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CULTURA POPULAR, UM CONCEITO E V CULTURA POPULAR, UM CONCEITO E V CULTURA POPULAR, UM CONCEITO E V CULTURA POPULAR, UM CONCEITO E VÁRIAS HIST RIAS HIST RIAS HIST RIAS HISTÓRIAS RIAS RIAS RIAS 1 Martha Abreu 2 In: Abreu, Martha e Soihet, Rachel, Ensino de História, Conceitos, Temáticas e Metodologias. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003. Cultura popular é um dos conceitos mais controvertidos que conheço. Existe, sem dúvida, desde o final do século XVIII; foi utilizado com objetivos e em contextos muito variados, quase sempre envolvidos com juízos de valor, idealizações, homogeneizações e disputas teóricas e políticas. Para muitos, está (ou sempre esteve) em crise, tanto em termos de seus limites para expressar uma dada realidade cultural, como em termos práticos, pelo chamado avanço da globalização, responsabilizada, em geral, pela internacionalização e homogeneização das culturas. Por outro lado, se cultura popular é algo que vem do povo, ninguém sabe defini-lo muito bem. No sentido mais comum, pode ser usado, quantitativamente, em termos positivos - "Pavarotti foi um sucesso popular" - e negativos - o funk é popular demais". Para uns, a cultura popular equivale ao folclore, entendido como o conjunto das tradições culturais de um país ou região; para outros, inversamente, o popular desapareceu na irresistível pressão da cultura de massa (sempre associada à expansão do rádio, televisão e cinema) e não é mais possível saber o que é originalmente ou essencialmente do povo e dos setores populares. Para muitos, com certeza, o conceito ainda consegue expressar um certo sentido de diferença, alteridade e estranhamento cultural em relação a outras práticas culturais (ditas eruditas, oficiais ou mais refinadas) em uma mesma sociedade, embora estas diferenças possam ser vistas como um sistema simbólico coerente e autônomo, ou, inversamente, como dependente e carente em relação à cultura dos grupos ditos dominantes. Para alguns historiadores atuais, como Roger Chartier, sempre foi impossível saber (ou mesmo não interessa descobrir) o que é genuinamente do povo pela dificuldade ou mesmo impossibilidade de se precisar a origem social das manifestações culturais, em função da histórica relação e intercâmbio cultural entre os mundos sociais, em qualquer período da História. De qualquer forma, Chartier está coberto de razão em alertar, com uma boa dose de denúncia, ser o conceito de cultura popular uma categoria erudita, que pretende delimitar, caracterizar e nomear práticas que nunca são designadas pelos seus atores como pertencendo à cultura popular. Sempre há o risco, continua o historiador francês, de se ficar incessantemente procurando uma suposta idade de ouro da cultura popular, período onde ela teria existido matricial e independente, frente a épocas posteriores, onde a dita cultura popular teria começado a ser perseguida 1 Artigo publicado originalmente em: Abreu, Martha e Soihet, Rachel, Ensino de História, Conceitos, Temáticas e Metodologias. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003. 2 Martha Abreu é professora do Departamento de História e do Programa de Pós Graduação em História da UFF. Autora do livro O império do divino, festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900(Nova Fronteira, 1999).

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CULTURA POPULAR, UM CONCEITO E VCULTURA POPULAR, UM CONCEITO E VCULTURA POPULAR, UM CONCEITO E VCULTURA POPULAR, UM CONCEITO E VÁRIAS HISTRIAS HISTRIAS HISTRIAS HISTÓRIAS RIAS RIAS RIAS 1111

Martha Abreu2

In: Abreu, Martha e Soihet, Rachel, Ensino de História, Conceitos, Temáticas e

Metodologias. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003.

Cultura popular é um dos conceitos mais controvertidos que

conheço. Existe, sem dúvida, desde o final do século XVIII; foi utilizado com

objetivos e em contextos muito variados, quase sempre envolvidos com juízos de

valor, idealizações, homogeneizações e disputas teóricas e políticas. Para

muitos, está (ou sempre esteve) em crise, tanto em termos de seus limites para

expressar uma dada realidade cultural, como em termos práticos, pelo chamado

avanço da globalização, responsabilizada, em geral, pela internacionalização e

homogeneização das culturas.

Por outro lado, se cultura popular é algo que vem do povo, ninguém sabe

defini-lo muito bem. No sentido mais comum, pode ser usado,

quantitativamente, em termos positivos - "Pavarotti foi um sucesso popular" - e

negativos - “o funk é popular demais". Para uns, a cultura popular equivale ao

folclore, entendido como o conjunto das tradições culturais de um país ou região;

para outros, inversamente, o popular desapareceu na irresistível pressão da

cultura de massa (sempre associada à expansão do rádio, televisão e cinema) e

não é mais possível saber o que é originalmente ou essencialmente do povo e dos

setores populares. Para muitos, com certeza, o conceito ainda consegue expressar

um certo sentido de diferença, alteridade e estranhamento cultural em relação a

outras práticas culturais (ditas eruditas, oficiais ou mais refinadas) em uma

mesma sociedade, embora estas diferenças possam ser vistas como um sistema

simbólico coerente e autônomo, ou, inversamente, como dependente e carente em

relação à cultura dos grupos ditos dominantes.

Para alguns historiadores atuais, como Roger Chartier, sempre foi

impossível saber (ou mesmo não interessa descobrir) o que é genuinamente do

povo pela dificuldade ou mesmo impossibilidade de se precisar a origem social

das manifestações culturais, em função da histórica relação e intercâmbio cultural

entre os mundos sociais, em qualquer período da História. De qualquer forma,

Chartier está coberto de razão em alertar, com uma boa dose de denúncia, ser o

conceito de cultura popular uma categoria erudita, que pretende “delimitar,

caracterizar e nomear práticas que nunca são designadas pelos seus atores como

pertencendo à cultura popular”. Sempre há o risco, continua o historiador francês, de se ficar incessantemente procurando uma suposta idade de ouro da cultura

popular, período onde ela teria existido “matricial e independente”, frente a

épocas posteriores, onde a dita cultura popular teria começado a ser perseguida

1 Artigo publicado originalmente em: Abreu, Martha e Soihet, Rachel, Ensino de História,

Conceitos, Temáticas e Metodologias. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003. 2 Martha Abreu é professora do Departamento de História e do Programa de Pós Graduação em

História da UFF. Autora do livro “O império do divino, festas religiosas e cultura popular no Rio de

Janeiro, 1830-1900” (Nova Fronteira, 1999).

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por autoridades eruditas ou desmantelada pelos irresistíveis impulsos da

modernidade3.

Apesar de todos os problemas apontados e dos diferentes sentidos que a

expressão vem recebendo, insisto e costumo defender que o conceito é válido e

útil para os profissionais de História. Antes, porém, é bom não perder de vista

que, como todo o conceito, o de cultura popular também constrói identidades e

possui uma história. Neste caso, várias histórias, que recuam ao final do século

XVIII - com o filósofo Herder - sempre ligadas aos sujeitos e movimentos sociais

que o trouxeram a tona (ou o recriaram) e o elegeram como fundamental. Esta

história é para mim a chave das dificuldades que são atribuídas ao conceito. A

chave para o encaminhamento da discussão sobre cultura popular. Ao

aprofundarmos a história do conceito de cultura popular, realizamos uma operação

que subverte os seus sentidos universais, ahistóricos, ideológicos e políticos que

costumeiramente lhe são atribuídos. Como afirma Nestor Canclini, deve-se

desconstruir as operações científicas e políticas que colocaram em cena o

popular4.

Sendo assim, um dos meus objetivos aqui é exatamente chamar a atenção

dos profissionais de História para a importância de se pensar a história do

conceito de cultura popular e dos significados políticos e teóricos que o conceito

recebeu ao longo do tempo, sempre historicamente construídos ou inventados

(por isso, o envolvimento com as questões políticas e ideológicas de seu próprio

tempo).

Antes, porém, é bom deixar claro que não entendo cultura popular como

um conceito que possa ser definido a priori, como uma fórmula imutável e

limitante. Talvez possa ser visto como uma perspectiva, no sentido de ser mais

um ponto (de vista) para se observar a sociedade e sua produção cultural. O

fundamental, no meu modo de ver, é considerar cultura popular como um

instrumento que serve para nos auxiliar, não no sentido de resolver, mas no de

colocar problemas, evidenciar diferenças e ajudar a pensar a realidade social e

cultural, sempre multifacetada, seja ela a da sala de aula, a do nosso cotidiano,

ou a das fontes históricas. Não se deve perder de vista, entretanto, como já ouvi

certa vez, que muito mais fácil do que definir cultura popular é localizá-la em

países como o Brasil, onde o acesso à chamada modernidade não eliminou

práticas e tradições ditas pré-modernas (se bem que todo cuidado é pouco para

identificar estas práticas e tradições como populares).

Desde o final do século XIX, no Brasil, a expressão cultura popular esteve

presente numa vertente do pensamento intelectual, formada por folcloristas,

antropólogos, sociólogos, educadores e artistas, preocupada com a construção de

uma determinada identidade cultural. Artistas, políticos, literatos, intelectuais

tentaram responder a estas questões relacionando cultura popular com variados

3 CHARTIER, Roger, “Cultura Popular”: revisitando um conceito historiográfico. Revista Estudos

Históricos, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, vol. 8, n.16, 1995, p. 179-180. 4 CANCLINI, Nestor. Culturas Híbridas, São Paulo, Edusp, 1997.

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atributos, por vezes contraditórios: ora com a não modernidade, o atraso, o

interior, o local, o retrógrado, o entrave à evolução; ora com o futuro positivo,

diferente, especial e brilhante para o país, valorizando as singularidades culturais

e a vitalidade de uma suposta cultura popular, responsável pelo nascimento de

uma nova consciência, uma nova civilização, sempre mestiça.

A partir dos anos 1940/1950, cultura popular assumiu uma perspectiva

política associada aos populismos latino-americanos, que procuravam oficializar

as imagens reconhecidamente populares às identidades nacionais e à legitimidade

de seus governos. O conceito também foi incorporado pela esquerda,

principalmente na década de 1960, tendo assumido um sentido de resistência de

classe, ou, inversamente, de referência a uma suposta necessidade dos oprimidos

a uma consciência mais crítica, que precisava ser despertada O conceito poderia

ser encontrado entre os intelectuais do cinema novo, da teologia da libertação,

dos centros populares de cultura e entre os educadores ligados aos princípios de

Paulo Freire.

Atualmente, uma tendência dos que lidam com indústrias culturais e

comunicação de massa é pensar o popular em termos do grande público. Nesta

perspectiva, seria possível encontrar uma hierarquia de popularidade – em função

do maior ou menor consumo - entre os diversos produtos culturais ofertados no

mercado, tornando menos evidente o sentido político que anteriormente

marcava os usos da expressão “popular”. A despeito disto, não é incomum

encontrarmos certas afirmações de que alguns jornais são feitos para o “povão”, apresentando um padrão reconhecido como popular.

Evidentemente, seria impossível resolver, ou mesmo aprofundar, todas as

disputas em torno do conceito de cultura popular. Minha intenção neste artigo é

explicitar algumas correntes que tiveram (e ainda possuem) muita influência na

difusão, no meio acadêmico, artístico, jornalístico e escolar, de certos tipos de

entendimento do conceito de cultura popular

1) O caminho do Folclore e dos folcloristas. A cr1) O caminho do Folclore e dos folcloristas. A cr1) O caminho do Folclore e dos folcloristas. A cr1) O caminho do Folclore e dos folcloristas. A crítica da sociologia paulista. tica da sociologia paulista. tica da sociologia paulista. tica da sociologia paulista.

Se o folclore e os folcloristas são palavras muito desgastadas e

carregadas de conotações pejorativas, o pensamento dos folcloristas ainda está

presente nas esferas políticas, educacionais e culturais. Várias comissões de

folclore, inauguradas nos anos áureos da Campanha Nacional do Folclore, nas

décadas de 1950 e 1960, renovaram-se e são muito ativas (ver, por exemplo, o

site www.folclore.art.br e o jornal da Comissão Maranhense de Folclore,

http://sites.uol.com.br/cmfolclore). Embora, após estas décadas, os folcloristas

tenham perdido espaço no ensino universitário, em função do descrédito que sua

disciplina passou a ter, muito em função das críticas que feitas pela escola de

sociologia da Universidade de São Paulo (USP), obtiveram importantes vitórias no

ensino elementar, nas Secretarias de Turismo e Cultura, nas Escolas de Música e

Educação Física.

Os folcloristas e a disciplina que criaram - o folclore - surgiram na Europa.

Por mais que ultrapasse os limites deste artigo uma análise profunda da

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trajetória européia do folclore5, valem ser destacados alguns pontos importantes

desta história. Depois de os iluministas, no século XVIII, terem visto os

camponeses e os homens comuns como incultos e carentes de tudo, muitos

românticos, ao longo do século XIX, procuraram conhecer os costumes

populares, as expressões dos subalternos do mundo rural, elevando-as ao patamar

das marcas da nacionalidade contra tudo que fosse estrangeiro.

Herder, na futura Alemanha, no final do século XVIII, foi quem pela

primeira teria utilizado o conceito de cultura popular (Kultur des Volkes) sem o

sentido valorativo dos iluministas e com o sentido de alteridade. Segundo Norbert

Elias, a criação do conceito de “Kultur” (Cultura), opondo-se ao conceito

iluminista francês de Civilização, correspondia a um desejo de ascensão de

pequenos burgueses que iriam cultuar a sinceridade, a natureza, os modos

simples. Ligava-se à construção das bases da identidade cultural alemã, em

oposição às outras potências européias. O movimento protagonizado por Herder e

pelos irmãos Grimm buscou entre os costumes dos camponeses - seus poemas,

músicas, festas, saberes, histórias e rituais - encontrar as marcas de uma

essência diferenciadora e autêntica, o espírito coletivo de um “povo” em

particular, base para a construção da futura nação alemã. Os camponeses

pareciam, aos olhos destes intelectuais, ter guardado, desde tempos muito

remotos, a tradição que precisava ser resgatada frente às ameaças da

modernidade, da sociedade industrial e da civilização exteriores.

Os folcloristas propriamente ditos passaram a ser reconhecidos a partir de

1846, quando as denominações “folk” (que além de povo expressava a idéia de

nação) e “lore” (que significava saber, mas denotava também seriedade, pois

incluía os conceitos de educação e erudição) foram difundidas pela revista

inglesa “The Athenaeum” por W. J.Thoms. As pesquisas e obras publicadas

pelos folcloristas, ao longo do século XIX, construiriam a idéia de um “povo” portador de práticas e objetos culturais distantes do estrangeirismo das classes

ditas superiores, e, por isso, depositário do que era o mais autêntico e

essencialmente nacional. Desinteressados dos reais problemas sociais do

campesinato e dos trabalhadores das cidades, ambos profundamente afetados

com as transformações da revolução industrial, os folcloristas valorizaram as

continuidades, as sobrevivências e as tradições que pareciam teimar em

permanecer nas áreas rurais.

O folclore no Brasil, e também na América Latina, (ainda está para ser feito

um estudo mais sistemático sobre a História do Folclore na América Latina),

seguiu um caminho semelhante ao da Europa. Em geral, serviu para formar as

novas nações, no final do século XIX e início do XX, resgatar a identidade do

passado e os sentimentos populares frente ao cosmopolitismo liberal do período.

Desde Silvio Romero, no final do século XIX, a cultura popular, a poesia

popular e mais entusiasticamente a música dita popular já eram apontadas por

5 Sobre a trajetória européia do folclore, ver BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna,

São Paulo, Companhia das Letras, 1989, especialmente a Parte 1, e ORTIZ, Renato. Cultura

Popular: Românticos e Folcloristas,.São Paulo, Olho d’água, s/data.

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certos intelectuais como expressão da identidade nacional brasileira6.

Influenciados pelas discussões sobre os caminhos do progresso e da civilização,

estes intelectuais folcloristas investiram na compreensão e na avaliação sobre as

possibilidades da nação a partir destas especificidades próprias. Em torno da

qualidade e profundidade da poesia popular brasileira, por exemplo - vigorosa, ou

não, criativa ou apática - procuraram diagnosticar as potencialidades da nação

que projetavam, buscando resgatar, preferencialmente, a produção dos sertanejos

e dos caboclos do interior. Nas primeiras décadas do século XIX, além de suas

avaliações nunca terem sido muito positivas, em função das apregoadas

deficiências das 3 raças formadoras do “povo brasileiro”, a mestiçagem (na alma e

no sangue, como dizia Romero), quando valorizada, vinha associada a um futuro

branqueamento da nação que se pretendia construir.

O folclore e os folcloristas só ganharam mesmo expressão nacional a

partir da década de 1930, quando consagrou-se a estreita união entre identidade

nacional, a miscigenação e a positiva e rica cultura popular nacional. São

apontados como maiores marcos deste momento a obra de Gilberto Freyre,

publicada em 1933, e o próprio regime Vargas, que atrairia para a esfera do

Estado as manifestações culturais populares, como, por exemplo, as escolas de

samba7.

Segundo Luis Rodolfo Vilhena, que construiu uma importante história do

que se chamou de o “Movimento Folclórico Brasileiro”, entre 1947-1964, os

folcloristas brasileiros tentaram construir o caráter da sociedade e cultura

nacionais, investindo-se de um sentido de missão8. A construção nacional viria

através da integração cultural. O Movimento Folclórico, entre 1947-1964,

produziu uma vertente significativa do pensamento antropológico (maioria dos

livros de antropologia publicados na época) e se entendia relevante por seu

objetivo de construção nacional. Grandes figuras, de diferentes tendências,

destacaram-se dentro do folclorismo: Renato Almeida, Rossini Tavares de Lima,

Artur Ramos, Câmara Cascudo e Edson Carneiro

Os folcloristas, também no Brasil, buscaram o “outro”, mas o “outro” dentro do próprio país, antes que, na sua concepção, ele desaparecesse pelos

inevitáveis impulsos da urbanização e modernização. Valorizaram os registros

obtidos a partir da cultura rural oral de seus informantes, e defenderam a

concepção de que inexistiam autores entre as manifestações populares. Ambas

perspectivas eram importantes para a construção de seus veredictos sobre a

autenticidade do que definiam como cultura popular (posto que reprodutora de

tradições de tempos imemoriais). A autenticidade da cultura popular era

6 Como bons exemplos, podemos citar José de Alencar com “O nosso romanceiro” (1874),

Araripe Jr com “Cantos populares do Ceará” (1884) e Mello Moraes Filho com “Festas populares

do Brasil”(1888). Ver VAINFAS, Ronaldo, Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro, Objetiva,

2002, verbetes sobre folclore e Silvio Romero. 7 Ver SOIHET, Rachel, Subversão pelo Riso, Reflexões sobre Resistência e Circularidade cultural

no Carnaval Carioca, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1998. 8 Ver VILHENA, L. Rodolfo, Projeto e Missão: O Movimento Folclórico Brasileiro, 1947-1964,

Funarte/Fundação Getúlio Vargas, 1997. .

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fundamental para que pudesse legitimar a expressão da verdadeira singularidade

nacional.

Se o folclore valorizava o tradicional e o que permanecia, como traços de

uma identidade cultural e étnica, marcada pela integração cultural sincrética das

3 raças (também conhecida como a “fábula da união das três raças”), a sociologia

das décadas de 1950 e 1960, liderada pela Universidade de São Paulo (USP)

de Florestan Fernandes, passou a ver as culturas populares no âmbito da

modernização, da mudança social e das desigualdades sociais. Os folcloristas e o

folclore passaram a receber críticas profundas por defenderem uma prática tida

como não científica, em função de seu pretenso caráter mais descritivo que

interpretativo, e por ficarem identificados às forças mais conservadoras de uma

sociedade que rapidamente se transformava, cheia de conflitos sociais. Acabaram

sendo marginalizados nas universidades e esquecidos pela intelectualidade de

esquerda, como bem demonstrou Luis Rodolfo Vilhena. As críticas tiveram uma

tal repercussão que a expressão folclore hoje possui significados negativos,

assumindo até mesmo conotações ligadas ao anedótico e ao ridículo.

Para os sociólogos ligados à USP, dentre eles também Roger Bastide e

Maria Isaura Pereira de Queiroz, a segmentação social e o preconceito racial não

permitiram a criação de uma cultura nacional ou de uma sociedade e cultura

integradas, pois o “povo”, nesta concepção, não mais poderia ser visto como o

produtor de cultura autêntica, já que se tornara o proletariado. A integração

nacional não se realizava via integração cultural, como pretendiam os folcloristas,

mas através da dominação dos estratos dominantes. Não se poderia mais pensar

em “integração cultural”, mas em como “integrar os estratos sociais” marginalizados

9.

O resultado de todo este debate, entretanto, foi muito além da

desvalorização da produção acadêmica dos folcloristas e do folclore. Passaram

também para segundo plano as discussões sobre os significados das práticas

culturais ditas tradicionais, populares ou não (festas religiosas, por exemplo), e a

reflexão sobre a dinâmica das intensas trocas culturais (interior/urbano;

popular/erudito) na sociedade brasileira. Ganharam terreno trabalhos preocupados

com a transformação do Brasil em uma moderna sociedade de classes e com a

busca das razões econômicas da reprodução das desigualdades sociais.

Se a discussão em torno da cultura dos setores subalternos manteve-se

acesa, atrelou-se, em grande parte, às avaliações sobre os aspectos que levavam

à sua alienação ou consciência de classe, o que possibilitou a consolidação de

uma série de visões preconceituosas sobre a cultura popular: cultura fragmentada,

conservadora, presa às tradições, obstáculo às mudanças sociais, conformista e

supersticiosa. As reflexões sobre as manifestações culturais dos homens e

9 Ver CAVALCANTE, M. L.V. e VILHENA, L.Rodolfo, “Traçando fronteiras: Florestan Fernandes e a

marginalização do folclore. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas,

vol. 3, n. 5, 1990.

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mulheres comuns acabaram ficando, mais uma vez, prisioneiras das armaduras

ideológicas de seu próprio tempo.

Evidentemente, os estudos de folclore diziam muito pouco sobre como se

processava a dominação. Não se preocupavam em conhecer os problemas e a real

situação das classes populares em foco. Idealizavam um autêntico “povo rural” que não ameaçava a ordem social. Preferiam pensar as culturas populares como

diferentes e não como partes que também eram (e são) de um sistema de

dominação.

Desta última perspectiva, que incorporava reflexões sobre a dominação,

participaram, principalmente a partir da década de 1970, intelectuais marxistas

que receberam a reconhecida influência de Gramsci. As culturas subalternas, em

sua perspectiva, seriam o resultado da distribuição desigual dos bens econômicos

e culturais, ao mesmo tempo que poderiam oferecer uma forma de oposição à cultura hegemônica, dos setores dominantes. Criavam-se as bases de reflexão

sobre o caráter resistente dos setores populares, oprimidos em suas condições de

vida e cultura. Combinando os dois lados da questão, Marilena Chauí publicava,

em 1986, o clássico “Conformismo e resistência, aspectos da cultura popular no

Brasil”. Entre sobrevivências, tradição, modernidade, globalização, luta de classes,

alienação, dominação, resistência, visões que percorrem os livros acadêmicos, os

livros didáticos, e o senso comum, onde fica, afinal, a cultura popular? Ainda vale

a pena utilizar a expressão? Onde ficamos nós frente a ela?

2) Outras possibilidades: a vez dos historiadores2) Outras possibilidades: a vez dos historiadores2) Outras possibilidades: a vez dos historiadores2) Outras possibilidades: a vez dos historiadores

Seguindo o raciocínio de Nestor Canclini, hoje temos mais clareza a

respeito das irresistíveis pressões da modernidade. Percebe-se com maior

facilidade a existência de várias modernidades, através de diferentes formas de

articulação entre o modelo racionalista liberal (considerado moderno) e as antigas

tradições populares, étnicas, religiosas etc. A chamada modernidade não pode

mais ser vista como homogênea, nem como um instrumento todo poderoso que

reorganiza, necessariamente e da mesma forma, todas as práticas culturais.

Evidentemente, não se pode também pensar em um isolamento completo, os

grupos de alguma forma reagem (ou interagem) ao mercado transnacional que se

apresenta.

O mundo da cultura e das práticas culturais é (e sempre foi) repleto de

contradições e conflitos, que podem ser rapidamente observados na sociedade

brasileira se lançarmos mão de velhos impasses, como a permissão, ou não, para

os escravos batucarem e sambarem, e de novos desafios, como o convívio, ou

não, com o funk. Esquecer estes conflitos, ou as interações e tolerâncias que

sempre existiram, é perder de vista a possibilidade de compreensão das práticas

culturais. Esta é a nossa proposta: pensar nesta perspectiva o mundo da cultura,

especialmente entre os setores populares. É possível construir uma nova

perspectiva do popular, do tradicional popular, da cultura popular a partir dos

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conflitos, intercâmbios e sincretismos com as chamadas cultura das elites,

indústrias culturais e modernidades?

Resgatando Carlo Ginzburg, que muito contribuiu para renovar os estudos

sobre cultura popular na História, houve uma importante mudança ao se romper

com a posição de quem distinguia nas idéias, crenças, visões do mundo das

classes subalternas nada mais do que um acúmulo desorgânico de fragmentos de

idéias, crenças, visões do mundo elaborados pelas classes dominantes,

provavelmente vários séculos antes. Rompia-se com a idéia aristocrática de

cultura, quando se passava a reconhecer que os indivíduos outrora definidos

como “camadas inferiores dos povos civilizados” possuíam cultura, ou seja

possuíam, na sua perspectiva, um conjunto próprio de “atitudes, crenças e

códigos de comportamentos”. Em sua feliz frase, “a consciência pesada do

colonialismo, que criou a antropologia cultural, se uniu assim à consciência

pesada da dominação de classe”10.

A existência de desníveis culturais no interior das assim chamadas

sociedades civilizadas foi, segundo o autor, sendo definida por várias disciplinas

como o folclore, a antropologia social, a história das tradições populares e a

etnologia européia. Só tardiamente, basicamente na década de 1970, esta

perspectiva foi incorporada pela historiografia. Em seu trabalho sobre o cotidiano

e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição na Itália, no século XVI

(publicado na Itália, em 1976, e no Brasil em 1987), Ginzburg aprofundou

questões que se tornaram fundamentais para os historiadores: a relação entre a

cultura das classes subalternas (termo cunhado por Gramsci) e a das classes

dominantes. Até que ponto há subordinação? Até que ponto é alternativa? Como

entender a circularidade, ou, em termos tropicais, os sincretismos culturais e

religiosos?

Esta discussão de Ginzburg, na década de 1970, foi parte integrante de

um movimento maior de historiadores ligados à história social, que resgatava, não

só a perspectiva do mundo da cultura na História, mas a perspectiva da “história

vista de baixo”: as culturas do povo e a multidão na História; “economia moral”

dos pobres; experiência e cultura dos trabalhadores; circularidades culturais e

apropriações de sujeitos históricos com uma dose variável, mas razoável de

autonomia. Como marcos deste movimento, em termos de discussão sobre

cultura popular, podem ser destacados Peter Burke, Mikhail Bakhtin, Robert

Darnton , E. P. Thompson, além do próprio Ginzburg11

.

A obra do historiador inglês Peter Burke, de 1978, foi uma das primeiras

publicações em português (1989) a tratar do tema cultura popular de uma forma

global, na Europa, entre 1500- 1800. Consciente das dificuldades, Burke

explicitou na Introdução da edição brasileira os impasses que acompanhavam os

que se dedicavam à temática, sem abrir mão, entretanto, da opção que fizera de

10

GINZBURG, Carlo, O Queijo e os Vermes. São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 17 11

Ligada a esta temática também devem ser mencionados os estudos sobre religiosidade popular,

como, por exemplo o de THOMAS, Keith, Religião e declínio da magia. São Paulo, Companhia das

Letras, 1991

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estudar a cultura popular no período moderno. Levantou os perigos do uso do

termo, dentre eles o de dar a impressão de uma grande homogeneidade no

tempo e espaço em termos culturais e o de favorecer abusos sobre a suposta

oposição entre cultura popular e cultura erudita. Pensar a interação e

compartilhamento entre estas culturas seria sempre uma boa opção. Visando

encaminhar estes problemas, Burke cunhou o termo “biculturalidade” para

expressar o quanto membros das elites, representantes da “alta cultura”, conheciam e participavam do mundo da cultural popular, ao mesmo tempo que

preservavam a sua própria cultura. Também não deixou de chamar a atenção para

a possibilidade de significados diferentes, quando práticas culturais eram

compartilhadas, como festas ou feiras, entre membros do povo e das elites.

Peter Burke levou realmente a sério os questionamentos realizados por

Roger Chartier sobre os equívocos que acontecem quando se procura identificar

cultura popular em determinados objetos culturais (como literatura de cordel ou

ex-votos), já que os referidos objetos eram ‘apropriados’ (termo de Chartier) “para

suas próprias finalidades por diferentes grupos sociais, nobres e clérigos, assim

como artesãos e camponeses”12. Em resposta, Burke procurou mostrar que as

críticas de Chartier não invalidavam o seu trabalho, na verdade seriam

complementares, pois, além de ter definido as elites, no começo da Europa

moderna, como “biculturais”, não definiu cultura popular em torno de objetos

específicos. Para o autor, cultura seria “um sistema de significados, atitudes e

valores compartilhados, e as formas simbólicas (apresentações – formas de

comportamento, como festas e violência - e artefatos – construções culturais,

como categorias de doença ou política) nas quais elas se expressam ou se

incorporam”13.

Em trabalho mais recente, Peter Burke parece ter amadurecido muitas de

suas questões anteriores, ao definir o problema dos limites entre a “unidade e a

variedade na história cultural”, título de capítulo de um de seus últimos livros14

,

como um dos maiores desafios dos historiadores interessados na questão.

Defendendo a necessária, porém difícil, resistência a uma visão fragmentada de

cultura (seja por grupo social, região ou gênero), sem se retornar à suposição

enganadora da homogeneidade de um período, o autor valoriza a busca dos

processos de interação (definidos ora em termos de troca, empréstimo,

apropriação, resistência, sincretismo, hibridação etc) “entre diferentes

subculturas, homens e mulheres, urbanos e rurais, católicos e protestantes,

dominantes e dominados”15. Em outro aspecto complementar, Burke incorpora as

recentes preocupações com a formação de identidades culturais, fruto de

apropriações e opções dos próprios agentes sociais.

Para outro importante historiador inglês, E. P. Thompson, também

preocupado com um período de intensas mudanças no século XVIII, a discussão

12

BURKE, Peter, A Cultura Popular, Op. Cit., p.24 (nesta citação o autor refere-se diretamente a

Roger Chartier) 13

Idem, ibidem, p.26. 14

BURKE, Peter, Variedades em História Cultural. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000. 15

Idem, ibidem, p. 259 e 267.

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sobre cultura popular deve ser inserida no movimento das classes trabalhadoras

em defesa de seus costumes (entendidos por muito tempo como cultura), frente

às pressões exercidas pelos reformadores das mais variadas espécies (educadores,

religiosos, por exemplo) e pelos capitalistas em geral, disseminadores de uma

nova disciplina de trabalho e de um novo domínio da lei. Em sua perspectiva,

sintetizada na Introdução do livro ‘Costumes em Comum”16, publicado em 1991

na Inglaterra e em 1998 no Brasil, a chamada cultura tradicional (ou pré-industrial) dissociava-se, naquele contexto histórico, do que chamou da cultura da

“gentry” (também denominados de “vigorosos capitalistas agrários”), assumindo

um nítido viés de luta de classes na defesa de seus costumes, que incluíam tanto

condições de trabalho, como festas, feiras, vida em tavernas e ritos sociais. A

visão de uma tradição entendida como sobrevivência do passado, foi bastante

criticada por Thompson e compreendida em termos políticos como um local de

disputas e conflitos entre interesses opostos.

É exatamente neste sentido, no meu modo de ver, a maior contribuição de

Thompson para os estudos de cultura popular. O autor recomenda muito atenção

para os perigos de se trabalhar com uma idéia de cultura popular com uma

perspectiva ultraconsensual e simplificadora, que determinadas definições

antropológicas podem sugerir, como por exemplo a que foi utilizada por Peter

Burke no trabalho de 1978 e citada parágrafos acima (nota 11)17

. Na suas

reflexões, cultura é um conjunto de diferentes recursos, em que há sempre uma

troca entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a

metrópole. É uma arena de elementos conflitivos localizados dentro de específicas

relações sociais e de poder, de exploração e resistência à exploração.

O recurso ao contexto histórico específico, diretamente ligado à experiência dos trabalhadores (uma possibilidade de nos livrarmos do

determinismo estrutural e do voluntarismo dos agentes sociais) é sempre visto por

Thompson como fundamental, evitando-se generalizações universais,

mecanicistas e vazias. No caso estudado pelo autor, a cultura plebéia inglesa do

século XVIII não era independente de influências externas; assumia uma forma de

defesa de suas tradições (nem sempre ligadas à igreja ou às autoridades) em

relação aos limites e aos novos controles impostos pelos “governos patrícios” e

pelas transformações do mundo industrial moderno. Podia também renovar-se e

assumir um caráter rebelde em termos do que Thompson chamou de “economia

moral da plebe”. Nos limites deste trabalho, seria impossível um aprofundamento de todos

os historiadores que abriram as portas para o debate em torno de cultura popular.

A escolha de Peter Burke e Thompson deveu-se ao fato de terem discutido e

enfrentado as principais questões em torno da relação entre história,

historiadores, folclore e cultura popular. De alguma forma dialogando com estes

autores, os historiadores brasileiros que se dedicaram ao tema já reúnem uma

expressiva produção em termos de estudos sobre protestos sociais, festas e

16

THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. São Paulo, Cia das Letras, 1998. 17

Ver THOMPSON, E. P. op.cit. , p. 17.

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carnavais, religiosidades populares e/ou afro-brasileiras, práticas médicas,

valores familiares e morais18

4) Cultura popular hoje: ensino e pesquis4) Cultura popular hoje: ensino e pesquis4) Cultura popular hoje: ensino e pesquis4) Cultura popular hoje: ensino e pesquisaaaa

Não há dúvida de que entre os importantes marcos da discussão sobre

cultura popular destaca-se a compreensão da relação entre as culturas ditas

tradicionais e populares, e a avaliação sobre as irresistíveis pressões e

transformações supostamente impostas pela modernidade, em qualquer período

histórico. Isto deu margem a algumas ironias por parte de Roger Chartier sobre o

eterno destino trágico atribuído à cultura popular por parte de alguns

historiadores: ser abafada, recalcada e arrasada19

.

Para a discussão que estamos aprofundando talvez sejam oportunas as

palavras de Thompson, em uma palestra proferida na Índia, em 1977, quando

valorizava os trabalhos de história que procuravam investigar o folclore e a

tradição, como ótimas oportunidades para se estudar os costumes antigos e seus

significados sociais:

“O folclore na Inglaterra é, na maior parte, uma compilação literária de

resquícios dos séculos XVIII e XIX, testemunhos coletados por párocos e educados

antiquários, que os reconheciam por detrás da fronteira de classe da

condescendência. No trabalho de um especialista indiano contemporâneo,

constato que ele coletou, durante a pesquisa em dois vilarejos, 1500 canções

populares, 200 histórias, 175 adivinhações, 800 provérbios e algumas simpatias.

Fico roxo de inveja ao escrevê-lo...”20

Pensar a pertinência do uso do conceito de cultura popular no Brasil hoje

requer que se leve em consideração esta “inveja” de Thompson e se avalie até que ponto a cultura dita de massa ou a globalização encerraram as possíveis

continuidades e/ou renascimentos da cultura popular – presente em canções,

músicas, festas, valores, e expressões religiosas, por exemplo - em áreas ainda

distantes do centro capitalista mais moderno ou em áreas que construíram

caminhos variados de relação com as ditas modernidades.

Para períodos mais recentes, a análise do sociólogo mexicano Nestor

Canclini sobre cultura popular pode ajudar, principalmente aos profissionais que

trabalham com alunos pertencentes aos setores populares e enfrentam uma série

de desafios nesta difícil empreitada.. Afinal, os professores que atuam nas escolas

públicas brasileiras das grandes cidades, para além de suas funções profissionais,

acabam tendo que abrir o diálogo (ou, ao menos pensar, nele) entre mundos às 18

Ver, por exemplo, os trabalhos de João José Reis, Jorge Ferreira, Marina de Mello e Sousa,

Maria Clementina Pereira Cunha, Rachel Soihet, Ronaldo Vainfas, Sidney Chalhoub, dentre

outros. 19

CHARTIER, op.cit. , p. 181. 20

THOMPSON, E. P. “Folclore, Antropologia e História Social”. In: As Peculiaridades dos Ingleses

e outros ensaios. Campinas, Ed. Da Unicamp, 2001, p. 233

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vezes muito diferentes e estranhos, o seu e o dos alunos - sendo que na maioria

das vezes não estão preparados para isso. Ao tentarem o diálogo, aproximam-se

forçosamente da posição dos folcloristas, pois precisam refletir sobre as

diferenças culturais e as possíveis aproximações entre professores e

representantes de setores populares (sem contar com as possíveis diferenças entre

os próprios alunos!). Se esta relação é por vezes difícil e conflituosa, as

discussões aqui realizadas sobre cultura popular podem ajudar os professores a

lidar com as desafiantes sensações de estranhamento e, conseqüente,

insegurança. Para os alunos, essas mesmas discussões podem ajudá-los a

perceber e a construir identidades comuns entre eles, e entre eles e os

professores. Podem, enfim, contribuir para que todos entendam que a luta pela

igualdade de oportunidades e direitos inclui o respeito daquilo que talvez mais

valorizem, os significados de suas músicas, jogos, festas e carnavais.

Segundo Canclini, as culturas populares conseguem ser, atualmente,

prósperas e, ao mesmo tempo, híbridas21

. O desenvolvimento moderno não teria

suprimido as culturas populares. As culturas tradicionais desenvolveram-se e

também transformaram-se por vários motivos. Podem não ter sido inteiramente

incorporadas à ação do Estado ou integraram-se parcialmente nos circuitos

comerciais do artesanato, da festa, da música e do turismo. Por razões culturais e

também econômicas, percebe-se a continuidade da produção cultural dos setores

populares. O importante, então, diferentemente da perspectiva do folclorista, não

seria buscar o que não muda. Mas por que muda, como muda e interage com a

modernidade.

Em segundo lugar, Canclini defende que se deva levar em consideração

que o popular não se concentra em objetos. O importante são as mudanças de

significados, resultantes de interações. A arte popular, por exemplo, não seria uma

coleção de objetos; nem a ideologia subalterna, um sistema de idéias, nem

repertórios fixos de práticas. O popular não é monopólio dos populares. Não se

pode mais buscar uma identidade de ouro da cultura popular no sentido de ter

estado independente, sem contato de espécie alguma. Uma mesma pessoa pode

participar de vários grupos e circuitos culturais. Nos fenômenos culturais

populares, vistos como folclóricos ou tradicionais, intervém os ministérios, as

fundações privadas, empresas de bebidas, rádios e televisão, agentes populares e

hegemônicos, rurais e urbanos, locais, regionais, nacionais e transnacionais.

Enfim, eles são multideterminados.

Em terceiro lugar, insiste na idéia de que o popular não é vivido pelos

agentes sociais como uma manutenção melancólica das tradições. A transgressão

da tradição é também, muitas vezes, vista com humor. Uma festa, por exemplo,

pode não acabar com as hierarquias e desigualdades, mas promove uma relação

mais livre e mais criativa com as tradições herdadas. A preservação pura das

tradições não é sempre o melhor recurso popular para reproduzir-se e reelaborar

sua situação. A integração econômica não necessariamente desagrega, como se

21

CANCLINI, Nestor, “A Encenação do popular”. In: Culturas Híbridas.São Paulo, Edusp, 1997.

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pensava; pode haver melhoramento econômico e maior coesão da comunidade,

pelo artesanato e festas. A continuidade (ou retomada) das tradições não

inviabiliza, como se pensava antes entre modernizantes e tradicionalistas, a

modernização. Esta é seletiva. Não há apenas subordinação do gosto popular às novas regras do mercado ou ao gosto dos consumidores urbanos e turistas. Os

artesãos do México estudados por Canclini movem-se sem demasiados conflitos

entre mais de um sistema cultural.

Com estes argumentos levantados pelo autor e com as perspectivas

abertas pela historiografia, entendo que possam ser revistas as velhas oposições

que norteavam os estudos de cultura popular, como por exemplo, entre o

tradicional e o moderno, o popular e o erudito, o local e o estrangeiro. Segundo

Canclini, é necessário desconstruir esta divisão entre o culto, o popular e a

cultura de massa, e investigar o que denominou de hibridismo Em sua

perspectiva, nada é puro, as culturas são híbridas.

Diante dessas alternativas, estariam resolvidos todos os problemas se

substituirmos cultura popular por culturas híbridas? Não haveria mais lugar para

o popular? Claro que sim, mas algumas explicações são necessárias.

Antes de tudo, é uma expressão que está disponível e muito presente em

diferentes locais da sociedade: na produção acadêmica, nas secretarias de

turismo, nas escolas, na mídia e entre os próprios agentes sociais identificados

como populares. Por outro lado, a eliminação de sua utilização talvez requeira

mais trabalho do que a sua defesa.

Há, certamente, uma posição clara, teórica e política - nada ingênua, diga-

se de passagem - ao se defender a utilização da expressão cultura popular. O

objetivo é colocar no centro da investigação as pessoas de baixa renda,

geralmente identificadas e discriminadas socialmente pela cor da pele, pelo local

de moradia, pelo modo de ser e vestir e pela pretensa criminalidade. No sentido

político, seriam os desprovidos de poder. Se podem ser tratados genericamente

por populares (sem a obrigação de suprimirmos as possíveis e grande diferenças

entre eles, como as distinções de gênero, raça, idade, região e religião), isto deve-

se ao fato de compartilharem certos aspectos, que devem ser demonstrados,

tais como condições de vida, significados de festas e danças, gostos, e, de modo

geral, assim serem considerados por autoridades policiais, professores,

intelectuais e, muitas vezes, por eles próprios. Deve-se considerar que muitos

organizadores de festas, membros de grupos folclóricos, músicos, artistas

plásticos e artesãos auto-denominam-se “populares”. Por outro lado, há um reconhecimento evidente de que estes sujeitos

sociais pensam, agem, criam e transformam seu próprio mundo (valores, gostos,

crenças), e tudo o que lhes é imposto, em função da herança cultural que

receberam e de sua experiência histórica. Como agentes de sua própria história

(e cultura), homens e mulheres das camadas pobres criam, partilham, apropriam-

se e redefinem os significados de valores, hábitos, atitudes, músicas, danças e

festas de qualquer origem nacional, regional ou social. Neste sentido, cultura

popular não é apenas entendida como o conjunto de objetos ou práticas que são

originárias ou criadas pelos setores populares.

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Além de permitir o resgate ou a reconstrução da possível autonomia dessas

pessoas pensarem e agirem no mundo em que vivem (ou viveram), a expressão

cultura popular mantém aberta, no meu modo de ver, a possibilidade de se

pensar em um campo de lutas e conflitos sociais em torno das questões culturais,

já que, no mínimo, existiriam culturas não populares, mesmo que definidas,

neste momento, em termos negativos. Desta forma, a expressão pode servir para

se enfrentar a globalização, não no sentido de valorização das pretensas

identidades nacionais, mas reforçando a perspectiva de existência de diferentes

significados sociais em torno das manifestações culturais coletivas, como por

exemplo, os carnavais e festas de um modo geral22

. Pode também estimular a

criação de identidades sociais/culturais e vínculos duradouros entre grupos de

reconhecida expressão cultural ou religiosa, como, por exemplo, as escolas de

samba, os grupos que organizam folias de reis e congadas.

Evidentemente, estas considerações não encerram todos os problemas e,

pelo contrário, é exatamente nelas que se colocam os desafios. Como já afirmei

em outra oportunidade, cultura popular não é um conceito passível de definição

simples ou a priori. Cultura popular não é um conjunto fixo de práticas, objetos

ou textos, nem um conceito definido aplicável a qualquer período histórico.

Cultura popular não se conceitua, enfrenta-se. É algo que precisa sempre ser

contextualizado e pensado a partir de alguma experiência social e cultural, seja no

passado ou no presente; na documentação histórica ou na sala de aula. O

conceito só emerge na busca do como as pessoas comuns, as camadas pobres ou

os populares (ou pelo menos o que se considerou como tal) enfrentam (ou

enfrentaram) as novas modernidades (nem sempre tão novas assim); de como

criam (ou recriaram), vivem (ou viveram), denominam (ou denominaram),

expressam (ou expressaram), conferem significados (ou conferiram) a seus

valores, suas festas, religião e tradições, considerando sempre a relação

complexa, dinâmica, criativa, conflituosa e, por isso mesmo, política mantida com

os diferentes segmentos da sociedade: seus próprios pares, representantes do

poder, reformadores, professores etc. Não se deve perder de vista a reflexão sobre

as possibilidades destas manifestações encontrarem-se relacionadas com as

lutas sociais e políticas mais amplas da sociedade a que pertencem (ou

pertenceram).

Que a escola e a universidade criem boas oportunidades para realizarmos

esta reflexão.

“Podemos tocar funk na festa junina?Podemos tocar funk na festa junina?Podemos tocar funk na festa junina?Podemos tocar funk na festa junina?”

Uma oportunidade para se discutir identidade, tradiUma oportunidade para se discutir identidade, tradiUma oportunidade para se discutir identidade, tradiUma oportunidade para se discutir identidade, tradição e cultura popular na o e cultura popular na o e cultura popular na o e cultura popular na

escolaescolaescolaescola

22

Ver DARNTON, Robert, O grande massacre dos gatos. Rio de Janeiro, Graal, 1986, p. .XV. O

autor preocupou-se em começar com a idéia de captar a diferença dentro de um idioma comum.

Ver também CUNHA, Maria Clementina Pereira, Ecos da Folia. São Paulo, Companhia das Letras,

2001 .

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A pergunta – podemos tocar funk na festa junina? - já me foi feita várias

vezes em encontros e discussões que participei sobre cultura popular. Em geral,

costumo responder com novas perguntas: E a coca-cola, pode entrar? E o já

tradicional “hot-dog”? Afinal quem estabeleceu a tradição? O que deve, ou não,

entrar nas festas juninas, festas insubstituíveis no calendário escolar, estadual e

nacional?

Antes de tentar buscar algum caminho de resposta a estas perguntas, é importante perceber que a que envolvia o funk expressava, além da preocupação

por uma certa tradição junina, que não deveria mudar, o desconforto em relação a

um novo gênero de música e dança que domina as novas gerações pobres da

cidade, embora não apenas as pobres. É comum ouvirmos opiniões de desprezo e

preconceito em relação ao funk, emitidas por certos setores cariocas, como

intelectuais, que desqualificam as características musicais do funk, acusando-o

também de uma importação empobrecida do co-irmão norte-americano; setores

médios, que se incomodam com o barulho e com a pretensa violência dos bailes;

e autoridades policiais, preocupadas com a presença do tráfico de drogas nestes

locais.

Sem dúvida, as festas, sejam religiosas, sociais ou carnavalescas, ocupam

um lugar especial na nossa sociedade e nas diversas formulações sobre a

identidade dos brasileiros. Desde o século XIX é comum ouvirmos afirmações

sobre o caráter festivo do povo brasileiro. Carnaval, samba e alegria seriam nossas

marcas registradas. Estas afirmações, entretanto, devem ser vistas como uma

versão (ou mesmo construção ideológica) sobre os encontros e intercâmbios

múltiplos, que as festas proporcionam, entre os diferentes setores sociais, dando

margem a acreditarmos que nos tornamos brasileiros nas comemorações

carnavalescas.

É claro que esta imagem da festa ainda está longe de ser estendida e

atribuída aos bailes funks, o que de alguma forma confirma o que vários

historiadores já mostraram sobre as festas, desde o período colonial: poderiam

ser locais de conflito, oportunidades para fugas e rebeliões de escravos e/ou

caminhos de afirmação de identidades étnicas e/ou regionais de determinados

grupos. As festas, reconhecidas como populares, ou não, em qualquer período,

pertencem à história e, portanto, apesar das tentativas de seus organizadores ou

das aparências formais de sua continuidade e unidade, transformaram-se,

ganharam novos sentidos e possibilidades; podem ter servido para manter ou

ameaçar a ordem reinante; podem ter sido perseguidas, reprimidas ou toleradas,

dependendo da ocasião, como os batuques negros; podem ter recebido

influências externas de outras regiões e países e, mesmo assim, serem

consideradas como “coisas da terra”. As festas são, por todos estes possíveis

sentidos, polissêmicas, apesar dos esforços de muitas autoridades e de muitos

intelectuais de aprisioná-las na prática e nos seus significados.

Particularmente na escolas, as festas ocupam local de destaque. Pode

existir festa sem escola, mas escola sem festa é difícil encontrar. Este traço

festivo das escolas foi muito estimulado a partir da década de 1950, quando

organizaram-se as Comissões estaduais e federal de folclore. Na perspectiva dos

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folcloristas, como Renato Almeida, Amadeu Amaral e Cecília Meireles, os estudos

folclóricos deveriam participar do processo educativo como um conteúdo

curricular e como orientador da ação pedagógica socializadora dos professores.

Eles precisavam ser vivenciados nas escolas, principalmente no ensino primário,

como estratégia de valorização do que os folcloristas consideravam como “nossas

tradições nacionais”, uma espécie de “ensino cívico”, mas vinculado ao estímulo

de um “sentimento comum” de pertencimento, como demonstrou Luís Rodolfo

Vilhena23

. Sentindo e vivendo o que os folcloristas consideravam como as

tradições populares, base para a formação da identidade nacional brasileira, as

crianças poderiam enraizar-se na cultura de seu país, valorizando-o e

respeitando-o . As festas e os folguedos, por mobilizarem toda a comunidade

escolar - especialmente as de São João, uma das mais difundidas devoções no

Brasil - tornaram-se uma excelente oportunidade para a aplicação desta

estratégia no ensino.

A história das festas juninas no Brasil ainda está para ser feita, mas alguns

comentários podem ajudar no sentido de refletirmos sobre esta pretensa tradição.

Decididamente, elas não possuem uma origem nacional, foram trazidas pelos

portugueses e aqui, comemoradas desde os tempos coloniais, muito antes de se

conceber uma nação brasileira. Reza a tradição cristã, nunca inteiramente livre de

antigas práticas pagãs, no caso ligadas ao culto ao fogo, que as festas de São João

são marcadas por fogos, fogueiras e mastros para recordar a lenda de Santa

Isabel. Isabel teria acendido a fogueira ao lado do mastro para anunciar a Nossa

Senhora o nascimento de São João Batista.

Os melhores e mais antigos relatos que consegui encontrar sobre as festas

de São João no Brasil – no Rio de Janeiro e Sergipe – foram os de Melo Moraes

Filho, escritos no final do século XIX. Descrevendo as festas que aconteciam em

meados do século XIX, partes integrantes do chamado ciclo junino, que incluíam

Santo Antônio e São Pedro, o autor destaca a grande animação da zona rural e

das nas maiores cidades. No Rio de Janeiro, por exemplo,

“pretos ao ganho” eram vistos com “cestos carregados de foguetes e fogos

de todo gênero, de canas e batatas-doces, de cará e milhos verdes, de galinhas,

ovos e perus; de tudo, enfim, que dizia respeito à folia da noite e aos lautos

jantares e ceias que então se davam”24.

23

Sobre a relação entre folclore e educação, ver VILHENA, L. R. op.cit., p. 191-196. 24

MORAES FILHO, Mello, Festas e Tradições populares do Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia, São

Paulo, Ed. USP, 1979, p.77. É interessante notar que as festas de São João, Santo Antônio e São

Pedro também, nunca foram organizadas ou promovidas por alguma irmandade específica. Eram

vivenciadas pela população em geral, ricos e pobres, de uma forma autônoma e espontânea. Na

pesquisa que realizei, sobre os santos mais comemorados no Rio de Janeiro do século XIX, a partir

dos pedidos de licenças para festas, Santo António e São João ocupam os dois primeiros lugares.

São Pedro aparece em 6o. lugar, atrás do Espírito Santo, Nossa Senhora da Conceição e Festa de

Reis.

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Não podiam faltar os preparativos para as fogueiras, para todo o tipo de

fogos – rodinhas, pistolas, foguetes, busca-pés, chuveiros, rojões, cartas de

bichas, girassóis, bombas etc - para as mesas com os livros de sortes e para as

danças com violões. A comilança ficava por conta das rezes mortas na véspera, do

milho verde, da canjica, das canas, cocos, carás, inhames, melados e dos famosos

bolos de São João. Muita coisa, como os carás e batatas, era assada na fogueira,

onde os mais afoitos divertiam-se tentando pulá-la. As superstições eram um dos

pontos altos da festa, como por exemplo a noção de que as brasas da fogueira

eram bentas; de que o banho nos primeiros raios de sol do dia de São João

traziam propriedades miraculosas e de que as moças solteiras podiam saber com

quem iriam casar-se, depois de fazerem um bochecho com a água de um copo

que havia passado sobre a fogueira em louvor a São João.

Este era um tempo, conta Moraes Filho, em que se acreditava no perigo de

São João descer à terra para brincar no seu dia, pois tudo pegaria fogo. Era uma

época em que se podia entender melhor a velha quadrinha cantada ao redor da

fogueira e conhecida até hoje:

- Acorda João!

Aos que muitos respondiam, cantando:

São João está dormindo,

Não acorda não!

Dê-lhe cravos e rosas

E manjericão!25

Apesar das aparências, entretanto, as festas do mês de junho, nunca foram

tão pacíficas assim. Um dos fogos mais inconvenientes, pelas batalhas que

provocavam, parecem ter sido os “busca-pés”, que perseguiam, pela deslocação

do ar, quem procurava fugir deles. Também não eram incomuns, no Rio de Janeiro

do século XIX, reclamações nos jornais ou em relatos de viajantes sobre os perigos

dos fogos para os habitantes da cidade. Há notícias de que se jogava entrudo com

foguetes, ferindo-se os transeuntes e causando-se incêndios irreparáveis,

principalmente nas festas que aconteciam nos cortiços26

.

Diversões de setores populares, sem dúvida, embora não apenas, as festas

juninas com suas fogueiras e fogos foram aos poucos tornando-se alvo de

restrições e controle por parte das autoridades municipais, que não se cansavam

de tentar restringir as autorizações de fogos, permitidos somente em determinadas

festas, organizadas por instituições responsáveis, ou em locais específicos,

afastados do centro comercial da cidade. Em um edital de 1856, a Câmara

Municipal da cidade do Rio de Janeiro proibia o lançamento de fogos, juntamente

com as fogueiras e balões, nas ruas e praças públicas, ou das janelas e portas que

“para elas deitarem”. Um certo projeto de civilização dos costumes, festas e

25

MORAES FILHO, op.cit. p. 80. 26

ABREU, Martha, O Império do Divino. Festas Religiosas e Cultura Popular no Rio de Janeiro.

Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999, p. 252.

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diversões iria se impor ao longo da segunda metade do século XIX, especialmente

na capital imperial, cerceando certas atividades tidas como inconvenientes ou

afastando-as do centro urbano, como os fogos, as fogueiras, os ajuntamentos, os

batuques, as procissões, as danças, as grandes barracas de divertimentos e os

pedintes de esmolas para as irmandades. As festas juninas na cidade do Rio de

Janeiro devem ter sofrido este mesmo cerceamento, mas, sem dúvida,

permaneceram, talvez com mais vigor em seus subúrbios e periferia, e

transformaram-se. Novas formas de diversão e sociabilidade ganhariam a cidade,

como os clubes dançantes, as sociedades carnavalescas, as casas de jogos e os

teatros.

O que temos hoje em comum com estas festas do século XIX? Além da

fogueira, fogos controlados e algumas comidas “típicas”? Para onde foram as

“galinhas, os ovos e perus”, presentes nas ceias descritas por Mello Moraes Filho?

E as superstições de São João? Onde e quando passaram a fazer parte das festas

as quadrilhas, as bandeirinhas, os trajes e as músicas caipiras, o casamento na

roça e as barraquinhas de comidas e jogos inocentes (de argolinhas, tiro ao alvo,

corridas de carrinhos e leilões de prendas beneficientes)? Infelizmente estas

perguntas ficarão sem resposta, mas podem nos ajudar a identificar que certas

tradições não são tão originais e autênticas assim. Pelo menos não existiam no

século XIX. Podemos arriscar até, como hipóteses para uma futura pesquisa, que

certas marcas das festas juninas atuais – o traje e a música caipiras, o casamento

na roça e as barraquinhas, por exemplo - teriam passado a fazer parte da festa

entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, quando as

maiores cidades, como a capital da República e São Paulo, passaram por

inúmeras transformações modernizantes, afastando-se do mundo rural.

Exatamente nesta época ganham expressão na literatura e nos textos teatrais as

figuras do caipira ou matuto, do sertanejo ou caboclo, representando o interior e o

atraso frente ao pretenso progresso das cidades. As festas juninas teriam se

transformado em festas caipiras.

Até mesmo as festas do mundo rural teriam passado por transformações.

O conhecido “casamento na roça”, segundo Mariza Lira, em trabalho de 1956,

em pleno auge do movimento folclórico brasileiro, teria sido introduzido

“recentemente”, segundo a autora, nas zonas rurais próximas ao Rio de Janeiro.

Na sua opinião, a “macaqueação do casamento caipira é tudo o quanto pode

haver de mais inexpressivo nessas festas de encanto poético e místico”27. Se Lira

havia presenciado casamentos e batizados de verdade nas antigas festas de São

João, chegara o tempo dos casamentos figurados. Para a autora, na cidade do Rio

de Janeiro de sua época, São João não era mais festejado com todo o esplendor de

antigamente. Havia chegado a época dos “ridículos bailes caipiras”, em sua

avaliação. Outro grande folclorista, Edison Carneiro, avaliou no início da década de

27

LIRA, Mariza, Calendário Folclórico do Distrito Federal. Distrito Federal, Secretaria Geral de

Educação e Cultura, 1956.

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1970, que nas cidades grandes havia um falseamento das festas juninas, quando

a população fantasiava-se, como no carnaval, de matutos, sertanejos e caipiras28

.

Voltando às festas juninas de hoje, entendo que os seus organizadores

possuem muitos problemas. Que tradição devem manter? Ou que características

das festas de São João precisam preservar para que essas festas continuem

simbolizando uma pretensa identidade nacional (ou regional)? As do tempo de

Mello Moraes? Do tempo de Mariza Lira ou as do tempo de nossa infância (que

provavelmente devem ser outras)?

Tradições são assim mesmo, freqüentemente inventadas e reinventadas,

como mostraram Hobsbawn e Ranger29

, pois visam consolidar determinadas

continuidades em relação ao passado, frente às constantes transformações do

mundo moderno. Cabe aos professores ficarem atentos a elas, tentando conhecer

a sua história, mesmo daquelas que dão a impressão de serem mais genuínas ou

mais autênticas que outras, como é o caso das tradições das festas de São João.

Posturas como as de Mariza Lira, no passado, de condenação às mudanças –

desqualificando-as - por ameaçarem uma certa autenticidade e espontaneidade,

decorrentes de sua pretensa origem popular, precisam ser repensadas. As festas

pertencem à História e às lutas dos homens e mulheres de seu próprio tempo.

Discutir os vários sentidos e possibilidades das festas, no passado e no presente;

ou, ainda melhor, procurar identificar os sujeitos sociais que costumam

estabelecer e divulgar certos significados das festas, recuperando, muitas vezes,

os conflitos que se constroem em torno destas definições, são estratégias

promissoras para começarmos a trabalhar com as festas nas escolas, e na

História.

Particularmente, se nossos jovens querem tocar funk nas festas juninas,

não vejo como respondermos negativamente, baseados numa pretensa tradição

destas festas. Talvez seja mais importante nos perguntamos sobre os significados

das transformações que eles querem levar às ditas tradicionais populares festas

juninas. Deixemos o funk ser tocado nestas festas, da mesma forma que um dia

as quadrilhas, a música e o traje caipiras, as barraquinhas de

comidas/brincadeiras e os casamentos na roça ali conseguiram encontrar espaço

e fizeram sentido para as pessoas que compareciam e se divertiam nas muito

antigas festas de São João, apesar dos opositores e críticos como Mariza Lira.

Entre tradições e continuidades, as festas juninas, como não poderiam deixar de

ser, estão sempre transformando.

28

CARNEIRO, Edison, Folguedos Tradicionais. Rio de Janeiro, Conquista, 1974. 29 HOBSBAWM, E. e RANGER, T. A invenção das Tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984.

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