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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos · criativamente são caminhos fundamentais da Educação para a Paz. Uma pessoa saudável e autoconfiante permite ... A vida

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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Observação:

Este material foi produzido para fins exclusivamente didáticos, sem fins lucrativos (com

recurso governamental), com tiragem limitada para utilização nos cursos de

capacitação vinculados ao Projeto Integrando Ações em Educação em Direitos

Humanos, desenvolvidos no ano de 2009. Os textos são uma coletânea de referências

na área de Direitos Humanos. Sua reprodução ou cópia pode ser realizada, desde que

sejam resguardados os autores e as respectivas fontes e referências, e também não

possua fins comerciais.

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Sumário

Apresentação....................................................................................... 3

Cultura da Paz na sala de aula e nos espaços educativos..................................... 4

O “Magistério” do gênero: Impactos da vida de discentes e docentes................... 17

Educação em direitos humanos: desafios atuais............................................. 31

O que é educar para a cidadania?.............................................................. 44

Educação em Direitos Humanos de que se trata?........................................... 48

Educação em direitos humanos, o desafio da formação dos educadores numa

perspectiva interdisciplinar ................................................................... 59

Cultura da Paz.................................................................................... 74

Direitos Fundamentais:.......................................................................... 78

Cidadania e politização da educação ........................................................ 99

Situações conflitivas: alguns casos.......................................................... 102

Educação e violência: qual o papel da escola ............................................ 110

Educação Moral e Política de Crianças e Direitos Humanos............................ 116

Cartilha "Consciência e Cidadania"........................................................ 124

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Apresentação

Há muito tempo fazia-se necessário um documento que contemplasse as políticas e

ações a serem desenvolvidas pelos diversos órgãos públicos e entidades da sociedade civil no

que se refere à Educação em Direitos Humanos. Com este objetivo, no ano de 2003 formou-se

um comitê composto pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Ministério da Educação e

Ministério da Justiça, UNESCO e representantes da Sociedade Civil, desenvolvendo-se o Plano

Nacional de Educação em Direitos Humanos – PNEDH.

Este plano representou (e representa!) uma importante conquista no campo dos direitos

humanos no Brasil, na medida em que declarou o compromisso do Estado brasileiro com a

promoção de uma cultura de Direitos Humanos nos diferentes espaços de formação dos

indivíduos (educação básica, educação superior, educação não formal, educação dos

profissionais do sistema de justiça e segurança e educação e mídia).

A partir do PNEDH tornou-se mais fácil visualizar como a sociedade civil, organizações

governamentais e não-governamentais, organismos internacionais, universidades, escolas de

educação infantil, do ensino fundamental e médio, mídia e instituições do sistema de segurança

e justiça poderiam contribuir na construção de uma cultura voltada para o respeito aos direitos

fundamentais da pessoa humana.

Assim, o crescimento da educação infantil, a universalização e a melhoria da qualidade

do ensino fundamental e médio, a ampliação e o aperfeiçoamento do ensino superior, a inclusão

de pessoas com necessidades educacionais especiais, a profissionalização de jovens e adultos, a

erradicação do analfabetismo e a valorização e melhoria da qualidade da formação inicial e

continuada dos professores e demais educadores têm sido os eixos estruturantes das políticas

desse plano, que possibilitam o conhecimento e a consolidação dos direitos humanos.

Diante disso, a capacitação em Educação em Direitos Humanos enquadra-se no PNDH

como uma etapa fundamental do projeto, uma vez que também tem como escopo o

enfrentamento das reais dificuldades que envolvem a educação no Brasil.

Cabe ressaltar que o termo Capacitação não é usado no sentido estrito, apesar do que

sugere o nome. O objetivo é formar uma consciência humanista por meio das trocas de

experiências no aspecto relação aluno-professor e promover melhores condições educacionais.

Deste modo, desejamos que todos tenham uma boa capacitação, e que esta possa levar a

vocês e, conseqüentemente à comunidade que os cerca, dicas preciosas de Direitos Humanos e

Cidadania!

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Eixo I

Módulo I

Cultura da Paz na sala de aula e nos espaços educativos Cleber Lizardo de Assis1

A Educação para a Paz é um tesouro2

Embora a educação ambiental já faça parte do cotidiano do educador, apenas

agora estamos despertando para a necessidade vital de incluir a Educação para a Paz, e

apoiar a UNESCO no movimento gerador de mudanças de uma cultura que prega

saberes, valores e ações voltados para a violência, para uma cultura comprometida com

a paz e a não-violência.

A Educação para a Paz é um “processo pelo qual se promovem conhecimentos,

habilidades, atitudes e valores necessários para induzir mudanças de comportamento

que possibilitam às crianças, aos jovens e aos adultos a prevenir a violência (tanto em

sua manifestação direta, como em sua forma estrutural); resolver conflitos de forma

pacífica e criar condições que conduzam à paz (na sua dimensão intrapessoal;

interpessoal; ambiental; intergrupal; nacional e/ou internacional)”.

Referenciais interessantes emergem desta definição. A Educação para a Paz é

um processo que dura toda nossa vida, permeia todas as idades, seu campo de atuação é

por essência complexo e multifacetado. Além de acontecer nas escolas, tem que estar

presente em nosso cotidiano: nos meios de comunicação, nas relações pessoais, na

organização das instituições, no meio da família.

A educação é um processo cultural no qual estamos totalmente imersos. Em

contato com os aprendizes, quer estejamos ou não dentro do espaço de uma escola, a

educação permeia tudo que nos cerca, os gestos, olhares e palavras. As posturas e

movimentos. Há um discurso silencioso em nossa presença, que movimenta ideais,

transmite valores e percepções. 1 Cleber Lizardo de Assis. Educador, Teólogo e Psicólogo. Mestrando em Psicologia/Processos de Subjetivação-PUC Minas; Integrante do Fórum Mineiro de Direitos Humanos/GT Educação em Direitos Humanos. Atua em educação e projetos sociais desde 1991. Email: [email protected] 2 Texto para leitura introdutória ao módulo “Cultura e Paz na sala de aula e nos espaços educativos” a ser ministrado junto ao curso de Educação em Direitos Humanos, por Cleber Lizardo de Assis ‘kebel’.

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Educar para a Paz requer o “querer bem” dos aprendizes. Não há educação sem

transformação. Não há mudança sem encontro, acolhimento e espaço de partilha.

Envolve, enfim, uma mudança profunda em nossos sistemas de pensamento e de ensino,

pois não se preocupa apenas com a transmissão de saberes, mas com a formação de uma

nova maneira de ser.

Educar para a Paz envolve a geração de oportunidades para comunhão de

significados e afetos. Assim como o agricultor deve arar, afofar o terreno, deixá-lo rico

em nutrientes e irrigá-lo, devemos criar um ambiente propício e acolhedor para que as

sementes da paz possam germinar. Isto envolve criatividade, abertura para promover

uma qualidade nova nos espaços de ensino/aprendizagem a fim de transformá-los em

locais de humanização e sensibilidade.

E como descobrir o prazer de aprender nos espaços educativos? Sem prescindir

da lógica e da razão, devemos criar uma atmosfera de liberdade e alegria. O humor, por

exemplo, é um dos fatores importantes para abrir as portas do conhecimento e da

curiosidade.

Tal descoberta é um desafio, pois historicamente a educação, privilegiando o

pensamento e a inteligência, desprezou as experiências de afeto e desafeto, alegria e

tristeza, aceitação e desprezo que ficaram confinadas na memória corporal. Assim

provocou-se uma grande ruptura, tratando-se os educandos como simples recipientes de

conhecimento.

O primeiro passo está em permitir e incentivar a expansão do movimento

corporal dos aprendizes, geralmente aprisionados na rigidez dos bancos escolares, nas

cadeiras dos computadores, nos assentos dos ônibus, dos carros. Se a educação for uma

atividade prazerosa, propicia confiança e curiosidade, aceita novos desafios, constrói a

paz.

Para gerar atitudes inovadoras devemos ter a coragem de romper padrões e criar

novas formas de Ser, Conviver, Conhecer e Fazer. Ensinar a criatividade e fazê-lo

criativamente são caminhos fundamentais da Educação para a Paz.

Uma pessoa saudável e autoconfiante permite a expressão e incentiva a

investigação do novo, do possível e desejável, mantendo uma atitude aberta para o

encontro com a diversidade. Aprender a transitar pelo “universo das diferenças” e levar

os aprendizes conosco nessa viagem exige reconhecer a existência dos preconceitos e

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abrir mão deles, pois persistem arraigados, provocando injustiças sociais, econômicas e

guerras, apesar da diversidade ser a raiz da vida e da cultura.

Aliás, quando lemos os jornais ou ouvimos o noticiário, temos a impressão que

um recurso natural espontâneo, “O Amor”, está à beira da extinção. Crianças de rua,

presídios abarrotados, filas intermináveis nos hospitais.

Dentro deste mundo carente, é uma pena que a educação muitas vezes se

esqueça que temos um desejo inato de contato e de nos tornar significativos para os

outros. Esta falta de afeto é ainda mais dolorosa nos setores vulneráveis da nossa

sociedade: entre as crianças, os jovens e os idosos.

A vida parece vazia quando nossos corações estão fechados. Educar para a Paz

pede o exercício da compaixão. Nosso meio ambiente tem sido muito agredido, da

mesma maneira estão adoecidas a interioridade humana e as relações entre as pessoas. A

Educação para a Paz preocupa-se em minimizar essas dores. Não dispensa o rigor do

pensamento acadêmico, mas sem dúvida, o transcende.

A Educação para a Paz é fundamental para resolver conflitos de forma madura e

saudável, visto que eles fazem parte do cotidiano de todas as pessoas, em todos os

tempos e lugares. É uma oportunidade de desenvolvermos conceitos positivos nas partes

envolvidas, através da compreensão do ponto de vista do outro.

É também uma oportunidade de darmos suporte emocional aos envolvidos,

demonstrando o valor da confiança nas pessoas e nos processos que levam à paz.

Em nossas escolas, grande parte das vezes, os estudantes acumulam saberes de

seus professores e realizam uma troca de informações. Quando a disciplina ou o curso

termina os participantes esquecem uns dos outros, e a vida continua como se nada

tivesse acontecido.

Na proposta da Educação para a Paz devemos seguir um outro caminho: não

importa a idade de seus educandos, o que vale é criar laços de afeto e confiança mútua.

Nós, seres humanos, somos totalmente dependentes do afeto. Desde o primeiro instante

de vida precisamos do calor e do cuidado que nos conforta e legitima.

Para nos desenvolver de maneira saudável, precisamos da estrutura e da

confiança dos adultos. Entretanto, a grande Mãe é o planeta Terra que, vista do espaço,

é uma pérola azul navegando na imensidão do cosmos, um útero de criação, que abriga

uma vastidão de maravilhas naturais. E todos os seres humanos alimentam-se,

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inteiramente dependentes, dos recursos do planeta: da água, da terra e de uma variedade

incontável de produtos provenientes dela.

Neste século, não podemos prescindir das questões relativas ao bem-estar da

sociedade e da natureza. O fato é que estamos indo longe demais, ao servir a interesses

imediatos de uma cultura que cultiva a violência e a acumulação em detrimento do bem-

estar social e ecológico.

Para concluir, não podemos nos esquecer que as palavras têm um poder muito

grande, talvez seja por isso que todas as religiões do mundo recitam preces, mantras,

cântigos sagrados. Os poetas e sábios de todos os tempos nos iluminaram com versos

que nos acompanham por toda a vida, no transcorrer de gerações.

Na educação, na família, na sociedade, as palavras amigas nada custam a quem

as profere e só enriquecem quem as recebe. Afinal, quem não gosta de ouvir expressões

como: “você fez um bom trabalho”; “você é capaz”, “sentimos falta de você”.

A Educação para a Paz está, em sua essência, comprometida com um futuro de

bem-estar para a humanidade, e com o meio ambiente.

Não se pode mudar os erros do passado, mas podemos construir um futuro

saudável, tão cheio de criatividade quanto a própria vida.

E, talvez, a descoberta mais valiosa a ser feita pelo ser humano neste

século seja que a palavra “NÓS” é a mais importante de todas.

Manifesto 2000anifesto 2000

O Manifesto 2000 por uma Cultura de Paz e Não-Violência foi esboçado por um

grupo de laureados do prêmio Nobel da Paz. Milhões de pessoas em todo o mundo

assinaram esse manifesto e se comprometeram a cumprir os seis pontos descritos

abaixo, agindo no espírito da Cultura de Paz dentro de suas famílias, em seu trabalho,

em suas cidades.

Tornaram-se, assim, mensageiros da tolerância, da solidariedade e do diálogo.

A Assembléia Geral das Nações Unidas declarou o período de 2001 a 2010 a

“Década Internacional da Cultura de Paz e Não-Violência para as Crianças do Mundo”.

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Rejeitar a violência

Ser generoso

Ouvir para compreender

Preservar o planeta

Redescobrir a solidariedade

Girapaz3 – Oficinas que promovem a paz

Cleber Lizardo de Assis4

5

Objetivo (s):

- Identificar os elementos promotores e dificultadores da paz;

- Organizar ações que promovam uma cultura da paz em diversos contextos grupais e

sociais.

- Facilitar uma prática de mediação de conflitos interpessoais e intergrupais;

- Introduzir a reflexão e vivência sobre cidadania e direitos humanos.

3 Girapaz: nome, oficina e metodologia ludo-pedagógica que criamos a partir de um mix de cata-vento e girassol e que em torno da qual se discute a promoção da paz nos mais diversos contextos; pode ser reproduzido desde que seja citada a autoria; 4 Educador, Teólogo e Psicólogo. Mestrando em Psicologia. Atua junto a projetos sociais desde 1991. Desenvolve oficinas e cursos em Educação, Psicologia e Projetos sociais. Integrante do Fórum Mineiro de Direitos Humanos/GT Educação em Direitos Humanos. Email: [email protected] 5 Ilustrações: João Marcos

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Públicos:

Sugerimos essa seqüência de 03 vivências para todas as idades e tipos de grupos

(crianças, adolescentes, jovens, mulheres, idosos etc), respeitando as variações por faixa

etária e particularidades grupais.

Nesse sentido, os mais diversos grupos poderão interagir ao final e estarão

refletindo sobre a paz, através de um entrelaçamento de idéias, sentimentos e

experiências.

Tal metodologia pode mobilizar toda a consciência coletiva e tornar-se geradora

de paz em pequenos grupos, no projeto e na comunidade.

VIVÊNCIA I – A PAZ, ONDE ESTÁ?

Tamanho do grupo e tempo exigido: 50 a 60 min., até 20 pessoas Recursos necessários e ambientação: Sala com cadeiras e mesas, canetas, lápiz e giz de cera, folhas. Desenvolvimento (descrição de cada etapa, observações metodológicas etc):

1 – Acolhida: O/a facilitador/a deve acolher o grupo, organizado preferivelmente em

roda. Segue as boas vindas etc;

2 – Objetivo: Deve-se adiantar o objetivo do encontro: "hoje vamos conversar e

aprender sobre a paz, e de uma maneira diferente...";

3 – “Provocação” do grupo:

- “O que é a paz”... "alguém pode nos dar exemplos de situação de paz" etc.

- Procure ouvir o que o grupo sabe, suas experiências e idéias, através dessa e de outras

perguntas simples. Esse é um momento de ouvir e nada de dar "lições de moral" ou

adiantar a conclusão;

4 – Registro:

- Se tiver quadro pode ir anotando as contribuições, mas se não tiver apenas registre

verbalmente;

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5 – Organize quatro sub-grupos e distribua:

- se crianças distribua giz de cera, lápis de cor e uma folha para cada;

- se adolescentes e jovens, caneta e uma folha;

6 – As tarefas e desafios:

6.1 – Boas lembranças:

- lembra de situações e momentos que sentiram ou tiveram paz, que se sentiu bem, feliz,

tranqüilo... em a) casa, b) escola, c) em grupos de amigos, d) meninos e meninas e)

bairro, f) cidade, g) país (nessa seqüência, mas pode-se acrescentar outros).

- Dar um tempo e pedir que compartilhem no próprio grupo;

6.2 – Más lembranças (Alternativa, melhor para crianças maiores e adolescentes):

- Pode-se descrever uma cena real ou fictícia, um fato histórico ou contar uma história

mais lúdica cujo enredo fale de conflitos não resolvidos, seja em casa, escola ou cidade,

- o/a facilitador/a pode pedir a algum voluntário para se expressar ou pode pedir ao

grupo que monte uma pequena dramatização;

7 – Conclusão/Processamento

• Escute o grupo sobre seus sentimentos e idéias, facilidades e dificuldades encontradas

nas atividades;

• Procure coletar elementos que favoreceram situações de paz, sejam nos desenhos,

relatos e encenação;

• Estimule o grupo a identificar durante a semana, seja em casa, escola, grupo de

amigos, entre meninos e meninas ou no bairro elementos que promovem ou não a paz.

• Despedida, provocação que novas atividades/jogos os esperam e se possível, lanche.

VIVÊNCIA II - AMARELINHA (crianças) e MEDIAÇÃO DE CONFLITOS (adolescentes e jovens)

1 – Acolhida: O/a facilitador/a deve acolher o grupo, organizado preferivelmente em

roda. Segue as boas vindas etc;

2 – Objetivo: avançar na reflexão e vivência sobre a paz.

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3 – “Provocação” do grupo:

3.1- Procure ouvir o que o grupo sobre a tarefa semanal, se notaram em casa, escola,

grupo de amigos, entre meninos e meninas ou no bairro elementos que promovem ou

não a paz.

3.2 – Rap dos diferentes iguais: distribui a letra da música e a toca num aparelho de cd,

seguindo de uma breve discussão sobre as diferenças de identidade de cada pessoa no

grupo

(letra: “eu não sou você, você não é eu, somos diferentes, porém somos iguais”)

4. Jogo amarelinha da paz (preferencialmente com crianças – veja atividade para

adolescentes e jovens no item 5)

4.1 – Organizar o grupo em dois sub-grupos que irão competir (separar de preferência

de forma aleatória);

4.2 – Desenhar no chão uma amarelinha (com 6 quadros ou mais, céu e inferno ou lua e

céu)

4.3 – As regras (valem as regras básicas do jogo, acrescido de):

- o/a facilitador/a é juiz do jogo;

- cada grupo deve recolher seu representante para jogar (podem revezar);

- O grupo adversário escolhe a situação: casa, escola, grupo de amigos, entre meninos e

meninas, bairro, cidade, país, mundo – para que o jogador elabore sua resposta com

ajuda de seu grupo;

- para avançar nos quadros, o jogador deve dizer um elemento ou forma de se promover

paz, sem sair da amarelinha e consultando seu grupo;

- Se o jogador e seu grupo demorar a responder (pode-se combinar um tempo de 10

segundos para a resposta) perde e passa a vez para o adversário;

- Ganha o grupo que chegar primeiro no céu/lua;

Obs.: o juiz poderá lidar com situações de conflito que o jogo e a competição

despertam, o que deve ser acolhido para a própria reflexão do grupo;

- Pode-se fazer as variações necessárias e de acordo com o grupo, contexto cultural e a

contribuição do/a facilitador/a.

5 Mediação de conflitos:

- Organizar o grupo em 4 sub-grupos

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- Distribuir caneta e uma folha com o quadro abaixo, por grupo

- Os grupos terão cerca de 20 minutos para completar o quadro e ao final devem

apresentar.

- Cada grupo deve discutir e elaborar pelo menos uma resposta por coluna.

Categorias Situação de conflito Possível mediação Raça Classe social Gênero Sexualidade Religião Diversidade cultural Time de futebol Pais e filhos Grupo de amigos Bairro Cidade País

Obs.: o quadro deve ser ampliado de forma a ocupar uma folha inteira e permitir

respostas detalhadas.

6 – Conclusão/Processamento

• Escute o grupo sobre seus sentimentos e idéias, facilidades e dificuldades encontradas

na atividade;

• Procure coletar elementos que favoreceram situações de paz nos diversos contextos;

• Articular os achados com noções de cidadania e direitos humanos (a reflexão sobre

diversidades pode ser decisiva aqui).

7 – Despedida: agradecimento, provocação de que falta um encontro com um desafio

final e, se possível, lanche.

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VIVÊNCIA III – CONSTRUINDO O GIRAPAZ (todas idades e públicos) Tamanho do grupo e tempo exigido: 50 a 60 min., até 20 pessoas

Recursos necessários6 e ambientação: Sala com cadeiras e mesas, canetas, lápis e giz

de cera, folhas, folhas de papel cartão ou cartolina, tesouras sem ponta, cola, palito de

picolé...

1 – Acolhida: O/a facilitador/a deve acolher o grupo, organizado preferivelmente em

roda. Segue as boas vindas etc;

2 – Objetivo: avançar na reflexão e vivência sobre a paz.

3 – “Aquecimento” do grupo:

- Recapitule elementos principais dos dois encontros anteriores (em geral, temos

elementos marcantes de cada encontro)

4 – Sobre a paz

- Destacamos esses elementos por julgá-los essenciais e que ajudam a ‘costurar’

fragmentos das atividades anteriores

- Procure adequar palavras de acordo com seu público;

Assim:

• Paz não é ausência de diferenças ou conflitos por idéias, crenças ou interesses;

• Paz é algo dinâmico, que se aprende e se pratica;

• Paz é deve ser alimentada e desenvolvida;

• Paz é algo que integra o interior (emoções, sentimentos, pensamentos) e exterior

(comportamentos e relacionamentos em todos os lugares);

• Paz não é algo apenas individual e para ser plena deve sempre incluir o outro, colegas,

o grupo, o bairro...;

• Paz pode estar tanto em pequenas e simples, como em grandes e complexas situações

• Paz não é algo apenas 'espiritual', apenas ‘de dentro’, mas também de fora, coletivo,

comunitário e social.

6 Os recursos para confecção do Girapaz poderão variar de acordo com o modelo que o/a facilitador/a propor, indo de algo ‘pré-fabricado’ para ajudar crianças de certa idade a algo mais engenhoso com grupo de adolescentes e jovens; em todos os casos pode-se pedir ajuda a alguém com habilidades plásticas.

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• Paz está relacionada a relações justas e respeitosas;

5 – Confecção do girapaz (diversas variações, conforme o público):

5.1 – Distribuir o girapaz pronto, individualmente, com tempo e material para colorir e

pintar; restando apenas o preenchimento de cada pétala com palavras ou pequenas frases

de 'coisas' que promovem a paz; no centro escreve-se "PAZ";

5.2 – Distribuir o girapaz de forma pré-fabricada, de forma que suas partes sejam

montadas, individualmente: em cada pétala deve se escrever palavras ou pequenas

frases de 'coisas' que promovem a paz; no centro escreve-se "PAZ";

5.3 – Passar o projeto geral do girapaz e deixar que cada grupo construa o seu e

apresente ao final;

Importante:

- Variações: fazer um girapaz pequeno e individual e um outro gigante e grupal;

- Deve-se criar situação para que ao final se apresente ao próprio grupo e a outros

públicos, seu girapaz individual ou grupal, pequeno ou grande.

- Pode-se estimular as crianças menores a presentear seus familiares com o girapaz.

6 – Conclusão/Processamento (das três vivências):

• Estimule ao grupo expor seus sentimentos e idéias sobre os elementos que favorecem

situações de paz nos diversos contextos;

• Articular os achados com noções de cidadania e direitos humanos.

• Procure levar os integrantes do grupo a visualizarem situações do dia-dia em que

poderão aplicar o que se aprendeu.

7 – Despedida: agradecimento e se possível uma festa de confraternização.

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Alguns modelos que podem servir para confecção do girapaz:

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Referências e sugestões de fontes

ASSIS, Kebel. Rap dos diferentes iguais. In. Farroupilha Grupo de Teatro, Histórias de

Bichos, Ipatinga/MG: 2001 (solicitar música em mp3 pelo email:

[email protected]

DIACONIA, Renascer na Esperança, cartilha do Projeto Paz Familiar/Núcleo Cristão

para a superação da Violência Familiar, Recife: 2002.

DIREITOS HUMANOS (materiais em diversos formatos e para diversos públicos): www.dhnet.org.br DISKIN, Lia e Roizman, LAURA Gorresio. Paz, como se faz?: semeando cultura de

paz nas escolas. Brasília: Governo do Estado de Sergipe, UNESCO, Associação Palas

Athena, 2002. (um rico acervo de sugestões de atividades em diversas linguagens e

técnicas) disponível em:

http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001467/146767POR.pdf

Prezado/a educador/a,

Após a leitura introdutória, o momento presencial de curso, segue ainda uma sugestão

para sua prática com crianças e adolescentes em escola ou em projetos sociais.

Leia a vivência do Girapaz, faça suas adaptações do material e procure aplicá-la.

Ao final da atividade com as crianças e adolescentes, elabore um breve relato de uma

página sobre essa experiência: como foi? os destaques e pontos positivos, as

dificuldades e sugestões, as conquistas do grupo – se possível, tire e encaminhe fotos

também. Esse relato deverá ser enviado para o email geral do curso:

Havendo dúvidas sobre essa atividade, faça-nos contato: [email protected]

Abraço,

Cleber Assis ‘kebel’

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Módulo II

O “Magistério” do gênero: Impactos da vida de discentes e docentes7

Adla Betsaida M. Teixeira

Ainda não há evidências históricas ou científicas que confirmem a existência de

um sistema de desigualdade nas relações sociais entre homens e mulheres como algo

que exista desde sempre. Pode-se, entretanto, numa história mais recente, encontrar

alusão a tal segregação num sentido metafísico e, posteriormente num sentido biológico.

Segundo Birman (in Negreiros, 2004 e Birman, 2002), até o século XVIII, o sexo

masculino era considerado como “dominante, regulador, perfeito”. Com a Revolução

Francesa, imbuída de ideais de igualdade para todos, surgiu um “masculino”

superiorizado atestado pela “razão” biológica, tratado como uma referência, como um

modelo de perfeição. Nessa visão, homens e mulheres são diferenciados, identificados

como complementares anatômico e fisiologicamente, alocados em espaços e papéis

sociais distintos, padronizados segundo suas maneiras de relacionarem entre si.

Os séculos XIX e XX trazem as idéias de “igualdade de direitos”, que perpassam

os discursos nas lutas sociais e políticas e até mesmo no discurso científico

(NEGREIROS, TAGS, 2004). Nesse contexto, ganha visibilidade a condição de

desigualdade das mulheres, assim como de outros grupos humanos.

Com esses movimentos, surge o conceito de gênero, que tratará as diferenças e

semelhanças entre homens e mulheres como produto de construções sociais. O conceito

de gênero nega a “razão” biológica e aponta os aspectos culturais como produtores das

diferenças entre os sexos (SCOTT, 1990). Portanto, muda-se, radicalmente, o

entendimento sobre comportamentos de homens e mulheres. Para além disso, tal visão

criou a distância necessária entre os conceitos de sexo e gênero, humanizando aqueles

que não se “encaixavam” propriamente ou “apropriadamente” nesses dois universos

(masculino e feminino) tão rígidos.

Com efeito, este texto busca refletir sobre as formas que as organizações

escolares arquitetam identidades, no caso, de gênero. Aqui, compreende-se a escola

7 Os dados aqui explorados são originados de projetos de pesquisa iniciados em 1996 até o período de 2007, projetos esses que contaram com o auxílio financeiro do CNPq; FAPEMIG e PRPq/UFMG.

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como uma comunidade viva que reproduz, mas também tem autonomia para gerar

padrões de comportamento. Dessa maneira, as situações escolares e a forma como os

indivíduos a experienciam serão resultados da interação e disputas entre os vários

grupos e indivíduos: docentes, discentes, corpo administrativo, pais e outros membros

de significância nesses espaços. A escola se autocontrola.

Procurar-se-á, portanto, compreender o “processo de des-intelectualização” do

trabalho docente ao associar “feminilidade” e magistério, fruto da micropolítica8

escolar. Num segundo momento, atentar-se-á para as ações de docentes (professores ou

professoras) como elementos poderosos de propagação de padrões de comportamento.

São os/as docentes que apresentam às crianças visões conservadoras e ultrapassadas

sobre masculinidade e feminilidade (definindo possibilidades para homens e mulheres

nos âmbitos público e privado). Por último, centrar-se-á nas questões de gênero geradas

pelas duas situações anteriores no comportamento de alunos e alunas.

Desde que previamente discutidos pela comunidade escolar, realmente não se

pode reprovar o uso da escola para confirmar certos comportamentos. Todavia, o fato é

que o reforço a certos padrões de comportamento pode gerar perdas a curto e longo

prazo àqueles que transitam nos espaços escolares. As questões de gênero na educação

escolar ainda são discutidas, mas ativamente presentes nas práticas pedagógicas.

Nas retóricas dos profissionais nas escolas, numa primeira escuta, encontra-se

um discurso moderno, de igualdade entre os sexos, mas logo se contradizem. A

segregação entre homens e mulheres nos espaços escolares é defendida e justificada por

um discurso pseudocientífico (em geral, com foco na função reprodutiva ou de

complementaridade entre homens e mulheres), às vezes, em nome da segurança e

inocência das crianças. Este discurso, que de fato não se trata de ciência, lida com a

conveniência, ou seja, faz uso de especulações científicas sobre o ser homem ou mulher.

Estas ainda são bastante instáveis do ponto de vista científico. Porém, se chamadas de

ciência ganham autoridade suficiente nos discursos, deixando muito pouco espaço para

contestação, para as diferenças. Trata-se aqui de uma inquisição da ciência, ou seja,

8 Por micropolítica escolar entenda-se o campo em que grupos ou indivíduos disputam poderes. Das lutas por poderes inicia-se um processo em que as representações e expectativas sobre a figura docente são usadas como instrumentos de sedução, de convencimento, enfim, uma moeda forte nas negociações e conquistas de territórios. Assim, estereótipos de gênero, relacionados à figura docente, tornam-se recursos estratégicos, úteis nestas lutas (TEIXEIRA, 1998).

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quando há uma apropriação de hipóteses ou conceitos ainda instáveis na ciência pelo

senso comum. Aqui, a ciência vira dogma.

Encontra-se, ainda, um discurso de conotação religiosa, em que o divino

predetermina a segregação segundo os sexos. Em raros momentos, encontram-se

ensaios ingênuos em defesa da igualdade entre homens e mulheres. Nesses escritos, a

existência de homens-professores é aceita desde que detenham características

“femininas” identificadas nas professoras: “amabilidade”, o “afeto”, o “cuidado”.

Noutros, a presença de homens é identificada como importante para substituir a

presença paterna ou contribuir com um modelo pelo qual o menino deve se pautar,

afinal a escola tem “muitas mulheres”. Mesmo assim, a aceitação desse modelo

masculino é imediatamente frustrada como mostram os relatos de homens

“afeminados”, suspeitos para o convívio com crianças, ou pelo receio quanto à

“natureza masculina” (violentos, impacientes para o trato com crianças menores). Essas

características consideradas inatas nos homens são apontadas como responsáveis pelo

afastamento dos homens do magistério.

Curiosamente, ao falar de trabalho, o discurso muda: as mulheres passam a

serem consideradas inadequadas, infantis, impróprias para o mundo “sério" do trabalho,

“fofoqueiras”, “não-profissionais”, “sentimentais”, “faladeiras”, “dispersas”, entre

outros (TEIXEIRA, 1998). Elege-se um modelo de profissionalismo tradicional, uma

versão masculina. Assim, os professores são vistos, pelos/as docentes como “mais

sérios”, “objetivos”, “focados”.

Apesar de criticadas por suas posturas não convencionais como profissionais,

contraditoriamente, as professoras são estimuladas a interpretar o papel de “cuidadoras

universais”. Tal papel alivia o corpo administrativo das escolas, os pais e também o

governo das responsabilidades sociais para com as crianças. A indução vem em várias

formas. O texto abaixo, por exemplo, foi distribuído por uma supervisora escolar às

professoras na data de comemoração do Dia dos Professores. Ele revela as imagens que

são valorizadas num docente exemplar:

Oração da Mestra (Gabriela Mistral) ... Dá que eu seja mais mãe que as mães, para amar e defender, tanto quanto elas, aquilo que não é carne da minha carne... Põe, na minha escola democrática, a luz que caia em resplendores tamisados sobre os meninos

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descalços, que uma vez te cercaram... Faz-me forte, ainda em minha desvalia de mulher, e de mulher pobre; faze-me desprezar todo poder que não seja puro, toda pressão que não seja a de tua vontade ardente sobre a minha vida... Que a minha mão seja leve no castigo e ainda mais suave na carícia. Que repreenda com dor para saber que corrigi amando! Que eu transforme a escola de espírito a minha escola de tijolos. Que a flama de seu entusiasmo lhe envolva o átrio pobre e a sala desnuda... Que eu lembre, por fim, contemplando a palidez da tela de Velásquez, que ensinar e amar intensamente sobre a Terra é chegar ao último dia com a lança de Longuinho a transpassar-me o lado! (Dia 15 de outubro é o "Dia do Professor. Com esta página de Gabriela Mistral, procuramos homenagear àqueles a quem o País tanto deve. Obrigado professores mineiros, por nos terem ensinado a manejar a maior arma do universo. A arma do saber (In Teixeira, 1998 p.159 ).

De forma similar, o corpo administrativo escolar também tem suas rotinas

profissionais influenciadas pelas questões de gênero. Mulheres-diretoras relatam

experimentar demandas ambíguas ao desempenhar o papel de diretoras. Assim, sentem-

se compelidas a assumir um modelo “masculino’ de liderança significando:

“racionalidade”, “autoritarismo”, “objetividade”, “maior controle. Tais atributos são

vistos como “prova” de competência para liderar tal qual o homem. Mas, ao mesmo

tempo são compelidas a interpretar a “gerência de uma grande família”, ou seja, sua

rotina de trabalho inclui várias tarefas que ultrapassam o pedagógico e o administrativo,

pois a elas cabe o cuidado de terceiros. Isso implica um envolvimento afetivo-

emocional com a comunidade. Esse modelo, que tem sido apontado como importante

demanda da escola agrada, principalmente, os pais, pois os libera das responsabilidades

para com seus filhos.

Decorre dessas confusas demandas um “processo de des-intelectualização” dos

docentes e dos outros profissionais da escola. Nesse processo, o caráter humano ocupa

centralidade nas preocupações da escola, negligenciando suas funções pedagógicas e de

educação formal (TEIXEIRA, 1998).

Sabe-se, no entanto, que os esforços para corresponder às expectativas ao

assumir um cargo, neste caso, das mulheres principalmente, nas comunidades escolares

estão também relacionados à sobrevivência profissional. Nesse sentido, podem ser

citadas as eleições para o cargo de direção como exemplos interessantes quando as

questões de gênero são usadas como instrumentos de sedução da comunidade.

A patrulha escolar sob aqueles que ousam desafiar os “padrões de

comportamento” da escola culminará na exclusão ou na difamação do profissional. Em

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alguns casos, colegas fazem uso da “fofoca” junto aos pais para pressionar a professora

a “saber o lugar dela”. Essas atitudes demonstram formas genuínas de poder. A

propósito, eis o relato desta diretora:

“[...] as professoras... são mais atenciosas. Elas têm esta habilidade exatamente por causa

do lado feminino... são como mães. A maioria é assim... paciente. Na sociedade brasileira...

as mulheres são responsáveis por isto, cuidar de crianças. Mesmo agora que muitos homens

ajudam, não é a mesma coisa. Quando as coisas ficam difíceis são as mulheres que estão lá

(risos)... Mesmo que eu pense que a presença dos homens nas escolas... é interessante porque

teríamos uma relação masculina... Isto seria interessante porque os meninos teriam os dois

lados... Mas as mulheres são mais sensíveis. Os homens são mais pragmáticos... Eles não se

preocupam se as crianças estão chorando...”

.

Assim como os profissionais nas escolas, a vida das crianças é afetada pelas

questões de gênero. Nas rotinas escolares, meninos e meninas são expostos à mensagens

sobre como devem se comportar, sobre o que se espera deles e delas, ou o que lhes é

permitido ou proibido e, mesmo do que é “normal” a cada um gostar.

Com efeito, nas microorganizações escolares, os/as docentes têm um papel

importante realizando o que se denomina, aqui, de o “magistério” do gênero. Assim,

expressando-se oralmente ou por escrito, ou mesmo por gestos, atitudes, os/as docentes

legitimam “modelos” de ser (homens ou mulheres) e agem estranhando e coibindo

padrões de comportamento considerados adequados de acordo com o sexo.

De fato, a escola tem se pautado por valores bastante conservadores,

principalmente quanto às questões de gênero. O conservadorismo se expressa nas

dinâmicas escolares, desde a vigilância com a aparência dos alunos (vestimentas,

posturas ditas apropriadas para meninos e meninas), passando pelo controle do que se

pode ou não falar e pensar, até à divisão dos espaços escolares (filas, banheiros, listas de

presença, brincadeiras). Lembram às crianças, rotineiramente, suas diferenças. A

“polícia” dos comportamentos se estende das imagens e mensagens que estampam as

paredes das escolas, até as imagens e textos dos livros didáticos. Tudo conspira para

uma padronização de comportamentos diversificados para “eles” e “elas”. O mesmo

ocorre nos currículos aos quais meninos e meninas são expostos, mas, necessariamente,

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não têm igual acesso. Essa desigualdade ocorre de maneira silenciosa, disfarçada por

vezes nas “amáveis” interações entre professor/a-aluno/a que enfatizam diferentes

“virtudes” e aptidões em meninos e meninas (TEIXEIRA et al, 2008).

Após várias exposições e sanções quanto ao que podem ou não fazer, as crianças

passam a se autocontrolar e mesmo a exercer controle dos colegas quanto aos

comportamentos possíveis de acordo com o sexo.

A cultura da escola faz com que respostas estáveis sejam esperadas e

que o ensino de fatos seja mais importante do que a compreensão de

questões íntimas. Além disso, nessa cultura, modos autoritários de

interação social impedem a possibilidade de novas questões e não

estimulam o desenvolvimento de uma curiosidade que possa levar

professores e estudantes a direções que poderiam se mostrar

surpreendents. Tudo isso faz com que as questões de sexualidade

sejam relegadas ao espaço das respostas certas e erradas (Britzman,

2003, p.85-86)

Através do “bulling” assiste-se à “inquisição dos gêneros”. Assim, orientados

por seus mestres, aprendem, com o tempo, a exercer controle de seus colegas, definindo,

estimulando e criticando desvios quanto às normas de “ser menino” e “ser menina”.

O caso abaixo ilustra uma situação de rejeição desse modelo. Trata-se de

meninos em aula no laboratório de Física (Coltec-UFMG). Esses alunos resistiram a

desenvolver as atividades propostas pela professora, passando vários momentos do

curso fingindo fazê-las e ela não deu conta do fato. Já os quadros a seguir mostram

como esses adolescentes têm já cristalizados certos padrões de masculinidade e

feminilidade.

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Episódio-

Subturma Turnos de Fala

3 - A

28 - NEY: Quem vai fazer o relatório? /

29 - ALEX: Eu? / você já viu a minha letra né? ///

30 - NEY: A minha letra é horrorosa /// ***

31 - ADÃO: Não contem com a minha /

32 - ALEX: Ò gente / vão ó /

33 - ADÃO: Vocês é que vão fazer aí ó! /

34 - ALEX: Vai você mesmo /

35 - ELI: Ai que saco /

36 - ADÂO: Quem tem caderno? /// [os alunos anotam os resultados

do quadro]

Figura 1 –

Grupo de

meninos:

relação com a

escritaEpisódio

Turnos de Fala

24

167- ANA: Deixa eu medir você LUMA [BIA e ANA começam a medir

o braço da aluna LUMA]

168- BIA Ahh não / o braço da LUMA é muito grande! [risos] ///

169- ANA: Não, mas tem que medir até o centro que é com a mão

fechada *** [ANA indica como deve ser feita a medida].

170- LUMA: cinqüenta até aqui ó

171- BIA: Nossa / mas que bração LUMA! [risos]

172- ANA: Cinqüenta / mais vinte e cinco

173- LUMA: Não, mas tem que medir até aqui ó.

174- BIA: Ahh é

175- LUMA: Aqui não é o centro não [risos] / que é isso LUMA?

176- BIA: É aqui ó / olha aqui ó

177- ANA: Ahh tá / é prá medir aqui depois aqui / cinqüenta / mais

vinte e cinco

178- BIA: Mais quinze

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179- ANA: Setenta e cinco mais quinze?

180- BIA: É ó... noventa

181- LUMA: Até aqui ó

182- ANA: Mais vinte e cinco de novo / mais ou menos / mais vinte e

cinco

183- LUMA: Quanto que deu?

184- ANA: Noventa mais vinte e cinco | um metro e quinze | cento e

quinze né

185- LUMA: Noventa mais vinte e cinco / cento e quinze / só? / cento e

quinze só! / gente que isso! / então / cento e quinze centímetros / só que

tem que transformar em metros

186- BIA: Um metro e quinze centímetros

187- ANA: Só que eu acho que ela tem um braço muito grande pra

gente tirar uma média / Olha aqui!

188- BIA: Olha o cinqüenta já tá quase no final do meu braço! [as

alunas ANA e LUMA estão medindo o braço da aluna BIA]

189- ANA: A LUMA / não dá pra tirar uma média pela LUMA não! |

é!|

190- LUMA: Vão *** o braço *** bem medido ***

191- ANA: É bem medido ***

192- BIA: Até aqui mais ou menos né? / até o topo da cabeça

|Cinqüenta trinta vinte e cinco ***| diferença de dez centímetros

***|tira uma média né| ///

Figura 2 - Grupo de Meninas e Relação com o corpo

Aqui, a escola desempenhou, com sucesso, sua função de “educadora” de corpos

e mentes. Apesar das perdas em termos de envolvimento acadêmico que se estabelece

para meninos e meninas, há ganhos indiretos. Os meninos escapam dos trabalhos

escolares sem que professores percebam, na verdade, talvez até acreditem que “meninos

são assim” – indomáveis. Quanto às meninas, conseguem negociar melhor com a

escola, pois adotam comportamentos de docilidade, submissão tão valorizados pelas

escolas.

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Com efeito, ao invés de desafiar seus estudantes quanto aos estereótipos sobre os

sexos ou quaisquer outros preconceitos, a escola insiste em aplicar velhas retóricas.

Perante do novo ou da “resposta incorreta”, a escola não desafia, ela se sente desafiada.

Afinal, o que fazer diante de tantas novidades, de tantas organizações familiares, de

tantas condições de gênero? A escola se equivoca ao entender o descompasso de idéias

como desrespeito. Tal situação gera crises internas, desencadeando, entre docentes e

estudantes, sentimentos de mal-estar, confusos quanto ao que fazer. Afinal, qual o papel

da escola e dos/as docentes?

Não há uma resposta singular para essa questão. A escola certamente influencia

as identidades de seus alunos e alunas e certamente de seus profissionais. Mas, as

identidades se constroem na interação com os outros, apesar da possibilidade de se

construírem de maneira autônoma. Se não houvesse essa possibilidade não haveria

casos de resistências de alunos apesar de educados dentro de normas restritas, mesmo

sem conhecer outras versões de “ser”.

O caso abaixo exemplifica este desvio. Temos, aqui, crianças e professoras que

contradizem as percepções sobre a infância-inocência:

Professor:...Acontece de algumas alunas ou alunos chegarem e você sente que o

rendimento não esta... muito legal... Já é uma abertura para ela desabafar... Que o pai

fez isto que, sabe? ... Uma aluna chegou perto de mim e perguntou... Como é que um

homem sabe que uma mulher teve orgasmo... Com alunas adolescentes... eu não tenho

envolvimento extra sala sabe. Eu não posso dar atenção exclusiva (!) eu tenho que dar

atenção no todo. E ai... parece que sofre uma insatisfação, toma raiva... Passa a ser

agressiva... Eu já tive problemas demais com isto |(!)... Não é presunção não, mas

parece que eu tenho um certo carisma... que vai envolvendo, mas não é uma coisa que

eu faço... A menina já tentou me agarrar, me beijar... É constrangedor. Este ano eu já

recebi vários bilhetes, às vezes colocava assim anônimos... dentro da caixinha... dentro

do livro... Eu tenho a consciência que eu não provoco isto, porque neste momento eu

entro dentro da sala de aula... eu não estou pensando em mim, eu penso no trabalho

que eu tenho que desenvolver”... Eu já fui assediado sim no corredor.

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Que tipo de assedio?

A menina já tentou me agarrar me beijar, sabe eu tenho um... é engraçado e

constrangedor. Este ano eu já recebi vários bilhetes às vezes colocava assim anônimos

né, dentro da caixinha às vezes esperava eu distrair e punha dentro do livro, eu tenho

estes problemas, sabe. Que eu tenho a consciência que eu não provoco isto, porque

neste momento eu entro dentro da sala de aula eu não estou pensando em mim eu penso

no trabalho que eu tenho que desenvolver, inclusive eu fui muito claro com a

orientadora, mais aí é realmente uma coisa que... que eu até entendo são adolescentes.

Segundo relato de um dos professores entrevistados, a professora dizia “gostar

de ensinar aos mais novos” revelando que saía com seus alunos menores (adolescentes)

para iniciação sexual. Esse relato contraria as percepções da professora como mãe,

como um ser assexuado, devotada ao “cuidado” das crianças e acima de qualquer

suspeita.

Entende-se, aqui, que identidade não é um produto inalterável, ao contrário, é

precisamente sua instabilidade que permite a mudança. Não há, portanto, uma

identidade cristalizada, mas várias que se fundem ou desaparecem ao longo da vida.

Portanto, há esperança para intervenção. A construção das identidades se faz pelo

aprendizado sem “pontos finais”. Tal construção não se restringe a apenas salas de aulas

ou à transmissão de conhecimentos sistematizados.

Apesar de seu primeiro compromisso ser com a transmissão de uma educação

sistematizada, a escola não se reduz a isso. Nem tão pouco cabe a ela realizar

julgamentos de valor, mas analisar todas as informações, dar acesso a outras maneiras

de estar no mundo. Para tanto, ao lidar com conhecimentos sistematizados, a escola

precisa dialogar com o senso comum, cujas referências confortam e dão significado ao

mundo dos indivíduos quando desafiados por informações estranhas. Ignorá-lo seria

como zerar as experiências do indivíduo, o que é impossível no processo de

aprendizagem. Assim, apropriar-se do senso comum, das crenças é o passo inicial para

que “certezas” sejam desconstruídas e, assim, outras identidades sejam reconstruídas. O

senso comum, quando devidamente tratado se transforma em enfrentamentos de

“fantasmas sociais”. Sentimentos, valores, estereótipos se não discutidos, ouvidos, são

apenas fantasmas, portanto, não existem, de fato, mas são apenas pressentidos e

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temidos. E, se pressentidos não são tocáveis, mas assumem um poder intenso sob os

indivíduos.

Portanto, para que a escola ocupe um lugar significativo para aqueles que a

freqüentam e para que tenhamos uma educação que vise à mudança social será preciso

enfrentar discussões, conversas desconfortáveis e, algumas vezes, assustar/desafiar com

outras visões de mundo.

No entanto, o que ocorre nas comunidades escolares é um gerenciamento dos

comportamentos segundo os sexos, seja das crianças, dos/das próprias docentes e até

mesmo das famílias. Esse controle não se dá apenas segundo um modelo de direção

escolar, que privilegia a segregação entre os sexos, mas entre os próprios pares:

professores e funcionários, enfim por toda a comunidade escolar. Assim, professores e

professoras, apesar de mesmos cargos e salários, têm suas vidas profissionais e privadas

policiadas segundo parâmetros de ordem sexual. Constata-se um tratamento distinto

dirigido às mulheres e aos homens na docência do ensino fundamental e médio

(TEIXEIRA, 200?). Dessa maneira, professoras e professores são submetidos e se

submetem a micropolítica das organizações escolares, conduzindo-os/as a uma re-

significação equivocada de docência. Tal equívoco conduz à evidente descaracterização

das funções docentes, um processo denominado “desintelectualização” docente. Em

conseqüência, práticas pedagógicas contrárias à eqüidade social aflaram. Tais práticas

reproduzem concepções equivocadas sobre “identidades de gêneros” que são

transmitidas aos(as) alunos(as) podendo gerar, principalmente nas crianças, barreiras

psicológicas e materiais.

A segregação sexual não decorre, entretanto, do mero credo na natureza

“masculina” ou “feminina”. Ela gera poderes, ajudando certos grupos ou indivíduos a

maximizarem seus interesses.

Não se pode ignorar, porém, que da mesma forma que em outras organizações

de trabalho, as escolas também se constroem pelas disputas de poderes legitimados ou

não, poderes esses, talvez, que fogem da concepção tradicional de poder. Essas disputas

por poderes influenciam fortemente as identidades e trajetórias profissionais das(os)

docentes e, conseqüentemente, dos/das alunos/alunas. Não obstante as perdas, nessas

situações, de alguma forma, todos se beneficiam ao ratificar percepções tradicionais

relativas ao sexo. Alguns ganham eleições, outros conseguem “escapar da sala de aula”,

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outros evitam o trabalho. E, por vezes, os pais também usufruem dessa manipulação

sentimental das escolas e delegam às escolas as funções da família.

Afinal, a escola prefere o silêncio, a negligência ou o conservadorismo a lutar

contra conceitos de educação de meninos e meninas baseado na forte concepção da

biologia do comportamento para cada sexo. Entretanto, nessa percepção, o sexo torna-se

“objeto inquestionável” (dado como fato pré-cultural), que informa uma série de

atributos morais que não têm relação direta com a Biologia (HARAWAY, in

AGUIAR, 1997).

Em adição, diz Louro:

Da arquitetura aos arranjos físicos; dos símbolos às disposições sobre comportamentos

e práticas; das técnicas de ensino às estratégias de avaliação; tudo opera na

constituição de meninos e meninas, de homens e mulheres – dentro e também fora da

escola (uma vez que a instituição ‘diz’ alguma coisa não apenas para quem está no seu

interior, mas também para aqueles/as que dela não participam (LOURO, 1997, p. 91).

Conclusão

A escola arquiteta, de acordo com sua micropolítica, ações que “magistram” o

gênero marcando profundamente as vidas escolar e profissional de discentes e docentes.

Retarda-se, assim, a implementação de eqüidade na educação justa e possível para

ambos os sexos.

Assim sendo, talvez o maior desafio da escola ainda seja romper com um

discurso pseudo-científico, noutras palavras, romper com o senso comum que enquadra

a nós todos como homens ou mulheres, meninos ou meninas, validando apenas uma

identidade masculina ou outra feminina. Para isso, supõe-se que o primeiro passo seja

chamar a sensibilização dos docentes para a questão do gênero levando-os a questionar

como a distinção sexual influenciou e influencia suas trajetórias de vida.

Acredita-se que este processo de autoconhecimento possibilitará ao docente

(des)normatizar, desnaturalizar, e, sobretudo, desenvolver certo estranhamento com

relação aos papéis, espaços e talentos específicos estabelecidos para homens e mulheres.

Tal estranhamento é construído pelo diálogo com o senso comum, com os preconceitos

dos/das docentes. Eles, uma vez cientes dos prejuízos da segregação sexual, passarão a

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ser os/as multiplicadores para a mudança junto às crianças e à comunidade, objetivando

uma educação anti-sexista e igualitária.

Referências bibliográficas

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de Subjetivação. Rio de Janeiro: Imago Ed. 2002.

AGUIAR, Neuma Ambivalência sobre os conceitos de Sexo e Gênero na produção de algumas teóricas

feministas. In: Gênero, Ciências Humanas. Editora Rosa dos Tempos. p.49-65. 1997.

BRIZTMAN, Débora Curiosidade, Sexualidade e Currículo. In: O Corpo Educado. Pedagogias

Sexualidade. Autêntica. 2003.

NEGREIROS, Tereza CGM Sexualidade, gênero no envelhecimento. Alceu, 5:9-77-86. 2004.

LOURO, Guacira L Gênero, Sexualidade e Educação. Uma perspectiva Pós-estruturalista. Editora Vozes.

p. 91. 1997.

PEREIRA, Sissi AM & MOURÃO, Ludmila: Identificações de gênero: jogando e brincando em

universos divididos. Motriz, Rio Claro, v.11 n.3, p.205-210, set./dez. 2005.

SCOTT, Joan Gênero: Uma categoria útil de Análise Histórica In: Educação e Realidade, 1(2):5-22. 1990

TEIXEIRA, Adla BM The domestication of the primary school teaching: a brazilian case study (PhD

Thesis) – University of London, Institute of Education. Set.1998.

______________ Identidades Docentes e Relações de Gênero. Revista Fundação Helena Antipoff, Ibirité

- Minas Gerais, v. 1, n. 1, p. 7-16. 2002.

______________ et al. Exploring Modes of Communication among Pupils in Brazil: Gender Issues in

Academic Performance. Gender and Education. Vol X, noX. P.000-000. 2008 (no prelo).

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Atividades As questões abaixo objetivam avaliar o grau de entendimento que você (docente) desenvolveu com o curso sobre as questões de Diversidade na Escola.

1. Nas escolas, crianças/estudantes fazem uso de apelidos heterossexistas do tipo “bicha”, “veado”, “sapatão”. Mesmo que a criança pequena não saiba exatamente o que estas palavras implicam, elas sabem que tais palavras podem magoar outras pessoas. Qual o procedimento esperado a um/a docente nestas situações?

2. Na sua escola há uma política clara (ou já se discutiu) quanto a situações de

violências verbal ou física heterosexista? O que poderia ser feito?

3. De que maneira as ações heterossexistas podem afetar o desempenho acadêmico

(aprendizagem) de crianças na escola (meninos ou meninas)? 4. Heterossexismo não se refere apenas as ações homofóbicas. Não há apenas um

tipo de masculinidade ou feminilidade. Observe isto em sua própria família ou entre suas amigas ou amigos. Heterossexismo impede expressões de carinho e afeto entre meninos, entre pais e filhos, impedem o pleno acesso ao conhecimento por meninos e meninas (acesso negado a mulheres e homens em cursos ou áreas de conhecimento). Discutir sobre diversidades na escola, em especial de gênero, é uma questão de justiça social. Transformar a escola em um ambiente onde indivíduos se sentem respeitados e seguros é uma questão de respeito aos direitos humanos, contribuindo para uma educação verdadeiramente inclusiva. Quais medidas poderiam ser tomadas para o enfrentamento destas violências na sua sala de aula?

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Eixo II

Módulo I e II

Educação em direitos humanos: desafios atuais Vera Maria Candau

O atual contexto internacional, certamente, não constitui um cenário propício à

afirmação de uma cultura dos Direitos Humanos. O documento final da Conferência

Regional sobre Educação em Direitos Humanos na América Latina e Caribe, promovida

pelo Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU e pela UNESCO, realizada

no México, de 28 de novembro a primeiro de dezembro de 2001, afirma:

Esta Conferência expressa sua preocupação porque no momento presente o exercício dos Direitos Humanos pode ser subordinado a políticas de segurança nacional, assim como pelo fato de se ter produzido uma imobilidade em relação a apoiar agendas para avançar nos direitos humanos, concretamente as relativas às recomendações da Conferência de Durban.

Globalização, políticas neoliberais, segurança global, essas são realidades que

estão acentuando a exclusão, em suas diferentes formas e manifestações. No entanto,

não afetam, igualmente, a todos os grupos sociais e culturais, nem a todos os países e,

dentro de cada país, às diferentes regiões e pessoas. São os considerados “diferentes”,

aqueles que, por suas características sociais e/ou étnicas, por serem pessoas com

“necessidades especiais”, por não se adequarem a uma sociedade cada vez mais

marcada pela competitividade e pela lógica do mercado, os “perdedores”, os

“descartáveis”, que vêm, a cada dia, negado o seu “direito a ter direitos”. (ARENDT,

1997).

Este é o nosso momento. Nele temos de buscar, no meio de tensões, contradições

e conflitos, caminhos de afirmação de uma cultura dos Direitos Humanos, que penetre

todas as práticas sociais e seja capaz de favorecer processos de democratização, de

articular a afirmação dos direitos fundamentais de cada pessoa e grupo sócio-cultural,

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de modo especial os direitos sociais e econômicos, com o reconhecimento dos direitos à

diferença.

Articular igualdade e diferença: uma exigência do momento

Esta é uma questão fundamental no momento atual. Para alguns, a construção da

democracia tem que colocar a ênfase nas questões relativas á igualdade e, portanto,

eliminar ou relativizar as diferenças. Existem, também, posições que defendem um

multiculturalismo radical, com tal ênfase na diferença, que a igualdade fica em um

segundo plano.

No entanto, o problema não é afirmar um pólo e negar o outro, mas sim, termos

uma visão dialética da relação entre igualdade e diferença. Hoje em dia, não se pode

falar em igualdade sem incluir a questão da diversidade, nem se pode abordar a questão

da diferença dissociada da afirmação da igualdade.

Uma frase do sociólogo português Santos (1997) sintetiza, de maneira

especialmente oportuna, esta tensão: “temos direito a reivindicar a igualdade sempre

que a diferença nos inferioriza e temos direito de reivindicar a diferença sempre que a

igualdade nos descaracteriza.”

Neste sentido, não se deve opor igualdade à diferença. De fato, a igualdade não

está oposta à diferença e sim, à desigualdade. Diferença não se opõe à igualdade e sim à

padronização, à produção em série, a tudo o “mesmo”, à “mesmice”.

O que estamos querendo trabalhar é, ao mesmo tempo, negar a padronização e

lutar contra todas as formas de desigualdade presentes na nossa sociedade. Nem

padronização nem desigualdade. E sim, lutar pela igualdade e pelo reconhecimento das

diferenças. A igualdade que queremos construir, assume a promoção dos direitos

básicos de todas as pessoas. No entanto, esses todos não são padronizados, não são os

“mesmos”. Têm que ter as suas diferenças reconhecidas como elementos de construção

da igualdade.

Consideramos que essa temática, nos próximos anos, vai suscitar uma grande

discussão, um debate difícil, que desperta muitas paixões, mas que é fundamental para

se avançar na afirmação da democracia. Hoje não se pode mais pensar na afirmação dos

Direitos Humanos a partir de numa concepção de igualdade que não incorpore o tema

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do reconhecimento das diferenças, o que supõe lutar contra todas as formas de

preconceito e discriminação.

A gênese da educação em Direitos Humanos na América Latina

Certamente, a luta pelos Direitos Humanos no nosso país, e em toda a América

Latina, tem sido árdua nas últimas décadas. As violações se multiplicaram com especial

dramaticidade. Muitas foram as vítimas e, em muitos casos, o resgate da memória, o

reconhecimento dos crimes cometidos em nome do Estado e a superação da impunidade

são ainda temas que não foram enfrentados com valentia e vontade política de fazer

justiça.

No entanto, a partir dos anos de 1980, as organizações e movimentos de Direitos

Humanos, sem deixarem de se dedicar à denúncia das violações realizadas e de

promoverem ações orientadas à proteção e defesa dos direitos, ampliam seu horizonte

de preocupações e seus espaços sociais de atuação. Junto aos problemas que podemos

considerar tradicionais e básicos, relativos aos direitos civis e políticos, passam a ser

enfatizadas questões relacionadas com os direitos sociais, econômicos e culturais, no

nível pessoal e coletivo. A partir deste momento, adquirem especial relevância as

atividades de promoção e educação em Direitos Humanos.

Basombrio (1992, p. 33), pesquisador que realizou um trabalho abrangente de

registro e análise do que foi a luta por uma educação em Direitos Humanos nos últimos

anos em diferentes países latino-americanos, assim sintetiza o processo vivido:

A educação em Direitos Humanos na América Latina constitui uma prática recente. Espaço de encontro entre educadores populares e militantes de direitos humanos, começa a se desenvolver simultaneamente com o final dos piores momentos da repressão política na América Latina e alcança um certo nível de sistematização na segunda metade da década de 80.

As experiências de educação em Direitos Humanos têm-se multiplicado ao longo

de todo o continente latino-americano. A partir das informações disponíveis,

constatamos que a maior parte delas tem sido realizada em âmbitos de educação não

formal, aspecto tradicionalmente privilegiado pela educação popular. No entanto, a

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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preocupação pelos processos escolares, pouco a pouco, tem-se afirmado e

algumas instituições de países como o Peru, Chile, México, Uruguai e Brasil, têm

desenvolvido trabalhos especialmente interessantes nesta perspectiva.

Para Sime (1994, p. 88)

A educação em direitos humanos nasce herdando da educação popular uma vocação explícita para construir um projeto histórico, uma vontade mobilizadora definida por uma opção orientada à mudança estrutural e ao compromisso com os setores populares. Isto marcará discrepâncias com visões educativas neutras e com outras que não compartem as mesmas opções. Nisto residia grande parte da energia ética e política de então que era partilhada por diferentes setores: propor uma sociedade alternativa e uma maneira de construí-la. No entanto, esta imagem do projeto que se assumiu nos anos 70 e 80 hoje está profundamente questionada. Aconteceram mudanças muito importantes no país e no mundo, assim como no terreno propriamente pedagógico, que exigem uma revisão do projeto histórico.

A problemática da educação em Direitos Humanos hoje na América Latina

No primeiro semestre de 1999, o Instituto Interamericano de Direitos Humanos

(IIDH) da Costa Rica começou a desenvolver, com a coordenação do professor

Abraham Magendzo, do Chile, educador com uma ampla experiência de educação em

Direitos Humanos no âmbito latino-americano, um processo orientado a fazer um

balanço crítico da educação em Direitos Humanos nos anos de 1990, na América

Latina. O início das experiências nesta perspectiva, na maior parte dos países do

continente, se deu nos anos de 1980 e, nesse momento, o Instituto Interamericano teve

um protagonismo muito grande, inclusive entre nós, como estimulador e financiador de

muitas realizações.

No processo de construção do balanço crítico, foi indicado um pesquisador de

cada país para realizar um estudo de caso no seu respectivo contexto. Os países

participantes foram os seguintes: Argentina, Chile, Peru, Brasil, Colômbia, Guatemala e

México. Uma vez realizados os estudos de caso de caráter nacional, estes foram

enviados a todos os pesquisadores e foi convocado um seminário pelo IIDH em Lima,

Peru, 403 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos no mês

de novembro de 1999, para discussão e elaboração da síntese final do processo e o

levantamento de questões consideradas importantes para o desenvolvimento da

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educação em Direitos Humanos a partir de 2000. Apresentaremos, brevemente, os

principais temas discutidos.

Um primeiro bloco se relacionava ao sentido da educação em Direitos Humanos

no novo marco político, social, econômico e cultural, isto é, na transição

modernidade/pós-modernidade, no contexto de democracias débeis ou de “baixa

intensidade” e de hegemonia neoliberal. A temática de educação para direitos humanos

nos anos 80, principalmente nos países que passaram por processos de transição

democrática, depois de traumáticas experiências de ditadura, como é o nosso caso, foi

introduzida como um componente orientado ao fortalecimento dos regimes

democráticos. No entanto, hoje a realidade é outra. O clima político-social, cultural e

ideológico é diferente. Vivemos um contexto de políticas neoliberais, de debilitameno

da sociedade civil, de crescente exclusão social e falta de horizonte utópico para a

construção social. Por outro lado, em contraste com os anos 80, em que a maior parte

das experiências de Educação em Direitos Humanos foram promovidas por ONG’s e

administrações públicas de “esquerda”, nesta última década, houve uma grande entrada

dos Estados, em geral de caráter neoliberal, na questão da educação em Direitos

Humanos. Quase todos os países latino-americanos, atualmente, têm legislações

orientadas a promover e instituir a educação em Direitos Humanos nos sistemas de

ensino. Neste novo cenário, é importante analisar e debater as questões relativas ao

sentido da educação em Direitos Humanos e os objetivos que pretende alcançar.

Uma problemática especialmente significativa nesta perspectiva diz respeito à

polissemia das expressões utilizadas neste âmbito. É importante não deixar que a

expressão Direitos Humanos seja substituída por outras mais ambíguas ou que

restrinjam a educação em Direitos Humanos a uma educação em valores, inibindo seu

caráter político. Por outro lado, hoje a educação em Direitos Humanos admite muitas

leituras e esta expressão foi se “alargando” tanto que o seu sentido passou a englobar

desde a educação para o transito, os direitos do consumidor, questões de gênero, étnicas,

do meio-ambiente, etc.. até temas relativos à ordem internacional e à sobrevivência do

planeta, de tal modo que pode correr o risco de englobar tantas dimensões que perca

especificidade e uma visão mais articulada, terminando por se reduzir a um grande

“chapéu” sob o qual podem ser colocadas coisas muito variadas, com os mais diversos

enfoques.

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Um tema que suscitou acalorada discussão, foi o da cultura escolar e as

possibilidades da educação em Direitos Humanos. A cultura escolar se encontra, muitas

vezes, tão “engessada”, pensada de uma maneira tão rígida e monolítica, que,

dificilmente, deixa espaço para que a cultura dos Direitos Humanos possa penetrá-la. Na

maior parte das vezes, o máximo que se consegue, é introduzir no currículo formal

alguns conteúdos. Outra coisa se torna muito difícil, pois a maneira de se conceber a

cultura escolar já, de alguma forma, entra em choque com a cultura dos Direitos

Humanos.

Qual o horizonte de sentido da educação em Direitos Humanos?

Este tema permeou toda a discussão realizada durante o seminário, ao final do

qual se chegou ao consenso de que hoje era importante reforçar três dimensões da

educação dos Direitos Humanos.

A primeira diz respeito à formação de sujeitos de direito. A maior parte dos

cidadãos latino-americanos tem pouca consciência de que são sujeitos de direito. Esta

consciência é muito débil, as pessoas – inclusive por ter a cultura brasileira uma

impronta paternalista e autoritária – acham que os direitos são dádivas. Por exemplo,

expressões como “o patrão é bom porque me deu férias”, expressam esta posição; as

férias viram uma questão de “generosidade” e não de direito. Os processos de educação

em Direitos Humanos devem começar por favorecer processos de formação de sujeitos

de direito, a nível pessoal e coletivo, que articulem as dimensões ética, político-social e

as práticas concretas.

Outro elemento fundamental na educação de Direitos Humanos é favorecer o

processo de “empoderamento” (“empowerment”), principalmente orientado aos atores

sociais que, historicamente, tiveram menos poder na sociedade, ou seja, menos

capacidade de influírem nas decisões e nos processos coletivos. O “empoderamento”

começa por liberar a possibilidade, o poder, a potência que cada pessoa tem para que ela

possa ser sujeito de sua vida e ator social. O “empoderamento” tem, também, uma

dimensão coletiva, trabalha com grupos sociais minoritários, discriminados,

marginalizados, etc, favorecendo sua organização e participação ativa na sociedade

civil.

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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O terceiro elemento diz respeito aos processos de mudança, de transformação,

necessários para a construção de sociedades verdadeiramente democráticas e humanas.

Um dos componentes fundamentais destes processos se relaciona a “educar para o

nunca mais”, para resgatar a memória histórica, romper a cultura do silêncio e da

impunidade que ainda está muito presente em nossos países. Somente assim, é possível

construir a identidade de um povo, na pluralidade de suas etnias e culturas.

Estes três componentes: formar sujeitos de direito, favorecer processos de

empoderamento e educar para o “nunca mais”, constituem hoje o horizonte de sentido

da educação em Direitos Humanos.

Quanto às estratégias metodológicas a serem utilizadas na educação em Direitos

Humanos, estas têm de estar em coerência com as finalidades acima assinaladas o que

supõe a utilização de metodologias ativas, participativas, de diferentes linguagens.

Exigem, no caso da educação formal, a construção de uma cultura escolar diferente, que

supere as estratégias puramente frontais e expositivas, assim como a produção de

materiais adequados, que promovam interação entre o saber sistematizado sobre

Direitos Humanos e o saber socialmente produzido. Devem ter como referência

fundamental a realidade e trabalhar diferentes dimensões dos processos educativos e do

cotidiano escolar, favorecendo que a cultura dos Direitos Humanos penetre em todo o

processo educativo.

Trata-se, portanto, de transformar mentalidades, atitudes, comportamentos,

dinâmicas organizacionais e práticas cotidianos dos diferentes atores sociais e das

institucionais educativas. É importante, também, assinalar que contextos específicos

necessitam também de abordagens específicas. Isto é, não se trabalha da mesma maneira

na universidade, numa sala de Ensino Fundamental ou Médio, com o movimento de

mulheres, com promotores populares etc. No entanto, o enfoque metodológico deve

sempre privilegiar estratégias ativas que estimulem processos que articulem teoria e

prática, elementos cognitivos, afetivos e envolvimento em práticas sociais concretas.

Não é difícil promover eventos, situações esporádicas, introduzir alguns temas

relacionados com os Direitos Humanos. O difícil é promover processos de formação

que trabalhem em profundidade e favoreçam a constituição de sujeitos e atores sociais,

no nível pessoal e coletivo.

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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Quando pode ser considerada uma experiência como promotora dos Direitos

Humanos na escola ou fora dela? Quais seriam os indicadores que a especificam? Que

estratégias metodológicas devem ser privilegiadas? Estas são questões importantes

sobre as quais devemos continuamente refletir.

Facilmente falamos de metodologias quando elas têm muitos pressupostos,

supõem uma concepção de aprendizagem, de educação, de educar em Direitos

Humanos. O importante é não dissociar a abordagem metodológica das finalidades que

se persegue nos processos de educação em Direitos Humanos.

Desafios e Perspectivas

A primeira afirmação a sublinhar, para que possamos identificar, pelo menos,

alguns dos principais desafios que a educação em Direitos Humanos está chamada a

enfrentar no continente, é a mudança de cenário.

A educação em direitos humanos é introduzida nos anos de 1980, num período

de (re)democratização do país, onde é forte o clima de mobilização cidadã e a crença na

possibilidade de transformação social e construção de uma sociedade democrática, não

somente do ponto de vista político mas também socioeconômico e cultural. São anos

marcados pela luta, pela pluralidade de iniciativas e pela esperança. As primeiras

experiências de educação em Direitos Humanos se situam neste clima e seus principais

protagonistas são grupos e pessoas ligadas a este esforço de mudança, em linha político-

ideológica de esquerda. Os sistemas públicos que assumem projetos nesta perspectiva,

estão governados por partidos deste linha e presididos, no caso brasileiro, por

personagens como Miguel Arraes e Paulo Freire.

A década de 1990 significou uma consolidação do projeto neoliberal nas

diferentes dimensões da vida social, não podendo seu impacto ser reduzido à

reestruturação produtiva. A década terminou com uma forte recessão econômica,

elevado índice de desemprego e exclusão, anomia social, multiplicação das formas de

violência, desencanto e hegemonia da perspectiva do “pensamento único”. A frase “o

futuro já não é futuro”, pichada por um grupo de jovens nos muros da cidade do Rio de

Janeiro, expressa dramaticamente o clima do momento.

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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O início do novo milênio está marcado pela contradição. Por um lado, a

hegemonia neoliberal continua se afirmando no plano interacional e os diferentes

governos, mesmo aqueles que se situam em uma perspectiva alternativa, não logram se

desprender de sua lógica, particularmente no que se refere às políticas econômicas.

Neste contexto, o discurso sobre os Direitos Humanos, parte da agenda internacional, é

assumido e ressituado dentro deste novo cenário.

Convém, também, ter presente que este novo cenário não é monolítico mas, está

atravessado por tensões dialéticas, numa correlação de forças marcada pela assimetria.

Por outro lado, numa república federativa como a brasileira, convivem diferenças e

conflitos entre diferentes níveis de governo – federal, estadual e municipal –, assim

como nas relações poder público- movimentos organizados da sociedade civil.

Tendo presente o atual cenário, vamos assinalar alguns desafios que

consideramos especialmente significativos para o desenvolvimento da educação em

Direitos Humanos:

A opção entre diferentes marcos político-ideológicos que servem de referencial

para a educação em Direitos Humanos

O discurso dos Direitos Humanos está marcado hoje por uma forte polissemia e,

conseqüentemente, as maneiras de se entender a educação em Direitos Humanos,

também. É possível distinguir pelo menos dois grandes enfoques.

O primeiro, marcado pela ideologia neoliberal, tende a ver a preocupação com os

Direitos Humanos como uma estratégia de melhorar a sociedade dentro do modelo

vigente, sem questioná-lo. Enfatiza os direitos individuais, as questões éticas e os

direitos civis e políticos, estes, centrados na participação nas eleições. Também estão

presentes temas como discriminação racial e de gênero, preconceito, violência,

segurança, drogas, sexualidade, tolerância, infância e adolescência, meio ambiente. O

horizonte de cidadania passa pela formação de sujeitos produtores e empreendedores,

assim como consumidores. Do ponto de vista pedagógico, propõe a incorporação de

temas relativos aos Direitos Humanos no currículo escolar a partir de um enfoque

construtivista e da perspectiva da transversalidade, privilegiando as dimensões psico-

afetiva, interacionista e experiencial.

O segundo enfoque parte de uma visão dialética e contra-hegemônica, em que os

Direitos Humanos são vistos como mediações para a construção de um projeto

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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alternativo de sociedade: inclusiva, sustentável e plural. Enfatiza uma cidadania

coletiva, que favorece a organização da sociedade civil, privilegia os atores sociais

comprometidos com a transformação social e promove o empoderamento dos grupos

sociais e culturais marginalizados. Afirma que os direitos políticos não podem ser

reduzidos aos rituais eleitorais, muitas vezes, fortemente mediatizados pela grande

mídia e pelas estratégias de marketing. Coloca no centro de suas preocupações a

interrelação entre os direitos de primeira, segunda e terceira geração e se coloca na

perspectiva da construção de uma quarta geração de direitos que incorpora questões

derivadas do avanço tecnológico, da globalização e do multiculturalismo. Acentua a

importância dos direitos sociais e econômicos para a própria viabilização dos direitos

civis e políticos. Privilegia temas como: desemprego, violência estrutural, saúde,

educação, distribuição da terra, concentração de renda, dívida externa e dívida social,

pluralidade cultural, segurança social, ecologia. Do ponto de vista pedagógico, admite a

transversalidade mas privilegia a interdisciplinaridade e enfatiza “temas geradores”.

Trabalha as dimensões sociocultural, afetiva, experiencial e estrutural do processo

educativo na perspectiva da pedagogia crítica e assume, do ponto de vista psico-

pedagógico, um construtivismo sociocultural.

Essas duas perspectivas, em muitos casos, se combinam, praticamente, não

existindo em estado puro. No entanto, é importante identificar a matriz predominante

em cada proposta e, principalmente, fazer opções claras sobre em que horizonte se

pretende caminhar. Consideramos este o principal desafio a enfrentar nos próximos

anos.

A necessidade de critérios que caracterizem a especificidade das experiências

As experiências que se apresentam como de educação em Direitos Humanos, se

situam numa ampla gama de projetos e ações. Podem incluir aquelas que se apresentam

com uma clara e explícita referência aos Direitos Humanos e trabalham, teórica e

praticamente, temas que têm a ver com sua problemática no nosso contexto numa

perspectiva educacional, como também incluem projetos que assumem, no plano do

discurso, os Direitos Humanos, sem que seja trabalhada a relação teoria-prática, assim

como aquelas ações orientadas para a formação de sujeitos sociais críticos e ativos, no

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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nível individual e coletivo, que promovem uma cidadania participativa mas onde a

temática dos Direitos Humanos fica implícita, não sendo trabalhada de uma maneira

sistemática. Consideramos importante clarificar os critérios básicos que permitem

delimitar, com maior precisão, o âmbito da educação em Direitos Humanos e as

condições para que determinadas experiências educativos possam nele ser situadas.

O risco da fragmentação

Nos últimos anos, houve uma enorme diversificação de trabalhos na área. De

alguma maneira, as ações se especializaram. Diferentes grupos enfatizam e assumem

componentes educativos referidos a determinada problemática: direitos das crianças, das

mulheres, dos grupos indígenas, dos negros, dos aidéticos, dos deficientes, dos idosos,

relativas ao consumidor, ao meio ambiente, etc. Esta diversificação se, por um lado,

representa uma riqueza, pode também levar a uma excessiva fragmentação.

Consideramos importante favorecer a articulação entre estes diferentes grupos, assim

como promover uma fundamentação geral que dê suporte teórico-metodológico às lutas

específicas.

A tensão entre parceria e cooptação

Outra questão de especial importância, no momento atual, diz respeito às

freqüentes parcerias entre os órgãos públicos e as organizações sociais, especialmente as

ONGs. Por um lado, as políticas públicas devem incorporar os diferentes agentes sociais

em função de sua função pública. No entanto, esta incorporação deve acontecer não

somente na etapa de execução dos programas e planos. Ela deve estar presente desde a

sua concepção, de maneira ampla, onde atores de diferentes tendências possam intervir,

não de forma reduzida aos ritos formais, mas, efetivamente, como co-autores, o que

raramente acontece. As parcerias ficam, em muitos casos, reduzidas a transformar as

organizações sociais no “braço” operacional do Estado, que transfere para elas os

aspectos de gestão das políticas públicas. Nestes casos, as ONGs, que se caracterizaram

pela autonomia em relação ao Estado - o que lhes permitiu ser uma instância crítica e

propositiva- , passam a ficar fortemente condicionadas em seus trabalhos e a inibir seu

potencial crítico em relação aos rumos da sociedade. Distinguir entre parceria e

cooptação e refletir coletivamente sobre as condições de uma e de outra, constitui um

desafio de especial importância neste momento.

Temas transversais versus temas geradores

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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Do ponto de vista pedagógico, consideramos fundamental analisar as bases

teóricas e as implicações práticas dessas duas estratégias propostas para a incorporação

da educação em Direitos Humanos na Escola Básica, Fundamental e Média. Existe um

amplo consenso de que, nestes níveis de ensino, não se trata de introduzir uma

disciplina específica sobre Direitos Humanos. No entanto, uns colocam a base

conceitual, do modo de conceber a introdução no currículo escolar desta preocupação,

na interdisciplinaridade e outros, na transversalidade. As conseqüências práticas de uma

ou outra opção são diferentes. Podem ser estas duas abordagens consideradas

complementares? Em contraposição? Quais as bases teóricas que as sustentam? E suas

implicações práticas no currículo em ação?

Educação em direitos humanos e formação de educadores

O que foi possível constatar, é que ainda é tímida a introdução da temática dos

Direitos Humanos na formação de professores e educadores em geral, na formação

inicial e continuada. Poucas são as organizações que trabalham sistematicamente nesta

perspectiva. No entanto, trata-se de uma questão urgente, se queremos colaborar para a

construção de uma cultura dos direitos humanos, que penetre as diferentes práticas

sociais. Buscar estratégias, nesta perspectiva, é fundamental.

Nesta perspectiva, não se pode conceber o papel dos educadores como meros

técnicos, instrutores, responsáveis unicamente pelo ensino das diferentes áreas

curriculares e por funções de normalização e disciplinamento. Os professores e

professoras são profissionais e cidadãos, mobilizadores de processos pessoais e grupais

de natureza cultural e social. Somente nesta ótica poderão ser promotores de uma

educação em direitos humanos.

A educação em Direitos Humanos já tem caminho construído no Brasil e em

todo o continente latino-americano. No momento atual, o desafio fundamental é avançar

em sintonia com sua paixão fundante: seu compromisso histórico com uma mudança

estrutural que viabilize uma sociedade inclusiva e a centralidade dos setores populares

nesta busca. Estas opções constituíram - e acreditamos que continuam sendo - a fonte de

sua energia ética e política.

Concluímos esta reflexão que, como afirmamos no início, pretende ter um

caráter meramente introdutório e suscitar questões para o debate pedagógico no

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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momento atual, com as seguintes palavras de Salvat: (Apud MAGENDZO, 1994,

p.164).

Os direitos humanos aparecem para nós como uma utopia a promover e plasmar nos diferentes níveis e espaços da sociedade. Como tais, apresentam-se como um marco ético-político que serve de crítica e orientação (real e simbólica) em relação às diferentes práticas sociais (jurídica, econômica, educativa, etc) na luta nunca acabada por uma ordem social mais justa e livre. Neste sentido, são vistos como paradigmáticos, isto é, como modelo e/ou critério exemplar a partir do qual podemos ler nossa história e nosso futuro como povos.

Referências

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Paulo: Companhia das Letras, 1997.

BASOMBRÍO, I. Educación y ciudadania: la educacion para los derechos humanos en América Latina

Peru: CEAAL,IDL y Tarea, 1992.

IIDH Experiencias de Educación en Derechos Humanos en América Latina. Costa Rica: IIDH/F.

Ford, 2000.

MAGENDZO, A. (Org.) Educación en Derechos Humanos: apuntes para una nueva práctica Chile:

Corporación Nacional de Reparación y Reconciliación e PIIE, 1994.

________. Dilemas y tensiones en torno a la educación en derechos humanos en democracia; In:

MAGENDZO, A. (Org.) Educación en Derechos Humanos: apuntes para una nueva práctica Chile:

Corporación Nacional de Reparación y Reconciliación e PIIE, 1994.

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y el Caribe. Ciudad de México, diciembre, 2001.

SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural dos direitos humanos. In: Lua Nova.

Revista de Cultura e Política. nº 39, p. 105-124. São Paulo: CEDEC, 1997.

SIME, L. Educacion, Persona y proyecto Histórico. In: MAGENDZO, A. (Org.) Educación en Derechos

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Reconciliación e PIIE, 1994.

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O que é educar para a cidadania?

Ricardo Brisolla Barestreti9

Ao abordarmos aqui o tema da educação para a cidadania fique claro que o fazemos na perspectiva da educação escolar, uma vez que nas comunidades, nas igrejas, nas organizações da sociedade civil, nas famílias, nas associações, enfim, nos mais diversos tipos, também se pode e deve estimular a consciência cidadã.

A pergunta inicial deve ser esta: educar para que? Se para a cidadania, é necessário defini-la. O que entendemos hoje por cidadania? Muito brevemente é preciso lembrar o significado dinâmico das palavras. Cidadania, no passado, era sinônimo de membro respeitável (leia-se “com poderes”, “com prerrogativas especiais”) da comunidade, com direito à participação política, à influência, à vez e voz.

Contemporaneamente, o termo “cidadania” expandiu-se e espalhou-se a compreender todo o membro da comunidade humana, com direitos e deveres pessoais, universais, indisponíveis, inalienáveis, naturais, transculturais, trans-históricos e transgeográficos. Alguns desses direitos e deveres estão magnificamente sintetizados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. “Cidadão” é o sujeito da história, de sua própria história e, com outros cidadãos, da história de sua comunidade, de sua cidade, de sua nação, de seu mundo. Cidadania é o que se eleva em dignidade e direitos por sobre as Instituições e estruturas, por sobre o próprio Estado que, sob licença, o governa. Cidadania é todo o homem e toda mulher, sem discriminação etária, igualado pela condição humana, de onde emana todo o poder político, que somente no seu interesse se justifica.

Os dias que seguem têm resgatado como nunca o homem – e cada homem na sua individualidade socialmente mediatizada – como o centro e o sujeito da história. A relativização do papel do Estado, a “débâcle” dos absolutismos teóricos e práticos, a insubmissão crescente ao poder das elites e das massas, reconduzem, aos poucos, o homem ao papel que sempre se lhe deveria ter reservado, ao qual, hoje, para evocar dignidade, chamamos “cidadania”.

É forçoso no entanto, reconhecer que a educação passa pela percepção de sua negação, da dura realidade ainda persistente em quase todos os cantos do planeta. Paradoxalmente, a cidadania proclamada nas Cartas das Nações e nas Constituições não é mais que uma promissora declaração de intenções. Urge, assim, uma luta sem tréguas pela superação do paradoxo. Temos, então, uma resposta à indagação: “O que é educar para a cidadania?”

9 Educador no Colégio Farroupilha em Porto Alegre, Diretor Nacional e ex-Presidente da Anistia Internacional no Brasil. Coordena o Programa Nacional de Educação para a Cidadania - PRONEC

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1º - É educar para o reconhecimento dessa condição de direitos e deveres inerentes, que carregamos dentro de nós pelo simples fato de sermos gente, de qualquer raça, de qualquer credo, de qualquer nação, de qualquer extrato social;

2º - É educar para reconhecer e respeitar as diferenças no plano individual e para combater os preconceitos, as discriminações, as ofensivas disparidades e privilégios no plano social;

3º - É educar cada um para a fé no próprio potencial, como agente da transformação qualitativa da própria vida e do mundo onde está inserido;

4º - É educar para a fraternidade, para o sentido social da vida, sem jamais roubar, com isso, a singularidade de cada projeto, de cada contribuição;

5º - É educar para a luta pacífica, mas encarniçada, contra todo o sistema, contra toda a estrutura que negue a quem quer que seja o direito de ser cidadão. Enquanto houver na terra um só sem posse plena desse “status”, os demais só se justificam pela luta.

Evidentemente, este é um programa que não se cumpre a nível discursivo. A dicotomia entre discurso e prática é a negação de qualquer possibilidade educativa.

Isso quer dizer que não se pode educar para o respeito aqueles a quem não respeitamos. Não devemos falar da fraternidade aos que oprimimos. É hipocrisia pregar a participação àqueles a quem calamos.

Então, educar para a cidadania tem muito a ver com o tipo metodológico, com as relações interpessoais que estabelecemos com nossos alunos.

“Ensinar” conteúdos crítico-sociais – porque o ensino constitui-se necessariamente em um processo vertical – é um contra-senso. Aprendemos, a duras penas, que é tão possível ser conservador – e mesmo reacionário – à esquerda quanto à direita. Há aqui, pelo menos, duas vertentes dessa pedagogia, de esquerda, do absurdo: o panfletarismo proselitista, simplista e óbvio (que visa gerar consciências políticas “a forceps”), e o discurso mais articulado, aparentemente sério, intelectualizado, das vanguardas “da pedagogia cívico-social dos conteúdos”, que fazem essa bizarra proposta de alcançar o novo através do velho. A última via é, evidentemente, por mais sofisticada, mais perigosa. Avança, nas escolas, com requintes de discurso oposicionista e anti-sistema, a partir do surpreendente congraçamento dos conservadores autoritários de todos os matizes. Uma velha pedagogia que se mal traveste com andrajos do surrado discurso do prestígio e da competência. E que, como sempre, só vê competência nos modelos autoritários. Não há pejo pela forma. Concede-se uma mudança no conteúdo ideológico somente porque a forma sabe-se mais importante. É ela, a forma, que, pelo exemplo, finca as suas raízes. O resto são palavras...

dizendo de outra maneira: não se educa para a cidadania derramando retórica academicista – ainda que com pretensões a crítico-científica – sobre alunos objetos, passivos, despersonalizados, sem espaços para a liberdade (que continua sendo sempre a

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liberdade de discordar), coletores de informações, repetidores de elaborações e análises alheias, alienados de qualquer auto-conceito. Se a retórica é unilateral, se os textos são direcionados e inquestionáveis, se o aprendizado foi reduzido a testes e provas, se a avaliação tornou-se apenas uma pobre medição da memória, não há “educação para a cidadania”. Não há sequer educação! Mesmo que isso tudo venha perfumado com o discurso crítico-social da competência. O adestramento (perdoem a demasia em repetir esse já batido, mas não conscientizado, lugar comum de todas as pedagogias emancipatórias) não é privilégio de qualquer ideologia...

A cidadania precisa ser vivenciada na sala de aula por todo educador que se pretenda cidadão e que não queira estabelecer sua prática sobre bases esquizofrênicas. Isto não se confunde com “liberalismo”, nem desconhecimento do próprio papel, nem com desorganização, nem com desordem, nem com incompetência acadêmica, nem com inconsistência ao nível das propostas, nem com qualquer das coisas com que nos querem assustar os mistificadores, amantes da velha ordem. Isto confunde-se com... democracia! Tem nome, tem proposta, tem honestidade intelectual, não nega nem superestima as diferenças nos papéis professor/aluno e até hoje não teve qualquer problema com a questão da incompetência. Aliás, na história das relações políticas, firmou-se com competência por sobre todas as demais propostas absolutizantes, hoje francamente desmoralizadas.

Evidentemente, tanto quanto uma boa metodologia, é fundamental um bom conteúdo, em relação harmônica. E bons conteúdos/metodologias devem municiar os que se nutrem para alguma forma de prática qualitativa diferenciada. Caso contrário, não seriam bons conteúdos e metodologias...

Isso significa que o micro cosmo da sala de aula não pode deslocar-se, em suas relações, do resto. Não há paraíso metodológico e nem conhecimento crítico-acadêmico que se justifiquem em si mesmos. As ferramentas não foram feitas para ficar guardadas. É preciso usá-las para aprender a usá-las... para usá-las! Assim, toda a educação deve orientar-se no sentido do todo. O conhecimento existe para melhorar a vida. A sala de aula precisa ser uma caixa de ressonância das aspirações do social. A escola precisa derrubar os muros invisíveis que a separam da comunidade imediata e do mundo. Em termos muitos práticos, não devemos falar da miséria sem assumirmos algum tipo de compromisso prático pela sua erradicação. Temos o dever de orientar os nossos jovens nesse sentido se não os quisermos, em pouco tempo, amargurados, desesperançados, céticos e, subseqüentemente, cooptados.

Se trabalhamos contra o preconceito, precisamos aproximar de nossos educandos os setores organizados da sociedade que lutam pelo fim desses preconceitos (contra a mulher, contra o negro, contra o índio, etc.). precisamos dar-lhes uma chance de ouvir direto das fontes, de sensibilizar-se com elas, de poder optar com elas, somando-se a seus esforços ordenados por uma vida de pleno significado fraterno.

Não temos o direito de falar da opressão política, da tortura, de execuções e desaparecimentos, se não possibilitamos ao nosso aluno que escreve a sua carta (quem sabe nas aulas de português, ou de espanhol, ou de inglês, ou de geografia, ou de história) protestando contra os regimes nos quais impera a barbárie. É possível fazer

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isso. Há tantos organizações que se dedicam a esse trabalho e que gostariam desse apoio ( a Anistia Internacional tem tido, muitas vezes, essa gratificante oportunidade).

Os debates sobre pena de morte podem consubstanciar-se, por exemplo, em abaixo-assinados daqueles alunos e professores que a ela se opões, enviados aos parlamentares no Congresso Nacional (onde há sempre um risco de ser aprovada). Caso contrário, serão apenas debates, formadores de opinião, mas de opinião condenada à morte por inatividade.

Se a consciência ecológica é realmente importante para uma escola, os alunos precisam estabelecer, a partir de possibilidades que essa mesma escola apresente, qualquer vínculo amoroso e direto com a natureza (não é possível amar sem interagir). Na escola onde trabalho, em Porto Alegre, há uma relação da criança e do jovem adulto com o plantio e a preservação de bosques e isso, em sala de aula, torna-se reflexão sobre o concreto e dá concretude e credibilidade à reflexão. É possível ir além. São tantas organizações ecológicas que acolheriam de bom grado jovens militantes, que poderiam ter nelas uma vida menos vazia...

Todas as disciplinas têm algo a ver com pelo menos algumas dessas dimensões. É pequeno, é medíocre, causa dó o pretexto de “ter que dar a matéria...”. que mundo é esse, aos pedaços, onde os que se dizem educadores estão tão somente preocupados em “dar” o que chamam de “matéria”? para que serve mesmo a matéria?

Se nós, os professores, fôssemos menos pretensiosos, se percebêssemos que poderíamos desempenhar nosso mais importante papel, oportunizando aos educandos uma imersão crítica mais intensa na vida real, então, à vida real se lhe devolveria o “status” de melhor escola que a escola, de fonte mais densa e significativa de conhecimentos, de única experienciação segura para habilitar à competência. E talvez a escola pudesse, no mundo, após séculos de opressão, de injustiça e destruição, dar a sua primeira efetiva contribuição para uma sociedade melhor.

Seguramente, temos parte importante no despontar dessa nova era, ajudando na geração de uma juventude mais sadia, mais plena, portadora de ideais, de um significado para a sua existência. Seria um crime – contra ela e contra nós mesmos – perdermos tamanha oportunidade. Não é tarefa tão difícil. Basta um pouco de ousadia, alguma criatividade, fé em nosso próprio potencial, vocação real para educar e muita consciência de cidadania.

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Educação em Direitos Humanos de que se trata?*

Maria Victoria Benevides**

A Educação em Direitos Humanos parte de três pontos essenciais: primeiro, é

uma educação de natureza permanente, continuada e global. Segundo, é uma educação

necessariamente voltada para a mudança, e terceiro, é uma inculcação de valores, para

atingir corações e mentes e não apenas instrução, meramente transmissora de

conhecimentos. Acrescente-se, ainda, e não menos importante, que ou esta educação é

compartilhada por aqueles que estão envolvidos no processo educacional – os

educadores e os educandos - ou ela não será educação e muito menos educação em

direitos humanos. Tais pontos são premissas: a educação continuada, a educação para a

mudança e a educação compreensiva, no sentido de ser compartilhada e de atingir tanto

a razão quanto a emoção.

O que significa dizer que queremos trabalhar com Educação em Direitos

Humanos? A Educação em Direitos Humanos é essencialmente a formação de uma

cultura de respeito à dignidade humana através da promoção e da vivência dos valores

da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e

da paz. Portanto, a formação desta cultura significa criar, influenciar, compartilhar e

consolidar mentalidades, costumes, atitudes, hábitos e comportamentos que decorrem,

todos, daqueles valores essenciais citados – os quais devem se transformar em práticas.

Quando falamos em cultura, é importante deixar claro que não estamos nos

limitando a uma visão tradicional de cultura como conservação: dos costumes, das

tradições, das crenças e dos valores. Pelo contrário, quando falamos em formação de

uma cultura de respeito aos direitos humanos, à dignidade humana, estamos

enfatizando, sobretudo no caso brasileiro, uma necessidade radical de mudança. Assim,

falamos em cultura nos termos da mudança cultural, uma mudança que possa realmente

mexer com o que está mais enraizado nas mentalidades, muitas vezes marcadas por

preconceitos, por discriminação, pela não aceitação dos direitos de todos, pela não

aceitação da diferença. Trata-se, portanto, de uma mudança cultural especialmente

importante no Brasil, pois implica a derrocada de valores e costumes arraigados entre

nós, decorrentes de vários fatores historicamente definidos: nosso longo período de

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escravidão, que significou exatamente a violação de todos os princípios de respeito à

dignidade da pessoa humana, a começar pelo direito à vida; nossa política oligárquica e

patrimonial; nosso sistema de ensino autoritário, elitista, e com uma preocupação muito

mais voltada para a moral privada do que para a ética pública; nossa complacência com

a corrupção, dos governantes e das elites, assim como em relação aos privilégios

concedidos aos cidadãos ditos de primeira classe ou acima de qualquer suspeita; nosso

descaso com a violência, quando ela é exercida exclusivamente contra os pobres e os

socialmente discriminados; nossas práticas religiosas essencialmente ligadas ao valor da

caridade em detrimento do valor da justiça; nosso sistema familiar patriarcal e machista;

nossa sociedade racista e preconceituosa contra todos os considerados diferentes; nosso

desinteresse pela participação cidadã e pelo associativismo solidário; nosso

individualismo consumista, decorrente de uma falsa idéia de “modernidade”.

A mudança cultural necessária deve levar ao enfrentamento de tal herança e

ainda ser instrumento de reação a duas grandes deturpações que fermentam em nosso

meio social - como parte de uma certa “cultura política”- em relação ao entendimento

do que sejam direitos humanos. A primeira delas, muito comentada atualmente e

bastante difundida na sociedade, inclusive entre as classes populares, refere-se à

identificação entre direitos humanos e direitos da marginalidade, ou seja, são vistos

como “direitos dos bandidos contra os direitos das pessoas de bem”. Essa deturpação

decorre certamente da ignorância e da desinformação, mas também de uma perversa e

eficiente manipulação, sobretudo nos meios de comunicação de massa, como ocorre

com certos programas de rádio e televisão, voltados para a exploração sensacionalista

da violência e da miséria humana. A segunda deturpação, evidente nos meios de maior

nível de instrução (meio acadêmico, mas também de políticos e empresários), refere-se

à crença de que direitos humanos se reduzem essencialmente às liberdades individuais

do liberalismo clássico e, portanto, não se consideram como direitos fundamentais os

direitos sociais, os direitos de solidariedade universal. Nesse sentido, os liberais adeptos

dessa crença aceitam a defesa dos direitos humanos como direitos civis e políticos,

direitos individuais à segurança e à propriedade; mas não aceitam a legitimidade da

reivindicação, em nome dos direitos humanos, dos direitos econômicos e sociais, a

serem usufruídos individual ou coletivamente, ou seja, aqueles vinculados ao mundo do

trabalho, à educação, à saúde, à previdência e seguridade social etc.

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Com tal quadro histórico e com tais deturpações - muitas vezes conscientes e

deliberadas, de grupos ou pessoas interessadas em desmoralizar a luta pelos direitos

humanos, porque querem manter seus privilégios ou porque querem controlar e usar a

violência, sobretudo a institucional, apenas contra os pobres, contra aqueles

considerados “classes perigosas”- reafirmamos que uma educação em direitos humanos

só pode ser uma educação para a mudança, e não para a conservação. Embora

insistamos na idéia de cultura, trata-se da criação de uma nova cultura de respeito à

dignidade humana; portanto, o termo cultura só tem sentido como mudança cultural.

Esse quadro bastante negativo sobre a realidade histórica e contemporânea do

Brasil não deve ser um empecilho para o nosso trabalho; pelo contrário, deve ser

incentivo para procurar mudar. Podemos ser razoavelmente otimistas, pois já existem

várias iniciativas de grupos de defesa de direitos humanos, no sistema de ensino público

e privado, nos movimentos sociais e nas ONGs em geral – inclusive a Rede Brasileira

de Educação em Direitos Humanos que patrocina este encontro – além dos órgãos

oficiais, como no caso da Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania no Estado de São

Paulo. Portanto, ser a favor de uma educação que significa a formação de uma cultura

de respeito à dignidade da pessoa humana, significa querer uma mudança cultural, que

se dará através de um processo educativo. Significa essencialmente que queremos outra

sociedade, que não estamos satisfeitos com os valores que embasam esta sociedade e

queremos outros.

Como a minha fala é introdutória a este Seminário, cumpre lembrar o que são

direitos humanos. São aqueles direitos considerados fundamentais a todos os seres

humanos, sem quaisquer distinções de sexo, nacionalidade, etnia, cor da pele, faixa

etária, classe social, profissão, condição de saúde física e mental, opinião política,

religião, nível de instrução e julgamento moral.

Uma compreensão histórica de direitos humanos traz como eixo principal e

óbvio o reconhecimento do direito à vida, sem o qual todos os demais direitos perdem o

sentido. Costuma-se falar, apenas por uma questão didática, em gerações de direitos

humanos; não se trata de gerações no sentido biológico, do que nasce, cresce e morre,

mas no sentido histórico, de uma superação com complementaridade, e que pode

também ser entendida como uma dimensão. A primeira geração, contemporânea das

revoluções burguesas do final do século 18 e de todo o século 19, é a dos direitos civis e

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das liberdades individuais, liberdades consagradas pelo liberalismo, quando o direito do

cidadão dirige-se contra a opressão do Estado ou de poderes arbitrários, contra as

perseguições políticas e religiosas, a liberdade de viver sem medo. Dessa

importantíssima primeira geração, ou dimensão, são os direitos de locomoção, de

propriedade, de segurança e integridade física, de justiça, expressão e opinião. Tais

liberdades surgem oficialmente nas Declarações de Direitos, documentos das revoluções

burguesas do final do século 18 ( na França e nos Estados Unidos) e foram acolhidas em

diversas Constituições do século 19. A segunda geração, que não abrange apenas os

indivíduos, mas os grupos sociais, surge no início do século 20 na esteira das lutas

operárias e do pensamento socialista na Europa Ocidental, explicitando-se, na prática,

nas experiências da social-democracia, para consolidar-se, ao longo do século, nas

formas do Estado do Bem Estar Social. Refere-se ao conjunto dos direitos sociais,

econômicos e culturais: os de caráter trabalhista, como salário justo, férias, previdência

e seguridade social e os de caráter social mais geral, independentemente de vínculo

empregatício, como saúde, educação, habitação, acesso aos bens culturais etc. Em

complemento às duas gerações, a terceira dimensão inclui os direitos coletivos da

humanidade, como direito à paz, ao desenvolvimento, à autodeterminação dos povos, ao

patrimônio científico, tecnológico e cultural da humanidade, ao meio ambiente

ecologicamente preservado; são os direitos ditos de solidariedade planetária. Tais

gerações mostram como continua viva a bandeira da revolução francesa: a liberdade, a

igualdade e a solidariedade. A liberdade nos primeiros direitos civis e individuais, a

igualdade nos direitos sociais, a solidariedade como responsabilidade social pelos mais

fracos e em relação aos direitos da humanidade.

Direitos humanos são fundamentais porque são indispensáveis para a vida com

dignidade. Quando insistimos nessa questão da dignidade, muitas vezes esbarramos

numa certa incompreensão, como se o termo fosse indefinível e tratasse de algo

extremamente abstrato em relação à concretude do ser humano. Portanto, é importante

tentar esclarecer o que entendemos por dignidade da pessoa humana. Sabemos, sem

dúvida, identificar um comportamento indigno; por exemplo, omissão de socorro nos

hospitais, abandono dos idosos na fila do INPS, desprezo pelos direitos dos mendigos,

das crianças de rua, dos desempregados, dos excluídos de toda sorte, são indignidades.

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Mas de onde vem esta idéia de dignidade? Porque ela é central no nosso

processo educativo?

Durante muito tempo o fundamento da concepção de dignidade podia ser

buscado na esfera sobrenatural da revelação religiosa, da criação divina – o ser humano

criado à imagem e semelhança do Criador. Ou, então, numa abstração metafísica sobre

aquilo que seria próprio da natureza humana, o que sempre levou a discussões

filosóficas sobre a essência da natureza humana. Independentemente dessas polêmicas,

aqueles que são religiosos ou espiritualistas têm um motivo a mais para se preocupar

com a dignidade da pessoa humana, se acreditam na criação divina, na afirmação de que

todos somos irmãos, nessa fraternidade que vem da religião, como no caso, dentre

outros, do cristianismo. Hoje, numa visão mais contemporânea, percebemos como todos

os textos nacionais e internacionais de defesa dos direitos humanos explicam a

dignidade pela própria transcendência do ser humano, ou seja, foi o homem que criou

ele mesmo o Direito. Ele mesmo criou as formas da idéia de dignidade em grandes

textos normativos que podem ser sintetizados no artigo 1º da Declaração Internacional

de Direitos Humanos de 1948: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em

dignidade e em direitos”. Esta formulação decorre da própria reflexão do ser humano

que à ela chegou de uma maneira que é historicamente dada.

Foi uma grande revolução no pensamento e na história da humanidade chegar à

reflexão conclusiva de que todos os seres humanos detêm a mesma dignidade. É

evidente que nos regimes que praticam a escravidão, ou qualquer tipo de discriminação

por motivos sociais, políticos, religiosos e étnicos não vigora tal compreensão da

dignidade universal, pois neles a dignidade é entendida como um atributo de apenas

alguns, aqueles que pertençam a um determinado grupo.

A dignidade do ser humano não repousa apenas na racionalidade; no processo

educativo procuramos atingir a razão, mas também a emoção, isto é, corações e mentes

– pois o homem não é apenas um ser que pensa e raciocina, mas que chora e que ri, que

é capaz de amar e de odiar, que é capaz de sentir indignação e enternecimento, que é

capaz da criação estética. Unamuno dizia que o que mais nos diferencia dos outros

animais é o sentimento, e não a racionalidade. O homem é um ser essencialmente moral,

ou seja, o seu comportamento racional estará sempre sujeito a juízos sobre o bem e o

mal. Nenhum outro ser no mundo pode ser assim apreciado em termos de dever ser, da

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sua bondade ou da sua maldade. Portanto, o ser humano tem a sua dignidade explicitada

através de características que são únicas e exclusivas da pessoa humana; além da

liberdade como fonte da vida ética, só o ser humano é dotado de vontade, de

preferências valorativas, de autonomia, de auto-consciência como o oposto da

alienação. Só o ser humano tem a memória e a consciência de sua própria subjetividade,

de sua própria história no tempo e no espaço e se enxerga como um sujeito no mundo,

vivente e mortal. Só o ser humano tem sociabilidade, somente ele pode desenvolver

suas virtualidades no sentido da cultura e do auto-aperfeiçoamento vivendo em

sociedade e expressando-se através daquelas qualidades eminentes do ser humano como

o amor, a razão e a criação estética, que são essencialmente comunicativas. É o único

ser histórico, pois é o único que vive em perpétua transformação pela memória do

passado e pelo projeto do futuro. Sua unidade existencial significa que o ser humano é

único e insubstituível. Como dizia Kant, é o único ser cuja existência é um valor

absoluto, é um fim em si e não um meio para outras coisas.

Os direitos humanos são naturais e universais, pois estão profundamente

ligados à essência do ser humano, independentemente de qualquer ato normativo, e

valem para todos ; são interdependentes e indivisíveis, pois não podemos separá-los,

aceitando apenas os direitos individuais, ou só os sociais, ou só os de defesa ambiental.

Essa indivisibilidade é importante porque temos exemplos históricos, também

no século XX, de regimes políticos que valorizaram exclusivamente os direitos sociais,

como o regime soviético, em detrimento da liberdade; assim como temos vários regimes

liberais que pregam a liberdade mas descartam a obrigatoriedade dos direitos sociais.

Direitos humanos são históricos, pois foram sendo reconhecidos e consagrados

em determinados momentos históricos, e é possível pensarmos que novos direitos ainda

podem ser identificados e consolidados. A história da humanidade comprova a evolução

da consciência dos direitos; na Bíblia, por exemplo, lemos casos de aceitação de

sacrifícios humanos e de escravidão. Os liberais da América, do Norte e dos Sul,

conviviam com a posse de escravos, embora defendessem a liberdade e a igualdade de

todos diante da lei. Direitos humanos são históricos na medida em que vão crescendo

em abrangência e em profundidade, até que se consolidem na consciência universal.

Hoje, por exemplo, reconhecemos que existe consciência universal de que a escravidão,

seja por que motivo for, é uma violação radical dos direitos humanos, assim como a

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exploração do trabalho infantil, a dominação sobre as mulheres, as formas variadas de

racismo e de discriminação por motivos religiosos, políticos, étnicos, sexuais etc. Os

casos ainda existentes de escravidão, racismo e discriminação são veementemente

condenados pelas entidades mundiais de defesa dos direitos humanos.

Quando falamos em educação em direitos humanos falamos também em

educação para a cidadania. É preciso entender aqui que as duas propostas andam muito

juntas, mas não são sinônimos. Basta lembrar, por exemplo, que todos os projetos

oficiais, do Ministério da Educação às Secretarias Municipais e Estaduais afirmam que

seu objetivo principal é a educação para a cidadania. No entanto, a concepção e as

experiências são tão diferentes, em função de prefeituras e de governos, que o conceito

de cidadania foi se esgarçando, não se tem certeza de que se fala sobre o mesmo tema. É

bastante comum a idéia de educação para cidadania ser entendida como se fosse

meramente uma educação moral e cívica. Ou seja, como se fosse necessário e suficiente

pregar o culto à pátria, seus símbolos, heróis e datas históricas, assim como fomentar

um nacionalismo ora ingênuo ora agressivo, sem a percepção de que a nação não é um

todo homogêneo, mas um todo heterogêneo, com conflitos, classes sociais, grupos e

interesses diferenciados.

Portanto, a idéia de educação para a cidadania não pode partir de uma visão da

sociedade homogênea, como uma grande comunidade, nem permanecer no nível do

civismo nacionalista. Torna-se necessário entender educação para a cidadania como

formação do cidadão participativo e solidário, consciente de seus deveres e direitos – e,

então, associá-la à educação em direitos humanos. Só assim teremos uma base para uma

visão mais global do que seja uma educação democrática, que é, afinal, o que desejamos

com a educação em direitos humanos, entendendo “democracia” no sentido mais radical

– radical no sentido de raízes – ou seja, como o regime da soberania popular com pleno

respeito aos direitos humanos. Não existe democracia sem direitos humanos, assim

como não existe direitos humanos sem a prática da democracia. Em decorrência,

podemos afirmar o que já vem sendo discutido em certos meios jurídicos como a quarta

geração, ou dimensão, dos direitos humanos: o direito da humanidade à democracia.

É nesse sentido que nos referimos sempre à cidadania democrática. Existem

casos de regimes políticos que levaram ao extremo a educação para a cidadania, em

termos de mobilização cívica, mas não em termos de cidadania democrática. Regimes

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totalitários levaram ao extremo a formação do cidadão ligado à pátria, à nação, ao seu

passado histórico, ao projeto do futuro. Aliás, regimes totalitários são aqueles que mais

mobilizam os cidadãos para um tipo de educação cívica que não tem nada a ver com

educação em direitos humanos, com educação democrática. Em meados do século XX

regimes totalitários formaram cidadãos participantes, conscientes de uma missão cívica,

porém cidadãos fascistas, nazistas, ou seja, cidadãos de um determinado regime que não

era democrático. Portanto, nossa idéia de cidadania insere-se exclusivamente no quadro

da democracia.

Em relação especificamente à educação em direitos humanos, o que

desejamos? Que efeitos queremos com esse processo educativo? Queremos uma

formação que leve em conta algumas premissas. Em primeiro lugar, o aprendizado deve

estar ligado à vivência do valor da igualdade em dignidade e direitos para todos e deve

propiciar o desenvolvimento de sentimentos e atitudes de cooperação e solidariedade.

Ao mesmo tempo, a educação para a tolerância se impõe como um valor ativo

vinculado à solidariedade e não apenas como tolerância passiva da mera aceitação do

outro, com o qual pode-se não estar solidário. Em seguida, o aprendizado deve levar ao

desenvolvimento da capacidade de se perceber as conseqüências pessoais e sociais de

cada escolha. Ou seja, deve levar ao senso de responsabilidade. Esse processo educativo

deve, ainda, visar à formação do cidadão participante, crítico, responsável e

comprometido com a mudança daquelas práticas e condições da sociedade que violam

ou negam os direitos humanos. Mais ainda, deve visar à formação de personalidades

autônomas, intelectual e afetivamente, sujeitos de deveres e de direitos, capazes de

julgar, escolher, tomar decisões, serem responsáveis e prontos para exigir que não

apenas seus direitos, mas também os direitos dos outros sejam respeitados e cumpridos.

Uma questão que surge com muita freqüência quando debatemos o tema da

educação em direitos humanos é : será realisticamente possível educar em direitos

humanos? A questão tem pertinência, pois se trata, sem dúvida, de um processo

extremamente complexo, difícil e a longo prazo. O educador em direitos humanos na

escola, por exemplo, sabe que não terá resultados no final do ano, como ao ensinar uma

matéria que será completada a medida que o conjunto daquele programa for bem

entendido e avaliado pelos alunos. Trata-se de uma educação permanente e global,

complexa e difícil, mas não impossível. É certamente uma utopia, mas que se realiza na

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própria tentativa de realizá-la, como afirma o educador Perez Aguirre, enfatizando que

os direitos humanos terão sempre, nas sociedades contemporâneas, a dupla função de

ser, ao mesmo tempo, crítica e utopia frente à realidade social.

O que será indispensável para este processo educativo, partindo-se da

constatação de que, apesar das dificuldades, é possível desenvolver um processo

educativo em direitos humanos?

Em primeiro lugar, o conhecimento dos direitos humanos, das suas garantias,

das suas instituições de defesa e promoção, das declarações oficiais, de âmbito nacional

e internacional, com a consciência de que os direitos humanos não são neutros, não são

meramente declamações retóricas. Eles exigem certas atitudes e repelem outras.

Portanto, exigem também uma vivência compartilhada. A palavra deverá sempre estar

ligada a práticas, embasadas nos valores dos direitos humanos e na realidade social. Na

escola, por exemplo, deverá estar vinculada à realidade concreta dos alunos, dos

professores, dos diretores, dos funcionários, da comunidade que a cerca.

Onde podemos educar em direitos humanos? Temos várias opções, com

diferentes veículos e estruturas educacionais. Podemos fazer uma escolha, dependendo

dos recursos e das condições objetivas, sociais, locais e institucionais, de cada grupo, de

cada entidade. Há que distinguir entre as possibilidades da educação formal e da

educação informal. Na educação formal, a formação em direitos humanos será feita no

sistema de ensino, desde a escola primária até a universidade. Na educação informal,

será feita através dos movimentos sociais e populares, das diversas organizações não-

governamentais – ONGs –, dos sindicatos, dos partidos, das associações, das igrejas,

dos meios artísticos, e, muito especialmente, através dos meios de comunicação de

massa, sobretudo a televisão.

Cumpre lembrar que esta educação formal na escola, desde a primária até a

universidade e principalmente no sistema público do ensino, resultará mais viável se

contar com o apoio dos órgãos oficiais, tanto ligados diretamente à educação como

ligados à cultura, à justiça e defesa da cidadania. É por isso que valorizamos os planos

oficiais, de educação em direitos humanos na escola, tanto no nível federal como nos

níveis estadual e municipal – embora nem sempre vejamos seus resultados ou mesmo

sua aplicação no quotidiano escolar. Se escolhemos a educação formal, constatamos

como a escola pública é um locus privilegiado pois, por sua própria natureza, tende a

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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promover um espírito mais igualitário, na medida em que os alunos, normalmente

separados por barreiras de origem social, aí convivem. Na escola pública o diferente

tende a ser mais visível e a vivência da igualdade, da tolerância e da solidariedade

impõe-se com maior vigor. O objetivo maior desta educação na escola é fundamentar o

espaço escolar como uma verdadeira esfera pública democrática.

Finalmente, quais seriam os pontos principais do conteúdo da educação em

direitos humanos? Há um conteúdo óbvio, que decorre da própria definição de direitos

humanos e do conhecimento sobre as gerações ou dimensões históricas, sobre as

possibilidades de reivindicação e de garantias etc. Este conteúdo deve estar

efetivamente vinculado a uma noção de direitos mas também de deveres, estes

decorrentes das obrigações do cidadão e de seu compromisso com a solidariedade. É

importante, ainda, que sejam mostradas as razões e as conseqüências da obediência a

normas e regras de convivência. Em seguida, este conteúdo deve conter a discussão –

para a vivência – dos grandes valores da ética republicana e da ética democrática. Os

valores da ética republicana incluem o respeito às leis legitimamente elaboradas, a

prioridade do bem público acima dos interesses pessoais ou grupais, e a noção da

responsabilidade, ou seja, de prestação de contas de nossos atos como cidadãos. Por sua

vez, os valores democráticos estão profundamente vinculados ao conjunto dos direitos

humanos, os quais se resumem no valor da igualdade, no valor da liberdade e no valor

da solidariedade.

Nas palestras seguintes está previsto um detalhamento sobre o

encaminhamento metodológico desses fundamentos; mas é preciso deixar claro que o

componente essencial ao escolhermos trabalhar na escola com um programa de direitos

humanos é que ele será impossível se não estiver associado a práticas democráticas. Um

grande educador como o Prof. José Mario Pires Azanha enfatiza, com o rigor de

sempre, que de nada adiantará levar programas de direitos humanos para a escola, se a

própria escola não é democrática na sua relação de respeito com os alunos, com os pais,

com os professores, com os funcionários e com a comunidade que a cerca.

É nesse sentido que um programa de direitos humanos introduzido na escola

serve, também, para questionar e enfrentar as suas próprias contradições e os conflitos

no seu cotidiano.

Muito obrigada.

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* Palestra de abertura do Seminário de Educação em Direitos Humanos, São Paulo,

18/02/2000. A autora agradece a importante contribuição do Prof. Fábio Konder

Comparato.

** Professora de Sociologia da Faculdade de Educação da USP e vice-coordenadora da

Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos.

http://www.hottopos.com/convenit6/victoria.htm - acesso em 11-08-2009

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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Educar em direitos humanos, o desafio da formação dos educadores numa perspectiva interdisciplinar

Celma Tavares

Só se educa em direitos humanos quem se humaniza e só é possível investir completamente na humanização a partir de uma conduta humanizada.

Ricardo Ballestreri

Introdução

A Educação em Direitos Humanos (EDH) é, na atualidade, um dos mais

importantes instrumentos dentro das formas de combate às violações de direitos

humanos, já que educa na tolerância, na valorização da dignidade e nos princípios

democráticos.

Mas a sua inserção nos vários âmbitos do saber requer a compreensão do seu

significado e da sua práxis. No campo da educação formal, é igualmente necessário

estar atento às metodologias que lhe são compatíveis e às possibilidades de que ela

possa permear os conteúdos de todas as disciplinas, dentro de uma visão

interdisciplinar.

Neste sentido, a formação de educadores que estejam aptos a trabalhar a EDH, é

o primeiro passo para sua implementação. Ela deve passar pelo aprendizado dos

conteúdos específicos de direitos humanos, mas deve especialmente estar relacionada à

coerência das ações e atitudes tomadas no dia-a-dia. Sem esta coerência, o discurso fica

desarticulado da prática e deslegitima o elemento central da EDH: a ética.

Por outro lado, também é preciso ter a consciência de que a formação é o estágio

inicial, mas que o processo educativo em direitos humanos é contínuo. Sua finalidade

maior é a constituição de uma cultura de direitos humanos e, nesta perspectiva, está

sempre em renovação.

É a educação em direitos humanos que permite a afirmação de tais direitos e que

prepara cidadãos e cidadãs conscientes de seu papel social na luta contra as

desigualdades e injustiças. Abordar as questões relacionadas a este processo de

conscientização e à construção do saber nesta área é o principal objetivo deste trabalho,

que centra seu foco formação dos educadores em direitos humanos a partir de uma

perspectiva interdisciplinar.

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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O processo educativo em direitos humanos

A educação em direitos humanos é um campo recente tanto no contexto

brasileiro como no latino-americano, apesar de vários documentos internacionais já

tratarem sobre a necessidade de sua implementação. Relatório do Instituto

Interamericano de Direitos Humanos, sobre o tema, aponta que, desde a Declaração

Universal e, mais especificamente, no Protocolo Adicional à Convenção Interamericana

sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, o

direito à educação em direitos humanos faz parte do direito à educação. (INSTITUTO

INTERAMERICANO..., 2000, p. 6).

Nesta perspectiva, identifica-se uma relação intrínseca entre ambas. A educação

é o caminho para qualquer mudança social que se deseje realizar dentro de um processo

democrático. A educação em direitos humanos, por sua vez, é o que possibilita

sensibilizar e conscientizar as pessoas para a importância do respeito ao ser humano,

apresentando-se na atualidade, como uma ferramenta fundamental na construção da

formação cidadã, assim como na afirmação de tais direitos.

Magendzo (2006, p. 23) a define como a prática educativa que se funda no

reconhecimento, na defesa e no respeito e promoção dos direitos humanos e que tem por

objeto desenvolver nos indivíduos e nos povos suas máximas capacidades como sujeito

de direitos e proporcionar as ferramentas e elementos para fazê-los efetivos.

A finalidade maior da EDH, portanto, é a de atuar na formação da pessoa em

todas as suas dimensões a fim de contribuir ao desenvolvimento de sua condição de

cidadão e cidadã, ativos na luta por seus direitos, no cumprimento de seus deveres e na

fomentação de sua humanidade. Dessa forma, uma pessoa que goza de uma educação

neste âmbito, é capaz de atuar frente às injustiças e desigualdades, reconhecendo-se

como sujeito autônomo e, ademais, reconhecendo o outro com iguais direitos, dentro da

Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos dos preceitos de

diversidade e tolerância, valorizando assim a convivência harmoniosa, o respeito mútuo

e a solidariedade.

Através da EDH, é possível contribuir para reverter as injustificadas

diferenciações sociais do país e criar uma nova cultura a partir do entendimento de que

toda e qualquer pessoa deve ser respeitada em razão da dignidade que lhe é inerente.

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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Pois a dignidade é um valor absoluto que o ser humano possui por constituir-se em um

fim em si mesmo e não em um meio. (KANT, 1989).

É igualmente por meio dessa educação que se pode começar a mudar as

percepções sociais radicais, discriminatórias e violentas, na maioria das vezes,

legitimadoras das violações de direitos humanos. E reconstruir as crenças e valores

sociais fundamentados no respeito ao ser humano e em conformidade com os preceitos

democráticos e as regras do Estado de Direito. (TAVARES, 2006).

A relevância da educação em direitos humanos pode ser mensurada através dos

documentos da ONU sobre o tema como, por exemplo, o Decênio das Nações Unidas

para a Educação na Esfera dos Direitos Humanos (1995-2004) ou o Programa Mundial

para a Educação em Direitos Humanos, aprovado no final de 2004. Este Programa está

estruturado em fases sucessivas, com sua primeira etapa guiada por um plano de ação

para 2005-2007.

O Programa estabelece que a EDH deve fortalecer o respeito aos direitos

humanos e às liberdades fundamentais; desenvolver plenamente a personalidade

humana e o sentido da dignidade do ser humano; promover a compreensão, a tolerância

e a igualdade; facilitar a participação efetiva de todos numa sociedade livre e

democrática, na qual impere o Estado de Direito; fomentar e manter a paz e promover o

desenvolvimento sustentável centrado nas pessoas e na justiça social. (NACIONES

UNIDAS, 2007, p. 4-5).

Ainda de acordo com o referido Programa, este tipo de educação deve contribuir

para:

a) criar uma cultura universal dos direitos humanos;

b) exercitar o respeito, tolerância, promoção e valorização da diversidade religiosa, de

gênero, de orientação sexual e cultural, e a amizade entre as nações, povos indígenas e

grupos étnico-raciais;

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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c) possibilitar a todas as pessoas terem acesso à participação efetiva em uma sociedade

livre. (NACIONES UNIDAS, 2007, p. 5).

Anteriormente, a Conferência Mundial de Direitos Humanos, por meio da

Declaração de Viena, de 1993, já tinha indicado sua importância, ao considerar que “a

educação, a capacitação e a informação pública em direitos humanos são indispensáveis

para estabelecer e promover relações estáveis e harmoniosas entre as comunidades e

para fomentar a compreensão mútua, a tolerância e a paz”. (NACIONES UNIDAS,

1993).

No Brasil, o campo normativo relacionado aos direitos humanos e a educação

nesta área se incorporam nos seguintes documentos: a Constituição Federal (1988), a

Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996), os Parâmetros Curriculares da Educação

(a partir de 1997), o Programa Nacional de Direitos Humanos (na sua primeira versão,

em 1996 e segunda versão, em 2002) e o Plano Nacional de Educação em Direitos

Humanos (também com duas versões, 2003 e 2006). Estes documentos estabelecem as

diretrizes e ações direcionadas à formação cidadã.

Entretanto, para a construção dessa formação através da EDH, é preciso

desenvolver uma prática pedagógica coerente e articulada com seus valores. Esta

prática, segundo Nascimento (2000, p.121), oferece “a possibilidade de aprofundar a

consciência de sua própria dignidade, a capacidade de reconhecer o outro, de vivenciar

a solidariedade, a partilha, a igualdade na diferença e a liberdade”, criando canais de

participação e organização que fomentem o exercício efetivo da cidadania e a tomada de

decisões coletivas.

Este tipo de prática pedagógica deve promover o empoderamento individual e

coletivo, com o objetivo de ampliar os espaços de poder e a participação de todos, em

especial, dos grupos sociais excluídos e vulneráveis. Para Sacavino (2000, p.46-47),

uma educação que promova esse empoderamento, pode fomentar as capacidades dos

atores e direcioná-las ao desencadeamento de processos de democratização e de

transformação.

Portanto, a EDH busca promover processos educativos que sejam críticos e

ativos e que despertem a consciência das pessoas para as suas responsabilidades como

cidadão/cidadã e para a atuação em consonância com o respeito ao ser humano. Educar

dentro de um processo crítico-ativo significa modificar as atitudes, as condutas e as

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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convicções, mas não pela imposição dos valores e sim por meios democráticos de

construção e de participação que busquem possibilitar a experiência cotidiana desses

direitos.

De acordo com Morgado, (2001) a prática pedagógica da EDH está pautada no

que ela chama de saber docente dos direitos humanos - um conjunto de saberes

específicos necessários à prática do educador em direitos humanos. Esse saber, por sua

vez, relaciona-se a outros três: o saber curricular, o saber pedagógico e o saber

experencial. O primeiro aponta a necessidade de que o currículo seja flexível para

adequar-se aos conteúdos de direitos humanos. O segundo corresponde às estratégias e

aos recursos utilizados para articular conteúdos curriculares à transversalidade dos

direitos humanos. E o último destaca que a vivência desses direitos e a coerência com

sua promoção e defesa são essenciais.

Dessa forma, é imperioso trabalhar com uma metodologia que articule os três

níveis de saberes. Esta metodologia deve incluir uma prática pedagógica que possibilite

a percepção da realidade, sua análise e uma postura crítica frente a ela, incluindo duas

dimensões essenciais: a emancipadora e a transformadora. Através delas, é possível

sensibilizar, indignar-se, atuar e comprometer-se.

A formação dos educadores em direitos humanos deve privilegiar as

metodologias ativas e participativas de forma a envolver e despertar o interesse, sem

esquecer que contextos específicos carecem de abordagens próprias para cada um deles.

É necessário estabelecer processos que articulem teoria e conduta, que estimulem o

compromisso com os vários níveis das práticas sociais e que favoreçam a sensibilização,

a análise e a compreensão da realidade. É a realidade – a educativa e a social – que deve

pautar todas as ações de construção desse processo cujo objetivo maior é a afirmação de

uma cultura de direitos humanos. Esta é uma premissa para que o saber docente em

direitos humanos se articule com os demais saberes socialmente produzidos.

Em síntese, a EDH requer uma metodologia, com a seleção e organização dos

conteúdos e atividades, materiais e recursos didáticos, que sejam condizentes com a

finalidade de um processo educativo em direitos humanos. Estes requisitos são

essenciais para que a prática pedagógica facilite a formação de uma consciência crítica e

de um compromisso social com as questões relacionadas à problemática dos direitos

humanos.

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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A socialização em uma cultura de direitos humanos

A educação em direitos humanos, além de todo processo de formação em seus

conteúdos, pretende a socialização dos valores e princípios que lhe são intrínsecos, com

o fim de construir e consolidar uma cultura de direitos humanos. Neste caminho, a dita

socialização busca envolver todas as pessoas na vivência e no respeito a tais direitos.

Esse objetivo vem demarcado no último documento da ONU nesta área, onde a

EDH é sinônimo do “conjunto das atividades de capacitação e difusão orientadas a criar

uma cultura universal na esfera dos direitos humanos”. (NACIONES UNIDAS, 2007, p.

4).

A importância de estabelecer os direitos humanos como uma cultura na

sociedade brasileira decorre da estrutura social existente, em que os fortes traços do

colonialismo e da escravidão, presentes durante vários séculos, ainda encontram

ressonância e alimentam o autoritarismo, a discriminação, a exclusão e o preconceito

atuais. Somente quando os direitos humanos passarem a fazer parte do cotidiano de

todas as pessoas e se constituam de fato numa cultura, será possível a generalização e

perpetuação de crenças, valores, conhecimentos, práticas e atitudes que priorizem o ser

humano.

É por isso que a EDH deve estar orientada para a plena realização da pessoa, o

sentido da dignidade e o fortalecimento dos direitos e liberdades fundamentais, assim

como para a promoção da justiça e da paz. Com estes elementos, é possível orientar

uma vivência democrática e cidadã de respeito integral ao ser humano. Dentro deste

contexto, é fundamental definir o entendimento de democracia, cidadania e direitos

humanos que farão parte das estratégias de desenvolvimento de uma educação nessa

área.

A democracia está fundada nos princípios de liberdade e igualdade e nos ideais

de tolerância, de não violência e de irmandade. (BOBBIO, 1985). Por isso, é o regime

que dispõe das melhores condições para o exercício da cidadania e do respeito aos

direitos humanos. E é também onde o Estado de Direito e o funcionamento das

instituições do Estado podem chegar a encontrar seu equilíbrio.

A cidadania é entendida como a reivindicação de direitos e o exercício das

responsabilidades referentes a um poder específico, logicamente, dentro de uma

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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perspectiva de cidadania ativa e participativa e não meramente formal. (GARRETÓN,

1999)

Os direitos humanos, por sua vez, constituem prerrogativas básicas do ser

humano, construídas historicamente, que concretizam as exigências da dignidade, da

liberdade e da igualdade humanas e que devem fazer parte do direito positivo dos

Estados, apesar de não perderem a legitimação de sua exigibilidade pela ausência de sua

inserção no arcabouço jurídico.

É neste cenário que a formação cidadã encontra espaço para se ampliar e o

exercício da cidadania surge como ponto de apoio num possível ciclo de avanços

democráticos e de respeito aos direitos fundamentais.

Contudo, é necessário pensar nas estratégias educacionais que sejam eficazes

para impulsionar a socialização em uma cultura de direitos humanos. O primeiro passo

para isso é entender o processo da ação perceptiva e considerar as representações sociais

existentes sobre o tema.

A percepção social pode ser definida como a forma com a qual uma pessoa

infere as características e intenções de outra e do contexto onde está inserida. Na

maioria das vezes, temos mais coisas por perceber do que a capacidade para registrá-las.

Como dispomos de limitações de atenção e memória imediatas, realizamos três ações

durante o ato de perceber: primeiro, limitamos a seleção da atenção; segundo,

recodificamos os acontecimentos de forma a simplificá-los; terceiro, utilizamos ajudas

tecnológicas para ampliar o processo cognitivo. (BRUNNER, 1984, p. 144-145).

Ao perceber, também categorizamos. O ato de classificar responde à necessidade

de inferir de acordo com certas pautas que aprendemos a usar. Em outras palavras, os

critérios pelos quais classificamos uma situação, derivam do que aprendemos no

processo de socialização. Esta categorização está cheia de conceitos sociais, elaborados

na interação entre as pessoas, que simbolizam crenças, sentimentos e valores

socialmente apreendidos e aceitos.

É assim que, ao classificar e assimilar esta classificação, as idéias preconcebidas

sobre os indivíduos e grupos acabam abrindo espaço para que os estereótipos e os

preconceitos se consolidem e gerem condutas negativas. Por outro lado, é relevante

compreender que estas condutas não são automáticas nem lineares e dependem tanto de

fatores pessoais como de contextos sociais e legais para se efetivarem. O que significa

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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dizer que também é necessária a existência de um contexto propício para esta

efetivação.

No tocante às representações sociais, entendidas como a proposta de uma

determinada interpretação do que existe e do que acontece, em lugar de outras possíveis,

Martin Serrano (1993) considera que é importante não desconsiderar a persistência da

parte de um imaginário social com conotações negativas em relação aos direitos

humanos. Esse imaginário se alimenta da falta de uma real compreensão do significado

desses direitos e da correlação de responsabilidade que foi estabelecida entre sua defesa

e o aumento da criminalidade violenta. Apesar de que parece haver uma melhora quanto

a esta questão, este imaginário continua encontrando respaldo social, especialmente, nos

casos de violência delitiva de grande repercussão.

Por isso, para trabalhar a socialização na perspectiva de desenvolvimento de

uma nova cultura que tenha o ser humano e sua dignidade como foco e que prime pela

construção de uma sociedade inclusiva, é necessário abrir o campo perceptivo do

educador e reeducar essa percepção de forma a despertar o interesse e a crítica diante

dos acontecimentos. (HORTA, 2000, p.129-130).

Essas representações sociais negativas sobre os direitos humanos devem ser

igualmente discutidas e reformuladas a partir de uma formação que possibilite a

compreensão de que todas as pessoas devem ter assegurada a preservação de sua

dignidade e de sua humanidade, a fim de evitar que se confundam os sentimentos de

justiça com os de vingança pessoal. Esta formação deve corresponder aos preceitos e

valores plasmados pela comunidade internacional, nos diversos documentos de defesa e

promoção dos direitos humanos, sendo imprescindível que o educador conheça,

experimente e saiba socializar tais preceitos e valores.

Neste ponto, apresenta-se como condição primordial que a percepção e as

representações sociais, nesse âmbito, sejam consideradas durante a elaboração dos

currículos e dos conteúdos que insiram a perspectiva dos direitos humanos e a definição

da metodologia e da prática pedagógica condizentes com este tipo de educação. Esta

condição é significativa tanto para que se incluam as demandas existentes como para

que a cultura baseada nestes direitos seja interiorizada e vivenciada, pois o êxito na

formação do educador em direitos humanos depende, também, do olhar e das

representações que ele possui sobre o tema.

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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O papel da escola e dos espaços de educação não-formal

No contexto brasileiro, a EDH vem tendo, historicamente, uma maior inserção

nos espaços de educação não-formal, dentro dos movimentos sociais, das associações

civis e das organizações não governamentais. Nesse campo, as atividades a ela

relacionadas se desenvolvem através da construção do conhecimento em educação

popular e do processo de participação em ações coletivas. Estas práticas educativas não

formais trabalham a reflexão, estimulam o conhecimento e a atuação para os problemas

e as condições de vida, articulando as dimensões dos direitos civis e políticos,

econômicos, sociais e culturais.

É preciso explorar todo o potencial existente nas ações das organizações não

governamentais, das associações de moradores, dos clubes de mães, entre outras, que

atuam na promoção dos direitos humanos no dia-a-dia, pois é inegável o papel que elas

possuem na formação em direitos humanos. Como também facilitar o intercambio dos

conhecimentos e iniciativas desenvolvidas com a finalidade de agregar este setor e

possibilitar a realização de um trabalho coeso.

As experiências nessa área são inúmeras e vêm acontecendo desde a década de

80, proporcionando a difusão da EDH frente à ausência, ainda existente, da

incorporação destes conteúdos no ensino formal. Portanto, a contribuição desses

espaços, na construção de uma cultura de direitos humanos, é de grande relevância e

tem que ser sempre considerada dentro das estratégias de ampliação nessa área da

educação no país.

Por outro lado, apesar da EDH não ser tarefa exclusiva da escola, ocorrendo nos

diversos campos de formação e convivência, no âmbito da educação formal identificam-

se um conjunto de oportunidades para a disseminação dos conteúdos relacionados aos

direitos humanos, assim como para a socialização dos valores.

O primeiro passo neste sentido é pensar na função da escola dentro dessa

missão. Assim sendo, é fundamental redefinir seu perfil e considerar o fato de que a

organização escolar não é neutra. De acordo com Silva (2000, p.16), “é necessária a

construção de um projeto pedagógico democrático e participativo, onde a formação do

sujeito possa ser assumida coletivamente”. A autora igualmente afirma que um projeto

de escola que tenha como compromisso a formação em direitos humanos, deve

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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considerar os seguintes elementos: a educação formal é condição essencial à formação

da cidadania e tem na escola seu lugar privilegiado; a escola tem que cumprir, de fato,

seu papel e função social, enquanto espaço de elaboração e socialização do

conhecimento; a educação em direitos humanos deve ser um projeto global da escola; o

desenvolvimento de um processo de conscientização dos direitos e deveres deve ser

contínuo e permanente. (SILVA, 1997, p.220-221).

Conforme análise de Candau (1996, p.14-15), uma proposta metodológica

inspirada nesta perspectiva entende que “a escola deveria exercer um papel de

humanização a partir da socialização e da construção de conhecimentos e de valores

necessários à conquista do exercício pleno da cidadania”.

Como a EDH se dá no dia-a-dia, nas diversas situações e relações cotidianas, é

preciso haver um compromisso com os direitos humanos e o desenvolvimento de uma

prática pedagógica democrática. Da mesma forma, é necessário que o educador não seja

um mero transmissor dos conteúdos formais e sim que: a) acredite no que faz, pois sem

a convicção de que o respeito aos direitos humanos é fundamental para todos, não é

possível despertar os mesmos sentimentos nos demais; b) eduque com o exemplo,

porque de nada adianta ter um discurso desconectado da prática ou ser incoerente

exigindo aos demais determinadas atitudes que a própria pessoa não cumpre; c)

desenvolva uma consciência crítica com relação à realidade e um compromisso como as

transformações sociais, já que os propósitos deste tipo de educação é a de formar

sujeitos ativos que lutam pelo respeito aos direitos de todos.

A EDH, em síntese, necessita estar em conformidade com os princípios e valores

que dignifiquem o ser humano e deve ter sua práxis e conteúdos pautados no respeito a

tais direitos, assim como na capacidade de se indignar frente às injustiças e atos

desumanos e de atuar para reverter estas situações.

Pensando na prática pedagógica em direitos humanos, Magendzo (2006, p.67-

70) lista alguns princípios relacionados com os aspectos conceituais de dita prática. O

primeiro deles é o princípio da integração, que defende que os temas e conteúdos de

direitos humanos fazem parte integral dos conteúdos e atividades do currículo e dos

programas de estudo.

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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O segundo é o princípio da recorrência, onde o aprendizado em direitos humanos

é obtido na medida em que é praticado uma e outra vez em circunstâncias diferentes e

variadas.

O princípio seguinte é o da coerência, pois o êxito do aprendizado é reforçado

quando se cria um ambiente propício para seu desenvolvimento. A coerência entre o que

se diz e o que se faz, é parte importante neste ambiente.

O quarto princípio é o da vida cotidiana. Como a EDH está estreitamente

vinculada com a multiplicidade de situações da vida cotidiana, é importante que o

educador resgate essas situações e momentos em que os direitos humanos estão em

jogo.

O princípio da construção coletiva do conhecimento aparece como o quinto, e

vem enfatizar a importância de que as pessoas analisem, grupalmente, a informação

recebida sobre direitos humanos e deixem de ser meros receptores passivos e se tornem

produtores de conhecimento.

O último princípio é o da apropriação. Através dele, a pessoa se apropria do

discurso recebido e o recria, ou seja, reelabora as várias mensagens e as traduz num

discurso próprio, do qual toma plena consciência e que orienta as atuações da sua vida.

Considerando a educação formal ou a não-formal para o desenvolvimento da EDH, o

principal é que as práticas educacionais utilizadas sejam dialógicas e participativas, e

que a vivência dos direitos humanos penetre no cotidiano desses ambientes de forma a

proporcionar não apenas o saber pedagógico, mas, sobretudo, o saber experencial.

A formação dos educadores articulada com uma educação em direitos humanos

interdisciplinar e multidimensional

A formação do educador em direitos humanos depende tanto de uma prática

pedagógica condizente com o respeito ao ser humano como de uma educação que

privilegie a interdisciplinaridade e a multidimensionalidade que envolve a temática.

Esses aspectos representam uma nova postura diante do conhecimento, possibilitando

uma ação educativa capaz de ampliar as capacidades, desenvolver a consciência crítica

diante da informação e priorizar a interação e participação de forma democrática. O

foco, portanto, valoriza o que é construído e não simplesmente transmitido.

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

70

De acordo com Fazenda (1979, p.39), a interdisciplinaridade “é uma relação de

reciprocidade, de mutualidade”, além disso, é um processo que possibilita o diálogo.

Andrade (1989, p.10), por sua vez, a conceitua como “a busca teórica e epistemológica

de um avanço do conhecimento, a partir dessas conquistas fundamentais, que, de um

campo do saber a outro, podem circular com fecundação mútua”.

A interdisciplinaridade, que busca o equilíbrio entre a análise fragmentada e a

síntese simplificadora, é essencial nas atividades relacionadas aos direitos humanos,

porque a formação, nesse âmbito, necessita articular as várias esferas do conhecimento

de modo a perpassar todos os seus níveis e conteúdos com a finalidade de possibilitar o

olhar para o mesmo objeto sob perspectivas diferentes.

Para Gadotti (1999, p.2-3), a metodologia de trabalho interdisciplinar implica

em: integração de conteúdos; passar de uma concepção fragmentária para uma

concepção unitária do conhecimento; superar a dicotomia entre ensino e pesquisa,

considerando o estudo e a pesquisa a partir da contribuição das diversas ciências; e

realizar o ensino-aprendizagem centrado numa visão de que aprendemos ao longo da

vida. Estes elementos permitem compreender que um trabalho interdisciplinar demanda

a superação de que uma única visão, explicação ou conteúdo é suficiente. No campo dos

direitos humanos, como nos demais campos do saber, é a multiplicidade de temas, de

articulações, de conteúdos que possibilita um processo educativo plural e completo.

Da mesma maneira, a formação em direitos humanos demanda englobar

diferentes dimensões que devem complementar-se com o fim de abarcar o

conhecimento desde distintas percepções. Neste ponto, reside a importância de uma

formação que aborde a educação em direitos humanos como multidimensional, tentando

relacionar diferentes dimensões que devem ser trabalhadas em conjunto. (HORTA,

2000, p.129).

O que se busca com a ação pedagógica, através da interdisciplinaridade e de uma

abordagem multidimensional, é a tentativa de superação de uma postura isolada e

alienada e a formação do sujeito social a partir da vivência de uma realidade global e

participativa.

Pensar na interdisciplinaridade e nas múltiples dimensões da EDH significa

assegurar que os conteúdos relacionados aos direitos humanos estejam presentes tanto

no currículo manifesto – planos, programas e textos de estudos – como no currículo

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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oculto. (MAGENDZO, 2006, p.35). Isso significa que, além do interesse pelos objetivos

e conteúdos das distintas áreas do aprendizado, também existe a preocupação de que a

EDH esteja presente em todos os níveis da prática pedagógica.

Neste contexto, o que fica claro, é que uma área como a dos direitos humanos,

por sua relevância e pela amplitude de conteúdos teóricos e práticos que são de sua

competência, não é condizente com outra forma de abordagem que não seja a

interdisciplinar e a multidimensional. Como busca a formação cidadã, a EDH tem que

estar em interação com todas as áreas do conhecimento e a interdisciplinaridade e a

multidimensionalidade são recursos que se completam e que têm a finalidade de ampliar

as inúmeras possibilidades de interface do conhecimento, possibilitando, ao mesmo

tempo, a autonomia e a interação.

É através delas que um processo educativo em direitos humanos ultrapassa os limites da

simples descrição da realidade e passa a mobilizar as competências cognitivas para

auxiliar nas análises, deduções e inferências. Ao mesmo tempo que fomenta a

explicação, a compreensão e a intervenção.

A formação do educador em direitos humanos, para ser completa, tem que partir

dessas premissas. Não pode estar atrelada a uma estrutura fechada de produção do

conhecimento. Então, por que não privilegiar a interdisciplinaridade e a abordagem

multidimensional na EDH se elas proporcionam as melhores condições para a formação

nesta área? Qualquer dificuldade que possa existir nesse sentido, merece a pena ser

superada pelo resultado que será alcançado.

Claro que isso requer um aprendizado por parte dos educadores, o reaprender a

olhar, a articular, a construir junto. Mas as resistências e problemas que podem ocorrer

nesse caminho não devem servir de argumento para o desânimo ou a rejeição. O

educador em direitos humanos tem diante de si uma responsabilidade imensa. Primeiro,

de educar-se a si mesmo e depois, de educar aos demais na tolerância, no respeito, na

compreensão da diferença. Segundo, de atuar democraticamente e com persistência para

que o compromisso com as transformações sociais, necessárias para reverter às

injustiças e desigualdades, possa chegar a ser o horizonte de todos.

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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Conclusões

Educar em direitos humanos significa ter a vida cotidiana como referência

contínua. É um aprendizado que não ocorre de forma pontual ou isolada, mas que,

sistematicamente, faz parte da ação educacional. Por isso, é importante a elaboração de

abordagens condizentes com este tipo de educação, que possam contribuir para seu

exercício.

O ponto de partida deve ser o de uma pedagogia crítica, que articule os saberes

docentes em direitos humanos e que oportunize aos educadores uma ampla gama de

opções, de observações, de análises, de descobertas. É preciso consolidar o aprendizado

pela vivência, fazer do exercício cotidiano da cidadania uma prioridade.

Como uma das finalidades da EDH é despertar a responsabilidade com a defesa

do respeito ao ser humano, é fundamental sensibilizar e fomentar o compromisso. A

formação nesta perspectiva deve propiciar ao educador o conhecimento e a experiência

em direitos humanos, mas, sobretudo, oportunizar a socialização dos preceitos e valores

relacionados a essa área.

O enfoque deve passar pela abordagem interdisciplinar e multidimensional como

forma de estabelecer um diálogo com os demais conteúdos e níveis do conhecimento.

Uma formação em EDH que não dê preferência a esta questão, será incapaz de romper

com as representações e percepções prévias e proporcionar aos educadores um outro

olhar sobre o qual assentar sua prática.

É fundamental educar na tolerância, na valorização da dignidade e nos princípios

democráticos; construir uma nova cultura que tenha como centro o ser humano. Este é

um desafio no qual a contribuição dos educadores em direitos humanos é inestimável.

Por isso sua própria formação deve, desde o princípio, corresponder a estes valores que

se pretende socializar.

Igualmente, é preciso não perder a perspectiva da coerência entre o discurso e as

atitudes tomadas no dia-a-dia. O horizonte será sempre o mesmo: o respeito ao ser

humano e a sua dignidade. Mas a construção desse horizonte depende do grau de

envolvimento e disposição que pode haver em cada um.

Oportunizar, portanto, a formação do educador em direitos humanos, em

consonância com os valores que lhe são intrínsecos e desde uma abordagem

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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interdisciplinar e multidimensional, é, na atualidade, um passo a mais na construção de

uma cultura de direitos humanos.

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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Cultura da Paz10 Leonardo Boff11

A cultura dominante, hoje mundializada, se estrutura ao redor da vontade de

poder que se traduz por vontade de dominação da natureza, do outro, dos povos e dos

mercados. Essa é a lógica dos dinossauros que criou a cultura do medo e da guerra.

Praticamente em todos os países as festas nacionais e seus heróis são ligados a feitos de

guerra e de violência. Os meios de comunicação levam ao paroxismo a magnificação de

todo tipo de violência, bem simbolizado nos filmes de Schwazenegger como o

“Exterminador do Futuro”. Nessa cultura o militar, o banqueiro e o especulador valem

mais do que o poeta, o filósofo e o santo. Nos processos de socialização formal e

informal, ela não cria mediações para uma cutura da paz. E sempre de novo faz suscitar

a pergunta que, de forma dramática, Einstein colocou a Freud nos idos de 1932: é

possível superar ou controlar a violência? Freud, realisticamente, responde: “É

impossível aos homens controlar totalmente o instinto de morte… Esfaimados

pensamos no moinho que tão lentamente mói que poderíamos morrer de fome antes de

receber a farinha”.

Sem detalhar a questão, diríamos que por detrás da violência funcionam

poderosas estruturas. A primeira delas é o caos sempre presente no processo

cosmogênico. Viemos de uma imensa explosão, o big bang. E a evolução comporta

violência em todas as suas fases. São conhecidas cerca de 5 grandes dizimações em

massa, ocorridas há milhões de anos atrás. Na última, há cerca de 65 milhões de anos,

pereceram todos os dinossauros após reinarem, soberanos, 133 milhões de anos. A

expansão do universo possui também o significado de ordenar o caos através de ordens

cada vez mais complexas e, por isso também, mais harmônicas e menos violentas.

10 Artigo disponível no site htpp://www.leonardoboff.com/. Originalmente publicado no Jornal do Brasil, 8 de fevereiro de 2002, p.9. 11 Leonardo Boff (1938-) é teólogo e um dos principais formuladores da teologia da libertação, além de conferencista requisitado internacionalmente. É professor emérito de ética, de filosofia da religião e de ecologia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Dedica-se atualmente ao tema da ecologia e espiritualidade com vistas à construção de uma ecodemocracia integradora e planetária. Escreveu mais de 60 livros nas áreas de teologia, espiritualidade, ecologia, filosofia, antropologia e mística, dentre eles: A oração de São Francisco. Uma mensagem de paz para o mundo atual; O destino do homem e do mundo; Ecologia – grito dos povos; São Francisco de Assis: ternura e vigor.

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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Possivelmente a própria inteligência nos foi dada para pormos limites à violência e

conferir-lhe um sentido construtivo.

Em segundo lugar, somos herdeiros da cultura patriarcal que instaurou a

dominação do homem sobre a mulher e criou as instituições do patriarcado assentadas

sobre mecanismos de violência como o Estado, as classes, o projeto da tecno-ciência, os

processos de produção como objetivação da natureza e sua sistemática depredação.

Em terceiro lugar, essa cultura patriarcal gestou a guerra como forma de

resolução dos conflitos. Sobre esta vasta base se formou a cultura do capital, hoje

globalizada; sua lógica é a competição e não a cooperação, por isso, gera guerras

econômicas e políticas e com isso desigualdades, injustiças e violências. Todas estas

forças se articulam estruturalmente para consolidar a cultura da violência que nos

desumaniza a todos.

A essa cultura da violência há que se opôr a cultura da paz. Hoje ela é

imperativa.

É imperativa, porque as forças de destruição estão ameaçando, por todas as partes, o

pacto social mínimo sem o qual regredimos a níveis de barbárie. É imperativa porque o

potencial destrutivo já montado pode ameaçar toda a biosfera e impossibilitar a

continuidade do projeto humano. Ou limitamos a violência e fazemos prevalecer o

projeto da paz ou conheceremos, no limite, o destino dos dinossauros.

Onde buscar as inspirações para cultura da paz? Mais que imperativos

voluntarísticos, é o próprio processo antroprogênico a nos fornecer indicações objetivas

e seguras. A singularidade do 1% de carga genética que nos separa dos primatas

superiores reside no fato de que nós, à distinção deles, somos seres sociais e

cooperativos. Ao lado de estruturas de agressividade, temos capacidades de afetividade,

compaixão, solidariedade e amorização. Hoje é urgente que desentranhemos tais forças

para conferir rumo mais benfazejo à história. Toda protelação é insensata.

O ser humano é o único ser que pode intervir nos processos da natureza e co-

pilotar a marcha da evolução. Ele foi criado criador. Dispõe de recursos de re-

engenharia da violência mediante processos civilizatórios de contenção e uso de

racionalidade. A competitividade continua a valer mas no sentido do melhor e não de

destruição do outro. Assim todos ganham e não apenas um.

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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Há muito que filósofos da estatura de Martin Heidegger, resgatando uma antiga

tradição que remonta aos tempos de César Augusto, vêem no cuidado a essência do ser

humano. Sem cuidado ele não vive nem sobrevive. Tudo precisa de cuidado para

continuar a existir. Cuidado representa uma relação amorosa para com a realidade. Onde

vige cuidado de uns para com os outros desaparece o medo, origem secreta de toda

violência, como analisou Freud. A cultura da paz começa quando se cultiva a memória e

o exemplo de figuras que representam o cuidado e a vivência da dimensão de

generosidade que nos habita, como Gandhi, Dom Helder Câmara e Luther King e

outros. Importa fazermos as revoluções moleculares (Gatarri), começando por nós

mesmos. Cada um estabelece como projeto pessoal e coletivo a paz enquanto método e

enquanto meta, paz que resulta dos valores da cooperação, do cuidado, da compaixão e

da amorosidade, vividos cotidianamente.

a) A partir do que você leu sobre a cultura da paz e considerando as discussões em

sala de aula, apresente um conflito que tenha vivenciado ou presenciado em sua

comunidade ou movimento e que tenha sido difícil a sua superação. Caso tenha

superado, apresente como foi o processo de superação: positivo ou negativo.

b) É verdade que muito de vocês se indignam com alguns relatos de violação de

direitos humanos ou mesmo ficam se perguntando: e agora, o que posso fazer

com este conhecimento para ajudar minha comunidade ou mesmo contribuir

com o movimento que participo ou como utilizar na minha atividade

educacional? Assim, gostaria que vocês colocassem suas idéias em prática,

através de um plano de trabalho simples, mas que possa ser útil. Vamos dividir

este trabalho em duas etapas: primeiro, será elaborado um diagnóstico sobre os

problemas que a sua comunidade ou movimento enfrentam. Em segundo lugar,

vamos elaborar propostas de ações simples, que possam ser organizadas para

enfrentar esses problemas. Para tanto, elabore primeiro um diagnóstico com base

nas questões abaixo. Sinta-se à vontade para incluir outros dados que considerar

importantes para elaboração do projeto.

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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1ª ETAPA: DIAGNÓSTICO 1. Na sua comunidade ou movimento ou local de

trabalho, quais direitos humanos estão sendo mais violados? 2. Quais os

principais problemas, dificuldades, desafios e conflitos que vocês enfrentam no

seu cotidiano de militância na sua comunidade ou movimento?

2ª ETAPA: PROPOSTA DE AÇÃO 3. Quais ações você vê como possíveis e

viáveis para enfrentar estes problemas, com base no que foi apresentado no

curso? Enumere aqui as atividades propostas e descreva como você pensa em

fazer as atividades. 4. Quais desses problemas você acha que são mediáveis, e

quais não são? 5. Quais entidades você procuraria para formar parcerias para

enfrentar o problema? 6. Por que você acredita que estas ações contribuiriam

para a efetivação dos Diretos Humanos? Como você pretende avaliar se sua

proposta deu certo ou não?

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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Eixo III

Módulo I e II

Direitos Fundamentais:

Direitos fundamentais são os que, como essenciais ao homem, foram se

firmando ao longo da história. Tratam de situações jurídicas, sem as quais a pessoa

humana não se realiza, não convive e por vezes nem sobrevive. Visam a ser efetivados a

todos igualmente e de forma concreta. A Constituição Federal reconhece esses direitos

declarando-os.

Assim, os direitos fundamentais são aqueles direitos de que a pessoa não pode

abrir mão nunca. Não podem ser passados de uma pessoa para a outra, pois cada pessoa

já nasce dona dos seus direitos fundamentais protegidos pela Constituição brasileira.

Esses direitos não perdem sua validade com o tempo, não importa se são colocados em

prática ou não, eles nunca deixam de existir. E ninguém pode abrir mão desses direitos,

eles estão garantidos para todos os brasileiros na Constituição, sem ninguém precisar

fazer nada. Basta nascer para ter direitos fundamentais.

A Constituição os agrupa em direitos individuais; coletivos; sociais; à

nacionalidade e direitos políticos. Buscam dar um conteúdo real e uma possibilidade de

exercício eficaz a todos os direitos e liberdades. A proclamação dos direitos

fundamentais supõe uma autêntica garantia para o efetivo desfrute das liberdades civis e

políticas.

Assim esses direitos nascem historicamente pela necessidade humana, são

feitos pelos humanos para os humanos, de forma que todos participam de sua feitura

como compartilham a possibilidade de sua exigência. Para que tais direitos sejam

exigíveis por todos, existem garantias. Desta forma, as garantias constitucionais dos

direitos fundamentais vêm para dar proteção prática e fazer efetivos esses direitos. As

garantias dão proteção social, proteção política e proteção jurídica.

O respeito e a exigência desses direitos dependem não só das garantias como

principalmente do efetivo exercício desses direitos pelos cidadãos. O cumprimento

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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desses direitos, assim como seu surgimento histórico, também depende de uma prática

reiterada do exercício destes mesmos direitos.

A Constituição do Brasil é um documento no qual consta positivados em lei (e

portanto exigíveis por todos os cidadãos) os valores mais caros à sociedade, tais como a

liberdade, a igualdade, o respeito para com o próximo e a autonomia. Esses valores, por

serem tão importantes para os brasileiros (e também para muitas pessoas no mundo),

devem ser seguidos por todos, daí falarmos que a Constituição é a Lei Maior de um

Estado.

Falaremos então sobre um desses valores tão importantes: a liberdade.

Comecemos com o estudo de uma das liberdades mais básicas que nós temos, a

chamada liberdade da pessoa física. José Afonso da Silva, grande estudioso do direito,

conceituou liberdade da pessoa física como “a possibilidade jurídica que se reconhece a

todas as pessoas de serem senhoras de sua própria vontade e de locomoverem-se

desembaraçadamente dentro do território nacional”.12 Dessa definição decorre o

chamado direito de locomoção, que está descrito no artigo 5º, XV da Constituição de

198813. O artigo remonta também a questão dos estrangeiros que moram ou que visitam

nosso país, mas esses detalhes são dispensados em vista do objetivo do nosso estudo,

qual seja, esboçar um panorama geral das liberdades garantidas pela nossa Constituição.

O que devemos lembrar disso tudo, portanto, é que nos é garantido pela Lei Maior de

nosso país, o direito de irmos aonde quisermos, sem descumprir, é claro, as leis que

impedem nossa presença por diversos motivos, quer sejam motivos de segurança, saúde

pública etc.

No nosso dia-a-dia, no entanto, assistimos a cenas na televisão, por exemplo, de

pessoas que são presas injustamente, mediante a utilização exagerada e desnecessária da

força, principalmente pela polícia. Para combater essa situação, nossa Constituição

lança mão de um dispositivo chamado “Habeas Corpus”. Esse dispositivo está descrito

na nossa Lei Maior no artigo 5º, inciso LXVIII que diz: “conceder-se-á “Habeas

Corpus” sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou

12 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 30. ed., rev. e atual. até a Emenda Constitucional n. 56, de 20.12.2007. São Paulo: Malheiros, 2008. 13 Art. 5º, XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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coação14 em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. Portanto,

devemos sempre ter em mente que nossa liberdade de locomoção, de ir e vir, é

garantida pela nossa Constituição e que podemos recorrer à justiça sempre que

acharmos que estamos sendo vítimas de um abuso de poder contra essa nossa liberdade.

Daí a grande importância de conhecermos as leis de nosso país, para que possamos

exigir o cumprimento de nossos direitos, que por sua vez, são obrigações do

Estado. CONHECIMENTO SOBRE AS LEIS E EXIGIR SEU CUMPRIMENTO

SIGNIFICA LIBERDADE!

Agora vamos falar sobre a liberdade de expressão. Nossa Constituição dispõe

sobre a liberdade de expressão no artigo 5º, incisos IV, XIV e no artigo 220, parágrafos

1º e 2º. Essa liberdade é uma das principais conquistas que a Constituição de 1988 (a

atual Constituição do Brasil) obteve. No período que vai de 1964 a 1985, nosso país

viveu um período conhecido como ditadura militar. Nesse período, os brasileiros não

podiam se expressar de forma livre, falar o que pensavam ou tomar atitudes de maneira

autônoma, uma vez que todo tipo de manifestação era vigiado pelos militares (que então

estavam no poder), e as pessoas que não agissem segundo as idéias dos militares,

poderiam ser presas ou até mesmo expulsas do país.15 Com o fim do período militar, a

liberdade de expressão foi admitida pela Constituição e, a partir de então, as pessoas

puderam expressar livremente suas opiniões, seus valores, suas idéias, além de

possuírem mais acesso às informações e expressões não verbais (como músicas e

pinturas). Reconquistamos a Democracia, ou seja, o direito de todas as pessoas juntas

(representadas pelo Presidente, pelos deputados, senadores, governadores, vereadores,

prefeitos) decidirem o que seria melhor para o país, ao contrário do que acontecia na

época dos militares, quando apenas eles tomavam essas decisões. Foi o “fim da

censura”, que significa a intervenção do Estado no pensamento, na informação e nas

atitudes das pessoas. A liberdade de expressão contribuiu muito para o crescimento do

país, pois, como o homem é ser que necessita conviver com seus semelhantes, o seu

crescimento (tanto pessoal quanto em grupo) deve-se à troca de experiências e opiniões

com os membros de sua comunidade. Isso inspira o respeito e a consideração pelo

outro. 14 A palavra “coação” significa ato de forçar ou obrigar alguém a fazer alguém mediante o uso de violência física. 15 Vários artistas tiveram que se refugiar em outros países para não serem presos pelos militares, a exemplo de Caetano Veloso e Chico Buarque de Holanda.

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No entanto, sabemos que não podemos sair por aí fazendo tudo que queremos,

uma vez que é imperiosa a regra de respeito à liberdade do outro. A própria

Constituição, símbolo de liberdade e democracia, prevê que existem certos limites à

liberdade de expressão.16 Esses limites existem justamente para garantir e preservar

valores tão importantes quanto a liberdade, como por exemplo, a vida, a honra e a

dignidade. Nas palavras de Gilmar Ferreira Mendes, atual presidente do Supremo

Tribunal Federal: “Respeita-se a dignidade da pessoa quando o indivíduo é tratado

como sujeito com valor intrínseco, posto acima de todas as coisas criadas e em patamar

de igualdade de direitos com seus semelhantes”.17 Portanto, se não usarmos nossa

liberdade de expressão (que é um direito nosso) com sabedoria e cuidado, poderemos

ferir os direitos de outras pessoas, o que pode levá-las a reivindicar seus direitos

ameaçados ou violados, perante a justiça. Estamos falando de outro direito também

garantido pela Constituição: o direito de privacidade. A privacidade de alguém

corresponde a todos os assuntos e atitudes que dizem respeito apenas à vida particular

de cada cidadão. A vida privada é de imensa importância para a formação emocional e

até mesmo cultural (no seio da família, por exemplo) dos indivíduos. Além disso,

mesmo os artistas de televisão ou os políticos que possuem uma vida pública, como

cidadãos, tem o direito de possuir determinada privacidade em seus lares ou em suas

famílias. Portanto, fica claro que ao abordarmos o tema da liberdade de expressão,.

devemos ficar atentos aos outros princípios que também regem a nossa Constituição, a

exemplo do direito de privacidade.

Ainda com relação à liberdade de expressão, nossa Constituição concede às

crianças e jovens “absoluta prioridade” na observância das liberdades.18 Portanto, é

preciso medir bem nossas atitudes com as crianças e jovens, de modo que determinadas

idéias e atitudes não atrapalhem seu desenvolvimento e seu aprendizado, bem como não

interfiram no direito à vida, à educação e à dignidade. O BEM ESTAR E A

EDUCAÇÃO DAS CRIANÇAS E JOVENS DEVE SER PRIORIDADE TANTO DO

ESTADO QUANTO DA SOCIEDADE, de modo a resguardá-los “de toda forma de

discriminação, violência, exploração, crueldade e opressão”, de acordo com o artigo 227

16 Esses limites podem ser encontrados no art. 5º, IV,V,X,XIII e XIV, e no art. 220, §3, I, II e §4º. 17 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. rev. e atual. -. São Paulo: Saraiva; Brasília: Instituto Brasiliense de Direito Público, 2009. 18 Art. 227 da Constituição Federal de 1988.

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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da nossa Constituição. Segundo Gilmar Ferreira Mendes: “A liberdade de expressão,

portanto, poderá sofrer recuo quando o seu conteúdo puser em risco uma educação

democrática, livre de ódios preconceituosos e fundada no superior valor intrínseco de

todo ser humano”19. Observamos esse recuo, por exemplo, nos limites da liberdade de

determinada programação de televisão em certos horários, dado que alguns conteúdos

televisivos não são apropriados para determinadas idades, em respeito aos valores da

família e da ética, como dispõe o artigo 221 da nossa Constituição.

Podemos concluir, portanto, que a Constituição do Brasil garante a todos os

brasileiros o direito de pensar e de se expressar de maneira autônoma, sem a

interferência do Estado, salvo nos casos em que essa expressão comece a ferir os

direitos de outros indivíduos.

Outra liberdade garantida pelo nossa Constituição é a liberdade religiosa. Essa

liberdade está descrita nos artigo 5º da Lei Maior, nos seus incisos VI, VII e VIII. O

direito à livre manifestação religiosa está intimamente ligado à liberdade de expressão

porque as religiões são em si, maneiras diferentes de enxergar o mundo a sua volta e

seus seguidores acabam por aderir a vários códigos de conduta pregados pelas religiões.

Logo, como somos todos “iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...”20,

devemos ser respeitados ao declararmos nossas convicções pessoais, e no caso em

questão, ao declararmos nossa identidade religiosa, na certeza de que existem certos

limites para essa expressão, que também são descritos em lei. Muçulmanos, católicos,

judeus, budistas... cada um tem sua forma de expressar a fé, e cabe a cada um de nós

respeitar a crença do outro, e esse respeito é garantido pela nossa Constituição.

Vamos falar agora sobre a liberdade de reunião. A Constituição do Brasil

garante a todos os brasileiros a possibilidade de seu reunirem em locais abertos, para

fins pacíficos, independente da autorização do poder público.21 Essa reunião muitas

vezes pode ter o objetivo de discussão de determinados assuntos, para exprimir uma

vontade coletiva, para a celebração de uma festa ou até mesmo para fazer uma

reivindicação ou protesto. Conectado a esse direito, declara nossa Lei Maior que todos

são livres para se associarem, visando os mais diversos fins, que não seja ilícitos nem

19 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. rev. e atual. -. São Paulo: Saraiva; Brasília: Instituto Brasiliense de Direito Público, 2009. 20 Art. 5º da Constituição Federal de 1988. 21 Art. 5º, XVI da Constituição Federal de 1988.

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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paramilitares.22 Esses direitos estão na base das chamadas “garantias coletivas”, ou seja,

das garantias que dizem respeito a um grupo de pessoas e algumas até à totalidade dos

cidadãos brasileiros.

Chegamos ao fim de nosso estudo sobre as principais liberdades garantidas pela

Constituição Brasileira a seus cidadãos. No entanto, não se pode esquecer que outras

liberdades são garantidas por outras leis e até mesmo pela própria Constituição.

Finalmente, aproveitamos para afirmar que, para que essas liberdades sejam garantidas

e efetivas, é necessário que todos os cidadãos conheçam nossa Constituição, e para isso,

é indispensável ensinar a todas as pessoas (educação) o que consta na Lei Maior de

nosso País.

Os direitos sociais são a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a

segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, e a assistência

aos desamparados. Está escrito na Constituição que todos os brasileiros têm esses

direitos garantidos, sem distinção de qualquer natureza. Todos. Do mais novo ao mais

idoso, em Minas Gerais ou em qualquer outro Estado, a qualquer hora do dia ou da

noite. Todos os brasileiros têm os mesmos direitos.

Dizer que a Constituição garante o direito ao trabalho significa dizer que todos

os cidadãos brasileiros têm o direito de conseguir um emprego, de ter condições dignas

de trabalho, de ter um salário que sustente a sua família, e de lutar para ter melhores

condições de trabalho e melhores salários. E até de fazer greve, se for preciso.

A Constituição protege a saúde, a previdência social e a assistência social. Isso

quer dizer que ninguém pode ficar sem atendimento médico quando precisar, que todas

as pessoas têm direito aos medicamentos de que precisarem para terem uma boa saúde,

que o Brasil tem a obrigação de proteger a saúde de todos os brasileiros; quer dizer que

o trabalhador tem direito a se aposentar depois de trabalhar a vida toda, que a mulher

tem direito a tirar licença maternidade e continuar recebendo seu salário e voltar

normalmente ao seu trabalho quando terminar a licença.

Quando a Constituição fala que a sociedade tem direito à educação e à cultura,

significa que todos os brasileiros têm direito a freqüentar uma escola, ao

desenvolvimento intelectual e a ter uma formação profissional.

22 Art. 5º, XVII da Constituição Federal de 1988.

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Também são protegidos pela Constituição os direitos relativos à moradia e ao

meio ambiente. Ou seja, temos o direito de ter um lugar digno para morar, numa

vizinhança limpa e segura, sem perturbações de nenhum tipo e livre de poluição do ar,

dos rios, visual ou sonora.

As crianças e adolescentes têm uma proteção especial, derivada da

Constituição, chamada Estatuto da Criança e do Adolescente. Nele, são reafirmados os

direitos fundamentais que estão na Constituição, com prioridade para as crianças e

adolescentes: a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à

educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à

liberdade e à convivência familiar e comunitária.

De acordo com o Estatuto – o ECA –, os menores de 18 anos têm preferência

de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; preferência de atendimento

nos serviços públicos ou de relevância pública; na formulação e na execução das

políticas sociais públicas; e destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas

relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

O ECA garante que nenhuma criança ou adolescente sofrerá qualquer forma de

negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, e que qualquer

atentado aos seus direitos fundamentais será punido. O ECA protege a vida e a saúde

das crianças e adolescentes e garante o direito ao pré-natal, ao aleitamento materno,

proíbe qualquer tipo de maus-tratos e diz que é obrigatória a vacinação de todas as

crianças.

As crianças e adolescentes têm o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade.

Isso quer dizer que elas têm direito de opinião e expressão; de crença e culto religioso;

de brincar, praticar esportes e divertir-se; de participar da vida familiar e comunitária,

sem discriminação; de participar da vida política; de buscar refúgio, auxílio e orientação

se precisarem.

A integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, a

preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos

espaços e objetos pessoais são invioláveis. Significa dizer que ninguém pode invadir

esse espaço, que ninguém pode violar esses direitos. Eles estão garantidos na

Constituição e no ECA. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante,

vexatório ou constrangedor.

Toda criança tem o direito a ser criada pela sua família, tem direito à educação,

à cultura, ao esporte e ao lazer. O ECA garante o direito a entrar para uma escola,

pública e gratuita, perto de sua residência; o direito de ser respeitado pelos educadores e

o direito a permanecer na escola. As crianças de zero a seis anos têm direito a

atendimento em creche e pré-escola; é obrigação dos pais ou responsável matricular

seus filhos na rede de ensino. É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos

de idade, salvo na condição de aprendiz.

EDUCAÇÃO E AÇÃO PELOS DIREITOS HUMANOS

“(...) Somos plenamente conscientes de que não existe um verdaderio processo

educativo que não seja ativo. De fato, pais de famílias, professores, educadores,

animadores de grupos, militantes etc. convertem-se em agentes pedagógicos na própria

medida em que praticam os direitos do homem. Eles não são aprendidos “de cor”, mas

praticados. Caso contrário, morrem e desaparecem da consciência da humanidade.

No que diz respeito ao ensino dos Direitos Humanos, estamos persuadidos de

que não há, de um lado, “experts” e, de outro, ignorantes. Todos somos especialistas do

humano, ou indigentes, e a tarefa de humanizar deve brotar de nossas iniciativas

educativas. Neste campo, podemos afirmar com segurança: ninguém educada ninguém.

Aqui, os seres humanos educam-se em comunhão! Ninguém tem o monopólio dos

elementos humanizantes. Todos temos algo que dar e algo que receber.

Este trabalho que aqui apresentamos quer refletir também a preocupação por

uma informação mínima, que é a base de toda possível ação no campo dos Direitos

Humanos, e nosso desejo de evitar fica no plano do discurso teórico a respeito do

assunto. Esta dupla ambição marca, também, nossa limitação.

Pretendemos apenas ganhar um lugar junto a tanto outros esforços e convidar a

todos os seres de boa vontade a se converterem, onde quer que estejam, em entusiastas e

entusiasmantes educadores dos Direitos Humanos.

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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Sem este entusiasmo, sem este ensinamento, se os Direitos Humanos não

impregnam o processo educativo especialmente das novas gerações, não há progresso

possível em tal campo.

Podemos educar para os Direitos Humanos? Tal vez alguns respondam

rapidamente que sim. Nós – a partir da experiência história – achamos que não é

impossível, mas tão pouco é fácil. Inicialmente é necessário conhecer os direitos e

admitir também que seu conhecimento não se limita ao mero enunciado dos 30 artigos

da Declaração Universal, mas que implica no descobrimento e na prática de certas

atitudes complexas e exigentes. E isto é assim porque os Direitos Humanos não são

neutros, não toleram qualquer tipo de comportamento social, político ou cultural.

Exigem certas atitudes ao mesmo tempo que repelem outras.

Um dos maiores obstáculos para a difusão e educação dos Direitos Humanos é o

abismo existente ente o discurso, as palavras e os fatos, as atitudes. Se um educador, se

um sistema escolar, pretende educar para os Direitos Humanos deve sempre começar

por praticá-los. Não há educação para os Direitos Humanos, não há projeto educativo

válido neste campo sem profundo compromisso social por torná-los realidade. E isto

começa ao se descobrir que o próprio educando sobretudo ele, possui direitos

inalienáveis e não manipuláveis.

Neste terreno pedagógico não existe um ensino neutro. E, além disso

historicamente, todo ensino tem sido uma tarefa na qual o educador, consciente, ou

inconscientemente, tomou partido claramente por uns e outros valores, procurando

inculcá-los nos demais. Isto é assim porque educar não se restringe nunca a Mara

informação. Educar é também transmitir convicções, esperanças, afetos, desilusões e

compromissos... Em última análise, na origem de qualquer processo educativo existem

perguntas básicas que não podem ser eludidas: “ que tipo de sociedade e pessoa devo

defender e transmitir?” ou “Que sistema educacional se ajusta mais a esta opção?” E,

logicamente, estas perguntas não são exclusivamente teóricas, estão unidas a uma

prática e estão dirigidas tanto aos indivíduos como aos Estados. (...)

Superar o divórcio entre teoria e prática, no campo dos Direitos Humanos, é o

maior desafio atual. Muitas vezes, a teoria educativa não chega a se arriscar e se “sujar”

com a prática quotidiana. Há uma tendência em eludir esta responsabilidade por parte

dos educadores e dos centros com seus programas educativos.

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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Estabelecer a relação entre a teoria e prática implica a participação ativa dos

mesmos educandos no próprio centro da educação educativa, negando a outra relação,

alienante, que os considere como meros “depósitos” a se encher com determinadas

informações. E isto considerando que, como disse Bakunin: “A liberdade só se ensina

com a liberdade!”

Texto retirado de

MOSCA, Juan José AGUIRRE, Luís Perez.

Direitos Humanos – Pautas para

Uma Educação Libertadora.

Petrópolis, Vozes, 1999, p.19-20.

EDUCAR PARA OS DIREITOS HUMANOS

“O que é uma educação para Direitos Humanos?”

A dificuldade inicial é o caráter geral, abstrato dos dois termos aqui acoplados:

Educação e Direitos Humanos. Como tirar da expressão significado das palavras, vemos

que abstrato é uma palavra de origem latina que diz “retirado do contexto”; e concreto

da mesma origem – particípio passado do verbo concrescer – significa “aquele que

cresceu junto”. Falar abstratamente de direitos humanos com crianças e adolescentes é

inócuo. No entanto, é indispensável que eles vivenciem situações de defesa dos Direitos

e deveres em suas relações, desde muito cedo.

No processo de educação para Direitos Humanos, distinguimos três fases

- sensibilização

- percepção

- reflexão

Antes de abordar os direitos humanos a nível discursivo é preciso passar por

uma fase de sensibilização. A sensibilização se faz em todas as áreas do conhecimento

(em artes plásticas, por exemplo, sensibiliza-se o aluno para as formas, as cores). É uma

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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fase concreta que chega diretamente à vivencia do aluno: corporal, subjetiva e

intersubjetiva.

No caso dos Direitos Humanos, esta vivencia só pode ser captada nas relações

humanas primárias, isto é, nas relações fundamentais que trazemos de nossa primeira

infância: as relações Homem X Mulher, Pai X Mãe, Pai X Filho e outras instancias

familiares. Depois, isto se estende aos amigos da escola, à relação Professor X Aluno,

que constituem o universo de uma criança.

O período em que a criança está fortemente centrada na afirmação de seu ego é o

momento em que se inicia o progresso educacional. É uma luta que se enceta contra o

egocentrismo infantil: luta sinuosa, estratégica, que vai se transformar em uma

pedagogia que deve de algum modo relativizar este egocentrismo. No entanto, a

tendência natural da criança de excluir o outro sintoniza com o princípio básico da

sociedade burguesa na qual ela está psicológica e sociologicamente imersa, que é lutar

somente pelas próprias vantagens. O individualismo, a competição, a concorrência – na

qual impera o “vale tudo” – estão nos fundamentos da ideologia do capitalismo.

O capitalismo multiplica a tendência egocêntrica que é própria da criança,

estimulando-a a consumir, a diversificar seus desejos, a satisfazer seus caprichos. Os

adultos tornam-se escravos da criança voluntariosa que, através do consumo, sente

aumentar seu ego.

Isto acontece na sociedade burguesa e, segundo Marx, “o pensamento dominante

de uma classe acaba sendo o pensamento dominante da sociedade inteira”.

É preciso lutar para que a fase natural de centração da criança seja seguida pela

fase também natural de descentração, quando há o reconhecimento do outro.

Como é possível sensibilizar a criança para o outro? Como ela pode ver no outro

uma alternativa de seu próprio ego? Como pode ela criar desde cedo esta reciprocidade

fundamental que a ética chama tradicionalmente de dialética de direitos e de deveres?

Na verdade, direitos e deveres são as mesma coisa. Quando estou cumprindo um

dever, freqüentemente estou atendendo ao direito de outrem e vice-versa. Direitos e

deveres são efetivamente os dois lados da mesma moeda, que é a moeda da

responsabilidade social.

Esta ética dos deveres e direitos deve ser sentida pela criança, no momento em

que sentir a necessidade do outro.

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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Cabe ao professor aproximar os alunos em torno de atividades comuns, de

objetivos comuns.

A maior dificuldade está no fato de nós mesmos, educadores não termos sido

educados para os direitos humanos. O primeiro passo, então, seria o da auto-educação,

para irmos desvendando e ultrapassando nosso egocentrismo, autoritarismo, rigidez, já

que fomos socializados num sistema de repressão e de concorrência e dele somos

vítimas. Na interação com o aluno, o professor atento também vai se educando.

Embora a sensibilização para os Direitos e Humanos possa ser levada a efeito

com qualquer faixa etária, há momentos da vida escolar em que ela é mais eficaz: na

pré-escola e nos primeiros anos do 1° grau. Até o empréstimo de um lápis ou de uma

borracha, de um brinquedo, está o passo inicial para a socialização. A solidariedade se

exprime por gestos, por palavras, por um “dar de si”. Os jogos e brincadeiras em que

não entrem em competição e a concorrência devem ser estimulados; através deles pode-

se conseguir a integração da classe, embora levando em consideração a existência de

conflitos. Tem que ser aberto espaço para a integração também de pais e mestres, da

escola com a comunidade são os locais onde a violência impera. Apesar de não se ter a

pretensão de atingir toda a sociedade, a Educação para Direitos Humanos tem que

começar com um elo, e o elo privilegiado é o que une a criança e a família. Se a escola

não estabelecer uma relação – por mínima que seja – com o núcleo onde a criança está

inserida, o programa de educação para os Direitos Humanos torna-se inviável. Não se

trata de a escola assumir o papel de psicanalista da família, mas de propiciar

oportunidade para que os pais se encontrem, troquem suas experiências de vida,

reconheçam a existência de problemas comuns que podem ser sanados. Estas relações

humanas são um pré-requisito para a sensibilização para os Direitos Humanos.

O segundo nível é o da percepção dos Direitos Humanos. Esta fase perceptual se

seguiria à da sensibilização e abrangeria as crianças pré-adolescentes e adolescentes,

através das diferentes disciplinas.

Como no entanto, chegar à percepção dos Direitos Humanos através de um

trabalho interdisciplinar? A resposta deve ser buscada no contexto de cada escola. Os

professores poderiam organizar, por exemplo, uma quinzena de debates sobre um tema

comum (a constituição, a reforma agrária, o uso do espaço urbano, o problema da

marginalização do menor, do negro), mas sempre levando os alunos a procurar conhecer

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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as situações precisas em que os Direitos Humanos são violados. Nesta fase, o trabalho

de campo é fundamental.

Seria interessante iniciar pelas violações aos Direitos da criança. Os temas vão

orientar as hierarquias e as disciplinas, quanto à coordenação dos trabalhos e à forma de

serem apresentados.

O terceiro nível é o da reflexão, no qual o educador se dirige a alunos do 2°

ciclo, do magistério, da universidade ou a adultos que, além da sensibilização e da

percepção, se dispõem a debater sobre as leis relativas aos Direitos Humanos que já

foram codificadas, assim como problemas emergentes, que exigiriam novas conquistas

legais.

Educar para os Direitos Humanos é, enfim, uma tarefa para a vida inteira.

O educador deve ainda alertar os educandos para a deterioração semântica da

expressão “Direitos Humanos” que vem sendo promovida pelos meios de comunicação

de massa, com a conotação pejorativa de “proteção a bandidos”. Ao professor cabe a

tarefa de apontar a atitude desses comunicadores, de tentar denegrir a imagem dos que

se empenham na defesa dos Direitos Humanos e recuperar a conceituação original

(BOSI, Alfredo. Educar para os Direitos Humanos. Curitiba, CODIC-SEJU, 1993, pág.

30-31)

- Leitura dialogada e comentada; confronto com a realidade vivida pelos

participantes da oficina;

- Distribuir os seguintes textos:

Declaração Universal de Direitos Humanos (1948);

Declaração Universal dos Direitos dos Povos (1976);

Declaração do Rio ou Carta da Terra (1992);

EDUCAÇÃO E DIREITOS HUMANOS: UMA PROPOSTA METODOLÓG ICA

A luta por estabelecer firmemente, na consciência dos indivíduos e dos povos, o

compromisso com a promoção dos Direitos Humanos passa obreigatoriamente pela

educação em suas diferentes formas, inclusive a escola.

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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A escola, que deveria exercer um papel de humanização a partir da socialização

e da construção de conhecimentos e dos valores necessários à conquista do exercício

pleno da cidadania, tem muitas vezes favorecido a manutenção do status quo e refletido

as desigualdades da sociedade, reforçando as diferenças sociais e culturais.

É importante construir uma escola que seja um espaço onde se formam as

crianças e os jovens para serem construtores ativos da sociedade na qual vivem e

exercem sua cidadania. Isto exige uma prática educativa participativa e dialógica, que

trabalhe a relação prática-teoria-prática, na qual o cotidiano escolar esteja permeado

pela vivencia dos Direitos Humanos.

Nesta “Década dos Direitos Humanos” (1990-2000) é particularmente urgente

afirmar, no concreto da prática educativa, que as crianças, os jovens e os educadores

podem contribuir ativamente na construção de uma sociedade em que os Direitos

Humanos sejam efetivamente uma realidade para todos, de modo especial no Brasil e

em toda a América Latina.

Uma proposta metodológica de educação nessa perspectiva tem de ter alguns

eixos articuladores do trabalho a ser desenvolvido, decorrentes dos princípios

fundamentais que explicitam nossa concepção dos Direitos Humanos.

O primeiro deles é o cotidiano. Em nossa proposta, a vida cotidiana é

considerada como referência permanente da ação educativa. No cotidiano, construímos

nossas vidas a um nível pessoal e coletivo. Desenvolver uma contínua atenção ao

cotidiano supõe desenvolver a capacidade de interrogar-se sobre o sentido dos

acontecimentos que cada dia impactam, algumas vezes de modo dramático, nosso tecido

vital e nossas consciências. Trata-se de uma exigência de qualquer proposta de

educação em Direitos Humanos.

Para transformar a realidade é necessário trabalhar o cotidiano em toda a sua

complexidade. É no tecido diário de relações, emoções, perguntas, socialização e

produção de conhecimentos e construção de sentido que criamos e recriamos

continuamente nossa existência.

Segundo Sime (1991), uma proposta educativa que tenha como eixo central a

vida cotidiana e quer recuperar o valor da vida em sentido radical tem de desenvolver de

modo criativo três aspectos básicos.

O primeiro pode ser assim definido:

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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“(...) deve ser uma pedagogia da indignação e não da resignação. Não queremos formar seres insensíveis e sim seres capazes de se indignar, de se escandalizar diante de toda a forma de violência, de humilhação. A atividade educativa deve ser um espaço onde expressamos e partilhamos esta indignação através de sentimentos de rebeldia pelo que está acontecendo”(pág. 272).

Em nossa sociedade, a escola muitas vezes se faz impermeável à realidade do

contexto social em que está inserida. O cotidiano escolar se transforma num mundo

auto-referido que ignora o cotidiano social. Em muitas ocasiões, não existe sequer

espaço para que as crianças e jovens possam expressar e refletir sobre a estruturação de

seu dia-a-dia, de suas famílias e comunidades. Escola e vida parecem dois mundos que

se ignoram.

Romper com esta desarticulação é uma preocupação básica da educação em

Direitos Humanos.

Por outro lado, normalmente os sentimentos que a escola permite que sejam

expressados e cultivados estão mais em sintonia com a resignação e a tranqüilidade, do

que com a indignação e a rebeldia. Indignar-se e rebelar-se não quer dizer estimular a

confusão nem provocar baderna. Trata-se de superar toda indiferença diante das

violações dos Direitos humano, que se multiplicam em nossa sociedade e estão

presentes também na escola. Supões que sejamos conscientes de que estas violações não

são fenômenos naturais e sim realidades, historicamente construídas, e que tenhamos a

valentia de nos perguntar por suas causas e por nossa conivência, ativa ou passiva.

Exige superar a tendência a insensibilidade, passividade e impotência que a

multiplicação continua das formas de violação dos Direitos Humanos termina por

favorecer a nível pessoal e social.

“A educação em Direitos Humanos deve promover essa sensibilidade, essa capacidade de reagir pelo que acontece com os anônimos deste país, pelas vítimas sem nomes, nem sobrenomes famosos. Esta pedagogia da indignação deve estimular a uma denúncia enérgica e à solidariedade. Em outras palavras, queremos transformar nossa cólera em denúncia e não em silêncio. É necessário difundir, comunicar a outros o porquê de nossa raiva e dizer quem são os responsáveis das injustiças cometidas. Isto já é o início da solidariedade e deve continuar a se ampliar com outras ações criativas e reflexões críticas” (Sime, 1991, 272-273).

O segundo aspecto assinalado por Sime é a pedagogia da admiração diante de

toda expressão de afirmação da vida. Em nosso dia-a-dia, muitas vezes não percebemos

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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as inúmeras formas pessoais e coletivas de buscas de sobrevivência, preservação e

promoção da vida, por menores que sejam. Revelam capacidade de resistência, enorme

criatividade e firme vontade de viver e de buscar as formas de promover condições

dignas de vida.

A educação em Direitos Humanos favorece a capacidade de perceber, dentro e

fora do âmbito escolar, estas buscas concretas e cria espaços em que estas experiências

são partilhadas, assim como construídas e postas em prática.

“Esta pedagogia da admiração é um convite a criar espaços para partilhar a alegria de viver. Nos alegramos por que vamos descobrindo que existem pequenos germens de uma nova cotidianidade, por que nos admiramos de como mudamos e de como outros mudaram ou querem mudar. A admiração estimula a gozar de tudo aquilo que desde nossa realidade imediata contribua à vitória da vida” (Sime, 1991, 274).

Para Sime, o terceiro aspecto inerente a uma proposta educativa, que tenha como

eixo central a vida cotidiana, é afirmar uma pedagogia que promova convicções firmes e

se expressa num modo de trabalhar a dimensão ética da educação.

“A convicção do valor supremo da vida é a coluna vertebral de nosso projeto de sociedade, de homem e mulher novos. Nossa opção pela vida é o que unifica nossa personalidade individual e nossa identidade coletiva. Mas também há outros valores que propomos como convicções e que dão consistência ética a esta mística pela vida: solidariedade, a justiça, a esperança, a liberdade, a criticidade” (Sime, 1991, 274).

Assim, o cotidiano se transforma no lugar privilegiado de reconhecimento da

vida, de revelação das lutas e dos conflitos diários para liberar o potencial de vida

presente em cada pessoa, nos grupos sociais, na sociedade como um todo, na natureza.

A educação em Direitos Humanos está referida radicalmente a esta vontade de

afirmação da VIDA.

O segundo eixo articulador da proposta é promover uma educação para a

cidadania.

Nas sociedades latino-americanas, tão dramaticamente marcadas por estruturas

injustas, a problemática da cidadania não pode ser reduzida à sua dimensão jurídico-

formal. O exercício da cidadania implica no reconhecimento e na denuncia das formas

pelas quais os direitos individuais e sociais são constantemente violados na sociedade.

Não pode ser reduzido à consciência e ao exercício individual dos direitos e deveres

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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civis e políticos. Supõe também criar condições para uma ação transformadora que

incida nos diferentes âmbitos sociais. Educar para a cidadania exige educar para a ação

político-social e esta, para ser eficaz, não pode ser reduzida ao âmbito individual.

Educar para a cidadania é educar para uma democracia que dê provas de sua

credibilidade de intervenção na questão social e cultural. E incorporar a preocupação

ética em todas dimensões da vida pessoal e social.

O antropólogo Rubem César Fernandes (1993) afirma:

“Estamos descobrindo que cidadania não implica apenas a obrigação de votar e o direito de reclamar dos políticos. Significa isto, com certeza, mas também é muito mais, o sentido de co-responsabilidade pela vida em sociedade. Cidadania é para todo dia. Não é só para a política. Ser cidadão não precisa ser uma coisa chata e ressentida. Ser cidadão pode ser bom. (...) Cidadania profunda. Os cientistas políticos enfatizam o lado formal. Agir segundo regras universais. Respeitar as leis. Aceitar as regras do jogo. É o cidadão dos modelos abstratos. Nesta campanha, ao contrário, estamos descobrindo que a cidadania implica generosidade. Preocupar-se com o outro. Diria mesmo que esta é uma outra novidade importante da campanha. Ela aproxima a linguagem política da linguagem moral: generosidade, compaixão, caridade, solidariedade, respeito. Até mesmo esta desgastada palavra “amor” reaparece, sem vergonha, na fala das pessoas” (Cidadania à brasileira, in jornal Primeira e Ultima n° 5,1/15, Agosto, 1993).

Está emergindo um modo novo de viver e exercer a cidadania no cotidiano, este

é um eixo articulador básico para a educação em Direitos Humanos. Formar sujeitos

sociais ativos, protagonistas, atores sociais capazes de viver no dia-a-dia, nos distintos

espaços sociais, incluída a escola, uma cidadania consciente, crítica e militante.

O terceiro eixo articulador de nossa proposta está intimamente ligado ao

segundo e pode ser assim formulado: construir uma prática educativa dialógica,

participativa e democrática.

Consolidar a democracia é um grande desafio no Brasil e em toda a América

Latina. Segundo Weffort (1992, 85),

“As novas democracias são aquelas cuja construção ocorre em meio às condições políticas de uma transição na qual foi impossível a completa eliminação do passado autoritário. Além disso, essa construção se dá em meio às circunstâncias criadas por uma crise social e econômica que acentua as situações de desigualdade social extrema, bem como de crescente desigualdade.”

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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O esforço por superar uma cultura profundamente autoritária, presente nas

relações humanas em todos os âmbitos em que se desenvolvem, assim como no tecido

social como um todo, tem de ser realizado em todas as mediações culturais e sociais.

Neste sentido, a escola tem uma função especifica ma afirmação de uma cultura

democrática. Oautoritarismo impregna com força a cultura escolar.Esta profundamente

arraigado no modo como a escola interage com a sociedade, a serviço de que interesses

e grupos sociais se coloca.

Para Paulo Freire( 1993, 100),

“A escola democratica não apenas deve estar permanentemente aberta á realidade contextual de seus alunos para melhor compreende-los, para melhor exercer sua atividade docente, mas também disposta a aprender de suas relações com o contexto concreto. Daí, a necessidade de, professando-se democrática, ser realmente humilde para poder reconhecer-se aprendendo muitas vezes com quem sequer se escolarizou.”

A partir da afirmação de uma relação democrática com o contexto, a escola que

quer promover uma educação em Direitos Humanos deve construir uma prática

pedagógica coerente com sua proposta. Neste sentido, desde a dinâmica da sala de aula

e de todas as atividades e espaços especificamente escolares, a escola deve ir

promovendo relações marcadas pela dialogicidade, pelo esforço de construção conjunta,

em que a apropriação pessoal e coletiva da palavra constituem elementos fundamentais.

Outros aspectos a serem especialmente trabalhados se relacionam com o

reconhecimento de ‘outro’, o direito á diferença e o modo de trabalhar os conflitos e

construir consensos a partir das diferenças. Criar canais de participação e organização

que permitam um exercício concreto de tomada de decisões grupais é outro elemento a

ser estimulado na prática pedagógica. Assim, a escola poderá colaborar na construção

de uma cultura democrática onde esteja presente efetivamente o exercício dos Direitos

Humanos.

O quarto eixo de nossa proposta de educação em Direitos Humanos é o

compromisso com a construção de uma sociedade que tenha por base a afirmação da

dignidade de toda pessoa humana.

Esta é a utopia radical a ser vivida como imperativo ético e político numa

sociedade em que as desigualdades e discriminações cada dia se multiplicam.

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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“A luta contra a miséria é também e essencialmente uma questão ética e política. Ética porque a miséria não cai do céu como um fenômeno natural, como se fosse um vírus que ataca determinadas sociedades do Terceiro Mundo. Ela é produzida por uma sociedade num determinado tempo e por grupos dirigentes com nome e apelido que, até prova em contrário, têm consciência do que fazem.” (Hebert de Souza, Primeira e Última, n° 2, Abril, 1993).

.

O direito à vida, a uma vida digna e a ter razões para viver, deve ser defendido e

promovido para todas as pessoas, de qualquer raça, sexo, religião, condição social, em

qualquer etapa da vida, assim como para todos os grupos sociais e culturais. Em

qualquer parte do mundo. Esta é uma afirmação de dimensões planetárias, de raízes

antropológicas, ética, políticas e transcendentes, que aponta à construção de uma

alternativa de um futuro mais humano em escala mundial.

A nível de educação em Direitos Humanos, este eixo exige uma visão em que a

problemática local e a internacional se articulem e em que a afirmação da dignidade

humana não seja um princípio abstrato, e sim um compromisso de vida, assumido com

paixão e determinação em nosso dia-a-dia.

Junto aos eixos articuladores de nossa proposta metodológica, é importante

também explicitar as dimensões que devem ser levadas em consideração em todo

processo de educação em Direitos Humanos.

Concebemos estas dimensões de modo integrado e a serem trabalhadas

conjuntamente. São elas: ver, saber, celebrar e comprometer-se.

A educação em Direitos Humanos trabalha permanentemente o ver, a

sensibilização e a conscientização da realidade. Procura ir progressivamente ampliando

o olhar sobre a vida cotidiana e ir ajudando a descobrir os determinantes estruturais da

realidade. Articular o locar, o contexto latino-americano e a realidade mundial é outra

de suas exigências fundamentais.

Junto com o ver, e em profunda conexão com ele, está o saber socialmente

construído em torno da questão dos Direitos Humanos, assim como aquele que emerge

da prática cotidiana. Colocar em relação recíproca estes saberes deve ser uma

preocupação constante. Progressivamente se irá aprofundando e apliando os

conhecimentos e a reflexão sobre esta temática, no nível filosófico, político-social,

histórico e jurídico.

A educação em Direitos Humanos deve ser uma prática que provoca prazer,

alegria, emoção. Quando se vai descobrindo o valor da vida, sua enorme riqueza e seu

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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos

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grande potencial de crescimento e criatividade, o coração se dilata. Em contextos em

que se convive cotidianamente com a morte, a celebração da vida adquire uma

densidade particularmente intensa. Acolher a vida, protgê-la de tantas ameaças,

denunciar suas violações, afirmar e multiplicar as experiências de promoção de

plenitude de vida, provoca felicidade e se torna uma paixão. A dimensão afetiva é um

componente imprescindível na educação em Direitos Humanos.

Sem compromissos concretos não há educação em Direitos Humanos.

Afirmamos que eles são uma conquista histórica e nascem da prática de grupos sociais

determinados. É a partir da ação, do envolvimento, da participação em ações, grupos,

campanhas, movimentos, iniciativas concretas, que ela se dá. O estímulo à prática é um

componente imprescindível desde as primeiras experiências de educação em Direitos

Humanos. Nesta perspectiva, um componente que deve ser cuidade de modo especial é

a construção de práticas coletivas e a participação em organizações e movimentos da

sociedade civil. Trata-se de educar a partir da prática para a construção comunitária e a

participação ativa no coletivo como aspectos fundamentais na luta pelos Direitos

Humanos.

Como já afirmamos, estas dimensões se interpenetram e têm de ser trabalhadas,

não de modo isolado, ou reduzindo-se a educação em Direitos Humanos somente a

algumas delas, e sim de maneira articulada.

Para Mosca e Aguirre (1990, 19):

“Um dos maiores obstáculos para a difusão da educação dos Direitos Humanos é o abismo existente entre o discurso, as palavras e os fatos, as atitudes. Se um educador, se um sistema escolar pretende educar para os Direitos Humanos, deve sempre começar por praticá-los. Não há educação para os Direitos Humanos, não há projeto educativo válido neste campo sem profundo compromisso social para torná-los realidade.”

Em nossa proposta metodológica de educação em Direitos Humanos, uma

estratégia formativa é privilegiada: as oficinas pedagógicas.

Para Reyes (77):

“A oficina se concebe como uma realidade integradora, complexa e reflexiva, em que a relação teoria-prática é a força motriz do processo pedagógico, orientado a uma comunicação constante com a realidade social e como um grupo de trabalho altamente participante, no qual cada um é um membro a mais do grupo e dá sua contribuição específica..” (in: Betancourt, A.M. “El taller Educativo”, 1991, 21).

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É nesta perspectiva que trabalhamos. Assumimos também a afirmação de

Gonzáles (1987, 3):

Refiro-me à oficina como tempo-espaço para a vivência, a reflexão, a conceitualização; como síntese do pensar, sentir e agir. Como “o” lugar para a participação, a aprendizagem e a sistematização dos conhecimentos. (,,,) Gosto da expressão que explica a oficina como lugar de manufatura e mentefatura. Na oficina, através do jogo recíproco dos participantes com as tarefas, confluem o pensamento, o sentimento e a ação. Em síntese, a oficina pode converter-se no lugar do vínculo, da participação, da comunicação e, finalmente, da produção social de objetos, acontecimentos e conhecimentos.”

Com esta metodologia, os participantes são levados a confrontar sua prática

cotidiana com as questões que envolvem a problemática dos Direitos Humanos no

Brasil e na América Latina. Pretende-se que as oficinas colaborem a reforçar a

conscientização e a dimensão ética, assim como aprofundar no compromisso sócio-

político inerente à luta pelos Direitos Humanos, visando construir sociedades

verdadeiramente democráticas, justas, solidárias e fraternas.

Trata-se de um espaço de construção coletiva de um saber, de análise da

realidade, de um confronto e intercâmbio de experiências e de um exercício concreto

dos Direitos Humanos. A atividade, a participação, a socialização da palavra, a vivência

de situações concretas através de sociodramas, a análise de acontecimentos, a leitura e a

discussão de textos, a realização de vídeo-debates, o trabalho com distintas expressões

da cultura popular etc., são elementos presentes na dinâmica das oficinas.

A educação em Direitos Humanos supõe muitos desafios e exige repensar a

relação entre educação e sociedade, assim como o papel da escola, sua organização e

sua dinâmica pedagógica.

Mosca e Aguirre (1990, 19) chegam mesmo a perguntar-se se é possível educar

em Direitos Humanos e afirmam:

“Talvez alguns respondam rapidamente que sim. Nós – a partir da experiência histórica – achamos que não é impossível, mas tampouco fácil. Inicialmente é necessário conhecer os direitos e admitir sambem que seu conhecimento não se limita ao mero enunciados dos 30 artigos da Declaração Universal, mas que implica no descobrimento e na prática de certas atitudes complexas e exigente. E isto é assim porque os Direitos Humanos não são neutros, não toleram qualquer tipo de comportamento social, político e cultural exigem certas atitudes ao mesmo tempo que repelem outras.”

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É nesta perspectiva que situamos nosso trabalho de Educação em Direitos

Humanos.

Cidadania e Politização da Educação

“A pessoa conscientizada tem uma compreensão diferente da história e de seu papel nela. Recusa acomodar-se, mobiliza-se, organiza-se para mudar o mundo.”

(Paulo Freire. Cartas à Cristina, 1994)

“Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.”

(Paulo Freire. Pedagogia do Oprimido, 1968)

O conceito de cidadania já se transformou em diversas oportunidades ao longo

da história, significando algumas vezes a participação política do homem em sociedade,

através da escolha de seus representantes, outras vezes a afirmação dos direitos

individuais ou sociais de cada pessoa.

Contudo, foi somente após as duas grandes Guerras Mundiais que se observou

uma nova relação entre os direitos, principalmente sociais, e o poder público. Restou

evidente a necessidade da efetivação dos Direitos Humanos fundamentais para a

manutenção da paz social, os quais, por sua vez, são conquistados desde que haja o

exercício da cidadania.

Atualmente, o termo cidadania alcançou um significado mais abrangente, vindo,

segundo o educador Paulo Freire, a significar: “a condição de cidadão, quer dizer, com

o uso dos direitos e o direito de ter deveres de cidadão".

Isso significa que cada ser social, ou seja, cada pessoa inserida em uma

comunidade deve exercer os direitos outrora já conquistados, consistindo esse exercício

em exigir que as Leis se cumpram por parte de todos. Dessa maneira, estaremos

conquistando o direito de sermos vistos como membro da sociedade.

Cabe atentar para o fato de que o homem não pode participar ativamente na

história, na sociedade, na transformação da realidade se não for ajudado a tomar

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consciência da realidade e da sua própria capacidade para transformar. Pessoa alguma

pode empreender luta contra forças que não entende, cuja importância não meça, cujas

formas e contornos não discirna.. A realidade só pode ser modificada quando o homem

descobre que ela é modificável e que ele o pode fazer.

Conforme leciona o mestre Paulo Freire: “A cidadania é uma invenção coletiva.

Cidadania é uma forma de visão do mundo (...) por isso, as chamadas minorias, por

exemplo, precisam reconhecer que, no fundo, elas são a maioria.”

O caminho para assumir-se como maioria está em trabalhar as semelhanças entre

si e não só as diferenças e assim criar a unidade na diversidade. Para isso, os grupos de

cidadãos (pessoas que moram no mesmo bairro, estudam na mesma escola, utilizam os

mesmos meios de transporte, se interessam pelo fomento do mesmo tipo de atividade,

seja ela cultural, comercial ou educacional) devem se unir e se organizar, constituindo-

se em forma de associações ou ONG’s, o que possibilitará o reconhecimento entre si

enquanto comunidade ativa que defende os interesses da coletividade plural.

Indispensáveis, nesse percurso de conquista da cidadania, são a liberdade e a

autonomia do ser. O processo de conhecimento acontece quando o indivíduo se

reconhece humano (envolvendo aqui a conquista, também, da auto-estima) e atua na

realidade, modificando-a. Nesse diapasão, o homem entende que é sujeito, e é sujeito

ativo das suas relações com o mundo. Por fim, entende que o Estado é formado também

por ele, que é agente político.

Portanto, é aprendendo e se educando com liberdade e autonomia que se constrói

a cidadania.

Nessa etapa do nosso curso, compreendemos e reconhecemos nossa capacidade

de conquista. A partir de agora, devemos aprender a colocá-la em prática, conhecendo

os instrumentos e mecanismos de atuação de que dispomos através do Estado brasileiro.

Como visto, a cidadania é um termo associado à vida em sociedade. O conceito

de cidadania percorre a história vinculando-se cada vez mais às mudanças nas estruturas

sociais. Hoje, uma variedade de atitudes caracteriza a prática da cidadania. Assim, o

cidadão deve atuar em benefício da sociedade, bem como esta última deve garantir-lhe

os direitos básicos à vida, moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, trabalho, entre

outros. Como conseqüência, cidadania passa a significar o relacionamento entre uma

sociedade política e seus membros.

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O ambiente de vida social do Estado democrático, cujos pilares de sustentação

encontram-se na declaração, na garantia e na efetividade dos direitos fundamentais da

pessoa humana, é tornado real através da observação de vários postulados que lhe são

essenciais. São pressupostos do Estado democrático: 1) a dignidade do homem e o

reconhecimento de dar a todos tratamento igualitário; 2) o fomento ao desenvolvimento

dos talentos e possibilidades latentes dos homens; 3) a segurança; 4) credibilidade nos

valores institucionalizados pelas massas, como fundamentos para o progresso do bem

comum; 5) a aceitação da legitimidade das decisões tomadas por meio de processos

racionais e participativos de deliberação, com o consenso da maioria; 6) o respeito aos

grupos minoritários; 7) e, a compreensão de que todo o interesse geral é a síntese dos

diversos interesses e idéias dos indivíduos e dos grupos, que integram a sociedade

pluralista.

A participação cidadã também está na consulta do cidadão para as tomadas de

decisão que dizem respeito à direção da sociedade em que ele vive e que, dentre os

direitos de participação política, tais como a igualdade de sufrágio, o direito de voto e

de elegibilidade, o direito de petição, e o direito de iniciativa popular de leis, que cabe

aos cidadãos.

O exercício de todos os direitos inerentes ao Estado democrático e do direito de

participação, é acompanhado do respeito aos deveres de contribuir para o progresso

social e de acatar e respeitar o resultado final obtido em cada consulta coletiva.

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Situações conflitivas: alguns casos 23

Leia com atenção cada uma das 5 (cinco) seguintes situações de conflito. No

final do módulo, como proposta de atividade, a partir dos conceitos discutidos neste

módulo, vocês deverão responder se essas ações são violentas ou não-violentas, se é

possível mediar ou não.

I -Índia Tuíra - Em 1989, a Eletronorte convocou uma audiência pública para

discutir a construção da usina Kararaô que, segundo os índios da região e o

movimento ambientalista, causaria um grande impacto ambiental. Essa

construção recebia na época financiamento do Banco Mundial. Durante a

audiência, enquanto os guerreiros caiapós gritavam “Kararaô vai afogar nossos

filhos!”, a índia Tuíra tomou a iniciativa, avançou para cima do então presidente

da Eletronorte, José Muniz Lopes, e o advertiu encostando a lâmina do facão em

seu rosto. Essa ação contribuiu para interromper o projeto da usina durante dez

anos e também fez com que o Banco Mundial suspendesse o financiamento

dessa construção.

Fontes: http://www.socioambiental.org/esp/bm/hist.asp -

http://www.amazonia.org.br/noticias/noticia.cfm?id=10496

II. O caso da Ana - Ana, uma mulher negra, procura um pronto-socorro por

causa de uma queimadura leve, que aconteceu durante o trabalho. A sala de

espera estava cheia e bastante movimentada. Após algum tempo de espera, o

médico apareceu na porta e chamou: “Milton Araújo!”. Ninguém se levantou; o

médico chamou de novo “MILTON ARAÚJO!”, o que deixou as pessoas

curiosas. Ana, envergonhada, aproximou-se e disse ao médico em voz baixa:

“Sou eu! Eu havia pedido na recepção que me chamasse pelo nome social, Ana”.

O médico olhou-a indignado e disse: “eu sei, te chamei pelo nome de registro

23 O material foi retirado do Curso de Direitos Humanos e Mediação de Conflitos - Oferta Contínua, realizado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos e pelo Instituto de Tecnologia Social. Disponível em http://cursos.educacaoadistancia.org.br/course/view.php?id=84, acesso em 15/08/2009. Todos que desejem realizar o curso deverão acessar a página http://cursos.educacaoadistancia.org.br/ e inscrever-se, é gratuito e realizado on line.

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propositadamente”. As pessoas perceberam que Ana era uma transexual, ficaram

atônitas, começaram a cochichar e dar risadinhas.

III. Numa festa junina - Laíla, uma criança negra, que sempre teve liderança na

escola, foi escolhida pelos colegas para ser a “rainha do milho” da festa. A

professora elogia Laíla, mas carinhosamente diz para a turma: “Minhas crianças,

vocês já viram algum milho pretinho?” As crianças responderam em coro:

“Nããããoooooo!”. Daí a professora diz “Pois é, eles são todos clarinhos. Por isso,

precisamos escolher uma criança bem bonitinha, loirinha, assim como um

milho”. As crianças ficam confusas, e Laíla sugere: “Se é assim, não deveria ter

rainha do milho, mas sim do amendoim! O amendoim é tão bonitinho como nós;

e a sua casca é da nossa cor. Assim pró, o amendoim também seguiria a cultura,

pois é uma colheita de São João”. A professora ouviu e respondeu: “Certo, mas

nós seguimos a tradição de que, durante o São João, a escola sempre tem uma

rainha do milho. Vou ver se acho alguma criança branquinha...”.

IV. Bancários em greve - um grupo de bancários preocupados em impedir o

acesso de seus colegas ao banco, coloca um tapete de flores na porta do banco,

bem na porta do banco, com o seguinte cartaz: “Não pise nas flores”. V. Gandhi

- Para acelerar o processo de independência da Índia, colonizada pela Inglaterra

– e diante da proibição britânica de que os indianos sequer fabricassem seus

tecidos – Gandhi organizou uma grande queima de tecidos britânicos.

Os exemplos de situações conflitivas números IV e V foram extraídos da obra de

SEIDEL, Daniel (Org.). Mediação de conflitos. Brasília: Vida e Juventude,

2007.

Violência, não-violência e agressividade. Uma área da psicologia diz que a

agressividade faz parte da energia humana e que, dependendo da circunstância, pode se

transformar em violência. A agressividade é como água, pode irrigar ou inundar,

depende de como focamos essa energia; podemos usá-la para coisas boas, colhendo

bons frutos, ou para coisas ruins, gerando a violência. A energia que faz um militante ir

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à rua para uma passeata é, muitas vezes, a mesma que faz outra pessoa quebrar um

ônibus numa greve ou queimar pneus na rua, para impedir a passagem de carros. Como

dissemos, os conflitos fazem parte do ser humano, mas podem ser violentos ou não-

violentos, dependendo da atitude das pessoas. Para resolver problemas, devemos ser

agressivos, mas sem usar da agressão. Ser agressivo significa apresentar nosso ponto de

vista, nossas opiniões e lutar pelo que acreditamos e pelo que defendemos, respeitando

os princípios dos direitos humanos. “A violência não é uma fatalidade inexorável, mas

colocada pelos humanos, [portanto] pode ser retirada e trabalhada pelos mesmos

humanos que a constituíram.” (Se queres a paz, prepara-te para a paz, Marcelo

Guimarães) Nós somos muitas vezes educados para a violência, e precisamos

reconhecer isso se queremos mudar nossa realidade. Não basta reagir à violência ou à

cultura de violência, mas é preciso pensar como construir uma sociedade

verdadeiramente pacifista e uma cultura de paz. A pró-atividade – uma atividade que se

projeta para frente – incluiria, é claro, uma dimensão sanativa, de cuidar e atender às

vítimas da violência, como também uma dimensão preventiva, privilegiando,

especialmente, o caminho educativo. Para Gandhi, “A humanidade somente acabará

com a violência através da não-violência”. Uma das propostas quase sempre apontada

como solução da violência nas cidades é o aumento das polícias. Essa é uma

compreensão que a Roma Antiga tinha da paz – isto é, “Se queres a paz, prepara-te para

a guerra” (Si vis pacem, para bellum). Entretanto, sabemos que a humanidade não

avançará na prática dos direitos humanos apenas por decreto, ou por lei, muito menos

apenas fortalecendo a polícia. O fim da impunidade, por exemplo, é um passo mais

importante para diminuir a violência do que colocar mais polícia na rua.

Violência e conflito Geralmente, violência e conflito são entendidos como a mesma

coisa, mas existem diferenças importantes entre essas duas palavras. Como vimos antes,

a violência é o modo como respondemos a uma determinada situação, prejudicando e

anulando a outra pessoa, ou quando somos anulados e prejudicados por outra pessoa. A

violência não faz parte da natureza humana, mas é aprendida dentro de uma cultura

violenta. Quando pessoas, grupos ou nações apelam para a violência para acabar com

seus conflitos, elas não estão “resolvendo” nada. Muitas vezes, os conflitos apenas

pioram. Quando um dos lados é mais forte que o outro, uma das formas que esse lado se

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utiliza é de não reconhecer a existência de conflitos; negar a existência do conflito

também é uma forma de violência. Quando o lado mais fraco se submete à imposição do

lado mais forte, ele também alimenta a violência por não reagir à imposição autoritária

do outro – isso é o que chamamos antes de passividade, que é diferente do pacifismo.

Negar os conflitos não contribui para uma cultura de paz. Construir uma cultura de paz

exige que reconheçamos a existência de conflitos. Esse é o primeiro passo para resolver

conflitos através do diálogo e de ações não-violentas. Quando você reconhece que o

conflito existe, é o primeiro passo para ouvir o outro lado e começar um diálogo com

respeito e igualdade.

Importante: A violência não faz parte da natureza humana. A violência surge de uma

cultura violenta, que só sabe anular as outras pessoas. Portanto, a violência não é

condição de humanidade.

A não-violência não é passividade A cultura da paz tem sido uma cultura escondida,

guardada viva nas rachaduras de uma sociedade violenta. (BOULDING, 2000, p. 28)

Ser não-violento não é sinônimo do ser passivo, mas sim pacífico. Ser passivo é fechar

os olhos diante de uma situação de injustiça, é aceitar a injustiça ao invés de assumir a

responsabilidade de lutar contra ela. A passividade é causada, em geral, por medo das

conseqüências do enfrentamento, ou por fraqueza de lutar pelas mudanças. A não-

violência nos direitos humanos é feita a partir da participação em um movimento

organizado, articulado e estruturado. Isso leva as pessoas a se incluírem em uma luta

mais ampla, da humanidade que busca a paz. A não-violência também se opõe à contra-

violência, que é uma forma de reagir à violência com outros meios violentos. Para usar

a não-violência como estratégia de enfretamento dos conflitos, podemos usar três

recursos: não-cooperação com as injustiças; intervenção não-violenta e divulgação dos

direitos humanos. No entanto, é preciso cuidados, pois uma determinada concepção da

paz pode esconder o que justifica a violação dos direitos humanos, da pobreza, da

miséria. A violência não se exerce apenas por meio da agressão física ou armamentos,

mas também através de outras formas simbólicas, mas não menos perversas. “Assim

como o broto é na brotação e a semente é na semeadura, a paz é na sua efetuação como

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realidade de Justiça, democracia e direitos humanos”. (Marcelo Rezende Guimarães,

Paz: questão de ressignificação)

Violações dos direitos humanos. O princípio fundamental dos direitos humanos é o

direito à vida. Portanto, agir contra esse direito significa violar os princípios dos direitos

humanos. Para podermos avaliar quando acontece uma violação, precisamos conhecer e

entender os direitos humanos. Quando você se incomoda com algo que acontece em sua

volta, vale a pena refletir para dizer se é ou não uma violação dos direitos humanos.

Dissemos no módulo I que os direitos humanos estão em constante construção. Os

grupos de direitos humanos e os movimentos sociais colaboram nessa construção,

ajudando a sociedade a identificar as violações dos direitos humanos. Por isso, é

importante que todos os militantes conheçam um pouco sobre as lutas de 10

outros movimentos sociais, seus problemas e conquistas, porque assim saberão que os

direitos humanos estão interligados – assim como as violações. Por mais que algumas

violações dos direitos humanos não nos atinjam diretamente, o princípio de uma cultura

de paz passa pelo entendimento de que o sofrimento de alguém também é problema

“meu”. Violar os direitos de qualquer pessoa significa violar os direitos de todos. Por

exemplo, posso não ser negro ou não ser mulher, mas o racismo e o machismo também

são violências contra mim, mesmo não sendo negro ou não sendo mulher. É o que

chamamos consciência humanitária. A consciência humanitária é quando eu me

solidarizo com o problema e com a luta de alguém ou de outro movimento. Para que eu

me solidarize, é necessário que eu conheça a realidade dos outros, seus problemas e suas

lutas. Para isso, preciso ouvi-los e entender que qualquer violação que ele sofra é um

problema para toda a humanidade.

Pausa para reflexão: breve testemunho "Primeiro vieram buscar os judeus e eu não

me incomodei porque não era judeu. Depois levaram os comunistas e eu também não

me importei, pois não era comunista. Levaram os liberais e também encolhi os ombros.

Nunca fui liberal. Em seguida os católicos, mas eu era protestante. Quando me vieram

buscar já não havia ninguém para me defender...”. Martin Niemöller (1892-1984),

sobre sua vida na Alemanha Nazista.

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Conflitos entre os direitos humanos. Sabemos que não é possível fazer mediação entre

o violador dos direitos humanos e as pessoas que tiveram seus direitos violados.

Conforme vimos, os direitos humanos são direitos das vítimas, sejam elas vítimas do

poder econômico ou de outros poderes, muitos deles quase invisíveis. Ao mesmo

tempo, os direitos humanos não são neutros; eles ficam a favor das vítimas e dos grupos

e coletivos que são a parte mais fraca ou vulnerável, e que não pode enfrentar o poder

dos grupos privilegiados em pé de igualdade. Muita gente diz erroneamente que

“demarcar terras para os povos indígenas” ou mesmo reservar “cotas de empregos para

pessoas com deficiência” são formas de assistencialismo que impedem o mercado ser

mais eficiente etc. Ora, não podemos nos esquecer dos valores fundamentais que devem

guiar a nossa conduta. Devemos ter a clareza de que as pessoas devem vir em

primeiro lugar . Nesse caso, o diálogo ainda continua sendo a melhor opção para que

possamos enfrentar o problema da exclusão social e as violações dos direitos humanos.

Direitos humanos na ação do Estado. Quando falamos de Estado (com “E”

maiúsculo), estamos falando do governo em todos os níveis (municipal, estadual e

federal), da Justiça (juízes, promotores e procuradores) e do poder legislativo

(vereadores, deputados e senadores). Todos eles, juntos, formam o “Estado”, que tem

como função principal trabalhar pelo bem do povo e do Brasil. É por isso que os direitos

humanos fazem parte da principal lei brasileira, a Constituição – a lei que todas as

outras leis têm de respeitar e cumprir. A tarefa principal do Estado é a elaboração de

políticas públicas em benefício da promoção dos direitos humanos. Mas acontece que,

pela nossa história de exclusão e autoritarismo, muitas vezes, o Estado (e os governos

que fazem parte dele) também viola os direitos humanos: nos despejos violentos nas

cidades, nas ações de reintegração de posse que terminam com mortos e feridos, nas

polícias que torturam e discriminam partes da população... A mais nobre tarefa da

política consiste em que todas as ações do Estado sejam entendidas na perspectiva

colocada pelos direitos humanos. Não podemos esquecer dos serviços públicos, como

saúde e educação, que são direitos humanos, pois também estamos falando da política

macroeconômica ou da política industrial, que podem incluir grandes obras, como

estradas e usinas de energia hidrelétricas. Este tipo de obra é vista, em geral, como sinal

de progresso e desenvolvimento, mas elas também podem ter impacto muito ruim sobre

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o meio-ambiente, para populações indígenas e quilombolas. Em uma democracia, o

Estado precisa levar todas essas questões em consideração antes de iniciar suas obras e

projetos, e precisa, antes de tudo, contar com participação popular nas suas ações. O

presidente americano Abraham Lincoln disse uma vez que “a democracia é o governo

do povo, pelo povo e para o povo”.

Modos de enfrentamento da violência Do que falamos até agora, podemos entender

que a violência é qualquer violação aos direitos humanos. Para construirmos uma

cultura de paz, é necessário que busquemos diversas formas de enfrentar a violência,

não por meio de violência, mas sim por ações não-violentas. Os exemplos mais

conhecidos são as manifestações e as campanhas. As manifestações sempre estão

ligadas a uma opinião forte, contra ou a favor de algo. Podem ser feitas por meio de

panfletos ou palestras, enquanto ações verbais – ainda que as mais conhecidas sejam as

manifestações de rua. Há também as caminhadas e vigílias, que são muito usadas por

movimentos sociais. Por exemplo, a vigília contra o racismo realizada em São Paulo, as

vigílias feitas em combate a AIDS, ou ainda as Paradas do Orgulho LGBT (Lésbicas,

Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros), que são manifestações contra o

preconceito e as violações de direitos humanos que essas populações sofrem. Outra

forma de ação contra a violência são as campanhas, utilizadas inclusive pelo Estado,

constantemente. São ações que geralmente buscam aliados, promovem idéias e buscam

combater preconceitos. Por exemplo, a Campanha pela Reforma Agrária, lançada em

1991 por Betinho, a Campanha da Fraternidade, que a Igreja Católica organiza no Brasil

todos os anos, e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que atuou pela criação

do Fundef (Fundo para o Desenvolvimento do Ensino Fundamental) e do Fundeb

(Fundo para o Desenvolvimento do Ensino Básico). O abaixo-assinado também é uma

forma de campanha.

Atividades

1) Pensando no que foi apresentado acima e nas discussões feitas em sala de aula, para

realizar essa atividade, solicitamos que você escolha até duas situações conflitivas

expostas no início. Em relação às situações por você escolhidas, e levando em

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consideração o que foi discutido em sala de aula, responda as questões formuladas

abaixo:

I. Sobre a Índia Tuíra. Reflita: A ação da Índia Tuíra é violenta ou não-violenta? Por

quê? Esse conflito pode ser mediado ou não? Justifique.

II. Sobre a Ana, uma mulher negra. Reflita: A ação do médico é violenta ou não-

violenta? Por quê? Esse conflito pode ser mediado ou não? Justifique.

III. Sobre a situação Numa festa junina - Laíla, uma criança negra. Reflita: A ação

da professora é violenta ou não-violenta? Por quê? Essa ação pode ser mediada ou não?

Justifique.

IV. Sobre a situação Um grupo de bancários em greve. Reflita: A ação desses

bancários é violenta ou não-violenta? Por quê? Esse conflito pode ser mediado ou não?

Justifique.

V. Sobre o gesto de Gandhi. Reflita: A ação do líder indiano é violenta ou não-

violenta? Por quê? Essa ação pode ser mediada ou não? Justifique.

2) A partir das situações da questão acima e de outras que você já tenha presenciado,

comente:

I. Você consegue perceber como os direitos humanos contribuem para a resolução de

situação (ou situações) de conflito?

II. Direitos humanos e cidadania estão interligados? Em que medida a solução

encontrada para determinada situação (ou situações) de conflito pode contribuir para a

formação para a cidadania e seu exercício?

3) Como você identifica o exercício dos direitos humanos nas prática educacionais (formal ou não formal)? Descreva em um pequeno texto a partir de sua experiência.

4) Faça um pequeno texto apresentando ou criando experiências no campo da educação (formal ou não formal) que tem como objetivo o combate a violência e a promoção dos direitos humanos.

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Eixo IV

Módulo I

EDUCAÇÃO E VIOLÊNCIA: QUAL O PAPEL DA ESCOLA?

Aida Maria Monteiro Silva Nos últimos anos muito se tem falado de violência, até porque esta passou a fazer parte

do nosso cotidiano, o que explica o interesse em discuti-la. Esta motivação é

comprovada em pesquisa realizada recentemente pelos meios de comunicação, sobre os

problemas que mais inquietam a população. A violência, entre outros, foi destacada por

pessoas de diferentes camadas sociais, como um dos principais problemas,

principalmente aquela que atinge a vida e a integridade física dos indivíduos.

Para que possamos entender melhor os determinantes da violência e o papel da

educação, algumas questões nos parecem pertinentes para ajudar a nossa reflexão. De

que forma a violência é engendrada na nossa sociedade? Quais os valores que têm

norteado as diferentes práticas sociais e entre estas, a educacional? Qual o papel da

educação e da escola diante de uma sociedade com características violentas? Estas são

perguntas fundamentais.

Hoje, a violência está estampada nos grandes centros do nosso país e se apresenta de

diferentes formas. Por isso, para Vera Telles (1996) é mais fácil se falar de violências

no plural, ou seja, a violência urbana, a policial, a familiar e a escolar. Embora

considerando que todas essas manifestações de violência estão imbricadas, vamos dar

um maior destaque, neste texto, à violência escolar, sobretudo a que se manifesta de

forma subjetiva nas relações sociais no interior da escola.

Este problema tomou tamanhas proporções que está sendo visto como de âmbito

mundial e também como uma questão de utilidade pública, pois sua manifestação se

propaga em proporções semelhantes às das doenças infecciosas, uma vez que afeta as

grandes metrópoles (Gilberto Dimenstein 1996). Portanto, esta problemática não é uma

caraterística apenas da sociedade brasileira. Outras sociedades da América Latina e da

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América Central também vivem experiências de taxas elevadas de violações dos direitos

humanos, inclusive a violação do direito à vida é muito freqüente, como é o caso do

Peru, Colômbia, Bolívia, El Salvador e Guatemala (Sérgio Adorno, 1994).

Em relação ao Brasil, não podemos desconsiderar a história da formação do nosso povo,

com a escravidão gerando comportamentos de servidão, de mando e de submissão, em

que o indivíduo é desrespeitado na sua condição fundamental de pessoa humana e

tratado como "objeto" de manipulação dos seus "proprietários".

Sérgio Adorno (1994) chama a atenção para o fato de que, durante o período

monárquico, a sociedade resolvia os seus conflitos relacionados à propriedade, ao

monopólio do poder, e à raça, utilizando, de um modo geral, o emprego da violência. E

este era considerado um comportamento normal, legítimo e por ser rotineiro passava a

ser institucionalizado. É como se fosse um processo natural, justificando até uma certa

aquiescência da sociedade.

Ao longo da história do nosso país, o que se tem observado é que mesmo com a

implantação do regime republicano, cujo fundamento básico é o bem comum e o bem

público a todos os cidadãos, esse quadro de violência pouco se modificou, até porque no

campo político temos convivido com várias alternâncias de regimes autoritários,

ditatoriais, que implodiram o direito de liberdade dos indivíduos. Estes foram períodos

que trouxeram elevados custos à convivência democrática do nosso povo, com

violações do direito à vida e inúmeras mutilações físicas.

Esta realidade do nosso país serve para desmascarar a imagem tradicional de que o

brasileiro "é um povo sentimental, ordeiro e pacífico", conforme coloca Maria Victória

Benevides (1996).

O fato de a sociedade brasileira ser organizada e determinada por um modelo

econômico capitalista extremamente excludente, caracterizado por uma grande

concentração de renda, aliás, uma das maiores do mundo, este se constitui em um dos

principais fatores da desigualdade e da violência. 50% da renda do país fica nas mãos de

10% da população, enquanto que os 20% da população mais pobres detém apenas 2,1%

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dessa renda (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento-PNUD,1994). As

relações são profundamente desiguais. Essas grandes diferenças geram privilégios para

alguns e, conseqüentemente, a ausência de direitos para muitos.

É a sociedade do mundo capitalista que valoriza, essencialmente, o consumo, as coisas

materiais, a aparência em detrimento da essência da pessoa humana. É um total

desvirtuamento do significado de ser gente, ser sujeito, ser pessoa. Valores como

solidariedade, humildade, companheirismo, respeito, tolerância são pouco estimulados

nas práticas de convivência social, quer seja na família, na escola, no trabalho ou em

locais de lazer. A inexistência dessas práticas dão lugar ao individualismo, à lei do mais

forte, à necessidade de se levar vantagem em tudo, e daí a brutalidade e a intolerância.

A violência perpassa as diferentes relações sociais e aparece de forma explícita nos

meios de comunicação de massa, principalmente na mídia televisiva. São vários os

programas que enfatizam e reproduzem, com veemência, atos de violência e até de

barbárie que acontecem freqüentemente nas sociedades em geral. Além disso, a

televisão comumente apresenta programas com "brincadeiras" desrespeitosas em que os

indivíduos são usados como objeto sarcástico. Até os programas infantis não fogem a

essa conotação violenta.

Esta questão da influência da mídia eletrônica é destacada por alunos de um conjunto de

escolas localizadas no Município de São Paulo, onde realizamos uma pesquisa sobre a

percepção que alunos, professores e direção da escola têm em relação à problemática da

violência urbana e escolar (Aida Silva-1995). Os alunos, de forma unânime, afirmaram

que há uma tendência das pessoas em "copiarem" os programas da televisão, a ponto de

determinadas atitudes virarem moda entre as crianças e os jovens. E eles vão mais além,

defendem a necessidade de um disciplinamento para o horário e a freqüência de

programas que têm conotação violenta.O alerta que esses jovens nos trazem, merece ser

apreciado com mais atenção, até porque a televisão é um dos meios de comunicação que

está presente em praticamente todos os lares da nossa população e boa parte do tempo

das crianças é ocupado com a televisão.

É neste contexto que entendemos a violência, enquanto ausência e desrespeito aos

direitos do outro. É como dizem os sujeitos dessa pesquisa: "violentar é romper a

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liberdade e os direitos do cidadão. É alguém que passa dos limites e invade a

privacidade do outro. É a falta de solidariedade e o desrespeito aos direitos humanos".

Na verdade a escola também reflete o modelo violento de convivência social. E o mais

grave é que muitos educadores não se apercebem como violadores dos direitos dos

alunos. É o que podemos chamar de violência simbólica, que segundo Dulce Whitaker

(1994), "ajuda não só a obscurecer a violência que está no dia-a-dia, no cotidiano, como

também a esconder suas verdadeiras causas". É a violência sutil que, em geral, não

aparece de forma tão explícita e serve para escamotear e dissimular os conflitos.

E ainda essa mesma autora chama a atenção porque muitas vezes "os professores não se

dão conta de que o que torna as crianças apáticas, não são propriamente os conteúdos

ministrados, mas sim o ponto de partida da ação pedagógica que se apresenta carregado

de autoritarismo e, portanto, de violência simbólica".

Na pesquisa a que nos referimos anteriormente sobre a percepção dos alunos e

educadores em relação à violência urbana e escolar, esta visão da escola enquanto

espaço de violência é destacada pelos alunos, e estes exemplificam como esta se

manifesta: "quando o professor fala: este aluno está ferrado comigo" (isto porque o

aluno era indisciplinado), ou então, "este aluno não quer nada com a escola e por mim

está reprovado". E o mais interessante é que os professores não vêm estas formas de

relacionamento com os alunos como desrespeitosas ou violentas. Para estes, a violência

na escola aparece, basicamente, na relação entre os alunos e destes para com o

professor. Era como se o professor pudesse ficar isento de tais práticas, mas, na verdade,

todos nós somos produtos do conjunto das relações sociais de uma determinada

sociedade da qual fazemos parte. Daí a importância de termos conhecimento de como

essas relações são produzidas para podermos pensar alternativas de superação.

E qual é o papel da educação e da escola nesse contexto? Se entendemos que a educação

é um processo de construção coletiva, contínua e permanente de formação do indivíduo,

que se dá na relação entre os indivíduos e entre estes e a natureza, a escola é, portanto, o

local privilegiado dessa formação, porque trabalha com o conhecimento, com valores,

atitudes e a formação de hábitos.

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Dependendo da concepção e da direção que a escola venha assumir, esta poderá ser

local de violação de direitos ou de respeito e de busca pela materialização dos direitos

de todos os cidadãos, ou seja, de construção da cidadania.

Entendemos que um projeto de escola que busque a formação da cidadania, precisa ter

como objetivos: tratar todos os indivíduos com dignidade, com respeito à divergência,

valorizando o que cada um tem de bom; fazer com que a escola se torne mais atualizada

para que os alunos gostem dela; trabalhar a problemática da violência e dos direitos

humanos, a partir do processo de conscientização permanente, relacionanado esses

conteúdos ao currículo escolar; incentivar comportamentos de trocas, de solidariedade e

de diálogos, como bem coloca Renata Aguirre - aluna da 8ª série da Escola Municipal

de São Paulo -, "a violência é a força bruta contra alguém.

Quem prática a violência é burro, covarde, porque somos seres humanos e a única coisa

que nos diferencia dos animais é a capacidade de pensar e de falar. Se nós temos a

capacidade de usar palavras, para que usar a força bruta? É isso que as pessoas precisam

entender".

E para Vera Candau e outras (1995), é importante que "a escola seja um espaço onde se

formam as crianças e os jovens para serem construtores ativos da sociedade na qual

vivem e exercem sua cidadania" e essas autoras, referendando Sime (1991), chamam a

atenção no sentido de que esta proposta educativa deve ter como eixo central a vida

cotidiana, vivenciando "uma pedagogia da indignação e não da resignação. Não

queremos formar seres insensíveis e sim seres capazes de se indignar, de se escandalizar

diante de toda forma de violência, de humilhação. A atividade educativa deve ser

espaço onde expressamos e partilhamos esta indignação através de sentimentos de

rebeldia pelo que está acontecendo". Assim, acreditamos, que esta deva ser a nossa

utopia.

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Bibliografia

1-ADORNO, Sérgio-Violência: um retrato em branco e preto-In Revista Idéias-nº 21-

FDE-SP-1994.

2-BENEVIDES, Maria Victória - A Violência é Coisa Nossa - In A Violência no

Esporte - vários autores-Secretaria. da Justiça e da Defesa da Cidadania-SP-1996

3-CANDAU, Vera e outras-Oficinas Pedagógicas de Direitos Humanos-Vozes-RJ-

1995.

4-DIMENSTEIN, Gilberto - A Epidemia da Violência - Folha de São Paulo- 22/09/96.

5-SILVA, Aida Monteiro - A Violência na Escola: a percepção dos alunos e

professores-1995-mimeo.

6-TELLES, Vera-Violência e Cidadania-InViolência no Esporte-vários autores -

Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania-SP-1996

7-WHITAKER, Dulce-Violência na Escola-In Revista Idéias-nº 21-FDE-SP-1994

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Módulo II

Educação Moral e Política de Crianças e Direitos Humanos

Maria Fernanda Salcedo Repolês

O homem moderno (...) não poderia encontrar nenhuma expressão mais clara

para sua insatisfação com o mundo, para seu desgosto com o estado de coisas,

que a sua recusa a assumir, em relação às crianças a responsabilidade por tudo

isso. É como se os pais dissessem todos os dias: - Neste mundo, mesmo nós

não estamos muito a salvo em casa; como se movimentar nele, o que saber,

quais habilidades dominar, tudo isso também são mistérios para nós. Vocês

devem tentar entender isso do jeito que puderem; em todo caso, vocês não têm

direito de exigir satisfações. Somos inocentes, lavamos as nossas mãos por

vocês. (ARENDT, 1992: 241-242)

A modernidade ocidental está permeada por duas tradições do pensamento de

filosofia política. Por um lado, a tradição liberal destaca a ruptura entre pré-modernidade e

modernidade e busca o ideal de fundação do mundo a partir de um ponto zero, tendo como

substrato ideológico os ideais revolucionários de igualdade, liberdade e fraternidade. Por

outro, a tradição republicana quer reencontrar e restabelecer o elo entre passado e futuro,

entre tradição e construção do novo, de maneira que a fundamentação do futuro a partir da

tradição signifique, ao mesmo tempo, o resgate crítico do passado que dá sentido ao

presente e ao futuro fundado.

O presente artigo parte desse pressuposto teórico para discutir o papel da

educação infantil na formação do ethos – ou seja, de um conjunto de valores

compartilhados – a partir do qual seja possível gerar uma cultura de direitos humanos que

se reproduza nas práticas sociais e políticas. Dessa perspectiva, a educação teria dois

papéis a cumprir: o primeiro, o de preservação e de rememoração do pacto fundador da

sociedade; o segundo, o de desenvolvimento de um projeto político de construção da

societas civilis, de uma sociedade, desde sempre política, de cidadãos que se auto-

determinam por mecanismos de formação de opinião e de vontade que os tornam capazes

não apenas de reproduzirem o ethos, como também de o questionarem e transformarem.

(HABERMAS, 1997)

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No cumprimento desses papéis, a escola é um espaço intermediário entre a

esfera pública e a esfera privada, entre o lugar da política e o da família, e encarregada de

fazer a transição entre esta e aquela de maneira a inserir as crianças, paulatinamente, no

mundo. A escola é neste contexto um simulacro do mundo, lugar onde a criança pode ir

testando aos poucos a sua capacidade de adaptação.

O educador é, por sua vez, um representante do mundo coletivo, cuja função é

de guardião e de transmissor da tradição, de forma que uma vez que a criança compreenda

e conheça a tradição, enquanto cidadã adulta possa transformá-la e criticá-la. A base da

autoridade do professor está nessa tarefa, na medida em que ao cumpri-la ele assume frente

à criança a responsabilidade pelo mundo coletivo, ele diz: nós - a comunidade na qual você

encontrou ao nascer - fizemos este mundo, com base em certos valores. Construa a partir

disso quando for adulto e tiver capacidade de participar da vida política da comunidade.

Adicionalmente, o professor tem o desafio de utilizar a atividade educativa

como o exercício da atividade política (ROUSSEAU, 1995). Mas de maneira cautelosa,

pois lida com seres em formação que não tem ainda uma personalidade estruturada para

fazer frente aos conflitos da esfera pública. Supõe-se, inclusive, que as crianças estejam, de

certa maneira, ocultas a esses conflitos na proteção de seu lar. Então, a atitude do

educador diz respeito à manutenção de um compromisso político e moral do cidadão nas

duas esferas, sendo ele responsável pela construção e manutenção da comunidade política,

que, por sua vez, depende da proteção à esfera privada, dos direitos subjetivos e da

personalidade de seus alunos.

Assim, o papel da educação insere-se no equilíbrio entre as duas tradições de

filosofia política. A tradição liberal nos mostra a importância da educação para a

emancipação política do ser humano. A construção dessa emancipação política pressupõe

que a liberdade e os direitos privados são pontos de partida para o desenvolvimento de

direitos também na esfera pública. Ao mesmo tempo os direitos privados são garantidos

por meio da esfera pública mediante o seu reconhecimento como direitos fundamentais.

Portanto há uma interdependência e um círculo virtuoso entre direitos públicos e direitos

privados. Essa interdependência se revela até mesmo na educação no lar, pois mesmo

nela, exige-se que os pais reconheçam nos filhos, desde o nascimento, o status de seres

humanos livres e racionais. Graças a essa compreensão, o Iluminismo modificou a visão

sobre pátrio poder. Este foi estabelecido como um poder temporário e relativo,

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compartilhado igualmente pelo pai e pela mãe e cuja função precípua é a de auxiliar a

criança a chegar à idade em que se tornará um adulto livre e igual aos pais, e, portanto,

plenamente capaz de exercer a cidadania e conhecer as leis pelas quais ele guiará a sua

conduta. (LOCKE, 1993: capítulo VI). A tradição liberal concretizou esse projeto com a

universalização do acesso à escola. Porém a preparação da escola para a cidadania

restringe-se, nessa tradição, à defesa dos direitos privados, o que leva a uma concepção

individualista e desgarrada das gerações passadas.

A respeito dessa crítica à tradição liberal, Hannah Arendt reflete que a

modernidade rompe o elo condutor que nos guiava e nos ligava com cada geração anterior,

rompendo, com isso, o fundamento da autoridade, justamente o fator de permanência e

segurança do mundo. (ARENDT, 1992-2) As revoluções modernas são uma tentativa

fracassada de reconstruir este elo, este fundamento novo, mantendo-se a política numa

crise de autoridade:

Pois, se estou certa ao suspeitar que a crise do mundo atual é basicamente de

natureza política, e que o famoso "declínio do Ocidente" consiste

fundamentalmente no declínio da trindade romana de religião, tradição e

autoridade, com o concomitante solapamento das fundações especificamente

romanas de domínio político, então as revoluções da época moderna parecem

gigantescas tentativas de reparar essas fundações, de renovar o fio rompido da

tradição e de restaurar, mediante a fundação de novos organismos políticos,

aquilo que durante tantos séculos conferiu aos negócios humanos certa medida

de dignidade e grandeza. (ARENDT, 1992-2: 185)

A partir dessa crítica é possível perceber a contribuição da tradição

republicana. A educação adquire um caráter político quando trabalha o papel e a

importancia da autoridade como exemplo de grandeza para as gerações subsequentes. O

reestabelecimento do lugar da autoridade na educação está concatenado à proposta de ser

esta uma forma de construção da comunidade ética. Essa construção é, para a tradição

republicana, a única garantia que temos de que a educação se transforme num projeto

político comunitário e compartilhado e não num mero plano de dominação. (ARENDT,

1992-2: 161)

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Uma comunidade ética tem como principal questão “quem somos?”. Para a

proposta republicana, a esfera pública tem a tarefa fundamental de responder a essa

questão de identidade, mediante o resgate do elo perdido entre passado e futuro, por meio

da constante rememoração e solicitação do simbolismo do pacto fundador. Esse trabalho

de rememoração é árduo na medida em que a educação serve para nos ensinar a distinguir

entre o que deve ser conservado e o que deve ser rejeitado no processo histórico de

conformação de nossa identidade. Na medida em que ele é feito, torna-se evidente a

pluralidade de visões e de tradições que nos conformam. A resposta à pergunta “quem

somos?” é diversa e complexa, até mesmo contraditória, e inclui concepções distintas do

que deva ser e quem deva exercer o poder. E a educação deve ser capaz de mediar essa

pluralidade, problematiza-la e permitir a sua sustentação.

Como fazer com que a proposta de mediação das duas tradições filosóficas que

influenciam a educação seja implementada, principalmente entre alunos do ensino

fundamental? O exercício que descrevemos a seguir é inspirado nas incursões teóricas de

Lawrence Kohlberg sobre os estágios de desenvolvimento moral. O pressuposto de

Kohlberg é que desenvolvemos nossa inteligência moral quando discutimos uns com os

outros sobre os princípios e valores que impulsionam nossa ação. A atividade busca

provocar esse debate e a partir dele, desenvolver a habilidade dos alunos de discutirem

sobre seus valores e seus planos de vida. A discussão permitirá chegar a uma base de

valores comuns porque compartilhados entre os membros do grupo. E essa base será

utilizada para a elaboração de um código de conduta do grupo que mimetiza o processo

de elaboração de leis, dando a dimensão concreta de um ethos que pode ser vivenciado

no cotidiano da sala de aula. Supomos que práticas como esta, introduzidas nas

relações escolares são capazes de contribuir decisivamente para a formação de uma

cultura de democracia e de direitos humanos, não apenas no plano teórico e cognitivo,

mas fundamentalmente no plano da práxis, em um nível ético e político, como, aliás,

mostram diversas experiências efetivadas (KOHLBERG, 1981).

Você deverá tirar cópias de cada uma das quatro situações aqui apresentadas

e distribuir em sala de aula de maneira que cada aluno tenha oportunidade de ler e

responder às quatro. Sugerimos que tire algumas cópias de cada situação e os alunos

irão passando para frente a situação já respondida e pegando outra que ainda não

responderam até todas as quatro circularem por todos os alunos. Basta o aluno escrever

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uma resposta rápida, porém fundamentada, que lhe ajude a sistematizar sua opinião no

segundo momento de debate. Essa primeira etapa não deve durar mais do que 40

minutos. É o debate que tem que ser priorizado. A etapa deverá sofrer uma adaptação

caso os alunos não sejam ainda alfabetizados. Nesse caso, você deverá ler cada situação

e promover um debate entre os alunos, seguindo para a seguinte etapa a cada situação.

Na medida em que os alunos forem discutindo, você deverá captar quais princípios e

valores são mencionados nas respostas e deverá escrevê-los no quadro. (por exemplo:

“temos que ser solidários com nossos colegas”; “não podemos mentir”; “é errado

delatar”; “temos que ajudar os amigos”; “mesmo que a pessoa não seja nossa amiga,

temos que prestar socorro”; “todos os colegas são iguais e tem os mesmos direitos”) No

final, essas respostas nos fornecerão uma lista de “princípios e valores” compartilhados

pela turma.

Se você, professor, quiser levar esse exercício além, sugerimos completá-lo

com a seguinte atividade. A turma rediscute a lista de princípios e valores

compartilhados e com base nela inicia um “processo legislativo”. Ou seja, se reúne para

elaborar um código de conduta em sala de aula. Esse código tem como limitadores as

leis vigentes no país e as regras instituídas pela escola. Por exemplo, não é possível

determinar que os alunos não tenham provas. As regras de como fazer o código, o

quorum de votações, quem fará o quê será determinado pela turma sob a sua regência.

Não se esqueça de elaborar sanções para o cumprimento e descumprimento do

estabelecido. No final, o código será lido e votado pela turma, conformando um sistema

de regras interno.

Espera-se com esses exercícios que os alunos amadureçam os seus conceitos

e idéias do que é Justiça e como ela pode ser aplicada. Que percebam também as

dificuldades inerentes ao processo de resolução de conflitos morais e seu reflexo sobre a

prática. Espera-se igualmente, que eles sejam capazes de concretizar princípios morais

em regras de ação específicas voltados para a prática cotidiana, no caso, para suas

relações entre colegas e entre alunos e professor. Acreditamos que práticas como essa

podem levar os alunos a desenvolver habilidades fundamentais para o exercício futuro

da cidadania, do respeito mútuo e da autodeterminação.

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Situação 1

Numa escola X, alguns alunos de determinada turma não têm condições de comprar os

livros e o material solicitados para o trabalho escolar. Renata, uma das alunas, sugere

que os alunos que tem condições, coloquem à disposição o material deles para ser usado

por todos. Entretanto, metade dos alunos não concorda.

A professora deve aceitar ou não a sugestão de Renata, determinando que todos

disponibilizem seu material para uso? Por quê?

Situação 2

Na distribuição de tarefas entre os alunos da aula de ciências, a turma é dividida em

grupos de trabalho. As instruções para cada grupo são dadas em particular. Coube ao

grupo de Fernando, José e Larissa alimentar os animais do laboratório durante o

semestre. O grupo não providenciou o alimento e os animais começaram a morrer. Ao

ver que os animais morriam, o professor indagou à turma o que estava acontecendo.

Com medo do castigo, o grupo não confessou que o erro foi seu, e o professor, então,

resolveu castigar toda a turma se ninguém explicasse o que aconteceu. Somente João

sabe que o grupo de Fernando, José e Larissa se esqueceu de cumprir sua tarefa.

João deveria contar isto à professora? Por quê?

Situação 3

A escola X resolve promover um concurso entre as turmas e aquela que sair vencedora

ganhará um passeio a um belo hotel fazenda com todas as despesas pagas e com direito

a levar os pais. Um dos alunos não contribui para que a turma vença o concurso, e

mais, ainda acaba por provocar uma briga entre os colegas.

Ele deve participar do passeio? Por quê?

Situação 4

No dia da prova, Camilo esquece o lápis. O único colega que tem um lápis extra é

Pedro, que não gosta de Camilo. Pedro então esconde o lápis para não ter que

emprestar.

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Mariana toma o lápis de Pedro escondido e dá a Camilo. Ao ver Camilo com seu lápis,

Pedro fica furioso e exige que a professora puna Camilo por “roubado” o lápis.

Camilo deve contar que foi Mariana que pegou o lápis?

Referências bibliográficas:

ARENDT, Hannah. A Crise na Educação. In Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 1992.

ARENDT, Hannah. Que é autoridade? In Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 1992.

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

1997.

HABERMAS, Jürgen. A esfera pública 30 anos depois. Tradução de Vera Lígia C. Westin e Lúcia

Lamounier. In: Caderno de Filosofia e Ciências Humanas, ano VII, n. 12, p. 7-28, Belo Horizonte: Centro

Universitário Newton Paiva, abril 1999.

KOHLBERG, Lawrence. Approach to moral education. Nova Iorque: Columbia University Press, 1991.

KOHLBERG, Lawrence. The Philosophy of Moral Development: moral stages and the idea of justice. Nova

Iorque: Harper & Collins, 1981.

LOCKE, John. Segundo Tratado de Governo. São Paulo: Abril Cultural, 1993.

REPOLÊS, Maria Fernanda Salcedo. Habermas e a Desobediência Civil. Belo Horizonte: Mandamentos,

2003.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Emílio ou da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

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Para reflexão:

I. Por que o ser humano precisa ser educado?

II. Qual deve ser a relação entre educação e política?

Avaliação do módulo:

Escreva uma redação fazendo sua avaliação sobre as seguintes questões com base na

leitura do texto, nas questões para reflexão e nas discussões durante o módulo:

I. O texto parte do pressuposto de que a escola é um estágio intermediário entre

esfera pública e esfera privada e que a criança estaria ainda protegida no espaço

privado contra a complexidade do debate público. Quais as dificuldades na

relação entre esfera pública e esfera privada que você vislumbra tendo em vista

condições socioeconômicas pelas quais crianças não encontram o espaço de

proteção pressuposto?

II. Responda às situações do exercício e registre sua opinião nesta redação. Avalie

quais os principais valores que conduzem as suas respostas. Quais as

principais regras que você considera fundamentais para a convivência entre

professor e aluno em sua experiência escolar?