamente instalada (Pêcheux, 1990). Essa série de técnicas,
como já foi dito, recobre o real mediante a instalação de espaços logicamente
estabilizados.
Isso me leva a recorrer a Celada (2002, p. 125-126), a partir da reflexão que
estabelece com Kusch77 (1953) e Morse78 (1990), quando esta autora analisa o trabalho
77 KUSCH, R. La seducción de la barbarie. Análisis herético de un continente mestizo. Buenos Aires:
Raigal, 1953.
116
realizado pelos materiais didáticos na amostragem de um real homogêneo. Segundo
Celada (ibid.), o que escapa à construção desse real homogêneo se vincula ao exótico,
ao “mundo do ‘natural’ ou ‘autóctone’”, como “um ‘furo’ ou como um defeito do real –
a expressão é de Pêcheux (cf. 1990b)79”. Para a autora, tal funcionamento se realiza
como um “resíduo anacrônico ou uma simples supervivência de interesse folclórico e
turístico” (ibid.), o que significa aquilo que escapa dos processos de civilização
vinculados ao Ocidente como algo que “irrompe sob a forma da dúvida, da sombra que
instala a própria linha e luz da razão” (ibid.). A autora conclui que “esses furos instáveis
e sombrios não representam nada mais do que o fardo determinista que a civilização
carrega nas costas e, em nosso caso aparecem, sobretudo, quando se trata de falar da
América Hispânica” (ibid.).
Neste capítulo trouxe à discussão elementos que funcionam como índices de que
opera um efeito de justaposição dessas técnicas e das práticas que a elas se vinculam,
nos espaços afetados pela colonialidade, e que foi se dando ao longo da formação do
Estado nacional, vinculado aos processos de colonização e, posteriormente, aos efeitos
da interpelação pelo Mercado. Resta de tudo isso uma complexa heterogeneidade; o que
farei, como acabei de antecipar, é puxar de alguns fios da memória para mobilizar, por
amostragem, recortes nos quais apareçam práticas, sentidos e sujeitos vinculados a
identidades culturais outras – sem reafirmar a presença apenas daquelas que, por
regularidades, já funcionam como estereótipos e como modelos a serem atingidos, como
o “branco, o limpo, o bonito” – e que serão mobilizadas, um pouco e por amostragem,
no que será discutido no capítulo 4.
78 MORSE, R. A linguagem na América. In.: _____. A volta de McLuhanaíma. Cinco estudos solenes e
uma brincadeira séria. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 23-86.
79 Nesta tese, Pêcheux, 2008.
117
Capítulo 4:
Lineamentos para discussão de cultura em práticas de ensino
de línguas
Como já foi anunciado, neste último capítulo mobilizo a discussão teórica
realizada nos capítulos prévios para elaborar lineamentos que discutam questões
relativas a cultura, visando a interlocução no campo de formação de professores de
língua estrangeira, especificamente de espanhol para brasileiros. Mediante a realização
desse trabalho, tenho como objetivo apresentar caminhos, apoiados em reflexões, que
visam oferecer resistência a formas de trabalhar sobre cultura, formas essas que estão
instaladas, de alguma maneira, em certos saberes estereotipados e estabilizados sobre o
outro e sobre a língua, esses atravessados pela colonialidade do poder e a do saber, nas
práticas relacionadas ao ensino de língua estrangeira, conforme discuti no capítulo 1. Na
elaboração de tais lineamentos também tenho como propósito ver como cultura
funciona em diversos textos. Para tal mobilizarei textos da esfera literária, pois
considero que as condições de produção específicas desse gênero, como expliquei
anteriormente nesta tese, constituem uma materialidade discursiva propícia para esse
trabalho.
Há de se ressaltar, de fato, que a literatura apresenta práticas discursivas que não
estão totalmente ausentes em gêneros de outras esferas, o que possibilitaria elaborar
lineamentos a partir de qualquer materialidade discursiva. Entretanto, ao alçar textos
dessa esfera como objeto de discussão de lineamentos para discussão de cultura, realizo
um movimento de ressignificação da literatura e de reivindicação de seu espaço em
práticas de ensino/aprendizagem de língua estrangeira. Tal esfera geralmente é
negligenciada na elaboração de práticas de livros didáticos de ensino de línguas, apesar
de que ultimamente alguns gestos de inclusão já têm sido realizados em relação a ela.
Neste capítulo abordo, então, textos da esfera literária como materialidade
discursiva, analisando-os como processos enunciativos e discursivos, configurados e
constituídos historicamente pela relação dinâmica estabelecida entre sua forma e os
processos históricos e as práticas sociais que participam de suas condições de produção.
Dessa forma, esse gesto de interpretação me levará a realizar a elaboração de
118
lineamentos para colocar em funcionamento, como diria Pêcheux (1999), variados
textos.
A seguir traço algumas reflexões sobre o recorte de gênero que realizei na esfera
da literatura para este trabalho, a partir de Mignolo (2003a), em relação à discussão que
esse autor estabelece entre literatura canônica e não canônica, e também sobre as
observações que realiza ao formular o conceito de pensamento fronteiriço, elaborado
por ele para a reflexão de saberes atravessados pelas colonialidade do poder e do saber
em países que passaram por processos de colonização.
4.1. O pensamento fronteiriço como gesto de interpretação
Retomo aqui a discussão que realizei no capítulo 180
a partir de formulações de
Mignolo (2003a) ao estabelecer a prática literária como reflexão. Antes de partir para o
estudo desse autor, ressalvo que, ao propor a literatura como materialidade discursiva
para trabalhar com cultura, não deixo de recorrer a uma construção ideológica, de forte
recorrência que associa literatura a um lugar de saber. Entretanto, no trabalho que aqui
realizo, há um forte gesto político e acadêmico por trás dessa decisão. Tal gesto é
motivado, sobretudo, a partir do que Mignolo (ibid.) considera sobre a prática literária
como reflexão, ao estabelecer uma diferença entre a literatura não canônica e a
canônica, e a relação desse primeiro grupo com as culturas acadêmicas. Para Mignolo
(ibid.) temas que são comumente silenciados pela literatura canônica são legitimados
pela literatura não canônica. Conforme dito anteriormente neste trabalho, tenho minha
discordância com esta posição específica de Mignolo (2003a)81
. O que esse autor
coloca, ao meu ver, é a crítica em relação às práticas institucionais e tradicionais de
algumas áreas da academia.
80
Nesse capítulo expus algumas reflexões sobre o caráter específico da esfera literária como
materialidade discursiva para discussão de aspectos relacionados às possíveis formas de abordar o cultural
neles, as quais não retomo aqui por considerar que foi suficientemente debatida, desenvolvendo neste
item apenas as relacionadas especificamente com o pensamento fronteiriço.
81
Anteriormente, sobre esta questão, apontei minha discordância em relação a essa posição de Mignolo
(2003a) em relação à cultura acadêmica, pelo fato de a universidade, como lugar institucional e
acadêmico, permitir deslocamentos e transferências de sentidos que mobilizam conceitos e práticas
estabilizadas, como é o caso desta tese (conforme o trabalho específico que proponho e dentro do alcance
desta pesquisa de doutorado).
119
Com base nesta discordância apresentei a reflexão de Tatián (2012) sobre a
posição da universidade em relação ao seu papel crítico frente ao Mercado – e, por
conseguinte, a outros lugares institucionais. Para esse autor, uma universidade de cunho
democrático consegue manter “una importante dimensión conservacionista, capaz de
invocar contenidos antiguos en alianza con otros nuevos. (…) en la encrucijada crítica
de memoria e invención, radica quizá la mayor contribución democrática de la
universidad pública” (TATIÁN, 2012).Como toda instituição, a universidade também
possui lugares de forte cristalização em relação à produção de saber, muitos deles
vinculados ao Mercado, conforme os paradigmas a que Tatián (2012) faz referência.
Apesar disso, certas posições teóricas e acadêmicas fazem frente a lugares estabilizados
de produção de saber, entre elas a literatura.
Retomo, também, a importância da posição de Mignolo (2003a) em relação à
colonialidade do poder, dispositivo cuja força se faz presente nessas relações entre as
instituições e os sujeitos. Apesar desta relativização sobre a consideração desse autor
acerca da literatura canônica, não há como deixar de pontuar o trabalho de
“organização” realizado por instituições ou por sujeitos do conhecimento, do campo
acadêmico, identificados com sentidos estabilizados pelo Estado. Esse trabalho de
organização gerou um efeito de sentido que se materializou em regras que operam nas
culturas acadêmicas até hoje e que produziu uma diferença imperial ao colocar em lados
opostos a ciência e a literatura, e também uma diferença colonial, ao estabelecer o que é
literatura canônica, difundida pelas instituições e tomada como objeto de estudo na
escola, e o que escapa a ela como não canônica82
. Conforme considerações desse autor
(ibid.), a literatura canônica e a cultura acadêmica são processos a serviço de uma
construção imaginária de uma identidade nacional homogênea e livre de contradições83
.
Neste capítulo, ao realizar um recorte do corpus que servirá de base aos
lineamentos com textos do romance indigenista, me baseei, justamente, na reflexão de
Mignolo (ibid.) sobre o pensamento fronteiriço. Por esse conceito, segundo o autor,
emergiria uma consciência fronteiriça e mestiça, que trabalharia de igual modo esses
82
Os conceitos de diferença imperial e diferença colonial foram desenvolvidos em detalhe no capítulo 3.
83
Ressalto que volto a me distanciar da afirmação taxativa de Mignolo (2003a), provavelmente ligada a
questões da relação de forças no debate acadêmico desenvolvido nos Estados Unidos sobre a América
Latina. Mantenho as relações estabelecidas pelo autor respeitando a coerência ideológica de seu
pensamento.
120
discursos atravessados por relações de poder e pela colonialidade. Para Mignolo (ibid.),
haveria a necessidade de se criar um quadro – e que aqui nesta tese adoto como uma
linha de trabalho – em que a literatura não seja tomada como “objeto de estudio
(estético, lingüístico o sociológico), sino como producción del conocimiento teórico”,
nem “como ‘representación’ de algo, sociedad o ideas, sino como reflexión
específicamente propia sobre los problemas humanos e históricos” (ibid., p. 297)84
. A
ideia é mobilizar uma forma de abordar cultura pela materialidade dos textos literários,
para colocá-los em funcionamento (PÊCHEUX, 1999) conforme suas condições de
produção, mediante uma reflexão que leve em consideração esse conceito trabalhado
por Mignolo (ibid.).
Ou seja, esse gesto de interpretação que aqui realizo, baseado nas reflexões
sobre o pensamento fronteiriço de Mignolo (ibid.), pautará o trabalho que me proponho
realizar neste capítulo: mobilizar estruturas da língua espanhola (campos lexicais
específicos, formas de tratamento, expressões relacionadas com determinadas práticas,
dentre outras) analisando como no linguístico se materializam as relações de força. Com
base na reflexão desse autor realizada no capítulo 3 e que vem ao encontro de princípios
da AD de linha materialista que aqui assumo, creio que na relação entre literatura e
língua há a necessidade de que esta última seja considerada em termos de uma reflexão
que, conscientemente atravessada pelo político, reivindique e atenda
a las distintas formas en que las prácticas literarias se han
vinculado, en el sistema-mundo moderno/colonial, a la
colonialidad del poder en sus versiones colonial y nacional. La
lengua también implica la cuestión de la formación de cánones,
la forma en que se han entretejido los valores nacionales y
occidentales para producir mapas lingüísticos, geografías
históricas y panoramas culturales del sistema-mundo
moderno/colonial dentro de su lógica interna (conflictos
imperiales) así como en sus fronteras externas (conflictos con
“otras” culturas; la diferencia colonial) (MIGNOLO, 2003a, p.
297-298).
Descritas as bases da decisão de tomar a esfera literária como fundamento para
reflexão que pautará a elaboração dos lineamentos que apresentarei neste capítulo, passo
84
A observação do autor vem ao encontro do que, na AD, é possível pensar sobre a literatura.
121
a seguir à descrição, realizada a partir de Cozman (2005) e Cornejo Polar (2005) – além
de outros autores que este último mobiliza, como Mariátegui e Rama – sobre o romance
indigenista.
4.2. Delimitação do corpus – o romance indigenista
O romance indigenista, como gênero da esfera literária, ocorreu no Peru e teve
seu auge entre a primeira e a segunda metade do século XX, apesar de estar presente
durante toda a história literária peruana (CORNEJO POLAR, 2005). Segundo Cozman,
em prefácio à obra de Cornejo Polar (2005, p. 12) e tomando conceitos formulados por
este, o gênero literário conhecido como indigenista permite “articular una reflexión
acerca de la identidade nacional” (ibid.) a partir de algumas das obras que
caracterizaram essa escola literária, por evidenciar “un cruce de culturas, una lengua
híbrida y el processo de asimilación de componentes del pensar mítico en el ámbito de
la literatura ilustrada” (COZMAN, 2005, p. 12). Esta última, escrita em espanhol, se
utiliza de modelos tomados de gêneros europeus, como o romance. Com base nessa
afirmação, considero que a partir de características tomadas desse modelo ilustrado de
literatura, os romances indigenistas tratam das contradições e das questões culturais
inerentes ao processo de formação do Peru enquanto país, processo esse clivado por
saberes pautados pelo dispositivo instaurado pela colonização – a colonialidade do
poder.
Para Cozman (ibid., p. 13-14), Cornejo Polar considerava a literatura peruana
como não possuidora de unidade, mas de pluralidade “contrastante y conflictiva”
construída entre três sistemas literários: o da literatura ilustrada, composto por gêneros
literários copiados de modelos europeus (como o romance e a poesia); o das literaturas
aborígenes, um sistema híbrido entre oralidade e escrita; e o sistema da literatura
popular, em língua espanhola, onde há uma vinculação entre a oralidade e a música.
Segundo esse estudioso, Cornejo Polar considerava que esses sistemas estavam em
permanente correlação, sendo que cada um deles poderia assimilar elementos dos
demais sistemas. Dentro desse contexto, o romance indigenista, ademais de apresentar
uma hibridez em relação aos temas que tratava, também era híbrido em sua forma,
conforme essa pluralidade, segundo o gesto de escrita de cada autor.
122
Há de se considerar que, como qualquer materialidade discursiva, o romance
indigenista é contraditório. Entretanto, para mim, é justamente essa contradição que se
torna produtiva para a realização dos lineamentos que tenho como propósito formular
neste capítulo, pois expõe uma heterogeneidade que Cozman (ibid.) chama de hibridez.
Para este autor (ibid.), o romance indigenista é um “caso ejemplar de la hibridez de la
literatura latino-americana”: uma hibridez que proponho como uma contradição na
história (Pêcheux, 2009), pois o conceito de híbrido acarretaria uma mescla de
diferentes elementos em igualdade de condições, sem considerar lugares legitimados
(produzidos pela diferença na história) no jogo de relações de força. No entanto, ao
passar a pensar em contradição (constituída não no plano da lógica, mas no real da
história, como observa Pêcheux [ibid.]), esta me permite formular relações com a
estrutura e o agenciamento que a função-autor (ORLANDI, 1987) realiza do tema, e
com as identidades e os lugares institucionais – ou legitimados socialmente – que
circulam nesses romances.
Segundo Cozman (2005), essa contradição em relação ao modo como esse
gênero se materializa deve-se, primeiramente, a uma de suas principais fontes, o modelo
das crônicas de tradição espanhola, da época da Conquista. Essas crônicas (cf. ibid.)
tratavam de explicar a realidade das colônias através de comparações e da construção de
equivalências para que o leitor ocidental pudesse entender o Novo Mundo recém-
conquistado. Nesse gênero específico, o autor realiza um trabalho materialmente escrito,
mas cujo discurso é matizado com “la asimilación creativa de la oralidad”, comenta
Cozman, (ibid., p. 14). Para este, o indigenismo reúne, portanto, as principais
características da crônica; vejamos como caracteriza esta última:
La crónica es, en primer lugar, un discurso escrito que sigue las
convenciones de la época. Además, el cronista construye un
lector modelo occidental, vale decir, el receptor construido por
el texto es un lector español, a quien el cronista explica rasgos
del mundo prehispánico. El procedimiento es la famosa
explicación por semejanza. Por ejemplo, se explica la distancia
entre dos pueblos del Perú afirmando que es como la distancia
que hay entre Salamanca y Madrid. En otras palabras, tanto el
cronista (nos referimos a los cronistas españoles y mestizos, no
tanto a los indígenas) como el lector pertenecen
fundamentalmente al mundo occidental (COZMAN, 2005, p.
14).
123
Segundo o próprio Cozman (ibid.), entretanto, há outros fatores que contribuem
para a especificidade do romance indigenista: o fato de que, apesar do referente desse
romance corresponder ao mundo indígena, há matizes que o afastam desse mundo. O
romance indigenista é escrito em espanhol e não em uma língua indígena como o
quéchua ou o aimará; como gênero, é de estrutura ocidental e emprega o sistema
alfabético indo-europeu; o leitor projetado para a leitura, ainda segundo Cozman (ibid.)
é uma pessoa distante do universo indígena, e que não corresponde ao homem andino,
pois a interlocução com o leitor é materializada por estratégias narrativas fortemente
tomadas das crônicas espanholas do século XVI às quais acabei de referir. Entretanto,
para Cornejo Polar85
, (1980, apud COZMAN, ibid., p. 15), é o referente pertencente ao
universo índio o elemento que, “al escapar al orden occidentalizado que preside a los
otros, crea la heterogeneidad de la novela indigenista”. Ou, diria eu, estabelece
contradições com narrativas fortemente vinculadas à colonialidade do saber,
atravessadas pelos sentidos presentes no que Mignolo (2003a) denomina de pensamento
fronteiriço.
Ao meu ver, a colonialidade do poder instalou contradições que, segundo a
reflexão de Cornejo Polar (2005, p. 22) em relação ao debate sobre a sociedade peruana
que se realizou nos anos 60, materializou um universo dividido não somente no âmbito
social, mas também cultural. O Peru, com contradições econômicas inerentes a qualquer
sociedade capitalista, também apresenta um sistema econômico dualista que, conforme
o autor, abarca práticas econômicas capitalistas e práticas econômicas feudais – ou pré-
capitalistas (CORNEJO POLAR, 2005, p. 22), que estavam muito consolidadas no auge
da produção do romance indigenista. Certos setores, segundo Cornejo Polar (ibid.),
buscavam negar essa divisão dualista, mas, devido à força dessas contradições
econômicas, não deixavam de reconhecer “un polo hegemónico y otro dependiente” e
acrescenta: “al margen de que ambos, por certo, están sometidos a los intereses del
imperialismo” (ibid.).
Entretanto, segundo o mesmo autor (ibid.), apesar dessas diferentes
interpretações sobre a configuração social no Peru, havia um consenso sobre o papel
que as contradições instauradas pelo processo da colonização espanhola realizaram em
relação à cultura no espaço atualmente delimitado como Peru. Para ele, era possível
85
Antonio Cornejo Polar. Literatura y sociedad en el Perú: la novela indigenista. Lima: Lasontay, 1980.
p. 66.
124
distinguir “un sistema históricamente dependiente de la cultura impuesta a partir de la
Conquista y otro que responde, en consonancia con su propio desarrollo histórico, a las
culturas nativas” (íbid., p. 23). Sobre essa questão, o próprio Cornejo Polar (ibid.)
ressalva, já com posterioridade à formação do Estado nacional, que não se tratava de
uma separação entre uma cultura “ocidental e cristã” e outra “inca”, mas de uma
convivência, em um único espaço, de pelo menos duas culturas que se interpenetraram
sem chegar a fundirem-se (2005, p. 23). Sobre esse processo trago uma reflexão de
Arguedas86
citada por Cornejo Polar:
Al hablar de la supervivencia de la cultura antigua del Perú nos
referimos a la existencia actual de una cultura denominada india
que se ha mantenido, a través de los siglos, diferenciada de la
occidental. Esta cultura, a la que llamamos india porque no
existe ningún otro término que la nombre con la misma claridad,
es el resultado del largo proceso de evolución y cambio que ha
sufrido la antigua cultura peruana desde el tiempo en que recibió
el impacto de la invasión española.
La vitalidad de la cultura prehispánica ha quedado comprobada
en su capacidad de cambio, de asimilación de elementos ajenos.
La organización social y económica, la religión, el régimen de la
familia, las técnicas de fabricación y construcción de los
llamados elementos materiales de la cultura, de las artes; todo ha
cambiado desde los tiempos de la Conquista, pero ha
permanecido, a través de tantos cambios importantes, distinta a
la occidental (ARGUEDAS (1975) apud CORNEJO POLAR,
2005, p. 23).
Como gênero atravessado pela colonialidade do poder e do saber, ao ser escrito
em espanhol e projetar um leitor falante dessa língua, branco (ou pelo menos não
andino), conforme Cornejo Polar (ibid.), o indigenismo apresenta contradições que,
apesar de não se propor a retomar uma consciência que esse estudioso (ibid., p. 24)
denomina de pré-científica (ou seja, pré-colonial), a toma como base e elabora uma
“densa reflexión en la que hay tantos elementos de examen científico-social cuanto
factores de interpretación puramente ideológica” (ibid.). É necessário pontuar este
aspecto, pois considero que não é impedimento para a realização de um trabalho de
interpretação sobre textos desse gênero para discutir os efeitos da colonialidade do
poder e do saber sobre a sociedade peruana.
86
ARGUEDAS, J. M. El complejo cultural en Perú. In.: Formación de una cultura nacional
indoamericana. Seleção e prólogo de Ángel Rama. México: Siglo XXI, 1975. p. 1-2.
125
O indigenismo, conforme Cornejo Polar (ibid., p. 33-34), ao realizar uma
operação intelectual e artística, toma forma através de uma ação, de fatores adscritos à
cultura ocidental. Essa operação, de fato, se utiliza de “procedimientos, formas y
valores” que não são os mesmos que aparecem na cultura quéchua. Para o estudioso, o
indigenismo deve ser compreendido como “la movilización de los atributos de una
cultura para dar razón de otra distinta” (ibid., p. 34).
Em relação ao funcionamento discursivo do dispositivo narrativo desse gênero,
esse mesmo autor destaca ainda dois aspectos:
de un lado, la actualización de concepciones del mundo, global
o parcialmente presentes, en el sustrato primero de la
producción indigenista: a grandes rasgos, el mundo indígena es
interpretado bajo códigos que corresponden, inicialmente, a la
cosmovisión cristiana, y más tarde, a partir de finales del siglo
XIX, con criterios dependientes del positivismo y del marxismo.
De otro lado, en el campo específico de la literatura, la
revelación del mundo indígena se procesa mediante formas
adscritas al sistema literario del Occidente. Es claro que en
ambas dimensiones (…) la cultura quechua ofrece alternativas
sustancialmente diferentes (ibid., p. 34).
Segundo o autor (ibid., p. 26) estaria no cerne do indigenismo a reflexão de
Mariátegui (escritor cuja obra se inscreve nesse gênero87
), sobreposta a ideias que
ressaltavam o dualismo de duas culturas ou mesmo uma reivindicação de um autêntico
indigenismo, um lugar original que apagasse as contradições instaladas pela
colonização. Seria propósito desse gênero, pois, discutir outras questões anteriores, que
estão em conformidade com a discussão que Mignolo (2003) e Quijano (2000)
estabeleceram sobre a colonialidade do saber e do poder:
En el Perú el problema de la unidad es mucho más hondo,
porque no hay aquí que resolver una pluralidad de tradiciones
locales o regionales sino una dualidad de raza, de lengua y de
sentimiento, nacida de la invasión y conquista del Perú
autóctono por una raza extranjera que no ha podido fusionarse
87
José Carlos Mariátegui (Moquegua, Peru, 1894- Lima, Peru, 1930) é considerado um dos mais
importantes marxistas latino-americanos, cujo “marxismo herético tem profundas afinidades com alguns
dos grandes pensadores do marxismo ocidental: Gramsci, Lukács e Walter Benjamin” (LÖWY, M.,2011).
Sua obra teve influência em muitos dos escritores indigenistas do século XX.
126
con la raza indígena ni eliminarla ni absorberla
(MARIÁTEGUI88
(1963) apud CORNEJO POLAR, 2005, p.
26).
Além dessas questões, considero que a “relação entre línguas” num mesmo
espaço de enunciação (GUIMARÃES, 2002) também traz reflexões acerca das
contradições que os dispositivos da colonialidade do poder e do saber produzem no
romance indigenista. Sobre essa questão, segundo Cornejo Polar (ibid., p. 24) a
heterogeneidade cultural se instala no indigenismo pelo fato de que tal gênero literário é
escrito em língua espanhola, o que para ele implica numa dupla determinação, dada a
impossibilidade de atualizar, na literatura, tradições orais quéchuas. Essa dupla
determinação, conforme esse autor (ibid.), se realiza na implicação de que, nesse gênero
específico, toda “atividade indigenista” é materializada por uma operação de tradução,
que ocorre no plano da língua porque não se escreve em quéchua e porque essa
materialidade vai estar atravessada por antecipações imaginárias ao serviço de que o
outro, o leitor, possa interpretar os temas tratados, já que o destinatário do discurso
indigenista, conforme esse autor, “nunca es el índio89
” (ibid.). Para Cornejo Polar
(ibid.), o romance indigenista expõe a heterogeneidade cultural do Peru de forma mais
aguda – e também mais conflitiva – que sua heterogeneidade social90
. Segundo ele,
En efecto, si en el plano social puede encontrarse una cierta
asimilación de intereses, en el horizonte de la cultura la
convergencia adelgaza considerablemente. Adviértase que la
raíz mágica de la cultura quechua choca frontalmente contra el
racionalismo occidental, y que no parece haber, entre ambos
extremos, un margen suficiente de convivencialidad o
conciliación. A este respecto conviene recordar la exactitud de
la observación de José María Arguedas acerca de los múltiples
cambios sufridos por la cultura quechua bajo la influencia de la
cultura hispánica, y la persistencia como sistema diferencial –
pese a todos esos cambios – de la cultura nativa (CORNEJO
POLAR, 2005, p. 34-35) .
88
MARIÁTEGUI, J. C. Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana. 9ª ed. Lima: Amauta,
1963. 89
Sic no original.
90
Registro a consideração do estudioso, porém considero, a partir da AD, que essa separação entre ambas
heterogeneidades é impossível.
127
Em relação à obra de Arguedas e ao papel central que ela desempenhou no
paradigma do romance indigenista, é interessante considerar o que Andrade (2009)
discute sobre a relação existente entre a biografia desse autor e sua produção. Pelo fato
de ter sido um sujeito que viveu entre duas culturas, suas obras mobilizam sentidos que
foram fundamentais para sua formação enquanto sujeito e que são constitutivos da
relação de oposição que se estabelece nelas entre o branco e o índio. Considero isso
fundamental para traçar um vínculo entre o pensamento fronteiriço de Mignolo (2003a)
e a obra de Arguedas, ele próprio um sujeito fronteiriço entre dois mundos, o branco e o
ameríndio91
.
A obra de autores como Arguedas e Scorza, segundo Rama (2008), põe em
cheque o imaginário de uma unidade regional, baseada na visão de uma América Latina
de cultura única, imagem que se construiu desde fora desse sub-continente e que atuou
verticalmente sobre a diversidade e a heterogeneidade culturais que habitam esse
espaço. Esse efeito imaginário funcionou, conforme o autor (ibid., p. 70), não somente
como um efeito de uma unidade regional latino-americana durante muito tempo nesse
sub-continente, como também foi um fator de alteridade, ao funcionar como uma
diferenciação dessa região em relação às culturas externas (como a América anglo-saxã
e as referentes ao que Rama denomina de culturas progenitoras – Espanha e Portugal,
sobretudo). Entretanto, para o próprio estudioso, esses autores, em suas obras,
conseguiram manejar vertical e horizontalmente esse efeito imaginário de unidade ao
tratar da diversidade cultural e também social presentes na América Latina expondo
suas contradições, o que permite, segundo ele, “el análisis de una subcultura regional”
que reconstrói “con mayor rigor el funcionamiento de la sociedad” (ibid., p. 77-78).
Arguedas, segundo esse estudioso (ibid.), uniu em sua obra “la condición de etnólogo a
la de narrador”, o que lhe permitiu apresentar “un panorama completo, no solo de las
clases sociales de la sierra, sino de las formas culturales dentro de las cuales sus
criaturas narrativas se articulaban”. Apoiado nesta afirmação e em observações
realizadas pelo próprio Rama, creio que esse olhar etnográfico e ao mesmo tempo
literário de Arguedas lhe proporcionou a possibilidade de elaborar uma obra em que
91
No caso de Arguedas, se está diante de alguém que, enquanto etnógrafo, conforme citação de Rama
(2008) reflete sobre a condição do ameríndio na sociedade peruana e, como narrador, mobiliza uma
memória fortemente associada à sua biografia (um branco que viveu entre índios); no caso de Scorza se
está diante de um branco sensibilizado com questões sociais que afetam os ameríndios no espaço político
peruano.
128
discute “patrones de comportamientos [que] han sido internalizados, convalidados y
aceptados, de padres a hijos, durante generaciones”, enquanto etnógrafo, e expor,
enquanto literato, as contradições históricas e sociais de uma sociedade através de
conflitos, pois, “[s]ólo catástrofes, sólo la brusca inserción modernizadora, parecen
capaces de evidenciar a la conciencia las rígidas estratificaciones que sostienen el
edificio social regional” ( ibid.).
É necessário, também, pontuar uma diferença entre os termos indigenismo e
indianismo. O primeiro se refere a uma literatura, que segundo Cornejo Polar (ibid., p.
35), está diferenciada de forma real do universo indígena. Tal diferenciação deve-se ao
fato de que o indigenismo é uma expressão possível, dentre outras que poderiam ter sido
realizadas, a partir da reflexão aguda de uma contradição, decorrente de processos
históricos. Essa contradição, de base social e cultural, é decorrente ou de uma quebra
histórica entre o feudalismo e o capitalismo na configuração territorial peruana, que
gerou clivagens na sociedade que habita esse espaço (caso se parta de uma perspectiva
que valide essa configuração) ou de uma existência de dois pólos desigualmente
desenvolvidos de uma única estrutura capitalista instaurada pelo colonialismo (caso se
considere desde esta perspectiva). Se essa contradição, conforme Cornejo Polar (ibid.),
fosse resolvida em algum momento, o indigenismo perderia sua base de sustentação.
Segundo esse autor:
la nota definitoria es la heterogeneidad de los componentes que
forman el indigenismo, producto de una sociedad y una cultura
que movilizan sus recursos para revelar la índole de la otra
sociedad y la otra cultura con las que comparten
conflictivamente un solo espacio nacional. El indigenismo es un
movimiento pluricultural y plurisocial: en el plano literario
representa la manifestación más profunda del carácter no
orgánicamente nacional que Mariátegui percibió – lúcidamente
– en la literatura peruana (CORNEJO POLAR, ibid., p. 36).
Em relação ao segundo termo, o indianismo, seria um equívoco para Cornejo
Polar (idem, p. 39) tomá-lo como índice para considerar essas questões. esse termo seria
mais adequado ao considerá-lo como incorporação ao sistema estético e ideológico do
romantismo – ou seja, um indigenismo romântico (CORNEJO POLAR, 2005, p. 39).
Entretanto, teria sua vantagem, caso fosse usado para evitar “una periodización
absolutizada, con etapas que en verdad es imposible distinguir con rigor” ao longo de
129
toda a história literária peruana; pelo contrario, permitiria notar o indigenismo como
uma ampla e quase ininterrupta sequência, cuja origem está nas crônicas dos
conquistadores espanhóis do período colonial, “que se plasma diferencialmente de
acuerdo con las variantes que la historia general de la literatura peruana puede detectar
con relativa facilidad” (CORNEJO POLAR, ibid., p. 40). Conforme esse autor, o
indigenismo romântico, ou o indianismo,
es simplemente una etapa de un largo y accidentado proceso que
recorre, y en certo modo vertebra, el curso de la literatura
peruana. De esta manera la oposición entre indianismo e
indigenismo pierde importancia, sin desaparecer del todo por
supuesto, para permitir una comprensión más cabal de la
profundidad histórica del indigenismo (ibid., p. 40).
Neste ponto, afirmo que a escolha do romance indigenista foi motivada a partir
da série de considerações que apresentei até o momento. Entretanto, a visão de que há
duas culturas estanques constituídas na história, conforme se pode ler nas considerações
de Mariátegui e de Cornejo Polar, deve ser colocada em discussão. Conforme a reflexão
que venho realizando nesta tese em relação ao conceito de cultura, creio que esses
autores estariam sob um gesto de interpretação fortemente influenciado por movimentos
de estabilização e de homogeneização, apesar de problematizarem contradições sociais
e históricas sobre a sociedade peruana. Conforme entrevista ao escritor Degregori,
diversas culturas estão em relação nesse ambiente:
Al lado de la cultura criolla en el Perú conviven otros universos
culturales como el indígena y el andino. El primero lo integran
los sectores indígenas herederos de las numerosas etnias que
habitaron en el territorio peruano antes de la llegada de los
españoles y que todavía mantienen algunas lenguas propias
como el quechua y el aimara y decenas de lenguas amazónicas
aunque con pequeña cantidad de hablantes. Por cultura andina,
en cambio, se suele entender la que suma a las raíces culturales
indígenas muchos elementos de la cultura occidental (OLMOS,
CELADA, GASPARINI, 2015, p. 396).
Como lugar de interpretação, o romance indigenista me permite discutir
contradições que irrompem de sua materialidade, além de romper com sentidos e efeitos
de homogeneização decorrentes da colonialidade do poder e do saber. Nesse confronto
130
de saberes e de sentidos, me proponho a elaborar os lineamentos para discutir modos de
abordar cultura, por uma sintaxe específica que escapa aos efeitos da atual globalização
e que tem um impacto sobre o conceito de “cultura”: esta, apesar de também possuir
suas particularidades – e passível de ser discutida em outras materialidades discursivas
– está em alto processo de regularização, sem determinação, que produz uma
generalização cujo efeito de sentido é a falta do específico, do que é particular.
Nesse contexto, “a cultura” funciona como fortemente vinculada a lugares
estabilizados por um efeito de homogeneização e de vinculação a certas formas
específicas tomadas como genéricas, ademais de estarem fortemente associadas ao
mercado e a bens de consumo. Além disso, é abordada como “algo fora da língua”, tal
como observei no capítulo 1. Meu propósito, ao trabalhar com o romance indigenista –
e apesar das contradições já apontadas neste item com relação à sua materialidade – me
permite mobilizar saberes que, conforme o paradigma do pensamento fronteiriço
(MIGNOLO, 2003a), possam ser discutidos em relação à história, na relação entre o
global (ou o tomado como ocidental) e o local (o específico, o particular, no caso, o
indígena,), mediados pela colonialidade do poder e do saber.
Para a elaboração dos lineamentos elaborei um corpus, composto por trechos de
dois romances indigenistas: La tumba del relámpago (quinto cantar) (1979), de Manuel
Scorza92
, e Los ríos profundos (1958), de José Maria Arguedas93
. Como disse
anteriormente, pautará o trabalho de realização desses lineamentos a reflexão sobre
certos campos lexicais específicos, as formas de tratamento presentes nos textos
selecionados e expressões de determinadas práticas, colocados em relação na história,
analisando como as relações de força escapam aos processos de agenciamento das
contradições (conforme variados movimentos discutidos nos capítulos anteriores) e
como elas se materializam, de determinadas formas, no linguístico. Como forma de
organização, apresentarei o corpus dividido em dois grupos, um para cada uma das
obras relacionadas.
92
Manuel Scorza (Lima, 1928 – Madri, 1983) foi um poeta e romancista peruano.
93
José María Arguedas (Andahuaylas, 1911 – Lima, 1969) foi um escritor, poeta, tradutor, professor,
antropólogo e etnólogo peruano.
131
4.3. A produção de lineamentos
Para cada um dos livros que compõem o corpus que servirá de base à produção
de lineamentos ou orientações, selecionei diferentes capítulos para elaborar os
lineamentos que servirão de base para discussão de cultura, visando a interlocução no
campo de formação de professores. Em relação a Los ríos profundos (4.3.1.) selecionei
dois capítulos e em relação a La tumba del relámpago, três (4.3.2.).
Cada um dos capítulos desses livros será abordado separadamente (Texto 1 e
Texto 2) mediante a mobilização mediante mobilização de amostras, recortadas como
sequências discursivas (doravante SD), que serão numeradas. Cada SD foi tomada como
uma série de efeitos decorrentes de um gesto de interpretação que se constrói desde o
meu lugar de pesquisador brasileiro, através do cruzamento de variáveis históricas,
relativas com diversos efeitos de sentido e com práticas específicas, ou seja, com as
condições de interpretação decorrentes das condições produção desse texto, que serão
postos em relação com a mobilização teórica que realizei neste trabalho.
4.3.1. A partir de Los ríos profundos
Em Los ríos profundos, considerada uma obra importante de José María
Arguedas, Ernesto, personagem principal da trama, é um adolescente de 14 anos, tendo
somente o seu pai como família. Não há dados da época em que transcorre a narrativa,
porém, se levar em consideração que a obra é de cunho autobiográfico94
, provavelmente
ocorra na primeira metade do século XX. Como narrador em primeira pessoa, já adulto,
conta suas impressões sobre diversos fatos durante sua estadia num internato para
meninos em Abancay, cidade localizada ao sul dos Andes peruanos, onde é considerado
um forasteiro pelo fato de não ter nascido ali. Seu pai é um advogado de comunidades,
itinerante, que percorre cidades em busca de demandas junto aos índios e outras pessoas
de baixa renda; depois de não ter encontrado trabalho em Abancay e antes de partir para
outra cidade, matricula seu filho nesse colégio interno de padres, que reproduz, em sua
organização e estrutura, as contradições da sociedade peruana. A narrativa do livro
94 Há um desdobramento entre uma memória de etnógrafo e um gesto de autoria literária, como foi
antecipado a partir de Rama (2008).
132
refere a esse período de sua vida em que ficou internado nesse colégio, até o dia em que
seu pai o manda buscar.
Devido à profissão de seu pai, Ernesto conheceu diversas comunidades
ameríndias que viviam nos Andes e essa convivência foi a responsável por criar uma
grande afinidade com o modo de vida dos índios e, apesar de ser um deles, uma
“incompatibilidade” com o modo de vida dos brancos que habitam esse espaço.
Segundo Vargas Llosa, no prefácio dessa obra, podem ser estabelecidas algumas
relações com a biografia do próprio Arguedas que, filho de um juiz que exerceu a
profissão em várias cidades, antes de perder o cargo por motivos políticos e trabalhar
como advogado, também viveu em Abancay e estudou em um colégio interno quando
tinha a idade de Ernesto. O conhecimento que possuía de quéchua e sobre o modo de
vida dos índios deveu-se ao fato de que sofrera violência, quando criança, do filho de
sua madrasta e também dela, que obrigavam que ele convivesse grande parte do seu
tempo com os colonos indígenas que trabalhavam para o seu pai, conforme a biografia
presente ao final da edição de Los ríos profundos que aqui mobilizo.
Como já antecipei, abordarei separadamente os dois capítulos pinçados desse
livro: o capítulo II – Los viajes será o Texto 1 e o capítulo VII: El motín, o Texto 2. No
próximo item apresento, então, o Texto 1, mediante a mobilização das referidas SD’s
que darão sustento à elaboração de possíveis trilhas ou caminhos a serem seguidos para
a abordagem de cultura numa reconhecida relação com a materialidade da língua.
Texto 1 – Los viajes
No capítulo II de Los ríos profundos , “Los viajes”, o eu narrador relata as
viagens que fez na infância e no início da adolescência antes de chegar a Abancay,
cidade onde – como acabei de relatar – seu pai o matricula num colégio interno católico
para seguir viagem em busca de trabalho.
Passo, agora a abordar a série de SD’s recortadas.
SD.1.
Mi padre no pudo encontrar nunca dónde fijar su residencia; fue un abogado
de provincias, inestable y errante. Con él conocí más de doscientos
133
pueblos. Temía a los valles cálidos y sólo pasaba por ellos como viajero; se
quedaba a vivir algún tiempo en los pueblos de clima templado: Pampas,
Huaytará, Coracora, Puquio, Andahuaylas, Yauyos, Cangallo…
(ARGUEDAS, 1958, p. 19) (grifos meus).
Como discutido no primeiro capítulo desta tese, em práticas de ensino de línguas
estrangeiras muitos aspectos são abordados mediante generalizações que apagam o
específico e que não mostram o diverso. Dentre esses aspectos, estão as relações de
trabalho e, dentro desse universo, a série de identidades profissionais existentes. A
heterogeneidade de atividades profissionais (ligadas a diversos âmbitos: o comercial, o
industrial, etc.) é apagada e submetida a um processo de homogeneização de práticas
sociais que passa por lugares estabilizados, vinculados ao Mercado.
Na SD.1. temos uma amostra de como há possibilidades de abordar relações de
trabalho que não se encaixem nessa configuração. O trabalho de “advogado de
províncias” implicava ser advogado dos comuneros (índios que trabalhavam em
fazendas), pois esse profissional viajava de comunidade em comunidade angariando
demandas judiciais entre os índios que possuíam relações de trabalho em condições
análogas às da escravidão. Abordar essa relação de trabalho específica entre um
abogado comunero (como também era conhecido) e os índios é um modo de deslocar o
“lugar comum” em relação ao trabalho. Em relação à profissão de advogado, há o senso
comum de que seja uma profissão bem remunerada, devido ao status de que goza na
sociedade. Abordar essa profissão como algo “inestable y errante” é colocar em relação
as formas de trabalho e os lugares institucionais que permitem que uma profissão seja
valorizada95
. Na SD.1. o lugar do advogado em questão está deslocado a respeito de
sentidos que apresentam uma estabilidade lógica e que são altamente regulares em
discursividades predominantes no mundo contemporâneo; de fato, em seu trabalho esse
sujeito se relaciona com o específico funcionamento de uma formação social, em
condições marcadas historicamente.
A relação com o espaço também é possível de ser destacada: a oposição entre
lugares de clima “templado” e “cálido” e a ingerência que o clima pode exercer na vida
das pessoas.
95
Permite trabalhar na contramão de sentidos que promovem a figura do “sujeito bem sucedido”
(PAYER, 2005).
134
SD.2. Las grandes piedras detienen el agua de esos ríos pequeños; y se forman los
remansos, las cascadas, los remolinos, los vados. Los puentes de madera o
los puentes colgantes y las oroyas, se apoyan en ellas. En el sol, brillan. Es
difícil escalarlas porque casi siempre son compactas y pulidas. Pero desde
esas piedras se ve cómo se remonta el río, cómo aparece en los recodos,
cómo en sus aguas se refleja la montaña. Los hombres nadan para alcanzar
las grandes piedras, cortando el río, llegan a ellas y duermen allí. Porque de
ningún otro sitio se oye mejor el sonido del agua. En los ríos anchos y
grandes no todos llegan hasta las piedras. Sólo los nadadores, los audaces,
los héroes; los demás, los humildes y los niños se quedan; miran desde la
orilla, cómo los fuertes nadan en la corriente, donde el río es hondo,
cómo llegan hasta las piedras solitarias, cómo las escalan, con cuánto
trabajo, y luego se yerguen para contemplar la quebrada, para aspirar
la luz del río, el poder con que marcha y se interna en las regiones
desconocidas (ibid., p. 19) (grifos meus).
Na SD.2. a relação entre homem e natureza não é colocada em oposição, mas em
harmonia. Um dois fragmentos nos quais se materializa o que observo é: “Los hombres
nadan para alcanzar las grandes piedras, cortando el río, llegan a ellas y duermen allí.
Porque de ningún otro sitio se oye mejor el sonido del agua.”, sendo que a direção de
sentidos aí instalada vai culminar no fragmento que marcamos com letra em negrito.
Conforme visto no capítulo 2, a significação de cultura como civilização foi
baseada principalmente na oposição entre cultura e natureza, relação que posteriormente
foi aproximada na consideração de cultura como modo de vida característico. É
possível fazer uma analogia sobre a interação entre homem e natureza para discutir as
técnicas do homem que nela se apoiam, ou que pouco a modificam, em oposição a
outras técnicas que a modificam totalmente96
, pois aqui ela é base de apoio ao que é
artificial, construído pelo homem, como se pode ler no seguinte trecho: “Las grandes
piedras detienen el agua de esos ríos pequeños; y se forman los remansos, las cascadas,
los remolinos, los vados. Los puentes de madera o los puentes colgantes y las oroyas, se
apoyan en ellas”, pois o que é produzido pelo homem só é possível de existir ao apoiar-
se nas pedras, elemento da natureza. A SD.2. permite discutir relações entre homem e
natureza, técnicas e trabalho, práticas culturais que se relacionam com a preservação ou
a modificação da natureza.
96
Faço remissão ao “grande número de técnicas materiais (todas as que visam produzir transformações
físicas ou biofísicas)” de que fala Pêcheux (2008, p. 30), reflexão que discuti anteriormente no capítulo 3.
Tais técnicas, segundo o autor, visam obter um resultado que aproveite, da melhor forma possível, os
processos naturais, instrumentalizando-os.
135
Nesse sentido também é possível discutir a relação que García Canclini (1997, p.
23) estabelece entre modernidade e modernização, a qual discuti no capítulo 3 desta
tese: apesar de haver, no momento da ação da narrativa, técnicas materiais que
poderiam garantir a autonomia de construções em relação a obstáculos naturais,
características da modernidade, há a possibilidade de existir técnicas de construção de
meios artificiais de baixa complexidade, característicos de lugares que não passaram por
processos de modernização ou que não dominam técnicas decorrentes da modernidade.
Na SD.2. aparecem “pontes” e o que considero mais importante é ressaltar que estas
surgem porque o olhar do narrador repara nelas e as inclui na descrição ao passar os
olhos pela paisagem, na qual essas produções do homem (essas intervenções na
natureza) parecem estar integradas. Tais relações podem ser discutidas pelo viés da
colonialidade do saber –, na comparação entre as técnicas mais modernas de engenharia
e técnicas rudimentares de construção.
SD.3.
A mi padre le gustaba oír huaynos97
; no sabía cantar, bailaba mal, pero
recordaba a qué pueblo, a qué comunidad, a qué valle pertenecía tal o cual
canto. A los pocos días de haber llegado a un pueblo averiguaba quién era el
mejor arpista, el mejor tocador de charango, de violín y de guitarra. Los
llamaba, y pasaban en la casa toda una noche. En esos pueblos sólo los
indios tocan arpa y violín. Las casas que alquilaba mi padre eran las más
baratas de los barrios centrales. El piso era de tierra y las paredes de
adobe desnudo o enlucido con barro. Una lámpara de kerosene nos
alumbraba. Las habitaciones eran grandes; los músicos tocaban en una
esquina. Los arpistas indios tocan con los ojos cerrados. La voz del arpa
parecía brotar de la oscuridad que hay dentro de la caja; y el charango
formaba un torbellino que grababa en la memoria la letra y la música de los
cantos (ibid., p. 20) (grifos meus).
A SD.3. apresenta um ponto de reflexão sobre uma prática artística específica dos
Andes que se desenvolve ao redor do huayno, que ademais de implicar canto também
envolve dança e rituais próprios (são tocados certos instrumentos, sendo que alguns
deles somente os índios poderiam tocar; há huaynos específicos de cada região). Não há
menção, na SD em destaque, sobre detalhes que poderiam caracterizar a composição
huayno e sua interpretação de modo específico; entretanto a SD.3. permite discutir
97 Canción y baile popular de origen incaico – nota do autor (ARGUEDAS, 1958, p. 20).
136
aspectos de uma prática social que identifica determinada comunidade em forte relação
com os espaços: “a qué pueblo98
, a qué comunidad, a qué valle pertenecía tal o cual
canto”; também abordar os instrumentos musicais específicos que fazem parte dessa
prática (“arpa y violín”; “charango”) e as sensações provocadas ao ouvir um huayno:
observe-se que “a voz” desliza em metonímia e é atribuída à “arpa” no fragmento: “La
voz del arpa parecía brotar de la oscuridad que hay dentro de la caja; y el charango
formaba un torbellino que grababa en la memoria la letra y la música de los cantos”.
Ademais, rituais sociais relacionados a essa atividade são possíveis de serem discutidos,
quando o narrador observa que somente os índios poderiam tocar determinados
instrumentos99
.
Toda essa série de aspectos se entrelaça na SD.3. com os que se vinculam ao tipo
de moradia de Ernesto e seu pai, o que mobilizaria reflexões sobre a vivência em
lugares urbanos e rurais, dando sustento para discussões que vão na contramão de uma
tipologia de moradias descontextualizada ou estereotipada, como é de praxe nas
atividades de ensino de línguas sobre tipos de casa, em que se toma como modelo as de
estilo urbano, com os cômodos e móveis que “todos e qualquer um” poderiam ter. O
específico e o particular (mediante a inclusão do detalhe) entra em oposição ao que é
submetido a uma generalização ou é tomado como pertencente a “todo lugar” –
poderíamos dizer aqui: “globalizado” 100
.
Parece ficar claro que a apresentação de técnicas materiais e de objetos vinculados
a determinado espaço (ou espaços), ou a determinadas práticas sociais e culturais
constituem possíveis pontos de discussão sobre processos históricos e culturais a partir
da SD.3.
98
Cidade pequena, povoado.
99
A relação dessa questão com práticas musicais da realidade do aluno pode ser um contraponto ao
huayno, ou seja: uma discussão a partir de uma pesquisa sobre atividades musicais do contexto do aluno e
sua comparação com as práticas descritas pelo autor sobre o huayno, questão que poderia ser explorada
conforme a reflexão de Eagleton (2011) sobre cultura como prática artística, discutindo práticas culturais
artísticas vinculadas a determinados grupos étnicos e sociais e práticas mais legitimadas de arte, como as
vinculadas com a indústria cultural de massa, globalizada.
100
Conforme a reflexão de Revuz (1998) sobre “o estrangeiro reduzido ao mesmo”, quando a língua
estrangeira é reduzida a um código técnico. Um modo de se contrapor a isso é a postulação, por parte da
autora, de que aprender uma língua “é fazer a experiência de seu próprio estranhamento no mesmo
momento em que nos familiarizamos com o estranho da língua e da comunidade que a faz viver” (ibid., p.
229).
137
SD.4. Cierta vez llegamos a un pueblo cuyos vecinos principales odian a los
forasteros. El pueblo es grande y con pocos indios. Las faldas de los cerros
están cubiertas por extensos campos de linaza. Todo el valle parece
sembrado de lagunas. La flor azul de la linaza tiene el color de las aguas de
altura. Los campos de linaza parecen lagunas agitadas; y, según el poder del
viento, las ondas son menudas o extensas.
Cerca del pueblo, todos los caminos están orillados de árboles de capulí.
Eran unos árboles frondosos, altos, de tronco luminoso; los únicos árboles
frutales del valle. Los pájaros de pico duro, la tuya, el viuda-pisk’o, el
chihuaco, rodaban las huertas. Todos los niños del pueblo se lanzaban sobre
los árboles, en la tarde y al mediodía. Nadie que los haya visto podrá olvidar
la lucha de los niños de ese pueblo contra los pájaros. En los pueblos
trigueros, se arma a los niños con hondas y latas vacías; los niños caminan
por las sendas que cruzan los trigales; hacen tronar sus hondas, cantan y
agitan del badajo de las latas. Ruegan a los pájaros en sus canciones, les
avisan: ‘¡Está envenenado el trigo! ¡Idos, idos! ¡Volad, volad! Es del señor
cura. ¡Salid! ¡Buscad otros campos!’. En el pueblo del que hablo, todos los
niños estaban armados con hondas de jebe; cazaban a los pájaros como a
enemigos de guerra; reunían a los cadáveres a la salida de las huertas, en el
camino, y los contaban: veinte tuyas, cuarenta chihuacos, diez viuda pisk’os
(ibid., p. 20-21).
Na SD.4. a relação entre homem e natureza é um tema central, além de questões
relacionadas à alteridade. A primeira delas surge do estranhamento do eu narrador com
um determinado povoado e parece ter a ver com dois desconfortos: com o fato de ser
um forasteiro, o que não era aceitável para os moradores desse lugar: “Cierta vez
llegamos a un pueblo cuyos vecinos principales odian a los forasteiros”; e com a
modalidade da composição da população do lugar: “El pueblo es grande y con pocos
índios” pois, devido ao trabalho de seu pai, Ernesto tinha pouco contato com brancos,
apesar de também ser um deles. Essa relação de alteridade é um ponto passível de
discussão, pois denota uma divisão na construção de uma identidade nacional. Nessa
direção, vale a pena colocar o fragmento em relação com a consideração de Cornejo
Polar, sobre a heterogeneidade social peruana: “no parece haber, entre ambos extremos,
un margen suficiente de convivencialidad o conciliación” (2005, p. 34).
A partir dessa questão inicial, o narrador descreve a natureza do lugar –
novamente o destaque sobre o particular e o específico relacionado ao espaço,
movimento que desloca o desconforto inicial provocado pelas relações de alteridade em
jogo. Estas últimas têm mais a ver com o movimento de cultura como modo de vida
138
característico, conforme Eagleton (2011) o define, porém contraditório e sem laço com
o comunitarismo a que Bauman (2012) faz referência – conforme discussão que
apresentei no capítulo 2 sobre as significações de cultura na história –, pois aqui está
deslocado esse processo que recupera e valoriza uma identidade, local, particular e
próxima ao sujeito: Ernesto é branco, mais não se reconhece conforme uma identidade
comunitária branca específica desse povoado; se sente deslocado, pela relação de
alteridade que o constitui, por se tratar de um lugar com poucos índios. Na continuação
da SD.4., o eu narrador realiza um trabalho de descrição desse lugar, pautado sobretudo
por sua percepção de elementos que remetem à natureza – em contraste com a
urbanidade de um grande povoado.
Afetado por sua relação com os animais e as plantas, Ernesto estranha as atitudes
distintas com os animais, numa relação que poderia ser vinculada a uma oposição entre
civilização e natureza: apesar de mobilizar sensações e atitudes relacionadas à infância,
elas são opostas conforme as tradições e os costumes marcados por identidades e
culturas diferentes; essa oposição é marcada conforme o modo como as crianças dos
“pueblos trigueros” e do “pueblo (...) con pocos índios” tratam os animais.
Nesta SD. há uma questão de caráter linguístico, diretamente relacionada à
diversidade, conforme as instâncias da heterogeneidade linguística que discuti
anteriormente no capítulo 1, a partir de Serrani-Infante (1997a). Na SD.4. há
ocorrências verbais da segunda pessoa do plural, vosotros, “¡Idos, idos! ¡Volad, volad!
Es del señor cura. ¡Salid! ¡Buscad otros campos!” e que, segundo obras consultadas,
não ocorreriam no espaço da América de fala espanhola: segundo Carricaburo (1997) e
Fontanella de Weinberg (1993), haveria a neutralização da diferença entre “vosotros” e
“ustedes”, a favor da última forma, em situações de interlocução com a segunda pessoa
do plural. Isto nos leva a pensar na possibilidade de explorar a mobilização dessas
formas101
.
SD.5.
101
A ocorrência de formas verbais conjugadas na segunda pessoa do plural leva a pensar na possibilidade
de explorar a mobilização dessas formas de tratamento, conforme o paradigma de suas regularidades no
espaço americano ou das diferenças dessas regularidades na comparação com as que ocorrem no espaço
espanhol.
139
Un cerro alto y puntiagudo era el vigía del pueblo. En la cumbre estaba
clavada una cruz; la más grande y poderosa de cuantas he visto. En mayo la
bajaron al pueblo para que fuera bendecida. Una multitud de indios vinieron
de las comunidades del valle; y se reunieron con los pocos comuneros del
pueblo, al pie del cerro. Ya estaban borrachos, y cargaban odres llenos de
aguardiente. Luego escalaron el cerro, lanzando gritos, llorando.
Desclavaron la cruz y la bajaron en peso. Vinieron por las faldas erizadas y
peladas de la montaña y llegaron de noche.
Yo abandoné ese pueblo cuando los indios velaban su cruz en medio de la
plaza. Se habían reunido con sus mujeres, alumbrándose con lámparas y
pequeñas fogatas. Era pasada la medianoche. Clavé en las esquinas unos
carteles en que me despedía de los vecinos del pueblo, los maldecía. Salí a
pie, hacia Huancayo.
En ese pueblo quisieron matarnos de hambre; apostaron un celador en cada
esquina de nuestra casa para amenazar a los litigantes que iban al estudio de
mi padre; odiaban a los forasteros como a las bandas de langostas. Mi padre
viajaría en un camión, al amanecer; yo salí a pie en la noche. La cruz estaba
tendida en la plaza. Había poca música; la voz de unas cuantas arpas opacas
se perdía en la pampa. Los indios hacen bulla durante las vísperas, pero en
esa plaza estaban echados, hombres y mujeres; hablaban junto a la cruz, en
la sombra, como los sapos grandes que croan desde los pantanos.
Lejos de allí, ya en la cordillera, encontré otros pueblos que velaban su cruz.
Cantaban sin mucho ánimo. Pero estaban bien alumbrados; centenares de
velas iluminaban las paredes en las que habían reclinado las cruces.
Era un pueblo hostil que vive en la rabia, y la contagia. En la esquina de una
calle donde crecía yerba de romaza que escondía grillos y sapos, había una
tienda. Vivía allí una joven alta, de ojos azules. Varias noches fui a esa
esquina a cantar huaynos que jamás se habían oído en el pueblo. Desde el
abra podía ver la esquina; casi terminaba allí el pueblo. Fue un homenaje
desinteresado. Robaba maíz al comenzar la noche, cocinaba choclos con mi
padre en una olla de barro, la única de nuestra casa. Después de comer,
odiábamos al pueblo y planeábamos nuestra fuga. Al fin nos acostábamos;
pero yo me levantaba cuando mi padre empezaba a roncar.
(…)
Cuando salía en la noche, los sapos croaban a intervalos; su coro frío me
acompañaba varias cuadras. Llegaba a la esquina, y junto a la tienda de
aquella joven que parecía ser la única que no miraba con ojos severos a los
extraños, cantaba huaynos de Querobamba, de Lambrama, de Sañayca, de
Toraya, de Andahuaylas… de los pueblos más lejanos; cantos de las
quebradas profundas. Me desahogaba; vertía el desprecio amargo y el
odio con que en ese pueblo nos miraban, el fuego de mis viajes por las
grandes cordilleras, la imagen de tantos ríos, de los puentes que cuelgan
sobre el agua que corre desesperada, la luz resplandeciente y la sombra
de las nubes más altas y temibles. Luego regresaba a mi casa, despacio,
pensando con lucidez en el tiempo en que alcanzaría la edad y la
140
decisión necesarias para acercarme a una mujer hermosa; tanto más
bella si vivía en pueblos hostiles (ibid., p. 21-22) (grifos meus).
Ao abordar a SD.5., é possível afirmar que um dos temas passíveis de discussão é
o que se relaciona com as divisões sociais promovidas por algumas categorias que
estruturam a colonialidade do poder de Quijano (2000). A principal delas é o
cristianismo, que Quijano (ibid.) aponta como ideologia, além da categoria de raça,
categorias102
que instalaram clivagens sociais a partir da colonização. A contradição
decorrente desse processo pode ser lida na descrição que o eu narrador realiza na SD.5.:
é uma cena em que há uma procissão composta por comuneros (índios que trabalham
para os brancos) embriagados, vindos de outras comunidades, que se juntam aos poucos
que viviam no povoado em que ele se encontrava. A relação contraditória entre a
embriaguez alcoólica e o ritual religioso produz um sincretismo que se aproxima e, ao
mesmo tempo, se diferencia das práticas religiosas dos brancos, como em um transe
proporcionado pelo ritual e pelo álcool que se aproximaria de outras práticas religiosas
– porém deslocada, realizada de forma diferente, pois os rituais cristãos não fazem uso
do álcool: “Ya estaban borrachos, y cargaban odres llenos de aguardiente. Luego
escalaron el cerro, lanzando gritos, llorando. Desclavaron la cruz y la bajaron en peso”.
Há, nesse episódio, uma ordem da cultura (FERREIRA, 2011) atravessando a
organização instalada pelas técnicas materiais e, sobretudo, pelas de gestão social
(PÊCHEUX, 2008): no caso, afetando a estabilização de um ritual religioso.
A “relação de alteridade” que observei em SD.4. também está presente em SD.5.,
quando o eu narrador faz menção ao ódio desse povoado em relação aos forasteiros,
ódio que é característico das relações de poder instaladas pela história nesse espaço: “En
ese pueblo quisieron matarnos de hambre; apostaron un celador en cada esquina de
nuestra casa para amenazar a los litigantes que iban al estudio de mi padre; odiaban a
los forasteros como a las bandas de langostas”.
Essas relações são características de um espaço habitado por uma história, por um
jogo de tensões e de forças que se materializam nas relações entre os sujeitos. Os
litigantes a que Ernesto faz referência, conforme a característica do trabalho de seu pai,
provavelmente são índios; estes, submetidos a relações de forças instauradas pela
colonialidade do poder, são determinados por esse jogo em que se estabelecem as
102
Aqui voltam as “técnicas de gestão social dos indivíduos” das quais falei anteriormente (PÊCHEUX
2008, p. 30).
141
relações sociais, em oposição a um imaginário de uma sociedade homogênea sob a
tutela de um Estado, em que direitos e deveres seriam realizados a partir de um arquivo
jurídico em iguais condições, sobre o papel do Estado nos processos de interpelação dos
indivíduos103
.
Outras relações de alteridade também habitam esse espaço, na configuração das
relações sociais. Quando Ernesto relata seu interesse por uma “joven alta, de ojos
azules”, passa a frequentar o local onde são cantados huaynos nunca ouvidos naquele
lugar – o que marca sua diferença por uma prática artística que produz não somente uma
clivagem cultural (cantar huaynos) mas, ao mesmo tempo, uma posição identitária: um
branco conhecedor de práticas culturais andinas, que naquele espaço não somente marca
uma posição – huaynos nunca ouvidos naquele lugar –, mas também de cultura – uma
prática cultural dos índios – em relação à jovem branca, apesar de ele também ser
branco. Esse acontecimento (uma reunião em torno do cantar) aí narrado coloca em
questão os jogos de força que marcam a diferença e que habitam esse espaço,
constituídos na história, atravessando os corpos desses sujeitos, tal como penso que fica
registrado no fragmento marcado por mim em negrito.
SD.6.
De Cangallo seguimos viaje a Huamanga, por la pampa de los indios
morochucos. Jinetes de rostro europeo, cuatreros legendarios, los
morochucos son descendientes de los almagristas excomulgados que se
refugiaron en esa pampa fría, aparentemente inhospitalaria y estéril. Tocan
charango y wad’rapucu, raptan mujeres y vuelan en espera en caballos
pequeños que corren como vicuñas. El arriero que nos guiaba no cesó de
rezar mientras trotábamos en la pampa. Pero no vimos ninguna tropa de
morochucos en el camino. Cerca de Huamanga, cuando bajábamos
lentamente la cuesta, pasaron como diez de ellos; descendían cortando
camino, al galope. Apenas pude verles el rostro. Iban emponchados; una alta
bufanda les abrigaba el cuello; los largos ponchos caían sobre los costados
del caballo. Varios llevaban wad’rapucus a la espalda, unas trompetas de
cuerno ajustadas con anillos de plata. Muy abajo, cerca de un bosque
reluciente de molles, tocaron sus cornetas anunciando su llegada a la ciudad.
El canto de los wad’rapucus subía a las cumbres como un coro de toros
encelados e iracundos.
Nosotros seguimos viaje con una lentitud inagotable (ibid., p. 25).
103
Conforme discussão que mobilizei a partir de vários autores da AD: Haroche (1992), Payer (1993),
Gadet e Pêcheux (2004), Guimarães (2002) e Pêcheux (2009).
142
Na SD.6. aparece uma trama de questões históricas: os índios morochucos, povo
mestiço, (“jinetes de rostro europeo”), cuja principal atividade é a criação de gados, são
descendentes de europeus que participaram de várias lutas que dividiram os
conquistadores espanhóis no início da colonização do Peru e que perderam a batalha de
Chupas, em 1592, comandados por Almagro El Mozo, filho de Diego de Almagro, um
dos primeiros conquistadores espanhóis que ali chegaram. Almagro El Mozo era
também um mestiço, filho de Diego com uma índia, e ocupou o cargo de governador do
Peru em 1541, quando se rebelou contra a Coroa espanhola. Derrotados, os almagristas
se refugiaram no centro sul do território peruano e, segundo cronistas dessa época,
constituíram uma tribo com os índios que viviam nessa região. Esse dado histórico,
relatado como literatura, é um traço característico das crônicas espanholas sobre a
Conquista104
, artificio muito presente nos romances indigenistas – conforme a relação
que Cozman (2005, p. 14) estabelece entre o indigenismo e as primeiras crônicas
espanholas produzidas no Peru.
A remissão a fatos históricos na literatura, registrada na SD.6., também está
presente no relato sobre os índios morochucos e o temor que se tem deles: “Tocan
charango y wad’rapucu, raptan mujeres y vuelan en espera en caballos pequeños que
corren como vicuñas. El arriero que nos guiaba no cesó de rezar mientras trotábamos en
la pampa. Pero no vimos ninguna tropa de morochucos en el camino”. A descrição
continua através da caracterização de suas vestimentas: “Iban emponchados; una alta
bufanda les abrigaba el cuello; los largos ponchos caían sobre los costados del caballo”,
como marca de identidade e de diferenciação a respeito de outros grupos étnicos.
A descrição sobre esse povo não se realiza somente por esse índice, pois há
também menção a um artefato, descrito minuciosamente, destinado a práticas
específicas, o wad’rapucus, no fragmento: “Varios llevaban wad’rapucus a la espalda,
unas trompetas de cuerno ajustadas con anillos de plata”. Se em um primeiro momento
104
Para relatos deste tipo, há diversas obras como as seguintes:
DEL BUSTO DUTHURBURU, J. A. Diccionario Histórico Biográfico de los Conquistadores del Perú.
Tomo I. Lima: Editorial Arica, 1973.
_____. La pacificación del Perú. Lima: Librería Studium Editores, 1984.
DEL PINO, A. T. Enciclopedia Ilustrada del Perú. Tomo 1. Lima: PEISA, 2001.
GARCILASO DE LA VEGA, I. Historia general del Perú. Tomo I. Lima: Editorial Universo, 1972.
HUERTA, C.: Cronología de la Conquista de los Reinos del Perú: (1524 - 1572). Lima: Editorial
Independiente, 2013.
PRESCOTT, G.: Historia de la conquista del Perú. Tomo III. Lima: Editorial Universo, 1972.
VARGAS UGARTE, R.: Historia General del Perú. Tomo I. Lima: Editor Carlos Milla Batres, 1981.
143
da SD.6., esse instrumento se vincula a uma prática artística (“Tocan charango y
wad’rapucus”), há depois a menção de que ele também se vincula a rituais específicos
dessa tribo, que podem ser associados a um modo de proceder em sociedade ou a uma
prática artística: “Muy abajo, cerca de un bosque reluciente de molles, tocaron sus
cornetas anunciando su llegada a la ciudad. El canto de los wad’rapucus subía a las
cumbres como un coro de toros encelados e iracundos”. Esse relato apresenta uma
heterogeneidade apoiada em diversos temas: histórico, cultural e linguístico, que
funciona como um contraponto em relação ao relato de práticas genéricas de trabalho,
de sociedade e de vestimenta em aulas de língua estrangeira.
Texto 2 – El motín
O segundo texto tomado de Los ríos profundos corresponde ao capítulo VII – El
Motín. Já aluno do colégio interno de padres, Ernesto e os demais alunos são
surpreendidos por uma manifestação que acontece nos arredores do colégio, na cidade
de Abancay. Várias chicheras, pessoas que se dedicam a fabricar e a vender chicha,
uma bebida alcóolica feita de milho, que trabalhavam em chicherías (lugar onde se
vende chicha) da cidade, se revoltam com os preços definidos por uma salineira
(empresa que comercializava sal). A manifestação ganha ares de revolta, pois as
chicheras saqueiam os depósitos de sal e distribuem várias sacas desse produto dentre a
população mais pobre. No entremeio das ações, o padre da cidade, também diretor do
colégio, tenta mediar o conflito, mas não consegue impedir o saque e a distribuição de
sal. Após a invasão da salineira, as chicheras se dirigem ao bairro mais pobre da cidade,
onde vivem os índios comuneros, para distribuir sal entre essa população. Todos os
eventos são narrados de perto por Ernesto, quem observa e também participa do protesto
e da passeata até o bairro dos comuneros. Causa estranhamento a ele que estes,
fortemente vigiados por pessoas armadas que trabalham para os donos da terra onde
aqueles trabalham, não aceitem a oferta das chicheras em um primeiro momento, oferta
que depois é recebida por causa da insistência destas últimas. Quando estas vão embora,
os capatazes dos senhores de terra invadem as casas dos comuneros e tomam de volta o
sal que havia sido entregue pelas mulheres. A líder do movimento, Doña Filipa, torna-se
fugitiva da polícia e passa a ser perseguida pelo exército por ter liderado a revolta.
144
Após ter apresentado uma síntese do relato que acontece no capítulo que abordo,
passo a tratar as sequências retiradas dele.
SD.8.105
Las mujeres que ocupaban el atrio y la vereda ancha que corría frente al
templo, cargaban en la mano izquierda un voluminoso atado de piedras.
Desde el borde del parque pudimos ver a la mujer que hablaba en el arco de
entrada a la torre. No era posible avanzar más. En la vereda la multitud era
compacta. Sudaban las mujeres; los aretes de plata y de quintos de oro que
llevaban algunas, brillaban con el sol. La mujer que ocupaba el arco de la
torre era una chichera famosa; su cuerpo gordo cerraba completamente
el arco; su monillo azul, adornado de cintas de terciopelo y de piñes, era
de seda, y relucía. La cinta del sombrero brillaba, aun en la sombra;
era de raso y parecía en alto relieve sobre el albayalde blanquísimo del
sombrero recién pintado. La mujer tenía cara ancha, toda picada de
viruelas; su busto gordo, levantado como una trinchera, se movía; era
visible, desde lejos, su ritmo de fuelle, a causa de la respiración honda.
Hablaba en quechua. Las ces suavísimas, del dulce quechua de Abancay
sólo parecían ahora notas de contraste, especialmente escogidas, para que
fuera más duro el golpe de los sonidos guturales que alcanzaban a todas las
paredes de la plaza.
– ¡Mánan!¡ Kunankamallam suark’aku…! – decía.
(¡No! ¡Sólo hasta hoy robaron la sal! Hoy vamos a expulsar de Abancay a
todos los ladrones. ¡Gritad, mujeres; gritad fuerte; que lo oiga el mundo
entero! ¡Morirán los ladrones!)
– ¡Kunanmi suakuna wañunk’aku! (¡Hoy van a morir los ladrones!)
Cuando volvieron a repetir el grito, yo también lo coreé.
(…)
En ese instante llegó hasta nosotros un movimiento de la multitud, como un
oleaje. El Padre Director avanzaba entre las mujeres, escoltado por dos
frailes. Sus vestiduras blancas se destacaban entre los rebozos multicolores
de las mujeres. Le hacían campo y entraba con cierta rapidez. Llegó junto al
arco de la torre, frente a la chichera. Levantó el brazo derecho como para
bendecirla; luego le habló. No podíamos oír la voz del Padre; pero por la
expresión de la mujer comprendimos que le rogaba. Las mujeres guardaron
silencio; y, poco a poco, el silencio se extendió a toda la plaza. Podía
escucharse el caer del sol sobre el cuerpo de las mujeres, sobre las hojas
destrozadas de los lirios del parque… Oímos entonces las palabras del
Padre. Habló en quechua.
105
Lembro que a numeração das sequências continuará a iniciada na seção anterior.
145
–…No hija. No ofendas a Dios. Las autoridades no tienen la culpa. Yo te lo
digo en nombre de Dios.
– ¿Y quién ha vendido la sal para las vacas de las haciendas? ¿Las vacas son
antes que la gente, Padrecito Linares?
La pregunta de la chichera se escuchó claramente en el parque. La esquina
que formaban los muros de la torre y del templo servían como caja de
resonancia.
– ¡No me retes, hija! ¡Obedece a Dios!
– Dios castiga a los hombres, Padrecito Linares – dijo a voces la chichera, y
se inclinó ante el Padre. El Padre digo algo y la mujer lanzó un grito:
– ¡Maldita no, padrecito! ¡Maldición a los ladrones!
Agitó el brazo derecho, como si sacudiera una cuerda. Todas las campanas
se lanzaron a vuelo, tocando nuevamente a rebato.
– ¡Yastá! ¡Avanzo, avanzo! – gritó la chichera, en castellano (ibid., p. 73-
74) (grifos meus).
Na SD.8. a descrição da multidão que participava da manifestação e da chichera
que a comandava permite abordar elementos relacionados ao corpo e a modos de vestir
específicos. No plano das práticas de ensino de línguas estrangeiras, tais elementos,
mais uma vez, deslocam abordagens neutras e estereotipadas sobre o corpo e as
vestimentas, essas últimas associadas ao consumo e a uma homogenização estabilizada
pelo Mercado.
A multidão composta pelas chicheras também apresenta peculiaridades que aqui
vinculo ao gesto de especificação que me parece importante para trazer o plano da
alteridade, do que tem a ver com a cultura tal como tento compreendê-la: “Sudaban las
mujeres; los aretes de plata y de quintos de oro que llevaban algunas, brillaban con el
sol”. A maneira de vestir da líder, descrita em detalhes (no fragmento em negrito), com
um vocabulário específico de vestimentas e adereços, permite relacionar o corpo (fora
dos padrões de beleza, descrito em movimento, em ação, e marcado por uma história) e
os hábitos particulares com o lugar – com os modos de vida característicos: o corpo
aparece vinculado aos objetos produzidos por determinadas práticas filiadas a uma
memória; isso se materializa em fragmentos como “La cinta del sombrero brillaba, aun
146
en la sombra; era de raso y parecía en alto relieve sobre el albayalde blanquísimo del
sombrero recién pintado”. Nele aparecem as referências, em detalhe, de gestos
peculiares. O corpo da descrição assume o corpo do real: “su cuerpo gordo cerraba
completamente el arco”, “la mujer tenía cara ancha, toda picada de viruelas”, com um
toque de humor por parte de um narrador que se sente à vontade para fazer deslizar o
dizer e a língua: “su busto gordo, levantado como una trinchera, se movía; era visible,
desde lejos, su ritmo de fuelle, a causa de la respiración honda”.
Na SD.8. há a única observação de caráter linguístico, em relação ao quéchua,
no corpus que aqui recorto: “Hablaba en quechua. Las ces suavísimas, del dulce
quechua de Abancay sólo parecían ahora notas de contraste, especialmente escogidas,
para que fuera más duro el golpe de los sonidos guturales que alcanzaban a todas las
paredes de la plaza”. A descrição dos sons expõe traços que rompem com o imaginário
de uma homogeneidade linguística (“el dulce quechua de Abancay” – fazendo
referência ao agenciamento singular dessa língua) e funciona como uma marca de
identidade, da qual o eu narrador não compartia, pois Ernesto falava outra variante de
quéchua, e era forasteiro, conforme trechos da narrativa que aqui não reproduzo, o que
lhe permitia fazer tal observação. Esse traço linguístico não somente pontua que as
línguas são heterogêneas, como também funcionam como marca de identidade, afetando
não somente os sujeitos falantes, mas também aqueles que as escutam.
Ademais dessas questões, a SD.8. possibilita discutir a relação entre línguas em
um mesmo espaço de enunciação (GUIMARÃES, 2002); neste caso específico, entre o
espanhol e o quéchua. Não somente há a questão de que o texto de Los ríos profundos
está escrito em espanhol, o que decorre de uma questão da função-autor (ORLANDI,
1987) desse gênero, que se escreve nessa língua por questões históricas, como também
o autor se utiliza de comentários (em boca do narrador) para localizar o leitor que não é
falante de quéchua (“Hablaba en quechua”).
Em vista disto, o singular agenciamento do autor, ao transitar entre as duas
línguas, coloca a questão de que a língua em que escreve – a do colonizador – marca a
entrada do quéchua e sua tradução, ora realizada pelo narrador ora na nota, nesse
movimento entre a figura do etnógrafo e do autor de literatura que apontava Rama
(2008). As relações entre as línguas nesse espaço se materializam de diferentes modos:
um deles é que aparecem vinculadas a determinadas interlocuções. Vemos isso no
diálogo da chichera com o padre Linares, no qual ela – que fala em quéchua em outras
147
situações – o faz em espanhol com o padre. E vemos como essas línguas constituem
esses sujeitos e permeiam as diversas práticas que nesse espaço podem acontecer,
marcando inclusive em qual língua pode se enunciar.
Desde minha perspectiva, tais relações são mediadas, sobretudo, pelo aparato de
poder do que Bhabha (2007) chama de discurso colonial. Este, conforme foi discutido
no capítulo 3, é estruturante da construção ideológica da alteridade entre os sujeitos
colonizado e colonizador; e a especificação que realiza sobre esse discurso, a partir de
Foucault, como aparato, discute a sua articulação entre os modos “de diferenciação,
defesa, fixação, hierarquização” (ibid., p. 115).
A SD.8., então, apresenta a interlocução – atravessada pelas correspondentes
relações de forças – entre a chichera, cujo nome não é apresentado, e o Padre Linares,
diretor do colégio. O papel de líder religioso da cidade é alçado a um lugar político-
institucional, pois este toma para si o protagonismo de resolver a situação de conflito
instalada. Este aspecto possibilita uma reflexão sobre os aparelhos ideológicos de
Estado e o seu papel na conformação das identidades dos sujeitos, conforme discutido
no capítulo 2 desta tese, e sobre os processos de interpelação do sujeito a partir da
ideologia. Tal como foi colocado no capítulo 2 desta tese, com relação à questão de
Lacan de que “só há causa daquilo que falha”, problematizada por Pêcheux (2009) para
discutir os processos de interpelação e de identificação por parte do sujeito, esse está
submetido a uma falha e como tal a interpelação ideológica também, o que permite que
o sujeito esteja/seja mobilizado por diferentes formações ideológicas. Esta observação
permite uma reflexão sobre as desestabilizações e as transformações que as falhas
provocam, o que é determinante para a ocorrência de diferentes processos de
interpelação e de identificação. Desse modo, a força da interpelação da Igreja e de seu
papel institucional – ou mesmo político, pois o ato de Padre Linares o coloca como um
lugar de Estado – não são suficientes para submeter a chichera à ação do padre, o que
provoca uma tensão. Há também um jogo de relações de força mediada pela categoria
de gênero/sexualidade, instaurada pelo dispositivo da colonialidade do poder, que
produz uma hierarquização entre homem e mulher (“El Padre Director avanzaba entre
las mujeres, escoltado por dos frailes”), hierarquia que é deslocada na SD.8., mas que
permite que o Padre Linares aja com uma postura incisiva em relação à chichera (“¡No
me retes, hija!”), que logo em seguida é atenuada ao recorrer-se à religião (“¡Obedece a
Dios!”).
148
SD.9.
Empezaron a arrastrar los sacos de sal hasta el patio.
Ante el asombro y el griterío de las mujeres, sacaron cuarenta costales de sal
blanca al patio.
– ¡Padrecito Linares: ven! – exclamó con un grito prolongado la chichera –.
¡Padrecito Linares, ahistá sal! – hablaba en castellano –. ¡Ahistá sal! ¡Ahistá
sal! ¡Este sí ladrón! ¡Este sí maldecido!
La multitud se detuvo, como si fuera necesario guardar un instante de
silencio para que las palabras de la chichera alcanzaran su destino. Una vez
más volvió a llamar la mujer:
– ¡Padrecito Linares…!
Luego bajó del poyo, por un instante; hizo despejar la puerta del
almacién106
; dio varias órdenes y las mujeres formaron una calle,
aplastándose unas a otras.
Y comenzó el reparto.
Presidió ella, desde lo alto del poyo. No hubo desorden. Con cuchillos, las
chicheras encargadas abrían los sacos y llenaban las mantas de las mujeres.
Luego ellas salían por la tienda y las que estaban hacia el zaguán, se
acercaban.
En los pueblos de indios las mujeres guardan silencio cuando los hombres
celebran reuniones solemnes. En las fiestas familiares, aun en los cabildos,
los indios hablan a gritos y a un mismo tiempo. Cuando se observan desde
afuera esas asambleas parecen una reunión de gente desaforada. ¿Quién
habla a quién? Sin embargo existe un orden, el pensamiento llega a su
destino y los cabildos concluyen en acuerdos. La mujer que es callada
cuando los hombres intervienen en los cabildos, chilla, vocifera, es
incontenible en las riñas y en los tumultos.
¿Por qué en el patio de la Salinera no se arañaban, no se destrozaban a
gritos? ¿Cómo no insultaban o llamaban las que aún permanecían fuera del
zaguán, en la calle? Si una sola hubiera podido gritar como cuando era libre,
habría incendiado a la multitud y la hubiera destrozado.
Pero ahí estaba ella, la cabecilla, regulando desde lo alto del poyo hasta los
latidos del corazón de cada una de las enfurecidas y victoriosas cholas. Al
menor intento de romper el silencio, ella miraba, y las propias mujeres se
empujaban unas a otras, imponiéndose orden, buscando equilibrio. Del
106
Grafado assim no original.
149
rostro ancho de la chichera, de su frente pequeña, de sus ojos apenas
visibles, brotaba una fuerza reguladora que envolvía, que detenía y
ahuyentaba el temor. Su sombrero reluciente le daba sombra hasta los
párpados. Un contraste había entre la frente que permanecía en la
sombra y su mandíbula redonda, su boca cerrada y los hoyos negros de
viruela que se exhibían al sol (ibid., p. 76-77) (grifos meus).
Algumas questões discutidas na SD.8. também podem ser discutiras na SD.9.
Por exemplo, o espanhol falado pela chichera é novamente apresentado com marcas de
oralidade e enunciado em formulações curtas, o que corrobora as afirmações feitas
anteriormente sobre essa questão, como se pode ver neste trecho: “– ¡Padrecito Linares:
ven! – exclamó con un grito prolongado la chichera –. ¡Padrecito Linares, ahistá sal! –
hablaba en castellano –. ¡Ahistá sal! ¡Ahistá sal! ¡Este sí ladrón! ¡Este sí maldecido!”,
fragmento no qual aparecem diminutivos, formulações como “Ahistá”, que parece
referir ao sentido de “Ahí está”, repetições marcadas pelas emoções do momento da
enunciação, para apontar algumas das referidas marcas relativas ao oral. Também é
possível estabelecer reflexões sobre a forma em que é descrito o corpo, possibilitando –
quando pensamos em práticas de ensino – a quebra de listas de palavras ou de certas
oposições (“alto/bajo”, “gordo/flaco”, “feo/bonito”, etc.) que geralmente são tomadas,
em relação a esse tema, de forma estereotipada e, de novo, amparando um gesto de
generalização e de indeterminação que abre mão do específico e, portanto, do que a
alteridade (o outro) implica em termos de peculiar, de diferente.
No fragmento que mobilizo, mais uma vez, o recurso ao que é específico e
particular desmobiliza estereótipos e lugares comuns, como se pode ver a seguir: “Del
rostro ancho de la chichera, de su frente pequeña, de sus ojos apenas visibles, brotaba
una fuerza reguladora que envolvía, que detenía y ahuyentaba el temor. Su sombrero
reluciente le daba sombra hasta los párpados. Un contraste había entre la frente que
permanecía en la sombra y su mandíbula redonda, su boca cerrada y los hoyos negros de
viruela que se exhibían al sol”.
É de se relevar, também, toda a ação presente nesse capítulo VII de Los ríos
profundos e que está em destaque na SD.9.: as decisões tomadas pelo coletivo, a partir
de uma liderança. Toda a ação é narrada pelo eu narrador de forma que se estabelece um
paralelo entre a situação específica do saque à salineira e as práticas coletivas de
tomadas de decisões realizadas pelos índios em suas práticas cotidianas. Esse paralelo é
estabelecido pelo acesso a uma memória, a um funcionamento específico, que remete a
150
uma questão cultural, a uma prática mediada entre o silêncio e a voz, e também entre
gênero/sexualidade e coletivo/individual. Essas últimas categorias (gêneros/sexualidade
e coletivo/individual) mediam práticas culturais tradicionais dos índios, relatadas pelo
eu narrador como modo de comparação com a ação principal do capítulo e que está
recortada na SD.9. Há o recurso ao específico, ao que é particular, ao que se vincula à
história: “En los pueblos de indios las mujeres guardan silencio cuando los hombres
celebran reuniones solemnes. / En las fiestas familiares, aun en los cabildos, los indios
hablan a gritos y a un mismo tiempo. / ¿Quién habla a quién? Sin embargo existe un
orden, el pensamiento llega a su destino y los cabildos concluyen en acuerdos. / La
mujer que es callada cuando los hombres intervienen en los cabildos, chilla, vocifera, es
incontenible en las riñas y en los tumultos”.
O que explicaria a diferença dessas práticas coletivas, próprias das comunidades
indígenas, com o que é relatado como ação daquele momento, é a forma de proceder das
mulheres diante de uma situação que poderia requerer ações semelhantes às que
ocorriam nessas práticas realizadas nessas comunidades, mas que naquele momento não
foram mobilizadas. O estranhamento do eu narrador sobre essa questão permite uma
reflexão sobre o ineditismo daquele ato, realizado em um lugar clivado pela
colonialidade do poder e que por isso não permitiria um modo de proceder típico das
comunidades (realizado em outro lugar, sem a presença masculina, com uma posição
inédita de protagonismo das mulheres). Essa diferença é mediada pelas relações de
força existentes nesse espaço, instaladas pela história e que deslocam a forma de agir
das chicheras: “¿Por qué en el patio de la Salinera no se arañaban, no se destrozaban a
gritos? ¿Cómo no insultaban o llamaban las que aún permanecían fuera del zaguán, en
la calle? Si una sola hubiera podido gritar como cuando era libre, habría incendiado a la
multitud y la hubiera destrozado”, o que poderia gerar uma violência de proporções
inimagináveis.
Após mobilizar as noves SD’s tomadas dos dois corpus de Los ríos profundos,
de José María Arguedas, passo a apresentar os lineamentos, elaborados a partir de La
tumba del relámpago, de Manuel Scorza. O modo de apresentação será o mesmo;
entretanto, à diferença de Los ríos profundos, para os lineamentos de La tumba del
relámpago selecionei três capítulos, pelo fato de que esses são menos extensos.
151
4.3.2. A partir de La tumba del relámpago
La tumba del relâmpago (quinto cantar) (1979), de Manuel Scorza, é o quinto
de uma série de livros sobre rebeliões indígenas contra companhias mineiras
testemunhadas pelo autor, que ocorreram no Peru no começo dos anos 60. São os
primeiros quatro: Redoble por Rancas (1970), Garabombo el invisible (1972), El jinete
insomne (1977), e Cantar de Agapito Robles (1977).
Nesse livro, Scorza realiza a narração, na forma de crônicas, de fatos da história
do Peru desde a colonização, relacionando-os a elementos ficcionais que relata como
romance. O fio que une todos esses elementos é a chegada do advogado Genaro
Ledesma à cidade de Pasco, para trabalhar como professor na escola da cidade. O
período da ação remete às rebeliões indígenas contra diversas multinacionais, que
ocorreram no Peru durante os anos 60. O contato que esse personagem passa a ter com a
realidade social do lugar é o mote para tratar de temas relacionados à exploração, por
parte de multinacionais: trabalho semi-escravo dos comuneros indígenas, a
concentração de terras por parte de latifundiários e outros problemas sociais, de base
histórica, instalados – como poderíamos dizer – pela colonialidade do poder. Tocado
por essas questões, Ledesma passa a trabalhar como advogado defensor dos direitos da
população mais pobre, convertendo-se em um advogado comunero, de comunidades
indígenas da região.
Assim como procedi com os recortes realizados a partir de Los ríos profundos,
também adotei a divisão em itens para os três trechos recortados desse livro: o Capítulo
8 – Comprobable informe sobre la represa Bombón será o Texto 1; o Capítulo 12 – La
rabia comienza a sofocar a Genaro Ledesma, será o Texto 2; e o Capítulo 14 –
Exaltación Travesaño le dice a Genaro Ledesma: “Soy alguien que morirá sin ver la
Justicia” o Texto 3. No próximo item apresento o Texto 1 – e as SD’s que mobilizarei
para a elaboração dos lineamentos para discussão de cultura.
Texto 1 - Comprobable informe sobre la represa Bombón
No capítulo 8 de La tumba del relámpago – Comprobable informe sobre la
represa Bombón – Scorza relata a construção de uma represa por parte de uma
multinacional americana, a Cerro de Pasco Corporation, e a forma opressora com que a
152
empresa realizou tal tarefa, passando por cima de comunidades e governos. Seguindo o
procedimento mediante o qual abordei os capítulos de Los ríos profundos, começo com
a SD.1. que apresento a seguir.
SD.1.
El año 1931 la compañía minera norteamericana ‘Cerro de Pasco
Corporation, Inc.’ de Delaware decidió aumentar la capacidad de su planta
eléctrica de Bombón, en la pampa Junín. Construyó una represa que contuvo
las aguas que el lago Junín vierte en el río Mantaro, bordeando cuyas orillas
se levantan Pari, Ondores, Huayllay, Cochamarca, Ninaragrac, Yarusyacán,
Uco, aldeas de pastores que salpican la desolada tundra.
Las empresas extranjeras que operaban entonces en el Perú no solicitaban,
desde luego, el consentimiento de las comarcar que explotaban. El pueblo
de Pari se enteró de los rebalses de la represa Bombón el día en que las
aguas invadieron sus pastizales. El agua cubrió los campos lentamente. Pari
logró salvar sus rebaños pero perdió tres mil hectáreas de sus mejores
pastos. Pari, que vivía del comercio de carne con la ‘Cerro de Pasco
Corporation’, se hubiera resignado a su suerte si los rebalses no
hubieron sumergido un centenar de casas de su Barrio Bajo. El pueblo
discutió en un Cabildo Abierto: el personero Romualdo propuso
constituir una comisión para quejarse ante las autoridades de Lima.
Aunque Pari compartía su indignación, en el Cabildo Abierto se
impusieron quienes sostenían que además de la posibilidad de perder a
su mejor cliente, Pari arriesgaba algo peor. Pari está próxima a la planta
eléctrica de Malpaso donde en 1931 se atrincheraron los primeros
huelguistas de la ‘Cerro de Pasco Corporation’; allí mismo los fusilaron.
Para antever las consecuencias de un conflicto con la todopoderosa
Compañía, los vecinos de Pari sólo tienen que atravesar el cementerio donde
los héroes de Malpaso están enterrados. Pari decidió trasladar a los
damnificados de las tierras bajas a las tierras altas. Por fortuna, las aguas se
detuvieron. Pari retornó a su paz bovina (SCORZA, 1979, p. 49) (grifos
meus).
A SD.1. apresenta a relação que a multinacional Cerro de Pasco Corporation
possuía com as comunidades indígenas que viviam em torno das minas exploradas pela
companhia. Assim, expõe as relações de poder instaladas pelo sistema econômico,
desiguais entre si, sem a mediação do Estado como aparelho regulador das diferenças
(cf. capítulo 2 desta tese). A relação desta empresa com as aldeias de pastores em volta
das minas é representativa da discussão que Mignolo (2003a) realiza, e que apresentei
no capítulo 3 deste trabalho, sobre o segundo conjunto que compõe o dispositivo da
colonialidade do poder, a tríade exploração, dominação e conflito no mundo
153
moderno/colonial, “cuya estrutura económica es el capitalismo” (MIGNOLO, 2003a, p.
47).
Sobre o efeito dessas categorias, práticas sociais e históricas se vinculam, o que
permite que esta SD.1. se coloque como questão para discussão de temas culturais no
que tange às relações em sociedade. Tais práticas são contraditórias entre si: a empresa
toma decisões de forma unilateral, sem diálogo ou debate com os sujeitos envolvidos:
“Las empresas extranjeras que operaban entonces en el Perú no solicitaban, desde luego,
el consentimiento de las comarcar que explotaban”; os comuneros, ao contrário, tomam
suas decisões em coletivo, por meio de discussões realizadas por um cabildo, termo que
designa, em espanhol, um organismo coletivo de decisões que regulam práticas de uma
determinada comunidade, onde as demandas são colocadas em discussão, conforme
fragmento em negrito acima. A contradição que focalizo não somente é decorrente de
formas de procedimento distintas, mas também dos papéis que se vinculam a uma
empresa multinacional (regularmente associada a sentidos e práticas “civilizadas” do
Ocidente, onde o debate e a negociação fariam parte de decisões tomadas) e a uma
comunidade indígena (geralmente associada, de forma estereotipada, a práticas “não
civilizadas”, por não “dominar códigos” ocidentais de vivência em sociedade).
As relações de poder entre os grupos envolvidos, mediadas pelo econômico,
constituem uma oportunidade de deslocar situações em sociedade tratadas de forma
genérica, sem conflitos, situações essas vinculadas a uma cultura globalizada, a relações
de poder. Essas relações que hoje se colocam associadas à globalização também
possuem suas particularidades, mas são tratadas, em aulas de língua estrangeira, de
forma genérica, sem relação com condições específicas. Na SD.1. essas questões são
problematizadas pelas contradições instaladas pela colonialidade do poder, que mediam
– ou antes impõem – determinadas práticas em sociedade: “Para antever las
consecuencias de un conflicto con la todopoderosa Compañía, los vecinos de Pari sólo
tienen que atravesar el cementerio donde los héroes de Malpaso están enterrados. Pari
decidió trasladar a los damnificados de las tierras bajas a las tierras altas. Por fortuna,
las aguas se detuvieron. Pari retornó a su paz bovina”.
SD.2.
En 1958 la ‘Cerro de Pasco Corporation’ decidió aumentar, otra vez, la
capacidad de la planta eléctrica de Bombón. (…) El personero Toribio
decidió enjuiciar a la Compañía. En 1960, para sorpresa de los que, más que
rebelde lo consideraban loco simpático, la Corte Superior de Huánuco falló
154
a favor de Pari y condenó a la Compañía a rehabilitar la carretera y pagar
500 000 soles de indemnización. Ante la estupefacción general, la ‘Cerro de
Pasco Corporation’ acató la sentencia.
Poco después los Estados Unidos de Norteamérica redujeron la cuota de
minerales peruanos – plata, cobre, plomo, zinc. Para enfrentarse a la crisis,
la ‘Cerro de Pasco Corporation’ – fabulosamente enriquecida por la
demanda de minerales provocada por la Guerra de Corea –, decidió licenciar
buena parte de sus 15 000 trabajadores (ibid., p. 50).
Na SD.2. também há a possibilidade de discutir relações de poder entre os
grupos envolvidos, mediadas pelo econômico. O trecho em questão faz referência à
mediação realizada pelo corpo jurídico do Estado para resolver o enfrentamento entre
forças desiguais: “la Corte Superior de Huánuco falló a favor de Pari y condenó a la
Compañía a rehabilitar la carretera y pagar 500 000 soles de indemnización. Ante la
estupefacción general, la ‘Cerro de Pasco Corporation’ acató la sentencia”; entretanto,
tal mediação não é suficiente, pois a empresa, apoiada por seu país, realiza uma
retaliação, ao demitir um grande número de empregados, o que denota a incapacidade
do Estado para mediar esses conflitos entre forças desiguais, já que não possui poder
frente às grandes organizações econômicas: o que representa um deslocamento na
história em relação aos gestos realizados institucionalmente na conformação do Estado
nacional, conforme a discussão que apresentei no capítulo 2.
Nessa questão a configuração de poder se coloca nas mãos das grandes
empresas, com uma ausência do Estado ou esse a serviço dessas empresas, processo
descrito por Ianni (1999) como uma consequência da globalização. Sobre essa questão
retomo o que apontei no capítulo 1 deste trabalho, quando o estudioso observa que as
corporações determinam os processos de decisão dos mercados e estão acima dos
estados e nações, dos grupos e das coletividades. Assim, essas empresas determinam e
geram buscas de forças de trabalho, que estão aquém das condições sociais de
configuração e de organização social e política dos Estados.
A seguir apresento as SD’s mobilizadas do segundo grupo do corpus recortado
de La tumba del relámpago, o Texto 2, que corresponde ao capítulo 12 – La rabia
comienza a sofocar a Genaro Ledesma. A numeração das SD’s continua da anterior.
Apresentarei um pequeno resumo do Texto 2 e os lineamentos elaborados a partir das
SD’s, sendo a primeira desse grupo a SD.3.
155
Texto 2 - La rabia comienza a sofocar a Genaro Ledesma
O capítulo 12 de La tumba del relámpago, La rabia comienza a sofocar a
Genaro Ledesma, gira em torno do trabalho de Genaro Ledesma como advogado de
comunidades, ao receber visitas de comuneros que necessitavam de assessoria jurídica
em demandas contra ações de violência e opressão realizadas por empresas e famílias
poderosas. O contato com as histórias desses comuneros gerava em Ledesma reflexões
sobre o processo histórico de formação do Peru e sobre as histórias de exploração e de
opressão das comunidades indígenas. A SD.3. apresenta uma reflexão do personagem
sobre estas questões.
SD.3.
¿Y si en los Andes la vanguardia revolucionaria no es la inexistente clase
obrera sino la esquilmada clase campesina? El aletazo de un pensamiento
sombrío lo rozó: las revoluciones campesinas fracasaron siempre. Por eso
nos fascinan. Los Emiliano Zapata, los Garabombo, los Raymundo Herrera,
los Agapito Robles mueren puros. Los campesinos no llegan al poder: no
tienen oportunidad de corromperse. La injusticia de la historia los preserva.
No les da ocasión de transformarse de oprimidos en opresores. ¿Y la
Revolución China? En China los campesinos vencieron pero la vanguardia
fue la clase obrera. Miró los penachos de humo que rubricaban el cielo
pizarra de Cerro de Pasco. ¿Ese proletariado encabezaría la marcha de un
millón de campesinos hacia Lima, la Capital perpetuamente nublada,
perpetuamente egoísta, perpetuamente corrompida? (SCORZA, 1979, p.
62).
Nessa sequência os dados históricos permitem contextualizar as relações de poder
instauradas pela colonialidade do poder (MIGNOLO, 2003). Populações oprimidas no
espaço afetado por esse dispositivo, como a classe campesina, somente alcançariam a
liberdade – segundo o advogado Ledesma – pela revolução. A constatação de que no
Peru não havia classe trabalhadora, mas somente campesina, tem a ver com a reflexão
de Cornejo Polar (2005) sobre a existência de dois pólos desigualmente desenvolvidos
de uma única estrutura capitalista instaurada pelo colonialismo. De minha perspectiva, é
possível relacionar a reflexão do personagem com a discussão de que no Peru há setores
que usufruem dos saberes proporcionados e instaurados pelas colonialidades do poder e
do saber, fortemente vinculados aos processos decisórios instalados na consolidação do
estado peruano, a partir de um sistema imposto pela colonização, que oprimem e se
156
validam de sua posição sobre setores que estão à margem desses processos: “Los
campesinos no llegan al poder: no tienen oportunidad de corromperse. La injusticia de
la historia los preserva. No les da ocasión de transformarse de oprimidos en opresores”.
Diferentes saberes de diferentes civilizações se rivalizam no jogo de poder instaurado
pela colonialidade, sendo que alguns deles, os mais deslocados desse paradigma,
sucumbem diante de práticas históricas mediadas por relações de poder, o que gera o
contraste citado por García Canclini (1997) entre Modernidade e Modernização,
discutido no capítulo 2 deste trabalho.
SD.4.
Las calles de la ciudad [Huánuco] que desde hacía cuatrocientos años
alojaban una de las más fabulosas vetas de América, no tenían veredas.
Los americanos habían extraído en cuarenta años (recordó los balances
de la Compañía publicados por Peruvian Times) más de mil millones de
dólares de utilidad. ¡Qué carajo les importaba! Ellos habitaban una
pequeña ciudad separada de la miseria por alambradas erizadas de
guardias armados: la ciudadela ‘La Esperanza’: chalets ultramodernos,
dotados de calefacción y de todas las comodidades posibles: el siglo
veinte junto al siglo quince. Por fin llegó a su Estudio. En la sala esperaban
rostros inescrutables, trajes raídos, bufandas sucias. Rápidamente se había
difundido que Genaro Ledesma era ‘abogado de comunidades’, un abogado
‘garantizado por las comunidades de la pampa Junín’. Entre los grandes
hacendados y el Poder Judicial existe un intermediario temible: el abogado.
Los comuneros no sabían ya si era mejor ganar o perder un juicio. Los
juicios se eternizaban, duraban generaciones (ibid., p. 62-63) (grifos meus).
A SD.4. entra em relação com a SD.3. por permitir a mobilização dos mesmos
temas de discussão. As contradições instauradas pela colonialidade do poder estão
materializadas no espaço público, no choque entre Modernidade e Modernização de que
fala García Canclini (1997), cujas práticas históricas, realizadas por percursos
diferentes, são representativas dos grupos sociais que o habitam, numa oposição que é
metafórica das relações sociais desses grupos e que se materializa claramente no
fragmento que destaco em negrito.
Práticas institucionais que não correspondem às necessidades e especificidades de
certos grupos sociais – que contradizem o propósito do arquivo jurídico do Estado em
amainar as diferenças, conforme discussão realizada no capítulo 2 – entram em
oposição com práticas não legitimadas institucionalmente, como as realizadas em
comunidade pelos comuneros; ao Estado não lhe interessa atender às demandas desse
grupo: “Los comuneros no sabían ya si era mejor ganar o perder un juicio. Los juicios
157
se eternizaban, duraban generaciones”. Além do mais, esta posição desprestigiada se
materializa nos corpos desses sujeitos, no modo de se vestirem, o que permite uma
discussão sobre vestimentas (e/ou formas de vestir) e sobre estas como traço de
identificação social de sujeitos: “En la sala esperaban rostros inescrutables, trajes raídos,
bufandas sucias”. Essa discussão entraria em contraposição a modos de trabalhar sobre
esse tema nas práticas de ensino de língua, nas quais se reproduzem e reforçar sentidos
altamente estabilizados e, vinculados ao Mercado e a uma “cultura” supostamente
globalizada, por efeito de um processo de “uniformização relativa dos modos de vida e
de produção em escala internacional”, como diria Revuz (1998, p. 228).
SD.5.
– Nos gustaría entrevistarnos con el doctor.
– Yo soy. ¿En qué puedo servirlos, señores? – contestó con formalidad.
Dirigirse a los ceremoniosos comuneros familiarmente, sin conocerlos, es
ofenderlos.
– Somos representantes de la comunidad de Chinchán, doctor. Julio
González Marcelo, personero, a sus órdenes. Por la vestimenta y la manera
de hablar: comunero vivido en Lima. Hemos oído hablar del Estudio y
venimos a solicitar su ayuda.
– Por favor, pasen. ¡Siéntense!
– Aquí nomás, doctor.
No insistió.
– ¿Con quién están en conflicto?
– Con la hacienda Ninao, pero estamos descontentos de cómo se tramita
nuestro reclamo.
– No camina – intervino un comunero corpulento –. Hace setenta años que
esperamos el fallo. Los que iniciaron el juicio han muerto. Los dueños
contra los que reclamábamos, han muerto. Los jueces han muerto. ¡Aún no
hay fallo!
– ¿Setenta años?
– Setenta y seis, doctor – corrigió un comunero fornido, cara oscura, ojos
vivos, aire reposado: Saturnino Inocente.
– A principios del siglo la hacienda Ninao usurpó nuestras tierras. En esa
época eran dueños los Tello, ya difuntos. La comunidad inició juicio. Los
158
Tello decidieron asaltar Ninao: nos mataron a nueve comuneros. La
Gendarmería, maliciosamente informada por los Tello, que pretextaban que
nuestros abuelos se habían rebelado, mató a seis más. El juicio siguió. La
hacienda cambió de dueño. Los Neyra, nuevos dueños, la perdieron en una
mesa de juego. La hacienda pasó a manos de los Malpartida. El juicio
siguió. Los Malpartida vendieron la hacienda a los Vega. El juicio siguió.
En 1925, con motivo de una delimitación de linderos, los Vega mataron a
quince comuneros. Esta vez no actuó la policía: puros caporales. En 1932 la
hacienda cambió otra vez de propietario. La compraron los Palacio. El juicio
siguió. Esta vez el Poder Judicial falló.
– ¿A favor de los Palacio?
– No, a favor de nosotros.
– ¿Los Palacio respetaron el fallo?
– En esa época nuestros personeros no sabían leer. Los Palacio
fingieron aceptar la sentencia, congratularon hipócritamente a nuestras
autoridades. Las invitaron a celebrar y solicitaron que, en señal de
conformidad, firmaran la sentencia. Nuestras autoridades colocaron sus
huellas digitales. ¡Ignoraban que ese papel no era la sentencia sino la
minuta de una venta simulada!
– ¡La puta madre!
– ¡Así son, doctor! Pero nosotros seguimos el juicio. Queremos darnos una
última oportunidad y si no obtenemos justicia nos la buscaremos por otro
rumbo (ibid., p. 63-64) (grifos meus).
A SD.5. apresenta um diálogo entre Ledesma e os comuneros, em que é possível
discutir relações e formas de tratamento pelo viés das relações entre sujeitos que,
ademais de não se conhecerem, ocupam posições diferentes socialmente, o que pode ser
tomado como um traço cultural ao considerar o comentário do narrador: “¿En qué
puedo servirlos, señores? – contestó con formalidad. Dirigirse a los ceremoniosos
comuneros familiarmente, sin conocerlos, es ofenderlos”107
. A SD.5. também entra em
relação com a SD.4., por apresentar detalhadamente algumas das questões já discutidas
nesta última. Em relação ao papel do Estado em não atender às demandas dos
comuneros, esse grupo desamparado institucionalmente, o diálogo entre os personagens
permite abordar essa questão com mais dados, a partir do relato que aqueles fazem do
107
Em espanhol essa observação se materializa no tratamento de usted, cujas marcas destaco no texto;
além de se expressar também na sintaxe com um todo.
159
julgamento sobre o conflito com a fazenda Ninao. O tempo de julgamento desse
conflito e as reviravoltas desse caso são mostras das contradições instauradas pelas
colonialidades do poder e do saber: práticas institucionais mediadas por relações de
poder e em favor de determinados grupos; deturpação das práticas institucionais,
apoiada às vezes por agentes do Estado (“En 1925, con motivo de una delimitación de
linderos, los Vega mataron a quince comuneros. Esta vez no actuó la policía: puros
caporales”) e pelo conhecimento letrado do arquivo jurídico imposto pelo Estado na
mediação das diferenças, conforme fragmento destacado em negrito.
SD.6.
Durante años el ex cabo Saturnino Inocente había recorrido el Perú batiendo
abigeos, capturando ladrones, masacrando campesinos, pateando inocentes
o perdonando, amparando, comprendiendo. En todo pueblecito, un cabo de
la Guardia Civil es un notable. Harto de rodar, un día decidió volver a
Chinchán. Los comuneros, que desconfiaban de todos los uniformados, lo
acogieron con recelo. Yo no nací uniformado. Es cierto, pero fuiste
uniformado. Inocente se dedicó a la agricultura. Participaba con prudencia
en las asambleas. Sobre todo cuando las autoridades afrontaban problemas
legales, su experiencia servía. Demoró en ser electo autoridad. Durante tres
años, mientras daba pruebas de lealtad, la comunidad le encomendó cargos
ínfimos. Después lo eligieron presidente. ‘Setenta años’, pensó Ledesma.
Sintió, de pronto, el peso de las esperanzas que depositaban en él. ¿En
cuánto tiempo lograría un fallo? ¿Y de lograrlo, serviría? (SCORZA, 1979,
p. 64).
A SD.6. apresenta questões relacionadas aos processos de interpelação e de
identificação ideológica por parte do sujeito, aspectos que apresentei no capítulo 2 desta
tese: apesar de que esses processos estão submetidos a falhas, a interpelação do sujeito
se dá pela ideologia, na linearidade do intradiscurso (ou na sua horizontalidade),
produzindo memória, no irremediável jogo interdiscursivo. O personagem de Saturnino
Inocente, enquanto cabo da guarda civil, é interpelado pela ideologia da corporação,
conforme se pode ver em SD.6., por praticar atos de opressão específicos, associados a
um lugar de repressão: “Durante años el ex cabo Saturnino Inocente había recorrido el
Perú batiendo abigeos, capturando ladrones, masacrando campesinos, pateando
inocentes o perdonando, amparando, comprendiendo. En todo pueblecito, un cabo de la
Guardia Civil es un notable”, um lugar que também lhe dava status. Entretanto, essa
memória produzida por esse processo, no irremediável jogo interdiscursivo, como disse
160
anteriormente, está submetido a falhas, o que pode explicar a mudança produzida em
Saturnino ao deixar de ser cabo. De qualquer forma, o vínculo com essa memória
produz estranhamentos por parte dos demais sujeitos (“Los comuneros, que
desconfiaban de todos los uniformados, lo acogieron con recelo”), mas a recusa de
Saturnino em voltar à posição anterior, já tomado por um novo processo de
interpelação, se faz patente ao enunciar: “Yo no nací uniformado”, fragmento que
irrompe no discurso do narrador sob as formas do indireto livre108
. Essas questões são
possíveis de serem discutidas tendo em consideração as diversas formas de
individualização do sujeito por parte do Estado, este já atravessado pelo funcionamento
da ideologia, processo que expõe as contradições inerentes a uma cultura que se vincula
ao Estado e a uma nação.
A seguir passo ao Texto 3, que corresponde ao capítulo 14 – Exaltación
Travesaño le dice a Genaro Ledesma: “Soy alguien que morirá sin ver la Justicia”. A
numeração das SD’s será continuada a partir da anterior. Também apresentarei um
pequeno resumo do Texto 3 e os lineamentos elaborados a partir das SD’s.
Texto 3 - Exaltación Travesaño le dice a Genaro Ledesma: “Soy alguien que
morirá sin ver la Justicia”
No capítulo 14 de La tumba del relámpago, Exaltación Travesaño le dice a
Genaro Ledesma: “Soy alguien que morirá sin ver la Justicia”, Genaro Ledesma viaja
para atender uma demanda dos comuneros de Quiparacra com outros comuneros
vizinhos. Inconformado com a luta entre iguais, Ledesma vai para essa aldeia, para
convencê-los a lutar na justiça, lado a lado com os demais povoados, contra os
opressores de suas comunidades, como as empresas multinacionais e os latifundiários.
Essa situação lhe produz reflexões sobre a história do país e sobre o que ele considera
“la fatalidade de la lucha campesina”: a desunião. A seguir apresento as SD’s que
embasam os lineamentos referentes a este corpus, a partir da SD.7.
108
E não irrompe apenas o dizer do outro, mas também o dizer do próprio sujeito do discurso, que retoma
uma interpelação possível, mas que não se materializa na enunciação, retomada pelo sujeito por já ter sido
dita em algum momento.
161
SD.7. Esos campesinos de Quiparacra, en lugar de fusilar a otros campesinos, ¿por
qué no ejecutaban a un hacendado? En todas partes era igual; los
campesinos defendían sus intereses o los de su comunidad pero, raras veces,
los de su clase. La tragedia de las luchas campesinas es la lucha aislada. La
comunidad, creación genial de la sociedad india, le permitió atravesar
cuatrocientos años de genocidio. Pero la comunidad protege a sus
miembros: no defiende a los otros campesinos, a su clase. Ésa es la fatalidad
de las luchas campesinas. Los grandes rebeldes Túpac Amaru, Atusparia,
Uchu Pedro, Santos Atahualpa, y el desconcertante Rumimaki, fueron
combatidos y derrotados por sus propios hermanos armados por sus
opresores. ¡Indios combatieron contra indios! Hacia cuatrocientos años que
guerreaban sin tregua. Solitariamente padecían los abusos; solitariamente
los masacraban. Era imprescindible que se unieran. ¡Ah, si las
comunidades juntaran sus combates dispersos! Si los fusiles que en
horas de extravío apuntaban contra el pecho de sus hermanos, se
volvieran contra sus verdaderos enemigos. Imaginó cien mil campesinos
alzados en las anfractuosidades de esa cordillera donde la tropa limeña,
ahogada por la altura, sobrellevaba apenas el peso de sus mochilas (SCORZA, 1979, p. 74) (grifos meus).
A SD.7. retoma questões históricas sobre a formação do Peru, diretamente
relacionadas à colonialidade do poder e do saber, instauradas pela colonização. A
contradição decorrente desse processo, apesar da intensa violência que ocorreu durante
a conquista por parte da Espanha, não conseguiu desconstruir um dos principais legados
da sociedade índia, a comunidade: “La comunidad, creación genial de la sociedad india,
le permitió atravesar cuatrocientos años de genocidio”. Entretanto, essa organização
social não conseguiu silenciar as contradições instaladas pela colonialidade; de fato, a
SD.7. apresenta uma descrição das comunidades muito próxima ao conceito de
comunitarismo que Bauman debateu, cuja reflexão discuti no capítulo 2 e cuja citação
reproduzo novamente. Conforme esse autor, o comunitarismo “[t]em a ver com o
cerceamento da livre escolha, com a promoção da preferência por uma escolha cultural
e a protelação de todas as outras – com vigilância e censura estritas” (BAUMAN, 2012,
p. 63). O que caracterizaria cada uma dessas comunidades, e impediria a sua união com
as demais, seria a valorização do que é próprio e particular a cada uma delas, através da
história por relações de conflito e de interesses: “En todas partes era igual; los
campesinos defendían sus intereses o los de su comunidad pero, raras veces, los de su
clase”.
Tal constatação, feita por parte de um descendente de espanhol, permite discutir
que por mais que as comunidades indígenas sejam tomadas como algo homogêneo, há
162
diferenças significativas que afetam sua relação com o espaço e com o outro. Desta
forma o conflito estabelecido nessas relações de alteridade entre as comunidades
indígenas permitiu o êxito da conquista do território pelos espanhóis: “Los grandes
rebeldes Túpac Amaru, Atusparia, Uchu Pedro, Santos Atahualpa, y el desconcertante
Rumimaki, fueron combatidos y derrotados por sus propios hermanos armados por sus
opresores. ¡Indios combatieron contra indios! Hacia cuatrocientos años que guerreaban
sin tregua”.
As práticas culturais específicas de cada comunidade poderiam ser a chave de
interpretação desta falta de união: práticas constituídas ao longo da história, que
configuraram identidades distintas e sem conciliação entre si: “Solitariamente padecían
los abusos; solitariamente los masacraban”. Segundo Ledesma, somente o
enfrentamento, pela revolução, das contradições impostas pela colonialidade do poder –
revolução que na SD.7. ele classifica como “união” (“Era imprescindible que se
unieran”) – seria capaz de produzir uma mudança de paradigma, derrotando o bastião
simbólico de tais contradições, Lima, capital do Peru e local institucional do poder
exercido pelo econômico e pelo político na relação entre os diferentes sujeitos nesse
espaço, conforme destaque em negrito.
SD.8.
Se alojaron en casa de Travesaño: allí esperaban los comuneros de
Tambopampa: rostros tostados por el frío, ponchos oscuros uniformados por
los mismos gestos, los mismos silencios. Le ofrecieron sopa de carnero y un
guiso demasiado grasoso. Ledesma prefirió no comer. En la altura la
digestión demora el doble que en la costa. Pero rechazar un plato es un
desaire. El Chino salvó la situación: comió por los dos. Más que calentados,
durmieron agobiados por pesadísimas frazadas. Se despertó reposado. El día
mostró una lejanía de pampas dentadas por resplandecientes picos nevados.
En la puerta esperaban esos caballos menudos, por cuya facha no se daría un
real, y que son sin embargo infinitamente más resistentes que cualquier otra
bestia de estampa, inadaptable a semejante altura. Una mancha de jinetes se
aproximó, desmontó, se acercó. Entre los emponchados distinguió al ex
personero Corasma que lo saludó un poco pálido, cortado. Le sirvieron
desayuno de autoridad: bistec con papas fritas en manteca rancia, café, pan,
quesillo. Lo disfrutó mientras trataba de absolver una confusa consulta legal
de un sobrino de Travesaño. Salieron (ibid., p. 76).
A SD.8. apresenta práticas culturais específicas, relacionadas à alimentação.
Como apontei anteriormente em outros lineamentos, o olhar sobre o específico e sobre o
particular permite abordar jogos de força que se materializam em modos de
163
procedimento vinculados a determinadas práticas. Tais elementos deslocam abordagens
neutras e estereotipadas sobre determinados temas, e nesta SD.8., especificamente, a
particular relação dos sujeitos com a alimentação permite discutir este tema de forma
menos genérica e estereotipada que a realizada comumente em práticas de ensino de
línguas estrangeiras. As relações entre sujeitos, mediadas por essas práticas, permite
discutir traços particulares vinculados com o movimento de cultura como modo de vida
característico (EAGLETON, 2011): “Le ofrecieron sopa de carnero y un guiso
demasiado grasoso. Ledesma prefirió no comer. En la altura la digestión demora el
doble que en la costa. Pero rechazar un plato es un desaire. El Chino salvó la situación:
comió por los dos”. Sobre alimentação, há outro traço particular, relacionado ao café da
manhã: “Le sirvieron desayuno de autoridad: bistec con papas fritas en manteca rancia,
café, pan, quesillo”, que não somente pode ser característico de um espaço específico,
mas também como modo de identificação de práticas sociais entre sujeitos.
Sobre os lineamentos aqui apresentados, penso, de minha perspectiva, que eles
colocam claramente o específico, o particular (o “próprio” na relação com o que é do
outro). Assim, também colocam em revisão um constante processo de “generalização”,
que ocorre nas práticas de ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras e ao qual fiz
menção em vários momentos, que justamente apaga o específico e o particular e vincula
cultura a formas genéricas e estereotipadas sobre o outro e sobre a língua do outro.
Esse movimento de generalização que, como observa Sokolowicz (2014), em
determinados livros didáticos de espanhol, se materializa em sintagmas como “Los
españoles son”, “En América Latina” (aos que seria possível somar outros como “los
argentinos”, “En Colombia se dice X e no Y”) se alia a um processo altamente
determinado discursivamente, conforme Indursky (2013). Se vincula, de modo mais
amplo, aos processos que tomam a língua como mercadoria e, no caso do espanhol, à
política que se conhece especificamente como pan-hispanismo. O processo de
generalização de que falo produz um efeito sobre o par língua-cultura: tira dele
especificidades e propriedades que é justamente o contrário do que aconteceu na
materialidade de nosso corpus, no qual aparece “um mundo” de formas linguístico-
culturais específicas, amostras do real que estão vinculadas a um determinado espaço,
atravessado por uma história também determinada.
164
Considerações finais
Esta pesquisa de doutorado, cuja perspectiva foi realizar um diálogo entre os
Estudos Culturais e a Análise do Discurso materialista, teve como objetivo discutir a
noção de cultura, partindo da análise de como ela funciona em práticas de ensino de
línguas estrangeiras e em determinadas regiões do campo dos Estudos da linguagem –
que foram sitiadas por esse “obstáculo epistemológico” (BACHELARD, 1996, apud
CELADA, 2002) – e passar a explorá-la como um objeto discursivo.
A presente tese, como textualização dessa pesquisa, teve como propósito
devolver historicidade ao termo, discutir sua relação com a história e com a memória
discursiva, a partir de uma série de trabalhos teóricos produzidos no campo dos Estudos
Culturais, da Sociologia e da Antropologia Cultural, mobilizando-os para o campo dos
Estudos da Linguagem e, mais especificamente, da reflexão sobre as práticas de ensino
de línguas estrangeiras, em especial as de língua espanhola, no intuito de que tal
reflexão ressoe na área de formação de professores.
Nesse gesto estabeleci um percurso, pautado por leituras e reflexões, colocando
em relação – a partir do específico agenciamento que consegui realizar da série de
saberes mobilizados – aspectos relativos a cultura, identidade, ideologia e colonialidade,
os quais serviram de base, a partir do agenciamento realizado de uma série de saberes,
para a elaboração de lineamentos a partir de fragmentos de textos da esfera literária.
Como propósito deste trabalho, apresentei uma reflexão que visa oferecer resistência a
certas formas de trabalhar sobre “a cultura”, sintagma abordado no primeiro capítulo.
Este, como foi reiterado em vários momentos, funcionaria como a materialização de um
pré-construído, contribuindo a reproduzir, em práticas relacionadas ao ensino de língua
estrangeira, saberes estereotipados e estabilizados sobre “o outro” e sobre a língua do
outro.
A produção dos referidos lineamentos foi fruto de um gesto de interpretação
construído a partir de meu lugar de professor de espanhol e de pesquisador brasileiro: ou
seja, a partir da diferença com o outro (determinados falantes de língua espanhola) e,
também, com a língua – determinadas formas da língua espanhola que habitam certos
espaços do que hoje se conhece como Peru, materializadas nos textos que compõem o
165
corpus desta pesquisa. Nesse trabalho foi fundamental abordar tais textos a partir de suas
condições de produção, de uma perspectiva discursiva como a que aqui adoto.
Nesse sentido, os lineamentos apresentados confirmam a hipótese inicial que
estabeleci no capítulo 1 desta tese: a impossibilidade de pensar a cultura como separada
dos processos históricos e discursivos constitutivos de uma língua, ou seja, a cultura não
é “algo” que esteja fora desta. Um determinado funcionamento, recorrente nas práticas
de ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras, gera uma dicotomia entre língua e
cultura principalmente pelo fato de a noção de cultura que aí opera – regularmente,
ligada a discursividades do Mercado – está vinculada a uma concepção que dilui o
linguístico e silencia o político, em um processo de homogeneização (“globalização”)
que apaga as contradições inerentes a este último.
Para essa constatação foi de fundamental importância ver como o termo cultura
se significou ao longo da história, movimento que realizei no capítulo 2 desta tese. Esse
gesto de interpretação, na interlocução teórica entre os Estudos Culturais e a AD
materialista, me permitiu ver como os sentidos que constituem a memória discursiva
não se apagam facilmente. Considerar cultura é considerar sua relação com seus vários
sentidos constituídos historicamente, que estabelecem um confronto entre memória e
atualidade, sendo que todos os sentidos que aqui discuti dão peso à constituição deste
termo – ou melhor, deste conceito. O que estou querendo frisar é que, por movimentos
na história que Pêcheux (2007), a partir de Achard (2007) classifica como “remissões,
retomadas e de efeitos de paráfrase” (ibid, p. 52), cultura se desestruturaria e se
reestruturaria por um percurso que não se desfilia dos sentidos anteriores e tampouco se
desfaz ao longo do tempo109. Nesse sentido, o forte trabalho do Estado enquanto
instituição (ou articulador de instituições) na regulação dos sentidos sobre cultura para
significá-la como um “valor” da nação foi um processo realizado a partir da associação
de cultura com civilização, associação fortemente cristalizada até hoje porém, também,
já colocada em xeque pelo surgimentos de outras e novas significações.
Em relação a isso, retomo nestas considerações finais a reflexão segundo a qual
a revisão da noção de cultura realizada coloca novas séries de sentido em relação a esse
termo, quando pensado tal como funciona regularmente nas práticas de ensino de
109
Estou tomando como base a definição segundo a qual o trabalho da memória pode ser pensado como
“reestruturação de materialidade discursiva” (PÊCHEUX, 1999, p. 52). Assim, termo cultura se iria
ressignificando a partir dos “pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos”
(PÊCHEUX, 2008, p. 56).
166
línguas. Como, nestas, o protagonista é o processo de subjetivação de um sujeito
aprendiz, é relevante se atentar com relação ao modo como acontece aí a interpelação
que se materializa também – como disse no capítulo 1 – pela forma de ensinar língua-
cultura. Desta forma, trazer aqui – a partir da revisão da noção – novas séries de sentido
que devolvam sua densidade ao termo cultura pode promover ou propiciar a produção
da identificação simbólica do sujeito aprendiz com a língua outra, consideração que
embasou a elaboração dos lineamentos apresentados nesta tese.
Meu gesto de interpretação, entretanto, não considerou suficiente essa reflexão
sobre os movimentos de cultura na história para alçá-la como objeto do discurso.
Também achou necessário discutir distintos processos que são constitutivos dos
sentidos produzidos pela relação do sujeito com a linguagem, materialidade esta que é
constitutiva de sua identidade, gesto que realizei no capítulo 3, ao abordar
especificamente a questão da identidade e de sua vinculação com cultura.
Esse trabalho foi realizado a partir da relação de diferentes autores e buscou
ressaltar a pertinência de vincular identidade e cultura a processos constitutivos na
história, por práticas determinadas em espaços específicos, mediadas pela colonialidade
do poder e a do saber. Ou seja, para discutir “cultura” em processos de
ensino/aprendizagem de uma língua estrangeira – e, no caso específico desta tese, os
referentes à língua espanhola para brasileiros –, considerei que aspectos relacionados ao
identitário são inerentes aos processos culturais e como tal deveriam ser abordados de
forma específica em relação a esses processos também específicos. Como afirmei no
referido capítulo 3, esta posição seria necessária, pois, conforme as práticas comumente
realizadas em aulas de língua estrangeira, a antecipação de cultura está muito próxima
do conceito de identidade nacional, pois se apresenta vinculada a um Estado, em
decorrência de um processo de homogeneização cultural, naturalizada e cuja
historicidade é apagada sob o guarda-chuva de uma identidade genérica.
Para realizar essa problematização, visando especificamente os lineamentos que
seriam elaborados nesta tese, relacionei cultura, identidade e colonização. Esse trabalho
levou em consideração o processo histórico de formação dos Estados latino-americanos
que possuem essa língua como oficial e a relação desse processo com uma memória de
colonização, além de relações de colonização posteriores.
Conforme já dito nesta tese, é inerente à formação de qualquer país e, por
consequência, aos processos históricos e discursivos constitutivos das línguas que
167
compõem o espaço de enunciação (GUIMARÃES, 2002) desses Estados, em especial a
língua espanhola, a relação entre língua, discurso, cultura e história. De fato, essa
relação considera que aspectos que se vinculam diretamente à questão da
heterogeneidade de uma sociedade sejam discutidos levando em conta a diversidade em
relação a identidades sociais, sexuais, profissionais, dentre outras, todas elas
consideradas – conforme Hall (2001: p. 8) – como identidades modernas
“‘descentradas’, (...), deslocadas ou fragmentadas”, tal como também afirmei no
capítulo 3.
Para tal, mobilizei a reflexão sobre a construção de alteridade pelo discurso
colonial, da perspectiva de Bhabha (2007), que o considera como um aparato de poder.
Nos países que passaram por processos de colonização, a “cultura nacional”, estruturada
sob o aparato do discurso colonial, exerce papel central na legitimação e no apagamento
de saberes e sentidos ao longo da história, constitutivos dos modos de subjetivação
nesse espaço. Entendo que tais processos constituíram sentidos clivados pela história, a
partir dessa relação que se estabeleceu entre o colonizador e o colonizado, e pela força
de um efeito de pré-construído (HENRY, 1990) ainda mediam saberes culturais que
hoje são tomados como naturalizados e desistoricizados, estruturados pelos dispositivos
da colonialidade do poder e do saber, conforme Mignolo (2003) e Quijano (2000) os
consideram.
Essa mobilização teórica me permitiu, na elaboração dos lineamentos do
capítulo 4, propô-los como possíveis trilhas de um caminho, de uma reflexão que
ofereça resistência a certas formas de trabalhar cristalizadas e regularizadas,
atravessadas pela colonialidade do poder e do saber, e por uma determinada noção de
cultura, empobrecida. Esses lineamentos expõem, de fato, uma reflexão sobre as
condições de produção de uma leitura do corpus e as possibilidades de trabalho a partir
de tais condições, o que permite abordar as contradições sociais e históricas instaladas
nas textualidades objeto de estudo.
Um exemplo expressivo é o caso das listas de vocabulário e das oposições entre
termos que as compõem, relacionadas ao campo lexical das descrições de pessoas:
“gordo/delgado”, “alto/bajo”, “blanco/negro”, apresentadas como formas de uma
tipologia geral, sem inflexões relativas a espaço e/ou tempo.
Esse movimento que procurei fazer nos referidos lineamentos tem a ver com o
fato de que neles tentei sempre aproveitar a materialidade dos textos da esfera literária
168
mobilizados para dar visibilidade ao fato de que o linguístico (os adjetivos, a sintaxe da
descrição, os substantivos, etc.) aparece com a especificidade marcada por também
específicas condições de produção.
Nesses lineamentos, cultura designaria algo que emerge na forte relação entre
língua e exterioridade – o que na AD pode ser tomado como as condições de produção –
explorando o modo como a história funciona no texto, isto é, como nele se materializa.
A pergunta poderia ser: isso não seria discursivo? E penso, para dar resposta, que o
discursivo favorece e propicia a emergência da ordem da cultura (FERREIRA, 2011),
sem dúvida; no entanto, essa ordem surge na relação com o específico, o particular,
totalmente vinculado ao espaço e à história que o atravessa, e à língua que o habita – até
na relação que esta trava com outras línguas. Isso que se apresenta como específico,
como próprio de algum espaço atravessado por uma determinada história, com seus
sujeitos e suas práticas e que surge na comparação ou na relação com o que justamente é
diferente (sempre nesse movimento de comparação com o outro, com a alteridade)
parece ser algo que está muito presente quando se fala de cultura no campo do ensino de
línguas. O que estou fazendo é dando visibilidade a essa série de sentidos: o diferente, o
diverso, o específico (“de cada povo”) traria a promessa do rico, daquilo que se designa
como riqueza cultural. E é justamente isto, tão valorizado, o que ao mesmo tempo,
como venho insistindo em frisar, se constitui como objeto de apagamento – tanto nas
práticas de ensino de línguas quanto em certas esferas dos estudos ou da reflexão sobre
estas.
Cultura, então, surge de uma operação relacional e decanta como uma série de
sentidos que surgem na diferença, pelo cruzamento de variáveis relativas às condições
de produção da prática que estivermos abordando. A língua, por sua parte, possui uma
constituição no modo relacional entre o discurso e a história; nela, em sua memória
(PAYER, 2007) e em como esta opera no discurso, ficam inscritos diversos processos
dessa diferenciação, que é da ordem da alteridade. É nesse sentido que ela guarda uma
forte relação com a ordem da cultura110. Desde minha perspectiva, cultura é atravessada
não pelo homogêneo, mas pela contradição histórica, por isso, ela também escapa aos
110
Insisto com este conceito porque quero frisar a necessidade de escapar da “organização” – numa
espécie de quase “administração” imaginária – à qual ela é submetida no funcionamento das práticas de
ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras.
169
processos de homogeneização produzidos por órgãos reguladores de sentidos, como é o
caso daqueles vinculados ao Estado.
Ao não se problematizar o termo, nem o conceito, o cultural nas práticas de
ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras está atravessado pela colonialidade do
poder e do saber, sem que se pratique nenhum reconhecimento nesse sentido111. O
debate – como o aqui realizado e como outros que poderiam ser mobilizados – desloca,
ao menos, os sentidos dominantes e determina que é possível trabalhar “esse cultural”
na língua, e não fora dela. Aliás, trabalhar a cultura fora da língua pode favorecer o fato
de que esta última fique – como uma língua desistoricizada – marcada pelo genérico,
“livre das contradições históricas” e vinculada a estruturas vistas como estáveis.
Na relação entre o local e o global, ocorre o apagamento de saberes e de sentidos
que escapam a este último. O gesto que realizei ao elaborar os lineamentos consistiu
colocar em relação os sentidos e os saberes legitimados pela colonialidade do poder e do
saber com aqueles por estas não legitimados. Esse gesto de interpretação, levado a cabo
nesta tese, estabeleceu o que Mignolo (2003a) denomina pensamento fronteiriço, em
que saberes geralmente silenciados são legitimados na sua relação com saberes
estabilizados e institucionalizados. Desta forma, tentei estabelecer uma relação com a
alteridade, com o outro – investindo numa ressignificação de sentidos que tomara seja
expressiva para o campo de formação de professores de línguas estrangeiras.
111
Este fato favorece a abordagem da “cultura globalizada”, essa última como se fosse de todos,
apagando a história que a injunção contemporânea à uniformização supõe.
170
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