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119 | 2 | Poder Constituinte X | 2 | Poder Constituinte Sumário: 1. Introdução: 1.1. Um conceito preliminar de Poder Constituinte; 1.2. Revelar, dizer ou criar uma Constituição? – 2. Três Leituras Concorrentes no Discurso Jurídico Atual – 3. Poder Consti- tuinte Originário: 3.1. Conceito e natureza jurídica; 3.2. Classificação; 3.3. Características do Poder Constituinte Originário; 3.4. Titularidade do Poder Constituinte Originário; 3.5. Poder Constituinte Originário e direitos adquiridos; 3.6. Dinâmica constitucional – 4. Poder Constituinte Derivado de Reforma da Constituição: Espécies e Limitações: 4.1. Análise Específica do Poder Constituinte Deri- vado de Revisão da Constituição; 4.2. Análise Específica do Poder Constituinte Derivado de Refor- ma via Emendas – 5. Poder Constituinte (Derivado) Decorrente: Espécies, Caracteres e Limitações – 6. Poder Constituinte e Patriotismo Constitucional: Uma Releitura Contemporânea e Sofisticada da Teoria do Poder Constituinte. 1. INTRODUÇÃO 1.1. Um conceito preliminar de Poder Constituinte Inicialmente, podemos apresentar uma definição do que seja o Poder Cons- tituinte, partindo da afirmação presente em quase todos os manuais de Direito Constitucional brasileiros, como sendo aquele poder ao qual incumbe criar ou ela- borar uma Constituição, alterar ou reformar uma Constituição e complementar uma Constituição. Daí os termos Poder Constituinte Originário (criar), Poder Constituinte Derivado-Reformador (alterar), Poder Constituinte Decorrente (complementar). Sua origem se dá quando surgem as Constituições escritas. Certo é que ele nasce como poder no movimento do constitucionalismo, no século XVIII, que vai inaugurar as Constituições escritas. É esse movimento que vai trazer o Poder Cons- tituinte Originário. Inegável, portanto, a contribuição teórica trazida por Emmanuel Sieyès 1 – que escreveu o livro O que é o Terceiro Estado?, em 1788. Sieyès separa o Poder Consti- tuinte dos seus poderes constituídos: o Poder Constituinte institui uma nova ordem, a Constituição, marcando nitidamente uma diferença entre o ato de criação de uma Constituição e os atos jurídicos subsequentes – subordinando esses atos à Consti- tuição. Portanto, detentores e destinatários do poder teriam que respeitar o do- cumento produzido (pactuado) pelos mesmos (pela nação, nos termos de Sieyès), pois ambos, como já dito, eram constituídos pelo Poder Constituinte e sua a obra: a Constituição. 1. O que é o terceiro Estado? Tudo. O que tem sido ele até agora na ordem política? Nada. O que ele pode ser? Pelo menos alguma coisa. Daí a ideia de um poder legítimo com titularidade na nação para elaborar uma Constituição para a França.

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Curso de Direito Constitucional

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    X | 2 | Poder Constituinte

    Sumrio: 1. Introduo: 1.1. Um conceito preliminar de Poder Constituinte; 1.2. Revelar, dizer ou criar uma Constituio? 2. Trs Leituras Concorrentes no Discurso Jurdico Atual 3. Poder Consti-tuinte Originrio: 3.1. Conceito e natureza jurdica; 3.2. Classificao; 3.3. Caractersticas do Poder Constituinte Originrio; 3.4. Titularidade do Poder Constituinte Originrio; 3.5. Poder Constituinte Originrio e direitos adquiridos; 3.6. Dinmica constitucional 4. Poder Constituinte Derivado de Reforma da Constituio: Espcies e Limitaes: 4.1. Anlise Especfica do Poder Constituinte Deri-vado de Reviso da Constituio; 4.2. Anlise Especfica do Poder Constituinte Derivado de Refor-ma via Emendas 5. Poder Constituinte (Derivado) Decorrente: Espcies, Caracteres e Limitaes 6. Poder Constituinte e Patriotismo Constitucional: Uma Releitura Contempornea e Sofisticada da Teoria do Poder Constituinte.

    1. INTRODUO

    1.1. Um conceito preliminar de Poder Constituinte

    Inicialmente, podemos apresentar uma definio do que seja o Poder Cons-tituinte, partindo da afirmao presente em quase todos os manuais de Direito Constitucional brasileiros, como sendo aquele poder ao qual incumbe criar ou ela-borar uma Constituio, alterar ou reformar uma Constituio e complementar uma Constituio. Da os termos Poder Constituinte Originrio (criar), Poder Constituinte Derivado-Reformador (alterar), Poder Constituinte Decorrente (complementar).

    Sua origem se d quando surgem as Constituies escritas. Certo que ele nasce como poder no movimento do constitucionalismo, no sculo XVIII, que vai inaugurar as Constituies escritas. esse movimento que vai trazer o Poder Cons-tituinte Originrio.

    Inegvel, portanto, a contribuio terica trazida por Emmanuel Sieys1 que escreveu o livro O que o Terceiro Estado?, em 1788. Sieys separa o Poder Consti-tuinte dos seus poderes constitudos: o Poder Constituinte institui uma nova ordem, a Constituio, marcando nitidamente uma diferena entre o ato de criao de uma Constituio e os atos jurdicos subsequentes subordinando esses atos Consti-tuio. Portanto, detentores e destinatrios do poder teriam que respeitar o do-cumento produzido (pactuado) pelos mesmos (pela nao, nos termos de Sieys), pois ambos, como j dito, eram constitudos pelo Poder Constituinte e sua a obra: a Constituio.

    1. O que o terceiro Estado? Tudo. O que tem sido ele at agora na ordem poltica? Nada. O que ele pode ser? Pelo menos alguma coisa. Da a ideia de um poder legtimo com titularidade na nao para elaborar uma Constituio para a Frana.

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    1.2. Revelar, dizer ou criar uma Constituio?

    O clebre constitucionalista portugus J. J. Gomes Canotilho, em seu manual de Direito Constitucional, inicia o estudo do Poder Constituinte lanando quatro per-guntas que teriam a pretenso de nortear (e talvez at esgotar o estudo do tema):

    1) o que o poder constituinte?;

    2) quem o titular desse poder?;

    3) qual o procedimento e forma do seu exerccio?; e

    4) existem ou no limites poltico-jurdicos ao seu exerccio?

    A resposta a tais indagaes constituiria um roteiro para o desenvolvimento do tema e, ao que parece, se transformou na bssola de referncia para quase todos os manuais de Direito Constitucional que se prestam a ventilar sobre o tema (talvez, at seja duvidoso um manual que se esquive de apresent-lo).

    Todavia, antes de adentrar em um debate que procure responder tais indaga-es pela via de uma abordagem dogmtico-constitucional, o professor de Coimbra lana-se a um estudo histrico-gentico, perquirindo a gnese do Poder Constituin-te. Para tanto, seu estudo guia-se por trs expresses que ganham significado e dimensionam trs momentos fundamentais do constitucionalismo moderno: revelar, dizer e criar a Constituio. Isso porque

    [...] os ingleses compreendem o poder constituinte como um processo histrico de revelao da constituio de Inglaterra; os americanos dizem num texto es-crito, produzido por um poder constituinte the fundamental and paramount law of the nation; os franceses criam uma nova ordem jurdico-constitucional atravs da destruio do antigo e da construo do novo, traando a arquitetura da nova cidade poltica num texto escrito a constituio. Revelar, dizer e criar uma constituio so os modi operandi das trs experincias constituintes.2

    Na tradio inglesa, que comea no perodo medieval, a aristocracia feudal desconhecia a figura da constituio como instrumento de limitao do poder do Monarca. Para tanto, faziam pactos cujo fundamento era assegurar seus privilgios hereditrios j fixados em velhas leis de direito (good old laws), que nada mais eram que um corpus costumeiro de normas transcritas em documentos escritos. Por isso, mesmo as magnas cartas como o caso da de 1215 no podem ser tomadas como exemplo de constituio nem em um sentido embrionrio , j que nunca tiveram por objetivo a criao de uma nova ordem poltico-jurdica a partir de um ator abstrato (povo ou nao). Trata-se, portanto, de instrumentos necessrios manuteno do equilbrio dos poderes medievais, uma vez que apenas traduzem (revelam) o que a tradio e os costumes deixaram inscritos.3

    2. CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da Constituio, 5. ed., p. 68-69. Outra obra que ir lanar mo de uma abordagem histrico-gentica NEGRI, Antonio, O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade.

    3. CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da Constituio, 5. ed., p. 69.

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    O constitucionalismo norte-americano, por outro lado, parte de outra premissa. A partir de sua construo preambular We the people , temos a indicao de um Poder Constituinte capaz de trazer para realidade jurdica uma Constituio que registre um conjunto normativo protetivo: (1) da ideia de povo como autoridade poltica superior; (2) da subordinao do Legislativo s leis que ele mesmo produz e Constituio; (3) de um sistema equilibrado de interao entre os Poderes constitudos (checks and balances); e (4) de um conjunto de direitos oponveis aos Poderes Pblicos direitos fundamentais. Assim, mais que uma carta de intenes um projeto para o futuro a Constituio Norte-Americana se mostra exercvel a todos os cidados desde sua promulgao, dizendo a eles quais so seus direitos fundamentais (ainda baseados no trip liberdade, igualdade e propriedade). Esses direitos se revelam, assim como as demais normas presentes no texto constitucio-nal, superiores a todos os demais existentes no plano infraconstitucional, o que vem tambm a inaugurar a perspectiva de que a Constituio no apenas um conjunto de normas, mas um corpo superior a todas as outras normas (supremacia da Constituio).4

    Por fim, na tradio francesa, incorpora-se a ideia de Nao como titular do Poder Constituinte, que, por sua vez, seria capaz de criar uma nova ordem poltico--jurdico-social, que romperia com a tradio do Antigo Regime, projetando-se para o futuro. A Constituio, ento, por meio de seu criador, a Nao, surgiria do nada (ex nihilo)5 rompendo com o passado de opresso e criando uma sociedade nova, mais solidria entre cidados politicamente ativos.6

    2. TRS LEITURAS CONCORRENTES NO DISCURSO JURDICO ATUAL

    Ao longo dos estudos que optaram por uma abordagem dogmtico-constitu-cional sobre a figura do Poder Constituinte, pode-se observar a existncia de trs agrupamentos tericos (ou momentos tericos), reunindo um conjunto de tradies e vises de mundo sobre o tema: Tradicional, Moderno e Contemporneo.

    Todavia, j aqui vai o alerta de que a quase totalidade dos manuais olvidam (ou desconhecem) tal diferenciao, limitando-se construo de uma narrativa que mistura a viso tradicional com a viso moderna e deixam de lado a viso contem-pornea de maior complexidade , talvez, na busca do desenvolvimento de uma

    4. CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da Constituio, 5. ed., p. 70-71.

    5. [...] o caso americano em tudo distinto do caso francs. Distinta a interpretao do ato revolucionrio: trata-se, no primeiro caso, de libertar as foras espontneas da auto-regulao a fim de que se coadunem com o direito natural; no segundo caso, porm necessrio impor ex novo a concepo jusnaturalista contra um poder desptico. Distinta a relao com o Estado: na Amrica, trata-se de resistir a um poder colonial; na Frana, de construir uma nova ordem. (NEGRI, Antonio, O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, p. 33).

    6. CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da Constituio, 5. ed., p. 71-72.

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    Teoria Geral do Poder Constituinte.7 A tentativa de construo, ento, de uma verso didtica de uma explanao sobre o Poder Constituinte adequada a presente pro-posta um desafio que faz com que abordemos a parte a viso contempornea, que recebe importantes contributos da tese do patriotismo constitucional de Jrgen Habermas.

    A verso clssica8 da teoria do Poder Constituinte , principalmente, oriunda dos trabalhos de autores como Burdeau, Duguit, Carr de Malberg e Esmein.9 Aqui, o Poder Constituinte na modalidade originria, seria o poder de fato (no jurdico), criador de uma nova ordem jurdica por meio de um novo texto constitucional. Seu titular seria, antes de tudo, a nao, como elemento sociolgico que constataria um compartilhamento homogneo de tradies, lngua, religio, numa dada sociedade. Por ser um poder de fato, ilimitado e incondicionado.

    J a verso moderna traz, a partir do sculo XX, uma nova leitura do Poder Constituinte. Nessa (re)leitura, temos a mudana de titularidade da Nao para o Povo figura que foi aos poucos sendo reconstruda para abarcar uma noo pluralista. As preocupaes em distinguir os procedimentos democrticos de proce-dimentos no democrticos levaram os constitucionalistas a pensar o seu exerccio para alm da Assembleia Constituinte, incorporando instrumentos de deciso popu-lar como o plebiscito e o referendum.

    Por fim, a leitura contempornea realizada luz dos pressupostos tericos trazidos pela teoria discursiva do direito e da democracia de Jrgen Habermas e explorada pelos componentes da Escola Mineira de Direito Constitucional e bem reconstruda nos ensaios Poder Constituinte e Patriotismo Constitucional: o projeto constituinte do Estado Democrtico de Direito na Teoria Discursiva de Jrgen Haber-mas, de Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira,10 e Poder Constituinte e Patriotismo

    7. Por isso mesmo a relevncia do ensaio de lvaro Ricardo de Souza Cruz (Poder constituinte e patriotismo constitucional), que apresenta sistematicamente cada um desses trs momentos, identificando seus principais traos tericos e seus pensadores.

    8. Curioso observar que a viso clssica surge nos primrdios do constitucionalismo do sculo XVIII, estudan-do, por conseguinte, to-somente pactos fundadores datados, como a Assembleia Nacional da Frana ou a Conveno de Filadlfia nos Estados Unidos. Logo, constituies predominantemente costumeiras ou as cartas no codificadas (inorgnicas) no se encaixavam nos parmetros dessa perspectiva, a despeito de, tal como a inglesa, serem anteriores ao movimento contratualista do iluminismo. (SOUZA CRUZ, lvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 50).

    9. SOUZA CRUZ, lvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 48.

    10. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, Poder constituinte e patriotismo constitucional: o projeto constituinte do estado democrtico de direito na teoria discursiva de Jrgen Habermas. Ver tambm o captulo 5 (Qual o sentido do projeto constituinte do Estado Democrtico de Direito? Um exerccio de patriotismo constitucional no marco da teoria do discurso de Jrgen Habermas) da obra CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, Direito, poltica e filosofia: contribuies para uma teoria discursiva da Constituio democrtica no marco do patrio-tismo constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

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    Constitucional de lvaro Ricardo de Souza Cruz.11 Aqui, a noo de Poder Consti-tuinte conectada a de Patriotismo Constitucional, permitindo um questionamento mais radical sobre no apenas a dinmica do Poder Constituinte, mas ainda, sobre a concepo moderna de legitimidade poltica, a partir da ideia de autonomia (po-ltica, jurdica e moral).12 Assim, o ato fundador da Constituio de um Estado passa a ser tomado como um processo de aprendizado social capaz de se corrigir a si mesmo, tendo continuidade e prosseguimento no transcurso de geraes.13

    3. PODER CONSTITUINTE ORIGINRIO

    3.1. Conceito e natureza jurdica

    muito comum definir o Poder Constituinte Originrio como sendo aquele que visa produzir uma constituio. Nesse sentido, ele pode ser conceituado como uma prerrogativa extraordinria que ocorre em um momento extraordinrio e que visa desconstituio de uma ordem anterior e a constituio de uma nova ordem cons-titucional (um poder desconstitutivo/constitutivo ou de despositivao/positivao).

    Para a tradio do constitucionalismo clssico, o Poder Constituinte Originrio representava um modo de legitimao do poder poltico da nao (seu titular), que criava uma nova ordem para a sociedade, quebrando com uma ordem eminente-mente tradicional (dinstica) anterior. possvel identificar aproximaes em seu pensamento com os contornos da teologia, notadamente a ideia de onipotncia do Poder Constituinte Originrio, que cria do nada todo um novo ordenamento jurdi-co.14

    Atualmente, a doutrina constitucional afirma uma pluralidade de teorias que buscam explicar a natureza jurdica do Poder Constituinte Originrio:

    1) Poder de direito: porque assentado e fundamentado em um direito natural, que anterior e superior a qualquer direito positivo (posto). Portanto, temos a a natureza de um poder de direito (natural), que inerente ao homem e a sua natureza.

    2) Poder de fato: que funda a si prprio (pois o direito se expressa de forma m-xima na constituio). Portanto, o Poder Constituinte originrio seria uma rup-tura que no jurdica, pois rompe com a lei mxima se impondo como fora social ou poltico-social (Carr de Malberg, Celso Bastos, Raul Machado Horta). Por ter sua natureza divorciada do universo jurdico, os autores dessa linha de

    11. SOUZA CRUZ, lvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional. In: GALUPPO, Marcelo Campos. O Brasil que queremos: reflexes sobre o estado democrtico de direito. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2006.

    12. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 33.

    13. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 35.

    14. MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 187.

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    compreenso no se preocuparam em realizar qualquer anlise ou estudo a respeito de sua legitimidade.15

    3) Natureza hbrida: como ruptura, um poder de fato, porm na elaborao (produo) de sua obra, ele se apresenta como poder de direito, na medida em que tem o poder de desconstituir um ordenamento (revogando-o) e ela-borar (constituir) outro, da sua feio jurdica (Gomes Canotilho, Paulo Bonavi-des).

    Afirmam alguns autores que, por ser expresso de um fato social ( luz da perspectiva positivista), o PCO deve ser entendido como um poder sem limites, sem condies e autnomo, alm de ser inicial. Nesse sentido, ele seria capaz de traar a nova ordem constitucional como bem desejar.16 Como iremos observar posterior-mente, essas digresses no devem ser tidas como absolutas.

    Para finalizar devemos observar (no sem divergncia!) que a doutrina tradi-cional entende que o poder constituinte originrio surge (se manifesta17) por meio ou de um golpe de estado18, ou de uma revoluo19 ou de um consenso jurdico-po-ltico. Em todos os casos ocorre (no mnimo) uma ruptura jurdico-poltica, que visa a romper com a ordem anterior e constituir uma nova ordem.

    3.2. Classificao

    Certo que os constitucionalistas realizam classificaes20 do Poder Constituin-te, falando, portanto, em:

    1) Quanto dimenso do Poder Constituinte:

    (a) Poder Constituinte Material. Pode ser traduzido no conjunto de foras po-ltico-sociais que vo produzir o contedo de uma nova Constituio, a partir da ruptura jurdico-poltica. Ou seja, se traduz na ideia de direito, fruto desse conjunto

    15. SOUZA CRUZ, lvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 49-50.

    16. SOUZA CRUZ, lvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 50. Curiosamente, parece ser esta a tese defendida por Alexandre de Moraes em sua obra Direito constitucional, p. 23; e tambm por MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 188.

    17. A doutrina tambm chama essa origem de: fatores que desencadeiam o Poder Constituinte Originrio.

    18. O Golpe de Estado se caracteriza como um movimento de usurpao do poder.

    19. A seu turno, a revoluo , ento, um movimento de ruptura profundo na estrutura social e no sistema do poder. Todavia, afirmar isso no quer dizer que a mesma seja sempre fruto da violncia, como muitas vezes mal-interpretada.

    20. Citamos aqui a classificao quanto ao exerccio do Poder Constituinte originrio. Esse envolve a Instaurao de uma Assemblia Constituinte, o seu Funcionamento e Encerramento. Chamamos a ateno para o funcio-namento e encerramento do mesmo, pois o PCO pode ser desenvolvido de forma tpica (pura) (O seu agente encarregado apenas de fazer a Constituio) ou de forma atpica (impura) (Aps a elaborao da Consti-tuio o agente do PCO se torna legislador ordinrio da Constituio que ele elaborou). Essa ltima forma foi a utilizada na Constituio de 1988.

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    de foras poltico-sociais.21 O Poder Constituinte material ser exteriorizado pelo Poder Constituinte formal; e (b) Poder Constituinte formal aquele que vai forma-lizar a ideia de direito construda por meio do Poder Constituinte Material. O Poder Constituinte formal ser o grupo encarregado de redigir a Constituio.22

    2) Quanto manifestao histrica:

    (a) Fundacional (tambm chamado de histrico): este surge a com a construo de um novo Estado nacional (com o processo de descolonizao) que vai necessitar de uma Constituio; (b) Ps-fundacional:23surge em Estados nacionais j existentes e dotados de uma Constituio. O movimento de ruptura da Constituio faz com que venha a emergir um novo poder constituinte originrio.

    3.3. Caractersticas do Poder Constituinte Originrio24

    1) Inicial: se toda vez que surge uma nova Constituio, temos um Estado novo, en-to o Poder Constituinte Originrio sempre inicial, o marco inicial da ordem jurdica e desse Estado. Diz Canotilho que o Poder Constituinte Originrio desconstitutivo constitutivo. No momento de ruptura jurdico-poltica, sempre o Poder Constituinte Originrio estabelece para a corrente majoritria um Esta-do novo. Portanto, ele inaugura uma nova ordem jurdica e poltica, rompendo com a anterior.

    2) Autnomo: s a ele cabe fixar os termos (as bases) em que a nova constituio ser estabelecida e qual o direito a ser implantado.

    21. CARVALHO, Kildare Gonalves, Direito constitucional: teoria do estado e da Constituio, direito constitucional positivo, 11. ed., p. 178.

    22. Nesses termos, comum, afirma lvaro Ricardo Souza Cruz, encontrar na doutrina brasileira a diferenciao entre um Poder Constituinte material e em um Poder Constituinte formal. O primeiro termo utilizado para designar a fora poltica geradora da mudana na ordem jurdica do Estado; sendo assim, representa um an-tecedente lgico do Poder Constituinte formal, de modo que responsvel por fixar o contedo das normas constitucionais. J o Poder Constituinte formal o termo utilizado para designao da entidade (grupo cons-tituinte) que formaliza as normas constitucionais, conferindo ao conjunto uma estabilidade. Dado o enfoque positivista e acrtico a doutrina constitucional se preocupou mais em sistematizar as suas manifestaes que em analisar a legitimidade de seus atos, identificando as seguintes formas de expresso: ato unilateral singular (por exemplo, a outorga); ato unilateral plural (ato de representao mas conectado ao ato de manifestao direta); ato constituinte bilateral (combina institutos representativos e democracia direta ou se-midireta); e ato constituinte plurilateral (com a participao de instncias distintas do poder representativo). CARVALHO, Kildare Gonalves, Direito constitucional, p. 178; SOUZA CRUZ, lvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional.

    23. Para alguns doutrinadores, ele tambm chamado de revolucionrio.

    24. bem verdade que essas caractersticas (clssicas), embora ainda muito usuais na doutrina ptria, no so imunes a crticas a partir de uma reflexo mais contempornea de Poder Constituinte. Nesses termos, podemos observar as digresses de Cludio Pereira Souza Neto: (...) a tendncia contempornea de que o poder constituinte seja definido no mais como inicial, uno, ilimitado e incondicionado. Para que seja reconhecido como legtimo, o poder constituinte deve se manifestar democraticamente e deve instituir um regime poltico comprometido com respeito aos direitos humanos, sem os quais no possvel uma vida com dignidade. SOUZA NETO, Cludio Pereira. Constitucionalismo Democrtico e Governo das Razes, p, 75-76, 2010.

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    3) Ilimitado: existem trs teorias: 1) Teoria positivista. Segundo ela, o Poder Cons-tituinte Originrio ilimitado do ponto de vista do Direito Positivo anterior, pois o Poder Constituinte Originrio um ponto zero, ou seja, um marco inicial para a criao de uma nova ordem jurdica. A teoria positivista nos traz a ideia de que o Poder Constituinte Originrio ilimitado e autnomo, pois se funda nele mesmo e ilimitado, do ponto de vista do Direito Positivo anterior. Temos a a natureza do Poder Constituinte como poder de fato (pois o direito se expressa de forma mxima na constituio). Portanto, o Poder Constituinte no jur-dico. Essa tradicionalmente a tese adotada na doutrina nacional, apesar de hoje em dia estar, cada vez mais, sendo questionada (conforme iremos ver). 2) Teoria Jusnaturalista. Ela afirma que o Poder Constituinte Originrio no ilimitado, pois ele ir guardar limite em cnones do Direito Natural, como a liberdade, igualdade, no discriminao, ou seja, cnones do homem em ra-zo de ser homem derivados da natureza humana, que so princpios bsicos do Direito Natural. 3) Teoria (de tendncia) Sociolgica. Segundo ela, o Poder Constituinte Originrio autnomo, pois exerce funes ilimitadas do ponto de vista do Direito Positivo anterior no estando, a princpio, preso a nenhum di-reito positivo pretrito, mas guarda um limite sim no movimento revolucionrio que o alicerou, ou seja, no movimento de ruptura que o produziu; leia-se, na ideia de direito que o fez emergir (surgir). Nesse sentido, o Poder Constituinte Originrio guarda limite nele mesmo (na sociedade que est rompendo com o passado e construindo algo novo). Exemplos: a Constituio russa de 1918; a Constituio brasileira de 1988 entre outras.25

    4) Incondicionado: significa dizer que o Poder Constituinte Originrio no guarda condies ou termos prefixados para a criao da nova ordem constitucional, ou seja, ele mesmo cria as regras procedimentais para a elaborao da nova Constituio.

    5) Permanente: no se exaure com a elaborao da nova constituio. Ele conti-nua presente ainda que em estado de latncia. Da a diferena entre o titular do PCO (permanente) alocado no povo26 e o seu agente (que faz a constitui-o, ou seja, redige a constituio) formalizador da nova ideia de direito e de sociedade. Ou seja, o Poder Constituinte material seria permanente e o Poder Constituinte formal no, pois iria se exaurir com a produo da Constituio.

    Aqui algumas observaes finais so vlidas. Acreditamos que em sua releitura moderna, o Poder Constituinte assumido a partir de marcos democrticos, que tra-zem para a figura do povo (noo pluralista) sua titularidade. Como consequncia,

    25. Seria inconcebvel, aps a Revoluo socialista, a elaborao de uma Constituio czarista ou mesmo capi-talista na nova Rssia, que se descortina fruto da referida Revoluo de 1917. No mesmo sentido, no seria vivel, aps a ruptura com a ditadura e o advento da democracia, que a Constituio de 1988 fosse em sua essncia fechada, antidemocrtica, no dotada de pluralismo e contrria aos cnones democrticos que estavam se afirmando aps a eleio de Tancredo Neves em 1985.

    26. Tema a seguir explorado com maior profundidade.

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    passa a ser compreendido como limitado, marcando uma inovao quanto ao pen-samento anterior.27 Tais limitaes seriam de ordem:

    Espaciais (Territoriais): vinculando o Poder Constituinte a uma base territorial determinada.28

    Culturais: uma vez que o povo o titular do Poder Constituinte, de se esperar um condicionamento a partir de tradies, da cultura, enfim, do pano de fun-do cultural compartilhado por aquela sociedade.29 Por isso mesmo, como bem observa lvaro Ricardo de Souza Cruz, o constitucionalismo moderno ainda no consegue se livrar da herana clssica, acabando por aproximar os conceitos de povo e de nao.30

    Direitos Humanos: consolidando-se a partir da segunda metade do sculo XX, marcando uma retomada do pensamento jusnaturalista e uma reao ao hor-ror do holocausto nazista, passou-se a defender uma limitao do Poder Cons-tituinte Originrio a direitos suprapositivos,31 contra a deliberao majoritria, ou provenientes dos tratados pactuados sobre direito internacional.32

    Nesses termos, a concluso a de que atualmente o Poder Constituinte Origi-nrio para a doutrina mais adequada (dotada de maior razoabilidade) no pode ser entendido como algo absoluto, pois ele, sem dvida, guarda limites internos na prpria sociedade que o fez emergir e limites externos em princpios de direito internacional (cnones supranacionais) como os princpios da independncia, da autodeterminao e da observncia dos direitos humanos.

    27. SOUZA CRUZ, lvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 58.

    28. Logo, em um exemplo simplista, nossa Constituio no poderia eleger, como capital, espao territorial que desbordaria o exerccio prprio da soberania estatal, tal como, por exemplo, as cidades de Nova York ou de Buenos Aires [...] (SOUZA CRUZ, lvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 50).

    29. Um exemplo desses limites so aes quase inconscientes do constituinte de 1988, a meno a Deus pre-mbulo e a previso de um descanso semanal remunerado preferencialmente aos domingos (art. 7, inciso XV) ilustram bem um condicionamento do texto com tradies predominantemente crists da nossa popula-o. (SOUZA CRUZ, lvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 58).

    30. De um lado, pretende abraar a matriz do ordenamento jurdico como algo que fosse adequado comple-xidade estrutural do mundo moderno, ou seja, suportando a concepo de um Direito pluralista. De outro, concebe limites ao Poder Constituinte Originrio com bases sociolgicas/antropolgicas que incidiriam sobre seu titular. (SOUZA CRUZ, lvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 58).

    31. SOUZA CRUZ, lvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 50. Ver tambm BACHOF, Otto, Normas constitucionais inconstitucionais.

    32. Temos aqui, mais uma vez, a afirmao atualmente recorrente de que o PCO no pode ser encarado como um poder absoluto. luz da perspectiva sociolgica, ele encontra um limite na ideia de direito que o alicerou (movimento revolucionrio que o fez surgir), no que em sntese chamamos de PC Material, bem como atual-mente em princpios de justia (princpios suprapositivos) e princpios de direito internacional, ou seja, em cnones supranacionais (como o princpio da independncia, princpio da autodeterminao e o princpio da observncia dos direitos humanos).

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    interessante, ainda, que alguns doutrinadores como Maurcio Andreiuolo,33 indo mais alm, citam ainda a possibilidade da existncia de um Poder Constituinte supranacional. Esse, obviamente, ainda incipiente, estaria afeto s bases do intitu-lado direito comunitrio. Direito esse que no guarda similitude nem com o direito nacional clssico territorialmente delimitado no Estado (com a clssica soberania arraigada s fileiras do Estado nacional), nem mesmo com o clssico direito inter-nacional. A perspectiva do autor, se atrela a uma busca por uma cidadania universal a partir de um novo conceito de soberania (releitura da definio de soberania34) que teria como norte uma Constituio supranacional elaborada com a legitimidade conferida pelos prprios Estados nacionais (e seus cidados) vinculados a ela. Com isso, as Constituies nacionais (e os seus respectivos ordenamentos internos) es-tariam subordinadas a uma Constituio supranacional, fruto da elaborao de um poder constituinte supranacional. Sem dvida, essa ambiciosa perspectiva, como j observamos, se filia disciplina do direito comunitrio que (ainda) est em pro-cesso de desenvolvimento e tem sua vertente mais acurada na Unio Europeia.35

    3.4. Titularidade do Poder Constituinte Originrio

    Sobre a titularidade do Poder Constituinte originrio devemos ainda tecer algu-mas consideraes.

    (1) Para a compreenso clssica que corresponde ao paradigma liberal o Po-der Constituinte Originrio, como criador de um novo texto constitucional, encontra-va na figura da Nao o seu titular.36 Tal ideia decorre da obra do Abade Sieys, O que o Terceiro Estado?,37 e ir buscar afirmar uma identidade entre o povo e seus representantes que, por sua vez, se reuniriam com o nico propsito de formar uma Assembleia Constituinte para redao do texto constitucional.

    33. Conforme o autor, o Poder Constituinte supranacional: faz as vezes de poder constituinte porque cria uma ordem jurdica de cunho constitucional, na medida em que reorganiza a estrutura de cada um dos Estados ou adere ao direito comunitrio de vis supranacional por excelncia, com capacidade, inclusive, para submeter as diversas constituies nacionais ao seu poder supremo. Dessa forma [...] supranacional, porque se distin-gue do ordenamento positivo interno assim como do direito internacional. RODRIGUES, Maurcio Andreiuolo, Poder constituinte supranacional: esse novo personagem, 2004, p. 142.

    34. A tese defendida por alguns seria a de uma soberania compartilhada (ou dual), ou seja, haveria o convvio (com vistas a integrao, ao pluralismo e a uma perspectiva de cidadania ampliada de vis universalizvel) da soberania dos Estados nacionais, com a soberania do ente supranacional (comunitrio) luz do Direito comunitrio.

    35. Atualmente a Unio Europeia vive uma tentativa de reorientao aps os impasses da Constituio de 2004 (tratado constitucional no referendado pela Frana e Holanda em 2005). Em dezembro de 2007 foi assinado o denominado Tratado de Lisboa que veio substituir a falhada Constituio e deve ser ratificado pelos 27 pases-membros (o que ainda no ocorreu).

    36. SOUZA CRUZ, lvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 48

    37. No livro, Sieys assinala, nas vsperas da Revoluo, que o chamado Terceiro Estado que engloba quem no pertencesse nobreza ou ao alto clero, e que, portanto, inclua a burguesia , embora fosse quem pro-duzisse a riqueza do pas, no dispunha de privilgios e no tinha voz ativa na conduo poltica da Frana. (MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 187).

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    Importante frisar que o conceito de nao acaba por envolver uma ideia de homogeneidade cultural, lingustica, econmica e poltica, como lembra lvaro Ricar-do de Souza Cruz, de modo que compartilham um mesmo passado de tradies e eventos histricos [que] une os cidados em torno de um projeto comum,38 qual seja: uma ruptura com o antigo ordenamento jurdico a partir da instaurao de uma nova constituio.

    A partir dessa mesma tradio e compartilhamento dos mesmos valores ticos, religiosos e culturais, um grupo pode at mesmo se arrogar a condio de repre-sentante desse Poder Constituinte, mas, ao fazer isso, necessariamente, dever agir no sentido de obter acolhimento dos valores dominantes, sob pena de perda do seu reconhecimento como Poder Constituinte Originrio. Caso contrrio, estaramos apenas diante de uma insurreio o que representa no um movimento poltico, na viso de alguns constitucionalistas, mas um ilcito penal.39

    Por isso mesmo, nessa concepo h que se destacar uma exigncia de eficcia atual: quem atua como Poder Constituinte Originrio deve-se consistir numa fora histrica efetiva, apta para realizar os fins que se prope.40 Mais que um querer ser legitimado, essas pessoas tm que estar legitimadas, pois devem produzir uma deciso sobre a nova ordem jurdica, que deve ter acatamento daqueles que foram submetidos a ela.

    (2) J a verso moderna a partir das lies de Jellineck41 ir conceber o titular do Poder Constituinte na figura do Povo como conceito jurdico , ao invs da Na-o conceito este fortemente ligado a noes sociolgicas e antropolgicas.

    Com o avano do constitucionalismo, incorporando maiores complexidades, que marcam a construo e a dinmica social moderna, a noo de povo incor-pora feies pluralistas trazendo uma preocupao com a tolerncia e o direito diferena.42 claro que o povo, aqui, no pode ser tomado como sinnimo de um bloco de cidados ativos, mas em seu sentido poltico, como conjunto de pessoas que atuam a partir de ideias, interesses e representaes de ordem poltica.43

    38. SOUZA CRUZ, lvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 49.

    39. MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 189.

    40. MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 189.

    41. de se registrar que compartilhamos do mesmo espanto de lvaro Ricardo de Souza Cruz: A despeito da obra ter mais de um sculo, bem como da existncia de doutrina mais recente muito mais elaborada do que a sua, tal como se depreende das obras de Mller (Quem o povo?) e Arendt (A condio humana), curioso como a teoria do Poder Constituinte, especialmente a que trabalhada aqui no Brasil, ainda utiliza o concei-to de povo extrado da obra de Jellineck. (SOUZA CRUZ, lvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 55).

    42. Remetemos, ento, leitura da obra SOUZA CRUZ, lvaro Ricardo de, O direito diferena: as aes afir-mativas como mecanismo de incluso social de mulheres, negros, homossexuais e pessoas portadoras de deficincia. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

    43. CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da Constituio, 5. ed., p. 75.

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    Com isso, a mesma noo de povo no pode ser reduzida ao numerrio de cidados ativos ou mesmo ao elemento majoritrio, ultrapassando tudo isso. O pro-blema se radicaliza no fato de que, para tal tradio constitucional, ainda no se operou uma separao e distino necessria entre povo e nao.

    Para Bruce Ackerman,44 constitucionalista norte-americano, importante anotar que o Poder Constituinte Originrio se manifesta para alm do modelo da Conven-o.45 No quadro histrico norte-americano, anota trs momentos constitucionais:

    a fundao dos Estados Unidos, ocasio em que uma Conveno de represen-tantes dos treze Estados se transformou em Assembleia Constituinte; no perodo da Reconstruo, em que o modelo de federalismo dual cedeu espao para um federalismo cooperativo com uma ampliao significativa das competncias fe-derais; e por ltimo, com a implantao do Estado Social, ali implementado sem qualquer alterao na Constituio, mas por via infraconstitucional, em especial pelo conjunto de normas ordinrias que deram forma poltica intervencionista de Franklin Delano Roosevelt (New Deal).46

    O constitucionalismo moderno tambm lana novas luzes quanto ao exerccio do Poder Constituinte, preocupando-se em classific-lo como democrtico ou no democrtico. Esta ltima se caracteriza pela usurpao da vontade popular, [...] seja por arbtrio de um Imperador (Brasil/1824), de um ditador (Brasil/1937), de uma faco poltica (Unio Sovitica/1919), ou por potncias estrangeiras, tais como as Constituies dos pases da antiga Cortina de Ferro ou como a Carta Japonesa de 1947 e a Lei Fundamental da Alemanha de 1949, ambas aprovadas diante de clara presso dos pases ocidentais, em especial dos Estados Unidos.47

    Em sentido inverso, um exerccio democrtico do Poder Constituinte est ligado ao respeito da vontade popular, que pode se manifestar: pelo processo democrti-co representativo circunstncia em que o povo elege representantes livremente; ou pelo processo democrtico direto, que prev, alm da eleies de representan-tes, um plebiscito (antecedente aos trabalhos) ou um referendum (homologatrio ou no dos trabalhos).48 A atual Constituio adotou o primeiro modelo (processo democrtico representativo).

    44. ACKERMAN, Bruce, We the people, v. 1., p. 192.

    45. SOUZA CRUZ, lvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 56.

    46. SOUZA CRUZ, lvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 56-57. Ver tambm ACKER-MAN, Bruce, We the peole, v. 1., p. 160. Ao que parece em MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 190, encontramos uma leitura similar de Ackerman, na qual os autores defendem que a manifestao do Poder Constituinte Originrio no est restrita ao ato fundador ou deciso fundamental, como se referem, talvez lembrando Carl Schmitt , mas reconhecem manifestaes pontuais nos momentos de viragem histrica, que formam (ou conformam) um Estado ex-novo, revelando toda a ilimitao e a incondicionalidade de sua manifestao.

    47. SOUZA CRUZ, lvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 57.

    48. SOUZA CRUZ, lvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 57.

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    3.5. Poder Constituinte Originrio e direitos adquiridos

    Os chamados direitos adquiridos ocorrem quando determinada pessoa j tenha obtido o preenchimento de todos os requisitos normativos para obteno de certa vantagem ou prerrogativa, mas no tenha ainda iniciado seu desfrute. Suponhamos que diante de tal situao ocorra a alterao da Constituio, passando agora a proibir tal vantagem.

    O prprio texto constitucional pode determinar que se respeitem os benefcios daqueles cidados que j os estiverem usufruindo. Mas, segundo as leituras tanto modernas quanto clssicas sobre o Poder Constituinte Originrio, a nova Constitui-o pode dispor diferente, eliminando tal benefcio, j que tal Poder, supostamente, seria ilimitado e incondicionado. Nesse sentido, Gilmar Ferreira Mendes e coauto-res: No se pode esquecer que a Constituio o diploma inicial do ordenamento jurdico e que as suas regras tm incidncia imediata. Somente direito o que com ela compatvel, o que nela retira o seu fundamento de validade. Quando a Constituio consagra a garantia do direito adquirido, est prestigiando situaes e pretenses que no conflitam com a expresso da vontade do poder constituinte originrio. O poder constituinte originrio d incio ao ordenamento jurdico, define o que pode ser aceito a partir de ento. O que repudiado pelo novo sistema cons-titucional no h de receber status prprio de um direito, mesmo que na vigncia da Constituio anterior o detivesse. Somente seria vivel falar em direito adquirido como exceo incidncia de certo dispositivo da Constituio se ela mesma, em alguma de suas normas, o admitisse claramente. Mas, a, j no seria mais caso de direito adquirido contra a Constituio, apenas de ressalva expressa de certa situao.49

    Por isso mesmo, a jurisprudncia do STF se firmou do sentido de no reconhe-cer a invocao de direitos adquiridos que sejam contrrios Constituio em vigor.50 Desse modo, apenas o constituinte pode criar excees ou regras de transi-es, se entender como melhor tal situao.51

    Mas, se tal direito adquirido no for contrrio ( nova Constituio), ele tem aplicao produzindo efeitos exigveis e sendo respeitado pela nova Constituio (que obviamente permite sua aceitabilidade e reconhecimento, perante a prpria ordem que est instaurando).

    49. MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 198-199.

    50. Ver RE n 14.360, RDA n 24/58, RE n 74.284, RTJ n 66/220, e, mais recentemente, RE n 140.894, DJ de 09-08-1996.

    51. A Constituio, ao aplicar-se de imediato, no desfaz os efeitos passados de fatos passados (salvo se ex-pressamente estabelecer o contrrio), mas alcana os efeitos futuros de fatos a ele anteriores (exceto se os ressalvar de modo inequvoco). Reconhece-se assim, como tpico das normas do PCO, serem elas dotadas de eficcia retroativa mnima, j que se entende como prprio dessas normas atingir efeitos futuros de fatos passados. S excepcionalmente elas tero eficcia retroativa mdia (alcanar pretenses vencidas anterior-mente a essas normas e no pagas) ou mxima (alcanar fatos consumados no passado). MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, 2008.

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    3.6. Dinmica constitucional

    O Estudo da Dinmica Constitucional diz respeito aos efeitos das normas cons-titucionais no tempo (passado-presente-futuro). Certo que o surgimento de uma nova Constituio traz uma srie de consequncias para o ordenamento jurdico de um Estado. Sem dvida, a teoria da Constituio desenvolveu uma gama de institutos para lidar com essas consequncias. Nesses termos, o advento de um Poder Constituinte originrio e sua obra, atualmente, no representa uma ruptura integral com o edifcio jurdico-normativo sustentado pela Constituio anterior.52

    O primeiro fenmeno da dinmica a ser citado da recepo de normas in-fraconstitucionais pela nova Constituio que pode se dar pela via expressa53 ou de forma implcita ou tcita. Atribui-se a Kelsen a teorizao sobre o fenmeno da recepo ao buscar conciliar o Poder Constituinte Originrio com o vcuo legislativo originado da instaurao de uma nova ordem constitucional. A leitura, ento, dos antigos diplomas normativos deve se dar luz da nova Constituio, sendo esta e no a anterior a fonte de fundamento para tais normas.

    Nesses termos, o requisito bsico para que haja a recepo justamente o da no contrariedade, ou seja, a no contrariedade das normas infraconstitucionais anteriores (existentes sobre a base da Constituio anterior) para com a nova Constituio. interessante observarmos, tambm, que a recepo pode se dar com o mesmo status ou com um status diferenciado. Isso em razo da vontade do Poder Constituinte Originrio que determina expressamente um status diferenciado (exemplo: Cdigo Tributrio Nacional que foi estabelecido no ordenamento anterior como lei ordinria e entrou no novo ordenamento constitucional de 1988 como lei complementar) ou mesmo por circunstncias de adequao (cdigo penal que foi estabelecido como decreto lei em 1940 e adentrou no atual ordenamento constitu-cional por lgica de equivalncia como lei ordinria).

    Mas, e se a norma pretrita no guardar compatibilidade de contedo com o novo texto constitucional? A doutrina constitucional diverge afirmando uma corrente se tratar de no recepo (revogao) enquanto outra afirma ser caso de incons-titucionalidade superveniente. Nesse sentido, situar o problema numa ou noutra dessas vertentes rende consequncias prticas diversas, a mais notvel delas sendo a de que apenas se entendido que o caso de inconstitucionalidade superveniente

    52. SOUZA CRUZ, lvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 60. Destaca ainda o constitu-cionalista mineiro: possvel lembrar o fato de que a Assembleia Constituinte, que redigiu a Carta de 1988, foi convocada pelo veculo formal da emenda constitucional n 26, de 27 de novembro de 1985, Constituio de 1967. De outro lado, a presena de elementos, tais como as normas transitrias de acomodao (Ato das Disposies Constitucionais Transitrias), ao lado de fenmenos como o da recepo de normas infraconsti-tucionais anteriores ao advento da nova Carta, demonstram sobejamente que o Poder Constituinte Originrio no promove um aniquilamento completo da ordem jurdica anterior. (SOUZA CRUZ, lvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 60).

    53. Por exemplo, como fez o artigo 183 da Constituio de 1937, determinando a continuidade em vigor das leis anteriores nova Constituio. (MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 193).

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    haveria a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal apreciar a validez da norma em ao direta de inconstitucionalidade.54

    Pois bem, na jurisprudncia do STF, o acolhimento da tese da no recepo (revogao) se deu por meio do precedente da ADI n 02-DF, em 1997. Portanto, se o contedo da norma infraconstitucional do ordenamento anterior contrariar a nova Constituio estaremos, segundo o posicionamento do STF, diante da figura da no recepo (revogao). Com isso, conclui-se que, em nosso ordenamento, no aceita a tese da inconstitucionalidade superveniente (inconstitucionalidade de nor-ma anterior constituio), na medida em que diploma normativo anterior nova constituio e com ela incompatvel (materialmente) no deve ser entendido como inconstitucional, mas, sim, como no recepcionado (revogado). A questo, ento, no seria de inconstitucionalidade, mas de direito intertemporal (recepo ou no recepo).

    Porm, aqui, duas questes ainda merecem nossa ateno. Sendo as mesmas:

    a) Como j externalizado, a compatibilidade exigida para que normas infra-constitucionais anteriores a uma nova constituio sejam recepcionadas pela mes-ma de cunho material. Ou seja, exige-se que o contedo da lei ou ato normativo no contrarie o contedo da nova constituio. Mas, aqui, perguntamos55: Uma determinada Lei que contrariou o processo legislativo previsto na Constituio sob cuja regncia ela foi editada, mas que at o advento da nova Constituio, nun-ca fora objeto de controle de constitucionalidade poder ser recebida pela nova Constituio se com ela for compatvel? Ora, segundo tradicional doutrina aqui j externalizada, se a lei produzida antes de 1988 ainda no tivesse sido declarada inconstitucional na vigncia do ordenamento constitucional anterior, teoricamente, em virtude da presuno de constitucionalidade a mesma poderia ser recebida pelo novo ordenamento se com ele fosse compatvel do ponto de vista material. Porm, parte da doutrina sustenta que o Judicirio, ao fazer a anlise da recepo, ter que verificar tambm, se a lei que pretende ser recebida era compatvel com a Constituio sob cuja regncia foi editada56. Temos a a intitulada tese do princpio da contemporaneidade, e, com base na mesma, sustenta-se que a lei que nasceu maculada, ou seja, que possui vcio congnito, insanvel impossvel de ser corrigi-da pelo fenmeno da recepo Ou seja, o vcio ab origine nulifica a lei, tornando-a ineficaz. Nesses termos, uma lei anterior que nasceu inconstitucional no poderia ser consertada pela nova Constituio, nos termos da impossibilidade de uma constitucionalidade superveniente (tese da impossibilidade da constitucionali-dade superveniente). Com isso, a concluso dessa doutrina a de que para uma

    54. MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 194

    55. Nos valemos nesse ponto das digresses de Pedro Lenza, p.188-189, 2010. Ver tambm: MENDES, Gilmar Fer-reira et al., Curso de direito constitucional, p. 283, 2009.

    56. Lenza, Pedro, p.188-189, 2010. Ver tambm: MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 283, 2009.

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    lei ser recebida ela precisa preencher os seguintes requisitos: Estar em vigor no momento do advento de uma nova Constituio; No ter sido declarada inconstitu-cional durante a sua vigncia no ordenamento anterior; Ter compatibilidade formal e material perante a Constituio sob cuja regncia ela foi editada (no ordenamento anterior); Ter compatibilidade somente material com a nova Constituio (pouco importando a compatibilidade formal) 57.

    b) E o que aconteceria com uma lei produzida por um ente da Federao no regime constitucional anterior se, com nova ordem constitucional, a mesma compe-tncia legislativa fosse transferida para figura federativa diversa? Gilmar Ferreira Mendes dos poucos autores a enfrentar o assunto e ensina que no h que se cogitar de uma federalizao de normas estaduais ou municipais, por fora de alte-rao na regra de competncia. Por isso sustenta que se o tema era antes da com-petncia, por exemplo, dos Municpios e se torna assunto de competncia federal com a nova Carta, no haveria como aceitar que permanecessem em vigor como se leis federais fossem at por uma impossibilidade prtica de se federalizar simul-taneamente tantas leis, acaso no coincidentes.58 Todavia, o entendimento pela manuteno da lei federal no caso de alterao da competncia para as legislaturas estaduais e municipais.59 Nesse caso, admite-se que as leis seriam municipalizadas ou estadualizadas.

    Continuando, temos ainda que analisar alguns outros fenmenos inerentes dinmica constitucional e aos efeitos das normas constitucionais no tempo. Alm da clssica recepo (ou no recepo) temos a intitulada desconstitucionalizao. O que seria? Ora a desconstitucionalizao se traduz no fenmeno da dinmica constitucional em que normas de uma Constituio anterior (Constituio revogada) so recepcionadas pelo novo ordenamento constitucional (pela nova Constituio), porm com o status de normas infraconstitucionais. Esse fenmeno de derivao francesa e s pode ocorrer com o preenchimento de dois requisitos bsicos: a) no contrariedade para que ocorra a recepo no novo ordenamento; b) disposio expressa do Poder Constituinte, na medida em que sua falta faz com que a descons-titucionalizao no possa ocorrer, at mesmo por razes de segurana jurdica. Esse fenmeno no ocorreu no Brasil com o advento da nova Constituio de 1988 em relao a normas da Constituio de 1967-69, porm, certo que a prtica j teve acolhida em solo nacional. Nesse sentido, a desconstitucionalizao j existiu na Constituio paulista de 1967, que no seu art. 147 disps expressamente que as normas da Constituio paulista de 1947 que no contrariassem a nova Constituio seriam recepcionadas como normas infraconstitucionais sob a gide do novo orde-namento.

    57. Lenza, Pedro, p.188-189, 2010. Ver tambm: MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 283, 2009.

    58. MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 196.

    59. MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 196.

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    Outro fenmeno da dinmica constitucional o da repristinao, no qual, nor-mas infraconstitucionais elaboradas (e em vigor) sob a base de um ordenamen-to constitucional no so recepcionadas por um novo ordenamento constitucional (ocorrendo a revogao normativa), e, posteriormente, em virtude de uma nova Constituio, essas normas voltariam a vigorar (volta da vigncia de normas que j haviam sido revogadas). Os requisitos para tal possibilidade seriam: a) no contra-riedade nova Constituio; b) disposio expressa do poder constituinte, j que a repristinao no poderia ocorrer de forma automtica (defesa da segurana jurdica). 60

    Certo que temos tambm o fenmeno da recepo material das normas cons-titucionais. Esse fenmeno da dinmica constitucional consiste na possibilidade de normas de uma constituio anterior serem recepcionadas pelo novo ordenamento constitucional (pela nova constituio) ainda como normas constitucionais (com o status de normas constitucionais). Nesse caso, os requisitos seriam: a) no con-trariedade com as normas da nova constituio; b) disposio expressa do Poder Constituinte originrio; c) prazo determinado (prazo certo) de tal prtica devido ao seu carter precrio, sobretudo em razo de que as normas da constituio ante-rior vo permanecer no novo ordenamento constitucional ainda como normas de cunho constitucional, o que, obviamente, s poderia se dar de forma temporria e excepcional. Como exemplo desse fenmeno, temos o art. 34 do ADCT da CR/88.61

    4. PODER CONSTITUINTE DERIVADO DE REFORMA DA CONSTITUIO: ESPCIES E LIMITAES

    A discusso acerca do Poder Constituinte de Reforma est muitas vezes as-sociada ao problema do tempo no direito. O Poder Constituinte Originrio e sua obra, a Constituio, assumem uma expectativa de perenidade no tempo, gerando segurana jurdica e previsibilidade das relaes sociais. Todavia, imaginar um or-denamento jurdico e, mais ainda, uma Constituio, que no seja adaptada e cons-ciente da abertura para mudanas e oxigenaes, significaria sobrecarregar o Poder Constituinte Originrio, j que para pequenas mudanas, muitas vezes, meramente pontuais, exigir-se-ia um (temeroso) processo (radical) de ruptura constitucional.

    Para tanto, foi engendrada a lgica de que o mesmo Poder Constituinte, criador da nova constituio, deveria trazer em sua construo a previso de um mecanis-mo de alterao/atualizao. Trata-se de um procedimento que dever necessaria-mente ser observado mediante a imposio de limites e condicionalidades.62

    Nesses termos, sua natureza jurdica assumida como poder jurdico estabelecia, por consequncia, limitaes e condies para seu exerccio, subordinando-o s

    60. MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 197.

    61. Conforme o art. 34 do ADCT da CR/88: O sistema tributrio nacional entrar em vigor a partir do primeiro dia do quinto ms seguinte ao da promulgao da Constituio, mantido, at ento, o da Constituio de 1967, com a redao dada pela Emenda n 1, de 1969, e pelas posteriores.

    62. MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 203.