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SEGUE A RELAÇÃO DAS MATÉRIAS DO MÓDULO II: LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL DIREITO CIVIL – PARTE GERAL DIREITO CIVIL FAMÍLIA DIREITO CIVIL SUCESSÕES TUTELA DOS INTERESSES DIFUSOS E COLETIVOS ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE DIREITO COMERCIAL – TOMO I DIREITO COMERCIAL – TOMO II DIREITO PROCESSUAL CIVIL – TOMO I LEGISLAÇÃO PENAL DIREITO PENAL – PARTE GERAL – TOMO I DIREITO PENAL – PARTE GERAL – TOMO II DIREITO PENAL ESPECIAL DIREITO PROCESSUAL PENAL DIREITO CONSTITUCIONAL DIREITO ADMINISTRATIVO DIREITO TRIBUTÁRIO TESTES

Curso Federal 02

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SEGUE A RELAÇÃO DAS MATÉRIAS DO MÓDULO II:

LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL DIREITO CIVIL – PARTE GERAL DIREITO CIVIL FAMÍLIA DIREITO CIVIL SUCESSÕES TUTELA DOS INTERESSES DIFUSOS E COLETIVOS ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE DIREITO COMERCIAL – TOMO I DIREITO COMERCIAL – TOMO II DIREITO PROCESSUAL CIVIL – TOMO I LEGISLAÇÃO PENAL DIREITO PENAL – PARTE GERAL – TOMO I DIREITO PENAL – PARTE GERAL – TOMO II DIREITO PENAL ESPECIAL DIREITO PROCESSUAL PENAL DIREITO CONSTITUCIONAL DIREITO ADMINISTRATIVO DIREITO TRIBUTÁRIO TESTES

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LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO II

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DIREITO CIVIL - LICC – PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

EFICÁCIA DA NORMA

HIPÓTESES A norma jurídica perde a sua validade em duas hipóteses: revogação e ineficácia. Desde já cumpre registrar que a lei revogada pode manter a sua eficácia em determinados casos. De fato, ela continua sendo aplicada aos casos em que há direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Em contrapartida, a lei em vigor, às vezes, não goza de eficácia, conforme veremos adiante.

REVOGAÇÃO

Revogação é a cessação definitiva da vigência de uma lei em razão de uma nova lei. Só a lei revoga a lei, conforme o princípio da continuidade das leis. Saliente-se que o legislador não pode inserir na lei a proibição de sua revogação. A revogação pode ser total (ab-rogação) ou parcial (derrogação). A revogação ainda pode ser expressa, tácita ou global. A revogação expressa ou direta é aquela em que a lei indica os dispositivos que estão sendo por ela revogados. A propósito, dispõe o art. 9º da LC 107/2001: “A cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas”. A revogação tácita ou indireta ocorre quando a nova lei é incompatível com a lei anterior, contrariando-a de forma absoluta. A revogação tácita não se presume, pois é preciso demonstrar essa incompatibilidade. Saliente-se, contudo, que a lei posterior geral não revoga lei especial. Igualmente, a lei especial não revoga a geral. (§2º do art. 2º da LICC). Assim, o princípio da conciliação ou das esferas autônomas consiste na possibilidade de convivência das normas gerais com as especiais que versem sobre o mesmo assunto. Esse princípio, porém, não é absoluto. De fato, a lei geral pode revogar a especial e vice-versa, quando houver incompatibilidade absoluta entre essas normas; essa incompatibilidade não se presume; na dúvida, se considerará uma norma conciliável com a outra, vale dizer, a lei posterior se ligará à anterior, coexistindo ambas. Sobre o significado da expressão “revogam-se as disposições em contrário”, Serpa Lopes sustenta que se trata de uma revogação expressa, enquanto Caio Mário da Silva Pereira, acertadamente, preconiza que essa fórmula designa a revogação tácita. Trata-se de uma cláusula inócua, pois de qualquer maneira as disposições são revogadas, por força da revogação tácita prevista no § 1º do art. 2º da LICC. Convém lembrar que o art. 9º da LC

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107/2001 determina que a cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas, de modo que o legislador não deve mais se valer daquela vaga expressão “revogam-se as disposições em contrário”. A revogação global ocorre quando a lei revogadora disciplina inteiramente a matéria disciplinada pela lei antiga. Nesse caso, os dispositivos legais não repetidos são revogados, ainda que compatíveis com a nova lei. Regular inteiramente a matéria significa discipliná-la de maneira global, no mesmo texto.

COMPETÊNCIA PARA REVOGAR AS LEIS

Federação é autonomia recíproca entre a União, Estados-membros e Municípios. Trata-se de um dos mais sólidos princípios constitucionais. Por força disso, não há hierarquia entre lei federal, lei estadual e lei municipal. Cada uma das pessoas políticas integrantes da Federação só pode legislar sobre matérias que a Constituição Federal lhes reservou. A usurpação de competência gera a inconstitucionalidade da lei. Assim, por exemplo, a lei federal não pode versar sobre matéria estadual. Igualmente, a lei federal e estadual não podem tratar de assunto reservado aos Municípios. Força convir, portanto, que lei federal só pode ser revogada por lei federal; lei estadual só por lei estadual; e lei municipal só por lei municipal. No que tange às competências exclusivas, reservadas pela Magna Carta a cada uma dessas pessoas políticas, não há falar-se em hierarquia entre leis federais, estaduais e municipais, pois deve ser observado o campo próprio de incidência sobre as matérias previstas na CF. Tratando-se, porém, de competência concorrente, referentemente às matérias previstas no art. 24 da CF, atribuídas simultaneamente à União, aos Estados e ao Distrito Federal, reina a hierarquia entre as leis. Com efeito, à União compete estabelecer normas gerais, ao passo que aos Estados-membros e ao Distrito Federal competem legislar de maneira suplementar, preenchendo os vazios deixados pela lei federal. Todavia, inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender as suas peculiaridades. A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário. Finalmente, as normas previstas na CF só podem ser revogadas por emendas constitucionais, desde que não sejam violadas as cláusulas pétreas.

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PRINCÍPIO DA SEGURANÇA E DA ESTABILIDADE SOCIAL

De acordo com esse princípio, previsto no art. 5º, inc. XXXVI da CF, a lei não pode retroagir para violar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Devem ser respeitadas, portanto, as relações jurídicas constituídas sob a égide da lei revogada. Atente-se que a Magna Carta não impede a edição de leis retroativas; veda apenas a retroatividade que atinja o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. A retroatividade, consistente na aplicação da lei a fatos ocorridos antes da sua vigência, conforme ensinamento do Min. Celso de Melo, é possível mediante dois requisitos: a. cláusula expressa de retroatividade; b. respeito ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Assim, a retroatividade não se presume, deve resultar de texto expresso em lei e desde que não viole o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Abre-se exceção à lei penal benéfica, cuja retroatividade é automática, vale dizer, independe de texto expresso, violando inclusive a coisa julgada. Podemos então elencar três situações de retroatividade da lei:a. lei penal benéfica; b. lei com cláusula expressa de retroatividade, desde que não viole o

direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Na área penal, porém, é terminantemente vedada a retroatividade de lei desfavorável ao réu.

c. lei interpretativa: é a que esclarece o conteúdo de outra lei, tornando obrigatória uma exegese, que já era plausível antes de sua edição. É a chamada interpretação autêntica ou legislativa. A lei interpretativa não cria situação nova; ela simplesmente torna obrigatória uma exegese que o juiz, antes mesmo de sua publicação, já podia adotar. Aludida lei retroage até a data de entrada em vigor da lei interpretada, aplicando-se, inclusive, aos casos pendentes de julgamento, respeitando apenas a coisa julgada. Cumpre, porém, não confundir lei interpretativa, que simplesmente opta por uma exegese razoável, que já era admitida antes da sua edição, com lei que cria situação nova, albergando exegese até então inadmissível. Neste último caso, a retroatividade só é possível mediante cláusula expressa, desde que não viole o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

INEFICÁCIA

Vimos que a lei só é revogada em razão da superveniência de uma nova lei. Em certas hipóteses, porém, a lei perde a sua validade, deixando de ser aplicada ao caso concreto, não obstante conserve a sua vigência em razão da inexistência da lei superveniente revogadora.

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Assim, é possível a ineficácia de uma lei vigente, bem como a eficácia de uma lei revogada. Essa última hipótese ocorre quando a lei revogada é aplicada aos casos em que há direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Malgrado a sua vigência, a lei é ineficaz, isto é, inaplicável nas seguintes hipóteses:

a. caducidade: ocorre pela superveniência de uma situação cronológica ou factual que torna a norma inválida, sem que ela precise ser revogada. Exemplo: leis de vigência temporária.

b. desuso: é a cessação do pressuposto de aplicação da norma. Exemplo: a lei que proíbe a caça da baleia deixará de ser aplicada se porventura desaparecerem todas as baleias do planeta.

c. costume negativo ou contra legem: é o que contraria a lei. O costume não pode revogar a lei, por força do princípio da continuidade das leis. Todavia, prevalece a opinião de que ele pode gerar a ineficácia da lei, desde que não se trate de lei de ordem pública. Como ensina Rubens Requião, verificada que a intenção das partes foi a de adotar certos costumes, o julgador deve aplicá-lo, sobrepondo-o à norma legal não imperativa. De acordo com Serpa Lopes, a realidade, através de um costume reiterado, enraizado nos dados sociológicos, em harmonia com as necessidades econômicas e morais de um povo, é capaz de revogar a norma. Não se trata, data venia, de revogação, pois esta só é produzida pelo advento de uma nova lei; a hipótese é de ineficácia. Como exemplos de costumes contra legem, podemos citar: a emissão de cheque pré-datado; a expedição de triplicata pelo fato da duplicata não ter sido devolvida tornou-se praxe, embora a lei preveja para a hipótese o protesto por indicações, ao invés da triplicata; admissibilidade de prova testemunhal em contrato superior a dez salários mínimos, nos casos em que o costume dispensar a prova escrita exigida pela lei.

d. decisão do STF declarando a lei inconstitucional em ação direta de inconstitucionalidade (controle por via de ação ou aberto). Cumpre observar que essa decisão judicial não revoga a lei, apenas retira a sua eficácia.

e. resolução do Senado Federal cancelando a eficácia de lei declarada incidentalmente inconstitucional pelo STF (controle por via de exceção ou difuso).

f. princípio da anterioridade da lei tributária, pois, uma vez publicada, sua eficácia permanece suspensa até o exercício financeiro seguinte.

g. a lei que altera o processo eleitoral entra em vigor na data de sua publicação, mas não tem eficácia em relação à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.

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MECANISMOS DE INTEGRAÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO

INTRODUÇÃO

De acordo com o princípio da indeclinabilidade da jurisdição, o juiz é obrigado a decidir, ainda que não haja lei disciplinando o caso concreto. Diante da lacuna, isto é, ausência de lei regulando determinada situação jurídica, torna-se necessário ao magistrado valer-se dos mecanismos de integração do ordenamento jurídico, que são a analogia, os costumes, os princípios gerais do direito e a eqüidade. É certo, pois, que o art. 4º da LICC não se refere à eqüidade. Todavia, caso os outros mecanismos de integração sejam insuficientes, outra saída não há a não ser solucionar a lide pela equidade.

ANALOGIA

INTEGRAÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO

O legislador não poderia prever, de antemão, todas as hipóteses passíveis de ocorrência na vida real. É, pois, natural que a lei contenha lacunas.

Na ausência ou lacuna da lei, surgem os mecanismos de integração do ordenamento jurídico: analogia, costumes, princípios gerais do direito e eqüidade.

O direito não tem lacunas porque ele não se expressa apenas através da lei. Esta, sim, pode ser lacunosa e até ausente na disciplina do caso concreto. Analogia, costumes, princípios gerais do direito e eqüidade são outras formas de expressão do direito, aplicáveis somente na ausência ou lacuna da lei.

Efetivamente, dispõe o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil:

“Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

A integração da lei penal, porém, só acontece no campo das normas não incriminadoras, que beneficiam o réu. O nullum crimen, nulla poena sine lege impede que, na ausência ou lacuna da lei, o delito seja criado pela analogia, costumes ou princípios gerais do direito.

CONCEITO E FUNDAMENTO

A analogia é a aplicação, ao caso não previsto em lei, de lei reguladora de caso semelhante.

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Não se trata de mera interpretação da lei, mas, sim, de um mecanismo de integração do ordenamento jurídico.

O fundamento da analogia é o argumento pari ratione, da lógica dedutiva, segundo o qual para a solução do caso omisso aplica-se o mesmo raciocínio do caso semelhante.

ESPÉCIES DE ANALOGIA

A doutrina ainda costuma distinguir a analogia em: legal e jurídica. A primeira aplica, ao caso omisso, lei que regula caso semelhante. A segunda aplica, ao caso omisso, um princípio geral do direito. A analogia jurídica distingue-se da aplicação direta do princípio geral do direito. Com efeito, na analogia jurídica, aplica-se, ao caso não previsto em lei, um princípio geral do direito que rege caso semelhante. Já o princípio geral do direito é aplicado diretamente ao caso omisso.

NORMAS QUE NÃO ADMITEM ANALOGIA

Não admitem o emprego da analogia: a. leis restritivas de direito: são as que proíbem certa conduta. Por força do

princípio da legalidade, previsto no art. 5º, inc. II, da CF, o que não for proibido por lei é permitido, vedando-se, por conseqüência, a analogia.

b. leis excepcionais: são as que regulam de modo contrário à regra geral. A capacidade civil, por exemplo, é uma regra geral, sendo, pois, presumida. As exceções, vale dizer, os casos de incapacidade, encontram-se nos arts. 3º e 4º do CC, cujos róis não podem ser ampliados por analogia. Com efeito, o pressuposto da analogia é a lacuna da lei, isto é, a ausência de lei que regule determinada situação jurídica. No caso, não há falar-se em lacuna, porquanto as situações não elencadas na lei excepcional encontram-se automaticamente abrangidas pela norma geral.

c. leis administrativas: são as que disciplinam a atividade administrativa do Estado. O direito administrativo é regido pelo princípio da legalidade, segundo o qual o administrador público só pode fazer aquilo que a lei o autoriza, de forma expressa ou implícita. Administrar é, portanto, cumprir a lei. Se a lei não autoriza é porque o fato é proibido, razão pela qual torna-se inviável o emprego da analogia.

COSTUMES Costume é a repetição da conduta, de maneira constante e uniforme, em razão da convicção de sua obrigatoriedade. O costume requer dois elementos: o objetivo (repetição do comportamento) e o subjetivo (convicção de sua obrigatoriedade).

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A norma costumeira, que também é norma jurídica, pois é uma das formas de manifestação do direito, não surge ex abrupto, e, sim, paulatinamente, à medida que o povo vai tomando consciência de sua necessidade jurídica.

No Brasil, há o predomínio da lei escrita sobre a norma consuetudinária. E, no aspecto penal, o costume nunca pode ser empregado para criar delitos ou aumentar penas. Sua intromissão nesse campo, que é restrito à lei, é barrada pelo princípio da reserva legal.

Os costumes distinguem-se em:

a. Costume secundum legem: é o que auxilia a esclarecer o conteúdo de certos elementos da lei .

b. Costume contra legem ou negativo: é o que contraria a lei. c. Costume praeter legem: é o que supre a ausência ou lacuna da lei. É o

chamado costume integrativo.

Acrescente-se ainda que os costumes auxiliam na análise dos chamados standard jurídico. De acordo com Limongi França, standardjurídico é o critério básico de avaliação de certos preceitos jurídicos indefinidos, variáveis no tempo e no espaço, como, por exemplo, a noção de castigar imoderadamente o filho a que faz menção o art. 1638, inc. I, do CC. Finalmente, o costume judiciário ou jurisprudência é o conjunto de decisões judiciais no mesmo sentido, prolatadas de maneira uniforme e constante. Nem toda decisão judicial constitui jurisprudência. Esta não se confunde com ato jurisprudencial particularmente considerado. Urge, para caracterização da jurisprudência, que a decisão se repita de maneira uniforme e constante. No Brasil, em regra, a jurisprudência não tem valor vinculante, de modo que o magistrado pode afastar-se de sua orientação. Em certos casos, porém, a decisão judicial tem efeito vinculante, aplicando-se, a outros casos concretos. Refiro-me às seguintes hipóteses:

a. lei declarada inconstitucional em ação direta de inconstitucionalidade movida perante o STF. Nesse caso, todos os magistrados devem observar essa decisão, abstendo-se de aplicar essa lei.

b. lei declarada constitucional em ação declaratória de constitucionalidade movida perante o STF.

c. decisões normativas da Justiça do Trabalho acerca dos dissídios coletivos.

d. juízo de admissibilidade dos recursos. Com efeito, dispõe o art. 557 do CPC que o relator negará seguimento a recurso que confronta com súmula ou jurisprudência dominante do respectivo Tribunal.

e. súmula vinculante do STF. Com efeito, dispõe o art. 103-A da EC n. 45/2004 que o Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por

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provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. No § 1º dispõe que a Súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. O § 2º estabelece que sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação de inconstitucionalidade. E em seu § 3º que do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.

PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO

Divergem os juristas em torno do que se deve entender por princípios gerais do direito. De acordo com Serpa Lopes, os critérios propostos pela doutrina são os seguintes: a. os princípios gerais do direito são os relacionados ao próprio direito de

cada país; b. os princípios gerais do direito são os provindos do direito natural,

ensinados pela ciência, admitidos pela consciência geral como preexistentes a toda lei positiva;

c. os princípios gerais do direito são os princípios de eqüidade; d. os princípios gerais do direito são os preceitos básicos do direito

romano. Esses princípios são: viver honestamente; não lesar o próximo; dar a cada um o que é seu.

A nosso ver, princípios gerais do direito são os postulados que compõem o substractum comum a diversas normas jurídicas. São as premissas éticas que inspiram a elaboração das normas jurídicas. Vejamos alguns exemplos de princípios gerais do direito: “ninguém pode transferir mais direitos do que tem”; “ninguém pode invocar a própria malícia”; “ninguém deve ser condenado sem ser ouvido” etc.

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EQÜIDADE

INTRODUÇÃO

O direito não se restringe ao complexo de leis, e sim ao complexo de normas jurídicas que disciplinam a vida em sociedade. A lei é a forma escrita de expressão de direito. Na sua falta, o direito se projeta através de outras formas de expressão, quais sejam, a analogia, os costumes, os princípios gerais do direito e a eqüidade. Na sua essência, como salienta Miguel Reale, a eqüidade é a justiça bem aplicada, ou seja, prudentemente aplicada ao caso. Não se deve dissociá-la do direito, pois é uma das suas formas de expressão, completando-o, seja como valor interpretativo subordinado à lei, seja ditando a regra de conduta de um caso particular não previsto em lei. Não obstante a sua relevante importância em face do Direito, a Lei de Introdução ao Código Civil, ao referir-se aos mecanismos de integração do ordenamento jurídico, não fez menção expressa à eqüidade. A Constituição Federal também é silente. Não seguiu a orientação da Constituição de 1934, que, no art. 113, n. 37, dispunha que “nenhum juiz deixará de sentenciar por motivo de omissão na lei. Em tal caso deverá decidir por analogia, pelos princípios gerais de direito e por eqüidade”.

No plano jurídico, a eqüidade tem três funções:

a. na elaboração das leis; b. na aplicação do direito; c. na interpretação das leis.

Seu conceito varia, conforme a função assumida, embora na essência a eqüidade seja sempre uma forma de justiça.

A EQÜIDADE NA ELABORAÇÃO DAS LEIS

A eqüidade em sua função de elaboração das leis confunde-se com a idéia de justiça, tendo em vista que as leis são genéricas e a justiça também. Essa função de eqüidade é dirigida ao legislador. Este, na elaboração das leis, deve inspirar-se no senso de justiça, atento às necessidades sociais e ao equilíbrio dos interesses.

A EQÜIDADE E A APLICAÇÃO DO DIREITO

Na função de aplicação do direito, eqüidade significa a norma elaborada pelo magistrado para o caso concreto como se fosse o legislador. Cumpre relembrar o conceito de Aristóteles, segundo o qual eqüidade é a norma que o legislador teria prescrito para um caso concreto.

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Não se pense, porém, que o magistrado possa elaborar uma norma específica para o caso concreto em colidência com a norma legal. Semelhante raciocínio consagraria o conflito entre a eqüidade e o direito positivo, desprestigiando as normas legais. A lei, não obstante as suas deficiências, deve ser prestigiada e respeitada, porque é ela que dá sentido às instituições, representando um papel essencial à segurança jurídica. Não se deve, portanto, admitir a eqüidade contra legem, a menos que a própria lei a autorize expressamente. Por outro lado, na hipótese de lacuna da lei, a eqüidade como aplicação do direito, consistente na norma elaborada pelo magistrado para solucionar o caso concreto, é perfeitamente admissível na área penal, desde que em benefício do réu. Assim, o juiz pode elaborar a norma de eqüidade, desde que presentes os seguintes requisitos:

a. que o fato não esteja previsto em lei, isto é, que haja uma lacuna na lei; b. que não seja possível suprir a lacuna pela analogia, costumes e

princípios gerais do direito.

A despeito de o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil não se referir à eqüidade, urge reconhecer que ela pode também funcionar como a ultima ratio dos mecanismos de integração do ordenamento jurídico. Com efeito, o princípio da obrigatoriedade ou indeclinabilidade da jurisdição ordena que o juiz decida o caso concreto, ainda que não previsto em lei. O juiz não pode escusar-se de decidir. Se, diante da ausência da lei, for inviável a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito, o magistrado, para fazer valer o princípio da obrigatoriedade da jurisdição, deve inspirar-se na eqüidade e elaborar a norma para o caso concreto. Ao elaborar a dita norma não há qualquer violação ao princípio da separação dos poderes, pois o magistrado não está exercendo a função de legislador. Norma legal e norma de eqüidade distinguem-se nitidamente. A norma legal, isto é, a lei, é genérica e obrigatória para todos os casos. A norma de eqüidade é individual, específica para o caso concreto. Como se vê, não se trata de lei, de modo que não há afronta ao princípio da separação dos poderes. Além disso, a eqüidade não é extraída de sentimentos pessoais e emotivos do magistrado, e muito menos de convicções ideológicas, que só caracterizariam uma eqüidade cerebrina, isto é, uma falsa eqüidade. A norma de eqüidade deve ser fruto de um raciocínio jurídico universal. Deve ser obra de um trabalho científico. A norma há de ser elaborada com base nos princípios jurídicos existentes. A rigor, a norma já existe em estado latente, competindo ao magistrado apenas descobrí-la, e não propriamente criá-la.

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A EQÜIDADE NA INTERPRETAÇÃO DAS LEIS

A eqüidade como elemento interpretativo da lei é perfeitamente admissível. Como ensina Serpa Lopes, “não se golpeia o Direito positivo, não se abre a menor brecha na norma, cuja essência é respeitada, mas simplesmente esta, ao sopro vivificador da eqüidade, recebe nova coloração, rejuvenesce mais adaptada às exigências da vida. Trata-se de um movimento natural de interpretação, movimento científico que prescinde do lastreamento de uma autorização legal”. A eqüidade, na sua função de interpretar as leis, tem o significado de amenização do vigor excessivo das leis, dulcificando-as, adaptando-as ao caso concreto. Não se trata de elaboração de uma norma, mas de mera interpretação da lei, suavizando-a com o fito de desvendar a ratio legis. Modernamente, não se sustenta o pensamento dos exegetas que negam à eqüidade qualquer valor, fundados na idéia de que dentro da lei se encontra todo o sistema do direito. Esse tipo de raciocínio impede o progresso do direito, porque se encontra apegado excessivamente na vontade do legislador, transformando em permanente uma realidade social provisória. O fim da lei, como adverte Serpa Lopes, “não é buscado nela mesma ou no legislador, mas em função da sua adaptação aos fins sociais. Assim, a vontade do legislador não pode ser considerada senão na proporção de sua força interpretativa das necessidades sociais. Destinada a reger as relações dos indivíduos em sociedade, a lei deve ter um conteúdo dúctil, fluido, flexível, de modo a torná-la adaptável a todas as necessidades jurídicas e sociais que sobrevierem”.

A JUSTIÇA ALTERNATIVA

A justiça alternativa é o movimento que preconiza a aplicação do direito, valendo-se de duas premissas: 1ª. O juiz deve deixar de aplicar uma lei inconstitucional; 2ª. A interpretação da lei deve atender aos fins sociais e às exigências do

bem comum. A primeira premissa nada mais é do que o controle difuso ou aberto de constitucionalidade das leis. Qualquer magistrado, para decidir o caso concreto, pode declarar, incidentalmente, a inconstitucionalidade de uma lei, de modo que nenhuma novidade, nesse aspecto, apresenta a justiça alternativa. A segunda premissa encontra-se prevista no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil. Portanto, o próprio ordenamento jurídico recomenda que a lei seja interpretada de acordo com os fins sociais e as exigências do bem comum. Por conseqüência, não se trata de uma inovação da justiça alternativa.

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O aludido movimento ganhou corpo no Poder Judiciário do Rio Grande do Sul. O mérito da escola gaúcha não consiste propriamente na fixação das duas premissas acima, mas no questionamento do modelo tradicional de interpretação do direito. Com efeito, no modelo tradicional o julgamento é feito pelo processo de subsunção da norma ao fato concreto. A justiça alternativa inverte a relação entre a norma e o fato, tomando o fato como objeto principal do conhecimento. Noutras palavras, a justiça alternativa parte do pressuposto de que a norma regula uma situação padrão de fato, escusando-a de aplicá-la em relação a certos fatos que destoam da situação normal para qual a lei foi criada.

BREVE ESTUDO DAS ANTINOMIAS OU LACUNAS DE CONFLITO DAS NORMAS JURÍDICAS, SEGUNDO O PROF. FLÁVIO TARTUCE

Com o surgimento de qualquer lei nova, ganha relevância o estudo das antinomias, também denominadas lacunas de conflito. Isso porque devemos conceber o ordenamento jurídico como um sistema aberto, em que há lacunas. Dessa forma, a antinomia é a presença de duas normas conflitantes, válidas e emanadas de autoridade competente, sem que se possa dizer qual delas merecerá aplicação em determinado caso concreto.

No presente estudo, utilizaremos as regras muito bem expostas na obra “Conflito de Normas”, de Maria Helena Diniz (Conflito de Normas. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, p. 34 a 51), bem como os ensinamentos que foram transmitidas pela renomada professora na disciplina “teoria geral do direito” no curso de mestrado da PUC/SP. Não há dúvidas que, por diversas vezes, esse trabalho será fundamental para a compreensão dos novos conceitos privados, que emergiram com a nova codificação.

Na análise das antinomias, três critérios devem ser levados em conta para a solução dos conflitos: a. critério cronológico: norma posterior prevalece sobre norma anterior; b. critério da especialidade: norma especial prevalece sobre norma geral;c. critério hierárquico: norma superior prevalece sobre norma inferior.

Dos três critérios acima, o cronológico, constante do art. 1º da LICC, é o mais fraco de todos, sucumbindo frente aos demais. O critério da especialidade é o intermediário e o da hierarquia o mais forte de todos, tendo em vista a importância do Texto Constitucional, em ambos os casos. Superada essa análise, interessante visualizar a classificação das antinomias, quanto aos critérios que envolvem, conforme esquema a seguir: - Antinomia de 1º grau: conflito de normas que envolve apenas um dos

critérios acima expostos.

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- Antinomia de 2º grau: choque de normas válidas que envolve dois dos critérios antes analisados.

Ademais, havendo a possibilidade ou não de solução, conforme os meta-critérios de solução de conflito, é pertinente a seguinte visualização: - Antinomia aparente: situação em que há meta-critério para solução de

conflito.- Antinomia real: situação em que não há meta-critério para solução de

conflito, pelo menos inicial, dentro dos que foram anteriormente expostos.

De acordo com essas classificações, devem ser analisados os casos práticos em que estão presentes os conflitos:

No caso de conflito entre norma posterior e norma anterior, valerá a primeira, pelo critério cronológico (art. 1º LICC), caso de antinomia de primeiro grau aparente.

Norma especial deverá prevalecer sobre norma geral, emergencial que é o critério da especialidade, outra situação de antinomia de primeiro grau aparente.

Havendo conflito entre norma superior e norma inferior, prevalecerá a primeira, pelo critério hierárquico, também situação de antinomia de primeiro grau aparente.

Esses são os casos de antinomia de primeiro grau, todos de antinomia aparente, eis que presente solução, dentro das meta-regras para solução de conflito. Passamos então ao estudo das antinomias de segundo grau:

Em um primeiro caso de antinomia de segundo grau aparente, quando se tem um conflito de uma norma especial anterior e outra geral posterior, prevalecerá o critério da especialidade, valendo a primeira norma.

Havendo conflito entre norma superior anterior e outra inferior posterior, prevalece também a primeira (critério hierárquico), outro caso de antinomia de segundo grau aparente.

Finalizando, quando se tem conflito entre uma norma geral superior e outra norma, especial e inferior, qual deve prevalecer?

Ora, em casos tais, como bem expõe Maria Helena Diniz não há uma meta-regra geral de solução do conflito sendo caso da presença de antinomia real. São suas palavras:

“No conflito entre o critério hierárquico e o de especialidade, havendo uma norma superior-geral e outra norma inferior especial, não será possível estabelecer uma meta-regra geral, preferindo o critério hierárquico ao da especialidade ou vice-versa, sem contrariar a adaptabilidade do direito. Poder-se-á, então, preferir qualquer um dos critérios, não existindo, portanto, qualquer prevalência. Todavia, segundo Bobbio, dever-se-á optar,

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DIREITO CIVIL - LICC – PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

teoricamente, pelo hierárquico; uma lei constitucional geral deverá prevalecer sobre uma lei ordinária especial, pois se se admitisse o princípio de que uma lei ordinária especial pudesse derrogar normas constitucionais, os princípios fundamentais do ordenamento jurídico estariam destinados a esvaziar-se, rapidamente, de seu conteúdo. Mas, na prática, a exigência de se adotarem as normas gerais de uma Constituição a situações novas levaria, às vezes, à aplicação de uma lei especial, ainda que ordinária, sobre a Constituição. A supremacia do critério da especialidade só se justificaria, nessa hipótese, a partir do mais alto princípio da justiça: suum cuique tribuere, baseado na interpretação de que ‘o que é igual deve ser tratado como igual e o que é diferente, de maneira diferente’. Esse princípio serviria numa certa medida para solucionar antinomia, tratando igualmente o que é igual e desigualmente o que é desigual, fazendo as diferenciações exigidas fática e valorativamente”. (Conflito de normas, cit., p. 50)

Na realidade, o critério da especialidade é de suma importância, pois também está previsto na Constituição Federal de 1988. O art. 5 º do Texto Maior consagra o princípio da isonomia ou igualdade lato sensu, reconhecido como cláusula pétrea, pelo qual a lei deve tratar de maneira igual os iguais, e de maneira desigual os desiguais. Na parte destacada está o princípio da especialidade, que deverá sempre prevalecer sobre o cronológico, estando justificado esse domínio. Mesmo quanto ao critério da hierarquia, discute-se se o critério da especialidade deve mesmo sucumbir.

Desse modo, havendo essa antinomia real, dois caminhos de solução podem ser percorridos, um pela via do Poder Legislativo e outro pelo Poder Judiciário.

Pelo Poder Legislativo, cabe a edição de uma terceira norma, dizendo qual das duas normas em conflito deve ser aplicada. Mas, para o âmbito jurídico, o que mais interessa é a solução do Judiciário.

Assim, o caminho é a adoção do “princípio máximo de justiça”, podendo o magistrado, o juiz da causa, de acordo com a sua convicção e aplicando os arts. 4º e 5º da LICC, adotar uma das duas normas, para solucionar o problema.

Mais uma vez entram em cena esses importantes preceitos da Lei de Introdução ao Código Civil. Pelo art. 4º, deve o magistrado aplicar, pela ordem, a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito. Seguindo o que preceitua o seu art. 5º, deve o juiz buscar a função social da norma e as exigências do bem comum, a pacificação social.

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DIREITO CIVIL - LICC – PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

QUESTÕES

1. Quais as duas hipóteses de perda da validade da norma? 2. A lei revogada pode surtir efeitos? 3. O que é revogação? 4. Qual a diferença entre ab-rogação e derrogação? 5. Quais as espécies de revogação? 6. O que é revogação expressa? 7. O que é revogação tácita? 8. O que é o princípio da conciliação ou das esferas autônomas? 9. O que é revogação global? 10. A lei federal revoga a lei estadual? 11. O que é o princípio da segurança das relações jurídicas? 12. A lei pode retroagir? 13. A lei vigente pode ser ineficaz? 14. O que é caducidade? 15. O que é desuso? 16. O que é costume negativo? 17. Quais os mecanismos de integração do ordenamento jurídico? 18. O Direito tem lacunas? 19. O que é analogia e qual o seu fundamento? 20. Qual a diferença entre analogia legal e analogia jurídica? 21. Quais as leis que não admitem analogia? 22. O que é costume e quais as suas espécies? 23. O que é standard jurídico? 24. O que é costume judiciário? 25. É possível a súmula vinculante? 26. Qual é o procedimento para aprovação da súmula vinculante? 27. Qual é a abrangência do efeito vinculante? 28. Qual é o objetivo da súmula vinculante? 29. Quem tem legitimidade para provocar a aprovação, revisão ou

cancelamento da súmula vinculante? 30. O que acontece ao ato administrativo ou decisão judicial que contraria

a súmula vinculante? 31. O que são princípios gerais de direito? 32. Quais as funções da equidade? 33. O juiz pode decidir por equidade? 34. O que é justiça alternativa? 35. O que são antinomias ou lacunas de conflito? 36. Quais os três critérios que solucionam as antinomias? 37. Qual a diferença entre os critérios cronológico, da especialidade e

hierárquico? 38. Dos critérios acima, qual é o mais forte e o mais fraco? 39. O que é antinomia de 1º grau?

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DIREITO CIVIL - LICC – PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

40. O que é antinomia de 2º grau? 41. O que é antinomia aparente? 42. O que é antinomia real? 43. Cite três casos de antinomias de 1º grau aparente. 44. Cite dois casos de antinomias de 2º grau aparente. 45. Em que hipótese ocorre a antinomia real? Como Bobbio soluciona o

problema?

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DIREITO CIVIL PARTE GERAL

TOMO I

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO II

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DIREITO CIVIL- PARTE GERAL - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

CAPACIDADE

CONCEITO E ESPÉCIES

Duas são as espécies de capacidade, a de direito e a de fato. A capacidade de direito ou de gozo é a aptidão para ser titular de direitos e deveres na ordem civil. Trata-se, na verdade, da própria personalidade. Toda pessoa é capaz de direito. Assim, em relação às pessoas, inexiste a incapacidade civil de direito. Pode, porém, ocorrer certas restrições de direitos, sobretudo, com relação aos estrangeiros domiciliados fora do Brasil, mas, de um modo geral, eles podem adquirir a maioria dos direitos e deveres, desfrutando, portanto, dessa capacidade. A capacidade de fato ou de exercício, como ensina Clóvis Beviláqua, é a aptidão para exercer por si os atos da vida civil. É, pois, a aptidão para praticar pessoalmente os atos da vida civil, independentemente de assistência ou representação. A capacidade de fato é presumida; não necessita ser demonstrada. Todavia, algumas pessoas são consideradas absolutamente incapazes e outras relativamente incapazes, como logo veremos. A incapacidade de fato, porém, não restringe a personalidade. Em regra, o incapaz pode praticar todos os atos e negócios jurídicos que a pessoa capaz, desde que assistido ou representado pelo representante legal. Como salienta Fábio Ulhoa Coelho, apenas por expressa disposição da lei excepcional pode-se negar ao incapaz a prática de ato ou negócio jurídico praticável pelo capaz. Não havendo disposição expressa proibitiva, o incapaz, como pessoa que é, está autorizado a praticar todo e qualquer ato ou negócio jurídico, desde que assistido ou representado pelo representante legal.

INCAPACIDADE ABSOLUTA E INCAPACIDADE RELATIVA

As pessoas absolutamente incapazes não podem praticar pessoalmente os atos da vida civil, sob pena de nulidade absoluta (art. 166, I, do CC). Devem ser representadas nos atos ou negócios jurídicos pelos respectivos representantes legais (pais, tutor e curador). O representante realiza o ato ou negócio jurídico sem que haja qualquer participação do incapaz. Dispõe o art. 3º do CC que são absolutamente incapazes:

I. os menores de dezesseis anos; II. os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário

discernimento para a prática desses atos; III. os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Por outro lado, as pessoas relativamente incapazes podem praticar pessoalmente os atos da vida civil, desde que assistidas pelos

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representantes legais (pais, tutor ou curador). O ato praticado sem essa assistência não é nulo, mas apenas anulável (art. 171, I). Ressalte-se, porém, a existência de alguns atos praticáveis validamente sem a assistência. Com efeito, a partir dos dezesseis anos já é possível, sem assistência, fazer testamento, aceitar mandato, votar e casar. Saliente-se que, para o casamento, não é necessário a assistência, mas sim a autorização do representante legal. Dispõe o art. 4º do CC que são relativamente incapazes:

I. os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II. os ébrios habituais, os viciados em tóxicos e os que, por deficiência

mental, tenham o discernimento reduzido; III. os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV. os pródigos. Por outro lado, cumpre consignar que não corre prescrição contra os absolutamente incapazes, conforme preceitua o art. 198, I do CC, sendo certo que ainda podem recobrar dívida de jogo, cujo pagamento tenha sido por eles efetuado (art. 814). Essas duas vantagens, porém, não são aplicáveis aos relativamente incapazes, que não poderão recobrar as dívidas de jogo, submetendo-se, ainda, à prescrição. Finalmente, na proteção ao incapaz não se compreende o benefício de restituição ou “restitutio in integrum”, que possibilitava a anulação dos atos válidos praticados pelo representante legal, em nome do incapaz, toda vez que esse último sofresse algum prejuízo. Não obstante o silêncio do Código de 2002, o benefício de restituição deve ser rejeitado, pois fere o princípio da segurança das relações jurídicas. É anulável, porém, o negócio concluído pelo representante em conflito de interesses com o representado, se tal fato era ou devia ser do conhecimento de quem com aquele tratou. É de cento e oitenta dias, a contar da conclusão do negócio ou da cessação da incapacidade, o prazo de decadência para pleitear-se a anulação do ato (art 119 e seu parágrafo único). Essa possibilidade de anulação nada tem a ver com o benefício de restituição, que invalidava os atos válidos, ao passo que o citado art. 119 do CC pressupõe a má-fé do representante e da parte contrária, o que torna o ato inválido, razão pela qual a lei prevê a sua anulação.

DISTINÇÃO ENTRE REPRESENTAÇÃO E ASSISTÊNCIA

Na representação, o incapaz não esboça a sua vontade em relação à decisão pela prática ou não do ato ou negócio jurídico, pois esta é tomada pelo representante legal, ao passo que na assistência o próprio incapaz decide se pratica ou não o ato ou negócio jurídico, esboçando, portanto, a sua vontade, limitando-se o representante legal a apenas presenciá-lo durante a celebração do ato.

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Em suma, na representação, o ato é praticado pelo representante em nome do incapaz. Este último sequer participa do ato. Na assistência, o ato é praticado pelo próprio incapaz, mas na presença do representante legal. Saliente-se, ainda, que todas as pessoas capazes são aptas para dar procuração mediante instrumento particular, conforme preceitua o art. 654 do CC. A contrario senso, os incapazes devem outorgar a procuração por instrumento público. Interpretando esse dispositivo legal, que corresponde ao art. 1.289 do Código de 1916, pacificou-se a jurisprudência de que a procuração do absolutamente incapaz pode ser por instrumento particular, porquanto outorgada por pessoa capaz, qual seja, o seu representante legal. Em contrapartida, tratando-se de relativamente incapaz, a procuração deve ser por instrumento público, pois é outorgada pelo próprio incapaz sob a assistência de seu representante. Recentemente, a jurisprudência vem amenizando esse entendimento, salientando que a procuração “ad judicia” do relativamente incapaz também pode ser outorgada por instrumento particular, com base no art. 38 do CPC, exigindo-se o instrumento público apenas para a procuração “ad negocia”.

DISTINÇÃO ENTRE REPRESENTAÇÃO E SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL

O substituto processual é aquele que defende em nome próprio um interesse alheio. Tal ocorre, por exemplo, quando o cidadão ajuíza a ação popular ou então quando o Ministério Público promove as ações civis públicas. O representante legal, ao revés, não age em nome próprio, mas sim em nome da própria pessoa, cujo interesse defende.

DISTINÇÃO ENTRE INCAPACIDADE E FALTA DE LEGITIMAÇÃO

A legitimação é a posição favorável da pessoa em relação a certos bens ou interesses, habilitando-a, destarte, à prática dos atos ou negócios jurídicos. Excepcionalmente, porém, a lei nega essa legitimação, vedando a prática de certos atos. Fala-se, então, em falta de legitimação, que é o impedimento para a prática de determinados atos ou negócios jurídicos, uma espécie de incapacidade “ad hoc”. Tal ocorre, por exemplo, quando a lei proíbe o tutor de adquirir bens do pupilo (art. 497, I, do CC), outrossim, obsta a concubina do testador casado de ser nomeada herdeira ou legatária (art. 1801, III, do CC).

Anote-se que a falta de legitimação é o impedimento específico para certos atos ou negócios jurídicos, ao passo que a incapacidade é genérica, estendendo-se a praticamente todos os atos ou negócios jurídicos.

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A falta de legitimação é imposta por lei, em alguns casos, atendendo-se à posição especial em relação a certos bens, certas pessoas ou certos interesses; a incapacidade, ao revés, é fixada pela lei, tendo em vista as deficiências da consciência ou vontade.

DISTINÇÃO ENTRE ASSISTÊNCIA E AUTORIZAÇÃO

A autorização é a permissão dada por um terceiro para que o ato ou negócio jurídico possa ser realizado. Tal ocorre, por exemplo, quando o cônjuge deseja alienar bem imóvel. Ainda que este seja de sua exclusiva propriedade, exige-se a autorização do outro consorte, exceto no regime de separação absoluta (art. 1.647, I, do CC). Igualmente, na venda de ascendente para descendente é necessária a autorização dos outros descendentes (art. 496). Acrescente-se ainda que o menor, a partir dos 16 anos, pode se casar, mediante autorização do representante legal. Cumpre observar que a autorização é exigida antes da prática do ato, podendo a sua falta ser suprida por decisão judicial. A assistência, ao revés, é dada durante o ato, e, se for negada, não poderá ser suprida judicialmente. Finalmente, a autorização é exigida até para as pessoas capazes, ao passo que a assistência é inerente aos relativamente incapazes.

ROL DOS ABSOLUTAMENTE INCAPAZES

São absolutamente incapazes: a. menores de 16 anos; b. enfermos mentais; c. deficientes mentais; d. pessoas que não exprimem vontade. Trata-se de rol taxativo, porquanto a lei excepcional não admite a analogia. A capacidade é uma presunção legal, e, por isso, não há necessidade de ser demonstrada. Em regra, as pessoas são capazes, de modo que as exceções só são admitidas quando expressas em lei.

O velho, o falido, o mudo, o surdo-mudo, o cego e o deficiente físico são plenamente capazes.

Com efeito, a velhice não reduz a capacidade civil, a não ser que haja a perda ou redução do discernimento em razão de algum distúrbio psíquico, quando, então, a causa da incapacidade terá sido a alienação mental e não propriamente a idade avançada. Saliente-se, contudo, que os maiores de 60 anos só poderão contrair matrimônio no regime da separação de bens. Em relação ao falido, verifica-se a proibição ao exercício do comércio, porque com a decretação da falência ele perde a administração de seus bens. Anote-se, contudo, que o falido preserva a capacidade civil, perdendo apenas a sua capacidade comercial.

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Quanto ao mudo e surdo-mudo, como veremos, desde que exprimam a vontade de um modo satisfatório são tidos como plenamente capazes. Todavia, não podem fazer outro tipo de testamento, a não ser o testamento cerrado (art. 1.873). O cego, por sua vez, também é plenamente capaz. Entretanto, só poderá realizar o testamento público (art. 1.867). Acrescente-se, ainda, que os cegos e surdos não podem ser admitidos como testemunhas, quando a ciência do fato que se quer provar depender dos sentidos que lhes faltam (art. 228, III, do CC). Finalmente, os deficientes físicos também são plenamente capazes. Não obstante, o Código permite que lhes seja nomeado curador caso requeiram para cuidar de todos ou alguns de seus negócios. Essa norma prevista no art. 1.780 do CC, que é salutar, pode compreender os cegos, surdos, mudos, paralíticos e tantos outros. Trata-se de uma curatela especial envolvendo pessoas capazes, restrita apenas aos aspectos patrimoniais.

MENORES DE DEZESSEIS ANOS

Há uma presunção absoluta de que os menores de 16 anos, também denominados de impúberes, não ostentam desenvolvimento intelectual e social suficientes para a prática dos atos da vida civil, razão pela qual devem ser representados, sob pena de nulidade absoluta do ato ou negócio. Assim, se esse menor comprar determinado bem, o vendedor não poderá propor ação de cobrança, porque, sendo o ato nulo, nenhum efeito pode produzir, de modo que as partes devem retornar ao “status quo ante”, operando-se a devolução da coisa e do sinal recebido pelo vendedor.

ENFERMO MENTAL E DEFICIENTE MENTAL

A enfermidade mental é uma doença que acomete a pessoa mentalmente sã, privando-a do necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil. Tal ocorre, por exemplo, com a depressão profunda.

A deficiência mental, por sua vez, consiste na alteração da capacidade psíquica, comprometendo-se o nível de inteligência da pessoa.

Sobre a distinção entre a enfermidade mental e a deficiência mental, convém destacar três aspectos.

Primeiro, a enfermidade mental é uma doença psíquica que se desenvolve em pessoa mentalmente sã; a deficiência mental pode ser congênita ou então atingir abruptamente a pessoa sã, como, por exemplo, o traumatismo craniano.

Segundo, a enfermidade mental normalmente é transitória; a deficiência mental, ao revés, normalmente é permanente.

Terceiro, o enfermo mental só pode ser interditado como sendo absolutamente incapaz, quando não tiver o necessário discernimento para prática

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dos atos da vida civil, mantendo-se, destarte, a capacidade plena quando esse discernimento estiver apenas reduzido, ao passo que o deficiente mental pode ser interditado como sendo absolutamente incapaz ou relativamente incapaz, conforme o seu discernimento esteja suprimido ou reduzido.

Vale a pena observar, também, que o deficiente mental, cujo discernimento encontra-se preservado, é tido como capaz, sendo, pois, vedada a sua interdição.

PESSOAS QUE NÃO EXPRIMEM A VONTADE

A pessoa que não pode exprimir a vontade, ainda que por causa transitória, é tida como absolutamente incapaz. Exemplo: pessoa em coma.

O artigo 1.767, inciso II, do CC, porém, só admite a interdição da pessoa que, por causa duradoura, não puder exprimir a sua vontade. Se a causa for transitória, não obstante a incapacidade absoluta, prevista no art. 3º, III, do CC, o Código é silente sobre a possibilidade da interdição, aliás, implicitamente acaba vedando-a à medida em que só a admite para as causas duradouras. Se houver necessidade, cremos que o juiz poderá nomear um curador quando a causa de incapacidade for transitória, aplicando-se o art. 1780 do CC. Esse curador poderá ser nomeado para cuidar de todos ou alguns de seus negócios ou bens.

No tocante ao surdo-mudo, o assunto é polêmico. Para Miguel Reale, os surdos-mudos são considerados como relativamente incapazes, enquadrando-se como excepcionais, sem desenvolvimento completo, previsto no art. 4º, inciso III do CC. Renan Lotufo, por sua vez, salienta que os surdos-mudos que não puderem expressar sua vontade devem ser considerados como absolutamente incapazes, com fulcro no inciso III deste art. 3º.

A nosso ver, o surdo-mudo que não externa a sua vontade deve ser tido como absolutamente incapaz, enquadrando-se no art. 3º, III, do CC, podendo ser interditado, porque a causa da surdo-mudez, qual seja, a lesão aos centros nervosos, é permanente, e não apenas transitória. Se, todavia, a sua incapacidade for apenas parcial, deve ser interditado como relativamente incapaz, enquadrando-se entre os excepcionais, sem desenvolvimento completo, previsto no art. 4º, III, do CC.

Saliente-se, ainda, que se puder exprimir seu pensamento com discernimento não será incapaz. Portanto, o surdo-mudo pode ser: a. absolutamente incapaz (art. 3º, III); b. relativamente incapaz (art. 4º, IV); c. plenamente capaz.

Essa solução também deve ser aplicada para os afônicos.

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ROL DOS RELATIVAMENTE INCAPAZES

São relativamente incapazes: a. os maiores de 16 anos e os menores de 18 anos; b. ébrios habituais; c. viciados em tóxicos; d. deficientes mentais; e. excepcionais; f. pródigos.

MAIORES DE 16 ANOS E MENORES DE 18 ANOS

O menor, entre dezesseis e dezoito anos, sob o prisma jurídico, é denominado púbere. Equiparam-se aos maiores quando dolosamente ocultam a idade, ao serem inquiridos pela outra parte, ou se, no ato de obrigarem-se, declararam-se maiores (art. 180). Nesse caso, o contrato deve ser cumprido, ainda que celebrado sem a assistência do representante legal, por força do citado art. 180 do CC, inspirado no princípio de que não se pode alegar a própria torpeza. Vimos, por outro lado, que certos atos esse menor pode praticar sem assistência: a. servir de testemunha, inclusive em testamentos (art. 228); b. testar (art. 1.627); c. ser mandatário (art. 666); d. votar. Finalmente, no dia do aniversário de 16 anos, esse menor já é relativamente incapaz, pois o art. 3º, I, do CC considera absolutamente incapaz os menores de 16 anos. É certo, pois, que o art. 4º, I, do CC ao referir-se aos relativamente incapaz fez menção aos maiores de 16 anos e menores de 18 anos. Todavia, o art. 180 do CC, que também cuida dos menores púberes, utiliza a expressão “menor entre dezesseis e dezoito anos”.

A rigor, no dia do aniversário de 16 anos, o adolescente não é menor nem maior de 16 anos, pois, nesse dia, tem exatamente 16 anos, só será maior de 16 anos a partir do dia seguinte. A interpretação sistemática, porém, inspirado no art. 180 do CC, permite a adoção da exegese que o considera relativamente incapaz desde a data de seu aniversário de 16 anos.

ÉBRIOS HABITUAIS E VICIADOS EM TÓXICOS

Os ébrios habituais são os alcoólatras. Urge, para que se proceda a interdição, a presença de dois requisitos: a. embriaguez habitual, isto é, quase que diária; b. perturbação do discernimento. Se o agente bebe diariamente, mas de

forma moderada, exprimindo satisfatoriamente o seu pensamento, é porque não é incapaz; nesse caso, não poderá ser interditado.

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No tocante aos viciados em tóxicos, a lei não exige a habitualidade, isto é, o uso quase que diário, admitindo a interdição, ainda que o consumo seja intervalado, como, por exemplo, uma vez por semana ou de quinze em quinze dias. É mister, porém, a presença de dois requisitos:

a. o vício, isto é, o uso reiterado de substância entorpecente. Esse uso, como vimos, não precisa ser diário. É crucial, porém, o diagnóstico sobre a existência do vício, caracterizada pela situação de dependência da droga;

b. perturbação do discernimento. O uso moderado de tóxico, conquanto criminoso, não implica em incapacidade da pessoa, quando esta preserva o discernimento. Os ébrios habituais e os viciados em tóxicos são considerados

relativamente incapazes pelo Código de 2002. Todavia, a legislação especial os qualifica como absolutamente ou relativamente incapazes, conforme a gravidade do estado mental ou de intoxicação (Decreto nº 24.559/34 e Lei nº 891/38). Alguns autores sustentam que essas duas espécies de incapacidade ainda prevalecem, porque a lei geral não revoga a especial. O assunto, porém, não é pacífico. Fábio Ulhoa Coelho, por exemplo, assevera que o vício é sempre causa de incapacidade relativa, qualquer que seja a situação do viciado. A rigor, não há lugar para polêmica, pois, caso o ébrio habitual ou toxicômano não possam exprimir a vontade, devem ser considerados absolutamente incapazes, por força do art. 3º, III, do CC, de modo que nem há necessidade de se valer da legislação especial (Decreto nº 24.559/34 e Lei nº 891/38). Ademais, o art. 2.043 do Código Civil, revogou tacitamente as disposições de natureza civil anteriores à sua vigência à medida em que ressalvou apenas as de natureza processual, administrativa e penal.

Finalmente, o juiz, atento ao grau de lucidez do interditando, pode amenizar os efeitos da interdição, restringindo-a aos atos de maior relevo, à semelhança do que por força de lei, já ocorre, automaticamente, em relação ao pródigo (art. 1.772).

DEFICIENTES MENTAIS E EXCEPCIONAIS

Os deficientes mentais e os excepcionais apresentam um quociente de inteligência abaixo de 70.

O deficiente mental, como vimos, pode ser absolutamente incapaz ou relativamente incapaz, conforme o seu discernimento seja suprimido ou reduzido.

Quanto ao excepcional sem desenvolvimento completo, a lei o enquadrou apenas como relativamente incapaz. Fábio Ulhoa Coelho salienta que não há distinção entre o excepcional sem desenvolvimento completo e o deficiente mental com redução de discernimento, sobretudo, porque o conceito de “excepcional” tem emprego na pedagogia, e não na medicina, destinando-se a identificar os alunos com demandas especiais de aprendizados, inclusive em função de portarem deficiência mental leve.

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Na verdade, a expressão “excepcionais sem desenvolvimento completo” acaba realmente abarcando a parcela dos deficientes mentais passíveis de um adestramento para a execução de tarefas simples ou então de uma educação lenta e singela, onde possam aprender os rudimentos da leitura e das operações matemáticas; outrossim, os surdos-mudos e afônicos, parcialmente incapazes, pois, embora não apresentem deficiência mental, acabam também se aproximando dos alienados mentais, carecendo, portanto, de uma educação especializada. O legislador preferiu pecar pelo excesso, utilizando as duas expressões, quais sejam, deficientes mentais e excepcionais, para deixar bem claro a existência de excepcionais que não apresentam anomalias mentais, como é o caso do surdo-mudo.

PRÓDIGO

Pródigo é o indivíduo que dilapida o seu patrimônio, de forma imoderada e habitual, pondo em risco o próprio sustento e de seus familiares.

O reconhecimento da prodigalidade depende dos seguintes requisitos: a. gastos habituais excessivos, isto é, imoderados, desordenados,

desenfreados;b. risco ao próprio sustento ou de sua família. Os gastos excessivos, ainda que habituais, por si só, não revelam a prodigalidade. Urge, para tanto, o surgimento do risco de dilapidação do patrimônio. Quanto ao viciado em jogo, paira controvérsia sobre o seu estado de prodigalidade. A jurisprudência oscila num e noutro sentido. Falta-lhe, a nosso ver, a generosidade, que é uma das características peculiares ao pródigo. O pródigo é considerado relativamente incapaz (art. 4º, IV). Pródigos são pessoas que, movidas por compulsão, dilapidam habitualmente seus bens, colocando em risco o próprio sustento e de sua família. A interdição do pródigo restringe-se aos atos patrimoniais. Com efeito, necessitará de curador apenas para assisti-lo em empréstimos, transações, quitações, alienações, hipotecas; enfim, para praticar, em geral, os atos que não sejam de mera administração (art.1.782). Quanto aos atos pessoais, isto é, não patrimoniais, por exemplo, o casamento, o pródigo é plenamente capaz, prescindindo-se da assistência do curador, salvo quanto a escolha do regime de bens, cujo conteúdo é patrimonial, sendo, pois, essencial a assistência. Finalmente, no Código de 1916, a interdição do pródigo só era possível quando houvesse cônjuge, ascendente ou descendente, que pudessem promovê-la. Não mais existindo esses parentes, a interdição era

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cancelada. Portanto, o pródigo, a rigor, não era protegido, pois o legislador preocupava-se apenas com os seus familiares. No Código de 2002, o pródigo pode ser interditado, ainda que não tenha cônjuge, ascendente ou descendente. Com efeito, a interdição pode ser movida por qualquer parente, e, subsidiariamente, pelo Ministério Público, colocando-se, portanto, o pródigo no mesmo nível de proteção dos demais incapazes.

ÍNDIOS

A capacidade do índio, conforme preceitua o parágrafo único do art. 4º do CC, é regida por lei especial. O assunto encontra-se regulamentado pela Lei nº 6001/73, também denominada de Estatuto do índio. O índio não integrado à civilização apresenta uma incapacidade “sui generis”, pois, de um lado, assemelha-se aos relativamente incapazes à medida em que é assistido pela FUNAI na prática dos atos ou negócios jurídicos, mas, de outro lado, aproxima-se dos absolutamente incapazes, porquanto sem a aludida assistência os atos ou negócios jurídicos serão nulos e não apenas anuláveis. Observe-se, contudo, que os atos praticados pelos absolutamente incapazes são sempre nulos, independentemente de prejuízo, ao passo que os atos praticados pelo índio sem a assistência da FUNAI só serão nulos se lhes for prejudicial, caso contrário reputam-se válidos. Saliente-se, ainda, que o art. 5º, da Lei 6.015/73 preceitua que os índios, enquanto não integrados, não estão obrigados a inscrição do nascimento. Este poderá ser feito em livro próprio da FUNAI. Finalmente, o Código de 2002 substituiu o termo “silvícolas” por “índios”. A alteração foi salutar, porque silvícola é o habitante da selva, ao passo que o índio encontra-se protegido ainda que a comunidade indígena se localize nos centros urbanos.

AQUISIÇÃO DA CAPACIDADE PLENA

FORMAS DE AQUISIÇÃO

A pessoa adquire a capacidade plena pelas seguintes formas:a. maioridade civil; b. levantamento da interdição; c. integração do índio; d. emancipação.

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A MAIORIDADE CIVIL

A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada para a prática de todos os atos da vida civil (art. 9º do CC). Assim, a pessoa se torna maior e capaz no primeiro momento do dia do aniversário de 18 anos. Se ela nasceu num ano bissexto, a 29 de fevereiro, a maioridade será alcançada no 18º ano, mas a 1º de março. Ressalte-se que a maioridade civil foi reduzida para 18 anos, pois no Código de 1916 essa maioridade só era atingida aos 21 anos. O principal argumento para essa redução é o fato da capacidade penal e a capacidade eleitoral iniciarem aos 18 anos. O legislador buscou, portanto, a uniformidade. Por outro lado, como sustenta Washington de Barros Monteiro, se ignorada a data do nascimento, exigir-se-á exame médico, porém, na dúvida, pender-se-á pela capacidade, pois esta é presumida. Finalmente, cumpre observar que, em regra, a maioridade civil implica na capacidade civil da pessoa. Todavia, nas hipóteses dos arts. 3º e 4º do CC, não obstante a maioridade civil, persiste a incapacidade. Em contrapartida, em regra, a menoridade implica na incapacidade civil da pessoa, salvo quando esta estiver emancipada.

LEVANTAMENTO DA INTERDIÇÃO

O art. 1.767 elenca as pessoas sujeitas à interdição, a saber: a. aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o

necessário discernimento para os atos da vida civil; b. aqueles que, por causa duradoura, não puderem exprimir a sua vontade; c. os deficientes mentais, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos; d. os excepcionais, sem o completo desenvolvimento mental; e. os pródigos. A sentença de interdição é passível de apelação sem efeito suspensivo, produzindo, desde logo, os seus efeitos, embora sujeita a recurso (art. 1.773). Aludida sentença será inscrita no Registro Civil das Pessoas Naturais e averbada no registro de nascimento do interditando. Além disso, será publicada na imprensa local e oficial por três vezes, constando no edital o nome do interdito e do curador, a causa da interdição e os limites da curatela (art. 1.184 do CPC). A sentença de interdição é meramente declaratória, podendo seus efeitos retroagir à data do início da incapacidade. Não é a sentença que gera a incapacidade, sendo, portanto, incoerente o ponto de vista dos que a consideram constitutiva. Saliente-se, porém, que, no procedimento de interdição, não há qualquer discussão acerca da nulidade dos atos praticados pelo incapaz.

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Esses não se desfazem automaticamente, isto é, com a mera decretação da interdição. Urge que se mova a ação de nulidade ou anulação dos atos e negócios jurídicos, propiciando a ampla defesa à parte contratante, que, por sinal, sequer participa do procedimento de interdição. Não obstante a regra seja a invalidade dos atos anteriores à sentença, o juiz pode preservá-los quando a outra parte contratante demonstrar a boa-fé e o erro escusável acerca do estado mental do interditando. Entretanto, como adverte Silvio Rodrigues, se a alienação mental era notória, se o outro contratante dela tinha conhecimento, ou se podia, com diligência ordinária, apurar a deficiência da outra parte, então o negócio é suscetível de anulação, pois a idéia de proteção à boa-fé não mais se manifestará. Acrescente-se, ainda, que, antes da interdição, a capacidade era presumida, competindo ao autor da ação trazer as provas do estado de loucura do contratante, ao tempo da celebração do ato. Finalmente, a nulidade ou anulação dos negócios praticados pelo incapaz pode ser pleiteada ainda que não tenha sido decretada a interdição. Tal ocorre, por exemplo, quando o interditando já faleceu ou então se convalidou da enfermidade. Por outro lado, sobre o levantamento de interdição, consiste no cancelamento dos efeitos da sentença em razão da cessação da causa que a determinou. O pedido de levantamento poderá ser feito pelo interditando e será apensado aos autos da interdição. O juiz nomeará perito para proceder ao exame de sanidade no interditando e após a apresentação do laudo designará audiência de instrução e julgamento. A sentença de levantamento da interdição será publicada na imprensa local e oficial, por três vezes, e averbada no Registro Civil das Pessoas Naturais. O levantamento de interdição é uma das formas de aquisição ou reaquisição da capacidade plena.

INTEGRAÇÃO DO ÍNDIO

O índio integrado à civilização brasileira é plenamente capaz. Nesse caso, poderá requerer a sua emancipação, mediante requerimento dirigido ao Juiz Federal, desde que preencha os seguintes requisitos: a. idade mínima de 21 anos; b. conhecimento da língua portuguesa; c. habilitação para o exercício de atividade útil, na comunidade nacional; d. razoável conhecimento de usos e costumes da comunhão nacional. Presentes esses requisitos, o juiz prolatará a sentença de emancipação. Há ainda outras duas formas de emancipação do índio, a saber:

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a. reconhecimento pela própria FUNAI, homologado judicialmente; b. decreto do Presidente da República de emancipação coletiva, após

requerimento da maioria dos membros da comunidade indígena e comprovação, pela FUNAI, da plena integração à civilização.

EMANCIPAÇÃO

Emancipação é o instituto jurídico que atribui capacidade plena aos menores de 18 anos. É, pois, a antecipação da capacidade civil. Apresenta as seguintes características: a. irrevogabilidade. A emancipação válida não pode ser revogada pelos pais

nem pelo menor. Tratando-se, porém, de emancipação inválida, torna-se plenamente possível a sua anulação por sentença judicial. Note-se que enquanto a revogação é o desfazimento de ato válido, a anulação é o cancelamento de ato inválido, isto é, fruto de erro, dolo ou coação.

b. perpetuidade. A emancipação é sempre definitiva. Com o casamento, por exemplo, o menor se emancipa. Se, porém, no dia seguinte, sobrevier a viuvez, ainda assim persistirá a emancipação.

c. pura e simples. A emancipação é um ato puro e simples, porquanto não admite termo ou condição.

Convém ainda não confundir a capacidade civil com a maioridade civil. Conquanto a emancipação atribua capacidade plena aos menores de 18 anos, o certo é que eles ainda continuam menores. Assim, a emancipação os habilita aos atos da vida civil, cuja prática dependa tão somente da capacidade. Todavia, para alguns atos, a lei exige idade mínima, de modo que para praticá-los não basta a emancipação, urge ainda que ostentem certa idade. Portanto, o menor emancipado não poderá tirar carteira de motorista; não terá responsabilidade penal; não poderá assistir filme proibido para menor de 18 anos; não poderá ir ao motel; etc. Com efeito, a emancipação confere apenas capacidade civil ao menor, com o objetivo de beneficiá-lo; todavia, ele continua adstrito às restrições inerentes à idade, em função da sua personalidade ainda em formação, porquanto o intuito dessas limitações é protegê-lo. Finalmente, no tocante à forma, a emancipação pode ser voluntária, judicial e legal.

EMANCIPAÇÃO VOLUNTÁRIA

A emancipação voluntária é a concedida pelos pais, mediante escritura pública, que deve ser inscrita no Registro Civil competente. Essa inscrição, que é essencial para a emancipação surtir efeitos perante terceiros, independe de homologação judicial.

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A emancipação é outorgada pelos pais em conjunto, sendo ainda necessário que o menor tenha dezesseis anos completos. Antes dessa idade, é vedada a emancipação voluntária. Nada obsta a concessão da emancipação voluntária por apenas um dos pais, na hipótese de o outro já ter falecido ou se encontrar interditado, outrossim, quando houver decaído do poder familiar. Por outro lado, se um dos genitores se encontrar em lugar incerto e não sabido, o outro, para poder emancipar voluntariamente o filho, deverá requerer a autorização judicial. Nesse caso, o juiz não prolata uma sentença de emancipação, e sim uma decisão autorizando a emancipação por um único progenitor. Finalmente, a emancipação deve ser para beneficiar o menor. Assim, a emancipação concedida pelos pais pode ser anulada se ficar provado que o ato foi praticado para libertarem-se do dever de prestarem pensão alimentícia.

EMANCIPAÇÃO JUDICIAL

A emancipação judicial é a concedida por sentença judicial, ouvindo-se o Ministério Público. Aludida sentença, para surtir efeitos perante terceiros, deve ser inscrita no Registro Civil competente. A emancipação judicial só é possível se o menor tiver 16 anos completos. Washington de Barros Monteiro esclarece que o fato de ser analfabeto o emancipado, não traduz carecer ele de discernimento para reger a sua pessoa. Certificando-se o Juiz de que o mesmo tem condições de desenvolvimento mental e suficiente experiência para a si próprio dirigir, sem assistência de tutor, deve emancipá-lo. São duas as hipóteses de emancipação judicial: a. menor sob tutela. O tutor não pode emancipar voluntariamente o pupilo,

através de escritura pública, pois a lei exige, nesse caso, sentença judicial; b. divergência entre os pais. Se o pai quer emancipar o filho e a mãe se opõe,

ou vice-versa, urge que o conflito seja dirimido por sentença judicial. Nesse caso, o processo de emancipação será contencioso, ao passo que, na hipótese anterior, o procedimento é de jurisdição voluntária.

A emancipação deve ser denegada: a. se não objetivar o benefício do menor; b. se o mesmo não tiver o necessário discernimento para reger a sua pessoa

e os seus bens; c. se visar apenas a liberação de bens clausulados até a maioridade. Finalmente, cumpre salientar que a emancipação é direito potestativo dos pais ou tutor e, por isso, o menor não tem o direito de pedir ou exigir a sua emancipação.

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EMANCIPAÇÃO LEGAL

A emancipação legal é a que se opera automaticamente, independentemente de ato dos pais, tutor ou sentença judicial. Verificando-se uma das hipóteses previstas em lei, a emancipação se impõe “ex vi legis”, sem que seja necessária qualquer outra formalidade. Como veremos, em algumas dessas hipóteses, torna-se possível a emancipação antes dos 16 anos. A primeira hipótese de emancipação legal é o casamento. A idade núbil ocorre a partir dos 16 anos completos; a partir de então é possível o casamento com a autorização dos pais ou tutor. Antes da idade núbil, o matrimônio só é possível, mediante ordem judicial, em caso de gravidez (art. 1520). Se, porventura, o casamento vier a ser anulado ou declarado nulo, por sentença judicial, entendem uns que não há retorno ao estado anterior de incapacidade, pois seria um contra-senso, o próprio cônjuge pleitear a anulação, já que é capaz, para depois tornar-se incapaz com a procedência de ação. Em defesa desse ponto de vista, afirma Renan Lotufo, “há que se reconhecer que quem já se aventurou, ou desventurou num casamento, não carece do mínimo de experiência para a vida em sociedade, razão pela qual não aceitamos o retorno à incapacidade”. Discordamos dessa exegese, porque a nulidade ou anulação implica no desfazimento do casamento; a destruição do efeito principal impede a manutenção do efeito secundário. Ademais, o art. 1.561 do CC só prevê a subsistência dos efeitos secundários do casamento nulo ou anulável quando houver putatividade. Com efeito, casamento putativo é o nulo ou anulável, mas que produz efeitos válidos em homenagem à boa-fé de um ou ambos os cônjuges. Assim, o cônjuge menor, se estava de boa-fé, continua emancipado; se estava de má-fé, cessa a emancipação. O art. 1.561 do CC diz que os efeitos da putatividade perduram até o dia da sentença anulatória. Mas, a nosso ver, alguns efeitos permanecem após a sentença, tais como: a. o direito de usar o nome; b. a emancipação; c. a pensão alimentícia. Entendimento diverso esvaziaria a importância da putatividade. A segunda causa de emancipação legal é o exercício de emprego público efetivo. Observe-se que a simples posse ou nomeação ainda não produzem a emancipação, pois lei fala em exercício, exigindo-se, destarte, o início das atividades. A expressão emprego público deve ser interpretada como sendo função pública, isto é, a atribuição ou conjunto de atribuições que a Administração Pública confere a cada categoria profissional ou individualmente a determinados servidores. É mister ainda que a função pública seja exercida em caráter efetivo, isto é, definitivo, mas não se exige a estabilidade, operando-se, destarte, a emancipação desde o início do exercício do estágio probatório.

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Acrescente-se, outrossim, que o acesso a funções efetivas depende de concurso público. A função pública pode ser federal, estadual ou municipal. Os funcionários de autarquias e entidades paraestatais exercem funções efetivas, razão pela qual, a nosso ver, serão atingidos pela emancipação, mesmo porque a maturidade intelectual foi revelada na aprovação no concurso público. O tema, porém, não é pacífico. Washington de Barros Monteiro, por exemplo, nega a existência de emancipação, asseverando que é preciso lei especial para que as autarquias e entidades paraestatais obtenham qualquer dos atributos outorgados à pessoa jurídica de direito público. A terceira causa de emancipação legal é a colação de grau em curso de ensino superior. Não pode ser considerado superior o curso de professor normalista nem os cursos técnicos. É preciso colação de grau em faculdade, tornando-se raríssima essa forma de emancipação. A quarta causa é o estabelecimento civil ou comercial com economia própria. A emancipação, nesse caso, depende de dois requisitos: a) idade mínima de 16 anos; b) a obtenção de economia própria, consistente na aferição de rendimentos oriundos do próprio negócio suficientes para a auto-subsistência. Finalmente, a última causa de emancipação legal é a existência de relação de emprego. Nesse caso, a emancipação também depende de dois requisitos:

a. idade mínima de 16 anos; b. obtenção de economia própria, isto é, rendimentos suficientes para a auto-

subsistência. Não é necessário carteira assinada, isto é, o emprego formal, pois contenta-se a lei com a relação de emprego, consistente na prestação de serviço pessoal, de natureza não-eventual, mediante subordinação e remuneração. Anote-se, porém, que até os 16 anos é vedado o trabalho fora do lar (art. 403 da CLT), salvo na condição de aprendiz, desde que o menor já tenha atingido 14 anos (CF, art. 7º, inciso XXXIII). Quanto ao trabalho noturno é vedado até os 18 anos (CLT, art. 404).

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QUESTÕES

1. Quais as duas espécies de capacidade? 2. O que é capacidade de direito? 3. O que é capacidade de fato? Ela precisa ser demonstrada? 4. Pode-se negar ao incapaz a prática de negócio jurídico? 5. O incapaz é representado ou assistido? 6. Qual a conseqüência da falta de assistência e da falta de representação? 7. O relativamente incapaz pode praticar algum ato sem assistência? 8. Elenque os absolutamente e os relativamente incapazes. 9. Elenque duas vantagens do absolutamente incapaz. 10. O que é “restitutio in integrum”? É adotado no Brasil? 11. Qual a conseqüência de o representante legal concluir negócio jurídico

contrário ao interesse do representado? Qual o prazo para a propositura da ação?

12. Qual a distinção entre representação e assistência e entre representação e substituição processual?

13. A procuração do incapaz pode ser por instrumento particular? 14. Qual a distinção entre incapacidade e falta de legitimação? 15. Qual a distinção entre assistência e autorização? 16. A pessoa que não exprime a vontade pode ser interditada? 17. Qual o grau de incapacidade do surdo-mudo? 18. Explique a interdição do pródigo. 19. Explique a incapacidade do índio. 20. Quais as formas de aquisição da capacidade plena? 21. Quando se inicia a maioridade civil? 22. O que é levantamento da interdição? 23. Quais os requisitos para o índio adquirir a capacidade plena? 24. O que é emancipação e quais as suas características? 25. O menor emancipado sofre algum tipo de restrição? 26. Quais as formas de emancipação? 27. Qual o limite mínimo de idade para a emancipação voluntária, judicial e

legal?28. Qual a forma de emancipação voluntária? 29. Quando é cabível a emancipação judicial? 30. Elenque as hipóteses de emancipação legal, explicando cada uma delas.

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DIREITO CIVIL DIREITO DE FAMÍLIA

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO II

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CELEBRAÇÃO DO CASAMENTO

O casamento pode realizar-se fora do cartório, a pedido dos contraentes, se o celebrante concordar. Todavia, em caso de moléstia grave de um dos nubentes, a autoridade celebrante é obrigada a realizar o casamento na residência do contraente, ainda que à noite, se for urgente (art. 1.539).

A solenidade realizar-se-á com toda publicidade, a portas abertas, presentes pelo menos duas testemunhas, parentes ou não dos contraentes. O Código exige quatro testemunhas apenas em duas hipóteses:

a. casamento celebrado em edifício particular; b. se algum dos contraentes não souber ou não puder escrever.

O casamento pode celebrar-se mediante procuração, por instrumento público, com poderes especiais (art. 1.542). A eficácia do mandato não ultrapassará noventa dias (§ 3.º). Só por instrumento público se poderá revogar o mandato (§ 4.º). A revogação do mandato não necessita chegar ao conhecimento do mandatário; mas, celebrado o casamento sem que o mandatário ou o outro contraente tivesse ciência da revogação, responderá o mandante por perdas e danos. A procuração deve, é claro, indicar o nome da pessoa com quem o mandante vai se casar. O Código não exige fundamentação para o casamento realizar-se por procuração. É irrelevante o sexo do procurador. Pontes de Miranda admite que ambos os nubentes se casem por procuração, por intermédio de procurador único. Data venia, é necessário um procurador para cada um, porque o código usa a expressão “o outro contraente” (§ 1.º do art. 1.542). No casamento nuncupativo, só poderá fazer-se representar por procurador o nubente que não estiver em iminente risco de vida (§ 2.º do art. 1.542).

O presidente do ato, após ouvir dos nubentes ou procurador com poderes especiais a afirmação de que pretendem casar por livre e espontânea vontade, declarará efetuado o casamento, nestes termos: “De acordo com a vontade que ambos acabais de afirmar perante mim, de vos receberdes por marido e mulher, eu, em nome da lei, vos declaro casados”.

A celebração do casamento, dispõe o art. 1.538, será imediatamente suspensa se algum dos contraentes:

I. recusar a solene afirmação de sua vontade; II. declarar que não é livre e espontânea; III. manifestar-se arrependido.

Ao nubente que, por algum dos fatos mencionados neste artigo, der causa à suspensão do ato, ainda que de brincadeira, não será admitido a retratar-se no mesmo dia.

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CELEBRAÇÃO DE CASAMENTO PERANTE A AUTORIDADE CONSULAR

O casamento de brasileiro, celebrado no estrangeiro, perante as respectivas autoridades ou os cônsules brasileiros, deverá ser registrado em 180 dias, a contar da volta de um ou de ambos os cônjuges ao Brasil, no cartório do respectivo domicílio, ou, em sua falta, no 1.º Ofício da Capital do Estado em que passaram a residir (art. 1.544).

Por outro lado, os estrangeiros residentes no Brasil podem casar-se perante as autoridades diplomáticas ou consulares do país de ambos os nubentes (§ 2.º do art. 7.° da LICC). Assim, dois japoneses, residentes no Brasil, podem casar-se perante o cônsul do Japão. Todavia, esse casamento não é passível de registro no Cartório de Registro Civil. Anote-se, ainda, que a autoridade consular não poderá celebrar o matrimônio se um dos nubentes for brasileiro, ou tiver nacionalidade diversa do país consular.

Por fim, os casamentos de brasileiros celebrados no exterior serão considerados autênticos, nos termos da lei do lugar em que forem feitos, legalizadas as certidões pelos cônsules (art. 32 da LRP).

CASAMENTO IN EXTREMIS OU EM ARTICULO MORTIS OU NUNCUPATIVO

O casamento in extremis dispensa o processo de habilitação, a publicação de proclamas e a presença da autoridade. É celebrado pelos próprios nubentes na presença de seis testemunhas que com eles não tenham parentesco em linha reta, ou, na colateral, até segundo grau. Aludido casamento só é possível mediante dois requisitos:

a. que um dos contraentes esteja em iminente risco de vida; b. impossibilidade de os contraentes obterem a presença da autoridade

celebrante ou de seu substituto.

Note-se que é o único casamento que: a) dispensa a presença de autoridade celebrante; b) as testemunhas não podem ter vínculo de parentesco em linha reta, ou colateral até segundo grau, com os nubentes; c) exige seis testemunhas.

Realizado o casamento, devem as testemunhas comparecer perante a autoridade judiciária competente, dentro de 10 dias, sob pena de inexistência do casamento, pedindo que lhes tome por termo a declaração de:

I. que foram convocadas por parte do enfermo; II. que este parecia em perigo de vida, mas em perfeito juízo; III. que em sua presença declararam os contraentes, livre e

espontaneamente, receber-se por marido e mulher (art. 1.541).

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Instaura-se um procedimento de jurisdição voluntária, com a participação do Ministério Público. Da sentença é cabível o recurso de apelação.

Após o trânsito em julgado da sentença favorável, o juiz mandará registrá-la no livro de Registro dos Casamentos. O assento assim lavrado retrotrairá os efeitos do casamento, quanto ao estado dos cônjuges, à data da celebração, ainda que o enfermo já tenha morrido.

Se o enfermo se convalescer e puder ratificar o casamento, ele mesmo deverá fazê-lo na presença da autoridade judiciária e do oficial do registro, nesse mesmo prazo de 10 dias, sendo que, nesse caso, não há necessidade do comparecimento das testemunhas. Se, por outro lado, ele se convalescer somente após a transcrição no Registro Civil da sentença, não há necessidade de nova ratificação do casamento.

CASAMENTO RELIGIOSO COM EFEITOS CIVIS

O casamento religioso com habilitação prévia é quase que idêntico ao casamento civil. A única diferença é que a cerimônia é presidida por uma autoridade eclesiástica. Com efeito, no procedimento de habilitação, os nubentes requerem ao oficial a expedição de certidão para se casar perante a autoridade religiosa (art. 71 da Lei 6.015/73). Celebrado o casamento, a autoridade eclesiástica celebrante ou qualquer interessado deverá, dentro de 90 dias, após a realização do ato, promover, perante o oficial do Registro Civil, o registro do casamento. Após o referido prazo, que é decadencial, o registro dependerá de nova habilitação (§ 1.º do art. 1.516). Note-se que o Código não exige uma nova celebração, mas apenas uma nova habilitação, aproveitando-se, portanto, a cerimônia anterior. Observe-se, ainda, que qualquer interessado pode requerer a inscrição do matrimônio perante o oficial do Registro Civil. Não há, portanto, necessidade de autorização de ambos os cônjuges. Aliás, a nosso ver, o registro pode ser requerido até depois da morte de um dos cônjuges.

Por outro lado, há ainda o casamento religioso com habilitação posterior. Nesse caso, o requerimento do registro do casamento, que também é feito perante o oficial do Registro Civil, deve ser formulado por ambos os nubentes. Se um deles já morreu, não é mais possível registrar esse casamento. Se ambos estão vivos e não houverem contraído com outrem casamento civil, o registro pode ser requerido a qualquer tempo. Eles devem apresentar o requerimento ao oficial, instruído da prova do casamento religioso, e toda a documentação necessária. São publicados os proclamas; se não houver oposição, o casamento será registrado. Esse registro retroage à data da celebração do casamento (art. 75 da Lei 6.015/73). Trata-se, a rigor, de uma espécie de conversão de união estável em casamento.

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PROVAS DO CASAMENTO

O casamento celebrado no Brasil prova-se pela certidão do registro (art. 1.543).

Dispõe, porém, o parágrafo único do art. 1.543 que: “Justificada a falta ou perda do registro civil, é admissível qualquer outra espécie de prova”. Como se vê, a prova supletiva só é possível se demonstrada a falta ou a perda do livro de registro do casamento. Nesse caso, qualquer outro documento hábil pode servir para comprovar o casamento; mas sem essa demonstração de perda ou falta de registro nenhuma outra prova poderá substituir a do assento do registro civil.

Na hipótese de perda ou falta do registro, admite-se a ação declaratória de existência do casamento. Nesse caso, a sentença favorável ao casamento deve ser registrada no livro de registro civil e produzirá, tanto no que toca ao cônjuge como no que respeita aos filhos, todos os efeitos civis desde a data do casamento (art. 1.546). Nessa ação, em havendo dúvida entre as provas favoráveis e contrárias, julgar-se-á pelo casamento, se os cônjuges viverem ou tiverem vivido na posse do estado de casados (art. 1.547).

Dá-se a posse do estado de casados quando duas pessoas de sexos opostos viverem aparentemente como marido e mulher. Tradicionalmente, o reconhecimento da posse do estado de casados depende de três requisitos:

a. nominatio (assim, a esposa deve usar o nome do marido); b. tractatus (devem-se tratar como marido e mulher); c. reputatio (devem ter fama de casados).

A posse do estado de casados é, na verdade, um critério para sanar dúvidas sobre a existência ou não do casamento. Na dúvida, desde que haja posse do estado de casados, o juiz julga em favor do casamento. Não se adota, porém, no Brasil, a idéia de que a posse do estado de casados sana qualquer vício na celebração do casamento, impedindo sua invalidação.

Por outro lado, dispõe o art. 1.545 que “o casamento de pessoas que, na posse do estado de casados, não possam manifestar vontade, ou tenham falecido, não se pode contestar em prejuízo da prole comum, salvo mediante certidão do Registro Civil que prove que já era casada alguma delas, quando contraiu o casamento impugnado”.

Assim, no caso de falecimento de ambos os pais, que tenham vivido na posse do estado de casados, presume-se o casamento em favor dos filhos do casal falecido. Nesse caso, não se exige que os interessados comprovem a perda ou falta de registro. Somente os filhos podem alegar essa posse do estado de casados depois da morte dos pais. A presunção é relativa, conforme se verifica na última parte do art. 1.545. Não há falar-se na presunção se não há filhos ou se um dos cônjuges ainda sobrevive. Mantém-se, porém, a presunção se ambos os cônjuges, apesar de vivos, não podem manifestar a vontade.

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DIREITO CIVIL – DIREITO DE FAMÍLIA - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

CASAMENTO INEXISTENTE

Casamento inexistente é o que não reúne os elementos necessários à sua formação.

O casamento, para existir, depende de três elementos:

a. diversidade de sexos; b. declaração de vontade dos nubentes em contraírem matrimônio; c. presença da autoridade celebrante.

Faltando um desses requisitos, o casamento é tido como inexistente. Se, porém, estiver registrado, o cancelamento do registro só pode ocorrer mediante ordem judicial. Se não chegou a ser registrado, o ato inexistente deve ser simplesmente ignorado.

O cancelamento do registro do casamento inexistente, a nosso ver, prescinde de ação judicial, podendo operar-se administrativamente, por simples despacho judicial, a não ser que a inexistência dependa da produção de provas, quando então será necessária a ação declaratória de inexistência de ato jurídico. Essa ação é imprescritível.

NULIDADE E INEXISTÊNCIA

Diz-se nulo o casamento que, embora reúna os requisitos necessários à sua existência, formou-se defeituosamente, infringindo os preceitos legais.

As diferenças são nítidas. Com efeito, o reconhecimento da inexistência dispensa

ação judicial, bastando um simples despacho judicial, salvo as hipóteses em que a inexistência dependa de dilação probatória. O reconhecimento da nulidade exige ação judicial.

O casamento nulo pode ser declarado putativo se um ou ambos os cônjuges estiverem de boa-fé. No casamento inexistente, não há falar-se em putatividade.

No casamento inexistente, os pseudocônjuges podem contrair matrimônio mesmo sem declaração de inexistência do pseudomatrimônio anterior. No casamento nulo, urge que se decrete a nulidade primeiro para só depois se habilitar ao novo casamento. Silvio Rodrigues sustenta, acertadamente, que se o casamento inexistente estiver registrado no Registro Civil, o novo casamento só poderá ser celebrado após o cancelamento judicial daquele registro.

A inexistência do casamento deve ser decretada de ofício pelo juiz. A nulidade matrimonial, não.

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DIREITO CIVIL – DIREITO DE FAMÍLIA - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

CASAMENTO NULO

O casamento é nulo em duas hipóteses (art. 1.548):

I. quando contraído pelo enfermo mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil;

II. quando contraído por infringência de impedimento.

O novo Código, como se vê, reputa nulo o casamento celebrado por alienado mental; no Código de 1916, esse casamento era apenas anulável.

A ação de nulidade do casamento pode ser movida por qualquer interessado ou pelo Ministério Público (art. 1.549).

Anote-se que, enquanto os impedimentos podem ser opostos por qualquer pessoa capaz, a ação de nulidade só pode ser proposta pelo interessado, isto é, a pessoa que tenha algum interesse jurídico, econômico ou moral em desfazer o casamento. Outras pessoas devem delatar o fato ao Ministério Público, para que este tome a iniciativa da ação.

No Código de 1916, se houvesse falecido algum dos cônjuges, ao Ministério Público era vedada a iniciativa da ação. Semelhante restrição não existe mais no novo Código.

Cumpre ainda destacar a imprescritibilidade da ação de nulidade, outrossim, o seu caráter meramente declaratório. De fato, dispõe o art. 1.563: “A sentença que decretar a nulidade do casamento retroagirá à data da sua celebração, sem prejudicar a aquisição de direitos, a título oneroso, por terceiros de boa-fé, nem a resultante de sentença transitada em julgado”.

CASAMENTO ANULÁVEL

As hipóteses de casamento anulável concentram-se no art. 1.550.

A primeira ocorre quando um ou ambos os cônjuges não ostentavam a idade núbil de 16 anos. A anulabilidade só ocorre se o casamento ocorrer sem o alvará judicial. Se, porém, resultar gravidez, não se anulará o casamento (art. 1.551). Acrescente-se, ainda, que o menor que não atingiu a idade núbil de 16 anos poderá, depois de completá-la, confirmar seu casamento. Essa ratificação do casamento pelo menor depende de autorização do representante legal; se este negar, é cabível o suprimento judicial (art. 1.553). Só a partir dos 18 anos o menor poderá ratificar o casamento sem autorização dos pais. Se não resultar gravidez nem houver a ratificação, a ação anulatória do casamento poderá ser intentada em 180 dias. A ação pode ser proposta: a) pelo próprio cônjuge menor, contado o prazo do dia em que perfez a idade núbil de 16 anos; b) por seus representantes legais ou por ascendentes, contado o prazo da data do casamento.

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A segunda causa de anulação ocorre quando o menor em idade núbil casou-se sem autorização do seu representante legal. Vimos que, a partir dos 16 anos, o menor pode contrair casamento, desde que autorizado por seu representante legal. Se este negar a autorização, é ainda admissível o alvará judicial de suprimento de consentimento. Sem a autorização do representante ou do juiz, não obstante já tenha atingido a idade núbil, o casamento é anulável. O prazo para a propositura da ação anulatória é de 180 dias. Aludida ação só pode ser proposta: a) pelo próprio menor, contado o prazo do dia em que cessou a incapacidade, isto é, a partir dos 18 anos, salvo se emancipado antes desse prazo; b) pelos representantes legais, contado o prazo a partir do casamento; c) pelos herdeiros necessários, no caso de morte do cônjuge menor, contado o prazo a partir do óbito (art. 1.555). Não se anulará o casamento em três hipóteses: a) se resultou gravidez (art. 1.551); b) se o casamento houver sido ratificado expressamente pelo menor, com a autorização de seu representante legal, aplicando-se analogicamente o disposto no art. 1.553; c) quando os representantes legais assistiram à celebração do casamento ou aprovaram, por algum modo, a sua realização (§ 2.º do art. 1.555). Essa última hipótese é uma ratificação tácita.

A terceira causa de anulação ocorre quando um dos cônjuges é coagido ou incide em erro essencial quanto à pessoa do outro (arts. 1.556-1.557). Do erro essencial cuidaremos mais adiante. Quanto à coação, é anulável o casamento quando o consentimento de um ou ambos os cônjuges houver sido captado mediante fundado temor de mal considerável e iminente para a vida, a saúde e a honra, sua ou de seus familiares (art. 1.558). Não se anula o casamento se houver apenas fundado temor de dano considerável aos bens, porque o art. 1.558 só prevê a anulação quando o fundado temor recair sobre a vida, a saúde e a honra. A coação pode emanar do outro contraente ou de uma terceira pessoa. Somente o cônjuge que incidiu em coação pode demandar a anulação, cujo prazo é de quatro anos, a contar da celebração do casamento. No Código de 1916, presumia-se a coação no casamento do raptor com a raptada, mas o novo Código não repete essa presunção, de modo que, ausente a coação, o casamento é válido.

A quarta causa é o casamento do incapaz de consentir ou manifestar, de modo inequívoco, o consentimento. Para se anular o casamento não há necessidade de se requerer a interdição do incapaz. A nosso ver, o incapaz de consentir, a que se refere o texto legal, compreende: a) os deficientes mentais, que não têm discernimento, ou cujo discernimento é reduzido; b) os ébrios habituais e viciados em droga, que tenham discernimento reduzido; c) os excepcionais, sem desenvolvimento completo; d) os que, mesmo por causa transitória, não podem exprimir sua vontade, como, por exemplo, o surdo-mudo. Se, porém, este se comunicar, o seu casamento é válido. O prazo para a anulação é de cento e oitenta dias a contar da celebração do casamento. Cumpre observar que, tratando-se de enfermo mental, a nulidade é absoluta.

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A quinta causa de anulação é a do casamento realizado pelo mandatário, sem que ele ou o outro contraente soubesse da revogação do mandato, e não sobrevindo coabitação entre os cônjuges. Equipara-se à revogação a invalidade do mandato judicialmente decretada. O prazo para a anulação do casamento é de 180 dias, a partir da data em que o mandante tiver conhecimento da celebração (§ 2.º do art. 1.560). A anulabilidade depende de dois requisitos: a) ignorância do mandatário e do outro contraente acerca da revogação do mandato; b) ausência de coabitação entre o mandante e o outro contraente. Se o mandatário e o outro contraente ignoravam a revogação do mandato, mas o mandante, após o casamento, resolveu coabitar com o outro contraente, sana-se o vício, obstando-se a anulação. Se, por outro lado, o mandatário ou o outro contraente, ou ambos, tinham ciência da revogação do mandato, por ocasião da celebração do casamento, este, a nosso ver, será inexistente.

A última causa é a incompetência da autoridade celebrante. O prazo para ser intentada a ação de anulação do casamento é de dois anos, a contar da data da celebração (art. 1.560, II). O Código de 1916 tratava essa hipótese como nulidade absoluta, embora também estabelecesse o prazo de dois anos para a propositura da ação. No novo Código, o ato é apenas anulável, de modo que o Ministério Público não tem mais legitimidade para a propositura da ação. A lei não especifica as pessoas legitimadas para a propositura da ação, aplicando-se, por isso, a regra geral de que a ação pode ser proposta por qualquer interessado. Silvio Rodrigues esclarece que se os nubentes procuram deliberadamente a autoridade incompetente a fim de celebrar seu casamento, é evidente que não podem alegar o vício que o inquina. É pacífico que a incompetência ratione loci gera apenas a anulabilidade do casamento. Dá-se a incompetência ratione loci quando o juiz de paz celebra o casamento fora de sua circunscrição territorial. No tocante à incompetência ratione materiae, isto é, casamento celebrado por quem não é juiz de paz, tais como delegado de polícia, carcereiro, juiz de direito etc., paira controvérsia. Uns entendem que esse casamento é inexistente, inviabilizando-se, portanto, a sua convalidação. Outros, acertadamente, proclamam que esse casamento é apenas anulável, desde que tenha sido registrado, convalidando-se depois de dois anos. É claro que se não houve sequer habilitação, publicação de proclamas e a lavratura do assento, o ato é inexistente. Observe-se, também, que o novo Código preceitua que subsiste o casamento celebrado por aquele que, sem possuir a competência exigida na lei, exercer publicamente as funções de juiz de casamento e, nessa qualidade, tiver registrado o ato no Registro Civil (art. 1.554). Assim, o matrimônio perante uma autoridade incompetente, em razão da matéria, pode ser válido, quando presentes dois requisitos: a) que a autoridade exerça, de fato, publicamente as funções de juiz de casamento; b) registro do casamento no Registro Civil. Presentes esses dois requisitos, o ato é válido; não é sequer anulável. Nas hipóteses em que a autoridade celebrante em razão da matéria não exercer publicamente as funções de juiz de casamento, mas o casamento tiver sido registrado no Registro Civil, a nosso ver, o ato será apenas anulável, e não inexistente.

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ANULABILIDADE DO CASAMENTO POR ERRO ESSENCIAL

O casamento pode ser anulado por vício de vontade, se houver por parte de um dos nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro (art. 1.556). O prazo para ser intentada a ação de anulação é de três anos, a contar da data da celebração do casamento (art. 1.560, III). Somente o cônjuge que incidiu em erro pode demandar a anulação (art. 1.559).

O art. 1.557 elenca as hipóteses de erro essencial quanto à pessoa do outro cônjuge ensejadoras da anulação do casamento. São as seguintes:

a. erro quanto à identidade, honra e boa fama; b. ignorância de crime; c. ignorância de defeito físico irremediável; d. ignorância de moléstia grave e contagiosa ou de doença mental.

Em todas as hipóteses, a anulação depende de três requisitos:

a. que a existência da causa de anulação seja anterior ao casamento. Assim, se a doença mental advém após o matrimônio não há falar-se em anulação;

b. ignorância dessa causa por parte do outro contraente. De fato, se este sabia, por exemplo, da doença do outro, inocorre a anulação;

c. que a descoberta da causa, após o enlace, tenha tornado insuportável a vida em comum. Cremos que a insuportabilidade é presumida pelo fato de se ter ajuizada a ação anulatória, competindo ao réu a demonstração da suportabilidade da vida em comum. Há, pois, uma inversão do ônus da prova.

Acrescente-se, ainda, que são taxativas as hipóteses de erro essencial, previstas no art. 1.557. Fora desses casos, ainda que haja dolo, não se anula o casamento. Como ensina Sílvio Venosa: “Na fase do namoro e noivado, é natural que os nubentes procurem esconder seus defeitos e realçar suas virtudes. O dolo, como causa de anulação, colocaria sob instabilidade desnecessária o casamento, permitindo que defeitos sobrepujáveis na vida doméstica fossem trazidos à baila de um processo”.

A primeira hipótese de erro essencial é a referente à identidade do outro cônjuge, sua honra e boa fama, que torne insuportável a vida comum do cônjuge enganado. A identidade pode ser física e civil. O erro sobre a identidade física é quando se toma uma pessoa por outra. É o caso do sujeito que se casa com a irmã gêmea da sua noiva. O erro sobre identidade civil ou social é o que recai sobre o conjunto de atributos e

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qualidades com que a pessoa aparece na sociedade. Exemplo: ignorância sobre o estado civil de divorciado do outro cônjuge. A lei refere-se, ainda, ao erro sobre a honra e boa fama. O erro sobre a honra é o referente à integridade moral do consorte e aos seus respectivos valores. O erro sobre a boa fama é o referente à reputação social, isto é, à estima social. Exemplos: marido estelionatário; homossexual; proxeneta; ladrão, sádico etc. Outros exemplos: esposa prostituta; grávida de outro homem; com filhos de outra união etc. A jurisprudência tem-se negado a anular casamento quando o agente se casa imprudentemente e precipitadamente com mulher que mal conhecia, abstendo-se de colher informações sobre a sua má conduta civil e moral. O STF se recusou a anular um casamento por motivo de erro sobre a crença religiosa do outro cônjuge, argumentando que crença religiosa não constitui defeito de honra e boa fama, salvo quando atentatória à moral social dominante. Finalmente, diverge a jurisprudência acerca da recusa ao débito conjugal, alguns julgados têm proclamado a validade do casamento, porque a hipótese não figura entre os casos de erro essencial; mas a posição dominante é a que anula o matrimônio, porque semelhante conduta contraria uma das finalidades do casamento, configurando-se, portanto, um erro sobre a honra, isto é, sobre os valores do outro cônjuge.

A segunda hipótese de erro essencial é a ignorância de crime, anterior ao casamento, que, por sua natureza, torne insuportável a vida em comum. O Código de 1916 só reputava anulável o casamento se o crime, além de inafiançável, tivesse sido definitivamente julgado antes do casamento. O novo Código não se refere mais a crime inafiançável nem exige trânsito em julgado anterior ao casamento.

A terceira hipótese de anulação consiste na ignorância de defeito físico irremediável. A expressão revela eufemismo, porque, na verdade, quis o legislador referir-se à incapacidade para o ato sexual. Exemplos: impotência coeundi, vaginismo ou infantilismo da mulher, sexo dúbio etc. A impotência coeundi ou instrumental é a impossibilidade do homem ou mulher manter relações sexuais, não necessitando que seja absoluta; urge, porém, que seja permanente. Quanto à esterilidade, isto é, a impotência generandi dos homens ou concipiendi das mulheres não constitui causa de anulação.

A quarta hipótese de anulação diz respeito à ignorância de moléstia grave e contagiosa ou de doença mental grave. Exemplos: sífilis, tuberculose, esquizofrenia, mal de hansen etc. Tratando-se de moléstia física, só se impõe a anulação se a doença for transmissível ao outro cônjuge ou à prole (art. 1.557, III). Se, porém, tratar-se de doença mental, o novo Código dispensa o requisito da transmissibilidade, bastando a insuportabilidade da vida em comum (art. 1.557, IV).

Por outro lado, a coabitação, isto é, a relação sexual entre os cônjuges, após a ciência do vício, obsta a anulação do casamento quando se tratar de: a) erro sobre a identidade, honra e boa fama; b) ignorância de

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crime anterior ao casamento. Todavia, subsiste o direito de anular o casamento, não obstante a coabitação, nos casos de: a) defeito físico irremediável; b) moléstia grave e transmissível; c) doença mental grave.

Finalmente, o adultério precoce, isto é, o defloramento da mulher ignorado pelo marido, não figura mais entre as hipóteses de anulação do casamento. Desde a Constituição de 1988, a doutrina já vinha proclamando a sua revogação, porque violava o princípio da isonomia entre o homem e a mulher.

AÇÃO DE NULIDADE E DE ANULAÇÃO DE CASAMENTO

Já vimos a legitimidade ativa para a propositura de uma e outra ação. Cumpre frisar que o Ministério Público pode ajuizar apenas a ação de nulidade, a de anulação, não. Outrossim, o caráter imprescritível da ação de nulidade; a ação de anulação submete-se a prazo decadencial. O casamento nulo nunca se convalida; o anulável, sim.

Tanto a ação de nulidade quanto à de anulação são propostas no domicílio da mulher (art. 100 do CPC). A nosso ver, essa regra viola o princípio da isonomia. O correto seria a propositura no domicílio do réu. Na jurisprudência, porém, sustenta-se que não há infringência da isonomia; que se trata de um mero critério de fixação de competência.

A ação deve ser distribuída às varas de família; se na comarca não houver varas privativas, distribuir-se-á para uma das varas cíveis.

O processo deve tramitar no rito ordinário, assegurando-se a mais ampla defesa, sobretudo, porque se trata de ação de estado.

É obrigatória a participação do Ministério Público, que atuará como custos legis, de forma imparcial. Se o próprio Ministério Público for o autor da ação, não haverá necessidade da participação de outro membro do parquet.

O novo Código suprimiu a exigência do curador do vínculo, que era um advogado nomeado pelo juiz, cuja função era defender a validade do matrimônio, sob pena de nulidade do processo.

Na contestação, não se admite o reconhecimento do pedido, pois a lide versa sobre direitos indisponíveis.

Se o réu for revel, não se presumem verdadeiros os fatos alegados pelo autor. O ônus da prova é do autor, sendo inadmissível um julgamento antecipado da lide escorado na revelia. É até cabível julgamento antecipado quando a questão for de direito ou então versar sobre fatos comprovados por documento (art. 330, II, do CPC).

A sentença que decreta a nulidade do casamento é meramente declaratória, retroagindo-se os seus efeitos à data da celebração do matrimônio, mas não prejudica a aquisição de direitos, a título oneroso, por terceiros de boa-fé, nem a resultante de sentença transitada em julgado (art. 1.563).

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A sentença que decreta a anulabilidade do casamento é desconstitutiva ou constitutiva negativa, produzindo efeitos ex nunc.

Anote-se, ainda, que a sentença de nulidade ou anulação de casamento não se submete mais ao recurso de ofício, isto é, ao duplo grau obrigatório de jurisdição, tendo em vista a modificação do art. 475 do CPC.

Transitada em julgado a sentença, expedir-se-á mandado para averbação no Registro Civil (art. 100 da LRP).

Por outro lado, antes de mover ação de nulidade ou anulação do casamento, admite-se a ação cautelar de separação de corpos (art. 1.562) e de alimentos provisionais (art. 852 do CPC). Nesses casos, a ação principal deve ser proposta em 30 dias, sob pena de perda de eficácia da medida (art. 806 do CPC). Ainda que já haja uma separação de fato, é cabível a cautelar de separação de corpos para revestir-se de juridicidade a separação; todavia, o assunto é polêmico. Admite-se, ainda, a cumulação de ações, por meio de pedido subsidiário, entre as ações de nulidade ou anulação e a ação de divórcio ou separação judicial.

Saliente-se, ainda, que quando o casamento for anulado por culpa de um dos cônjuges, este incorrerá (art. 1.564):

I. na perda de todas as vantagens havidas do cônjuge inocente; II. na obrigação de cumprir as promessas que lhe fez no contrato antenupcial.

Assim, o réu, no prazo da contestação, pode reconvir, pedindo também a nulidade ou anulação do casamento, imputando a culpa ao autor, com o fito de prevenir-se da responsabilidade acima. Admite-se, também, em sede de reconvenção, o pedido de divórcio ou separação judicial.

Acrescente-se, ainda, que as nulidades ou anulabilidades matrimoniais só podem ser textuais, isto é, o casamento só é nulo ou anulável nos casos expressos em lei. A doutrina, de um modo geral, à exceção de alguns, como Washington de Barros Monteiro, não admite nulidades matrimoniais virtuais ou tácitas, isto é, decorrentes da simples violação de algumas formalidades legais. Assim, o matrimônio celebrado a portas fechadas ou sem o número suficiente de testemunhas, pela ótica das nulidades textuais, é válido, porque a lei não o declara nulo nem anulável. Na visão do sistema virtual, impõe-se a nulidade do matrimônio.

Finalmente, as nulidades matrimoniais absolutas não podem ser decretadas de ofício pelo juiz, sendo, pois, imprescindível o ajuizamento da ação ordinária.

EFEITOS DA DECRETAÇÃO DA NULIDADE OU ANULAÇÃO DE CASAMENTO

O casamento nulo não produz efeitos, porque a sentença retroage à data da celebração; a união não passa de concubinato.

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O casamento anulável produz efeitos válidos até a sentença, porque, sendo esta constitutiva, os seus efeitos não retroagem à data da celebração do matrimônio.

Assim, declarada por sentença a nulidade absoluta, a união pretérita e eventualmente vindoura não passa de concubinato. Ao revés, na nulidade relativa, a união anterior à sentença mantém a natureza de casamento, mas a eventualmente vindoura transmuda-se em concubinato.

De qualquer maneira, seja a nulidade absoluta ou relativa, a sentença que a decreta surte os seguintes efeitos:

a. extinção do casamento, volvendo os cônjuges ao estado civil de solteiros; b. extinção do regime de bens; c. extinção das doações propter nuptiae, retomando o bem doado ao doador;d. extinção do direito de a mulher usar o nome de casada; e. extinção do direito de se sucederem um ao outro; f. extinção da emancipação, na hipótese de cônjuge menor; g. proibição de a mulher contrair novo matrimônio dentro de dez meses, a

contar da dissolução da sociedade conjugal, salvo se antes desse prazo houver o nascimento de filho, ou então quando se comprovar a inexistência de gravidez.

Em relação aos filhos, a nulidade ou anulabilidade do matrimônio não produz qualquer efeito, tendo em vista a proibição constitucional de distinção entre filhos.

CASAMENTO PUTATIVO

Casamento putativo é o nulo ou anulável, mas que produz efeitos válidos em homenagem à boa-fé de um ou ambos os cônjuges. Se apenas um dos cônjuges estava de boa-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só a ele e aos filhos aproveitarão; se ambos estavam de boa-fé, a putatividade estende-se a ambos.

Boa-fé é a crença na validade do matrimônio, em razão do desconhecimento da causa impeditiva do enlace matrimonial. Exemplo: irmão se casa com irmã, ignorando que são parentes. O direito canônico, além da boa-fé, exigia que o erro fosse escusável; código brasileiro contenta-se com a boa-fé.

O STF reconheceu a putatividade no erro de direito, num casamento entre genro e sogra, que, embora cientes do vínculo de afinidade, desconheciam o impedimento matrimonial. O tema não é pacífico. Contra a putatividade no erro de direito, pronuncia-se Clóvis Beviláqua argumentando que ninguém pode alegar ignorância da lei. Somos favoráveis à putatividade, porque o intuito do matrimônio não foi o de violar a lei, mas sim cumpri-la.

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O reconhecimento da putatividade pressupõe a decretação da nulidade ou anulabilidade do casamento. A putatividade deve ser requerida na petição inicial da ação de nulidade ou anulabilidade do casamento. Tem sido admitido também o requerimento no curso da ação. O juiz, porém, não pode reconhecê-la de ofício, por força do princípio da inércia da jurisdição, malgrado a existência de opiniões em contrário. Não argüida a putatividade na ação de nulidade ou anulação de casamento, nada obsta que o cônjuge de boa-fé, filhos ou terceiros, movam ação autônoma visando o seu reconhecimento. Acrescente-se, ainda, que para o reconhecimento da putatividade, basta a boa-fé ao tempo da celebração, não obstante a opinião de Coelho da Rocha que exige a boa-fé durante toda a vida conjugal.

Quanto aos efeitos da putatividade em relação aos cônjuges, variam conforme um ou ambos estejam de boa-fé.

Se ambos estão de boa-fé, não obstante a decretação da nulidade ou anulabilidade do matrimônio, este ainda produz os seguintes efeitos:

a. é válido o regime de bens até a data anulação;b. são válidas as doações feitas em contemplação do matrimônio; c. permanece o direito de continuar a usar o nome do outro cônjuge; d. o cônjuge tem direito à pensão alimentícia; e. se a nulidade foi decretada após a morte de um dos cônjuges, o outro

herda normalmente. Se, porém, a nulidade foi decretada em vida, sobrevindo a morte, não obstante a boa-fé, o sobrevivente nada herdará do outro;

f. o cônjuge menor continua emancipado.

Se apenas um dos cônjuges estiver de boa-fé, a putatividade só a ele lhe aproveitará. Os efeitos serão os seguintes:

a. cônjuge de boa-fé beneficia-se do regime de bens; o de má-fé, não. Assim, por exemplo, no regime da comunhão universal, o cônjuge de boa-fé terá direito à metade dos bens que o outro tinha antes de se casar, mas este não terá direito à metade daquele. No regime de comunhão parcial, o que o cônjuge de má-fé adquiriu onerosamente durante o casamento comunica-se para o de boa-fé, mas as aquisições onerosas deste não se comunicam àquele;

b. as doações feitas em contemplação do casamento passam a pertencer exclusivamente ao cônjuge de boa-fé; o de má-fé as perde;

c. o cônjuge de boa-fé pode manter o nome de casado; o de má-fé, não; d. o cônjuge de boa-fé tem direito à pensão alimentícia; o de má-fé, não; e. se a nulidade for decretada após a morte de um dos cônjuges, o de boa-fé

herdará do outro; o de má-fé, não; f. o cônjuge menor de boa-fé continua emancipado; para o menor de má-fé,

cessa a emancipação; g. o cônjuge de má-fé deve cumprir as promessas feitas no contrato

antenupcial; o de boa-fé, não.

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O art. 1.561 do CC diz que os efeitos da putatividade perduram até o dia da sentença anulatória. Mas, a nosso ver, alguns efeitos permanecem após a sentença, tais como: a) o direito de usar o nome; b) a emancipação; c) a pensão alimentícia etc. Entendimento diverso esvaziaria a importância da putatividade. Aliás, como ensina Cahali, não há limitação de tempo para o direito de alimentos.

Por outro lado, cumpre acrescentar que a putatividade pode também beneficiar terceiros que tenham adquirido bens na suposição de um casamento válido. Se bem que, independentemente da putatividade dos cônjuges, o negócio pode ser considerado válido, bastando a boa-fé do terceiro, invocando-se, para justificar esse ponto de vista, a teoria da aparência.

Registra-se, ainda, que se ambos os cônjuges estavam de má-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só aos filhos aproveitarão.

Finalmente, no casamento inexistente, em regra, não há putatividade, porque é um nada jurídico. Se, porém, estiver registrado, há quem admita a putatividade em benefício da prole comum. Nesse sentido: Sílvio Venosa. Data venia, não há previsão legal para estender a putatividade ao ato inexistente. Quantos aos filhos, seus direitos são os mesmos, quer haja ou não casamento, tornando-se irrelevante, em relação a eles, o reconhecimento da putatividade.

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QUESTÕES

1. O casamento pode realizar-se fora do Cartório? 2. Quantas testemunhas se exigem para o casamento? 3. O casamento pode celebrar-se mediante procuração? Disserte sobre

esse assunto. 4. A celebração do casamento pode ser imediatamente suspensa? O

nubente pode se retratar no mesmo dia? 5. Em quanto tempo deve ser registrado o casamento de brasileiro

celebrado no estrangeiro? Onde é registrado? 6. Um brasileiro pode casar com uma japonesa no Consulado do Japão? 7. Qual a lei que rege a validade do casamento de brasileiro celebrado no

exterior? 8. Disserte sobre casamento nuncupativo. 9. Quais as espécies de casamento religioso? 10. Como se prova o casamento? 11. Quando é cabível a ação declaratória de existência do casamento? 12. O que é posse do estado de casado e qual a sua importância? 13. Quais os requisitos de existência do casamento? 14. A inexistência de casamento pode ser declarada sem que haja uma ação

judicial? 15. Quais as diferenças entre o casamento inexistente e o casamento nulo? 16. Em quais hipóteses o casamento é nulo? 17. Quem pode mover a ação de nulidade do casamento? Qual o prazo

desta ação? 18. Em que hipótese o casamento é anulável? 19. O casamento do menor pode ser anulado se houver gravidez? 20. Qual o prazo para se anular casamento por coação? 21. Quais os requisitos para o mandante anular o casamento realizado pelo

mandatário fora dos casos permitidos em lei? 22. Qual o prazo para se anular o casamento, por incompetência da

autoridade celebrante? 23. Qual a diferença entre a incompetência “ratione loci” e “ratione materiae”? 24. O matrimônio perante uma autoridade incompetente em razão da matéria

pode ser válido? 25. Qual o prazo para se anular o casamento por erro? Quem pode mover a

ação anulatória? 26. Em que hipótese se anula o casamento por erro? 27. Quais os requisitos para se anular o casamento por erro? 28. O que é adultério precoce? 29. Trace um paralelo entre ação de nulidade e anulação de casamento. 30. O novo Código Civil manteve o curador do vínculo? 31. A ação de nulidade de casamento admite julgamento antecipado da lide?

Admite reconvenção?

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32. Qual a diferença entre nulidade textual e virtual? 33. Quais os efeitos da decretação da nulidade absoluta ou relativa? 34. O que é casamento putativo? 35. Quais os efeitos da putatividade? 36. Até quando perduram esses efeitos? 37. O casamento inexistente pode ser putativo?

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DIREITO CIVIL DIREITO DAS SUCESSÕES

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO II

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DIREITO CIVIL - DIREITO DAS SUCESSÕES - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

DELAÇÃO SUCESSÓRIA

Delação sucessória é o período que medeia entre a abertura da sucessão e a aceitação ou renúncia da herança.

ACEITAÇÃO OU ADIÇÃO DA HERANÇA

A aceitação ou adição da herança é o ato pelo qual o herdeiro confirma o seu desejo de receber a herança.

Trata-se de ato unilateral, porque se aperfeiçoa com a simples manifestação de vontade do herdeiro. É ainda um ato não-receptício, uma vez que não precisa ser comunicado a ninguém.

Porém, é um ato obrigatório, retroativo à data da abertura da sucessão. Não mais vige a parêmia filius ergo eres, isto é, o filho automaticamente herda. Urge, para que herde, a aceitação da herança.

Há três formas de aceitação: expressa, tácita e presumida. Expressa: o herdeiro declara por escrito, público ou

particular, o desejo de receber a herança. Não se admite a aceitação verbal. Tácita: o herdeiro pratica ato positivo revelador do desejo de

receber a herança. Exemplos: manifesta-se no inventário, por meio de advogado, concordando com as primeiras declarações ou então requer alvará judicial para alienar bens.

Não exprimem aceitação tácita: a) atos oficiosos, isto é, sentimentais, como o pagamento das despesas do funeral; b) atos de mera administração provisória, como a guarda dos bens do morto ou simples requerimento de inventário; c) cessão gratuita de direitos hereditários em favor de todos os herdeiros.

Presumida: o herdeiro permanece silente diante da notificação judicial, que lhe fixa o prazo de 20 a 30 dias para aceitar ou repudiar a herança. O silêncio implica aceitação.

A aceitação pode ainda ser direta ou indireta. É direta quando feita pelo próprio herdeiro e indireta quando feita por quem não é herdeiro.

A aceitação indireta ocorre nas seguintes hipóteses:

a. procurador com poderes especiais; b. tutor ou curador, com autorização do juiz, pode aceitar a herança em favor

do herdeiro absolutamente incapaz; c. credor do herdeiro renunciante, na hipótese de insolvência, pode,

mediante autorização do juiz, aceitar a herança. A renúncia, porém, é válida, mas apenas ineficaz perante esses credores, de modo que, após o recebimento do crédito, o eventual saldo não irá para o renunciante, e sim para os demais herdeiros. Se o credor tomar conhecimento da renúncia somente após a partilha não lhe será lícito aceitar a herança com ordem

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judicial. Urge, em tal situação, que promova a ação pauliana ou então a ação revocatória se o renunciante for comerciante falido, para obter o reconhecimento judicial da fraude. Aliás, o art. 129, V, da Nova Lei de Falências (Lei n. 11.101/2005) presume fraudulenta a renúncia à herança ou legado feita até dois anos antes da declaração de falência. Washington de Barros Monteiro sustenta que nessa faculdade outorgada aos credores não se inclui a de aceitar legado, recusado pelo devedor, porque semelhante recusa pode ser fruto de ponderosas razões de ordem moral. É discutível na doutrina se essa faculdade de o credor, mediante ordem judicial, aceitar a herança deve também ser estendida ao legado. Uns respondem positivamente, aplicando analogicamente o disposto no art. 1.813; outros, ao revés, sustentam a inadmissibilidade da analogia, por se tratar de norma restritiva de direitos.

Por outro lado, quanto à responsabilidade dos herdeiros pelas dívidas da herança, a aceitação pode ser pura e simples e sob benefício de inventário.

Na aceitação pura e simples ou ultra vires hereditates, o herdeiro responde por todas as dívidas do de cujus, ainda que superiores ao valor da herança.

Na aceitação sob benefício de inventário ou intra vires hereditates, o herdeiro responde pelas dívidas do de cujus até o limite do quinhão herdado.

A lei brasileira adotou este último sistema. Há, porém, uma exceção na hipótese de não ter sido feito o inventário. Em tal situação, incumbe ao herdeiro o ônus da prova de que as dívidas são superiores à herança, sob pena de incidir no sistema de aceitação pura e simples, respondendo por todo o débito; daí o interesse em realizar-se o inventárionegativo, quando o de cujus não deixa bens, mas apenas dívidas.

RENÚNCIA DA HERANÇA

A renúncia é o ato unilateral pelo qual o herdeiro abdica de seus direitos sucessórios.

Trata-se de ato solene, que depende de escritura pública ou termo nos autos do inventário. O Código não exige a homologação judicial, mas há vários julgados condicionando a eficácia da renúncia, por escritura pública, à sobredita homologação, mas dispensando-a quando feita por termo nos autos.

Não se admite a renúncia tácita ou presumida, salvo na hipótese do herdeiro testamentário ou legatário, nomeados sob encargo. Nesse caso, do não-cumprimento do encargo presume-se a renúncia.

A renúncia deve ser feita pelo próprio herdeiro ou por mandatário revestido de poderes especiais e expressos. O herdeiro incapaz e

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o seu representante legal não podem renunciar herança, salvo mediante ordem judicial, ouvindo-se o Ministério Público.

A renúncia pode ser própria e imprópria. Na renúncia própria, também chamada pura e simples, o

herdeiro simplesmente abre mão de seus direitos hereditários. Nessa renúncia, não há incidência do imposto inter vivos, pois ela não é considerada um fato de transmissão da propriedade, tendo em vista que o herdeiro renunciante é tratado como se nunca tivesse existido. Nessa renúncia, o herdeiro não chega a adquirir a herança. O único imposto devido é o causamortis. O Código não exige a autorização do cônjuge do herdeiro renunciante; não obstante, há opiniões no sentido de que o cônjuge deve anuir, porque o ato assemelha-se à alienação e o direito à herança é considerado bem imóvel; outros ainda sustentam que a dita anuência só se faz necessária quando o herdeiro for casado na comunhão universal. A nosso ver, não é de se exigir a anuência do cônjuge, porque a renúncia pode ser fruto de ponderosas razões morais.

Na renúncia imprópria, também chamada translativa ou infavorem, o herdeiro renuncia em benefício de pessoa determinada. A rigor, não é renúncia, mas uma cessão gratuita de direitos hereditários, que equivale à doação. Na verdade, há uma aceitação tácita e depois uma cessão gratuita. É devido o imposto inter vivos, além do causa mortis. A nosso ver, é necessária a autorização do cônjuge do herdeiro, porque o ato equivale a uma alienação de bem imóvel, salvo no regime da separação de bens. A sobredita cessão, por seguir as regras da doação, não pode exceder ao valor da legítima.

Por outro lado, a cessão gratuita em favor de todos os co-herdeiros, isto é, em benefício do monte, equivale à renúncia pura e simples, a menos que o herdeiro cedente tenha estipulado cláusulas, encargos ou condições, quando então o ato seguirá as regras da renúncia translativa, pois a estipulação de cláusulas, encargos ou condições implica aceitação tácita.

Na renúncia pura e simples, quanto ao destino do quinhão do herdeiro renunciante, cumpre distinguir a sucessão legítima e a testamentária.

Na sucessão legítima, a quota hereditária do renunciante acresce aos demais herdeiros da mesma classe. Assim, se o de cujus deixa três filhos (A, B, C) e um deles (A) vem a renunciar, a parte deste acresce a dos outros dois (B e C). Anote-se que os filhos do renunciante não herdam por representação, mas podem herdar por direito próprio em duas hipóteses: a) se o renunciante é filho único; b) se todos da mesma classe renunciarem. Nesses dois casos, eles herdam como netos do de cujus.

Na sucessão testamentária, a parte do herdeiro testamentário ou legatário acrescerá à dos demais herdeiros testamentários ou legatários, se o testamento não especificar o respectivo quinhão. Se, ao revés, houver a especificação do quinhão, a parte do renunciante reverterá

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em favor dos demais herdeiros legítimos do testador. Assim, se o testador deixa a herança para A, B e C, e A vem a renunciar, a parte dele reverterá em favor de B e C, por força do direito de acrescer, a menos que o testamento tenha nomeado um substituto para o renunciante. Se, porém, o testador deixa a herança para A, B e C, mas especifica que A terá 20%, B, 50% e C, 30%, vindo A a renunciar, a parte dele reverterá em favor dos herdeiros legítimos do testador.

DISPOSIÇÕES COMUNS À ACEITAÇÃO E RENÚNCIA

A aceitação e renúncia não podem ser parciais, nem admitem termo, condição e retratação.

Admite-se, porém, a aceitação ou renúncia parcial em duas hipóteses:

a. o prelegatário, isto é, o legatário que é também herdeiro, pode aceitar a herança e renunciar o legado e vice-versa;

b. o herdeiro que recebe a herança por títulos diversos, isto é, na qualidade de herdeiro legítimo e testamentário, pode aceitar a herança na qualidade de herdeiro legítimo e renunciar a contemplada no testamento, ou vice-versa.

Quanto ao termo e condição, também não se admitem na aceitação ou renúncia. Se houver termo, reputa-se não escrito, mas a aceitação ou renúncia são válidas. Se houver condição, anula-se não apenas a condição, mas também a aceitação ou renúncia.

Por outro lado, a aceitação e renúncia são irretratáveis (art. 1.812).

Assim, com a aceitação, o herdeiro confirma a aquisição do domínio da herança. A renúncia posterior não é propriamente uma renúncia, mas uma mera desistência, com efeito ex nunc, sujeita à incidência do imposto inter vivos.

Igualmente, a renúncia também é irretratável, mas nada obsta a sua anulação por erro, dolo ou coação, mediante ação judicial. A retratação é o desfazimento do ato válido, ao passo que a anulação recai sobre ato inválido. Cremos que a renúncia pode ser retratada numa hipótese, quando feita por testamento. Nesse caso, o testador pode revogar o testamento, cancelando-se, por conseqüência, a renúncia.

Finalmente, falecendo o herdeiro antes de declarar se aceita a herança, o direito de aceitar ou renunciar passa-lhe aos herdeiros, desde que estes aceitem a segunda herança. De fato, se aceitarem esta última herança, poderão renunciar ou aceitar a primeira. Mas, se renunciarem à segunda, não poderão aceitar nem renunciar à primeira. Na hipótese de herdeiro testamentário e legatário, nomeados sob condição suspensiva, ainda não verificada, falecidos antes da aceitação, o direito de aceitar não se transmite aos herdeiros, porque caduca a disposição testamentária diante do falecimento antes da ocorrência da condição.

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DIREITO CIVIL - DIREITO DAS SUCESSÕES - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

QUESTÕES

1. O que é delação sucessória? 2. A aceitação da herança é obrigatória? 3. Quais as formas de aceitação da herança? 4. Quais os casos de aceitação direta? 5. Qual a diferença entre a aceitação “ultra vires hereditates” e “intra vires

hereditates”? 6. Qual a forma da renúncia? 7. O incapaz pode renunciar à herança? 8. Qual a diferença entre renúncia própria e imprópria?9. A cessão gratuita da herança em favor de todos os herdeiros é um ato de

aceitação ou de renúncia?10. Qual o destino da quota do herdeiro renunciante? 11. A aceitação e a renúncia podem ser parciais? 12. Qual a conseqüência de se inserir termo ou condição na renúncia ou

aceitação?13. O que é desistência da herança? 14. A renúncia e a aceitação são retratáveis? 15. Falecendo o herdeiro antes de aceitar a herança, o direito de aceitar ou

renunciar é transmissível aos herdeiros?

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TUTELA DOS INTERESSES DIFUSOS E

COLETIVOS

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO II

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INTERESSES DIFUSOS E COLETIVOS - PROF. ROBERTO BARBOSA ALVES

A CARACTERIZAÇÃO DE CADA ESPÉCIE DE INTERESSE

O que define a espécie de interesse é a pretensão existente em cada ação proposta. Noutras palavras, o mesmo fato pode provocar diferentes causas de pedir e diferentes pedidos, e conseqüentemente envolver interesses difusos, coletivos, individuais homogêneos e puramente individuais. Um exemplo que costuma ser mencionado é o do conhecido naufrágio do barco Bateau Mouche. Há um interesse difuso quando o Ministério Público ajuíza ação civil pública para interditar a embarcação e, com isso, evitar que pessoas indetermináveis sofram novos acidentes; um interesse coletivo a ser tutelado na ação movida pelas associações de empresas de turismo para compelir o proprietário do barco a dotá-lo de maior segurança; um interesse individual homogêneo na ação coletiva das vítimas que pleiteiam indenização; e um interesse puramente individual nas hipóteses em que cada uma das vítimas, individualmente, postula a reparação do prejuízo.

PROBLEMAS SUSCITADOS PELOS INTERESSES COLETIVOS

Segundo o Código de Processo Civil, para propor ou contestar ação é necessário ter interesse e legitimidade (art. 3º), aos quais se soma, por força do art. 267, VI, a possibilidade jurídica do pedido. Tradicionalmente, o processo civil foi concebido como um instrumento de exercício de direitos subjetivos, quer exercidos individualmente, quer exercidos coletivamente. O reconhecimento dos direitos coletivos produz, por isto, algumas indagações: como sustentar a existência de legitimidade se falta a correlação entre o titular da pretensão e aquele que a deduz em juízo? Como explicar que a coisa julgada produza efeitos em relação a pessoas que não integraram a relação processual? Como explicar que o Poder Judiciário possa exercer funções de controle que, eventualmente, podem colidir com a noção de sistema político representativo? São questões que só podem ser respondidas mediante uma progressiva atualização dos conceitos envolvidos, o que se pretenderá fazer a partir deste momento.

INTERESSE DE AGIR

O interesse de agir tem o sentido de interesse processual.Não se confunde, portanto, com o interesse material, ou com os conceitos de interesse vistos até agora. Existe interesse de agir quando a ação judicial é indispensável para a obtenção da tutela pretendida. Noutras palavras, trata-se de uma situação em que o autor, não fosse a tutela jurisdicional, sofreria um prejuízo.

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INTERESSES DIFUSOS E COLETIVOS - PROF. ROBERTO BARBOSA ALVES

A tutela dos interesses transindividuais pressupõe o reconhecimento de que há interesse processual a partir da necessidade de tutela a interesses socialmente relevantes. Aqui, a necessidade surge de uma preferência pela defesa coletiva em detrimento da defesa individual, isto é, requer-se uma superioridade da ação coletiva em relação a outros meios de solução do litígio. O interesse existe, portanto, quando a prestação jurisdicional decorrente da ação coletiva é mais eficaz que aquele que seria obtido mediante ações individuais.

LEGITIMIDADE

A legitimidade é tradicionalmente associada à pertinência subjetiva da ação. Em geral, tem legitimidade para agir aquele a quem a lei atribui tal poder, segundo a titularidade do direito deduzido em juízo. É, enfim, o poder de exercer a ação judicial. Ocorre que, como observam Cappelletti e Garth, tendo melhores condições de suportar os custos e a demora do litígio, as pessoas ou organizações que possuem recursos financeiros consideráveis têm evidentes vantagens na busca ou na defesa de seus interesses. Além disso, a falta de conhecimento de como fazer uma reclamação compromete o acesso à justiça. O mesmo ocorre quando se comparam os litigantes ocasionais e os litigantes repetitivos, isto é, respectivamente aqueles que têm contatos isolados e pouco freqüentes com o sistema judicial e as organizações com longa experiência judicial. Uma das soluções para o acesso à justiça está na cumulação de reclamações, de modo que as pessoas comuns, unidas por alguma situação que possa provocar a atividade jurisdicional, possam exercitar seus diretos e contrariar as vantagens das organizações que têm que enfrentar. Assim, outras pessoas, que abandonam seus papéis tradicionais, passam a ser dotadas de legitimação para exercer a defesa de interesses difusos e coletivos. Agora, a questão já não pode ser resolvida pela titularidade da pretensão. De fato, como não há vínculo jurídico entre os titulares dos interesses –aliás, esses titulares podem mesmo ser indeterminados, como acontece nos interesses difusos–, é necessário ampliar o conceito de legitimação. E, no caso dos interesses transindividuais, será necessário reconhecer a existência de uma legitimação extraordinária.

LEGITIMAÇÃO ORDINÁRIA E LEGITIMAÇÃO EXTRAORDINÁRIA

Diz-se que a legitimação é ordinária quando a própria pessoa lesada defende seu interesse, como ocorre, por exemplo, numa ação individual de cobrança de um crédito. Esta é a regra geral.

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INTERESSES DIFUSOS E COLETIVOS - PROF. ROBERTO BARBOSA ALVES

A legitimação é extraordinária quando alguém, em nome próprio, defende em juízo interesse alheio. Nos termos do art. 6º do CPC, é excepcional e depende de autorização legal. Neste caso, verifica-se a figura da substituição processual: quem litiga é o substituto processual, que, em nome próprio, defende direito alheio. A legitimação extraordinária não se confunde com a representação: nesta, alguém, em nome alheio, defende interesse alheio, como ocorre com os mandatários. Ainda que alguns doutrinadores defendam o contrário, é certo que nos interesses transindividuais a legitimação é sempre extraordinária. Os legitimados agem sempre buscando mais que a proteção de interesses próprios. Em caso de êxito, a coisa julgada vai beneficiar todo o grupo, e não apenas o autor. Do contrário, não haveria litispendência entre duas ações coletivas, com o mesmo objeto, ajuizadas contra o mesmo réu por autores diferentes, o que seria inadmissível.

SOLUÇÕES PARA O PROBLEMA DA LEGITIMAÇÃO ATIVA

Assentada a idéia de que alguém deve estar legitimado a defender interesses alheios em nome próprio, surge a questão de quaisdevem ser esses legitimados. No Brasil, a Lei da Ação Civil Pública (nº 7.347/85) foi a primeira a disciplinar a matéria. A legitimação para as ações coletivas foi atribuída ao Ministério Público; à União, aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal; às autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades de economia mista; às associações civis que, constituídas há pelo menos um ano, tenham como finalidades institucionais a defesa dos interesses questionados. A esta relação o Código de Defesa do Consumidor acrescentou as entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo Código. A Constituição atribuiu aos sindicatos, entidades de classe ou associações legalmente constituídas e em funcionamento há pelo menos um ano, bem como aos partidos políticos com representação no Congresso Nacional (art. 5º, LXX, e 8º, III), legitimação para o mandado de segurança coletivo. Além disso, conferiu legitimidade às entidades associativas, quando expressamente autorizadas, para a representação de seus filiados (art. 5º, XXI), e declarou legitimadas também as comunidades e organizações indígenas para a defesa dos interesses de seus membros (art. 232). O art. 5º da Lei da Ação Civil Pública teve sua redação alterada pela Lei nº 8.884/94, que permitiu o ajuizamento da ação civil pública pelo Ministério Público, pela União, pelos Estados e Municípios, e ainda por autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia mista ou associação que (a) esteja constituída há pelo menos um ano, nos termos da lei civil e (b) inclua entre suas finalidades institucionais a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

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INTERESSES DIFUSOS E COLETIVOS - PROF. ROBERTO BARBOSA ALVES

ADEQUAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO

As associações legitimadas para as ações coletivas se subordinam a dois requisitos: a. constituição há mais de um ano, excetuados os entes públicos, dispensado

o prazo pelo juiz se houver interesse social evidenciado pela extensão do dano ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido;

b. relação entre os fins institucionais e o interesse a ser defendido, requisito que não pode ser dispensado pelo juiz. Não se exige este requisito do Ministério Público, da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.

As associações ou corporações só podem ajuizar ação civil pública quando autorizadas por seus estatutos ou por deliberação em assembléia. Neste último caso, eventual procedência do pedido se estenderá a todos os associados, ainda que nem todos eles, na assembléia, hajam concordado com a autorização. Os sindicatos podem defender os interesses da respectiva classe, por meio de ação coletiva, bastando-lhes o registro no Ministério do Trabalho. A atuação dos sindicatos pode atender aos interesses de toda a categoria, e não apenas os de seus sindicalizados, operando-se, neste caso, verdadeira substituição processual. As fundações privadas, ainda que falte menção expressa na lei, também têm legitimação para defender interesses transindividuais compatíveis com seu objeto. Por último, já com a Lei da Ação Civil Pública, o Ministério Público ganhou legitimidade para defender em juízo alguns interesses transindividuais. O reconhecimento definitivo desta condição de tutor dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos veio com a Constituição de 1988 (art. 127). Voltaremos à atuação do Ministério Público em outro momento. A legitimação para a defesa dos interesses transindividuais é concorrente. Cada um dos legitimados pode ajuizar as ações pertinentes, isoladamente ou em litisconsórcio uns com os outros. Em relação ao Ministério Público, o interesse de agir é presumido; mas os demais co-legitimados devem demonstrar este interesse.

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INTERESSES DIFUSOS E COLETIVOS - PROF. ROBERTO BARBOSA ALVES

QUESTÕES

1. Por que o caso “Bateau Mouche” envolveu interesses difusos, coletivos, individuais homogêneos e puramente individuais?

2. Quando existe interesse de agir na tutela dos interesses transindividuais? 3. O que é legitimidade? 4. Qual a diferença entre legitimação ordinária e legitimação extraordinária? 5. Qual a diferença entre legitimação extraordinária e representação? 6. Por que há legitimação extraordinária nos interesses transindividuais? 7. Quais as entidades que têm legitimação para as ações civis coletivas? 8. Quais as entidades legitimadas para impetração de mandado de

segurança coletivo? 9. Quais os requisitos para as associações ajuizarem ações coletivas? 10. Qual o requisito para o sindicato mover ação coletiva? Pode defender

interesse de quem não é sindicalizado? 11. A fundação privada pode mover ação para defender interesses

transindividuais? 12. Na legitimação concorrente para a defesa dos interesses transindividuais,

o interesse de agir dos legitimados deve ser demonstrado?

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ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO II

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ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - PROF. FAUSTO JUNQUEIRA DE PAULA

DIREITOS FUNDAMENTAIS

Como já visto, crianças e adolescentes deixaram de ser simplesmente objeto do direito dos adultos, para com a nova ordem constitucional serem sujeitos dos seus próprios direitos. Os direitos das crianças e dos adolescentes são aqueles mesmos outorgados aos adultos, mais outros especiais e conferidos em respeito a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. No artigo 227 da Constituição Federal pode-se ver reiterados alguns dos direitos insculpidos nos artigos 5º, 6º e 7º do mesmo diploma jurídico. O Estatuto da Criança e do Adolescente, no Título II, que compreende o artigo 7º até o artigo 69, regulamenta e lista os direitos fundamentais, na ordem seqüencial, o direito à vida e a saúde, à liberdade, ao respeito e à dignidade, à convivência familiar e comunitária, à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer, e por fim, à profissionalização e ao trabalho protegido. Não raro esses direitos fundamentais não são atendidos espontaneamente pelos entes subordinados – Família, Sociedade e Estado – necessitando as crianças e os adolescentes buscarem a tutela jurisdicional para satisfação dos seus legítimos interesses, através dos instrumentos jurídicos corolários da Proteção Integral. Salienta Paulo Afonso Garrido de Paula, sustentando que somente através de uma atividade jurisdicional diferenciada pode o sistema de justiça conhecer das pretensões oriundas das relações jurídicas afetas a crianças e adolescentes, que: “através da singularidade da tutela devida a crianças e adolescentes poder-se-ia chegar à conclusão da existência de uma forma diversa de distribuição da justiça. (...) O fundamento objetivo da tutela jurisdicional diferenciada devida à criança e ao adolescente reside na existência de um microssistema de distribuição de justiça, introduzido por lei especial.” Os marcos diferenciais são plenamente visíveis ictu oculi naprópria lei, vejamos o artigo 201, inciso V, do Estatuto da Criança e do Adolescente que confere ao Ministério Público a legitimidade para a defesa de direitos individuais indisponíveis, difusos e coletivos afetos à criança e aos adolescentes, bem como o instrumento da tutela antecipada que, nas hipóteses vertentes, é cabível muito antes de assim o prever o sistema processual civil comum. A gratuidade dos serviços judiciários, a oralidade e a simplicidade das formas, sem prejuízo das garantias processuais, são traços característicos desse microssistema concebido para defesa dos direitos de crianças e adolescentes. Portanto, a proteção integral dos direitos fundamentais na sua dimensão individual, difusa ou coletiva, ganha concretude a partir do reconhecimento da existência de uma jurisdição diferenciada para regular os conflitos de interesse oriundos dessas relações jurídicas, sendo intuitivo o

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ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - PROF. FAUSTO JUNQUEIRA DE PAULA

reflexo de tal reconhecimento no plano extrajudicial, onde o subordinado não terá estímulo para descumprir suas obrigações legais e desatender os direitos em testilha. Nos Tribunais, inúmeros são os exemplos de ações civis públicas ajuizadas visando reparar ou evitar a lesão a direitos fundamentais de crianças e adolescentes, no campo da educação, saúde, trabalho protegido ou não trabalho, bem como ações de obrigação de fazer para implementação dos programas de proteção e sócio-educativos, propiciadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pela Constituição Federal. Vejamos alguns direitos fundamentais nos quais mais nos deteremos.

DO DIREITO À VIDA E À SAÚDE

Nos artigos 7º até 14, o Estatuto da Criança e do Adolescente disciplina o direito da criança e do adolescente à vida e à saúde. Alguns pontos merecem nossa preocupação de modo especial. De início, curioso notar que, no nosso país, ainda no século 21, é preciso a lei expressar que a criança tem direito de viver. Mais grave é que, inobstante a norma securitária da vida, há registros de altíssimos níveis de mortalidade infantil no Brasil por causas ligadas a nutrição, saneamento básico e exclusão socioeconômica. O atendimento assegurado à gestante e à parturiente será efetivado através do Sistema Único de Saúde, nos termos dos arts.201, II, 203, I, 208, VII e 227, parágrafo 1º, I, todos da Constituição Federal, mas ainda demonstra-se precário e insuficiente para colocar o Brasil dentre as nações melhor posicionadas no ranking mundial da qualidade de vida. O aleitamento materno deverá ser assegurando pelo Poder Público e propiciado pelas instituições e empregadores, em condições adequadas, inclusive às mães submetidas a medida privativa de liberdade. Assim sendo, a mãe submetida a pena criminal ou a prisão processual, ou a qualquer espécie de prisão civil ou administrativa, bem como a medida sócio-educativa de internação terá garantido o direito de amamentar sua prole, sendo de responsabilidade do diretor do estabelecimento carcerário zelar pelo oferecimento das condições adequadas. A criança e o adolescente, através do Sistema Único de Saúde, terão garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde. Nos termos do art.11 do Estatuto da Criança e do Adolescente, as crianças e os adolescentes portadores de necessidades especiais (deficiência) terão direito a atendimento especializado, medicamentos, próteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação e reabilitação, sendo assegurado o acesso gratuito aos necessitados.

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ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - PROF. FAUSTO JUNQUEIRA DE PAULA

Por força do arts. 208 e seguintes do Estatuto da Criança e do Adolescente, caberá ação de responsabilidade, inclusive com preceito cominatório de obrigação de fazer e antecipação de tutela, no caso de oferta irregular ou não oferecimento do acesso às ações e serviços de saúde, estando legitimado para o pleito o Ministério Público, as associações legalmente constituídas e a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal (art.210, Estatuto). Dispõe ainda o art.12 do Estatuto sobre a necessidade dos estabelecimentos de atendimento à saúde proporcionarem condições para a permanência em tempo integral de um dos pais ou responsável, nos casos de internação da criança ou adolescente, o que influenciará positivamente na recuperação da saúde do paciente infantil, que acima de tudo, precisa do constante afeto e amor de sua família no momento de uma enfermidade. Casos de maus tratos deverão ser obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais. Desta forma, os profissionais da saúde que, no atendimento de uma criança ou adolescente, tomarem conhecimento de vitimização por maus tratos, deverão notificar ao Conselho Tutelar, que atenderá aos pais, aplicando-lhes, conforme os casos, as medidas do art.129 do Estatuto. Deixando o médico ou responsável por estabelecimento de saúde de proceder à notificação de maus tratos, incorrerá em infração administrativa prevista no art.245 do ECA, com sanção agravada no caso de reincidência. Por fim, visando a concretude do direito à vida e à saúde, mister exigir do gestor da coisa pública, ainda que através da tutela jurisdicional, a implementação de políticas públicas que priorizem a manutenção da vida e dignidade humana, fugindo do paternalismo vicioso e autoritário, cuja prática comum já criou no meio político um deletério caldo de cultura.

DIREITO À LIBERDADE, AO RESPEITO E À DIGNIDADE

Dispõe o artigo 15 do ECA que a criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. O direito à liberdade compreende o amplo acesso a logradouros e espaços comunitários, a livre opinião e expressão, crença e culto religioso, bem como ao direito de participar sem discriminação da vida familiar, comunitária e da vida política, na forma da lei. Há, ainda, o especialíssimo direito de brincar, praticar esportes e divertir-se, absolutamente condizente com a condição infanto-juvenil, aliás, tão agradável também ao adulto que busca uma vida feliz e plena.

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ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - PROF. FAUSTO JUNQUEIRA DE PAULA

Importante, contudo, lembrar que crianças e adolescente estão submetidos ao poder familiar dos pais ou à tutela ou guarda dos responsáveis, aos quais devem respeito e subordinação para efeito de criação e educação, cabendo-lhes obediência e reverência. Assim sendo, o direito à liberdade não é absoluto e encontra seu limite nos ditames fixados pelos pais ou responsáveis, que com o beneplácito do poder familiar deverão estabelecer as regras de convivência familiar e comunitária, para boa educação e criação dos pequenos. O direito à liberdade do adolescente ainda pode ser restringido diante de apreensão em flagrante pela prática de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. A criança não pode ser privada de liberdade e, no caso de flagrante de ato infracional, tão somente, será encaminhada ao Conselho Tutelar, na companhia dos pais ou responsável. Nem mesmo o abrigo pode se revestir de privação de liberdade, pois a criança ou adolescente abrigado não estão em absoluto despidos do direito de ir e vir aos logradouros e espaços públicos. É que, ex vi do disposto no parágrafo único do artigo 92 do ECA, o dirigente da entidade ou de abrigo se equipara ao guardião para todos os efeitos de direito e, no cumprimento de seu mister como responsável pela criança, mormente aquelas de tenra idade, pode restringir – sem abusos ou discriminações – sua liberdade.

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ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - PROF. FAUSTO JUNQUEIRA DE PAULA

QUESTÕES

1. Quais os direitos fundamentais disciplinados pelo ECA? 2. Quais os traços característicos do microssistema do ECA, concebido

para a defesa de crianças e adolescentes? 3. Quais os direitos previstos no artigo 11 do ECA para as crianças e

adolescentes portadores de deficiência e qual a medida cabível para o descumprimento desses direitos?

4. O que os estabelecimentos de saúde devem proporcionar aos pais ou responsáveis pela criança e adolescente?

5. Os casos de maus tratos deverão ser comunicados a qual órgão? Qual a sanção cabível para o descumprimento dessa comunicação?

6. O direito à liberdade da criança e do adolescente é absoluto? 7. A criança pode ser privada da liberdade? E no caso de flagrante de ato

infracional?8. Os abrigos de criança podem se revestir de privação de liberdade?

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DIREITOCOMERCIAL

TOMO I

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO II

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DIREITO COMERCIAL I - PROF. SÍLVIO ANTÔNIO MARQUES

NOME EMPRESARIAL

NOÇÕES GERAIS

Nome empresarial é aquele usado pelo empresário individual ou sociedade em suas relações no mercado. É o nome pelo qual o empresário se apresenta e se distingue dos outros.

O empresário pode utilizar outros signos distintivos, tais como as marcas, o título do estabelecimento e o endereço eletrônico (Internet), mas estes não podem ser confundidos com o nome empresarial.

Nos termos do Código Civil (art. 1.155), considera-se nome empresarial a firma ou a denominação adotada para o exercício de empresa. Para efeitos legais, equipara-se ao nome empresarial a denominação das sociedades simples, associações e fundações.

Pode-se dizer que o nome empresarial identifica o empresário (por exemplo, “Indústria Metalúrgica Global Ltda.”), a marcaidentifica o produto (por exemplo, “Omo”, “Hellmans” etc.), o título do estabelecimento, o ponto empresarial (por exemplo, “Esquina das Tintas”, “Pernambucanas”, “Pão de Açúcar” etc.). Às vezes, o nome empresarial é idêntico à marca e ao título do estabelecimento.

Com exceção da sociedade em conta de participação, todos os empresários individuais e sociedades devem adotar um nome empresarial. As Juntas Comerciais, inclusive, não podem aceitar o registro do empresário individual ou o arquivamento de contrato ou estatuto social de sociedade empresária sem a definição do nome empresarial.

O empresário individual, na prática, usa o seu nome para duas finalidades: a civil e a empresarial. O nome civil está ligado à sua personalidade e o nome empresarial tem natureza eminentemente patrimonial. Isso não significa que o nome empresarial corresponda à pessoa jurídica e o nome civil à pessoa física. O empresário individual é sempre pessoa física e usa o mesmo nome para duas finalidades distintas (civis e empresariais).

IDENTIFICAÇÃO DO NOME EMPRESARIAL

A lei criou duas espécies de nome empresarial: a firma e a denominação, que podem ser entendidas segundo a sua estrutura e função.

ESTRUTURA

A firma somente pode ter por base o nome civil do empresário individual ou dos sócios da sociedade. O núcleo do nome empresarial é sempre constituído de nome civil, embora possa ser acrescido

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DIREITO COMERCIAL I - PROF. SÍLVIO ANTÔNIO MARQUES

o ramo de atividade (por exemplo, Edmundo Pereira & Túlio da Silva; Antônio M. Santos Estruturas Metálicas etc.).

De acordo com o Código Civil, o empresário individual opera sob firma constituída por seu nome, completo ou abreviado, aditando-lhe, se quiser, designação mais precisa da sua pessoa ou do gênero de atividade (art. 1.156).

A sociedade em que houver sócios de responsabilidade ilimitada operará sob firma, na qual somente os nomes deles poderão figurar, bastando para formá-la aditar ao nome empresarial a expressão “e companhia” ou sua abreviatura. Ficam solidária e ilimitadamente responsáveis pelas obrigações contraídas sob a firma social aqueles que, por seus nomes, figurarem na firma da sociedade (art. 1.157, parágrafo único).

Na denominação, o nome empresarial pode ser baseado em nome civil (assim como a firma) ou em qualquer outro elemento, chamado de fantasia ou fórmica (por exemplo, Luiz Machado Indústria e Comércio Ltda., Antenas Satélite Ltda. etc.).

Mas nem sempre a simples observância do nome empresarial distingue um empresário do outro, pois a firma e a denominação podem conter nomes civis na sua estrutura. Apenas as sociedades em comandita por ações, sociedades anônimas e sociedades limitadas podem ser facilmente identificadas pela simples leitura do nome empresarial. Portanto, necessário se faz observar outra distinção, que é a função do nome empresarial.

FUNÇÃO

A firma identifica o empresário e também constitui a sua assinatura. O empresário individual e o representante das sociedades que adotam firma devem assinar conforme o nome empresarial (por exemplo, José Pereira deverá assinar “José Pereira & Cia Móveis”), incluindo expressões relativas ao objeto social. Mas, na prática, os sócios assinam conforme o fizeram no instrumento contratual, valendo-se de sua assinatura para os atos da vida civil.

Na denominação, o nome empresarial apenas identifica o empresário, e não constitui sua assinatura (por exemplo, “Cidade-Luz Materiais Elétricos Ltda.”). Assim, o sócio pode apor assinatura igual àquela que utiliza normalmente na sua vida civil.

PRINCÍPIOS DO NOME EMPRESARIAL

Há dois princípios que devem ser atendidos para que a Junta Comercial arquive o ato constitutivo de uma sociedade ou registre o empresário individual (art. 34 da Lei n. 8.934/1994):

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DIREITO COMERCIAL I - PROF. SÍLVIO ANTÔNIO MARQUES

a. Veracidade - o nome empresarial deve espelhar o nome civil do empresário individual ou a espécie societária, bem como as regras legais em relação à formação da firma ou denominação. Assim, se a sociedade é limitada, não poderá se chamar Indústrias Químicas São José S.A..

b. Novidade - o nome empresarial deverá ser novo, ou seja, não deve haver nenhum outro registrado cujo núcleo seja similar. Mas nem sempre é possível saber se o nome já existe, pois as Juntas Comerciais são órgãos estaduais. Além disso, no caso de empresário individual e sociedades que adotam firma, há muitos casos de homonímia.

O Superior Tribunal de Justiça, antes da vigência da Lei n. 8.934/1994, já havia decidido que o simples arquivamento do ato constitutivo na Junta Comercial era suficiente para garantir a proteção ao nome. O Supremo Tribunal Federal também já havia decidido que, em se tratando de empresa que usa nome fantasia, prevalece aquele que registrou primeiro. Portanto, cabe à segunda empresa modificar o seu nome empresarial, seja amigável ou judicialmente.

Nos termos do art. 53 do Decreto-lei n. 1.800/1996 e Instrução Normativa n. 53/1996 do Departamento Nacional de Registro do Comércio, a proteção ao nome empresarial pode se estender a outros Estados da Federação, se for apresentado requerimento nesse sentido pela empresa interessada.

NOMES DOS EMPRESÁRIOS

Os empresários podem adotar os seguintes nomes: a. Empresário individual - sempre tem responsabilidade ilimitada e pode

adotar apenas firma, formada por seu nome civil. Contudo, ele poderá abreviar ou não o seu nome civil, bem como agregar o ramo de negócio (por exemplo, o empresário Marco Aurélio Borges pode adotar os nomes empresariais “Marco Aurélio Borges”, M.A.Borges”, “Marco A. Borges”, “Marco Aurélio Borges Antenas - ME” e outros).

b. Sociedades - existem 7 espécies de sociedades personificadas, sendo 5 (cinco) empresárias e 2 (duas) não-empresárias. São empresárias as sociedades em nome coletivo, comandita simples, limitada, anônima (companhia) e a em comandita por ações.

SOCIEDADE EM NOME COLETIVO – trata-se de sociedade em que a responsabilidade de todos os sócios é sempre solidária e ilimitada e, em caso de falência, os credores podem executar os bens pessoais dos sócios, após o exaurimento do patrimônio social. A sociedade pode apenas usar firma, mas permite-se que seja agregado o ramo de negócio. Assim, Wagner Nogueira, Marcelo Moreira e Flávio Silva podem formar uma sociedade com os nomes empresariais “Moreira, Nogueira & Silva” ou “Nogueira, Silva & Moreira Materiais Elétricos”, por exemplo. Se o nome de um sócio não constar no

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nome empresarial, deverá ser utilizada a expressão “e companhia”, ou sua abreviatura (por exemplo, “Nogueira & Cia Materiais Elétricos”), conforme art. 1.157 do Código Civil:

SOCIEDADE EM COMANDITA SIMPLES - nessa sociedade, há sócios comanditados, que respondem ilimitadamente com seus bens pessoais, e sócios comanditários, que têm responsabilidade limitada ao capital social. Trata-se de sociedade que pode adotar firma como nome empresarial, baseado no nome do sócio ou sócios comanditados. O comanditário não pode ter o seu nome na firma da sociedade, sob pena de responder como se fosse sócio comanditado (Código Civil, art. 1.047). Permite-se que seja agregada alguma expressão sobre o ramo da empresa. É obrigatório, contudo, o uso da expressão “e companhia”, ou sua abreviatura (& Cia.), para designar os sócios comanditários (por exemplo, “Moreira, Ferreira & Cia Confecções”).

SOCIEDADE LIMITADA - nessa sociedade, todos os sócios respondem limitadamente pela integralização do total do capital social. Trata-se de tipo societário que pode adotar firma (por exemplo, “A. Pereira & Cia. Ltda.”) ou denominação (por exemplo, “Morumbi Materiais para Construção Ltda.”). Se utilizar firma, deverá constar o nome dos sócios ou de um deles, pelo menos, conforme art. 1.158 do Código Civil:

“Art. 1.158. Pode a sociedade limitada adotar firma ou denominação, integradas pela palavra final ‘limitada’ ou a sua abreviatura. § 1º A firma será composta com o nome de um ou mais sócios, desde que pessoas físicas, de modo indicativo da relação social.(...)”.

A denominação deve designar o objeto da sociedade, sendo permitido que nela figure o nome de um ou mais sócios. A omissão da palavra “limitada” acarreta a responsabilidade solidária e ilimitada dos administradores que assim empregarem a firma ou a denominação da sociedade (art. 1.158, §§2º e 3º do Código Civil).

SOCIEDADE ANÔNIMA – trata-se de sociedade que deve adotar denominação, incluindo-se as expressões “Sociedade Anônima” (ou “S.A”) ou a expressão “Companhia” (ou “Cia.”). Admite-se, ainda, o uso do nome de uma pessoa que concorreu para o sucesso da empresa (por exemplo, “Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo S.A.”, Arthur Lundgren Tecidos S.A.), mas isso não significa que a sociedade anônima possa adotar firma.

A expressão “Sociedade Anônima” (ou S.A.) pode ser usada no início, no meio ou no fim do nome empresarial, mas a expressão “Companhia” (ou “Cia”) não pode ser usada no final. É o que preceitua o art. 4º da LSA (Lei n. 6.404/1976) e para evitar confusão com o nome empresarial de outras espécies societárias.

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DIREITO COMERCIAL I - PROF. SÍLVIO ANTÔNIO MARQUES

Assim, uma sociedade anônima pode ter, por exemplo, os seguintes nomes empresariais: “S.A. Indústrias Global Comércio de Fios”, “Sociedade Anônima Global – Cabos e Fios”, “Companhia Global de Metais” e “Global – Companhia Industrial de Metais”.

SOCIEDADE EM COMANDITA POR AÇÕES – trata-se de tipo societário formado por acionistas administradores, que têm responsabilidade ilimitada pelas dívidas sociais, e acionistas não-administradores, que têm responsabilidade limitada ao preço de emissão das ações subscritas. Tal sociedade pode adotar firma ou denominação, conforme determinar o estatuto social. Se adotar firma, somente os nomes civis dos gerentes ou administradores podem ser utilizados, sendo obrigatória a expressão “E Companhia” ou sua abreviatura (“& Cia.), que designa os não-administradores (art. 1.157 do Código Civil), ou administradores cujos nomes não foram incluídos no nome empresarial (por exemplo, “Silveira & Cia. Alimentos C.A.”) Se adotar denominação, devem constar no nome empresarial a designação do objeto social e a expressão “Em Comandita por Ações”, ou sua abreviatura (por exemplo, “Aurora Fios Elétricos Comandita por Ações” ou “Aurora Fios Elétricos C.A.”), nos termos do art. 1.161 do Código Civil:

“Art. 1.161. A sociedade em comandita por ações pode, em lugar de firma, adotar denominação designativa do objeto social, aditada da expressão ‘comandita por ações’.” As sociedades não-empresárias também devem adotar um nome,

por determinação legal: I. Sociedade simples – trata-se de espécie societária que exerce atividades

não-mercantis relativas à prestação de serviços cujos sócios podem ter responsabilidade limitada ou ilimitada, conforme dispuser o contrato social (art. 997, I, do Código Civil). A sociedade simples deve adotar denominação (por exemplo, DDZP Propaganda e Marketing Ltda.).

II. Sociedade cooperativa – trata-se de sociedade composta por sócios-cooperados que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens e serviços para o exercício de atividade econômica, sem objetivo de lucro. Os sócios podem ter responsabilidade limitada ou ilimitada, conforme dispuser o contrato social. Trata-se de tipo societário que pode adotar denominação, formada pelo vocábulo “Cooperativa”, nos termos do art. 1.159 do Código Civil (por exemplo, Cooperativa Agrícola de Cotia Ltda.)

As microempresas e as empresas de pequeno porte(empresários individuais, sociedades empresárias contratuais e sociedades simples) acrescentarão à sua firma ou denominação as expressões “Microempresa” ou “Empresa de Pequeno Porte”, ou suas respectivas abreviações, “ME” ou “EPP”, conforme o caso, sendo facultativa a inclusão do objeto da sociedade (art. 72 da Lei Complementar n. 123/2006). A sociedadeem conta de participação é constituída por sócio ostensivo, que se

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apresenta perante os demais empresários, e por sócio participante, que permanece oculto. Eventuais negócios são realizados e geridos pelo sócio ostensivo, em nome próprio, o qual se responsabilizará perante terceiros, sendo os resultados divididos com o participante. Essa sociedade está proibida de usar firma ou denominação (art. 1.162 do Código Civil).

ALTERAÇÃO DO NOME EMPRESARIAL

A alteração do nome do empresário ou da sociedade pode ocorrer de forma voluntária ou obrigatória. A modificação voluntária ocorre quando o empresário individual, por vontade própria, ou os sócios da sociedade decidem, de comum acordo, enquanto a alteração obrigatória decorre de diversas circunstâncias. As três primeiras causas de modificação obrigatória estão relacionadas à existência de nomes civis no nome empresarial, enquanto as duas últimas estão fundadas em motivos diversos: a. Retirada, exclusão ou morte de um sócio – nos termos do art. 1.165 do

Código Civil, o nome de sócio que vier a falecer, for excluído ou se retirar, não pode ser conservado na firma social.

b. Alteração da categoria do sócio - os sócios das sociedades em comandita simples e em comandita por ações podem mudar de categoria. Assim, se o sócio comanditado tornar-se comanditário, é possível que o seu nome conste da firma (razão social). Enquanto não houver exclusão, mediante alteração do contrato social, ele responderá pelas obrigações como se fosse comanditado (ilimitadamente).

c. Alienação do estabelecimento - o nome empresarial e o nome civil são inalienáveis. O empresário individual ou sociedade que adote firma poderá, todavia, alienar o estabelecimento (conjunto de bens corpóreos e incorpóreos), desde que não inclua o nome empresarial. O adquirente de estabelecimento, por ato entre vivos, pode, se o contrato o permitir, usar o nome empresarial do alienante, precedido do seu próprio, com a qualificação de sucessor (art. 1.164 do Código Civil).

A Lei não excluiu sequer as denominações, pois se refere apenas ao “nome”, e não à firma, mas o entendimento corrente é de que as denominações que não contenham nomes civis podem ser alienadas com o estabelecimento empresarial. d. Transformação da sociedade - se os sócios ou acionistas quiserem mudar

a espécie de sociedade, deverão modificar o nome constante no contrato ou estatuto social arquivado na Junta Contratual. Vale dizer: haverá alteração do ato constitutivo e o posterior arquivamento do respectivo instrumento (por exemplo, de sociedade anônima para limitada ou vice-versa).

e. Lesão a direito de terceiro - o empresário está obrigado, seja amigável ou judicialmente, a modificar a firma ou denominação registrada anteriormente por outro empresário.

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DIREITO COMERCIAL I - PROF. SÍLVIO ANTÔNIO MARQUES

PROTEÇÃO LEGAL AO NOME EMPRESARIAL

A lei protege o nome empresarial, assim como protege os bens da propriedade industrial (patentes de invenção, marcas, título do estabelecimento etc.). Tal proteção se dá apenas nos limites do território do Estado (art. 1.166 do Código Civil), salvo se apresentado requerimento perante a Junta Comercial nos termos do art. 61 do Decreto n. 1.800/1996 (que regulamentou a Lei n. 8.934/1996) e Instrução Normativa n. 53/1996 do Departamento Nacional do Registro do Comércio (DNRC). Neste caso não é necessário que o empresário mantenha estabelecimentos em outros Estados da Federação.

Antes da entrada em vigor do atual Código Civil, o Supremo Tribunal Federal decidiu que prescrevia em 5 anos a ação por violação ao nome empresarial (art. 178 §1º do Código Civil de 1916 e RT 672/240). Nos termos do art. 1.167 do Código Civil, todavia, o prejudicado, a qualquertempo, pode propor ação para anular a inscrição do nome empresarial feita com violação da lei ou do contrato, não havendo mais prazo prescricional a ser obedecido.

Se um empresário utiliza indevidamente o nome de outrem, estará prejudicando o direito deste, que pode ter títulos protestados ou a falência decretada. Às vezes, os nomes são semelhantes e o empresário precisa se socorrer ao Poder Judiciário. Mesmo que não haja registro, mas ficar configurado que um empresário está usando um nome de empresa famosa, o infrator sofrerá várias conseqüências: I. Sob o aspecto civil - o empresário lesado pode pedir em juízo

indenização e obrigar o usurpador a deixar de usar o nome. Não podem ser usadas expressões que constituam marcas, títulos de estabelecimento ou sinais de propaganda de outro empresário, tendo em vista o disposto na Lei n. 9.279/1996 (Lei da Propriedade Industrial).

II. Sob o aspecto penal - o usurpador responde criminalmente (art. 194 da Lei n. 9.279/1996) No entanto, a lei nunca tratou dos nomes empresariais semelhantes e coube à doutrina e à jurisprudência resolver as pendências. Em regra, o que interessa é o núcleo do nome. Assim, podem ser dados os seguintes exemplos: “Auto Escapamentos Fumaça Ltda.” e “Fumaça Auto Peças Ltda.”. Nos dois casos o núcleo é "Fumaça". Se não houver modificação voluntária, aquele que registrou primeiro tem direito de usar o nome e pode se socorrer do Poder Judiciário para requerer a alteração contra o outro empresário.

Devem ser evitados os nomes empresariais homógrafos, ou seja, nomes que tenham o mesmo núcleo de firma ou denominação de outro empresário (por exemplo, “Auto Peças Fumaça Ltda.” e “Fumaça Peças para Veículos Ltda.”), e nomes homófonos, ou seja, nomes que tiverem o mesmo som (por exemplo, “Cinco Comércio de Vidros Ltda.” e “Vidros Sinko Ltda.”). Nos dois casos poderá haver prejuízo a terceiros, que poderão ajuizar ação anulatória.

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DIREITO COMERCIAL I - PROF. SÍLVIO ANTÔNIO MARQUES

QUESTÕES

1. Qual a diferença entre nome empresarial, marca e título do estabelecimento?

2. Qual a única sociedade que não tem nome empresarial? 3. Quais as duas espécies de nome empresarial? 4. A firma pode adotar elemento fantasia? 5. A função do nome é idêntica na firma e na denominação? 6. O empresário individual pode usar denominação na composição do

nome?7. A sociedade em nome coletivo pode adotar firma ou denominação? 8. Qual a conseqüência de o sócio comanditário ter o seu nome na

sociedade em comandita simples? 9. Que tipo de sociedade pode adotar tanto firma quanto denominação? 10. Qual a conseqüência de não figurar no nome da sociedade limitada a

expressão “limitada”? 11. A sociedade anônima pode adotar firma? 12. A expressão “S/A” ou “Sociedade Anônima” pode ser usada apenas no

início do nome empresarial? E a expressão “Cia.” ou “Companhia”? 13. A sociedade em comandita por ações pode adotar firma e denominação? 14. Qual a espécie de nome que pode adotar a sociedade simples e as

cooperativas? 15. Quais os requisitos do nome empresarial? 16. Quais as formas de alteração do nome empresarial? 17. O nome empresarial pode ser alienado junto com o estabelecimento?18. A ação de proteção ao nome empresarial é prescritível? 19. Quais as conseqüências do uso indevido do nome empresarial?

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DIREITOCOMERCIAL

TOMO II

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO II

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DIREITO COMERCIAL II - PROF. SÍLVIO ANTÔNIO MARQUES

ESPÉCIES DE TÍTULOS DE CRÉDITO

Os títulos de crédito conferem a seu titular um direito perante o emitente ou outras pessoas coobrigadas.

Entre os títulos de crédito próprios destacam-se a letra de câmbio, a nota promissória, o cheque e a duplicata. Entre os títulos de crédito impróprios merecem destaque o conhecimento de depósito e warrant, o conhecimento de transporte, a letra imobiliária, letra e cédula hipotecária, as cédulas de crédito comercial e industrial.

LETRA DE CÂMBIO A letra de câmbio é o título mais completo que existe, pois comporta todas as situações cambiárias, tais como o saque, aceite, endosso e aval, e também é o mais antigo, sendo conhecido desde o século XI da Era Cristã. Muitas regras aplicáveis à letra de câmbio são também pertinentes aos demais títulos de crédito próprios, principalmente à nota promissória e ao cheque.

NOÇÕES GERAIS

A letra de câmbio é conhecida mundialmente e suas regras são comuns na maioria dos países. Trata-se de título que, originariamente, era usado para negociar produtos entre cidades européias, com a compensação de valores entre os banqueiros que as recebiam. Pode-se dizer que a letra de câmbio possuiu três períodos: o italiano, o francês e o alemão, sendo que em cada um deles houve avanços. O chamado período italiano (séculos XI a XII) é considerado embrionário. Trata-se de época em que predominavam os feudos e burgos, o Estado era fraco e o comércio era realizado através das moedas próprias de cada região. Assim, se alguém pretendesse comprar alguma coisa fora de seu local de origem, mas não quisesse correr o risco de ser assaltado ou perder o dinheiro durante a viagem, poderia depositar determinada quantia em uma casa bancária e receber em troca uma carta (lettera). Essa carta era entregue ao banqueiro do lugar onde a compra seria efetivada. Após, os bancos faziam a compensação de cartas (letteras). A expressão “letra”, portanto, é derivada de “lettera” (carta) e “câmbio” da expressão “cambio” (troca).

No período francês, que teve início em 1673 com a Ordonnance sur le Commerce de Terre, do Rei Luís XV, a letra de câmbio foi aperfeiçoada com a possibilidade do aceite pelo sacado, a cláusula à ordem e o endosso. Entretanto, naquela época exigia-se que o sacador, para emitir o título, tivesse provisão de fundos (créditos) junto ao sacado antes do protesto.

O período alemão teve início em 1848 com a AllgemeineDeutsche Wechselordnung (Lei Geral Alemã sobre Letras de Câmbio), que não mais exigiu que o sacador possuísse fundos junto ao sacado do título, sobretudo em razão da independência do título quanto a relação negocial, bem como por ser a provisão uma relação extracartular.

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No Brasil, a letra de câmbio foi inicialmente adotada pelo Código Comercial de 1850 (arts. 354/427), que foi inspirado no Code de Commerce francês, de 1808. Posteriormente, o sistema relativo aos títulos de crédito do Código Comercial foi revogado pelo Decreto n. 2.044/1908, que até hoje está parcialmente em vigor.

O desenvolvimento mais importante do título em exame, contudo, se deu no Século XX, com a assinatura, em 07 de junho de 1930, na cidade de Genebra, Suíça, por vários países1, da “Convenção para a adoção de uma Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias”, conhecida por “Lei Uniforme de Genebra” (LUG). Apesar de participar de sua elaboração, o Brasil somente aderiu à referida Convenção em 26 de agosto de 1942, através de Nota de Legação encaminhada a Berna, dirigida ao Secretário da Liga das Nações. Em 1966 foi editado o Decreto n. 57.663/1966, determinando a sua aplicação em todo território nacional. Contudo, surgiu, uma controvérsia sobre o direito aplicável, pois havia entendimento no sentido de que o Governo deveria ter encaminhado ao Congresso Nacional um projeto de lei, pois o Decreto n. 2.044/1908 tinha status de lei. O Supremo Tribunal Federal, contudo, entendeu que a LUG era aplicável no Brasil, nos termos do Decreto n. 57.663/1966. Alguns dispositivos não entraram em vigor porque, quando subscreveu a Convenção, o Brasil assinalou algumas “reservas”, ou seja, não aceitou aplicar totalmente a LUG. Assim, foi criado um sistema híbrido, sendo que se encontram em vigor o Decreto n. 2.044/1908 (parcialmente) e o Decreto n. 57.663/1966, além do Código Civil.

Em princípio, vigora a Lei Uniforme sobre Letra de Câmbio e Nota Promissória (Anexo I), cuja aplicação foi determinada pelo Decreto n. 57.663/1966. O Código Civil é aplicado apenas subsidiariamente, se não houver regra específica na legislação especial.

Mas, em razão da reservas subscritas pelo Brasil em 1930, não vigoram alguns dispositivos do texto original. Assim, o art. 10 do Anexo I (reserva do art. 3º do Anexo II), o qual previa que não poderiam ser opostas ao portador quaisquer matérias sobre o preenchimento posterior irregular da letra de câmbio, não vigora no Brasil, pois aplica-se o art.3º do Dec. n. 2.044/1908 e, por isso, a letra de câmbio ou nota promissória deve ser preenchida imediatamente. Contudo, nada impede que tal preenchimento seja feito a posteriori pelo credor de boa-fé, nos termos do acordo entre as partes, conforme súmula 387 do Supremo Tribunal Federal: “A cambial emitida ou aceita com omissões ou em branco, pode ser completada pelo credor de boa-fé antes da cobrança ou protesto”. O Código Civil (art. 891), repetindo o teor da súmula, estabelece que “o título de crédito, incompleto ao tempo da emissão, deve ser preenchido de conformidade com os ajustes realizados”.

1 Subscreveram a Convenção de Genebra a Alemanha, Áustria, Bélgica, Brasil, Colômbia, Dinamarca, Equador, Espanha, Finlândia, França. Grécia, Hungria, Itália, Iugoslávia, Japão, Luxemburgo, Noruega, Holanda, Polônia, Portugal, Suécia, Suíça, Tchecoslováquia e Turquia.

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DIREITO COMERCIAL II - PROF. SÍLVIO ANTÔNIO MARQUES

Segundo a jurisprudência, o título incompleto deve ser preenchido, de boa-fé, antes da execução, sob pena desta não ser possível:

“NOTA PROMISSÓRIA - Cambial emitida em branco - Preenchimento pelo credor antes da cobrança ou do protesto - Admissibilidade - Inteligência da Súm. 387 do STF (1º TACivSP - RT 748/255).

O art.41 alínea 3ª do Anexo I (reserva do art.7º do Anexo II da LUG), que possibilitava o pagamento da letra de câmbio ou nota promissória através de moeda estrangeira. No Brasil, o art. 1º, inciso II, do Decreto n. 2.044/1908, estabelecia como requisitos essenciais de saque da letra de câmbio e nota promissória a indicação da “soma de dinheiro a pagar e a espécie de moeda”, enquanto o art. 25 do mesmo diploma admitia o pagamento “na moeda indicada”. Assim, era possível o pagamento de letra de câmbio ou nota promissória em moeda estrangeira. Através do Decreto n. 23.501/1933, foi suspensa a eficácia dos §§ 1º e 2º do Código Civil de 1916, ficando proibido o pagamento dos títulos em moeda que não fosse corrente do Brasil. Por força do Decreto n. 857/1969 ficou proibido definitivamente o pagamento de título de crédito em moeda estrangeira, salvo algumas exceções do art. 2º. Assim, a letra de câmbio e a nota promissória referentes a operações internacionais poderiam ser emitidas em moeda estrangeira, mas deveriam ser pagas em moeda nacional. A Medida Provisória n. 1.540-29, de 02/10/1997 revogou os §§ 1º e 2º do art. 957 do Código Civil de 1916. Por seu turno, o Código Civil de 2002 (art. 318) considera nulo o pagamento de dívidas em ouro ou em moeda estrangeira. Em síntese, considerando a adoção da reserva (art. 7º, Anexo II da LUG) e a superveniência dos diplomas citados, o título de crédito em exame pode ser emitido em moeda estrangeira, caso isso seja estipulado entre as partes em contratos internacionais, mas o pagamento deve ser efetivado através de moeda nacional, após conversão (art. 41, primeira alínea, da LUG, Decreto n. 857/1969 e Código Civil de 2002, art. 318). Sobre o tema, inclusive, já se decidiu o seguinte:

“CAMBIAL - Nota promissória expressa em moeda estrangeira - execução - Correção monetária - Incidência a partir do vencimento e sobre o valor resultante da conversão em moeda nacional (STF - RT 611/245).

CAMBIAL - Nota promissória expressa em moeda estrangeira - Mútuo - Contrato de repasse de crédito celebrado com estabelecimento de crédito do exterior - Nulidade inexistente - Inteligência do art. 20, IV e V, do Dec.-Iei 857/69 (STF - RT 611/245).

Também em razão de reserva, o art.38 da LUG estipula o prazo de até 2 (dois) dias para que os títulos sejam apresentados para pagamento, após o vencimento. No Brasil os títulos devem ser apresentados no próprio dia do vencimento, conforme art. 20 do Decreto n. 2.044/1908. I. Permanecem em vigor os seguintes artigos do Decreto n.2.044/1908, em

razão de omissão da LUG oude reservas subscritas pelo Brasil: I) art. 3º,

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DIREITO COMERCIAL II - PROF. SÍLVIO ANTÔNIO MARQUES

referente a títulos sacados de forma incompleta; II) o art.10, que trata da pluralidade de sacados; III) o art.14, que permite o aval antecipado; IV) o art.19, II, que trata do vencimento da letra de câmbio ou nota promissória em decorrência de falência (reserva do art.10, Anexo II); V) o art. 29, que trata dos requisitos do instrumento de protesto; VI) o art.33, que trata da responsabilidade civil do Oficial do Tabelionato de Protestos, pois no Brasil aplica-se a Lei n. 9.492/1997 (art. 38); VII) o art.36, que trata da ação de anulação de títulos de crédito; h) o art. 48, relativo a títulos prescritos; VIII) o art.54, I, referente à expressão “nota promissória”, em razão da reserva do art.19, anexo II.

SAQUE DA LETRA DE CÂMBIO

O saque é o ato cambial de criação do título de crédito. Quem pratica o saque é o sacador (emitente), que dá uma ordem para que outrem, chamado sacado, pague determinada quantia a um terceiro, chamado tomador (ou beneficiário). Permite-se o saque em favor do próprio sacador, ou seja, beneficiando aquele que emitiu a cambial contra o sacado.

A doutrina distingue a criação (ato de preenchimento e assinatura do título pelo sacador) da emissão (ato de entrega do título ao tomador) da cambial. Somente se houver saque é que o título surtirá efeito no mundo jurídico. A distinção somente é pertinente se, por exemplo, houver furto ou roubo da letra de câmbio antes da entrega ao tomador, pois é possível que o sacador tenha se arrependido do saque. O sacador deve atentar para os requisitos legais da letra de câmbio, que são classificados essenciais e não-essenciais, conforme sejam ou não imprescindíveis à sua validade.

REQUISITOS ESSENCIAIS

Para que os títulos de crédito tenham validade, necessário se faz que estejam presentes, principalmente quando sacados (emitidos), os requisitos essenciais intrínsecos (ou subjetivos) e extrínsecos (ou formais). São requisitos intrínsecos aqueles relativos a qualquer ato jurídico, previstos no ar. 104 do Código Civil: I) agente capaz; II) objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III) forma prescrita ou não defesa em lei. A emissão (saque) e os demais atos cambiais constituem manifestações da vontade de credores e devedores, de modo que devem obedecer a tais requisitos.

São requisitos extrínsecos aqueles previstos na Lei Cambial, sem os quais o documento não será considerado título de crédito. De acordo com o art. 1º da LUG, a letra de câmbio deve conter: I. a expressão “letra de câmbio” inserta no texto, na língua empregada para

sua redação. Embora a tradução para o português da LUG trate apenas da “letra” (arts. 1º, 2º e 3º da LUG), no Brasil somente tem sido admitido o título que conste a expressão “letra de câmbio”. Em verdade, houve

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erro de tradução dos textos originais genebrinos, que estavam em inglês e francês. Para Luiz Emygdio F. da Rosa Jr.2, contudo, deve ser admitido como válido o título que contenha apenas a expressão “letra”, pois não se pode exigir do homem comum que conheça os textos originais de 1930, em inglês e francês.

II. ordem incondicionada de pagar quantia determinada. Se houver condição, não será uma letra de câmbio. A jurisprudência, na maioria dos casos, tem admitido a letra de câmbio indexada (por exemplo, em antigas Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional - ORTNs), pois, para se obter a “quantia determinada” basta uma mera conversão. Oextinto 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo decidiu favoravelmente a essa tese:

“CAMBIAL - Nota promissória - Valor do débito expresso em ORTN -Possibilidade -Título executivo hábil (1º TACivSP - RT 579/113).O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, por sua vez, concluiu que: “CAMBIAL - Nota promissória - Emissão em ORTN - Descaracterização - Embargos à execução acolhidos” (TAMG - RT 604/188).

Se a letra é emitida à vista ou a certo termo da vista (do aceite), pode-se cobrar juro (art.5º da LUG). Essa regra conflita com o disposto no art. 890 do Código Civil de 2002, relativo a todos os títulos de crédito, que, expressamente, proíbe a cláusula de juros:

“Art. 890. Consideram-se não escritas no título a cláusula de juros, a proibitiva de endosso, a excludente de responsabilidade pelo pagamento ou por despesas, a que dispense a observância de termos e formalidade prescritas, e a que, além dos limites fixados em lei, exclua ou restrinja direitos e obrigações” (g.n.).

Tendo em vista que o próprio Código Civil (art. 903) estabelece que permanecem em vigor as “disposições diversas” previstas em leis especiais, prevalece o texto da LUG, de modo que na letra de câmbio e na nota promissória pode constar a cláusula de juros, se houver consenso entre as partes.

Havendo divergência entre os números e o extenso do valor devido, prevalece o valor escrito por extenso, exceto se ficar claro que houve rasura, quando então o devedor ou coobrigado não deve pagar a importância. III. o nome do sacado, ou seja, daquele que deve pagar o valor do título, e a

quem a ordem é dada pelo sacador. Por força da Lei n. 6.268/1975 (art. 3º), também deve constar a identificação do sacado pelo número de sua carteira de identidade (Registro Geral - RG), de sua inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) do Ministério da Fazenda, do título de eleitor ou de sua Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS).

IV. a pessoa a quem deve ser paga a letra (tomador). Não existe letra de câmbio ao portador.

2 Op. cit. p. 120.

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V. data do saque.VI. a assinatura do sacador de próprio punho ou por procurador com poderes

expressos. Não é permitida a rubrica mecânica (só em cheque e duplicata). O sacador é garantidor do aceite e do pagamento, de modo que responderá, como coobrigado, se o sacado não apuser sua assinatura ou não pagar.

É possível estipular em contratos a chamada “cláusula mandato” pela qual um terceiro fica autorizado a emitir o título (por exemplo, A pode emitir em favor de B uma letra de câmbio contra C). Mas, de acordo com a jurisprudência, em contratos bancários de mútuo não pode ser procurador do cliente o próprio banco ou empresa coligada. É o que determina a súmula 60 do Superior Tribunal de Justiça: É nula a obrigação cambial assumida por procurador do mutuário vinculada ao mutuante, no exclusivo interesse deste”.Esse entendimento, aliás, é devido ao disposto no art.51, VIII, do Código de Defesa do Consumidor.

REQUISITOS NÃO ESSENCIAIS (SUPRÍVEIS OU EQUIVALENTES)

Alguns requisitos podem ser supridos por informações constantes do próprio título, de modo que não são considerados essenciais à sua validade. São eles: I. época do pagamento: à sua falta, considera-se o título pagável à vista. II. lugar do pagamento: à sua falta considera-se pagável no lugar

mencionado ao lado do nome do sacado, ou seja, o endereço deste. Também pode ser designado o endereço de um terceiro (por exemplo, um determinado banco) como lugar do pagamento. É a “letra de câmbio domiciliada”.

III. lugar do saque: à sua falta, considera-se que o título foi emitido no lugar mencionado ao lado do nome do sacador (emitente).

Se não houver nenhum endereço, o título não será uma letra de câmbio, exceto se completado oportunamente, antes da execução ou protesto, pelo credor de boa-fé (art. 3º do Decreto n. 2.044/1908, art. 891 do Código Civil e Súmula 387 do Supremo Tribunal Federal).

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QUESTÕES

1. O que significa as reservas assinaladas pelo Brasil em relação à Lei Uniforme de Genebra?

2. Qual a legislação que rege a letra de câmbio? 3. A letra de câmbio pode ser paga em moeda estrangeira ou em ouro? 4. A letra de câmbio pode ser emitida em moeda estrangeira? 5. Como podem ser estipulados os juros da letra de câmbio? 6. O que é saque? 7. Quais os requisitos essenciais para a emissão de uma letra de câmbio? 8. Quais os requisitos não essenciais para a emissão de uma letra de

câmbio?

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DIREITOPROCESSUAL CIVIL

I

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO II

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EXTINÇÃO DO PROCESSO

INTRODUÇÃO

Todo processo, seja de conhecimento, execução ou cautelar, é instaurado com o objetivo de atingir uma finalidade que lhe é específica, isto é, a solução da lide posta em juízo. O juiz, antes de decidir o mérito, verifica se estão presentes os pressupostos processuais e as condições da ação, nessa ordem. Caso não estejam presentes, o processo será extinto sem julgamento do mérito. A extinção normal ocorre quando este atinge a sua finalidade, ou seja, com o julgamento do pedido formulado pelo autor, acolhendo ou rejeitando-o. Ter-se-á, assim, uma extinção do processo com julgamento do mérito, sendo a sentença determinativa ou de mérito, que se submete à coisa julgada e tem valor de título executivo judicial. Em contrapartida, a extinção anormal ocorre quando o processo não atinge a sua finalidade. Trata-se de uma extinção sem julgamento do mérito, cuja sentença é terminativa, não se submetendo à coisa julgada material, de modo que a ação pode ser novamente proposta a não ser na hipótese de perempção, litispendência e coisa julgada. Acrescente-se, contudo, que, mesmo no caso de litispendência, caso ocorra a extinção sem julgamento do mérito do processo que gerou a litispendência, nada obsta a repetição da mesma ação. Igualmente, na hipótese de extinção por coisa julgada, se esta for rescindida por ação rescisória, a mesma ação pode ser repetida, pois desapareceu o motivo impediente.

O NOVO CONCEITO DE SENTENÇA INTRODUZIDO PELA LEI Nº 11.232/2005.

Com o advento da lei nº 11.232/2005 generalizou-se as ações sincréticas, caracterizadas por duas fases procedimentais sucessivas, no mesmo processo, sendo a primeira de conhecimento e a segunda de satisfação ou execução.

Alterou-se o conceito de sentença, adaptando-se a nova definição ao conteúdo das ações sincréticas. Assim, sentença não é apenas o ato do juiz que põe fim ao processo, mas o pronunciamento judicial que implica em algumas das situações previstas nos artigos 267 e 269 do CPC.

A sentença terminativa exige dois requisitos: extinção do processo e o embasamento numa das matérias do artigo 267 do CPC. É um conceito híbrido, porque leva em conta o efeito (extinção do processo) e o conteúdo (matérias do artigo 267 do CPC).

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A sentença definitiva ou de mérito é a que se fundamenta numa das matérias do artigo 269 do CPC. Vê-se, portanto, que não há a exigência da extinção do processo. Ainda que este prossiga, como no caso de sentença parcial, o ato judicial se revestirá da natureza jurídica de sentença. Enquanto a sentença terminativa é baseada em critério híbrido, a definitiva reveste-se desta natureza apenas pelo seu conteúdo.

A sentença parcial do artigo 269 do CPC, a rigor, é sentença e não mera decisão interlocutória. Portanto, o recurso cabível é a apelação. Exemplo clássico é o da decisão que indefere liminarmente a reconvenção por motivo de decadência. Razoável, no entanto, diante da complexidade da matéria, a aplicação do princípio da fungibilidade recursal, admitindo-se, destarte, o agravo de instrumento. Ressalte-se, contudo, que o indeferimento liminar da reconvenção com base no artigo 267 do CPC não se reveste de sentença, diante do prosseguimento do processo, sendo, pois, de rigor, a interposição do recurso de agravo, ao invés da apelação.

Antes do advento da Lei nº 11.232/2005, reinava a idéia de que publicada a sentença o juiz, esgotava o seu poder jurisdicional. Todavia, com a generalização das ações sincréticas, a sentença deixa de ser o ato de extinção do processo, pois põe fim apenas a uma fase do procedimento, tendo em vista que o juiz ainda continua a atuar na fase do cumprimento da sentença. Diante disso, dispõe o artigo 463 do CPC, com a sua nova redação, que publicada a sentença, o juiz só poderá alterá-la no caso de erro material ou de cálculo ou na hipótese de embargos de declaração. Há ainda uma outra hipótese: retratação do juiz no indeferimento da petição inicial (art. 296 do CPC).

EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO

A sentença que extingue o processo sem julgamento do mérito, como vimos, é terminativa, submetendo-se apenas à coisa julgada formal, de modo que a mesma ação pode ser novamente proposta. O art. 267 do CPC elenca as hipóteses de extinção do processo sem julgamento do mérito, que são as seguintes:

I. indeferimento liminar da petição inicial. Tal ocorre quando a petição inicial é rejeitada antes de o juiz ordenar a citação do réu. São hipóteses de carência da ação ou de falta de pressuposto processual. Aludida sentença não faz coisa julgada material, salvo se a inicial for indeferida por prescrição ou decadência, quando então o fundamento legal será o art. 269, inc. IV, do CPC, que prevê a extinção do processo com julgamento do mérito.

Atente-se, ainda, que o juiz, ao analisar a petição inicial, pode tomar três atitudes: a. Despacho liminar positivo: ordena a citação do réu.

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b. Despacho liminar negativo: indefere a petição inicial, com fundamento em um dos incisos do art. 295, exceto inc. IV, extinguindo o processo sem julgamento do mérito.

c. Despacho liminar ordinatório: ordena a complementação da petição inicial, por exemplo, o que determina a juntada de um documento necessário à propositura da ação. Sempre que possível, o juiz deve dar oportunidade às partes para regularização das peças processuais. No exemplo acima, se o autor não juntar o documento no prazo de dez dias, o juiz indeferirá a petição inicial, extinguindo o processo.

Anote-se, ainda, que se a hipótese era de indeferimento da petição inicial, por carência da ação, e, não obstante, o juiz ordenou a citação, prolatando despacho liminar positivo, o fundamento legal, para a extinção do processo sem julgamento do mérito, será o art. 267, inc. VI, do CPC, e, não mais, o art. 267, inc. I, pois este só é aplicável quando a petição inicial é indeferida de plano. O que distingue este inc. I dos demais não é o seu conteúdo, que se repete nos incisos IV, V, VI, mas o momento da decretação, que é no despacho liminar.

II. quando o processo permanecer por mais de um ano parado por negligência das partes. A esse fenômeno de negligência dá-se o nome de contumácia das partes. Tal ocorre, quando estas se desinteressam do processo. Nesse caso, decorrido o prazo de um ano, o juiz determina a intimação pessoal das partes, ou então, por edital, caso estejam em lugar incerto e não sabido, para que elas providenciem o andamento do processo em 48h, sob pena de extinção do processo, rateando-se as despesas e custas processuais.

Comparecendo as partes e apresentando justa causa para a paralisação, o juiz deve apreciá-las e caso as aceite, pode até ser concedido prazo para regularização do feito, prosseguindo o processo. Caso o juiz não aceite as justificativas apresentadas ou as partes não dêem, novamente, andamento ao processo no prazo demarcado, deverá o feito ser extinto sem julgamento do mérito. Frise-se que a intimação deve recair sobre as partes, e não sobre os advogados, pois pode ocorrer do processo encontrar-se paralisado por culpa dos próprios procuradores. Saliente-se, por fim, que se o processo estiver paralisado por outra razão que não a inércia das partes, não cabe falar-se em extinção do processo. A paralisação provocada pelo desinteresse bilateral que impede o prosseguimento regular e válido do processo deve ser intransponível, pois, se o impedimento puder ser afastado o processo deve continuar. Exemplo: se o impedimento se restringe ao fato de a parte não ter

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condições de realizar o exame pericial por dificuldade econômica, deixa-se de produzir esta prova, prosseguindo o processo. Extinto o processo, as partes pagarão proporcionalmente as custas e não caberá condenação em honorários advocatícios, suportando cada parte as despesas com seus patronos (art. 267, §2º).

III. quando o autor abandonar a causa por mais de 30 dias. Urge, para que o processo seja extinto, a intimação pessoal do autor para dar andamento ao processo em 48h.

Anote-se que a intimação é do autor, não do seu advogado. Convém observar que o juiz não deve intimar o autor de ofício, mas somente mediante requerimento do réu, pois o réu pode desejar que o processo continue até a sentença de mérito (Súmula 240 do STJ). Todavia, alguns processualistas sustentam que o juiz pode intimar de ofício. Entretanto, o melhor entendimento é que na hipótese deste inciso III, a intimação deve ser requerida pelo réu após o trigésimo dia de paralisação do processo, caso contrário, antes de determinar a intimação de ofício, o juiz deve aguardar o prazo de um ano, conforme determina o inciso anterior. Se o juiz pudesse proceder de ofício neste inciso III, ora em análise, nunca seria aplicado o inciso II, que prevê o prazo de um ano de inércia das partes. Se o autor, ao ser intimado pessoalmente, comparecer e apresentar justa causa para a paralisação, caberá ao juiz julgá-la, dando oportunidade para que o autor dê continuidade ao feito, prosseguindo com o processo caso a aceite, ou, caso contrário, extinguirá o processo sem julgamento do mérito. Por fim, extinto o processo, o autor pagará custas e despesas processuais, não podendo propor nova ação enquanto não quitar este débito (arts. 28 e 267, §2º, do CPC).

IV. e V. ausência de pressupostos processuais e presença de perempção, litispendência e coisa julgada. Os pressupostos processuais são requisitos de ordem pública necessários para a existência válida do processo. Com efeito, não precluem e podem ser examinados em qualquer fase do processo e em qualquer grau de jurisdição, até a decisão do mérito da causa. Esses pressupostos podem ser positivos e negativos.

O inciso IV cuida dos positivos e o inciso V dos negativos. Os pressupostos processuais positivos são aqueles que devem estar presentes para que o processo possa constituir-se e desenvolver-se validamente. Em tal situação, o processo só será extinto se não for possível a sua correção. Numa ação real imobiliária, por exemplo, é necessária a autorização do cônjuge do autor. Antes de extinguir o processo, o juiz deve tentar suprir a omissão, intimando o autor para providenciar a

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outorga do cônjuge. Assim, o processo somente será extinto se não for possível a correção do vício ou quando for intransponível o defeito. Os pressupostos processuais negativos são aqueles que devem estar ausentes do processo, para que este possa desenvolver-se validamente. Tal ocorre com a perempção, litispendência e coisa julgada material. Nesses casos, torna-se impossível a corrigenda do processo, de modo que este deve ser extinto sem que se dê oportunidade para sanar o problema. Perempção é uma sanção processual, consistente na perda do direito de ação, aplicada ao autor que, por três vezes, abandonou a mesma ação, dando causa à extinção sem julgamento do mérito. Ao tentar ajuizar pela quarta vez a mesma ação, o juiz, de ofício, decreta a perempção, pondo termo ao processo sem julgamento de mérito (art. 268, parágrafo único). Atente-se que, no processo cautelar, para a ocorrência da perempção, basta o autor abandoná-lo por uma vez, deixando de mover a ação principal em trinta dias, para que lhe seja vedado repetir novamente a ação cautelar (art. 808, parágrafo único, do CPC). Assim, concedida a medida cautelar de arresto, esta será extinta se a ação principal não for proposta em trinta dias. Nada obsta, porém, que, após a extinção, o autor ajuíze a ação principal, todavia, não poderá repetir a ação de arresto, pois sobre esta última, devido à sua natureza cautelar, recaiu a perempção. Saliente-se, contudo, que se o autor alterar os fundamentos da cautelar de arresto, esta medida poderá ser novamente proposta, pois será tida como uma nova ação. Convém esclarecer que a perempção implica tão somente na perda do direito de ação, remanescendo intacto o direito material, que, por isso, poderá ser argüido em defesa, mas não em reconvenção, pois esta última tem natureza jurídica de ação. Exemplo: “A” por três vezes move ação de cobrança de cem mil reais em face de “B”, abandonando o processo nas três oportunidades; ao mover a ação pela quarta vez o juiz extinguirá o processo sem julgamento de mérito com base na perempção. Se, astutamente, “B” resolver mover em face de “A” uma ação de cobrança de trinta mil reais, pergunta-se: “A” poderá alegar compensação na contestação, argüindo que “B” lhe deve cem mil reais? Sim, pois o direito material não é afetado pela perempção. Assim, a ação de cobrança movida por “B” será improcedente, com base na compensação. Todavia, “A” não poderá reconvir para cobrar a diferença de setenta mil reais. Por outro lado, a litispendência ocorre quando o autor, estando uma ação já em curso, resolve ajuizar outra idêntica. O fato de a primeira lide encontrar-se pendente é causa de extinção da segunda lide sem julgamento do mérito. De fato, a propositura da ação tem o efeito negativo de impedir que outra ação idêntica, ou seja, com os mesmos elementos

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(mesmas partes, mesmo pedido, mesma causa de pedir) seja instaurada. Se instaurado, o segundo processo deve ser extinto, salvo se, por qualquer motivo, o primeiro for extinto sem julgamento do mérito. A coisa julgada, por sua vez, é a imutabilidade dos efeitos da sentença, depois de esgotadas as oportunidades para interposição de recursos. Nesse caso, se o autor mover ação idêntica, esta deverá ser indeferida em homenagem à coisa julgada. O fundamento da litispendência e da coisa julgada está na necessidade de estabilidade das relações jurídicas. Com efeito, a decretação da extinção do processo sem julgamento do mérito por reconhecimento da litispendência ou coisa julgada, diversamente dos demais casos do art. 267, impede que o autor intente novamente a mesma ação, tendo a sentença extintiva força equivalente à coisa julgada material (art. 268, do CPC). Ressalte-se que a falta dos pressupostos processuais positivos pode se dar no transcorrer do processo em razão de fato superveniente à regular instauração do processo, que se não for superado, causará a extinção do processo sem julgamento do mérito na fase processual em que estiver. Finalmente, a falta de pressupostos processuais poderá ser conhecida de ofício, em qualquer tempo ou grau de jurisdição, enquanto não proferida a sentença de mérito. Cumpre, porém, ao réu argúi-la na primeira oportunidade que lhe caiba manifestar nos autos, sob pena de responder pelas custas de retardamento, além de perder os direitos aos honorários advocatícios (art. 22, do CPC).

VI. carência de ação. É a ausência de uma das condições da ação, que são: possibilidade jurídica do pedido, interesse de agir e legitimidade de partes.

Trata-se de uma objeção processual, decretável, portanto, de ofício pelo juiz. Cabe ao réu alegar a ocorrência da falta das condições da ação, na primeira oportunidade que se manifestar nos autos, sob pena de arcar com as custas de retardamento (art. 267, § 3º, 2ª parte). As condições da ação, por se tratarem de matéria de ordem pública, podem ser examinadas a qualquer tempo, não se sujeitando à preclusão, enquanto não houver sentença de mérito; sendo certo ainda que devem estar presentes não só no momento da propositura da ação, como também no momento do julgamento da lide. VII. compromisso arbitral. A arbitragem, de acordo com Carnelutti, ingressa

no rol dos “equivalentes jurisdicionais”, que são os mecanismos de solução de conflitos, substitutivos da jurisdição.

Só as pessoas capazes podem optar pela solução arbitral, desde que o direito em litígio tenha aspecto disponível, ou seja, patrimonial.

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O direito a ser aplicado, para solução do conflito, pode ser nacional, estrangeiro, ou ainda a eqüidade, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública. A opção por um ou outro direito é decidida pelas partes na convenção de arbitragem. A convenção de arbitragem é o acordo escrito que pessoas capazes de contratar podem fazer em matéria de direitos patrimoniais, submetendo as questões relativas a esses direitos a árbitros não pertencentes ao Poder Judiciário. Se, não obstante a convenção de arbitragem, a parte mover ação judicial, para discutir a mesma questão, o réu poderá argüir na contestação a existência da sobredita convenção, acarretando, por conseqüência, a extinção do processo sem julgamento do mérito. Se, porém, o réu for omisso, isto é, deixar de argüir na contestação a convenção de arbitragem, o juiz não poderá conhecê-la de ofício, por força do parágrafo 4º do art. 301, do CPC, que impõe ao réu o dever de argüir a matéria na contestação, sob pena de preclusão. Nesse caso, o processo judicial prossegue normalmente, operando-se a extinção da convenção de arbitragem. Esse tema, porém, não é pacífico, pois valiosos processualistas sustentam a revogação tácita do parágrafo 4º do art. 301, que impõe apenas ao réu a faculdade de argúi-lo. Cumpre salientar que a convenção de arbitragem pode ser de duas espécies: a. cláusula compromissória: é a que atribui a decisão a árbitro ou a árbitros

de eventual litígio que possa surgir entre as partes relativo ao contrato celebrado entre elas;

b. compromisso arbitral: é a convenção que atribui a árbitro ou árbitros um determinado litígio já instaurado entre os contratantes.

Finalmente, nada obsta que as partes, no decorrer de um processo judicial, resolvam celebrar a convenção de arbitragem, delegando a decisão a árbitro ou árbitros estranhos ao Poder Judiciário. Nesse caso, o processo judicial também será extinto sem julgamento do mérito.

VIII. desistência da ação. A desistência da ação depende do consentimento do réu, salvo em duas hipóteses:

a. se o pedido de desistência for formulado antes da apresentação da contestação;

b. se o réu for revel, pois, em tal situação, por não ter contestado previamente a ação, já manifestou seu desinteresse nela;

A desistência da ação anterior à apresentação da contestação é ato unilateral do autor; após ser contestada, a desistência da ação dependerá da concordância do réu, passando a ser ato bilateral. Em ambos os casos dependerá de homologação do juiz para surtir seus efeitos.

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Se o réu não concordar com o pedido de desistência da ação, esta prosseguirá ainda que sem a presença do autor. É o que se denomina revelia do autor. A exigência do consentimento do réu funda-se no direito que lhe assiste a uma decisão de mérito e de não ficar sujeito à incerteza do direito discutido. Cumpre esclarecer que no processo de execução o exeqüente pode desistir de toda a execução ou de apenas algumas medidas executivas, sendo necessário o consentimento do réu após a sua citação (art. 569, do CPC). Se os embargos já tiverem sido interpostos e versarem apenas sobre questões processuais, esses serão extintos, pagando o credor as custas e honorários advocatícios. Por outro lado, se versar em sobre questões de mérito, a extinção do processo executivo, dependerá da concordância do executado (art. 569, parágrafo único, do CPC). Finalmente, o autor que desistir da ação arcará com as despesas e honorários advocatícios (art. 26, do CPC).

IX. quando a ação for considerada intransmissível por determinação legal. Tratando-se de direito personalíssimo, com a morte de uma das partes, o processo se extingue sem julgamento do mérito. Aludidos direitos, por serem intransmissíveis, inviabilizam a habilitação processual, isto é, a substituição das partes.

Exemplos: morte de um dos cônjuges no curso da ação de separação judicial ou divórcio; morte do usufrutuário na ação que este movia contra o nu-proprietário, pois com a morte extingue-se o usufruto.

X. quando ocorrer a confusão entre autor e réu. Confusão é a reunião na mesma pessoa da qualidade de credor e devedor. Pode ser total ou parcial. Exemplo: morte do pai no curso da ação de cobrança que este movia contra seu único filho. Com o falecimento, o filho adquiriu o crédito, tornando-se credor e devedor de si mesmo.

XI. nos demais casos previstos em lei. Denota-se que o rol do art. 267, do CPC, elencando as hipóteses de extinção do processo sem julgamento do mérito, não é taxativo.

Com efeito, a lei elenca outras hipóteses. Exemplos: Se o autor deixar de promover a citação de um dos litisconsortes necessários; morte do advogado do autor, neste caso, o processo é suspenso por vinte dias, para constituição de novo patrono sob pena de extinção do processo. Atente-se que, no caso de morte do advogado do réu, este também deverá constituir novo advogado, mas se não o fizer, o processo continuará à sua revelia, trata-se de uma hipótese de réu-conteste-revel, isto é, revelia após a contestação. A lei 10.352/01 acrescentou ao art. 515 um novo parágrafo (terceiro), permitindo ao Tribunal, nos processos que foram extintos sem

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julgamento do mérito, julgar desde logo a lide quando a causa versar sobre questão unicamente de direito. Tal providência só será possível se o processo estiver em condições de julgamento imediato. O escopo da lei foi acelerar o julgamento de processos que não tiveram o mérito analisado, por terem sido extintos anteriormente com fundamento em um dos incisos do art. 267 do CPC, não obstante tivessem plenas condições de prosseguimento regular.

RESOLUÇÃO DO PROCESSO COM JULGAMENTO DE MÉRITO

O art. 269 do CPC prevê hipóteses de resolução do processo com julgamento do mérito. A sentença prolatada com base num desses dispositivos legais é definitiva, submetendo-se à coisa julgada material, inviabilizando, destarte, a repropositura da ação.

A rigor, apenas o inciso I do art. 269 é uma verdadeira sentença de mérito, isto é, a única que exige os requisitos do art. 458, do CPC, ou seja, relatório, fundamentação e dispositivo.

Nas demais hipóteses do citado art. 269 a sentença de mérito é atípica, tendo sido equiparada a tal pelo legislador para submeter-se à coisa julgada material e gerar título executivo judicial, distinguindo-se assim das sentenças terminativas do art. 267, embora ambas dispensem relatório.

Feitas essas considerações, vejamos as hipóteses de extinção do processo com julgamento do mérito.

A primeira ocorre quando o juiz acolhe ou rejeita o pedido do autor (art. 269, inc. I). Assim, seja procedente ou não a sentença, esta será de mérito toda vez que o juiz apreciar o pedido estampado na petição inicial.

Trata-se da única e verdadeira sentença de mérito, em que o juiz substitui a vontade das partes, após o esgotamento das possibilidades de composição amigável da lide.

Anote-se que se o juiz acolhe ou rejeita apenas parte do pedido, ainda assim o processo se extinguirá com julgamento do mérito." Acrescente-se, por fim, que, na verdade, a extinção do processo só ocorre com o trânsito em julgado da sentença, quando esta se torna imutável e indiscutível, não mais sujeita a recursos ordinários ou extraordinários.

A segunda hipótese ocorre quando o réu reconhece a procedência do pedido. O reconhecimento do pedido consiste na afirmação expressa do réu da veracidade da pretensão do autor. Aludido reconhecimento só pode ser feito por pessoa capaz; o réu incapaz não pode reconhecer o pedido.

Saliente-se que o advogado deverá ter poderes especiais para reconhecer o pedido.

Por outro lado, o reconhecimento do pedido deve ter por objeto interesse disponível, isto é, de índole patrimonial.

Tratando-se de interesse indisponível, como os referentes à personalidade humana (nome, estado civil, vida etc) é vedado o sobredito

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DIREITO PROCESSUAL CIVIL I - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

reconhecimento, salvo na hipótese de investigação de paternidade, onde é lícito ao indigitado pai reconhecer a paternidade do sobredito filho.

É oportuno destacar que o reconhecimento do pedido só gera a extinção do processo quando for total, isto é, abranger todo o pedido, se for parcial, o processo continuará quanto ao remanescente.

A sentença que homologa o reconhecimento do pedido deve condenar o réu às custas e despesas processuais além de honorários advocatícios (art. 26, do CPC).

Sobre a distinção entre o reconhecimento do pedido e a confissão, convém elencar os seguintes pontos: a. o reconhecimento do pedido é ato exclusivo do réu; ao passo que, a

confissão pode ser tanto do autor como do réu. De fato, a ausência injustificada do autor à audiência implica em confissão quanto à prova testemunhal colhida durante a instrução;

b. o reconhecimento do pedido diz respeito à pretensão do autor, isto é, ao pedido; a confissão recai sobre fatos e não sobre o pedido;

c. o reconhecimento do pedido é sempre expresso; a confissão, ao inverso, pode ser expressa ou presumida;

d. o reconhecimento do pedido é causa de extinção do processo; a confissão é apenas meio de prova, apenas suaviza o processo por tornar inúteis as demais provas quanto aos fatos confessados;

e. o reconhecimento do pedido sempre acarreta prejuízo para o réu, pois a demanda lhe será desfavorável; a confissão nem sempre lhe acarretará prejuízo, tendo em vista que o réu pode confessar um fato, mas, ao mesmo tempo, argüir a prescrição.

A terceira causa de extinção do processo com julgamento do mérito ocorre quando o juiz 'homologa a transação realizada pelas partes. A transação e a conciliação são formas pacíficas de autocomposição da lide.

Enquanto a transação é um acordo entre as partes envolvendo concessões recíprocas, feito fora do processo, sem a interferência do juiz; a conciliação, também chamada de heterocomposição, é o acordo entre as partes presidido pelo juiz. Ambas devem ser homologadas por sentença para surtir efeito, sendo certo que as custas e despesas processuais são rateadas igualitariamente entre as partes, salvo se os próprios transatores houverem disposto diversamente (art. 26, § 2°, do CPC).

A transação e a conciliação só podem ser feitas por pessoas capazes e seu objeto deve recair sobre direitos disponíveis.

A quarta causa ocorre quando o juiz decreta a prescrição ou decadência. Aludida sentença é considerada de mérito apenas para produzir coisa julgada material, inviabilizando, destarte, a propositura da mesma ação. Com efeito, a sentença que acolhe a prescrição e a decadência não vale como título executivo judicial, pela simples razão de que a pretensão do autor não foi acolhida.

Sobre a distinção entre a prescrição e a decadência, cumpre salientar que a decadência é a perda do direito material pelo seu não exercício

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no tempo, ao passo que a prescrição é a perda do direito de ação e de toda a capacidade defensiva, vale dizer, a perda da pretensão pelo seu não exercício no tempo. Na prescrição, contudo, o direito material subsiste, tanto é que se houver pagamento de uma dívida prescrita, este não poderá ser repetido, ou seja, o devedor não poderá exigir a devolução da quantia paga.

Até o advento da lei nº 11.280/06, o juiz só podia decretar de ofício a prescrição que beneficiava o absolutamente incapaz (art. 184 do CC), mas a partir do novo diploma legal o juiz a pronunciará de ofício, em qualquer situação (parágrafo 5º do artigo 219 do CPC). A decadência, por sua vez, pode também ser decretada de ofício pelo juiz, salvo quando for convencional.

A última hipótese de extinção do processo com julgamento do mérito ocorre quando o autor renuncia o direito sobre o qual se funda a ação.

Dá-se a renúncia quando o autor abdica de sua pretensão estampada na inicial, implicando, portanto, na perda do direito material. Portanto, tendo em vista a ausência de qualquer prejuízo ao réu, este não é sequer consultado, ao contrário do que ocorre com a desistência da ação. Nesta, à medida que o autor pode repropor a mesma ação, urge que o réu manifeste a sua aquiescência.

Assim, enquanto a renúncia provoca a extinção do direito material, a desistência da ação gera apenas a extinção do processo, permanecendo intacto o direito do autor. Tanto numa como noutra, aplica-se a regra do art. 26 do CPC, devendo o autor responder pelas custas, despesas processuais além de honorários advocatícios.

O autor só pode renunciar a direitos disponíveis. Exige-se ainda capacidade do autor, pois renúncia feita por incapaz não pode ser levada a efeito. Acrescente-se, também, que a renúncia deve ser homologada por sentença, só gerando a extinção do processo quando for total.

Por fim, a sentença que homologa a renúncia é considerada de mérito apenas para fins de coisa julgada material porquanto não há falar-se em título executivo, pois desfavorável ao autor, de modo que não há o que se executar.

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QUESTÕES

1. Qual a diferença entre extinção normal e extinção anormal do processo? 2. Extinto o processo sem julgamento do mérito, a ação pode ser

novamente proposta? 3. Qual a diferença entre sentença terminativa e sentença definitiva? 4. A sentença que indefere a petição inicial faz coisa julgada material? 5. O que são despachos liminares positivos, negativos e ordinatórios? 6. Qual a distinção entre a extinção do processo por indeferimento da inicial,

prevista no artigo 267, I do CPC, e por carência de ação, prevista no artigo 267, VI do CPC?

7. O que é contumácia das partes? 8. O abandono da causa pelo autor, por mais de trinta dias, provoca

automaticamente a extinção do processo? 9. Qual a distinção entre os pressupostos processuais positivos e os

negativos? 10. É possível a correção da falta de pressuposto processual? 11. O que é perempção? 12. A perempção implica na perda do direito de defesa? 13. O que é litispendência e qual o seu efeito? 14. Em que momento o Juiz pode conhecer da falta de pressuposto

processual?15. O que é carência de ação e quando pode ser apreciada? 16. O que são equivalentes jurisdicionais? 17. Qualquer litígio admite compromisso arbitral? 18. O direito estrangeiro pode ser adotado no compromisso arbitral? 19. O que é convenção de arbitragem? 20. Se houver uma convenção de arbitragem, é possível mover ação judicial? 21. Qual a distinção entre cláusula compromissória e compromisso arbitral? 22. A desistência da ação depende do consentimento do réu? 23. A desistência da ação é ato unilateral ou bilateral? 24. Cite uma hipótese de revelia do autor. 25. O autor, para desistir da ação no processo de execução, precisa do

consentimento do réu? E nos embargos de execução? 26. A morte é causa de extinção do processo? 27. O que é confusão? 28. O rol do artigo 267 do CPC é taxativo? 29. O que é réu conteste revel? 30. O tribunal pode julgar o mérito ao apreciar a apelação interposta contra

sentença que extinguiu o processo sem julgamento do mérito?

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CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO II

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Lei n. 8.072/90 – Lei dos Crimes Hediondos (continuação)

PROGRESSÃO DE REGIME

Trata-se da conseqüência mais polêmica prevista na lei sob comento consistente na forma em que se dará a progressão de regime no cumprimento da pena, quando a condenação resultar da prática de uma das infrações penais contempladas na Lei dos Crimes Hediondos. A versão original da lei estabelecia que a pena decorrente da prática de crime hediondo ou assemelhado seria cumprida em regime integralmente fechado, o que inviabilizava a possibilidade de progressão de regime. Em um primeiro momento o Supremo Tribunal Federal se manifestou pela constitucionalidade desta vedação. Já em 1997, com o advento da Lei n. 9.455, de 7 de abril, que cuida do crime de tortura, houve uma quebra de rigorismo nesta proibição de progressão, haja vista que a lei estabelece que o cumprimento da pena no crime de tortura será iniciada em regime fechado. Portanto, se pode se iniciada em regime fechado, poderá terminar em regime diverso (semi-aberto ou aberto). Nesta esteira, em seção plenária ocorrida no dia 23 de fevereiro de 2006, o Supremo Tribunal Federal no julgamento do HabeasCorpus nº 82.959-SP, por maioria de votos, entendeu inconstitucional a proibição da progressão de regime contida no texto original do art. 2º, § 1º desta lei, em decorrência da violação do princípio da individualização da pena (art. 5º, inciso XLVI, da CF). Por conta deste julgamento, foi alterada a redação da Lei dos Crimes Hediondos, com a Lei n. 11.464, de 28 de março de 2007. Assim, a pena por crime previsto na Lei n. 8.072/90 será cumprida inicialmente em regime fechado. A progressão de regime para condenados em crime previstos nesta lei – hediondos ou assemelhados – dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.

PRISÃO TEMPORÁRIA

A prisão temporária é modalidade de prisão provisória, criada através da Lei 7.960, de 21 de dezembro de 1989, cabível pelo prazo de cinco (05) dias, prorrogáveis por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade e que pode ser decretada em três hipóteses: a) quando imprescindível para as investigações do inquérito policial; b) quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade; ou c) quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou

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participação do indiciado nos seguintes crimes: homicídio doloso; seqüestro ou cárcere privado; roubo; extorsão; extorsão mediante seqüestro; estupro; atentado violento ao pudor; rapto violento; epidemia com resultado morte; envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte; quadrilha ou bando; genocídio; tráfico de drogas; crimes contra o sistema financeiro. Outrossim, diz-se que a prisão temporária antecede eventual prisão preventiva, na medida em que, havendo o oferecimento de denúncia do Ministério Público, deve ser pedida a conversão da prisão temporária em preventiva, desde que atendidos os requisitos dos artigos 312 e 313, do Código de Processo Penal. Ademais, imprescindível, para a sua decretação, a instauração do inquérito policial, conforme leitura do artigo 1º, incisos I e II. No que toca a prisão temporária, o que a Lei dos Crimes Hediondos fez foi estabelecer um prazo maior para esta modalidade de prisão, em se tratando de uma das modalidades criminosas ditas hediondas, qual seja de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período, em caso de extrema e comprovada necessidade.

LIVRAMENTO CONDICIONAL E REINCIDÊNCIA ESPECÍFICA

O livramento condicional é um incidente da execução da pena privativa de liberdade, consistente na antecipação condicionada da liberdade ao condenado, desde que preenchidos alguns requisitos tanto de ordem objetiva, quanto subjetiva, enumerados no artigo 83, do Código Penal. A Lei dos Crimes Hediondos, no tocante ao livramento condicional, acrescentou o inciso V, ao referido artigo 83, do Código Penal, aonde condiciona a concessão do benefício ao cumprimento de dois terços (2/3) da pena privativa de liberdade, além dos demais requisitos, desde que o condenado não seja reincidente específico. A reincidência específica havia sido extinta na reforma da Parte Geral de 1984, com a Lei 7.209/84. Ressurgiu, porém, com o advento da Lei 8.072/90, e seu conceito para os fins desta Lei comporta três orientações:1) deve ser entendida como a prática de qualquer uma das infrações

delituosas hediondas ou assemelhadas, após condenação definitiva por qualquer crime hediondo ou assemelhado, ambos cometidos após a vigência da Lei 8.072/90, logicamente, em respeito ao princípio da reserva legal e da anterioridade, haja vista que este conceito de reincidência específica, por ser prejudicial ao réu, não retroage (artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal). Com este posicionamento: Antonio Scarance Fernandes.

2) Há, todavia, outra corrente, defendida por Alberto Silva Franco que reduz o alcance da expressão, onde a reincidência específica deve ser entendida como a prática do mesmo tipo penal (crimes idênticos);

3) Pode ser mencionada terceira corrente, mista e mais flexível, a qual

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entende que o reincidente específico é aquele que comete crime hediondo da mesma espécie ou que apresentem certas características comuns como, por exemplo, o estupro e o atentado violento ao pudor1. Flávio Monteiro de Barros sustenta esta posição, entre outros, sendo nosso posicionamento.

Caracterizada a reincidência específica, está vedada a concessão de livramento condicional. Observações relacionadas a este tópico: 1) No tocante à possibilidade da concessão da suspensão condicional da

pena, há duas orientações: a) Fernando Capez salienta que: “não cabe sursis para os crimes previstos na Lei n. 8.072/90, ante a incompatibilidade do benefício com o tratamento mais rigoroso imposto por essa legislação especial (crime hediondo, tortura, tráfico de drogas e terrorismo)” 2. Esta orientação majoritária na jurisprudência3. Ademais, o artigo 44, da Lei n. 11.343/06, nova Lei de Drogas, veda, expressamente, o “sursis” no crime de tráfico; b) Em sentido contrário, advoga Silva Franco4 – acompanhado de Júlio Fabbrini Mirabete, Antonio Scarance Fernandes, Damásio Evangelista de Jesus e Alberto Zacharias Toron - entendendo que a Lei n. 8.072/90 não contém norma expressa a vedar a concessão do sursis, não pode o intérprete lançar mão de interpretação extensiva ou dilatória para suprimir o benefício, o que consistiria analogia in mallam partem5. Com o mesmo entendimento o STF (Inf. 403).

2) O conceito de reincidência específica voltou a aparecer na Lei 9.714, de 25 de novembro de 1998, a denominada Lei das Penas Alternativas, que deu nova redação ao artigo 44, § 3º, do Código Penal. Neste caso, a lei especificou que reincidência “não tenha se operado em virtude da prática do mesmo crime”. Destarte, para fins da substituição de pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos, o réu não pode ser reincidente específico na prática do mesmo crime, ou seja, do mesmo tipo penal (crimes idênticos). Igualmente, o Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/97), também estabeleceu restrições ao reincidente específico no art. 296.

RECURSO EM LIBERDADE

A regra é a da manutenção da prisão para recorrer, se o réu é condenado e vinha respondendo preso ao processo6. Não teria sentido que 1 BARROS, Flávio Augusto Monteiro de Barros. Direto penal, parte geral: volume 1. 3ª edição, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 550. 2 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral: volume 1. 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 419. 3 Supremo Tribunal Federal, 1ª T. HC 72.697/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, j. 19-3-96; Superior Tribunal de Justiça, 5ª T., REsp. 60.733-7-SP, Rel. Min. José Dantas, j. 17-05-95, DJU, 12-6-95, p. 17637. 4 FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos: anotações sistemáticas à Lei nº 8.072/90. Op. cit. p.226. 5 Superior Tribunal de Justiça, 6ª T., REsp. 91.851, Rel. Min. Edson Vidigal, RT 739/572, e TJSP, Re. Des. Canguçu de Almeida, RT 719/391 6 Com esta orientação: Supremo Tribunal Federal, 2ª T., HC 71.889-2, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, 1995; Superior Tribunal de Justiça, 5ª T., HC 1.141/RJ, Rel. Min. ASSIS TOLEDO, 1991.

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o acusado permanecesse segregado até ser condenado e, depois, viesse a ser liberado, como anota Antonio Scarance Fernandes. Outrossim, se ao juiz, antes mesmo da condenação é vedada a concessão de liberdade provisória, após a condenação é ilógico que lhe permita soltar o condenado, para assim aguardar o trânsito em julgado. Por outro lado, caso o réu responda ao processo em liberdade, o juiz deverá, no momento da sentença, decidir fundamentadamente se este, agora condenado, poderá apelar em liberdade. Esta é, pois, a regra do parágrafo 2º, do artigo 2º, da Lei 8.072/90. O Supremo Tribunal Federal já julgou no sentido da compatibilidade entre o encarceramento compulsório e o princípio da presunção de inocência7. Atualmente o entendimento jurisprudencial segue a seguinte tendência: O Supremo Tribunal Federal inclina-se para a aplicação do princípio da presunção da inocência que impõe, como regra, que o acusado recorra em liberdade, podendo-se determinar o seu recolhimento, se preenchidos os requisitos para a prisão cautelar8. Ou seja, este acusado poderá recorrer em liberdade, desde que o juiz decida fundamentalmente neste sentido, à luz do artigo 2º, § 3º, da Lei n. 8.072/90 (Neste sentido: HC 39.844-PE, 5ª Turma, j. 17.05.2005, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, DJU 1º, 08/2005).

7 2ª Turma, HC 69.901-GO, Rel. Min. FRANCISCO REZEK, j. 08/03/1993, DJ 26/03/93, p. 05005. 8 Rcl 2391 MC-PR, Rel. orig. Min. MARCO AURÉLIO, Rel. p/ o acórdão Min. JOAQUIM BARBOSA, 18.12.2003, julgamento ainda aberto; e RHC 83.810-RJ, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, 17 e 18.12.2003, julgamento ainda em aberto (ambos no Informativo STF 334).

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QUESTÕES

1. O que diz a Lei nº 8.072/90 acerca da progressão de regimes, depois da Lei n. 11.464/2007?

2. A vedação da progressão de regimes é inconstitucional, segundo entendimento majoritário do STF?

3. Crime de tortura admite a progressão de regimes? 4. Qual o tempo de prisão temporária? Esse tempo é o mesmo para os

crimes da Lei 8.072/90? 5. Em que hipótese pode ser decretada a prisão temporária? 6. A instauração do inquérito policial é imprescindível para a decretação da

prisão temporária? 7. Qual o prazo para se obter o livramento condicional nos crimes da Lei

8.072/90?8. A reincidência específica influencia no livramento condicional nos crimes

da Lei 8.072/90? 9. A reincidência em qualquer dos crimes previstos na Lei 8.072/90

caracteriza-se como sendo reincidência específica? (Observação: falar sobre as duas correntes)

10. É cabível “sursis” nos crimes da Lei 8.072/90? E nos crimes de tráfico, com o advento da Lei n. 11.343/2006?

11. O réu pode apelar em liberdade da sentença que o condenou por um dos crimes da Lei 8.072/90?

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DIREITO PENAL PARTE GERAL

TOMO I

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO II

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DIREITO PENAL PARTE GERAL I - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

A LEI PENAL NO TEMPO

NASCIMENTO, EXECUTORIEDADE E OBRIGATORIEDADE DA LEI PENAL

O procedimento de formação das leis, em nosso sistema cons-titucional, compreende três fases sucessivas: a) fase introdutória ou de iniciação; b) fase constitutiva; c) fase complementar ou integratória de eficácia. A iniciativa do projeto da lei penal é comum ou concorrente, pois é deferida a qualquer comissão ou membro (deputado ou senador) do Poder Legislativo (iniciativa parlamentar) e ao Chefe do Poder Executivo (Presidente da República). Os tribunais, porém, não dispõem de legitimidade para a iniciativa do projeto de lei penal.

Terminada a fase introdutória com a apresentação do projeto de lei na Casa Legislativa competente, entra-se na fase constitutiva, quando então será realizada a deliberação parlamentar (discussão e votação em cada uma das Casas Legislativas) e a deliberação executiva (sanção ou veto).

Sanção é o ato pelo qual o Chefe do Executivo (Presidente da República) converte o projeto de lei, aprovado pelo Legislativo, em lei. A lei nasce com a sanção. Até então, há mero projeto de lei.

Depois de sancionada, a lei deve ser promulgada e publicada. A promulgação e a publicação integram a fase complementar do procedimento de formação das leis.

A promulgação confere executoriedade (aptidão para ser aplicada) e autenticidade (certeza de existência) à lei.

Decorre, contudo, de sua publicação a obrigatoriedade da lei. Com a publicação há presunção absoluta de sua notoriedade. Ninguém mais poderá alegar ignorância da lei.

A lei é promulgada e publicada pelo Presidente da República no Diário Oficial do Executivo da União.

Nem sempre, porém, a lei entra em vigor na data de sua publicação. Aliás, o silêncio acerca do início da vigência significa que a lei começa a vigorar em todo o País quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada (art. 1º da LICC). Nos Estados estrangeiros, a obrigatoriedade da lei brasileira, quando admitida, inicia-se três meses depois de oficialmente publicada. Esse período de tempo existente entre a data da publicação da lei e a data de sua efetiva entrada em vigor é denominado vacatio legis. Durante esse lapso de tempo, a nova lei, embora já publicada, não se reveste de obrigatoriedade. A vacatio legis não é um princípio constitucional, e tanto é assim que as leis podem entrar em vigor na data da publicação, desde que haja cláusula expressa nesse sentido. Outrossim, o prazo de quarenta e cinco dias pode ser ampliado ou reduzido, contanto que haja cláusula expressa. É salutar a existência de vacatio legis, pois possibilita que os destinatá-rios da lei a conheçam com mais profundidade antes de executá-la.

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DIREITO PENAL PARTE GERAL I - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

Quanto à contagem do prazo da vacatio legis, dispõe a Lei Complementar n. 107/2001 que deve ser incluído o dia da publicação e o último dia, devendo a lei entrar em vigor no dia seguinte.

REVOGAÇÃO DA LEI PENAL

A lei permanece em vigor até que outra lei a revogue (princípio da continuidade das leis).

A revogação é a perda da vigência da lei. Uma lei só pode ser revogada por outra lei. A revogação total chama-se ab-rogação e a parcial denomina-se derrogação.

Revogação é fenômeno produzido exclusivamente pelo advento de nova lei. Os costumes, por mais arraigados que sejam, não a revogam. Decisão judicial declarando a inconstitucionalidade de uma lei, ainda que oriunda do STF, não a revoga; apenas cancela a sua eficácia, isto é, a lei continua em vigor, mas sem produzir efeitos.

Toda lei pode ser revogada. É proibida a edição de leis irrevogáveis, reputando-se não escrito o dispositivo proibitório da revogação. Afinal, a função legislativa é irrenunciável.

As leis temporárias e excepcionais trazem no próprio texto o término de sua vigência (art. 3º do CP). Nesse caso, ocorre a auto-revogação, com a cessação do tempo de duração da lei.

A revogação ainda pode ser: expressa, tácita e global. Na primeira, a nova lei indica em seu próprio texto os

dispositivos legais revogados. Na segunda, a nova lei apresenta-se incompatível com a anterior. Na terceira, a nova lei regula inteiramente a matéria regulada na lei anterior.

Acrescente-se, ainda, quanto à revogação, que a lei geral não revoga a especial, nem a especial revoga a geral. Sendo compatíveis, devem conviver juntas no ordenamento jurídico. A lei especial só se revoga por outra lei especial; a lei geral só se revoga por outra lei geral. Entretanto, caso a nova lei seja simultaneamente geral e especial, havendo incompatibilidade absoluta entre elas, ocorrerá a revogação da lei anterior na parte em que houver tal incompatibilidade.

CONFLITOS DE LEIS PENAIS NO TEMPO

O direito intertemporal é o conjunto de princípios e de normas que solucionam os conflitos de leis no tempo.

Ocorre a sucessão de leis quando uma nova lei entra em vigor ab-rogando ou derrogando a anterior.

Em regra, o conflito é solucionado pela máxima tempus regit actum, isto é, aplica-se a lei vigente ao tempo do crime. Se, porém, a nova lei beneficiar o réu, impõe-se a sua retroatividade.

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DIREITO PENAL PARTE GERAL I - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

Retroatividade significa a aplicação da lei a fatos ocorridos antes da sua vigência.

A retroatividade da lei penal que beneficia o réu é mandamento constitucional (art. 5º, XL, da CF). Nesse caso, a retroatividade é automática, independe de cláusula expressa, alcançando inclusive os fatos já definitivamente julgados. É a única lei capaz de retroagir em detrimento da coisa julgada.

Pode-se dar a retroatividade da lei penal benéfica em duas hipóteses: abolitio criminis e novatio legis in mellius, que são as duas espécies de leis penais benéficas.

Dá-se a abolitio criminis quando a nova lei torna atípico o fato incriminado. Tal ocorreu por exemplo, com a lei revogadora do delito de sedução (Lei 11.106/05).Nesse caso, o agente não pode ser punido, devendo ser decretada a extinção da punibilidade se houver inquérito policial ou processo em andamento (CP, art. 107, III)Se ainda não foi instaurado o inquérito, não poderá mais sê-lo.

A abolitio criminis está prevista no art. 2º, caput, do CP, que assim dispõe:

“Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória”.

De acordo com o Código Penal, a abolitio criminis tem a natureza jurídica de causa extintiva da punibilidade (art.107, III). O Estado perde a possibilidade de aplicar pena ou medida de segurança ao agente. Trata-se, a nosso ver, de uma causa de exclusão da tipicidade.

A abolitio criminis atinge apenas a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. Exclui, aliás, todos os efeitos penais, de modo que a sentença condenatória é considerada inexistente, não podendo prevalecer para efeito de reincidência, de maus antecedentes ou de qualquer outro efeito penal.

Perduram, entretanto, os efeitos de natureza civil da sentença penal condenatória, de tal modo que o réu continua obrigado a reparar o dano causado pelo delito (CP, art. 91, I). Assim, a sentença condenatória transitada em julgado continua valendo como título executivo na esfera cível (art. 584, II, do CPC).

Deparando-se com a abolitio criminis, o juiz do processo de conhecimento deve, de ofício, declarar extinta a punibilidade, ouvindo-se previamente o Ministério Público. Se o processo estiver no tribunal, em grau de recurso, o próprio tribunal competente para apreciar o recurso, de ofício, deve declarar extinta a punibilidade. Caso já haja sentença transitada em julgado, a declaração de extinção da punibilidade competirá ao juízo da execução penal (art. 66, I, da LEP e Súmula 611 do STF). Da sua decisão caberá o recurso de agravo em execução. Não cabe, portanto, revisão criminal ou habeas corpus, pois a competência é do juízo da execução penal.

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Outra hipótese de retroatividade da lei penal ocorre na novatio legis in mellius, disciplinada no parágrafo único do art. 2º do CP, que assim estabelece:

“A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”.

Novatio legis in mellius ocorre quando a lei posterior, mantendo a incriminação do fato, torna menos grave a situação do réu. Exemplos: a) lei que comina pena menos rigorosa; b) lei que comina circunstâncias atenuantes; c) lei que cria causas extintivas da antijuridicidade, culpabilidade e punibilidade; d) lei que facilita a obtenção do sursis ou livramento condicional; e) lei que transforma o crime em simples contravenção etc.

Em suma, a lei posterior que de qualquer modo favorecer o réu é uma novatio legis in mellius. A expressão “qualquer modo” é para indicar qualquer outra circunstância que não seja a abolitio criminis (art. 2º, caput).

Aproxima-se a abolitio criminis da novatio legis in mellius, já que ambas beneficiam o réu, retroagindo, excepcionando-se, portanto, o aforismo tempus regit actum.

Não obstante a presença de tantas qualidades comuns, distinguem-se de modo nítido. Com efeito, na abolitio criminis ocorre uma revogação, total ou parcial, da lei penal anterior, provocando a atipicidade da conduta incriminada. Na novatio legis in mellius, ao inverso, o fato continua sendo típico, ocorrendo apenas a inclusão de circunstâncias favoráveis ao sujeito que mantêm intacto o tipo penal, como, por exemplo, a lei que diminui o prazo prescricional do delito. Por outras palavras, enquanto a abolitio criminissempre incide sobre norma penal incriminadora, ab-rogando-a, a novatio legis in mellius pode modificar a norma incriminadora, por exemplo, reduzindo a quantidade da pena, ou então deixá-la intacta, incidindo sobre outras normas, por exemplo, criando uma nova causa de exclusão da culpabilidade.

No tocante à competência para aplicação da novatio legis in mellius, segue-se o mesmo critério da abolitio criminis (art. 66, I, da LEP e Súmula 611 do STF). Após o trânsito em julgado, se a apreciação da matéria depender de dilação probatória, a medida cabível será a revisão criminal.

LEI BENIGNA

A apuração da maior benignidade da lei nem sempre é tarefa fácil. Não basta a comparação abstrata dos textos legais. É mister compará-los em cada caso concreto. Se ainda assim persistir a dúvida sobre qual das duas leis é a mais favorável, o juiz pode ouvir a opinião do réu, pois ele é quem sofrerá a pena. Se mesmo assim a dúvida não for dirimida, o juiz deve aplicar a lei nova somente aos casos ainda não julgados. De modo geral, porém, reputa-se mais benigna, salvo prova em contrário, a lei que:

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a. cominar pena mais branda; b. criar circunstâncias atenuantes; c. extinguir circunstâncias agravantes; d. extinguir medida de segurança e efeitos da condenação; e. estabelecer causas de exclusão da antijuridicidade, culpabilidade e

punibilidade.

COMBINAÇÃO DE LEIS

Pode acontecer que as duas leis em conflito apresentem pontos favoráveis e prejudiciais ao réu. Surge então o problema da combinação das partes benéficas de cada uma das leis, aplicando-se, destarte, ao acusado o texto combinado favorável (lex tertia).

Variam profundamente as opiniões. Nélson Hungria adverte que “não podem ser entrosados os dispositivos mais favoráveis da lex novacom os da lei antiga, pois, de outro modo, estaria o juiz arvorando em legislador, formando uma terceira lei, dissonante, no seu hibridismo, de qualquer das leis em jogo”.

Outros, ao revés, tomam a defesa da combinação das leis, salientando-lhe as vantagens que é capaz de proporcionar ao réu. Frederico Marques preconiza: “Dizer que o juiz está fazendo lei nova, ultrapassando assim suas funções constitucionais, é argumento sem consistência, pois o julgador, em obediência a princípios de eqüidade consagrados pela própria Constituição, está apenas movimentando-se dentro dos quadros legais para uma tarefa de integração perfeitamente legítima”.

Estamos com esta última opinião, pois só assim é cumprido o mandamento constitucional que determina a aplicação da lei penal benigna. O juiz que combina as leis não está legislando, mas apenas aplicando ao caso concreto texto legal fornecido pelo próprio legislador. Se, para beneficiar o réu, ele pode escolher o todo de uma ou outra lei, nada obsta selecione parte de um todo e parte de outro. Aliás, a não-combinação das parcelas benéficas de ambas as leis viola o princípio constitucional da aplicação da lexmitior. Exemplifiquemos para maior clareza do assunto. Suponha que a lei “A” comine pena de um a quatro anos de reclusão e multa de dez a trezentos e sessenta vezes o salário mínimo, e a lei “B” imponha pena de três a dez anos de reclusão e multa de dez a vinte salários mínimos. No tocante aos crimes cometidos na vigência da lei anterior, o juiz deverá efetuar a combinação das partes benignas das leis. Quanto à reclusão, incide a lei antiga (1 a 4 anos); quanto à multa, incide a lei nova (10 a 20 salários mínimos).

“NOVATIO LEGIS” INCRIMINADORA E “NOVATIO LEGIS IN PEJUS”

O princípio da anterioridade consagra a regra tempus regit actum, impedindo a retroatividade da lex gravior.

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Com as terminologias novatio legis incriminadora e novatio legis in pejus, refere-se a doutrina às duas categorias de leis penais severas.

Ocorre a novatio legis incriminadora quando uma nova lei considera crime fato até então atípico. Já na novatio legis in pejus, a nova lei agrava as conseqüências jurídico-penais do fato criminoso existente, sem criar um novo tipo penal incriminador. Citemos alguns exemplos: a) agravação da pena ou medida de segurança; b) exclusão de circunstâncias atenuantes ou de causas de diminuição de pena; c) inclusão de agravantes, causas de aumento de pena e qualificadoras; d) aumento dos requisitos para obtenção do sursis ou livramento condicional; e) aumento do prazo de prescrição; f) exclusão de causas excludentes da ilicitude, culpabilidade ou punibilidade; g) imposição do regime fechado de cumprimento de pena.

As leis penais severas não podem ter força retroativa. A irretroatividade da lex gravior é consagrada na Constituição Federal (art. 5º, XL).

Por outro lado, as leis processuais têm aplicação imediata, incidindo sobre os processos em andamento, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior (art. 2º do CPP). Entretanto, em duas hipóteses, as leis processuais penais que sejam prejudiciais ao réu não terão aplicação imediata. São elas: a) a lei que versa sobre prisão preventiva; b) a lei que versa sobre fiança. Com efeito, dispõe o art. 2º da Lei de Introdução ao Código de Processo Penal que à prisão preventiva e à fiança aplicar-se-ão os dispositivos que forem mais favoráveis. Note-se, ainda, que as leis processuais, ainda que benéficas, não retroagem, pois submetem-se ao princípio tempus regit actum. Se, porém, beneficiar o réu, podem retroagir, em duas hipóteses: a) se houver cláusula expressa de retroatividade; b) quando se tratar de lei processual-material, cujo conteúdo é híbrido, sendo simultaneamente uma lei penal e processual.

Sob esse aspecto, reveste-se de singular importância a análise das leis que estabelecem a exigência de representação ou queixa-crime. Essas leis apresentam, na sua essência, traços de direito material e de direito processual. No campo do direito penal, a falta de representação ou queixa-crime produz a extinção da punibilidade pela decadência ou renúncia (CP, art. 107, IV). No lado processual, a representação e queixa-crime funcionam como condições de procedibilidade da ação penal. Inegável, portanto, o caráter híbrido dessas normas. Cremos, em tal assunto, que deva prevalecer a tese da retroatividade benéfica quando a nova lei passa a exigir representação ou queixa-crime a determinado delito de ação pública incondicionada; outrossim, a irretroatividade da lei penal mais severa, quando a nova lei exclui a exigência da representação ou queixa-crime.

LEI TEMPORÁRIA OU EXCEPCIONAL

CONSIDERAÇÕES GERAIS

Reza o art. 3º do CP:

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“A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência”.

O dispositivo supra prevê a regra da ultra-atividade das leis temporárias e excepcionais, que consiste na aplicação da lei penal aos fatos praticados sob a sua vigência, embora o julgamento se efetue depois.

Temporária é a lei promulgada para ter vigor somente dentro de certo período de tempo, previamente fixado pelo legislador.

Excepcional é a lei promulgada para ter vigor enquanto persistir certa situação anormal (terremoto, guerra, estado de sítio, inflação etc.).

Na lei temporária o termo ad quem é expressamente definido em data certa do calendário, ao passo que na lei excepcional está ele condicionado à duração das circunstâncias extraordinárias.

A lei temporária é revogada pelo decurso do período de sua duração, e a lei excepcional, pela cessação das circunstâncias que a determinaram. Na área penal, costuma-se dizer que essas leis são auto-revogáveis, isto é, revogam-se automaticamente e independentemente do advento de uma nova lei. Fora do direito penal, porém, os autores costumam designar esse fenômeno de caducidade, abstendo-se de utilizarem a expressão auto-revogação. Com efeito, caducidade é a ineficácia de uma lei em razão da superveniência de uma situação cronológica ou factual, que retira a sua validade. A questão é de perda da eficácia, e não propriamente da vigência, tendo em vista que a revogação só pode operar-se quando sobrevém uma nova lei. Tomemos como exemplos de leis excepcionais os crimes militares em tempo de guerra e os crimes eleitorais. Cessada a guerra ou a eleição, a lei não perde a vigência, mas a eficácia, tanto é que, ressurgindo a guerra e a eleição, restaura-se a eficácia da lei que estava suspensa. Se tivesse ocorrido a perda da vigência, haveria a necessidade de elaboração de uma nova lei.

O fundamento pragmático da ultra-atividade, esclarece a Exposição de Motivos do Código Penal de 1940, é “impedir que, tratando-se de leis previamente limitadas no tempo, possam ser frustradas as suas sanções por expedientes astuciosos no sentido do retardamento dos processos penais”. Se assim não fosse, permaneceriam impunes os fatos praticados às vésperas do término da vigência da lei, diante da falta de tempo para apurá-los. Demais, para garantir a impunidade, bastaria procrastinar o andamento processual até a data da auto-revogação da lei.

A ultra-atividade das leis temporárias ou excepcionais não derroga o princípio constitucional da retroatividade da lex mitior. A regra da retroatividade da lei penal benéfica soluciona os conflitos de leis no tempo. É pois aplicável à hipótese de duas ou mais leis sucessivas no tempo versarem sobre o mesmo assunto.

No caso das leis temporárias ou excepcionais, não há duas leis em conflito, de modo que o problema não está relacionado com o direito

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intertemporal, mas com a tipicidade. Cumpre também salientar que a auto-revogação, por ter cessado o período de sua duração ou as circunstâncias que a determinaram, tem efeito ex nunc. As infrações penais cometidas durante o período de vigência da lei não são revogadas, de modo que não há falar-se em abolitio criminis. Não há, destarte, auto-revogação em relação aos fatos ocorridos durante o período de vigência. A auto-revogação atinge apenas os fatos cometidos após expirado o prazo de vigência ou cessadas as circunstâncias especiais. O direito intertemporal, que consagra a retroatividade benéfica, só regula a questão de sucessão de leis no tempo, isto é, o fato de a lei perder a vigência para dar lugar à vigência de nova lei. No caso, não há nenhuma outra lei sucedendo as leis temporárias ou excepcionais, pois estas não perdem a vigência em relação aos fatos cometidos durante o período de sua duração. A auto-revogação, conforme já dito, tem efeito ex nunc.

Havendo, porém, sucessão temporal de leis excepcionais ou temporárias que versam sobre o mesmo assunto, será inegável a retroatividade da lei penal benéfica, já que o problema passa a ser de direito intertemporal. Por exemplo, a lei “x”, que incrimina quem passar pela ponte durante a guerra, é derrogada pela lei “y”, que impõe a atipicidade do fato de ter passado pela ponte durante a guerra. Em ambas as leis, o tempus delicti(guerra) funciona como elemento do tipo. Trata-se, como se vê, de leis da mesma espécie, que versam sobre a mesma matéria, inclusive no aspecto temporal, razão pela qual impõe-se a retroatividade da lex mitior.

AS NORMAS PENAIS EM BRANCO E O DIREITO INTERTEMPORAL

Outra questão que pode ser aqui focalizada diz respeito ao direito intertemporal nas normas penais em branco. O complemento da norma penal em branco pode assumir duas faces: normalidade e excepcionalidade. De um lado, como norma com vigência comum, dentro de uma situação de normalidade, a alteração do complemento, desde que mais benéfica, retroage para cumprir o preceito constitucional da retroatividade da lex mitior, devendo a questão ser resolvida sob o prisma do direito intertemporal; de outro, como norma penal com vigência temporária ou excepcional, editada para atender circunstâncias excepcionais ou temporárias, a alteração do complemento, ainda que mais benéfica, não retroage, pois estaremos diante da ultra-atividade consagrada no art. 3º do Código Penal.

Nessa última hipótese, referem-se os doutrinadores ao crime de violação de tabela de preço. Ocorrendo a modificação da tabela de preço ou supressão da mercadoria da tabela, não se descaracteriza o delito anteriormente praticado. A norma penal não incrimina a venda pelo preço “x” ou “y”, mas sim a venda acima do tabelamento. Sobremais, não se trata de leis idênticas. A tabela anterior versa sobre um determinado período de tempo e a tabela posterior, sobre período de tempo distinto. Portanto, versam sobre circunstâncias temporais diferentes. Por conseqüência, inexiste conflito de leis

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no tempo, porquanto cada uma tem o seu campo próprio de incidência. Se, no entanto, a nova tabela disciplinar também o preço das mercadorias no período determinado na tabela anterior, é de rigor a sua retroatividade, caso seja mais benéfica.

As tabelas de preço, dizia Queiroz Filho, “estão sujeitas a contínuas alterações. Atendem a circunstâncias excepcionais, e correspondem às exigências do instante. E, por isso, o preço abusivo liga-se ao momento em que é cobrado. E se a tabela — complemento da lei — é lei, trata-se então de uma lei temporária e excepcional. E esta aplica-se ao fato praticado durante a sua vigência, mesmo depois de cessadas as circunstâncias que a determinaram, consoante expressamente estabelece o art. 3º do nosso estatuto penal” (RT, 192: 563).

Cumpre, porém, não perder de vista a inaplicabilidade do art. 3º do Código Penal quando o complemento da norma penal em branco não se revestir da característica da temporariedade ou excepcionalidade. Assim, por exemplo, a supressão de determinada substância entorpecente do rol da relação do Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina e Farmácia, do Ministério da Saúde, descaracteriza o delito de tóxico imputado ao agente, em virtude da retroatividade da lei penal benéfica.

Cumpre ajuntar ainda o exemplo do médico que deixa de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória (art. 269 do CP), mas que posteriormente é retirada do elenco das moléstias de notificação compulsória. Nessa hipótese, se a doença constava do elenco por motivo de temporariedade ou excepcionalidade (p. ex., epidemia), prevalece a regra do art. 3º do CP, mantendo-se, destarte, a incriminação do fato. Se, entretanto, a doença integrava o elenco numa situação de normalidade, aplicar-se-á o princípio da retroatividade da lei penal benéfica, diante da supressão do caráter ilícito do fato.

TEMPO DO CRIME

CONSIDERAÇÕES GERAIS

Determina o art. 4º do CP: “Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”.

Ateve-se nosso Código à lição de que é no momento da conduta (ação ou omissão) que o sujeito manifesta a sua vontade de violar a norma penal.

Existem três teorias a respeito do tempo do crime: a. teoria da atividade; b. teoria do resultado; c. teoria mista.

A teoria da atividade fixa o tempo do crime no momento em que o agente executa a conduta criminosa.

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A teoria do resultado (do evento, ou do efeito) considera que tempo do crime é o momento do seu resultado.

A teoria mista (ou da ubiqüidade) determina que o tempo do crime é tanto a data da conduta como a data do resultado.

O Código Penal consagrou a teoria da atividade (art. 4º). Se se adotasse a teoria do resultado ou a teoria mista, o sujeito que praticasse uma conduta lícita poderia ser punido na hipótese de a consumação ocorrer após a entrada em vigor da lei penal incriminadora do fato.

Note-se que o tempo do crime é o momento da ação ou omissão. A lei silencia se deve ser considerado o momento do início ou o momento do final da conduta. A única interpretação razoável consiste em considerar como tempo do crime o último momento da conduta. Assim, por exemplo, se o agente inicia um seqüestro aos 17 anos, 11 meses e 29 dias, prolongando a conduta, após completar 18 anos, deverá ser considerado imputável. Se o tempo do crime fosse o momento do início da conduta, ele seria inimputável, mas essa exegese seria absurda, porque, ao invés de prevenir, estimularia a prática do delito e a manutenção da conduta criminosa. Na interpretação da lei penal, deve prevalecer a exegese que mais protege o bem jurídico, e não a mais favorável ao réu.

A teoria da atividade, contudo, apresenta duas exceções. Com efeito, para fins de prescrição e decadência, o tempo do crime não é o momento da conduta. De fato, a prescrição, em regra, começa a fluir a partir da consumação do crime, enquanto a decadência tem por termo inicial a data em que a vítima toma conhecimento da autoria do delito

EFEITOS

Coerentes com a teoria da atividade, deparam-se as seguintes aplicações: a. Aplica-se a lei vigente ao tempo da conduta, salvo se a do tempo do

resultado for mais benéfica. b. A imputabilidade é aferida ao tempo da conduta. Não se pode assim punir

criminalmente o adolescente que, às vésperas de completar 18 anos, atira na vítima, que vem a falecer depois de ele atingir a maioridade penal.

c. No crime permanente em que a conduta se tenha iniciado sob a vigência de uma lei, prosseguindo sob o império de outra, aplica-se a lei nova, ainda que mais severa. É que no crime permanente há uma persistente ofensa ao bem jurídico, pois a conduta continua sendo executada após a entrada em vigor da nova lei. Por exemplo: “A” seqüestra a vítima com o fim de obter certa soma em dinheiro como preço do resgate. Alguns dias depois do seqüestro, entra em vigor nova lei aumentando a pena do art. 159 do CP. Se por ocasião da vigência dessa nova lei a vítima ainda estiver sob o domínio do seqüestrador, aplica-se a nova lei; se, porém, já tiver sido libertada, aplica-se a lei anterior, que é mais benéfica.

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DIREITO PENAL PARTE GERAL I - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

d. No crime continuado em que os fatos anteriores já eram punidos, tendo ocorrido mera agravação da pena, aplica-se a lei nova a toda a série delitiva, desde que sob o seu império a conduta antijurídica continue sendo praticada. Assim, persistindo na conduta criminosa, a nova lei abarcará toda a série de delitos, pois o crime continuado, para efeito de aplicação da sanctio juris, é considerado uma unidade delitiva. A propósito, dispõe a Súmula 711 do STF: “A lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência”.

e. No crime habitual aplica-se também a nova lei, mesmo que mais severa, caso o agente continue reiterando a conduta criminosa.

f. A medida de segurança, conforme já salientado anteriormente, é regida pelo princípio da anterioridade. Surgindo, assim, após a prática do crime, medida de segurança prejudicial ao réu, ela não poderá ser aplicada.

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QUESTÕES

1. O que é direito intertemporal? 2. Há alguma exceção ao princípio “tempus regit actum”?3. Quais as duas espécies de leis penais benéficas? 4. O que é “abolitio criminis”? Qual a sua natureza jurídica?5. A “abolitio criminis” extingue os efeitos penais e civis da sentença

condenatória?6. Qual o órgão competente para a decretação da “abolitio criminis”? É

cabível habeas corpus?7. O que é “novatio legis in mellius”? 8. Qual a diferença entre “abolitio criminis” e “novatio legis in melius”?9. Como se apura a maior benignidade da lei? 10. É possível a combinação de leis? 11. Qual a diferença entre “novatio legis” incriminadora e “novatio legis in

pejus”?12. A lei processual tem aplicação imediata? 13. A lei processual pode retroagir? 14. O que são leis temporárias e excepcionais? 15. O problema das leis temporárias e excepcionais está relacionado à

tipicidade?16. Suprimida a tabela de preço, o agente que a violou continua sendo

processado criminalmente?17. A supressão de determinada substância entorpecente da portaria do

Ministério da Saúde descaracteriza o delito de tóxico imputado ao agente?

18. O médico que deixa de denunciar uma doença compulsória, mas que posteriormente é retirada do elenco das moléstias de notificação compulsória, continua sendo processado criminalmente?

19. Quais as três teorias a respeito do tempo do crime?20. Quais os efeitos da teoria da atividade? 21. O crime continuado e o crime permanente, que se iniciam na vigência de

uma lei, mas continuam sendo praticados na vigência de outra, são regidos por quais destas leis?

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DIREITO PENAL PARTE GERAL

TOMO II

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO II

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DIREITO PENAL – PARTE GERAL II - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE

CONCEITO E ESPÉCIES

Pena privativa de liberdade é a que restringe o direito de ir e vir do condenado, infligindo-lhe um determinado tipo de prisão. As penas privativas de liberdade são três: reclusão, detenção e prisão simples. As duas primeiras estão previstas no CP (art. 33) e a terceira, na LCP (art. 5º).

Não é correto chamar as penas privativas de liberdade de penas corporais, porque esta denominação amolda-se melhor às penas de açoite ou flagelo, proibidas pelo ordenamento jurídico pátrio. REGIMES OU SISTEMAS PENITENCIÁRIOS

Regime é o modo pelo qual é cumprida a pena privativa de liberdade. O CP, no § 1º do art. 33, prevê três regimes: a. regime fechado: a pena é executada em estabelecimento de segurança

máxima ou média; b. regime semi-aberto: a pena é executada em colônia agrícola, industrial ou

estabelecimento similar; c. regime aberto: a pena é executada em casa de albergado ou

estabelecimento adequado.

FIXAÇÃO DO REGIME INICIAL DA PENA

O regime de cumprimento da pena deve ser fixado na sentença, de forma fundamentada, dispensando-se a fundamentação apenas quando se tratar dos crimes da Lei n. 8.072/90, cujo regime, por força de lei, é o fechado. Acerca da necessidade de fundamentação, convém destacar o teor da súmula 719 do STF: “A imposição do regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea”. Ainda que se tenha concedido “sursis” ou pena restritiva de direitos, é necessário a anterior fixação do regime, antes da concessão daqueles benefícios, diante da possibilidade de serem revogados. Ressalte-se ainda que a não fixação do regime viola o princípio da individualização da pena, reputando-se nula a sentença, passível de “habeas corpus”, não se podendo aferir que do silêncio se adote este ou aquele regime. Não comungamos do posicionamento adotado no Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual a falta de fixação do regime é mera irregularidade, algo que pode ser corrigido, invocando-se, para tanto, o princípio do aproveitamento dos atos jurídicos. Sobredito princípio, “data venia”, não pode sobrepor-se aos preceitos de ordem pública.

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De acordo com o CP, a quantidade da pena e a reincidência são os dois fatores determinantes na fixação do regime inicial, mas deve também levar em conta a reeducação do agente e a segurança da sociedade. Aliás, a fixação da pena no mínimo legal nem sempre justifica o regime mais brando. Com efeito, a aplicação da pena é pautada pela dosagem das circunstâncias que a influenciam, sobretudo as do art. 59 do Código Penal. Conquanto estas circunstâncias também sejam consideradas na definição do regime, este também é fixado, visando à reeducação do agente e a segurança social. Sobre a quantidade da pena, dispõe o art. 111 da Lei de Execução Penal: “Quando houver condenação por mais de um crime, no mesmo processo ou em processos distintos, a determinação do regime de cumprimento será feita pelo resultado da soma ou unificação das penas, observada, quando for o caso, a detração ou remição. Parágrafo único. Sobrevindo condenação no curso da execução, somar-se-á a pena ao restante da que está sendo cumprida, para determinação do regime”. O regime inicial do cumprimento das penas privativas de liberdade é determinado pelo juiz da sentença (CP, art. 59, III). E se no processo estiver sendo imputado mais de um crime ao acusado, o juiz, ao fixar o regime, tomará por base a soma das penas concretas. Sendo todas as penas de detenção, salienta Mirabete, o regime inicial será o semi-aberto ou aberto, mas se houver uma de reclusão, poderá ser determinado o fechado. Além disso, se a soma ultrapassar quatro anos, não poderá ser imposto o regime aberto, seja qual for a espécie da pena privativa de liberdade e, se superar oito anos, sendo uma delas ao menos de reclusão, deve ser determinado o regime fechado. Se no curso da execução surgirem outras condenações transitadas em julgado, caberá ao juiz da execução efetuar a soma do restante da pena que estava sendo cumprida com a nova pena aplicada, fixando, em seguida, o regime inicial de cumprimento das penas somadas. Vê-se, portanto, que se houver mais de uma condenação, a determinação do regime inicial se dá pelo resultado da soma ou unificação das penas. Todavia, como observa José Paulo Baltazar, em havendo uma pena de reclusão e outra de detenção não será imposto o regime mais gravoso se o quantitativo for alcançado com a pena de detenção. Se, por exemplo, o réu é condenado a sete anos de reclusão pelo crime de roubo e a um ano e dois meses de detenção pelo delito de lesão corporal leve, não se lhe impõe o regime fechado, mas o semi-aberto, porque o quantitativo superior a oito anos só foi atingido graças à pena de detenção, que, como veremos adiante, não admite o regime fechado.

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PENA DE RECLUSÃO

A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semi-aberto ou aberto (art. 33, caput, do CP). Assim, nem sempre ela se inicia no regime fechado. As regras são as seguintes: a. o reincidente sempre iniciará o cumprimento no regime fechado, qualquer

que seja a quantidade da pena a que tenha sido condenado. Todavia, a súmula 269 do STJ admite que o reincidente condenado a pena igual ou inferior a quatro anos inicie o cumprimento da pena no regime semi-aberto, se favoráveis as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP.

b. o não-reincidente condenado a pena superior a oito anos deverá começar a cumpri-la no regime fechado;

c. o não-reincidente, cuja condenação seja superior a quatro anos e não exceda a oito anos, poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semi-aberto.

d. o não-reincidente condenado a pena igual ou inferior a quatro anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto.

Nada impede, porém, que o réu não reincidente, condenado a pena de reclusão inferior a oito anos, inicie o cumprimento da pena no regime fechado, pois, consoante dispõe o § 3º do art. 33 do CP, “a determinação do regime inicial de cumprimento da pena far-se-á com observância dos critérios previstos no art. 59 deste Código”. Todavia, cumpre lembrar a súmula 718 do STF: “A opinião do julgador sobre a gravidade em abstrato do crime não constitui motivação idônea para a imposição de regime mais severo do que o permitido segundo a pena aplicada”.

PENA DE DETENÇÃO

A pena de detenção deve ser cumprida em regime semi-aberto ou aberto (CP, art. 33, caput, 2ª parte). Nunca se inicia no regime fechado, salvo na hipótese de crime organizado, cujo regime inicial é sempre o fechado (art. 10 da Lei n. 9.034/95). As regras são as seguintes: a. o condenado reincidente deve iniciar o cumprimento no regime semi-

aberto, qualquer que seja a quantidade da pena; b. o não-reincidente condenado a pena superior a quatro anos deve iniciar o

cumprimento no regime semi-aberto; c. o não-reincidente condenado a pena igual ou inferior a quatro anos poderá

iniciar o cumprimento no regime aberto. Nada impede, porém, que o réu não reincidente, condenado a pena de detenção igual ou inferior a quatro anos, inicie o cumprimento no regime semi-aberto, desde que as circunstâncias do art. 59 do CP lhe sejam desfavoráveis. Saliente-se, contudo, que a gravidade abstrata do crime, por si

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só, não pode justificar a fixação de regime mais severo, quando a pena comporta regime menos rigoroso, sendo necessário, para tanto, a demonstração da periculosidade do agente e a necessidade da segurança social. Como se vê, a pena de detenção, à exceção do crime organizado, nunca se inicia no regime fechado. Admite-se, no entanto, durante a execução, a regressão para esse regime.

O RÉU REINCIDENTE

Numa ligeira interpretação gramatical do § 2º do art. 33 do CP, verifica-se que o reincidente, quando a pena for de reclusão, deve começar a cumpri-la no regime fechado; se de detenção, no regime semi-aberto. Urge, porém, que se faça a interpretação restritiva, pois o texto escrito extrapolou a vontade da lei. Por isso, aquelas regras acima devem prevalecer apenas ao reincidente em crime doloso. A nosso ver, o reincidente em crime culposo ou, então, o reincidente que cometeu um crime doloso e outro culposo, ou vice-versa, pode iniciar o cumprimento da pena de reclusão no regime semi-aberto ou aberto. É certo, pois, que o § 2º do art. 33, b e c, não faz distinção entre os reincidentes. Porém, o reincidente em crime culposo ou o reincidente em que o crime anterior é culposo e o posterior doloso, ou vice-versa, pode obter o sursis (CP, art. 77, I). Seria ilógico negar-lhe o benefício menor, qual seja, o regime semi-aberto ou aberto. Desnecessário dizer o absurdo que seria o juiz fixar o regime fechado a condenado que pode obter o sursis. Aliás, até o reincidente em crime doloso, desde que a condenação anterior tenha sido de multa, pode obter a concessão do sursis (§ 1º do art. 77 do CP). Portanto, nesse caso, malgrado a sua condição de reincidente em crime doloso, reunindo condições para a concessão do sursis,o juiz deverá fixar-lhe o regime aberto, pois contrária à lógica a fixação de regime fechado. Sim, pois quem tem direito ao sursis, com maior razão, faz jus ao regime aberto.

DISTINÇÃO ENTRE AS PENAS DE RECLUSÃO E DE DETENÇÃO

A pena de reclusão pode se iniciar no regime fechado, semi-aberto ou aberto; a pena de detenção, não se inicia no regime fechado, salvo quando se tratar de crime organizado. Na pena de reclusão, a medida de segurança é detentiva, consistente na internação em hospital psiquiátrico ou outro estabelecimento adequado, ao passo que na pena de detenção é cabível a medida de segurança detentiva ou a medida de segurança restritiva, esta última consistente em tratamento ambulatorial (art. 97 do CP).

Nos crimes dolosos sujeitos à pena de reclusão, cometidos contra filho, tutelado ou curatelado, se prevê como efeito da condenação a

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perda do poder familiar, tutela ou curatela (art. 92, inciso II, do CP); na pena de detenção, não há esse efeito da condenação. Finalmente, a prisão preventiva é mais ampla quando a pena é de reclusão. Tratando-se de pena de detenção, só será cabível quando se apurar que o indiciado é vadio ou, havendo dúvida sobre a sua identidade, não indicar elementos para esclarecer, outrossim, quando o réu tiver sido condenado por outro crime, em sentença transitada em julgado (art. 313 do CPP), bem como no caso da violência doméstica (Lei nº 11.340/06).

DELITOS DE REGIME FECHADO

Os delitos em que o regime é obrigatoriamente fechado, quer o réu seja reincidente ou não, são os seguintes: a. organizações criminosas (Lei n. 9.034/95); b. crime de tortura, exceto quando praticado por omissão (Lei n. 9455/97); c. crimes hediondos, tráfico ilícito de entorpecentes e terrorismo (Lei n.

8.072/90). Quanto ao estrangeiro em situação irregular, alguns julgados sustentam a obrigatoriedade do regime fechado, diante da presunção de evasão e da impossibilidade de ele vir a trabalhar. Discordamos, porque se violaria o princípio da isonomia, previsto no art. 5º, caput, da CF, aplicável ao estrangeiro residente no Brasil, considerando-se como tal aquele que se encontra em nosso território, consoante interpretação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, sendo, pois, viável o regime semi-aberto, mas sem que ele tenha direito a trabalho externo

CARACTERÍSTICAS DOS REGIMES

A rigor, o regime fechado deve ser cumprido em penitenciária afastada do centro urbano, alojando-se o condenado em cela individual, com área mínima de seis metros quadrados, que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório (arts. 88 e 90 da LEP), pois a cadeia pública destina-se ao recolhimento de presos provisórios (art. 102 da LEP). Todavia, na prática, os presos não ficam em celas individuais, e as cadeias públicas estão sendo destinadas também a presos definitivos. Vale a pena ainda destacar que, no regime fechado, o condenado será obrigatoriamente submetido, no início do cumprimento da pena, a exame criminológico de classificação para individualização da execução (CP, art. 34). Esse exame, que no regime semi-aberto é facultativo (parágrafo único do art. 8º da LEP), é realizado pela Comissão Técnica de Classificação de cada presídio e só pode ser feito após o trânsito em julgado da sentença. Não se realiza esse exame quando a sentença impõe o regime aberto ou pena restritiva de direitos. No regime fechado, o condenado fica sujeito a trabalho no período diurno e a isolamento durante o repouso noturno (§ 1º do art. 34 do

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CP). O trabalho será em comum dentro do estabelecimento, na conformidade das aptidões ou ocupações anteriores do condenado, desde que compatíveis com a execução da pena (§ 2º do art. 34 do CP). O trabalho a que alude o texto legal é o interno, pois o trabalho externo, no regime fechado, só é admissível em serviços ou obras públicas realizados por órgãos da administração direta ou indireta, ou entidades privadas, desde que tomadas as cautelas contra a fuga e em favor da disciplina (art. 36 da LEP). O limite máximo do número de presos será de 10% do total de empregados na obra. Caberá ao órgão da administração, à entidade ou à empresa empreiteira a remuneração desse trabalho. A prestação de trabalho a entidade privada depende do consentimento expresso do preso (§§ 1º, 2º e 3º do art. 36 da LEP). Urge, ainda, para que se admita o trabalho externo, o cumprimento de no mínimo 1/6 da pena. A autorização para este tipo de trabalho será dada pela direção do estabelecimento penitenciário (art. 37 da LEP). Por outro lado, no regime semi-aberto o condenado fica sujeito a trabalho em comum durante o período diurno. O trabalho externo é admissível, bem como a freqüência a cursos supletivos profissionalizantes, de instrução de segundo grau ou superior (§ 2º do art. 35 do CP). O art. 92 da LEP prevê que as colônias contenham, facultativamente, compartimento coletivo para o alojamento dos condenados. Já no regime aberto, cujo fundamento é a autodisciplina e senso de responsabilidade, o condenado deverá, fora do estabelecimento e sem vigilância, trabalhar, freqüentar curso ou exercer outra atividade autorizada, permanecendo recolhido durante o período noturno e nos dias de folga. O ingresso do condenado em regime aberto supõe a aceitação de seu programa e das condições impostas pelo juiz (art. 113 da LEP). Como se vê, o Magistrado pode fixar condições especiais ao regime aberto, baseando-se no princípio da individualização da pena (art. 115 da LEP). Somente poderá ingressar no regime aberto o condenado que estiver trabalhando ou comprovar possibilidade de fazê-lo imediatamente, sendo que as pessoas referidas no art. 117 da LEP poderão ser dispensadas do trabalho. O condenado ainda deve apresentar, pelos seus antecedentes ou pelo resultado dos exames a que foi submetido, fundados indícios de que irá ajustar-se, com autodisciplina e senso de responsabilidade, ao novo regime (art. 114 da LEP).

Acrescente-se ainda que a Lei n. 9.613/98 prevê o regime aberto para quem colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais e da sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime de lavagem de dinheiro. O regime aberto é cumprido em casa de albergado ou estabelecimento adequado. Admite-se, excepcionalmente, o recolhimento do beneficiário de regime aberto em residência particular quando se tratar de (art. 117 da LEP):

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I. condenado maior de 70 (setenta) anos; II. condenado acometido de doença grave; III. condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental; IV. condenada gestante. Fora dessas hipóteses torna-se inadmissível a prisão domiciliar, de modo que nas comarcas onde ainda não se encontram instaladas as casas de albergado, o magistrado poderá determinar o cumprimento do regime aberto em cela especial do estabelecimento carcerário.

REMIÇÃO

Remição é o benefício instituído ao condenado que cumpre pena em regime fechado ou semi-aberto, consistente no desconto de um dia de pena por três de trabalho. Assim, além de uma remuneração mínima de três quartos do salário mínimo, o trabalho do preso ainda dá ensejo à remição da pena. O preso impossibilitado de prosseguir no trabalho, por acidente, continuará a beneficiar-se com a remição (§ 1º do art. 126 da LEP). A remição será declarada pelo juiz da execução, ouvido o Ministério Público (§ 3º do art. 126 da LEP). O deferimento do pedido depende de comprovação da execução da jornada mínima de 6 horas, sendo que a jornada diária não pode exceder 8 horas. E, transitada em julgado a decisão que a reconheceu, não pode mais ser revista, sob pena de violação da coisa julgada. O tempo remido será computado para a concessão do livramento condicional e indulto (art. 128 da LEP). O condenado que foi punido por falta grave perderá o direito ao tempo remido, começando o novo período a partir da data da infração disciplinar (art. 127 da LEP). Compete ao juiz da execução a decisão sobre a perda do tempo remido. O magistrado não poderá analisar o mérito da punição disciplinar, pois, como é sabido, o mérito administrativo escapa à apreciação jurisdicional. Poderá, porém, anular a decisão administrativa, caso ela tenha inobservado os requisitos extrínsecos. A autoridade administrativa encaminhará mensalmente ao juízo da execução cópia do registro de todos os condenados que estejam trabalhando e dos dias de trabalho de cada um deles. O art. 130 da LEP preceitua que “constitui o crime do art. 299 do Código Penal declarar ou atestar falsamente prestação de serviço para fim de instruir pedido de remição”. Essa regra, tipificando o fato na falsidade ideológica do art. 299 do CP, não é supérflua, pois exclui a norma do art. 301 do mesmo Código. Efetivamente, a falsidade ideológica de certidão ou atestado constitui delito previsto no art. 301, mas se se destina a instruir pedido de remição, o fato é enquadrado no art. 299, cuja pena é bem mais severa. Nas cadeias ou penitenciárias em que o preso não trabalha por falta de condições materiais, a jurisprudência tem negado a remição,

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embora a situação se mostre injusta, uma vez que o direito do preso é prejudicado pela inércia do Estado. Isso viola até mesmo o princípio da isonomia, uma vez que o benefício é atribuído aos presos recolhidos em estabelecimento prisional aparelhado para o trabalho e negado a outros, que tiveram a infelicidade de ser recolhidos em estabelecimento onde não há oportunidade de trabalho. Nesse caso, como ensina Sidnei Agostinho Beneti, “de rigor a concessão da remição, mesmo que o trabalho não tenha sido prestado por culpa da administração carcerária, como no caso comum de omissão de organização de serviços aptos à laborterapia, subordinando-se, contudo, o deferimento da remição à prova, pelo sentenciado, de que requereu a colocação em condições de trabalho”. Cumpre ainda registrar que, no regime aberto, inexiste o instituto da remição. E, finalmente, todos os crimes, inclusive os hediondos, a admitem, pois nenhuma vedação se encontra na Lei n. 8.072/90.

PROGRESSÃO DE REGIMES

São três os sistemas penitenciários clássicos: o de Filadélfia, o de Aurbun e o inglês ou progressivo. No sistema da Filadélfia, o condenado permanece em isolamento absoluto, fechado na cela, sem poder sair, salvo esporadicamente para passeio em pátios cerrados. No sistema de Aurbun, o condenado trabalha em silêncio, durante o dia, juntamente com outros, permanecendo isolado apenas no período noturno. No sistema inglês ou progressivo, o condenado inicia a pena em isolamento. Depois, passa a trabalhar junto com os outros detentos. E, na última fase, é posto em liberdade condicional. A reforma penal de 1984 adotou o sistema progressivo ou evolutivo, com características próprias. Efetivamente, o condenado a cumprir pena em regime fechado fica sujeito a trabalho em comum no período diurno e a isolamento durante o repouso noturno (§§ 1º e 2º do art. 34 do CP). E, depois de cumprir um sexto da pena, pode requerer a transferência para o regime semi-aberto, onde o trabalho é comum durante o período diurno, sendo que o repouso noturno também pode ser coletivo (art. 92 da LEP). E, vindo a cumprir mais um sexto da pena, passa para o regime aberto, quando, então, permanece solto durante o período diurno, recolhendo-se no período noturno à casa de albergado. Para obter a progressão, urge que se cumpra um sexto do total da pena, e não o restante, embora a questão não seja pacífica. Não

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basta, porém, cumprir um sexto da pena; é preciso ainda que o condenado tenha méritos para obter a progressão. No caso de a condenação ser superior a trinta anos, é preciso cumprir um sexto da pena total, e não dos trinta anos Súmula 715 do STF). Observe-se ainda que o condenado por crime contra a Administração Pública terá progressão do regime de cumprimento da pena condicionada a reparação do dano que causou, ou à devolução do produto ilícito praticado, com os acréscimos legais (CP, art. 33, § 4º). Por outro lado, o ideal seria que só após a concessão do regime aberto o condenado pudesse progredir para o livramento condicional. Todavia, a lei não impõe esse requisito, de modo que o livramento condicional pode ser deferido aos criminosos que estejam cumprindo pena em regime fechado. Cabe também ressaltar que o caráter progressivo do sistema, consistente na transferência do regime mais rigoroso para o imediatamente menos rigoroso, veda, por raciocínio lógico, a progressão “por saltos”, isto é, a passagem direta do regime fechado para o aberto. Se, porém, não houver vaga no semi-aberto, o condenado poderá ficar no regime fechado, pleiteando depois a passagem direta para o aberto. Urge, porém, que tenha obtido, por decisão judicial, a transferência para o semi-aberto, pois apenas nesse caso, à míngua de vagas, admite-se que o condenado ao cumprimento da pena em regime semi-aberto sujeite-se ao regime fechado. À exceção dos crimes hediondos, tráfico ilícito de entorpecentes e terrorismo, cuja pena deve ser cumprida integralmente no regime fechado, todos os demais delitos admitem a progressão de regimes (§ 1º do art. 2º da Lei n. 8.072/90). Em relação ao crime de tortura, a Lei n. 9.455/97 preceitua que o regime inicial é o fechado, mas não veda a progressão. O Superior Tribunal de Justiça, com base nessa lei, passou também a admitir a progressão aos crimes hediondos, tráfico de entorpecentes e terrorismo, declarando implicitamente revogado o § 1º do art. 2º da Lei n. 8.072/90. Há ainda decisões proclamando a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei n. 8.072/90, por afronta ao princípio da individualização da pena. De fato, a gravidade abstrata do crime não poderia interferir na individualização efetuada na fase da execução da pena. Outro argumento favorável à progressão de regimes é o fato de a Lei n. 9.034/95 permitir a dita progressão ao crime organizado. Este, seja ou não hediondo, a lei não distingue, admite a progressão, portanto, o crime hediondo não organizado, com mais forte razão, também deve admiti-la. Todavia, a Excelsa Corte rechaçou esta tese, editando a súmula 698: “não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão no regime de execução da pena aplicada ao crime de tortura”. Assim, cumpre observar que a jurisprudência dominante segue rigorosamente a Lei n. 8.072/90, não admitindo a progressão em relação aos crimes hediondos, tráfico ilícito de entorpecentes e terrorismo.

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Finalmente, dispõe a Súmula 192 do STJ que compete ao Juízo das Execuções Penais do Estado a execução das penas impostas a sentenciados pela Justiça Federal, Militar ou Eleitoral, quando recolhidos a estabelecimentos sujeitos à administração estadual.

EXECUÇÃO PROVISÓRIA

Antes mesmo de transitar em julgado a sentença penal condenatória, a progressão de regimes já pode ser requerida ao juízo competente. A esse fenômeno dá-se o nome de execução provisória. Tal ocorre quando o acusado, preso provisoriamente e já estando condenado por sentença, aguarda o julgamento de seu recurso pelo tribunal. O pressuposto básico da execução provisória é o trânsito em julgado para a acusação, pois, se também estiver pendente o apelo do Ministério Público, torna-se inadmissível que, antes do trânsito em julgado, pleiteie-se a progressão de regimes. A expressão “execução provisória” tem sido objeto de debate. Os seus opositores salientam que no processo penal não há execução provisória, devido ao princípio da presunção da inocência. Argumentam que a progressão não passa de uma medida cautelar de antecipação dos efeitos da sentença definitiva. Sidnei Agostinho Beneti destaca: “o que é provisória, esta sim, é a concessão da contracautela assecuratória do direito à progressão de regime, e não a execução”. Quando se fala, porém, em execução provisória, a nosso ver, não se deseja afrontar o princípio da presunção de inocência, e, sim, beneficiar o acusado, razão pela qual não compreendemos a celeuma instaurada sobre a aludida expressão. Aliás, a Excelsa Corte já decidiu que “a execução provisória da sentença transitada em julgado para a acusação e pendente recurso interposto pela defesa pressupõe estejam presentes no Juízo das Execuções Penais as peças indispensáveis, incumbindo ao interessado providenciá-las junto ao Tribunal que exercerá o crivo de revisão” (HC 69.152-8, Rel. Marco Aurélio, DJU, 2 dez. 1992). Utilizou-se, como se vê, a expressão “execução provisória”. A discussão parece ter sido encerrada com a edição da súmula 716 do STF: “Admite-se a progressão de regime de cumprimento de pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória”. A propósito, ainda sobre o assunto, dispõe a súmula 717 do STF: “Não impede a progressão de regime de execução da pena, fixada em sentença não transitada em julgada, o fato de o réu se encontrar em prisão especial”. O réu deve requerer, perante o tribunal pelo qual se processa o recurso, a expedição de carta de guia provisória. Deferido o pedido, o juízo da execução realizará a autuação provisória e processará o

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pedido de progressão de regimes. Ressalte-se, por fim, a existência de numerosas decisões atribuindo a competência ao juízo da condenação (RT,686:337, 688:307; RJDTACrimSP, 11:28). Essas decisões baseiam-se na inexistência de execução provisória, encarando o problema como mera antecipação cautelar dos efeitos da sentença definitiva. A nosso ver, existe, sim, execução provisória, de modo que o pedido deve ser apreciado pelo juízo da execução, pois o juízo da condenação, com a sentença, esgota o seu poder jurisdicional. Sobremais, ele não dispõe de poderes para decidir questões afetas ao juízo da execução. A execução provisória, a propósito, é admitida expressamente pelo parágrafo único do art. 2º da Lei n. 7.210/84. Em São Paulo, o assunto encontra-se regulamentado no Provimento n. 653/99 do Conselho Superior da Magistratura. Finalmente, quanto à possibilidade de execução provisória na pendência de recurso especial perante o STJ e de recurso extraordinário perante o STF, a Excelsa Corte vem decidindo reiteradamente que esses dois recursos não inviabilizam a expedição do mandado de prisão, ainda que se trate de réu primário e de bons antecedentes. Assim, na pendência de um desses recursos, o condenado não teria o direito de aguardar em liberdade o julgamento, porque despojados, ambos, de eficácia suspensiva (Lei n. 8.038/90, art. 27, § 2º). De acordo com esse entendimento, o direito de recorrer em liberdade circunscreve-se aos recursos de apelação e embargos infringentes. Confirmada a condenação no julgamento desses recursos, ocorre uma espécie de trânsito em julgado provisório, razão pela qual deve ser expedido o mandado de prisão, iniciando-se, por conseqüência, a execução provisória, a despeito da pendência dos recursos especial ou extraordinário. Ora, o art. 675, § 1º, do CPP exige expressamente o trânsito em julgado para o fim de ser expedido o mandado de prisão, não abrindo exceção aos recursos especial e extraordinário. Onde a lei não distingue o intérprete não pode distinguir. Ademais, o entendimento do Pretório Excelso viola o princípio da presunção da inocência, previsto no item LVII do art. 30 da CF. Na verdade, reveste-se de flagrante inconstitucionalidade o disposto no § 2º do art. 27 da Lei n. 8.038/90, que nega efeito suspensivo aos recursos especial e extraordinário. Na esfera penal, os recursos devem ter efeito suspensivo, sob pena de violação do princípio da presunção da inocência, segundo o qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória penal. Não se pode antecipar a culpabilidade do condenado, apegando-se à velha distinção, proposta por Espínola Filho, que diferencia o caso julgado da coisa julgada. De acordo com o ilustre processualista, ocorre o caso julgado na hipótese de a sentença poder ser executada na pendência de recurso extraordinário, sem efeito suspensivo, ao passo que a coisa julgada verifica-se quando da decisão não cabe mais recurso de espécie alguma. Ao que tudo indica, o STF adotou essa orientação, desconsiderando, porém, que Espínola escreveu entre os anos 40 e 50, muito antes de a Magna Carta prever o princípio da presunção da inocência. Ora, se a lei pode excluir o efeito suspensivo dos recursos especial

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e extraordinário, pode também excluí-lo no recurso de apelação e, dessa forma, fazer tábula rasa do princípio da presunção da inocência.

REGRESSÃO

Regressão é a transferência do condenado para um regime mais rigoroso do que o inicialmente deferido. Admite-se a regressão para qualquer dos regimes mais rigorosos. É, portanto, admissível a regressão direta do regime aberto para o fechado. As hipóteses de regressão, previstas no citado art. 118 da LEP, são as seguintes: a. Se o condenado pratica fato definido como crime doloso ou falta grave.

Para o deferimento da regressão, a lei exige a oitiva prévia do condenado (§ 2º do art. 118 da LEP). A prática de crime culposo ou contravenção, por si só, não autoriza a regressão, salvo se revelar que o condenado está frustrando os fins da execução. A regressão depende apenas da prática do crime doloso ou falta grave; a lei não exige condenação ou trânsito em julgado da sentença ou decisão. A nosso ver, a hipótese é inconstitucional, porque viola o princípio da presunção da inocência (CF, art. 5º, LVII).

b. Se o condenado sofrer condenação, por crime anterior, cuja pena, somada ao restante da pena em execução, tornar incabível o regime. Nesse caso, a regressão pode ser apreciada sem a prévia inquirição do condenado.

Aquele que cumpre pena no regime aberto, além das hipóteses anteriores, também será regredido, mediante a sua prévia oitiva, quando:- Frustrar os fins da execução. Exemplos: desobediência a ordens

recebidas, provocação de rescisão de contrato de trabalho ou seu abandono, prática de contravenção ou crime culposo, prática de falta leve ou média etc. Nesses exemplos, hauridos do ensinamento de Júlio Fabbrini Mirabete, desde que revelem a falta de autodisciplina e de senso de responsabilidade do condenado, será de rigor a regressão.

- Não pagar, podendo, a multa cumulativamente imposta. A nosso ver, com o advento da Lei n. 9.268/96, que proíbe a conversão da multa em pena privativa de liberdade, operou-se a revogação tácita dessa causa de regressão. Seria ilógico que o não-pagamento da multa continuasse a figurar como causa de regressão se a própria lei veda a conversão da multa em pena privativa de liberdade.

REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO (RDD)

ORIGEM HISTÓRICA

O Regime Disciplinar Diferenciado surgiu em maio de 2001, veiculado pela Resolução n. 26 da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, para conter o poder de organização das facções

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criminosas, através do isolamento dos seus líderes, por até 360 (trezentos e sessenta) dias. De discutível constitucionalidade, porque o assunto, conquanto afeto ao Direito Penitenciário, de competência dos Estados-membros (art. 24, I, da CF), acabou sendo criado por uma resolução, mero ato administrativo, ao invés de lei estadual emanada da Assembléia Legislativa, violando, decerto, o princípio da legalidade. A questão da inconstitucionalidade acabou sendo superada com a regulamentação da matéria pela Lei Federal n. 10.792, de 1º de dezembro de 2003, que alterou a Lei de Execução Penal, fixando as normas gerais do sobredito regime, em cumprimento ao disposto no § 1º do art. 24 da Constituição Federal, delegando-se aos Estados-membros e Distrito Federal a edição de normas especiais para: “I – estabelecer o sistema de rodízio entre os agentes penitenciários que entrem em contato direto com os presos provisórios e condenados; II – assegurar o sigilo sobre a identidade e demais dados pessoais dos agentes penitenciários lotados nos estabelecimentos penais de segurança máxima; III – restringir o acesso dos presos provisórios e condenados aos meios de comunicação de informação; IV – disciplinar o cadastramento e agendamento prévio das entrevistas dos presos provisórios ou condenados com seus advogados, regularmente constituídos nos autos da ação penal ou processo de execução criminal, conforme o caso; V – elaborar programa de atendimento diferenciado aos presos provisórios e condenados, visando a sua reintegração ao regime comum e recompensando-lhes o bom comportamento durante o período de sanção disciplinar”. CARACTERÍSTICAS

As características desse regime são: I. o isolamento, a suspensão e a restrição de direitos. Anote-se que apenas

no regime disciplinar diferenciado o isolamento, a suspensão e a restrição de direitos podem exceder a 30 (trinta) dias (art. 58 da LEP);

II. recolhimento em cela individual; III. visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração

de duas horas; IV. saída da cela por duas horas diárias para banho de sol. A duração máxima de permanência no regime disciplinar diferenciado é de 360 dias, mas não pode exceder a 1/6 (um sexto) da pena aplicada. É cabível a prorrogação se o condenado praticar nova falta grave da mesma espécie, até o limite de 1/6 (um sexto) da pena aplicada.

O REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO PREVENTIVO

O art. 60, 2ª parte, da LEP autoriza o Juiz da execução penal a incluir o preso no regime disciplinar diferenciado, de forma preventiva, no interesse da disciplina e da averiguação do fato, pelo prazo máximo de 10

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(dez) dias, sem possibilidade de prorrogação ou de nova decretação pelo mesmo fundamento. Escoado o decênio, como esclarece Renato Flávio Marcão, ou se determina a inclusão no regime disciplinar diferenciado, conforme regulado no art. 52, ou se restitui ao preso sua normal condição de encarcerado. A decretação do Regime Disciplinar Diferenciado Preventivo depende de “fumus boni iuris” e “periculum in mora” acerca dos fatos autorizadores da sua inclusão definitiva. O tempo de isolamento ou inclusão preventiva no regime disciplinar diferenciado será computado no período de cumprimento do regime disciplinar definitivo (art. 60, parágrafo único, da LEP). Anote-se que o isolamento preventivo do faltoso pelo prazo de 10 (dez) dias pode ser decretado por autoridade administrativa (art. 60, 1ª parte, da LEP). Mas esse isolamento, embora seja uma sanção disciplinar, não caracteriza o regime disciplinar preventivo. Trata-se da sanção disciplinar prevista no art. 53, IV, da LEP. Acima de 10 (dez) dias, o isolamento só pode ser decretado pelo Juiz da execução, mas não pode exceder a 30 (trinta) dias, salvo quando se tratar de regime disciplinar diferenciado, conforme preceitua o art. 58 da LEP.

FATOS AUTORIZADORES DO INGRESSO NO RDD

São três os fatos autorizadores do ingresso no sobredito regime:

I. Prática de fato previsto como crime doloso, que ocasione subversão da ordem ou disciplinas internas. Não basta, como se vê, a prática do crime doloso, sendo ainda necessária a subversão, isto é, o tumulto da ordem (organização) ou disciplina (obediência às normas e aos superiores) do presídio. Não é preciso o trânsito em julgado da condenação para o ingresso no RDD, sendo suficiente a prática do crime. Inegável o caráter cautelar da medida extrema, cuja frustração seria fatal se a lei tivesse exigido o trânsito em julgado.

II. Apresentação de alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade.

III. Fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando. Vale ressaltar a ausência de lei definindo o tipo penal de organização criminosa, restringindo-se, portanto, a aplicação do aludido preceito ao crime de quadrilha ou bando, previsto no art. 288 do Código Penal e art. 8º da Lei n. 8.072/90.

Nas três hipóteses, a LEP autoriza a inclusão no Regime Disciplinar Diferenciado tanto para os presos provisórios quanto para os

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presos definitivos, mas apenas na hipótese referida no item II, acima mencionada, a lei permite o abrigo de presos estrangeiros (§1º do art. 52). Portanto, as outras duas hipóteses são apenas para presos brasileiros, pois normas restritivas de direitos não admitem analogia. Saliente-se, ainda, que, malgrado a omissão da lei, o ingresso no regime disciplinar diferenciado é tão somente para quem se encontra no regime fechado, ou cujo prognóstico seja de cumprimento da pena nesse regime, quando se tratar de preso provisório, sendo incoerente, sem a prévia regressão, incluir no regime excepcional os presos que se encontram no semi-aberto ou aberto.

NATUREZA JURÍDICA

Batizado doutrinariamente de regime “fechadíssimo”, na verdade, não se trata de um novo regime penitenciário, mas de uma forma de se cumprir o regime fechado. Reveste-se da natureza jurídica de sanção disciplinar, conforme se depreende da análise do art. 53 da LEP. Faz parte do direito penitenciário, e não propriamente do direito penal, razão pela qual, conquanto mais severa, a nova lei tem aplicação imediata, abrangendo também fatos anteriores à sua vigência.

PROCEDIMENTO

O pedido de inclusão no regime disciplinar diferenciado só pode ser formulado pelo diretor do presídio ou outra autoridade administrativa, como o Secretário da Segurança Pública e o Secretário da Administração Penitenciária, mediante requerimento fundamentado (§ 1º do art. 54 da LEP). O Ministério Público não tem legitimidade para postular a inclusão no regime disciplinar diferenciado, malgrado opiniões contrárias, que o enquadram como autoridade administrativa. O pedido é dirigido ao Juiz da Execução, que dará vista dos autos ao Ministério Público e à defesa, sucessivamente, no prazo máximo de 15 (quinze) dias para cada um. Em seguida, o Juiz decidirá, podendo a sua decisão ser impugnada por agravo de execução.

DETRAÇÃO

Dispõe o art. 42 do CP: “Computam-se, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo anterior”. O dispositivo transcrito cuida da detração penal. De acordo com esse instituto, computa-se na pena privativa de liberdade e na medida de

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segurança o período de prisão provisória, o de prisão administrativa e o de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico. Detração penal é, pois, o abatimento na pena ou medida de segurança do tempo de prisão ou internação já cumprido pelo agente. A expressão “prisão provisória” compreende toda e qualquer prisão decretada pelo juiz criminal, que antecede o trânsito em julgado de uma sentença condenatória. Abrange a prisão em flagrante (arts. 301 a 310 do CPP), a prisão temporária (Lei n. 7.960/89), a prisão preventiva (CPP, arts. 311 a 316), a prisão decorrente de pronúncia (CPP, art. 408) e a prisão determinada por sentença condenatória recorrível (CPP, art. 393, I). Suponha-se que o agente, em razão de flagrante, permaneça preso por dois meses. Vindo a ser condenado a um ano e dois meses de reclusão, terá de cumprir apenas um ano, pois os dois meses do flagrante são computados como pena cumprida. Por outro lado, a expressão “prisão administrativa”, ensina José Celso de Mello Filho, “constitui medida coercitiva destinada a pressionar o responsável a cumprir dever jurídico que lhe incumbe”. A prisão civil ou administrativa não se reveste de caráter penal. Sua finalidade é compelir as pessoas a cumprir determinada obrigação. Se a obrigação for de direito privado, alguns preferem usar a expressão “prisão civil” (p. ex.: alimentos e depositário infiel). Se a obrigação for de direito público, tal como a prisão decretada para compelir as pessoas que se tenham apropriado de bens públicos a reparar o dano, costuma-se falar em prisão administrativa propriamente dita. Perante o nosso Código Penal, não há diferença entre prisão administrativa e prisão civil. A expressão “prisão administrativa”, utilizada no art. 42 do CP, deve compreender toda prisão decretada por juiz extrapenal, com a finalidade de compelir a pessoa a cumprir dever jurídico que lhe incumbe. A Magna Carta proíbe a prisão civil por dívida, salvo a do depositário infiel e a do devedor de alimentos (CF, art. 5º, LXVII). Não há porém proibição de prisão civil sem dívida, de modo que a lei pode perfeitamente estipulá-la, sem qualquer afronta à Constituição Federal. Cumpre lembrar que apenas o magistrado pode decretar a prisão de alguém (CF, art. 5º, LXI), encontrando-se revogado o art. 319 do CPP e outros dispositivos legais que permitiam a prisão decretada por autoridade administrativa. De outra parte, o instituto da detração penal não faz alusão à prisão disciplinar, que é decretada por autoridades administrativas para obter obediência à ordem que deve reinar nos serviços públicos. A prisão disciplinar é proibida, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei (CF, art. 5º, LXI). Nesses dois casos, o emprego da analogia in bonam partempossibilita a detração na hipótese de o agente vir a ser condenado criminalmente, pelo mesmo fato, a pena privativa de liberdade.

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Se, por outro lado, o réu vier a ser absolvido, o tempo em que esteve preso provisoriamente deverá ser computado na pena que lhe foi imposta em razão da prática de crime cometido antes da prisão. Tratando-se de crime perpetrado após ou durante a prisão, torna-se inadmissível a detração, sob pena de se instituir uma “conta corrente” em favor do réu. Este, animado pelo crédito adquirido, certamente não hesitaria em delinqüir novamente. Cumpre mencionar a existência de superadas decisões que só admitiam a detração na hipótese de conexão ou continência entre o crime de que o réu veio a ser absolvido e o crime pelo qual foi condenado. Por outro lado, no tocante às penas restritivas de direitos, no caso de conversão em prisão, desconta-se o tempo cumprido, respeitado o saldo mínimo de trinta dias de detenção ou reclusão, operando-se, portanto, a detração penal (CP, art. 44, § 4º). Quanto ao réu condenado à pena de multa, a lei silencia acerca da detração do tempo de prisão provisória. Esse tempo de prisão, a nosso ver, deve ser computado como dia-multa, aplicando-se por analogia in bonam partem a detração penal prevista no art. 42 do CP. Um critério razoável, à míngua de texto legal, seria abater um dia- multa para cada dia de prisão. Finalmente, a decisão sobre a detração é da competência do juízo da execução (art. 66, III, c, da LEP). A formulação do pedido diretamente no tribunal suprime um grau de jurisdição.

SUPERVENIÊNCIA DE DOENÇA MENTAL

O condenado a quem sobrevém doença mental deve ser recolhido a hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, a outro estabelecimento adequado (CP, art. 41). O tempo de internação é computado na pena privativa de liberdade (CP, art. 42). Ressalte-se, porém, que essa internação não pode exceder ao tempo da pena privativa de liberdade fixada na sentença.

REGIME ESPECIAL

“As mulheres cumprem pena em estabelecimento próprio, observando-se os deveres e direitos inerentes à sua condição pessoal, bem como, no que couber, o disposto neste Capítulo” (CP, art. 37). A CF assegura à presidiária o direito de permanecer com seu filho durante a amamentação (art. 5º, L).

DIREITOS DOS PRESOS

Dispõe o art. 38 do CP: “O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral”.

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Dentre os direitos do preso destaca-se o direito ao trabalho, que será sempre remunerado, sendo-lhe garantidos os benefícios da previdência social (CP, art. 39). O trabalho do preso deve ter a remuneração de pelo menos três quartos do salário mínimo. O produto da remuneração pelo trabalho deve ser aplicado para indenizar os danos causados pelo crime (desde que judicialmente fixados), na assistência da família, às pequenas despesas pessoais e no ressarcimento ao Estado das despesas realizadas com a manutenção do condenado (§ 1º do art. 29 da LEP). Mas, como observa Heleno Cláudio Fragoso, é difícil imaginar o que sobrará. Outros direitos dos presos estão arrolados no art. 41 da Lei de Execução Penal. É sempre bom lembrar que a Magna Carta assegura, no art. 1º, III, o direito à dignidade da pessoa humana. No Brasil, a superpopulação dos presídios constitui flagrante desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. Ressalte-se, por último, que não pode exercer os direitos políticos a pessoa que tem condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem os seus efeitos (CF, art. 15, III).

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QUESTÕES

1. O que é e quais são as penas privativas de liberdade? 2. O que é e quais são os regimes penitenciários? 3. Quando o Juiz da Execução pode alterar o regime da pena? 4. Em que regime é cumprida a pena de reclusão? 5. Em que regime é cumprida a pena de detenção? 6. Quais as características do regime fechado, semi-aberto e aberto?7. Em que hipótese é admitido o albergue domiciliar? 8. O que é remição? É cabível em quais regimes? 9. Qual a conseqüência da punição por falta grave em relação à remição?10. Se o preso não trabalha por falta de condições especiais da penitenciária,

é cabível a remição? 11. O que é sistema progressivo? 12. Quais os requisitos para a progressão de regime? 13. Todos os delitos admitem a progressão de regime? 14. O sentenciado pela Justiça Federal pode obter a progressão de regimes

na Justiça Estadual? 15. O que é execução provisória e qual o seu requisito? 16. Qual a diferença entre coisa julgada e caso julgado? 17. O que é regressão de regime? 18. Quais as hipóteses de regressão? 19. O que é detração penal? 20. Quais os tipos de prisão que admitem a detração penal? 21. Se, o réu preso provisoriamente, vier a ser absolvido, pode pleitear a

detração penal em relação a outros delitos de que esteja sendo acusado? 22. A pena restritiva de direito e a pena de multa admitem a detração penal? 23. Qual a origem histórica do regime disciplinar diferenciado? 24. Quais as características do regime disciplinar diferenciado? 25. Qual a diferença entre o isolamento preventivo do art. 60, 1ª parte da

LEP e o regime disciplinar diferenciado preventivo? 26. Quais os fatos autorizadores do ingresso no regime disciplinar

diferenciado?27. Qual o procedimento do regime disciplinar diferenciado? 28. O tempo de permanência no regime disciplinar diferenciado é computado

para efeito de progressão de regimes?

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HOMICÍDIO QUALIFICADO

O § 2º do art.121 do CP prevê o homicídio qualificado, cuja pena varia entre 12 e 30 anos de reclusão. Trata-se de qualificadora, porque tem pena autônoma, desvinculada do tipo fundamental A maioria das circunstâncias que qualificam o homicídio figuram como agravantes genéricas dos demais delitos (CP, art. 61, II, a, b, ce d). Mas, evidentemente, no caso do homicídio essas circunstâncias, erigidas à condição de qualificadoras, não poderão funcionar como agravantes genéricas, por força do princípio do non bis in idem. Advirta-se, desde já, que a premeditação e a relação de parentesco, por si sós, não qualificam o homicídio. No tocante à premeditação, no expressivo dizer de Heleno Cláudio Fragoso, “nem sempre ela revela maior frieza ou perversidade, podendo, ao contrário, indicar hesitação ou resistência em relação à ação criminosa. Premeditadamente pode ser cometido um homicídio por motivo de relevante valor social ou moral, e pode também o crime ser praticado ex improviso, por motivo fútil, revelando excepcional insensibilidade moral por parte do agente”. O juiz poderá, porém, considerá-la na fixação da pena-base, nos termos do art. 59 do CP. No tocante à relação de parentesco, limita-se o Código Penal a considerar agravante genérica a prática de crime contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge (art. 61, II, e). Específicas denominações recebe o homicídio praticado contra parente próximo: parricídio (matar o pai), matricídio (matar a mãe), uxoricídio (matar a esposa), mariticídio (matar o marido), filicídio ou gnaticídio (matar o filho) e fratricídio (matar o irmão). As circunstâncias qualificativas do homicídio estão sistematizadas do seguinte modo: a) as que resultam dos motivos (art. 121, § 2º, I e II); b) as que resultam dos meios (art. 121, § 2º, III); c) as que resultam da forma (art. 121, § 2º, IV); d) as que resultam da conexão (art. 121, § 2º, V) . O art. 121, § 2º, I e II, do Código Penal cuida das qualificado-ras em razão dos motivos determinantes do crime. No inciso I está o homicídio cometido mediante paga e promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe. No inciso II está o cometido por motivo fútil. A paga e a promessa de recompensa integram o denominado homicídio mercenário. Na paga o recebimento é prévio, v. g., entrega de dinheiro para que o pistoleiro perpetre o crime. O homicídio cometido mediante paga é também denominado assassínio. Na promessa de recompensa o recebimento da vantagem se verifica após a prática do delito. Há uma expectativa de recompensa, cuja efetivação está condicionada à realização do homicídio. Não vindo, porém, o agente a recebê-la, persiste, mesmo assim, a qualificadora. Divergem radicalmente os autores quanto à natureza econômica ou não da paga e promessa de recompensa. Para uns, acertadamente, elas têm de ter conotação econômica, pois a razão da

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qualificadora é a cobiça, o móvel de lucro. É o ensinamento, dentre outros, de Nélson Hungria, para quem a paga ou recompensa prometida tanto pode consistir em dinheiro, como em qualquer vantagem econômica (aquisição de direito patrimonial, perdão de dívida, promoção em emprego etc.). Para outros, porém, não há necessidade da conotação econômica, configurando-se, por exemplo, a qualificadora na promessa de futuro casamento com o autor do delito. Observe-se, ainda, que o homicídio mercenário é crime bilateral, exigindo o concurso de duas pessoas: o mandante e o executor. Indaga-se se o homicídio seria ou não qualificado para o mandante, respondendo uns afirmativamente, argumentando que a paga e promessa de recompensa são elementares do delito, comunicando-se ao partícipe, nos termos do art. 30 do CP, enquanto outros respondem negativamente, asseverando que o fundamento da qualificadora é punir a cobiça, o móvel de lucro, na maioria das vezes ausente naquele que manda matar. Essa última orientação é mais certeira, pois, como salienta Heleno Cláudio Fragoso, “não se exclui que mediante a ação de um sicário pratique alguém um homicídio por motivo de relevante valor social ou moral. A qualificação do homicídio mercenário justifica-se pela ausência de razões pessoais por parte do executor (indício de insensibilidade moral) e pelo motivo torpe que o leva ao delito. O mandante busca a impunidade e a segurança, servindo-se de um terceiro”. Se, por exemplo, o pai pagar um pistoleiro para matar o estuprador da filha, a solução, ao nosso ver, será a seguinte: o pai (mandante) responderá por homicídio privilegiado pelo relevante valor moral; o pistoleiro (executor), por homicídio mercenário (CP, art. 121, § 2º, II). Anote-se que a paga e a promessa de recompensa não constituem elementares do delito e, sim, circunstâncias qualificadoras. Seria sumamente injusto imputar a qualificadora ao mandante. Sobremais, trata-se de circunstância subjetiva (motivo de paga ou promessa de recompensa), sendo incomunicável ao partícipe, nos termos do art. 30 do CP. A lei qualifica o homicídio pela paga, promessa de recompensa ou outro motivo torpe. Motivo torpe é o reprovável pela moralidade média. É o motivo repugnante, abjeto. Por exemplo, o filho mata o pai para receber a herança ou o traficante mata o viciado que deixa de efetuar o pagamento da droga adquirida. A vingança, cumpre esclarecer, nem sempre se revela como motivo torpe, tudo dependerá do móvel que a antecedeu. Suponha-se que o pai mate o estuprador da filha, conquanto vingativo, o homicídio é privilegiado pelo relevante valor moral. Por outro lado, o motivo fútil também qualifica o homicídio (art. 121, § 2º, II). Motivo fútil é o insignificante, de somenos importância que, em regra, tomando-se por base o homo medius, não leva ao crime. É aferido pela gritante desproporção entre o motivo e o crime, considerando-se a sensibilidade moral do homem médio e não a opinião subjetiva do réu. Esclareça-se, porém, que na ausência de motivo, por ser desconhecido o motivo, exclui-se a qualificadora.

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No tocante aos meios empregados para a prática do crime, o art. 121, § 2º, III, do CP, considera qualificado o homicídio quando cometido com emprego de meio insidioso, meio cruel ou meio de que possa resultar perigo comum. Meio é o instrumento utilizado pelo agente para a prática criminosa. O homicídio é qualificado pelo emprego de: a) meio insidioso; b)meio cruel; c) meio de que possa resultar perigo comum. Meio insidioso, consoante se lê na exposição de motivos da Parte Especial do CP, é o dissimulado na sua eficiência maléfica. No meio insidioso há, pois, dissimulação. O meio é empregado sub-repticiamente, sem que a vítima dele tenha conhecimento, como, por exemplo, o veneno. O homicídio cometido mediante emprego de veneno denomina-se venefício ou envenenamento. Veneno é qualquer substância mineral, vegetal ou animal, capaz de provocar dano ao organismo. Sendo assim, o açúcar propinado ao diabético em dose profunda é considerado veneno. É preciso, porém, ressaltar que o envenenamento só constitui meio insidioso quando a vítima está insciente do fato. É necessário ainda que a perícia toxicológica constate a presença do envenenamento. Atente-se, por fim, que, além do veneno, qualquer outro meio insidioso qualifica o homicídio, v. g., sabotagem do motor de um carro. Meio cruel é o que causa sofrimento desnecessário à vítima. No dizer da exposição de motivos, é o que aumenta inutilmente o sofrimento da vítima, ou revela uma brutalidade fora do comum ou em contraste com o mais elementar sentimento de piedade. Mas, como dizia Frederico Marques: “os atos que podem traduzir a crueldade somente são tais, como é óbvio, enquanto a pessoa está com vida. Não há, pois, perversidade brutal ou crueldade naquele que, depois de abater e matar a vítima, lhe mutila o cadáver ou lhe esquarteja o corpo para melhor fazer desaparecer os rastros do crime”. O Código traz três exemplos de meios cruéis: tortura, fogo e asfixia. Tortura é a inflição de sofrimento desnecessário ou fora do comum. Pode ser física, v. g., matar aos poucos, para que a vítima sinta mais as dores, e moral, por exemplo, matar um cardíaco torturando-o psicologicamente. Só há tortura quando o agente faz com que a vítima sofra inutilmente. Assim, a reiteração de facadas, desde que necessária para causar a morte, em princípio, não constitui tortura. Cumpre não confundir o homicídio qualificado pela tortura com o crime de tortura qualificado pela morte. Com efeito, no delito de tortura, previsto no art.1º,§ 3º, da lei nº 9.455/97, o agente não age com dolo de matar, de modo que a morte é culposa. Assim, a tortura qualificada pela morte é um crime preterdoloso, tendo em vista que há dolo em relação à tortura e culpa na morte. Se, após praticar o crime de tortura, o agente mata dolosamente a vítima, ter-se-á apenas o delito de homicídio, por força do princípio da consunção. Não

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concordamos com a opinião de Damásio de Jesus , esposada por Cezar Roberto Bitencourt, no sentido de que se durante a tortura o agente resolve matar a vítima haverá dois crimes em concurso material: tortura (art.1º da lei nº 9.455/97) e homicídio (art.121 do CP), pois esse posicionamento desconsidera os estudos sobre o princípio da consunção, notadamente no aspecto da progressão criminosa.

Por outro lado, o fogo e a asfixia também constituem meios cruéis, qualificando o homicídio. No tocante ao fogo, Magalhães Noronha cita o exemplo dos playboys que o atearam em um pobre homem que se achava dormindo num banco de jardim público. Asfixia, dizia Costa e Silva, é o efeito da falta de ar e da suspensão, mais ou menos completa, da respiração. Esses efeitos resultam em verdade da privação, total ou parcial, rápida ou lenta, do oxigênio, elemento indispensável à manutenção da vida. A asfixia pode ser mecânica e tóxica. Ambas qualificam o homicídio por se revestirem de extrema crueldade. Na asfixia a morte é causada pela anoxemia (falta de oxigênio no sangue). A asfixia mecânica pode ocorrer mediante: enforcamento, estrangulamento, esganadura, sufocação, soterramento e afogamento. No enforcamento há a constrição do pescoço feita por laço acionado pelo próprio peso da vítima; no estrangulamento há a constrição do pescoço feita por laço acionado pela força muscular da própria vítima ou de estranhos; na esganadura a constrição do pescoço é feita com as mãos do agente; na sufocação há impedimento respiratório devido à oclusão dos orifícios respiratórios (narinas e boca) ou pela compressão do tórax; no soterramento, a asfixia se realiza pela permanência do indivíduo num meio sólido ou semi-sólido, onde a entrada de ar está impedida; por fim, no afogamento há a submersão da vítima num meio líquido, que penetra nas vias respiratórias. A asfixia tóxica se dá mediante confinamento. O agente coloca ou mantém a vítima em local onde não penetra ar, v. g., numa garagem fechada com o carro ligado. O homicídio é ainda qualificado quando do meio empregado possa resultar perigo comum. O fogo e o explosivo foram elencados no inciso III do § 2º do art. 121 do Código Penal como exemplos legais de meios capazes de produzir perigo comum. Perigo comum é o que atinge um número indeterminado de pessoas. Se o meio empregado atingir a vítima e ainda criar uma situação de perigo a um número indeterminado de pessoas, o agente responderá por homicídio qualificado em concurso formal com o crime de perigo comum (incêndio — art. 250 — explosão — art. 251 — inundação — art. 254 — desabamento — art. 256 etc.). Há quem sustente a tese da absorção do delito de perigo comum, argumentando-se que já funciona como qualificadora de homicídio, invocando-se, destarte, o princípio da subsidiariedade implícita. A

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nosso ver, não há falar-se em absorção, porquanto a razão da qualificadora não é o perigo comum, mas o meio de que possa resultar esse perigo. A escolha de um meio desse porte revela a periculosidade do agente, justificando-se a qualificadora, ainda que no plano prático não tenha ocorrido o perigo comum. O que importa é a potencialidade do meio para causar este tipo de perigo. Na hipótese de efetivamente se concretizar o perigo comum haverá concurso formal. Não há nenhum “bis in idem “ nesse ponto de vista. Com efeito, a escolha do meio é a razão da qualificadora, ao passo que a ocorrência do perigo concreto comum é um novo fato, cujo sujeito passivo é a coletividade. São dois fatos distintos, a escolha do meio e o perigo concreto comum. A qualificadora do homicídio incide independentemente de ocorrer o perigo comum. Se este sobrevier, haverá o concurso formal entre homicídio qualificado e o crime de incêndio ou explosão ou inundação ou desabamento etc. Por sua vez, o inciso IV do art. 121, § 2º, do Código Penal estabelece que o homicídio é qualificado quando cometido à traição, de emboscada, dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido. Referido dispositivo qualifica o delito em virtude do modo de execução (forma pela qual se manifesta a conduta). A traição, emboscada e dissimulação compõem a fórmula casuística empregada pelo legislador para exemplificar os modos de execução que dificultam ou tornam impossível a defesa da vítima. Há traição quando o agente quebra a confiança que a vítima lhe depositava. É a perfídia, a deslealdade. É preciso, porém, que a vítima não perceba o ataque. Assim, não há traição se a vítima viu o agente com a arma escondida. Referentemente à surpresa, à semelhança da traição, constitui um ataque inesperado, qualificando o homicídio à medida que dificulta ou torna impossível a defesa do ofendido. Íntima é a ligação entre a traição e a surpresa. Num e noutro caso a vítima é atingida inesperadamente, com a diferença de que, na traição, ela confiava no agente, enquanto na surpresa não havia essa relação de confiança. Haverá surpresa se o agente matar pelas costas o seu desafeto e traição se matar dessa forma um parente ou amigo. Igualmente, o homicídio é qualificado quando cometido mediante emboscada ou dissimulação. Emboscada é o ato premeditado de aguardar escondido a presença da vítima para atacá-la de surpresa. Há, pois, simultaneamente, premeditação e surpresa. Entre os indígenas é conhecida como tocaia. Dissimulação é a ocultação do intuito criminoso, v. g., disfarce colocado pelo agente para aproximar-se da vítima. Por fim, o homicídio é ainda qualificado quando cometido para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime (art. 121, § 2º, V). Como se percebe, o fundamento dessa qualificadora é a conexão teleológica ou conseqüencial entre o homicídio e outro delito. Há

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conexão teleológica quando o homicídio é cometido para assegurar a execução de outro crime. Há conexão conseqüencial quando cometido para assegurar a ocultação, a impunidade ou a vantagem de outro crime. Nessas duas hipóteses, observa Heleno Cláudio Fragoso, “é irrelevante que o crime-fim seja praticado. Basta que o agente tenha praticado o homicídio com o fim de assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou o proveito de outro crime, qualquer que seja. Se o crime-fim foi cometido, haverá concurso material, aplicando-se cumulativamente as penas (art. 69, CP). É irrelevante, igualmente, que o homicídio seja praticado antes ou depois deste outro crime, bem como a desistência do agente em relação a este”. Cumpre não esquecer que a qualificadora da conexão só tem incidência quando o homicídio é cometido para assegurar a execução, ocultação, impunidade e vantagem de outro crime. Se o homicídio visa assegurar a prática de contravenção penal exclui-se a incidência da qualificadora em apreço, podendo, porém, nesse caso, configurar-se a qualificadora do motivo torpe ou fútil. Afasta-se, também, a qualificadora se o crime-fim é putativo ou impossível. Por outro lado, na expressiva lição de Euclides Custódio da Silveira, “o homicídio pode ser cometido antes, logo após ou muito tempo depois de ‘outro crime’, sendo exemplo da primeira hipótese o de quem, ao preparar-se para praticá-lo, mata um policial que o tem sob as vistas e poderá tornar-se uma perigosa testemunha”. Vejamos alguns exemplos de homicídio qualificado pela conexão:1º. Suponha-se que o agente provoque a morte do marido com a intenção de

assegurar a execução do estupro da esposa. Efetivando ou não a conjunção carnal, responderá por homicídio qualificado pela conexão (art. 121, § 2º, V, do CP), em concurso material com o crime sexual do art. 213 do Código Penal, consumado ou tentado. Imagine-se, porém, que tenha sido preso em flagrante pelos vizinhos antes de iniciar a execução do estupro. Nesse caso, por ter sido cometido com o fim de assegurar a execução do estupro, o homicídio será igualmente qualificado pela conexão teleológica. Mas, como a lei penal pátria não pune os atos preparatórios, desnecessário dizer que o estupro não se caracterizou nem mesmo na modalidade tentada.

2º. Suponha-se que o agente falsifique um documento público e, depois, para ocultar o fato, mate a única testemunha. Responderá por homicídio qualificado pela conexão conseqüencial em concurso material com o crime de falso (art. 297 do CP).

3º. Suponha-se que o agente, após danificar dolosamente um objeto, mate a testemunha para assegurar a sua impunidade. Note-se que ele matou para assegurar a sua impunidade e não a ocultação do fato, pois a danificação permanecerá evidente. Responderá, nesse caso, por homicídio qualificado pela conexão conseqüencial em concurso material com o crime de dano (art. 163).

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4º. Suponha-se, por fim, que o ladrão mate o seu comparsa do furto para assegurar a exclusividade da vantagem obtida com o delito patrimonial. Responderá por homicídio qualificado pela conexão conseqüencial em concurso material com o crime de furto (art. 155).

A expressão vantagem do crime compreende o produto, o preço e o proveito. “Produto são as coisas adquiridas diretamente com o crime (ex.: a res furtiva), ou mediante especificação (ex.: o ouro resultante da fusão da jóia furtada), ou obtidas mediante alienação (ex.: dinheiro ganho com a venda da coisa furtada), ou criadas pelo crime (ex.: mercadorias contrafeitas). Preço são os valores recebidos ou prometidos para cometer o crime. Proveito, finalmente, é toda vantagem, patrimonial ou não, derivada do crime e diversa do produto e do preço”. Cumpre advertir que a lei não prevê como qualificadora a conexão ocasional, ocorrida quando o agente comete um crime por ocasião da prática de outro (p. ex.: danifica o relógio da vítima do homicídio). Mas, nesse caso, haverá, igualmente, concurso material entre o homicídio simples ou qualificado por outra circunstância, exceto a conexão, e o crime de dano. Finalmente, a qualificadora da conexão incide ainda que se extinga a punibilidade do outro crime, conforme preceitua o art.108, 2ª parte, do CP. Anote-se ainda que no homicídio qualificado pela conexão há um elemento subjetivo especial do tipo, consistente no especial fim de agir. O dolo é específico, ao passo que nas demais modalidades o dolo é genérico.

INTERPRETAÇÃO ANALÓGICA

O legislador, sabendo de antemão que não poderia prever todas as hipóteses que viriam a ocorrer na vida prática, para não mostrar-se dispersivo, expressou-se no art. 121, § 2º,I, III e IV, do Código Penal através de textos genéricos, porém, precisos, de modo que com o simples emprego da denominada interpretação analógica (ou intra legem) se consiga encontrar a real vontade da lei. Na interpretação analógica o legislador abarca numa fórmula genérica os casos semelhantes aos mencionados na fórmula casuística. O art.121,§ 2º, I , do Código Penal elenca a fórmula casuística consubstanciada na paga ou promessa de recompensa e em seguida menciona a fórmula genérica através da expressão “ou por outro motivo torpe” . O art. 121, § 2º, III, do Código Penal discrimina a fórmula casuística ou exemplificativa (veneno, fogo, explosivo, asfixia e tortura) e em seguida menciona a fórmula genérica (ou outro meio insidioso, cruel ou de que possa resultar perigo comum). Os exemplos não previstos pela fórmula casuística são disciplinados pela fórmula genérica, desde que constituam meio insidioso, cruel ou de que possa resultar perigo comum.

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O veneno é exemplo legal de meio insidioso; o fogo, asfixia e tortura, de meios cruéis; e o fogo e asfixia, de meios de que possam resultar perigo comum. Não passam, porém, de meros exemplos, pois a fórmula genérica compreende todos os outros casos semelhantes aos mencionados na fórmula casuística, como, por exemplo, a armadilha (meio insidioso). No art. 121, § 2º, IV, do Código Penal, a fórmula casuística é constituída pela traição, emboscada e dissimulação, e a fórmula genérica, pela expressão “qualquer outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido”. Traição, emboscada e dissimulação são meros exemplos legais de recursos que dificultam ou tornam impossível a defesa do ofendido, pois outros meios semelhantes, v.g., a surpresa, também qualificam o homicídio. Cumpre não confundir analogia com interpretação analógica. A analogia consiste em aplicar a uma hipótese, não prevista em lei, a norma regulamentadora de um caso semelhante. O ponto não focalizado na lei é preenchido pela norma que regula fato semelhante. O problema é de integração da norma, pois como edita o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil: “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”. Na interpretação analógica, o caso está abrangido pelo espírito da lei exteriorizado na fórmula genérica. A vontade da lei é focalizar os fatos que se enquadram na fórmula genérica. Em síntese, na analogia o fato não está previsto em lei, aplicando-se, por isso, disposição relativa a caso semelhante, enquanto na interpretação analógica a hipótese está prevista na fórmula genérica da lei. A interpretação analógica é perfeitamente admitida pelo direito penal, pois o intérprete permanece dentro dos limites do comando legal. Em contrapartida, o recurso à analogia não é admitido nas leis penais, salvo quando in bonam partem e, mesmo assim, desde que não se trate de normas penais excepcionais.

A APLICAÇÃO DA PENA NA HIPÓTESE DE MAIS DE UMA QUALIFICADORA

A pena é fixada em três fases: a) pena - base; b) agravantes e atenuantes; c) causas de aumento e causas de diminuição de pena. A qualificadora, que é o tipo derivado com pena própria, incide na primeira fase. O juiz, ao fixar a pena-base, já parte da qualificadora. Em havendo mais de uma qualificadora e tendo o júri reconhecido todas elas, o juiz, na fixação da pena, tomará apenas uma como qualificadora, para a fixação da pena-base, ao passo que as outras ele as utilizará como agravantes genéricas, na segunda fase da aplicação da pena.

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HOMICÍDIO HEDIONDO

A lei nº 8.072/90, modificada pela lei nº 8.930/94, incluiu entre os crimes hediondos o homicídio qualificado e o homicídio praticado em ação típica de grupo de extermínio. Quanto ao homicídio qualificado - privilegiado, a nosso ver, não se trata de crime hediondo, tendo em vista que o art.1º da retrocitada lei nº 8.072/90 não faz menção a essa figura híbrida, sendo, pois, vedada a analogia “ in malam partem “ . Em relação ao homicídio praticado em ação típica de grupo de extermínio, ainda que executado por um só agente, o que sensibilizou o legislador a incluí-lo no rol dos crimes hediondos foi a onda de violência que assolou o país na década de 1990, destacando-se as chacinas de Vigário Geral, Candelária e Carandiru . A redação do preceito, porém, não deixa de ser estranha à medida que prevê a execução por uma só pessoa de uma ação típica de grupo. Deveria limitar-se a dizer: “ação típica de extermínio “ . Aliás, aludido homicídio, em regra, já é qualificado pelo motivo torpe.No entanto, perfeitamente admissível o homicídio privilegiado cometido em atividade de grupo de extermínio. Suponha-se, por exemplo, que alguém matasse o bando de traficantes que apavorava a comunidade local. Malgrado a ação de extermínio, o homicídio seria privilegiado pelo relevante valor social, mantendo, porém, o caráter hediondo, pois o art. 1º da Lei n. 8.072/90 inclui em seu elenco o homicídio do art. 121 do Código Penal, e não apenas o caput do citado art. 121, de modo que o homicídio privilegiado, cometido em atividade típica de grupo de extermínio, também será hediondo. Extermínio é a chacina, a destruição com mortandade. É a matança generalizada, isto é, que atinge a vítima em caráter impessoal, simplesmente por ser membro de um grupo ou ostentar determinada condição social. Por exemplo, matança de crianças miseráveis, de prostitutas, de presidiários, de mendigos etc. A pluralidade de vítimas não é fundamental ao reconhecimento da qualificadora. Tem-se por qualificado o delito ainda que se mate uma só pessoa, desde que atingida em caráter impessoal, isto é, simplesmente por ser membro de um grupo. O fenômeno do grupo de extermínio constitui um ato de terrorismo, executado, via de regra, por pessoas fanáticas de determinadas ideologias, que instigam desavenças políticas, econômicas, religiosas e o ódio entre as classes sociais. Todavia, a atividade de extermínio também pode caracterizar-se independentemente do mencionado fanatismo. Por outro lado, o homicídio praticado em ação típica do grupo de extermínio assemelha-se com o delito de genocídio. Com efeito, o art.1º, alínea “ a “ , da lei nº 2.889/56 define o delito de genocídio como sendo a conduta de matar membros de grupo nacional, étnico, racial ou religioso, com a intenção de destruir-lhe no todo ou em parte. A lei nº 2.889/56 incrimina esse genocídio com as penas do homicídio qualificado. A nosso

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ver, o homicídio praticado em ação típica de extermínio ocorre por exclusão, isto é, nas hipóteses em que não se configura o genocídio. Assim, enquanto o genocídio é a matança de membros de grupo nacional, étnico, racial ou religioso, com a intenção de destruir-lhe, o homicídio em ação típica de extermínio compreende a matança de membros de grupo social, econômico, político, feminino etc .

HOMICÍDIO CONTRA MENOR E PESSOA IDOSA

A Lei n. 8.069/90 (ECA) introduziu no § 4º do art. 121 do Código Penal uma causa de aumento de pena em quantidade fixa, dispondo, na sua parte final, o seguinte: “Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos”. Vislumbra-se, de antemão, a falta de técnica legislativa, porquanto o aludido § 4º do art. 121 disciplina o homicídio culposo, ao passo que a causa de aumento de pena, em estudo, é aplicável, exclusivamente, ao homicídio doloso, em suas modalidades simples, privilegiadas e qualificadas. Assim, evidentemente, não deveria estar incluída nesse parágrafo. Sob outro aspecto, o Código atual adotou a teoria da atividade, considerando-se praticado o delito no momento da conduta (ação ou omissão), ainda que outro seja o momento do resultado (art. 4º). Suponha-se que a vítima seja esfaqueada na véspera do seu aniversário de 14 anos, mas só venha a morrer algumas semanas depois. Estabelecido o nexo causal entre a conduta e o resultado, o homicídio receberá a incidência da causa especial de aumento de pena, por ter sido cometido contra pessoa menor de 14 anos. Divorciando-se do critério fixado no art. 224, a, do Código Penal, que presume a violência quando a vítima “não é maior de catorze anos”, o legislador da parte final do § 4º do art. 121, CP, preferiu a expressão “menor de catorze anos”. Por conseguinte, cometendo o delito de homicídio no dia do aniversário de 14 anos da vítima, o agente não sofrerá incidência da aludida causa de aumento de pena, pois no dia do aniversário a vítima já não é menor de catorze anos. Mutatis mutandi, se o legislador tivesse usado a expressão “não é maior de catorze anos” a causa de aumento de pena teria plena incidência. Por outro lado, mister a ciência do agente acerca da idade da vítima, pois o erro escusável exclui a causa de aumento de pena; a dúvida, porém, caracteriza dolo eventual, incidindo, portanto, a majorante.

Ressalte-se ainda que a incidência da causa do aumento da pena exclui a agravante genérica de ter sido o crime cometido contra criança (art. 61, II, h, do CP). Finalmente, o homicídio praticado contra a vítima maior de 60 anos ao tempo da conduta criminosa, também tem a pena aumentada de 1/3. Nesse caso, não incide a agravante genérica, prevista no art. 61, inciso I, alínea “h”, do Código Penal, consistente em ter sido o crime cometido contra maior de 60 anos, porque já funciona como causa de aumento da pena.

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QUESTÕES

1. O que é qualificadora? 2. As agravantes do art. 61, II, “a”, “b”, “c” e “d” são aplicáveis ao homicídio? 3. Por que a premeditação não qualifica o homicídio? 4. Defina parricídio, matricídio, uxoricídio, mariticídio, filicídio ou gnaticídio e

fraticídio?5. O que é homicídio mercenário? 6. O que é assassínio? 7. O mandante responde por homicídio qualificado? 8. O que é motivo torpe? 9. A vingança é motivo torpe? 10. O que é motivo fútil? 11. O que é venefício? 12. O veneno é sempre um meio insidioso? 13. O que é meio cruel? 14. Qual a diferença entre homicídio qualificado pela tortura e o crime de

tortura qualificado pela morte? 15. O que é asfixia? 16. Explique as espécies de asfixia mecânica. 17. O que é perigo comum? 18. Qual a diferença entre traição e surpresa? 19. O que é emboscada? 20. O que é dissimulação? 21. Qual a diferença entre conexão teleológica e conexão consequencial?

Incide a qualificadora da conexão se o homicídio é cometido para assegurar a execução de contravenção penal?

22. Qual o significado da expressão “vantagem do crime”? 23. Qual a diferença entre preço e produto do crime? 24. A conexão ocasional qualifica o homicídio? 25. Qual a diferença entre analogia e interpretação analógica? 26. Se o Júri reconhece mais de uma qualificadora, como o juiz aplica a

pena?27. Quais os homicídios que são crimes hediondos? 28. Qual a diferença entre o crime de genocídio e o crime de homicídio

praticado em ação típica de grupo de extermínio? 29. O sujeito que mata a vítima no dia em que ela completa 14 anos, tem a

pena aumentada de 1/3?30. O sujeito que mata criança sofre a incidência da agravante prevista no

art. 61, II, “h”, do CP?

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PENAL I

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO II

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DO INQUÉRITO POLICIAL

CONCEITO E FINALIDADE

Inquérito policial é o procedimento persecutório, de caráter administrativo, instaurado pela autoridade policial, no qual são realizados atos investigatórios destinados a apurar a autoria e a materialidade de infrações penais de médio ou de maior potencial ofensivo. Para as infrações de menor potencial ofensivo foi instituído o Termo Circunstanciado, previsto no artigo 69 da Lei 9099/95. A finalidade do inquérito policial é fornecer ao titular da ação penal os elementos necessários à sua propositura.

DESTINATÁRIOS DO IP

São destinatários do inquérito policial: a. destinatário imediato (direto): é o titular da ação penal (Ministério Público,

na ação penal pública, e ofendido ou seu representante legal, na ação penal privada).

b. destinatário mediato (indireto): é o juiz, que utiliza os elementos de informação constantes do inquérito policial para receber a peça inicial e para decretar medidas cautelares.

Polícia Judiciária

A polícia judiciária tem a finalidade de apurar infrações penais e respectivas autorias, conforme dispõe o artigo 4º, do Código de Processo Penal: “A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria”.

A polícia judiciária difere da polícia administrativa (ou de segurança), pois esta tem a finalidade de impedir a prática de atos que lesem bens de outras pessoas (caráter preventivo), enquanto que aquela tem nítido caráter repressivo.

Na esfera estadual a polícia judiciária é exercida pela Polícia Civil. No âmbito federal, as atividades de polícia judiciária cabem à Polícia Federal. Segundo estabelece o parágrafo único do artigo 4º, do Código de Processo Penal, os atos de investigação não são exclusivos da polícia judiciária, uma vez que existem outras autoridades administrativas, a quem, por lei, se atribui a função de investigar ilícitos penais, como por exemplo, o Banco Central, a Receita Federal, o INSS, a CPI, o Ministério Público, dentre outros.

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DIREITO PROCESSUAL PENAL I - PROFª. ROSANE CIMA CAMPIOTTO

OBS:1. em se tratando de infrações penais militares, a investigação é realizada

pela própria Polícia Militar, através do inquérito policial militar - IPM. 2. quando se tratar de crime praticado por membro da Magistratura, a

investigação deve ser conduzida por um Desembargador do Pleno ou do órgão especial do Tribunal a que estiver vinculado o juiz (artigo 33, parágrafo único, da Lei Complementar 35/79).

3. quando se tratar de crime praticado por membro do Ministério Público, a investigação deve ser conduzida pelo respectivo Procurador-Geral de Justiça, se integrante do Ministério Público dos Estados (artigo 41, parágrafo único, da Lei 8625/93) ou pelo membro do Ministério Público designado pelo Procurador-Geral da República, se integrante do Ministério Público da União (artigo 18, II, parágrafo único, da LC 75/93).

CARACTERÍSTICAS DO INQUÉRITO POLICIAL

Segundo a doutrina, são características do inquérito policial, as seguintes: a. obrigatoriedade e oficiosidade: quando se tratar de crime de ação pública

incondicionada, a instauração do inquérito policial é obrigatório, devendo se dar de ofício pela autoridade policial (artigo 5º, I, do Código de Processo Penal: “Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado: I – de ofício”).

b. inquisitoriedade: o inquérito policial é um procedimento inquisitivo. A inquisitoriedade do inquérito policial é revelada a partir de algumas constatações: 1) as atividades de investigação se concentram nas mãos de uma única autoridade, qual seja, o Delegado de Polícia; 2) a atuação da autoridade policial independe de provocação, devendo agir de ofício; 3) na condução das atividades necessárias à elucidação do delito e de sua autoria, a autoridade policial age com com discricionariedade, analisando a conveniência e a oportunidade na realização das diligências. Ademais, frise-se que o artigo 14, do Código de Processo Penal, dispõe que “O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade policial”; 4) não vigora, no inquérito policial, o princípio do contraditório, previsto no artigo 5º, LV, da Constituição Federal, o qual somente será observado após o efetivo início da ação penal, quando já formalizada a acusação.

Segundo a doutrina, o único inquérito que admite o contraditório é o inquérito para fins de expulsão de estrangeiro, que é instaurado por determinação do Ministro da Justiça, estando previsto na Lei 6815/80 (Estatuto do Estrangeiro).

c. oficialidade: o inquérito policial é realizado por um órgão oficial. d. autoritariedade: a Constituição Federal estabelece, no artigo 144, § 4º, que

o inquérito policial é presidido por uma autoridade pública, ou seja, pela autoridade policial (Delegado de Polícia)

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DIREITO PROCESSUAL PENAL I - PROFª. ROSANE CIMA CAMPIOTTO

e. indisponibilidade: uma vez instaurado o inquérito policial, a autoridade policial não pode determinar o seu arquivamento. É o que prevê o artigo 17, do Código de Processo Penal, segundo o qual: “A autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito”. O arquivamento do inquérito somente poderá ser determinado pelo juiz, a requerimento do Ministério Público.

f. escrito: para que possa atingir a sua finalidade, o inquérito policial deve ser escrito. É o que determina o artigo 9º, do Código de Processo Penal: “Todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade”.

g. sigiloso: o sigilo do inquérito policial está previsto no artigo 20 do Código de Processo Penal: “A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”. Osigilo é necessário para que se possa realizar as diligências tendentes à elucidar o crime sem encontrar obstáculos que dificultam a colheita das provas. Todavia, o sigilo não alcança o Ministério Público nem a autoridade judiciária. Em relação ao advogado, o artigo 7º, inciso XIV, do Estatuto da OAB – Lei 8.906/94, permite que o advogado examine, em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos. Contudo, não poderá, sem procuração da pessoa investigada, ter acesso aos autos em que o sigilo tenha sido decretado ou quando o sigilo decorrer de preceito constitucional. Neste caso, ressalte-se, o acesso será limitado às peças que dizem respeito, exclusivamente, à pessoa investigada.

DISPENSABILIDADE DO INQUÉRITO POLICIAL: o inquérito policial não é fase obrigatória da ação penal, de forma que a ação pode ser proposta, desde que o seu titular possua elementos que demonstrem a existência do crime e dos indícios suficientes de autoria. Portanto, o inquérito é dispensável.

VALOR PROBATÓRIO: por se tratar de instrução provisória, de caráter inquisitivo, o inquérito policial tem apenas valor informativo (serve para a instauração da ação penal). Assim, as provas produzidas no bojo do inquérito policial têm valor relativo, uma vez que produzidas sem a observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa, além de terem sido produzidas sem a presença da autoridade judicial. Desta forma, para que possam ter valor no processo, tais provas devem ser repetidas em juízo. Todavia, algumas provas produzidas na fase inquisitorial possuem grande valor e não necessitam ser repetidas em Juízo, como por exemplo, as provas periciais, uma vez nesta que preponderam fatores de ordem técnica, que são de difícil deturpação e que oferecem campo de apreciação objetivo e seguro. Neste caso, em juízo, haverá a possibilidade de ser exercido o contraditório em relação à prova pericial já produzida. Trata-se do contraditório diferido ou prorrogado.

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VÍCIOS DO INQUÉRITO POLICIAL: por ser procedimento informativo, destinado à formação da opinio delicti do titular da ação penal, os vícios eventualmente existentes no inquérito não geram nulidades processuais, ou seja, não atingem a ação penal que será originada a partir da investigação realizada. O desrespeito às formalidades legais leva à invalidade do ato em si, mas não interfere na ação penal que será instaurada.

PRAZO DO INQUÉRITO POLICIAL: o prazo para a conclusão do inquérito policial se encontra previsto no artigo 10, do Código de Processo Penal. Desta forma, estando preso o indiciado, em razão de prisão preventiva ou de flagrante, o prazo para a conclusão do inquérito é de 10 dias. Por outro lado, estando solto, o prazo é de 30 dias. No âmbito federal, todavia, o prazo para a conclusão do inquérito policial, no caso de indiciado preso, é de 15 dias, prorrogáveis por mais 15 dias, a pedido fundamentado da autoridade policial (artigo 66, da Lei 5.010/66). Em qualquer caso, porém, estando solto o indiciado, se a autoridade policial não conseguir concluir as investigações dentro do prazo legal, poderá requerer ao juiz a dilação do prazo, conforme previsto no artigo 10, § 3º, do Código de Processo Penal.

NOTITIA CRIMINIS: consiste no conhecimento, espontâneo ou provocado, pela autoridade policial, de um fato aparentemente criminoso.

Espécies de “notitia criminis”:a. espontânea (ou de cognição imediata): ocorre quando a autoridade policial

toma conhecimento direto do fato criminoso, através de suas atividades de rotina (ex.: investigações realizadas, comunicação feita pela polícia preventiva, encontro do corpo de delito).

b. provocada (ou de cognição mediata): ocorre quando a autoridade policial toma conhecimento do fato criminoso indiretamente, por meio de algum ato jurídico de comunicação formal.

c. de cognição coercitiva: ocorre quando a notícia do crime chega ao conhecimento da autoridade policial através de uma prisão em flagrante.

d. inqualificada (ou anônima): não deve ser repelida de plano, sendo incorreto considerá-la sempre inválida. Requer cautela da autoridade policial, que deverá, antes de tudo, investigar a verossimilhança das informações. Se confirmadas, deverá instaurar inquérito policial. Alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça já entenderam que o inquérito policial instaurado com base em notitia criminis anônima é inconstitucional, pois fere o princípio constitucional que veda o anonimato na manifestação do pensamento. Contudo, referido posicionamento jurisprudencial é minoritário.

OBS: delatio criminis – é a comunicação de um crime, feita pela vítima ou por terceira pessoa. Espécies de “delatio criminis”:

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a. “delatio criminis” simples - é a comunicação do crime feita por qualquer pessoa, estando prevista no artigo 5º, § 3º, do Código de Processo Penal.

b. “delatio criminis” postulatória – é a comunicação do crime feita pela vítima ou por seu representante legal, nos crimes de ação pública condicionada á representação. Está prevista no artigo 5º, § 4º, do Código de Processo Penal. É denominada “postulatória” pois além de servir para a comunicação do crime, também é requerimento para que seja instaurado inquérito policial.

INCOMUNICABILIDADE: é o mecanismo através do qual o juiz, a requerimento da autoridade policial ou do Ministério Público, decreta a incomunicabilidade do indiciado preso, impedindo que este se comunique com outras pessoas a fim de não prejudicar a apuração dos fatos.

A incomunicabilidade está prevista no artigo 21, do Código de Processo Penal: “A incomunicabilidade do indiciado dependerá sempre de despacho nos autos e somente será permitida quando o interesse da sociedade ou a conveniência da investigação o exigir”. Segundo o parágrafo único, do artigo 21, a incomunicabilidade não pode exceder de 3 dias, devendo ser respeitadas as prerrogativas do advogado (artigo 7o, III do Estatuto da OAB). Entendem alguns doutrinadores que a incomunicabilidade do preso, tal como previsto no artigo 21 do Código de Processo Penal, não teria sido recepcionada pela Constituição Federal de 1988, que a vedou durante o estado de defesa (artigo 136, § 3o, IV, da Constituição Federal). Assim, para esses autores, se não se admite a incomunicabilidade do preso durante um estado de exceção, como é o estado de defesa, com muito maior razão não deve ser admitido numa situação de normalidade e em razão de mero inquérito policial. Uma segunda corrente entende que a vedação da incomunicabilidade durante o estado de defesa não revogou a possibilidade de esta ser decretada, uma vez que implicitamente foi admitida. Por fim, um terceiro posicionamento sustenta que o artigo 21 do Código de Processo Penal foi recepcionado pela Constituição Federal, já que o artigo 136, que proíbe a incomunicabilidade se refere aos crimes contra o Estado, de forma que, em relação aos demais crimes, é plenamente possível. Ademais, referida corrente afirma que se fosse intenção do legislador constitucional proibir a incomunicabilidade para todo e qualquer caso o teria feito no artigo 5º da Constituição Federal.

INSTAURAÇÃO DO INQUÉRITO POLICIAL: varia conforme o tipo de ação penal previsto para o crime que foi praticado.

a. no caso de ação pública incondicionada: o inquérito policial pode ser instaurado:

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DIREITO PROCESSUAL PENAL I - PROFª. ROSANE CIMA CAMPIOTTO

1. de ofício, pela autoridade policial, através de portaria (artigo 5o, I do Código de Processo Penal). Portaria é uma peça singela, na qual a autoridade policial consigna ter tomado conhecimento da prática de um crime de ação pública incondicionada, mencionando o dia, a hora e o local da prática criminosa, com a indicação do nome da vítima e, se possível, do suposto autor da infração, concluindo pela instauração de inquérito policial.

2. por requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público (artigo 5o,II, 1a parte, do Código de Processo Penal). Nesta hipótese, a autoridade policial não pode indeferir a requisição, uma vez que se trata de ordem. Assim, apesar de não haver subordinação hierárquica entre o juiz/membro do Ministério Público e a autoridade policial, a requisição deve ser atendida, exceto se for ilegal, hipótese em que a autoridade não instaurará inquérito, como ocorre, por exemplo, quando o crime a ser investigado já foi atingido pela prescrição ou quando já foi objeto de julgamento anterior.

3. por requerimento da vítima ou de seu representante legal (artigo 5o, II, 2a

parte, do Código de Processo Penal). Neste caso, o requerimento, que poderá ser escrito ou oral, e, neste último caso, será reduzida a termo, deve conter os requisitos do artigo 5o, § 1o, do Código de Processo Penal. O pedido poderá ser indeferido pela autoridade policial, sendo que, desta decisão, caberá recurso ao Secretário de Segurança Pública ou ao Delegado Geral de Polícia (se o indeferimento se deu por ato da autoridade policial estadual) ou ao Ministro da Justiça ou ao Superintendente da Polícia Federal (se o indeferimento se deu por ato da autoridade policial federal). Referido recurso, de natureza administrativa, está previsto no artigo 5o, § 2o, do Código de Processo Penal, e, na prática, não é utilizado, uma vez que havendo indeferimento do pedido de instauração de inquérito policial, a vítima ou seu representante legal comunica os fatos ao Ministério Público, que, verificando que é caso de instauração, requisita à autoridade policial.

4. a partir de auto de prisão em flagrante.

b. no caso de ação pública condicionada: para a instauração do inquérito policial é necessário que tenha sido apresentada a requisição do Ministro da Justiça ou a representação do ofendido ou de seu representante legal.

Requisição do Ministro da Justiça: é o ato administrativo, discricionário e irrevogável, que contém manifestação de vontade no sentido da instauração da ação penal, e, conseqüentemente, da investigação policial, com menção ao fato criminoso, não exigindo, contudo, forma especial.

Existe para determinadas hipóteses previstas em lei (Ex.: crimes cometidos por estrangeiro contra brasileiro – artigo 7o, § 3o, “b” , do Código Penal; crimes cometidos contra a honra do Presidente da República

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DIREITO PROCESSUAL PENAL I - PROFª. ROSANE CIMA CAMPIOTTO

ou Chefe de Estado estrangeiro – artigo 145, parágrafo único, do Código Penal, dentre outros).

Não está sujeita à decadência, podendo ser apresentada a qualquer tempo, desde que não tenha ocorrido prescrição.

Prevalece o entendimento de que é irretratável, uma vez que deve ser fruto de seriedade e reflexão.

De acordo com a eficácia objetiva da requisição, pode o delegado de polícia instaurar inquérito em relação a todos os envolvidos, ainda que a requisição não tenha nomeado todos eles. Porém, o assunto não é pacífico, havendo julgados entendendo em sentido contrário.

Representação do ofendido ou de seu representante legal: consiste em simples manifestação de vontade da vítima ou de quem legalmente a represente no sentido de permitir que o Estado desenvolva as atividades necessárias tendentes à investigação da infração penal e à promoção da ação penal cabível.

O ofendido somente poderá oferecer representação se for maior de 18 anos. Se menor de 18 anos ou doente mental, somente o seu representante legal poderá oferecê-la.

Pode ser dirigida à autoridade policial, ao Ministério Público e ao juiz (conforme estabelece o artigo 39, §§ 3º, 4º e 5º, do Código de Processo Penal).

Pode ser retratada até o oferecimento da denúncia (artigo 25, do Código de Processo Penal).

A representação, como regra, deve ser oferecida no prazo de 6 (seis) meses, contados da ciência da autoria, sob pena de decadência (artigo 38 do Código de Processo Penal).

No caso de morte ou de declaração de ausência do ofendido e de seu representante legal, o direito de representação passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão (artigo 24, parágrafo único, do Código de Processo Penal). Caso mais de um pretenda oferecer a representação, o cônjuge tem preferência em relação ao ascendente, que por sua vez, prefere ao descendente, que prefere ao irmão. Todavia, basta a vontade de um deles para a que a representação seja oferecida.

Através da eficácia objetiva da representação, uma vez oferecida, a autoridade policial pode instaurar inquérito em relação a todos os envolvidos, ainda que a representação não tenha nomeado todos eles. Porém, o assunto não é pacífico, havendo julgados entendendo em sentido contrário.

OBS: O artigo 33, do Código de Processo Penal, estabelece que se o ofendido for incapaz, em razão da idade ou de enfermidade mental, e não tiver representante legal, o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, nomeará um curador especial para que este possa oferecer a representação. O mesmo ocorre quando, sendo incapaz o ofendido, colidirem os seus interesses com os do seu representante legal.

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DIREITO PROCESSUAL PENAL I - PROFª. ROSANE CIMA CAMPIOTTO

c. no caso de ação penal privada: a instauração do inquérito policial depende de requerimento, escrito ou verbal, reduzido a termo, do ofendido ou de seu representante legal (artigo 5o, § 5o, do Código de Processo Penal). Na hipótese de morte ou de declaração de ausência do ofendido ou de seu representante legal, o direito de oferecer a queixa e, portanto, de requerer a instauração de inquérito policial, passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão (artigo 31, do Código de Processo Penal).

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QUESTÕES

1. Conceitue inquérito policial. Qual sua finalidade? 2. O inquérito policial é o único instrumento existente para apuração de

infrações penais? 3. Quem são os destinatários do inquérito policial? Explique. 4. Diferencie polícia judiciária de polícial administrativa. 5. É a polícia judiciária que conduz a investigação quando se tratar de crime

praticado por membro do Poder Judiciário? Explique. 6. É a polícia judiciária que conduz a investigação quando se tratar de crime

praticado por membro do Ministério Público? Explique. 7. No que consiste a obrigatoriedade do inquérito policial? 8. O que é oficiosidade no tocante ao inquérito policial? 9. Por que se diz que o inquérito policial é inquisitivo? 10. Inquérito policial admite contraditório? Explique.11. No que consiste a característica da oficialidade do inquérito policial?12. O que é a indisponibilidade do inquérito policial? 13. Por que o inquérito policial deve ser, necessariamente, escrito? 14. No que consiste o sigilo do inquérito policial? Pode ser aplicado ao membro

do Ministério Público ou ao juiz? E ao advogado? Explique. 15. Por que se diz que o inquérito policial é dispensável? 16. Qual o valor da provas produzidas na fase de inquérito policial? Tais provas

devem ser reproduzidas em juízo? Explique. 17. Os vícios que eventualmente ocorrerem na fase de inquérito policial atingem

a ação penal? Explique. 18. Qual é o prazo para a conclusão do inquérito policial? E quando se tratar de

inquérito policial que apura crime de competência da justiça federal?19. O que é “notitia criminis” ? Quais as suas espécies? 20. O que se entende por “delatio criminis”? Quais as suas espécies? 21. No que consiste a incomunicabilidade? Explique. Foi recepcionada pela

Constituição Federal de 1988? 22. Como se dá a instauração de inquérito policial quando se tratar de crime de

ação penal pública incondicionada? Explique. 23. Como se dá a instauração de inquérito policial quando se tratar de crime de

ação penal pública condicionada? Explique. 24. O que se entende por requisição do Ministro da Justiça? Está sujeita a

prazo? Pode ser retratada? 25. No que consiste a representação do ofendido ou de seu representante

legal? Está sujeita a algum prazo? 26. É possível a retratação da representação? Explique. 27. No caso de morte ou declaração de ausência do ofendido e de seu

representante legal, quem poderá oferecer a representação?28. Como se dá a instauração de inquérito policial quando se tratar de crime de

ação penal privada? 29. No que diz respeito à instauração de inquérito policial no caso de crime

de ação penal pública incondicionada, está correto afirmar-se que:

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DIREITO PROCESSUAL PENAL I - PROFª. ROSANE CIMA CAMPIOTTO

a. o inquérito policial poderá ser instaurado de ofício pelo Ministério Público, quando a informação sobre o fato criminoso chegar ao seu conhecimento;

b. poderá a autoridade policial, diante da requisição do Ministério Público, discricionariamente e levando em conta o caso concreto, não instaurar o inquérito policial, já que a análise de conveniência e oportunidade em relação à instauração do inquérito policial é exclusiva da autoridade policial;

c. poderá ser instaurado a partir da lavratura do auto de prisão em flagrante delito, sendo que, neste caso, será sempre necessário o requerimento da vítima solicitando a sua instauração;

d. todas as anteriores estão incorretas.

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DIREITOCONSTITUCIONAL

TOMO I

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO II

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DIREITO CONSTITUCIONAL I - PROF. JOSÉ CARLOS FRANCISCO

CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO

Após apresentarmos as fases históricas do constitucionalismo resultantes da contínua transformação para responder às diferentes necessidades sociais, como conceito elementar, podemos dizer que as Constituições modernas são instrumentos jurídicos em evolução que dão a estrutura básica da sociedade e do Estado, elaboradas segundo pressupostos democráticos. INSTRUMENTOS EM EVOLUÇÃO – CONSTITUIÇÃO TOTAL

Ao falarmos em “instrumentos jurídicos em evolução”, procuramos mostrar o sentido material e formal de Constituição, escrita ou não escrita, expressa ou implícita, bem como a necessidade de aparelhar o ordenamento com maneiras formais e informais de modificação para permitir sua aplicação contínua no tempo e no espaço, concretizando a vontade democrática em múltiplos segmentos de interesse dos sujeitos de direito (sociais, políticos, econômicos, científicos e culturais, especialmente) que vivem acelerada mutação. A ampla abrangência dos temas inseridos na Constituição, bem como a necessidade da conjugação de preceitos expressos com princípios implícitos abrigados pelo ordenamento nos leva ao conceito de Constituição Total ou Integral, representando a conjugação pluralista e dialética desses vários elementos. A noção de Constituição total também pode ser desdobrada em duas facetas, a Constituição normada (decorrente de condutas juridicamente previstas e também das integrantes da moral, da religião, da urbanidade e da moda) e Constituição não normada (normalidade puramente empírica, presente na realidade sócio-cultural). 1

ESTRUTURA BÁSICA

As Constituições dão a estrutura básica pois representam a decisão política fundamental e nuclear das instituições, cabendo às normas primárias (amparadas diretamente na norma constitucional) e secundárias (lastreadas nas normas primárias) a complementação do sentido abstrato do ordenamento constitucional. É certo dizer que todas as normas devem ser abstratas (pois tratam de situações hipotéticas), mas o nível de abstração dos preceitos constitucionais deve ser mais elevado se comparado ao padrão das normas primárias e secundárias, justamente porque a estrutura essencial deve ser fixada com maior estabilidade, enquanto o detalhamento (sujeito a modificações freqüentes) deve ficar a cargo de instrumentos normativos mais flexíveis. Estrutura da sociedade

1 Sobre o tema, SILVA, José Afonso da, Aplicabilidade das normas constitucionais, 4a edição, São Paulo, Ed. Malheiros, 2000, p. 34 e seguintes, citando Hermann Heller.

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DIREITO CONSTITUCIONAL I - PROF. JOSÉ CARLOS FRANCISCO

A Constituição dispõe sobre a estrutura básica da sociedade ao estipular as regras essenciais para a convivência entre os sujeitos de direito, fixando os preceitos que reconhecem as liberdades e que limitam aquilo que é primordial para a vida em comunidade, vale dizer, dispõem sobre direitos, garantias e deveres fundamentais. Ainda que seja necessário dar a mais ampla interpretação e máxima efetividade aos preceitos constitucionais que cuidam de aspectos indispensáveis à realização da natureza humana, no ordenamento constitucional devem constar apenas as previsões elementares ou básicas acerca do conteúdo de direitos, garantias e deveres fundamentais.

ESTRUTURA DO ESTADO

Por sua vez, as Constituições fixam a estrutura básica do Estado ao estabelecerem a forma de distribuição geopolítica do poder (Estado unitário, unitário descentralizado ou federativo), a forma de governo (república ou monarquia constitucional), o sistema de governo (presidencialista, parlamentarista, ou mistos), os entes e órgãos essenciais de governo, e a maneira de acesso e exercício das funções estatais (sistema eleitoral e instituições políticas). Cabe ainda às Constituições a previsão das funções fundamentais do Estado, suas competências e limites de atuação nos vários segmentos de interesse socioeconômico, bem como a previsão de instrumentos eficazes de controle das atribuições exercidas pelos entes governamentais, seja pela separação de poderes, seja por outros instrumentos para evitar o arbítrio historicamente verificado nas concentrações de competências, p. ex., recall (modo pelo qual a população avalia os governantes no curso do mandato político, o qual pode ser interrompido em caso de desaprovação popular), exigência de referendo ou plebiscito (respectivamente, manifestação popular posterior ou prévia acerca de decisões relevantes para a sociedade e para o Estado), vias de democracia participativa, dentre outros. 2

FUNDAMENTO DEMOCRÁTICO – CONSTITUIÇÕES E CARTAS

Afinal, o fundamento democrático é inerente aos diplomas constitucionais, pois vimos que esse aspecto e a limitação do poder diferenciam as Constituições dos instrumentos que estruturaram a sociedade e o Estado até o século XVIII d.C.. Ao falarmos em democracia, reconhecemos a dificuldade de extrair a vontade da sociedade (pois o consenso social nem sempre é facilmente compreendido ante à realidade complexa e repleta de interesses conflitantes), e especialmente temos ciência do desafio contido em fazer com que o representante político cumpra aquilo que prometeu aos representados, mas virtudes e vicissitudes exigem o aperfeiçoamento do sistema e a solução dos problemas, e não o abandono de idéias da envergadura do ideal de democracia.

2 Vale lembrar a evolução das técnicas de controle do arbítrio pela separação de poderes, que deixa seu perfil clássico para se adequar às novas realidades, falando-se em cheks and balances e em le pouvoir arrête le pouvoir.

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DIREITO CONSTITUCIONAL I - PROF. JOSÉ CARLOS FRANCISCO

Também reconhecemos que, sob a ótica essencialmente positivista, preocupações acerca do fundamento democrático e seus desafios não fazem parte da ciência do Direito mas sim da sociologia e da política, razão pela qual ficam minimizadas ante à existência de ordenamentos regulamente produzidos (amparando-se na norma hipotética fundamental que se manifesta como um pressuposto de fato, independentemente das causas). Todavia, freqüentemente a teoria constitucional apresenta o consenso popular como lastro necessário à existência das Constituições, satisfazendo-se com a legitimidade democrática na medida em que afirma que todo poder emana do povo, e que a lei é expressão da vontade geral.

A importância da origem democrática para o conceito que tratamos é revelada pela distinção (pouco utilizada, é verdade) entre Constituição (cujo fundamento é necessariamente popular) e Carta Constitucional (associada aos indesejáveis casos de ordenamentos outorgados).

Convém finalizar lembrando que, perante regimes totalitários, o ordenamento jurídico tem pouca valia, pois o que prevalece é a vontade do detentor do poder político ou dos instrumentos de dominação, transformando a Constituição numa simples folha de papel sujeita à modificações por quaisquer atos jurídicos, ou até mesmo exposta ao esquecimento ou desprezo.

ELEMENTOS E PRINCÍPIOS GERAIS DAS CONSTITUIÇÕES

Do conceito de Constituição decorrem elementos que definem seu conteúdo, os quais, para José Afonso da Silva, podem ser classificados em elemento orgânico (normas que regulam a estrutura do Estado e do poder), elemento limitativo (normas que cuidam de direitos, deveres e garantias fundamentais, restando como barreiras impostas tanto ao Estado quanto aos demais indivíduos), elemento sócio-ideológico (associado à linha filosófica liberal, social, socialista marxista, pluralista ou qualquer outra que esteja abrigada pelo ordenamento), elemento de estabilização constitucional (prevendo instrumentos de preservação da supremacia da vontade constitucional, como o controle de constitucionalidade, a intervenção federativa, e os mecanismos de defesa das instituições democráticas) e o elemento formal de aplicabilidade (dispondo sobre a vigência e eficácia jurídica dos preceitos constitucionais). 3 Por sua vez, se de um lado os temas tipicamente constitucionais apresentam princípios próprios (como os direitos fundamentais, o federalismo, e a separação de poderes), de outro lado as próprias Constituições têm princípios orientadores, presentes em todos os ordenamentos que se amoldam ao conceito que apontamos. Assim, como fundamentos gerais das Constituições encontramos o princípio democrático, o princípio da limitação do poder, e o princípio da supremacia da Constituição.

3 SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, 21ª edição, São Paulo, Ed. Malheiros, 2002, p. 44 e 45

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PRINCÍPIOS DEMOCRÁTICO, DA LIMITAÇÃO DO PODER E DA SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO

Revelando-se como essência democrática dos ordenamentos constitucionais modernos, o princípio democrático está expressamente mencionado no preâmbulo e em vários preceitos da Constituição de 1988 (p. ex., art. 1o, inciso I, e parágrafo único, art. 14, caput,e incisos, do seu corpo permanente, bem como em todas regras constitucionais expressas e implícitas que reconhecem a soberania popular e a Constituição e as leis como a expressão da vontade geral). Já o principio da limitação do poder está ligado à noção da Constituição como estrutura da sociedade e do Estado, trazendo a idéia da separação dos poderes e da definição de direitos, deveres e garantias fundamentais como modo de proteger os interesses dos sujeitos de direito.

Por sua vez, o princípio da supremacia da Constituição está associado à superioridade normativa dos ordenamentos constituições em relação às demais normas jurídicas, impondo a subordinação de todos os diplomas normativos ao seu comando. Decorrem da supremacia da Constituição temas de expressiva envergadura, como a rigidez constitucional e o controle de constitucionalidade das leis. 4

PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO E HIERARQUIA DE NORMAS

O princípio da supremacia da Constituição decorre de aspectos políticos ligados à importância de suas previsões, bem como de elementos jurídicos relacionados à rigidez dos textos constitucionais. Em conseqüência, os preceitos constitucionais devem ser respeitados por todas as regras do ordenamento, que devem se amparar formal e materialmente nos preceitos imediatamente superiores.

Embora o princípio da supremacia da Constituição nos pareça cristalino, reconhecemos a existência de problemas relacionados em decorrência de sua imprecisa compreensão. Assim, convém esclarecer que “norma jurídica” é gênero (preceitos gerais, impessoais, abstratos e imperativos), em face do qual o ato normativo positivo pode ser inicial, derivado, primário, secundário, e atos normativos-administrativos. 5

4 Nos raros casos de Constituições não escritas e flexíveis (como a da Inglaterra), o princípio supremacia da Constituição fica prejudicado no que concerne à superioridade jurídica de suas previsões (já que a inexistência de modo solene para a elaboração do ordenamento constitucional permite que ele seja alterado por procedimento simplificado), mas ainda assim é inegável a relevância social e política de comandos que cuidem de temas tipicamente constitucionais. 5 Os tratados internacionais estão sujeitos a quatro fases para sua plena vigência e eficácia jurídica (celebração pelo Presidente da República, aprovação por decreto legislativo do Congresso Nacional, promulgação e publicação por decreto do Executivo Federal, e depósito perante o ente internacional), sendo considerado como ato normativo primário, até porque a Constituição permite o controle de constitucionalidade dessas normas de origem internacional da mesma maneira conferida às leis ordinárias (art. 102, III, “b”, do ordenamento de 1988).

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O texto constitucional, produzido pelo Constituinte Originário, é o parâmetro jurídico inicial dessa sistematização hierarquizada, dando fundamento de validade para os demais atos normativos, de maneira que do ato Constituinte inicial derivam outros atos normativos por ele previstos expressamente ou admitidos implicitamente, cuja finalidade é complementar, integrar ou esmiuçar as regras abstratas estabelecidas na ordem superior, sucessivamente. Do ato constitucional originário extraem-se atos derivados (o decorrente-estadual, e o reformador, seja em forma de emenda constitucional, seja em forma de tratados e demais atos internacionais sobre direitos humanos), porém, não como ato legislativo, mas como ato constitucional, porque são produzidos por Poder com natureza Constituinte (embora limitada). Amparados diretamente na Constituição e produzidos por poder constituído (Legislativo, Executivo ou Judiciário, isoladamente ou em conjunto) encontramos os atos normativos primários, que estão no nível mais elevado dos atos infraconstitucionais emanados, subdivididos em atos legislativos, atos regimentais e atos regulamentares.6 Assim, atos primários são leis complementares, leis ordinárias, medidas provisórias, leis delegadas, decretos legislativos, resoluções legislativas (da Câmara, do Senado e do Congresso Nacional), regimentos das casas legislativas, regimentos dos Tribunais do Judiciário, dos Tribunais de Contas, e do Ministério Público, e ainda os raros regulamentos autônomos confiados ao Executivo. Decisões proferidas em ações coletivas ou em ações de controle concentrado de constitucionalidade, bem como as súmulas vinculantes, geram efeitos ergaomnes e efeito vinculante, merecendo classificação equivalente às normas jurídicas primárias (até porque fazem o controle da validade jurídica de atos primários diretamente amparados na Constituição). Os atos secundários decorrem imediatamente de atos primários (de modo que estarão cumprindo a ordem constitucional de forma indireta ou reflexa), e desdobram os comandos legais, normalmente mediante regulamentos do Executivo expedidos pela Administração Direta (como decretos de execução das leis, decretos delegados ou decretos autorizados) e pela Administração Indireta dotada de autonomia funcional (como resoluções de agências reguladoras).7 Afinal, há os atos normativos que decorrem dos secundários, notadamente no âmbito da Administração Pública, localizando-se a “meio caminho” entre os atos normativos superiores e os atos administrativos de efeito concreto, tais como portarias de Ministros de Estado, instruções normativas de coordenadores de órgãos públicos vinculados à Administração Direta ou Indireta. Esses atos subordinam-se aos secundários e as 6 As expressões “normas primárias” e “normas secundárias” podem assumir várias sentidos, ora ligado ao tempo, ora vinculado a aspectos funcionais, ou até mesmo sob o ângulo hierárquico. No sentido que aqui apresentamos, conjugamos esses três elementos, pois a norma primária deve anteceder à secundária, em face da qual tem funções de coordenação e relação de superioridade. 7 Vale lembrar que nem todos os decretos são normativos, pois podem cuidar de situações individuais e concretas, caracterizando-se como atos administrativos típicos (p. ex., decreto de desapropriação) ou atos administrativos políticos (p. ex., decreto de intervenção).

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características inerentes às normas jurídicas (abstração, generalidade, impessoalidade, imperatividade e inovação), de modo que não podem ser classificadas propriamente como atos administrativos puros, muito embora seu nível de particularidade e individualidade chegue próximo ao ato de efeito concreto. Por isso, preferimos denominar essa espécie de diploma por atos normativos-administrativos. Com essas observações, e tendo em vista o princípio da supremacia da Constituição, é possível afirmarmos que existe hierarquia decrescente entre atos normativos iniciais, derivados, primários, secundários, e atos normativos-administrativos (pois os subseqüentes representam a complementação, a integração, ou a explicitação das regras abstratas superiores, até que se chegue ao ato individual ou de efeito concreto). Porém, há particularidades relevantes que têm causado confusões freqüentes.

É evidente que no ápice da estrutura normativa estão os preceitos constitucionais originários, subordinando os derivados (Constituições estaduais, emendas e, em princípio, até mesmo tratados sobre direitos humanos, já que há entendimentos no sentido de que esses últimos são superiores à própria o ordem constitucional, não obstante os termos do art. 5o, § 3o, da Constituição de 1988), mas é óbvia a possibilidade de reforma do texto originário, desde que respeitados os limites expressos e implícitos previstos pela Constituição inicial. Aliás, a regra geral é que os preceitos constitucionais podem ser modificados, de maneira que as proibições (ou cláusulas pétreas) devem ser identificadas de maneira restrita (apenas em casos que possam prejudicar ou tender a abolir), evidenciando que há relativa hierarquia entre texto constitucional originário e emenda. Por sua vez, se é inequívoca a superioridade normativa entre os atos constitucionais (iniciais e derivados, observadas as áreas de competência no contexto federativo) e os atos primários, não é verdade que há hierarquia quando se trata dos atos primários entre si, o que se conclui pela correta aplicação do princípio da supremacia da Constituição. Com efeito, é certo que uma lei complementar pode tratar de tema para o qual a Constituição exige lei ordinária (pois a única diferença no rito processual aplicável a ambas é a maioria absoluta imposta à lei complementar, diversa da maioria simples exigida para a lei ordinária), mas se assim ocorrer, uma lei ordinária posterior poderá alterar a lei complementar, já que ambas são atos primários que extraem fundamento de validade diretamente do ordenamento constitucional (que obviamente não se modifica pelo fato de uma lei complementar ter tratado de matéria exposta à lei ordinária). Já o inverso não é verdadeiro, pois lei ordinária, lei delegada ou medida provisória (sujeitas à aprovação por maioria simples) não poderão cuidar de tema condicionado pelo Constituinte à edição de lei complementar, cuja relevância fez com que fosse exigida maioria absoluta.

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DIREITO CONSTITUCIONAL I - PROF. JOSÉ CARLOS FRANCISCO

Leis complementares, ordinárias e delegadas, bem como medida provisória, também não poderão versar sobre temas atribuídos à competência exclusiva dos demais poderes (como resoluções legislativas, decretos legislativos, regimentos do Legislativo e do Judiciário, ou regulamentos autônomos), pois nesses últimos casos não há a possibilidade de sanção ou veto do Executivo. No que concerne aos atos secundários entre si, a situação é parecida com a verificada no que concerne aos atos primários. Por exemplo, não há hierarquia entre decretos do Executivo e resoluções de agências reguladoras, pois essa subordinação frustraria a autonomia especial que é visada pela descentralização, buscando maior tecnicismo e imparcialidade política na gestão de políticas públicas pelas agências. O mesmo ainda pode ser dito em se tratando das relações dos atos normativos-administrativos entre si, observadas os graus de cargos e funções decorrentes da hierarquia administrativa do ente público. Em conclusão, tratando-se de atos normativos que se inserem no mesmo nível hierárquico, entre eles não há subordinação mas áreas próprias de competência, ainda que seja possível a edição tanto de um ato normativo quanto de outro em casos peculiares (a exemplo do que ocorre com a parcial fungibilidade entre leis complementares, ordinárias, e delegadas, ou medidas provisórias). No entanto, em razão do princípio da supremacia da Constituição, há hierarquia decrescente entre atos normativos iniciais, derivados, primários, secundários, e atos normativos-administrativos

CLASSIFICAÇÃO DAS CONSTITUIÇÕES

A adequada compreensão das Constituições depende da verificação das várias modalidades verificadas no processo histórico, que apresenta ampla variedade em decorrência das diversidades vividas na realidade concreta de diversos países, com experiências bem ou mal sucedidas. Em razão da multiplicidade de modalidades, podemos classificar as Constituições considerando seu conteúdo, sua sistematização formal, sua forma de apresentação, seu modo de elaboração, sua origem, sua estabilidade formal, sua extensão, o modo de sua interpretação de seus preceitos, e sua finalidade.

QUANTO AO CONTEÚDO: FORMAL E MATERIAL

Tendo em vista o conteúdo, as Constituições e suas normas podem ser consideradas em sentido formal ou em sentido material. Para explicar essa distinção, se perguntarmos o que é uma norma constitucional, a resposta pode levar em consideração o fato de o preceito estar inserido expressamente no ordenamento positivado, seja no corpo permanente ou no

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DIREITO CONSTITUCIONAL I - PROF. JOSÉ CARLOS FRANCISCO

ato das disposições constitucionais transitórias (Constituição em sentido formal), seja em tratados internacionais sobre direitos humanos aprovados por 3/5 dos membros da Câmara e do Senado (§ 3o no art. 5o da Constituição de 1988), ou a circunstância de o dispositivo estar cuidando de temas tipicamente constitucionais, relacionados à estrutura da sociedade e do Estado (Constituição em sentido material).

Assim, o sentido formal de Constituição se baseia exclusivamente na maneira pelo qual o preceito normativo foi produzido (vale dizer, se observou o modo solene previsto para a geração da norma constitucional) e sua inclusão no diploma tido como constitucional, sem considerar o assunto (natureza ou conteúdo) versado no preceito (exceção feita aos tratados internacionais, que para considerá-los como equivalente às emendas, tais devem necessariamente cuidar de direitos humanos). Assim, podemos concluir que há dispositivos formalmente constitucionais que tratam de temas materialmente constitucionais, normas que não estão no “código constitucional” mas têm hierarquia constitucional porque dispõem sobre temas constitucionais, ao passo em que há situações de artigos apenas formalmente constitucionais, bem como outros preceitos normativos não inseridos na Constituição mas que tratam de temas constitucionais (normas apenas materialmente constitucionais). A doutrina e a jurisprudência brasileira valorizam o aspecto formal, razão pela qual quaisquer regras da Constituição Brasileira de 1988 devem ser consideradas constitucionais, embora seja visível que muitos preceitos inseridos nesse ordenamento tenham conteúdo nitidamente primário ou secundário, e até mesmo de atos normativos-administrativos. 8

A importância da compreensão dessa distinção não é apenas acadêmica, já que dela surgem efeitos jurídicos relevantes, como a discussão sobre o sentido de “preceito fundamental” empregado pelo art. 102, § 1o, da Constituição de 1988, regulamentado pela Lei 9.882/1999, dispondo sobre a modalidade de controle concentrado de constitucionalidade denominada argüição de descumprimento de preceito fundamental. Sobre esse ponto, é possível considerar, como preceito fundamental, tão somente as normas formais e materialmente constitucionais, incluindo os tratados sobre direitos humanos (posição a qual nos filiamos), ou, de modo diverso, todas as normas formalmente constitucionais, independentemente de seu conteúdo (presumindo que tudo o que foi inserido na Constituição foi considerado pelo Constituinte como fundamental, afirmação que não nos parece rigorosamente correta à luz de preceitos como o art. 242, § 2o).

8 Como exemplo de previsões que cumulam a natureza formal e material, encontramos o art. 5o, I, da Constituição de 1988, estabelecendo a igualdade entre homens e mulheres. Sobre normas que não estão no “código constitucional” mas que possuem hierarquia constitucional em razão de cuidarem de temas constitucionais, estamos falando dos direitos humanos contidos em tratados e demais termos internacionais dos quais o Brasil faça parte. Como preceitos apenas materialmente constitucionais, as regras que dão a estruturação política do Mercosul. Por fim, um bom exemplo de preceito apenas formalmente constitucional é a previsão de que o Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro/RJ, permanecerá na órbita federal, consoante expressa previsão do art. 242, § 2o da Constituição.

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Outro problema relevante trazido por essa classificação exclusivamente diz respeito ao efetivo conteúdo de preceitos constitucionais inseridos em partes específicas da Constituição (p. ex., previsões inseridas no art. 5o, da Constituição, para fins de considerá-los como cláusulas pétreas). Considerando que os direitos fundamentais são indispensáveis à realização da natureza humana, não nos parece que materialmente possa ser considerada como garantia individual fundamental a previsão contida no art. 5o, LXIV, do texto de 1988, já que a gravidade e o poder do crime organizado pode justificadamente intimidar a identificação dos responsáveis pela prisão de criminosos de alta periculosidade. É óbvio que aos presos devem ser indicadas as razões que motivaram sua detenção (viabilizando a ampla defesa), mas isso não justifica expor as autoridades policiais a risco, razão pela qual entendemos que preceitos como o art. 5o, LXIV da Constituição de 1988 são apenas formalmente garantias individuais, motivo pelo qual não se revelam como cláusulas pétreas (para o que deve ser compreendido o sentido material dos preceitos constitucionais). Essa espécie de problema tem amplo alcance prático, bastando lembrar que os direitos, garantias e deveres individuais se espalham por todo o ordenamento constitucional e por tratados internacionais, tal como preceituam os §§ 2o e 3o do art. 5o do ordenamento de 1988.

HIERARQUIA ENTRE NORMAS FORMAIS E NORMAS MATERIAIS

Cuidando das normas constitucionais quanto ao conteúdo, é importante saber se há alguma espécie de hierarquia entre preceitos classificados como Constituição em sentido formal e como Constituição em sentido material, para o que a resposta é afirmativa.

Dissemos que à luz da doutrina e jurisprudência dominantes no Brasil, considera-se como regra constitucional apenas as inseridas formalmente no “código” tido como Constituição, e também aqueles incluídas em tratados internacionais sobre direitos humanos aprovados nos moldes do art. 5o, § 3o, da Constituição. Por essa razão, a regra constitucional formal predomina em face das regras apenas materialmente constitucionais (desprovidas de hierarquia constitucional), cuja força normativa dependerá do instrumento normativo no qual está inserida (atos primários como leis, ou até mesmo atos secundários ou normativos-administrativos).

No que concerne ao confronto entre regras formalmente inseridas na Constituição originária, no Direito Comparado (especialmente na Alemanha), há referência à proeminência das normas formais e materialmente constitucionais em confronto com as normas apenas formalmente constitucionais, sob o argumento de que as primeiras representariam a decisão política fundamental, motivo pelo qual não poderiam ser violadas por regras ocasionalmente inseridas no diploma constitucional. 9

9 Sobre o tema, SCHIMITT, Carl, Teoría de la Constitución, trad. por Francisco Ayala, Madrid, Alianza Editorial S.A., 1992, e BACHOF, Otto, Normas Constitucionais Inconstitucionais?, trad. da edição alemã de 1951 por José Manuel M. Cardoso da Costa, Coimbra, Ed. Almedina, 1994.

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Ainda que possamos ter simpatia por essa posição para evitar o arbítrio do “Constituinte de plantão”, não é essa a posição dominante no Brasil, pois se afirma, categoricamente, que não existe qualquer hierarquia normativa em se tratando de previsões do Constituinte Originário (para o que será necessariamente equacionada a aparente antinomia, com base no critério da norma específica predominando sobre a geral, ou com base na razoabilidade e proporcionalidade). Por fim, obviamente pode haver subordinação no confronto entre atos do Constituinte Originário e o Derivado.10

NORMAS PERMANENTES, NORMAS TRANSITÓRIAS, NORMAS CONTIDAS APENAS EM EMENDAS E NORMAS SOBRE DIREITOS HUMANOS INSERIDAS EM TRATADOS

Sobre o sentido formal de Constituição, devemos lembrar que o Constituinte de 1988 elaborou o ordenamento em dois corpos numericamente distintos, o permanente e o transitório (ato das disposições constitucionais transitórias - ADCT). Os dispositivos permanentes correspondem àqueles considerados como estruturais para a nova ordem social e estatal que é concebida pela Constituição, enquanto as normas transitórias também têm estatura constitucional (porque estão inseridas formalmente na Constituição) mas servem para a ligação entre a ordem normativa passada e a nova ordem constitucional. Disso decorre que os preceitos do corpo permanente são aplicados indefinidamente, ao passo que os dispositivos transitórios em princípio são exauríveis.11

As emendas também podem introduzir normas transitórias, seja para dispor sobre a substituição de regimes constitucionais (p. ex,. em matéria previdenciária, os preceitos que cuidam do direito adquirido, da expectativa de direito e daqueles que ainda não ingressaram no sistema de seguridade), seja para normatizar certas matérias temporariamente (como fundo social de emergência, sem função de ligação de uma ordem constitucional para outra).

Aqui cabe um relevante alerta: por vezes as emendas trazem preceitos que não são inseridos formalmente no corpo permanente ou no ADCT, mas ainda assim têm força hierárquica equivalente às normas constitucionais do Poder Reformador, exigindo maior atenção do operador do Direito. É também importante enfatizar a inexistência de hierarquia entre as normas do corpo permanente e das do corpo transitório, motivo pelo qual ostentam força normativa compatível com o Poder Constituinte que os gerou (ou originário ou reformador).

10 Retomaremos esse problema quando cuidarmos do Poder Constituinte e da Hermenêutica Constitucional. 11 Luís Roberto Barroso, Disposições Constitucionais Transitórias (natureza, eficácia e espécies), Delegações Legislativas (validade e extensão), Poder Regulamentar (conteúdo e limites), Revista de Direito Público, no 96, out-dez de 1994, p. 71, definiu as transitórias como propriamente ditas (regulam diretamente determinada situação até que ocorra termo ou condição resolutiva, p. ex., a edição de uma lei), de efeitos instantâneos e definitivos (exaurem-se com a criação ou providência que prevê) e de efeitos diferidores (sustam a operatividade de norma constitucional por prazo ou evento).

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Afinal, dentre as alterações trazidas pela Emenda Constitucional 45/2004, a inserção do § 3o no art. 5o da Constituição, prevendo que “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”, exige que esses atos internacionais sejam considerados como parte integrante do conceito de Constituição em sentido formal.

QUANTO À SISTEMATIZAÇÃO FORMAL: BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE, ORGÂNICAS E INORGÂNICAS

No Brasil, até a edição da Emenda Constitucional 45/2004, ao falarmos em Constituição, tínhamos em mente o ordenamento formalizado num único diploma ou “código” elaborado de modo solene por poder aceito como Constituinte Originário ou Derivado. Porém, no Direito Comparado, am alguns países (como França e Espanha), há muito é utilizado o conceito de Bloco Constitucionalidade para identificar a reunião de vários diplomas normativos igualmente considerados como constitucionais, ainda que produzidos em épocas distintas e sem a preocupação de sistematização típica da codificação.

Não estamos cuidando da Constituição não escrita da Inglaterra sujeita à common law (embora essa possa também ser considerada como uma modalidade de bloco), mas de ordenamentos vistos à luz da doutrina da civil law ou do positivismo, cujo exemplo mais relevante é o da França, na qual atualmente o Conselho Constitucional aplica a Constituição da 5a República, de 1958, agregada basicamente à Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, bem como à parte econômica e social da anterior Constituição de 1946. A solução dada pelo Conselho Constitucional na década de 1970 se ampara no preâmbulo da Constituição de 1958, e ao fato de esse ordenamento curiosamente não dispor suficientemente sobre direitos fundamentais nem sobre matéria socioeconômica.12

No Brasil, a existência de bloco de constitucionalidade vinha sendo discutida a propósito da força normativa constitucional do preâmbulo do ordenamento de 1988, bem como dos tratados internacionais sobre direitos humanos.

Acerca do preâmbulo, é indiscutível sua utilidade no que tange à interpretação da Constituição, pois nele estão indicados os fundamentos que nortearam os trabalhos constituintes. Porém, acompanhamos a posição dominante que não reconhece força normativa ao preâmbulo da Constituição de 1988, aliás, desnecessária em vista de que

12Sobre o tema, Louis Favoreu e Francisco Rubio Llorente, El bloque de la constitucionalidad, Madrid, Ed. Civitas, 1991, bem como Juan-Sebastián Piniella Sorli, Sistema de Fuentes y Bloque de Constitucionalidad, Barcelona, Bosh Casa Editorial, 1994.

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essencialmente seu conteúdo está refletido no texto positivado, de modo expresso ou implícito. A única ressalva diz respeito à referência feita a Deus no preâmbulo constitucional e que não encontra amparo nos dispositivos positivados, mas essa divergência não traz maiores conseqüências jurídicas em razão de o texto normativo ser expresso no sentido de o Estado Brasileiro ser laico, bem como por assegurar a liberdade religiosa e até mesmo a inexistência de credo aos indivíduos ateus.

No que concerne aos tratados internacionais sobre direitos fundamentais, a força constitucional desses atos foi rejeitada o argumento de teriam força constitucional em decorrência da previsão do art. 5o, § 2o, do ordenamento de 1988 (inclusive com precedentes do Supremo Tribunal Federal em julgamentos sobre a prisão de depositário infiel combatida com amparo no Pacto de San Jose da Costa Rica, ao qual foi reconhecida força normativa de lei ordinária geral, que não poderia revogar o ato legislativo específico anterior que permite a prisão nesses casos). Contudo, ante à expressa redação do § 3o no art. 5o da Constituição (na redação inserida pela Emenda Constitucional 45/2004), ficou evidenciado que també têm força constitucional os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, sendo os mesmos equivalentes às emendas constitucionais. Vale observar, porém, que o Supremo Tribunal Federal anteriormente já havia abrigado o conceito restrito de bloco de constitucionalidade, o qual compreendia tanto a ordem expressa e positivada quanto todos os seus princípios orientadores e inerentes, conformando-se à “Constituição Total”.13

No entanto, a conceituação de bloco de constitucionalidade continua sendo de crescente interesse porque as novas configurações comunitárias podem conferir maior relevância normativa aos tratados internacionais, particularmente os que estruturam a sociedade comunitária e eventuais entes governamentais plurinacionais. Por fim, a consolidação das normas constitucionais nos leva à classificação dos ordenamentos quanto à sistematização, em face do que encontramos as Constituições orgânicas ou reduzidas (concentradas num único documento) e as Constituições inorgânicas ou variadas (que se espalham por vários instrumentos normativos).

QUANTO À FORMA DE APRESENTAÇÃO: ESCRITAS E NÃO ESCRITAS

Em se tratando da maneira ou forma pela qual as Constituições são apresentadas, podemos classificá-las como escritas e como não escritas. De imediato, convém ressaltar que a forma de

13 Nesse sentido, a Adin 595, Rel. Min. Celso de Mello (Informativo STF 258), cuidando do sentido de Constituição para fins de controle de constitucionalidade.

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manifestação das Constituições não interfere necessariamente em seus conteúdos, mas apenas nos modos pelos quais o ordenamento constitucional predominantemente se exterioriza (em um único ou vários instrumentos normativos, pela jurisprudência, e pelos costumes), pela sistematização de suas regras, e pela facilidade de sua compreensão e interpretação. Dessa maneira, as modalidades escritas, positivas ou positivadas são as elaboradas num mesmo processo constituinte que se realiza de forma solene, positivando preceitos de forma sistematizada num mesmo diploma, de maneira codificada, geralmente em instrumento chamado de Constituição (como o texto brasileiro de 1988, com raras exceções, como a Lei Fundamental de Bonn, de 1949, ainda aplicada na Alemanha unificada). As Constituições escritas são definidas pelo texto positivado (característica dominante), mas admitem conteúdo implícito ao ordenamento, bem como a existência de costumes constitucionais e outros mecanismos de integração de lacunas e de elasticidade do ordenamento, a até mesmo acréscimos promovidos por tratados considerados com força equivalente às emendas constitucionais. Por sua vez, as Constituições não escritas são pouco freqüentes, e conjugam, de forma acentuada, textos escritos em momentos históricos diversos (até com formas jurídicas distintas) com costumes e jurisprudência da common law. O exemplo geralmente indicado é o da Constituição Inglesa, valendo lembrar que a Constituição Americana (de 1787 e ainda vigente) é tido como escrita, muito embora atualizada pelo sistema dacommon law. Daí, verificamos que a Constituição não escrita combina textos normativos positivados com jurisprudência e com costumes (esses sim, não escritos necessariamente em documentos oficiais).

QUANTO AO MODO DE ELABORAÇÃO: DOGMÁTICAS E HISTÓRICAS

Conexa às Constituições quanto à forma de apresentação, encontramos as ordens normativas classificadas quanto ao modo de elaboração, que se dividem em dogmáticas (associadas aos diplomas escritos) e históricas (ligadas aos ordenamentos não escritos). Em razão da maneira sistematizada pela qual os ordenamentos escritos expõem suas normas (expressando-se mediante princípios e regras visando a melhor aplicação de seus comandos e permitindo seu estudo ordenado), e considerando que a supremacia jurídica da Constituição impõe seus preceitos como dogmas em relação aos demais diplomas normativos, esse modo de elaboração solene e codificado define as Constituições dogmáticas. Nesse sentido, temos a Constituição Brasileira de 1988, a despeito de os tratados sobre direitos humanos não se apresentarem de modo “codificado”, como ocorre normalmente com as emendas.

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As Constituições históricas ou costumeiras são aquelas formadas no processo de evolução das sociedades, sendo compostas de diversos documentos, pela jurisprudência e costumes que definem os ordenamentos não escritos (tal como a Constituição Inglesa).

QUANTO À ORIGEM: PROMULGADAS, OUTORGADAS, CESARISTAS E PACTUADAS

Vistas quanto à origem ou a maneira pela qual nascem as Constituições, podemos classificá-las em promulgadas, outorgadas, cesaristas e pactuadas. As Constituições promulgadas são também chamadas de populares ou democráticas, e representam a forma ideal de elaboração dos ordenamentos constitucionais, pois refletem a vontade geral expressa pelo consenso social (tanto quanto isso é possível). Nesse ponto, é necessário observar que a produção de um texto normativo diretamente pelo povo criaria sérios obstáculos à operacionalidade dos trabalhos, podendo gerar demoras consideráveis em prejuízo à necessária celeridade dos trabalhos constituintes (tendo em vista que a sociedade e o Estado ficam em compasso de espera do novo texto para a tomada de decisões relevantes). Plebiscitos e referendos em relação a todos os preceitos constitucionais são desnecessários ante à clareza e certeza sobre certas decisões, além do que podem obstar a fluência adequada dos trabalhos, motivo pelo qual as Constituições democráticas devem combinar mecanismos representativos (com a instalação de Assembléia Constituinte) com meios pelos quais o povo e segmentos organizados da sociedade (como organizações não governamentais, federações de trabalhadores e empresários) podem apresentar propostas de textos, levando à consideração popular (por referendo ou plebiscito) apenas as questões mais polêmicas e relevantes. As Constituições Brasileiras devem ser classificadas predominantemente como democráticas, populares ou promulgadas (inclusive a de 1988), com exceção dos ordenamentos de 1824, de 1937, de 1967 e da nova ordem gerada pela Emenda 01/1969. Os textos constitucionais outorgados são os textos produzidos sem participação popular, surgindo sem a real utilização de instrumentos democráticos, sejam ele diretos ou representativos, daí porque normalmente se diz que são Constituições impostas por uma pessoa ou grupo que domina o poder político. Lembre-se que alguns autores negam a denominação de Constituição aos diplomas outorgados, então chamados de Cartas Constitucionais. Porém, nem sempre as Constituições outorgadas são geradas por regimes arbitrários, a exemplo do que ocorreu com o ordenamento do Império Brasileiro de 1824, no qual havia visível concentração de competências no Monarca (até pela reunião do Poder Executivo e do Poder Moderador na mesma pessoa), mas nem por isso se tratava de regime opressor.

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Também foi outorgada a Constituição Brasileira de 1937, editada no Estado Novo e chamada de “polaca” em razão de sua inspiração no ordenamento polonês então vigente. É interessante observar que, à época, havia segmentos que reconheciam virtudes da rigidez do comando estatal, pois os problemas sociais e econômicos decorrentes da crise de 1929 mereciam postura mais ativa do Estado Social que então se estruturava (inclusive sob o reflexo das ilusórias conquistas ostentadas pelo nazismo na Alemanha e pelo fascismo da Itália, o que deu infeliz sustentação à ditadura de Getúlio Vargas para combater a questão social). Outra observação importante diz respeito à necessidade de efetivo funcionamento dos instrumentos democráticos (mesmo os representativos), não bastando apenas sua previsão formal. Isso porque a Constituição Brasileira de 1967 foi apreciada por Congresso Constituinte, mas a pouca liberdade política vivida à época, bem como o exíguo tempo conferido para a apreciação do projeto apresentado pelo Executivo (sob pena de aprovação por decurso de prazo), conferem a esse diploma a característica real de outorga. Também foi outorgada a Emenda Constitucional de 1969 (por alguns entendida como manifestação do Constituinte Originário tendo em vista a nova ordem estabelecida pelo que se define como “o golpe dentro do golpe”), já que a mesma foi produzida pelo governo transitório que substituiu o Presidente Costa e Silva, quando o Congresso Nacional estava “fechado”, dando nova identidade ao ordenamento de 1967. Quanto às Constituições cesaristas, o primeira advertência é que à época do Império Romano não existiam ordenamentos constitucionais (aliás, vimos que esses surgem apenas no século XVIII d.C.). Com efeito, os ordenamentos recebem o nome de “cesaristas” em razão da maneira pela qual César, Imperador Romano, levava à aclamação pública certas normas que produzia, de modo as Constituições assim produzidas combinam a manifestação democrática com a outorga, pois o povo é chamado a se manifestar em referendo ou plebiscitos em face de ordenamento integralmente elaborado por imperadores ou ditadores (como foi o caso da Constituição Napoleônica e da Constituição Chilena elaborada no Governo de Pinochet). Por fim, as Constituições pactuadas ou dualistas surgem de acordo firmado pelos detentores do Poder Constituinte (Chefe do Executivo e Parlamento, Monarca e Lordes, ou dois ou mais que episodicamente possuam a prerrogativa de elaborar a nova ordem constitucional). Os exemplos dessa modalidade de Constituição são remotos, mais ainda vigentes, como é o caso da ordem constitucional inglesa, especificamente da Magna Carta de 1215, firmada entre o Rei João e a nobreza britânica.

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DIREITO CONSTITUCIONAL I - PROF. JOSÉ CARLOS FRANCISCO

QUESTÕES

1. Por que o nível de abstração dos preceitos constitucionais deve ser mais elevado em relação às normas primárias e secundárias?

2. Por que podemos afirmar que as constituições fixam a estrutura básica do Estado? Qual é a estrutura básica do Estado?

3. Qual a diferença entre Constituição e Carta Constitucional? 4. Por que nos regimes totalitários o valor da constituição é menor? 5. O que são elementos orgânicos? 6. O que são elementos limitativos? 7. O que são elementos sócio-ideológico? 8. O que são elementos de estabilização constitucional? 9. O que são elementos formais de aplicabilidade? 10. O que são princípios democráticos? 11. Em que consiste o princípio da limitação do poder? 12. Disserte sobre o princípio da supremacia da constituição e hierarquia de

normas.13. Qual a distinção e a importância entre constituição formal e a material? 14. O que são normas permanentes, normas transitórias e normas contidas

apenas em emendas? 15. O que são constituições orgânicas e inorgânicas? 16. O que são constituições escritas e não escritas? 17. O que são constituições dogmáticas e históricas? 18. O que são constituições promulgadas, outorgadas, cesaristas e

pactuadas?

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DIREITOADMINISTRATIVO

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO II

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DIREITO ADMINISTRATIVO – PROFª CRISTINA APARECIDA FACEIRA MEDINA MOGIONI

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM SENTIDO SUBJETIVO

Sob o enfoque subjetivo, a expressão administração pública engloba as pessoas jurídicas, os órgãos e os agentes públicos que exercem a função administrativa.

AS PESSOAS JURÍDICAS

O Estado pode desenvolver por si mesmo a função administrativa ou prestá-la através de outros sujeitos. Sempre que o Estado presta por si mesmo a função administrativa, fala-se em Administração Direta ou Centralizada. Assim é que, por exemplo, a União, os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios, por meio de seus órgãos e agentes, prestam o serviço de educação. Ex: Secretaria de Educação de um dado município adquire gêneros alimentícios para a merenda escolar mediante prévia licitação. Está, portanto, exercendo a função administrativa na Administração Direta. Por outro lado, sempre que a atividade administrativa é prestada por outra pessoa jurídica diferente das pessoas políticas (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), fala-se em Administração Indireta ou Descentralizada. A descentralização pode se dar mediante a criação, pelo Poder Público, de uma pessoa jurídica de direito público ou privado a quem se transfere a titularidade e a execução de determinada atividade administrativa. Igualmente ocorre a descentralização ao se transferir somente a execução de certa atividade a uma pessoa jurídica de direito privado previamente existente. Não se deve confundir descentralização administrativa com desconcentração administrativa. Retomando lições da renomada administrativista Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a descentralização difere da desconcentração “pelo fato de ser esta uma distribuição interna de competências, ou seja, uma distribuição de competências dentro da mesma pessoa jurídica... A descentralização supõe a existência de, pelo menos, duas pessoas entre as quais se repartem as competências” (pág. 349). No caso da desconcentração, as atribuições administrativas são desempenhadas pelos diversos órgãos que compõem a pessoa jurídica em pauta. Por exemplo, a União presta seus serviços públicos pelos Ministérios, pelas Secretarias, pelas Diretorias, pelas Divisões, etc., segundo uma relação de hierarquia, isto é, de coordenação e subordinação entre os diversos órgãos. No caso da descentralização, não vige a hierarquia entre a pessoa política e a pessoa estatal descentralizada, vige sim, o controle ou tutela. Conforme Celso Antônio Bandeira de Mello, o controle “designa o

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DIREITO ADMINISTRATIVO – PROFª CRISTINA APARECIDA FACEIRA MEDINA MOGIONI

poder que a Administração Central tem de influir sobre a pessoa descentralizada. Assim, enquanto os poderes do hierarca são presumidos, os do controlador só existem quando previstos em lei e se manifestam apenas em relação aos atos nela indicados”. (pág. 133). Conforme o Direito Positivo Brasileiro, são entidades da Administração Indireta, as Autarquias, as Fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, as Sociedades de Economia Mista e as Empresas Públicas. Ficaram de fora, sem razão, as empresas concessionárias e permissionárias de serviço público, constituídas ou não com a participação acionária do Estado. A seguir elencam-se os traços principais de cada uma das entidades supra citadas.

AS PESSOAS POLÍTICAS

A União, os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios são pessoas políticas, ou seja, têm autonomia, o poder de criar as próprias leis, dentro da competência a cada um estabelecida na Constituição Federal. A pessoa política é autônoma porque é dotada de um legislativo próprio com competência legislativa haurida diretamente da Constituição Federal. Todas as pessoas políticas têm, obviamente, personalidade jurídica de Direito Público.

AUTARQUIAS

São pessoas jurídicas de direito público, criadas por lei, para a prestação de serviço público. Estão submetidas ao regime jurídico de Direito Público. São entes autônomos, se auto-administram, mas não são autonomias, porque não possuem um legislativo próprio como as pessoas políticas. Não se subordinam hierarquicamente à pessoa política que as criou, mas se submetem ao controle finalístico, também chamado de tutela administrativa, que habilita a pessoa política a fiscalizar a autarquia para verificar se ela está atingindo a finalidade para a qual foi criada, que sempre deve corresponder à prestação de um serviço público de forma descentralizada. Com a criação da autarquia, que, repita-se, deve se dar mediante lei, busca-se prestar o serviço público com maior especialização. As autarquias gozam dos mesmos privilégios e prerrogativas da Administração Pública Direta. Assim, têm prazos processuais dilatados, em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer (artigo 188 do CPC); estão sujeitas a Juízo Privativo, etc. Exemplos de autarquias: OAB – autarquia corporativa; INSS; ANATEL, ANA.

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DIREITO ADMINISTRATIVO – PROFª CRISTINA APARECIDA FACEIRA MEDINA MOGIONI

FUNDAÇÕES CRIADAS E INSTITUÍDAS PELO PODER PÚBLICO

As fundações caracterizam-se pela dotação patrimonial vinculada ao cumprimento de uma finalidade. Diferem-se das associações ou corporações porque, nestas, o que mais importa, é a reunião de pessoas que agem em prol de seus próprios interesses, apresentando-se secundário o patrimônio. As fundações nascem pela vontade do instituidor que destina um acervo de bens para a execução de determinada atividade. O Estado pode criar uma fundação, desde que haja autorização em lei. Muita discussão existe a respeito da natureza jurídica das fundações. Sobre o assunto há as seguintes correntes: A primeira delas entende que as fundações são sempre pessoas jurídicas de direito privado. A segunda corrente entende que o Estado pode instituir tanto uma fundação de Direito Público, quanto de Direito Privado, dependendo do que constar de seu estatuto. Com o advento da Constituição Federal de 1.988, alguns passaram a entender que todas as fundações governamentais são dotadas de personalidade jurídica de Direito Público. Razoável o entendimento da segunda corrente. Nesse caso, ainda que o Estado decida criar uma fundação com personalidade de Direito Privado, ela não será submetida integralmente ao regime jurídico de Direito Privado, eis que este sofrerá derrogações pelo regime jurídico de Direito Público. Se a fundação possuir personalidade jurídica de Direito Público, ela se sujeitará ao regime jurídico de Direito Público. A fundação com personalidade jurídica de Direito Público também é chamada de autarquia fundacional e o regime a ela aplicado é em tudo semelhante ao que se submete a autarquia. O substrato da autarquia fundacional é o patrimônio vinculado a certo(s) fim(s) de interesse público.

EMPRESAS PÚBLICAS E SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA

São pessoas jurídicas de direito privado, cuja criação é autorizada por lei, para prestação de serviço público ou para a exploração de atividade econômica. Após a autorização por lei para a criação da empresa pública ou sociedade de economia mista, há que se elaborar seus atos constitutivos e levá-los a registro no órgão competente, a partir do que a empresa pública ou a sociedade de economia mista passa a ter personalidade.

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DIREITO ADMINISTRATIVO – PROFª CRISTINA APARECIDA FACEIRA MEDINA MOGIONI

Objetiva prestar serviço público ou explorar atividade econômica. A prestação de atividade econômica somente pode ocorrer nas hipóteses definidas pelo artigo 173 da Constituição Federal, se necessário aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, ou, ainda, em regime de monopólio, nos termos do artigo 177 da C.F. Submetem-se a um regime jurídico híbrido, ora de Direito Público, ora de Direito Privado. Para contratar empregados, por exemplo, devem realizar previamente concurso público (imposição do regime jurídico de direito público); a contratação em si, no entanto, se dá pelas regras da CLT, como qualquer empregador privado, embora sujeita a algumas derrogações de direito público.

DIFERENÇAS ENTRE AS EMPRESAS PÚBLICAS E AS SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA

Quanto ao capital: a empresa pública tem capital integralmente público; a sociedade de economia mista conjuga capital público e privado, devendo o Estado ter a maioria do capital com direito a voto;

Quanto ao tipo de sociedade: a sociedade de economia mista só pode ser do tipo sociedade anônima, ao passo em que empresa pública pode se revestir de qualquer tipo previsto em lei, pode, inclusive, ser unipessoal.

TERCEIRO SETOR

O terceiro setor não faz parte da Administração Pública mas, dada sua implicação com o interesse público, convém, desde logo, seja mencionado, ainda que sucintamente. O primeiro setor é o Estado. O segundo setor é o mercado, a iniciativa privada, com fins lucrativos. O terceiro setor se caracteriza por prestar atividade de interesse público, sem intuito de lucro, mas por iniciativa privada. O terceiro setor não integra a administração pública direta ou indireta. É composto por pessoas jurídicas de direito privado que visam atingir finalidade de interesse público, sem intenção lucrativa, são entes que colaboram com o Estado. Podem receber o qualificativo de utilidade pública, de fins filantrópicos, de organização social, conforme o caso específico. As entidades que compõem o terceiro setor recebem especial disciplina do Estado porque prestam atividade de interesse público e muitas vezes recebem incentivos mediante a atividade de fomento. Podem ser divididas em: a. Serviços Sociais Autônomos; b. Entidades de Apoio; c. Organizações Sociais; d. Organização da Sociedade Civil de Interesse Público.

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5CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO II

DIREITO ADMINISTRATIVO – PROFª CRISTINA APARECIDA FACEIRA MEDINA MOGIONI

Modernamente, utiliza-se a expressão entidade paraestatal para designar as entidades do terceiro setor. Todavia, não há uniformidade no emprego da expressão entidade paraestatal. Para Hely Lopes Meirelles, são entidades paraestatais as empresas públicas, as sociedades de economia mista, as fundações instituídas pelo Poder Público, além dos serviços sociais autônomos.

OS ÓRGÃOS PÚBLICOS

Hely Lopes Meirelles define os órgãos públicos como “centros de competência instituídos para o desempenho de funções estatais, através de seus agentes, cuja atuação é imputada à pessoa jurídica a que pertencem”. (pág. 66). Não há que se confundir o órgão com a pessoa jurídica. Aquele integra esta. Pode se fazer uma comparação com a pessoa física e seus diversos órgãos, cada órgão da pessoa física tem determinada função e todos os órgãos são parte da pessoa. Surgiram três teorias para explicar como se atribuiria à Administração Pública os atos das pessoas físicas, seus agentes, no exercício da função administrativa:

a. Teoria do Mandato: considerava o agente um mandatário da pessoa jurídica. A teoria não se sustentou diante da dificuldade em explicar como o Estado, que não é dotado de vontade, no sentido próprio do termo, ou seja, como algo inerente ao ser humano, poderia outorgar o mandato.

b. Teoria da Representação: considerava o agente um representante da pessoa jurídica, à semelhança do que ocorre com a tutela e a curatela. Critica-se tal teoria porque se equipararia o Estado ao incapaz, surgindo o questionamento de como o Estado, equiparado ao incapaz, poderia eleger seu representante validamente.

A teoria do mandato e a teoria da representação não explicam como poderia o Estado responder pelos atos dos mandatários e representantes que agissem além dos poderes a eles outorgados. No caso da Administração Pública, ainda que o agente público atue com excesso de poder, aquela responderá pessoalmente pelos danos causados a terceiros, nos termos do que dispõe o artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal.

c. Teoria do Órgão: surgiu na Alemanha, idealizada por Otto Gierke. Segundo esta teoria, a atuação dos agentes públicos é imputada aos órgãos a que pertencem e, portanto, à pessoa jurídica que compõe a Administração Pública.

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6CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO II

DIREITO ADMINISTRATIVO – PROFª CRISTINA APARECIDA FACEIRA MEDINA MOGIONI

CLASSIFICAÇÃO DOS ÓRGÃOS PÚBLICOS

Existem várias classificações a respeito dos órgãos públicos. Aqui se destaca a mais usual delas.

Quanto à posição estatal: a. Independentes: são os originários da Constituição e representativos dos

Poderes de Estado. Não são submetidos a hierarquia, mas apenas ao controle constitucional de um Poder sobre o outro. São as Casas Legislativas, as Chefias de Executivo e os Tribunais. Hely Lopes Meirelles ainda inclui o Ministério Público e o Tribunal de Contas, por serem órgãos funcionalmente independentes.

b. Autônomos: são os localizados na cúpula da Administração, imediatamente ou diretamente subordinados à chefia dos órgãos independentes. Participam das decisões de governo e possuem capacidade de auto-administração, técnica e financeira. Incluem-se na categoria os Ministérios, as Secretarias de Estado e de Município. O Ministério Público, para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, é órgão autônomo, não independente, como propõe Hely Lopes Meirelles.

c. Superiores: são os de direção, comando, controle, mas sempre sujeitos à hierarquia de uma chefia mais elevada. Não possuem capacidade de auto-administração e nem tampouco financeira. São responsáveis pelas decisões técnicas acerca dos assuntos de sua competência. Possuem variadas denominações: Gabinetes, Divisões, Coordenadorias, Departamentos, etc.

d. Subalternos: caracterizam-se por exercerem funções de execução, segundo as diretrizes dos órgãos superiores de decisão. Possuem reduzido poder decisório. São exemplos destes órgãos as seções de expediente, de material, de pessoal, as portarias, etc.

Quanto à estrutura: a. Simples ou unitários: são os constituídos por um único centro de

atribuições; o que o caracteriza é a inexistência de outro órgão dentro de sua estrutura. Ex: Portaria.

b. Compostos: caracterizam-se por possuírem, em sua estrutura, outros órgãos menores, com competência para desempenhar a atividade-fim ou a atividade-meio do órgão composto a que pertencem. Ex: As Secretarias de Estado.

Quanto à composição: a. Singulares ou unipessoais: são os que agem e decidem por um único

agente. Ex: Presidência da República. b. Coletivos ou pluripessoais: são os que agem e decidem pela vontade

majoritária de seus membros. Ex: Tribunal de Impostos e Taxas.

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7CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO II

DIREITO ADMINISTRATIVO – PROFª CRISTINA APARECIDA FACEIRA MEDINA MOGIONI

OS AGENTES PÚBLICOS

Hely Lopes Meirelles define agentes públicos como “todas as pessoas físicas incumbidas, definitiva ou transitoriamente, do exercício de alguma função estatal” (pág. 73). O agente público é necessariamente a pessoa física, encarregada do exercício de alguma função do Estado. A classificação dos agentes públicos e seu estudo detalhado serão feitos em capítulo próprio.

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8CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO II

DIREITO ADMINISTRATIVO – PROFª CRISTINA APARECIDA FACEIRA MEDINA MOGIONI

QUESTÕES

1. Sob o enfoque subjetivo, o que significa a Administração Pública? 2. O que é Administração Direta ou Centralizada e quem a exerce? 3. O que é Administração Indireta ou Descentralizada e quem a exerce? 4. Como pode se dar a descentralização? 5. Qual a distinção entre descentralização e desconcentração? 6. Há hierarquia entre a pessoa política e a pessoa que exerce a

descentralização?7. Quais as entidades da administração indireta? 8. O que são autarquias? 9. Qual a principal distinção entre autarquias e pessoas políticas? 10. Como se cria uma autarquia? 11. A autarquia tem prazo em quádruplo para contestar e em dobro para

recorrer?12. Qual a distinção entre fundação e corporação? 13. O Estado pode criar uma fundação? 14. Qual a natureza jurídica da fundação? 15. Qual a distinção entre autarquia e autarquia fundacional? 16. Disserte sobre as empresas públicas e as sociedades de economia

mista.17. Qual a distinção entre o Primeiro, Segundo e Terceiro Setor? 18. O Terceiro Setor integra a Administração Pública? 19. Quem compõe o Terceiro Setor? 20. Como se dividem as entidades que integram o Terceiro Setor? 21. Qual o significado da expressão “paraestatal”? 22. O que são órgãos públicos? 23. Quais as teorias que procuram explicar a responsabilidade da

Administração Pública pelos atos de seus agentes? 24. O que são e quais são os órgãos independentes? 25. O que são e quais são os órgãos autônomos? 26. O que são e quais são os órgãos superiores? 27. O que são e quais são os órgãos subalternos? 28. O que são e quais são os órgãos simples? 29. O que são e quais são os órgãos compostos? 30. O que são e quais são os órgãos singulares? 31. O que são e quais são os órgãos coletivos?

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DIREITOTRIBUTÁRIO

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO II

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1CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO II DIREITO TRIBUTÁRIO- PROFºs. GUILHERME ADOLFO DOS SANTOS MENDES e

DIMAS MONTEIRO DE BARROS

COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA

Diz-se competência tributária ao poder conferido pela Constituição Federal às Pessoas Políticas (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) para legislar sobre tributos. Trata-se, portanto, de uma competência legislativa.

É por esse motivo que há muitas críticas à redação do artigo 6° do CTN, uma vez que só a Constituição Federal confere competência tributária. Vejamos seu teor:

Art. 6º – A atribuição constitucional de competência tributária compreende a competência legislativa plena, ressalvadas as limitações contidas na Constituição Federal, nas Constituições dos Estados e nas Leis Orgânicas do Distrito Federal e dos Municípios, e observado o disposto nesta Lei.

Assim, é na nossa Lei Maior onde estão prescritos taxativamente quais tributos podem ser criados por cada uma das Pessoas Políticas. A isto se chama “Discriminação Constitucional de Rendas”.

Não obstante, para que um Ente possa cobrar um tributo a ele discriminado, não basta dispor da competência tributária conferida pela Constituição. Ela (a competência) deve ser exercida mediante Lei do próprio Ente. Por exemplo, é da competência tributária dos Estados o IPVA (Imposto sobre Veículos Automotores), mas se o Rio Grande do Sul não dispuser de lei emanada pela sua própria Assembléia Legislativa e sancionada pelo seu Governador, dos proprietários de automóveis deste Estado nada poderá ser cobrado a título deste imposto.

Em várias hipóteses que serão vistas oportunamente, uma Pessoa Política recebe participação da arrecadação de determinados tributos da competência de outra. Neste caso, a que participa não detém nenhuma parcela da competência tributária. É o que preceitua o parágrafo único, artigo 6°, do CTN:

Parágrafo único. Os tributos cuja receita seja distribuída, no todo ou em parte, a outras pessoas jurídicas de direito público pertencerá à competência legislativa daquela a que tenham sido atribuídos.

Em qualquer hipótese, mesmo na vista logo acima, se uma Pessoa Política deixar de exercer a sua competência tributária, esta não é transferida para outro Ente Federativo. É o que determina o artigo 8° do CTN:

Art. 8º – O não-exercício da competência tributária não a defere a pessoa jurídica de direito público diversa daquela a que a Constituição a tenha atribuído.

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2CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO II DIREITO TRIBUTÁRIO- PROFºs. GUILHERME ADOLFO DOS SANTOS MENDES e

DIMAS MONTEIRO DE BARROS

Assim, por exemplo, do ITR que é instituído e cobrado pela União, 50% é repassado aos Municípios. Se a União deixasse de criar este imposto ou revogasse a Lei que ora autoriza a sua cobrança, não poderiam os Municípios instituir o ITR mesmo para os imóveis localizados em seus territórios.

Aliás, mesmo que a União desejasse transferir sua competência para instituir o ITR aos municípios, não poderia fazê-lo, pois a Competência Tributária é indelegável. Só as funções de arrecadar e fiscalizar tributos podem ser transferidas de uma pessoa jurídica de direito público a outra. Vejamos o que preceitua o artigo 7° do CTN:

Art. 7º – A competência tributária é indelegável, salvo atribuição das funções de arrecadar ou fiscalizar tributos, ou de executar leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária, conferida por uma pessoa jurídica de direito público a outra, nos termos do § 3º do artigo 18 da Constituição.

Assim, as funções de fiscalizar e arrecadar o ITR podem ser transferidas aos Municípios. Isto não implicaria em delegar o Poder de Legislar sobre este imposto.

Note-se que, a despeito de se tratar de uma Autarquia Federal, é com base neste dispositivo que o INSS fiscalizava e arrecadava diversos tributos (no caso, contribuições) da competência tributária da União. Havia, no caso, transferência de uma pessoa jurídica de direito público (a União) para outra (o INSS) das funções de arrecadar e fiscalizar. O mesmo não pode ser dito das funções exercidas pela Secretaria da Receita Federal, pois se trata de um órgão da própria União, ou seja, não é dotada de personalidade jurídica própria. É, portanto, a própria União que exerce tais funções através de seu órgão especializado.

O § 1° do artigo 7° ainda preceitua que a atribuição de arrecadar e fiscalizar compreende as garantias e os privilégios processuais que competem à pessoa jurídica de direito público que a conferir.

Tais garantias e privilégios serão vistos em tópico próprio, mas para adiantar alguns exemplos temos a presunção de certeza e liquidez da dívida ativa regularmente inscrita, a preferência do crédito tributário em relação a qualquer outro e a não necessidade de concurso de credores ou de habilitação em falência para sua cobrança judicial.

Como estabelece o § 2°, artigo 7°, a atribuição das funções de arrecadar e fiscalizar “pode ser revogada, a qualquer tempo, por ato unilateral da pessoa jurídica de direito público que a tenha conferido”. E o § 3° prevê ainda que “não constitui delegação de competência o cometimento, a pessoas de direito privado, do encargo ou da função de arrecadar tributos”. É com base neste dispositivo que os bancos privados recebem o pagamento de tributos.

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DAS PESSOAS POLÍTICAS

Como vimos, a competência tributária é, em síntese, a competência legislativa conferida a uma Pessoa Política – dotada, portanto, de Poder Legislativo – para instituir tributos discriminados a ela pela Constituição Federal.

A instituição de tributos é normalmente realizada por meio de lei ordinária. Há, porém, várias exceções, como a instituição por lei complementar do imposto sobre grandes fortunas. Tais exceções, contudo, devem ser expressas.

Diz-se que a competência tributária divide-se em: Competência tributária comum: é aquela atribuída a mais de

uma classe de Pessoas Políticas. Assim, seria da competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios as taxas e as contribuições de melhoria.

Competência tributária privativa: é a atribuída a uma só classe de pessoas políticas. São exemplos os impostos especificamente discriminados pela Constituição: o Imposto de renda é da competência privativa da União; o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores, dos Estados e Distrito Federal; e o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana, dos Municípios.

Competência tributária residual: é assim chamada a competência para instituir tributos outros que não os especificamente previstos. É exemplo a competência conferida à União para criar outros impostos além dos expressamente a ela discriminados.

Competência tributária extraordinária: é a conferida a uma Pessoa Política, mas que só pode ser exercida em situações excepcionais e expressamente previstas. Temos como único exemplo, os impostos de guerra da competência da União.

Registre, contudo, que há críticas doutrinárias acerca desta classificação. A rigor, não faria sentido falar em competência comum para as taxas e privativas para impostos, uma vez que ambas as espécies podem ser instituídas por qualquer um dos Entes Políticos, respeitadas as respectivas competências. Há também os que afirmam não haver competência privativa dos Estados, Distrito Federal e Municípios relativamente a impostos, posto que a União, em caso de guerra externa, pode alcançar os mesmos fatos discriminados àqueles Entes.

DA UNIÃO

A União detém a competência comum com os Estados, Distrito Federal e os Municípios para instituir taxas e contribuições de melhoria. Tal competência, evidentemente, deve ser exercida dentro de sua órbita de competência administrativa.

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4CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO II DIREITO TRIBUTÁRIO- PROFºs. GUILHERME ADOLFO DOS SANTOS MENDES e

DIMAS MONTEIRO DE BARROS

Na competência privativa da União, temos os empréstimos compulsórios, a grande maioria das contribuições especiais e os sete impostos previstos no artigo 153 da Constituição Federal. Esta competência será minuciosamente tratada ao longo deste trabalho.

Só a União possui competência residual para instituir impostos outros além daqueles de sua competência privativa. É o artigo 154, inciso I, da Carta Constitucional que a prevê:

Art. 154 – A União poderá instituir: I - mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição;

Vale destacar que os impostos, pelo exercício desta competência, devem ser instituídos por meio de lei complementar e não por lei ordinária. Não podem ser cumulativos, ou seja, de “tributação em cascata”. E não podem apresentar fato gerador ou base de cálculo dos outros impostos já expressamente discriminados, isto para evitar que a União invada a competência privativa das outras Pessoas Políticas. Ressalte-se que a competência residual diz respeito a impostos, e não a tributos em geral.

É da competência residual também o poder conferido à União de criar outras contribuições para a seguridade social além daquelas previstas expressamente no art. 195 da Constituição Federal. É o que determina o parágrafo 4° deste artigo. Veremos, no capítulo próprio, maiores detalhes sobre o assunto.

À semelhança da competência residual, só a União dispõe de competência extraordinária prevista no inciso II do mesmo artigo 154:

Art. 154 – A União poderá instituir: (...)II - na iminência ou no caso de guerra externa, impostos extraordinários, compreendidos ou não em sua competência tributária, os quais serão suprimidos, gradativamente, cessadas as causas de sua criação.

Não obstante, no uso da competência extraordinária, ao contrário do que ocorre na competência residual, a União pode invadir a competência privativa de outros Entes. Pode criar o ICMS Federal, o IPTU Federal e assim por diante.

O motivo da criação deve ser a guerra externa. Assim, não é possível a criação de impostos extraordinários na hipótese de guerra civil, vale dizer, guerra contra grupos nacionais.

Apesar de o artigo estabelecer que o imposto extraordinário deve ser suprimido, gradativamente, cessadas as causas de sua criação, não fixa o prazo máximo. Este é estabelecido pelo CTN, no artigo 76, em cinco anos a partir da celebração da paz.

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DOS ESTADOS, DO DISTRITO FEDERAL E DOS MUNICÍPIOS

Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispõem de competência comum para instituírem taxas e contribuições de melhoria relacionadas às suas respectivas competências administrativas.

Aos Estados e ao Distrito Federal, a Constituição confere competência privativa para instituir os três impostos discriminados no artigo 155. Aos Municípios também são atribuídos privativamente outros três impostos previstos no artigo 156.

Além de o Distrito Federal possuir a mesma competência dos Estados, como não é dividido em Municípios, a Constituição (artigo 147) a este Ente também atribui a competência para instituir os impostos municipais.

DOS TERRITÓRIOS FEDERAIS

A Competência Tributária nos Territórios Federais é tratada no artigo 147 da Constituição:

Art. 147 – Competem à União, em Território Federal, os impostos estaduais e, se o Território não for dividido em Municípios, cumulativamente, os impostos municipais;

Desde a nova Constituição, não há no Brasil nenhum Território Federal, o que não significa a impossibilidade de que um dia possam existir. Por isso, há esse expresso dispositivo constitucional que atribui à União, nos Territórios Federais, a competência tributária dos impostos estaduais.

Nada mais natural. Os Territórios não são Entes da Federação, não possuem Poder Legislativo e, assim, não há como exercerem competência tributária mediante a edição de lei.

Se o Território for dividido em Municípios, estes possuirão sua competência tributária própria como aqueles localizados nos Estados. Do contrário, em Territórios que não possuem Municípios, a competência dos impostos municipais também será da União.

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DIMAS MONTEIRO DE BARROS

QUESTÕES

1. O que é competência tributária? 2. A competência tributária conferida pela CF, por si, só, autoriza a

cobrança de tributo? 3. A pessoa política que não tem competência tributária para determinado

tributo, pode ser beneficiada do produto desse tributo? 4. A competência tributária é indelegável? 5. O que é competência tributária comum? 6. O que é competência tributária privativa? 7. O que é competência tributária residual? 8. O que é competência tributária extraordinária? 9. A lei ordinária pode criar impostos? E quando se tratar de competência

residual?10. Qual a pessoa política que detém a competência extraordinária? 11. Há alguma competência tributária que autoriza a invasão de competência

de outras pessoas políticas? 12. Em quanto tempo deve ser suprimido o imposto extraordinário? 13. Quais os impostos que podem ser criados pelo DF?

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1CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO II TESTES

D. PROCESSUAL PENAL

1. No que diz respeito à instauração de inquérito policial no caso de crime de ação penal pública incondicionada, está correto afirmar-se que: a. o inquérito policial poderá ser instaurado de ofício pelo Ministério Público,

quando a informação sobre o fato criminoso chegar ao seu conhecimento; b. poderá a autoridade policial, diante da requisição do Ministério Público,

discricionariamente e levando em conta o caso concreto, não instaurar o inquérito policial, já que a análise de conveniência e oportunidade em relação à instauração do inquérito policial é exclusiva da autoridade policial;

c. poderá ser instaurado a partir da lavratura do auto de prisão em flagrante delito, sendo que, neste caso, será sempre necessário o requerimento da vítima solicitando a sua instauração;

d. todas as anteriores estão incorretas.

D. PENAL

2. Assinale a alternativa CORRETA: a. A pena de reclusão inicia-se sempre no regime fechado; b. A pena de detenção sempre se inicia no regime aberto; c. No regime fechado é obrigatório o exame criminológico; d. No regime aberto é possível a remição.

TUTELA DOS INTERESSES DIFUSOS E COLETIVOS:

3. Assinale a alternativa CORRETA: a. Qualquer associação pode propor ações coletivas; b. Somente as associações constituídas há mais de um ano podem propor

ações coletivas; c. As fundações privadas não têm legitimidade para defender interesses

transindividuais; d. A legitimação para a defesa dos interesses transindividuais nunca é

concorrente.

D. COMERCIAL

5. Assinale a alternativa CORRETA: a. O nome empresarial identifica o produto; b. O nome empresarial identifica o título do estabelecimento; c. O nome empresarial identifica o empresário; d. A sociedade em conta de participação tem nome empresarial.

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2CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO II TESTES

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

6. Assinale a alternativa CORRETA: a. A criança pode ser privada da liberdade em caso de flagrante; b. O direito à liberdade do adolescente não pode ser restringido; c. O direito à liberdade do adolescente pode ser restringido apenas no caso

de apreensão em flagrante delito ou por ordem escrita do Juiz; d. Os abrigos podem se revestir de privação da liberdade.

D. PROCESSUAL CIVIL

7. Assinale a alternativa CORRETA: a. A falta de pressupostos processuais positivos só gera a extinção do

processo se não for possível a sua correção; b. No caso de perempção, a matéria ainda pode ser alegada em

reconvenção;c. O Juiz não pode conhecer de ofício a carência de ação; d. A desistência da ação depende do consentimento do réu ainda que o

pedido tenha sido formulado antes da defesa.

LICC

8. Assinale a alternativa CORRETA: a. Lei federal pode revogar lei municipal; b. Lei excepcional admite analogia; c. A lei interpretativa pode retroagir; d. Desuso é a mesma coisa que costume “contra legem”.

D. CIVIL – DIREITO DE FAMÍLIA

9. Assinale a alternativa CORRETA: a. O casamento nunca pode realizar-se fora do cartório; b. O casamento nuncupativo dispensa presença da autoridade; c. O casamento nulo não pode ser putativo; d. Nunca é possível casamento por procuração.

D. CIVIL – PARTE GERAL

10. Assinale a alternativa CORRETA: a. A procuração do absolutamente incapaz só pode ser por instrumento

público;b. A procuração do relativamente incapaz sempre pode ser por instrumento

particular;

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3CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO II TESTES

c. A emancipação voluntária é possível por escritura particular ainda que o menor não tenha atingido 16 anos;

d. A emancipação é irrevogável.

D. CIVIL – D. SUCESSÕES

11. Assinale a alternativa CORRETA: a. A aceitação da herança pode ser verbal; b. A renúncia da herança sempre pode ser parcial; c. A aceitação da herança é retratável; d. O procurador com poderes especiais pode aceitar e renunciar a herança.

D. PENAL ESPECIAL

12. Assinale a alternativa CORRETA: a. O homicídio qualificado sempre é crime hediondo; b. A premeditação qualifica o homicídio; c. O filho que mata a mãe responde por homicídio qualificado; d. A interpretação analógica é proibida no Direito Penal.

D. PENAL GERAL

13. Assinale a alternativa CORRETA: a. A “abolitio criminis” extingue apenas os efeitos penais da condenação,

subsistindo os efeitos civis; b. As leis temporárias e as excepcionais são as únicas leis ultra ativas; c. Adotou-se para o tempo do crime a teoria mista; d. A aplicação da lei penal mais benéfica deve ser pleiteada através de

habeas corpus.

D. ADMINISTRATIVO

14. Assinale a alternativa CORRETA: a. O Primeiro Setor é o mercado, isto é, a iniciativa privada; b. O Segundo Setor é o Estado; c. O Terceiro Setor não integra a administração pública direta ou indireta; d. O capital da empresa pública não é integralmente público.

D. CONSTITUCIONAL

15. Assinale a alternativa CORRETA: a. As constituições promulgadas são chamadas de populares; b. As constituições outorgadas são chamadas de democráticas; c. As constituições promulgadas são promovidas sem a participação popular; d. A forma de manifestação das constituições interfere necessariamente em

seus conteúdos.

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4CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO II TESTES

D. TRIBUTÁRIO

16. Assinale a alternativa CORRETA: a. O imposto extraordinário diz respeito ao exercício da competência

tributária residual; b. A competência tributária privativa é exclusiva da União; c. O Distrito Federal possui a mesma competência tributária dos Estados e

dos Municípios; d. A competência tributária pode ser delegada.

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GABARITO MÓDULO II

1- d 2- c 3- b 4- c 5-c

6-c 7- a 8- c 9- b 10- d

11- d 12- a 13- a 14- c 15- a

16- c