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Ciências das Religiões Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração
Curso Livre Fontes Helenísticas na Formação do Pensamento Cristão
10 horas de contacto
Rui Miguel Duarte ©
Setembro a Novembro de 2018
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Rui Miguel Duarte © Todos os direitos reservados
3
Aula I
Definição do problema. Fontes gregas na estruturação do
pensamento cristão: Retórica.
PREÂMBULO
A partir do surgimento da chamada Alta Crítica ou método analítico histórico-crítico dos
textos bíblicos (e literários) que se começaram a colocar algumas questões, que em parte
ainda influenciam a abordagem e hermenêutica dos textos. Prendem-se essas questões as
chamada crítica das fontes e crítica das formas:
Como foram compostos estes textos, quando e por quem?
Como obra humana, que estruturas de pensamento e forma literária reflectem, que influências acusam?
É certo que a exegese veterotestamentária estava há muito interpenetrada de
estruturas de pensamento helenístico. Isto, obviamente, na abordagem do texto de que
dispunham os exegetas, a tradução LXX. Fílon, rabino de Alexandria do séc. I, lia as
Escrituras no Grego e compunha os seus tratados hermenêuticos sobre elas socorrendo-se
das estratégias de composição e hermenêutica providenciados pela retórica grega, e não
só, na sua hermenêutica retórica verteu métodos de pensamento hauridos das escolas
filosóficas gregas de maior preeminência, o estoicismo e o platonismo. Ele lia as Escrituras
(a LXX) retórica, estóica e platonicamente. Alexandria era, de resto, um importantíssimo
centro de uma multiculturalidade, mas com uma matriz, a helenística1. A comunidade
judaica aí residente e pensante (assim como noutros centros cosmopolitas agora sob o
Império Romano), fizeram essa ligação entre Grécia e Jerusalém. Não por acaso, alguns dos
mais insignes Apologetas dos séculos seguintes (Clemente, Orígenes) eram alexandrinos.
É certo que os Pais da Igreja, mais propriamente entre estes os Apologetas, oriundos da
cultura grega ou tendo passado por ele, porquanto presente nos curricula escolares,
1 Ver os trabalhos de Manuel Alexandre Júnior sobre Fílon e os de T.A.W. Van der Louw e J. Cook sobre a LXX, em que cuja redacção não notam simples tradução, mas composição, filtrada por formas de pensamento grego.
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preocupados em fixar o Cristianismo não apenas como fé mas igualmente como corpus de
doutrina e pensamento, não puderam evitar o embate com a reflexão o mundo em que
essa cultura era fértil e que formara toda uma civilização global (à dimensão do império
romano). Um embate que conheceu contenda, coabitação e simbioses. Da Grécia
colheram-se influências na expressão e ordenação da mensagem cristã, bem como na
posição definida para esta, enquanto sistema de pensamento distinto. Ora combatiam o
paganismo, incluindo o seu pensamento, mitos e literatura, por vezes acerbamente (mas
conhecendo-os!), ora, “não podendo com eles, juntavam-se a eles” e aproveitaram deles o
que consideravam útil, eticamente louvável, testemunhas de um certo nível de revelação
da graça divina. O pensamento, os seus conceitos estruturaram a fé e a doutrina.
DEFINIÇÃO DO PROBLEMA
Mas já no Novo Testamento essas influências se notam. Alguns dos seus autores
aprenderam nas escolas gregas, mesmo a um nível elementar. Paulo de Tarso (de quem se
diz ter trocado correspondência intelectual com o estóico romano Séneca) foi um dos
pioneiros desse diálogo com o mundo do Outro, o Grego, tendo aproveitado deste o que
de válido entendia haver nele para a pregação da Verdade, o Cristo que pregava, não
exclusivo dos Judeus. Pois como pronunciou em certa ocasião: “também alguns dos vossos
poetas assim falaram desse Deus sem o conhecerem” (cf. Actos dos Apóstolos 17:28). O
que denota esta citação de um poeta grego por Paulo, ao discursar perante gregos e
aplicando essa referência a uma divindade ao Deus que ele lhe pregava? Para reflexão...
Noutros momentos, porém, poderia antes falar-se de um espírito do tempo nesse
mundo global helenístico, de um fundo partilhado de valores éticos e da sua expressão na
linguagem e na literatura, ou ainda de integração complementar de duas concepções do
mundo, de um eclectismo e/ou fusão?
Ora, se nas gerações de Apologetas a interpenetração entre pensamento pagão e
formulação doutrinaria cristã era clara, tendo esta recorrido àquela para se configurar e
ganhar identidade, o presente curso cinge-se nos primórdios da formação do Cristianismo
enquanto pensamento, isto é, ao Novo Testamento, suas narrativas e elaboração
argumentativa. Já neste existirão sinais de influxos de helenismo? A citação paulina no
Areópago é caso único?
Isto remete para a questão de como o(s) texto(s) do NT foram escritos. Não se porá em
causa a inspiração divina das Escrituras nem se deixará de o fazer — este não é o objectivo
do curso. Mas colocam-se, de facto, questões. O Novo, como o Antigo, Testamento são
textos e, enquanto tal, obras literárias. No pior dos casos, ter-se-ia de rever o que entende
por inspiração. O NT não surgiu do nada: vem na sequência de outros textos, tendo com
alguns relações de intertextualidade (a LXX) e com outros de continuidade e solidariedade,
5
pois enquanto produto do mundo judaico, tem precursores judaicos: a exegese judeo-
helenística e os midrash, métodos exegéticos das escolas rabínicas. E a retórica. Entre
outras possíveis influências.
Vamos procurar algumas pistas, numa pesquisa que pode ter muitos caminhos e já tem
sido explorado.
Comecemos pela retórica.
Vários autores, como Vernon K. Robbins e Burton L. Mack, por exemplo em (1989),
Patterns of Persuasion in the Gospels, Sonoma CA, Polebridge2, marcaram a análise da
composição dos Evangelhos Sinópticos. Segundo eles, os escritores do NT teriam seguido
as práticas de técnicas de composição e raciocínio apreendidas da retórica helenística para
desenvolver os seus testemunhos da história de Jesus. Partem, principalmente, do
exercício escolar designado elaboração da cria.
Analisaremos mais adiante de que se trata. [dar o modelo da elaboração da cria]
Para já, confrontemos o modelo de Pseudo-Hermógenes, do II séc. d.C., e que
influenciaria reelaborações de outros teóricos posteriores.
Cria: “Isócrates disse que a raiz da educação é amarga, mas o seu fruto doce”
1 encómio ou elogio “«Isócrates era sábio», e desenvolverás um pouco o
tema.”
2 paráfrase da cria /
cria
“Em seguida a cria: «Ele disse isto…»; e não o farás de
forma despojada, mas desenvolverás o enunciado.”
3 Razão “Com efeito, os maiores empreendimentos de bom grado
aceitam o esforço para atingir o sucesso, e o sucesso, uma vez
alcançado, traz a satisfação.”
4 a partir do contrário “Pois, enquanto os empreendimentos fortuitos não
exigem esforço e no fim não satisfazem, com os mais nobres
passa-se o contrário.”
5 a partir de uma
parábola
“É que, como os agricultores devem trabalhar a terra com
esforço para poderem colher os frutos, assim também sucede
com aqueles que trabalham com a palavra.”
2 Ver também Burton L. Mack (1990), Rhetoric and the New Testament. Guides to Biblical Scholarship, Minneapolis: Fortres; Dean-Otting, Miriam, and Vernon K. Robbins. "Biblical Sources for Pronouncement Stories in the Gospels." Semeia 64 (1993): 95-115.
6
6 a partir de um
exemplo
“Demóstenes fechou-se em casa e empenhou-se
duramente, mas mais tarde colheu o fruto, coroas e
proclamações públicas.”3.
7 a partir de um juízo “Com efeito, Hesíodo disse: «à frente da virtude, os deuses
dispuseram-nos o suor»4; e outro poeta diz: «todos os bens os
deuses no-los venderam ao preço das nossas dores.»5
8 Exortação “Deve dar-se crédito à pessoa que falou ou agiu.”
Trata-se de um exercício de uma micro-peça oratória, o primeiro exercício de um
discurso oratório completo estruturado nas várias partes canónicas que o compunham,
que era dado aos alunos compor. A perícia e o treino neste exercício permitiam,
progressivamente, que os alunos da escola helenística — e é verosímil que meninos judeus
que fossem aprender grego passassem, nesse mundo helenístico, pelo mesmo currículo
escolar de macedónios, sírios, egípcios, romanos, etc., desde a escola elementar do
grammatistes até à do rhetor —, se abalançassem, com confiança e competência, a compor
discursos de maior fôlego e de temas mais complexos (fosse para os tribunais, as
assembleias político-legislativas ou para pura exibição) e também para escrever. Com
efeito, a retórica na época não formava apenas oradores, mas também, e cada vez mais,
escritores. Paulo é um desses exemplos de um não-grego que frequentou a escola dos
Gregos e conheceu a sua língua e poetas e aprendeu com eles a escrever e persuadir
estruturadamente. No respeitante à cria, sustenta Henry A. Fischel (1968: 407-411), a cria
é adequada é cultura hebraica, adapta-se a esta cultura: o herói torna-se um sábio judeu,
a acção tem lugar na Judeia ou no santuário de Jerusalém, as Escrituras são citadas como
argumento de autoridade e manancial de exemplos, ao serviço de valores ético-sociais.
Estes autores pensaram no desenvolvimento de certas narrativas a estrutura deste tipo
de exercício. Na sua base, um dito e/ou feito de uma dada personagem, em determinada
circunstância, que requer uma justificação, justificação essa fortalecida por vários testes,
como o contraste com o argumento contrário, o exemplo, a analogia, um argumento de
autoridade. Se os Evangelhos são textos retóricos, porque têm o propósito de persuadir
(assim como de toda a Bíblia), os autores teriam elaborado as narrativa estruturadamente
segundo os moldes da elaboração da cria. Um exemplo seria Mateus 18:1-14 (cf. textos
paralelos Marcos 9:33-37, 42-47, Lucas 9:46-48). Centremos a análise no texto de Mateus
(versão BPT). Manuel Alexandre Júnior6 limita-a aos versículos 1 a 11. Contudo, parece-nos
3 Sobre a coroa 18.58 4 Trabalhos e dias 289. 5 Pseudo-Epicharmeia frgg. 271-272 Kassel-Austin. 6 “Importância da cria na cultura helenística”, Euphrosyne XVII (1989), p. 31-62, esp. 60.
7
forçoso considerar a integração dos três versículos seguintes, pois neles Jesus encadeia
uma nova analogia e conclui o raciocínio iniciado no versículo 6. A comparação dos loci
paralleli, por outro lado, suscita a questão da integridade estrutural do texto de Mateus
enquanto relevante do esquema da elaboração de cria. Com efeito, em Marcos (vv. 38-40),
o tema principal em discussão é interrompido pela queixa, por parte de João, da
concorrência desleal feita por outros que não eram dos discípulos, mas que expulsavam
demónios em nome de Jesus. Após a resposta deste, o diálogo principal é retomado.
Mateus atém-se ao principal, e terá visto nas palavras do Mestre uma sequência lógica de
exposição argumentativa, e por essa razão não terá transmitido esta interrupção, ou, caso
o autor do Evangelho não seja discípulo de Jesus com este nome, a fonte em que se baseia
o omitiu7.
Par
tes
Análise de Manuel Alex. Jr.
(1989:60)
1 Proémio 1 Naquele momento,
os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram-lhe: «Quem será o mais importante no reino dos céus?»”
Proémio v. 1
2 Cria 2-3 Jesus chamou uma criança,
que pôs de pé no meio deles, e disse: «Reparem no que vos digo: se não se transformarem e não se fizerem como crianças, garanto-vos que não entram no reino dos céus.
Cria vv. 2-3
3 Razão 4-5 Por isso, aquele que se
tornar simples como esta criança será o mais importante no reino dos céus. E quem receber em meu nome uma criança como esta, é a mim próprio que recebe.
Razão vv. 4-5
4 contrário e
proposição de
novo
argumento
6 Jesus disse mais: «Todo aquele que fizer cair em pecado algum destes pequeninos que crêem em mim, melhor seria que atirassem essa pessoa para o fundo do mar com uma pedra de moinho ao pescoço.
Contrário vv. 6
7 Convencionalmente assumiremos que o discípulo Mateus é a mesma pessoa que escreveu o Evangelho que lhe é atribuído.
8
5 nova razão
secundária
(prova de 4)
7 Ai daqueles que levam os outros a pecar! São coisas que hão-de acontecer sempre, mas ai daqueles que forem culpados disso!»
6 Analogia 8-9 Portanto, se a tua mão ou o
teu pé te fazem cair em pecado, corta-os e atira-os para longe! É melhor entrares na vida eterna sem uma das mãos ou um dos pés do que seres atirado ao fogo eterno levando as duas mãos e os dois pés. Do mesmo modo, se um dos teus olhos te faz pecar, arranca-o e atira-o para longe! É melhor entrares na vida eterna só com um olho do que seres atirado com os dois ao fogo do inferno.
Analogia vv. 7-9
7 Exortação 10a Tenham cuidado! Não
desprezem nem um só destes pequeninos!
Exortação vv. 10
8 argumento
de autoridade
10b Pois declaro-vos que os anjos deles, lá no céu, estão sempre na presença de meu Pai celestial
argumento de autoridade
vv. 10-11
9 confirmação
de 4
11 Na realidade, o Filho do Homem veio para salvar o que estava perdido.
10 analogia
Foro sob a
forma de
perguntas
retóricas
tema
12-14 Que vos parece? Se um
homem tiver cem ovelhas e uma delas se perder, não deixará as noventa e nove nos montes para ir à procura da que se perdeu? Eu garanto-vos que, se ele a conseguir encontrar, vai sentir mais alegria por causa dela do que por causa das noventa e nove que não se tinham perdido.
Da mesma maneira, o vosso Pai que está no céu não quer que nenhum destes pequeninos se perca.
Os escritores do NT não teriam escrito de improviso, nem automaticamente. Como
escritores, comportaram-se enquanto tal: socorreram-se de técnicas de composição
literária e retórica para elaborar a história de Jesus com o fim que pretendiam, levar à fé
os leitores e auditores. Investigadores, poetas, historiadores, cronistas, escreveram como
9
qualquer escritor. Um aparte, que aqui não será discutido: o conceito de inspiração divina
das Escrituras não é, de todo e face ao estudo das formas, um ditado automático caído do
Espírito Santo. A mensagem de Deus aos homens (para quem crê que assim é) veio por
canais e veículos imperfeitos, limitados, intervenientes, homens e mulheres, em estado
consciente. À retórica helenística, pelo menos no que respeita ao NT, teriam ido colher as
moldes.
Reconhece-se que os escritos do Novo como do Velho Testamento têm um propósito,
não são testemunhos neutros. Esse propósito é persuadir, levar à fé, transmitir a convicção
daquilo que escrevem como verdadeiro ou digno de crédito. Ter um propósito e procurar
um efeito de gerar uma convicção e lançar mãos dos recursos da língua e das categorias de
argumentos e estratégias discursivas, sabendo adequá-las aos seus destinatários — tudo é
isto é matéria da retórica. George A. Kennedy (1984), crítico e historiador da retórica,
interpreta vários passos do NT segundo a grelha de análise da retórica clássica. E declara
que estes textos, como os religiosos em geral, visam persuadir. Logo, têm na sua génese a
retórica, disciplina rainha de então.
RETÓRICA
Quando falamos de retórica, falamos de quê? Ornamentação, forma sem conteúdo.
Essa é a visão restreinte, limitada, a que se chegou, segundo Gerard Genette:
ornamentação, figuras, estilística. Os Gregos entendiam que existe retórica desde que há
comunicação, que logos (pensamento) e logos (palavra) que comunica a outros esse
pensamento. E a comunicação visa um efeito, persuadir, levar o outro a aderir ao que
temos a dizer-lhe. Ensina a propósito falar bem, com eloquência e elegância. Falarmos de
retórica é falarmos de Aristóteles, esse filósofo que categorizou muita coisa e formatou
muita coisa na estética, na poética, na política, na ética, na lógica, de tal modo que o
Ocidente é eminentemente aristotélico. A retórica, enquanto teoria, também o é, na sua
base. Os efeitos da persuasão são três:
Vejamos a teoria dos efeitos retóricos, segundo Aristóteles e os retores posteriores
(gregos e latinos). A comunicação persuasiva gera efeitos no auditório, que se podem
relacionar com os três tipos de prova (didáctico, ético e emocional):
Tipos de prova Efeitos
Lógica (lógos) --------------------> Didáctico (docere)
10
Ética (ḗthos) + elocução --------------------> Ético (ḗthos do auditório;
delectare; emoções
tranquilas; deleite emocional
e estético, boa disposição do
auditório)
Patética (páthos pl. páthē) --------------------> Patético (páthos pl. páthē;
mouere; emoções fortes, que
motivam a uma acção;
paixões)
A comunicação persuasiva (como toda a comunicação) funda-se num triângulo:
aquele que comunica (orador, escritor),
a mensagem (discurso),
aquele a quem se comunica (auditor ou leitor).
Este esquema está na base na posterior teoria da comunicação: emissor, receptor e
mensagem.
A cada elemento do triângulo está ligada um tipo de prova:
Discurso --------------------> prova lógica (lógos): respeita ao próprio assunto, à
argumentação aceitável do mesmo.
Orador --------------------> prova ética (ethos): respeita ao carácter e à pessoa do
orador (à sua credibilidade e autoridade).
Ouvinte --------------------> prova patética (páthos, pl. páthē): respeita às
emoções do auditório; o orador procura tocar nessas emoções, suscitá-las, mudá-las, de
modo a ganhar adesão para a sua causa. Tipo de apelo privilegiado por tradições retóricas
anteriores (sofística).
Isto é uma generalização e aproximação. Para o efeito ético, concorre não apenas a
capacidade de o orador, através do discurso, dar de si mesma um boa imagem, mas a
terceira tarefa, a elocução, o investimento estético no discurso.
Estes esquemas, aprendidos, estudados e treinados na escola, desde a época clássica e
pelos muitos séculos seguintes, converteram-se em grelha mental para a análise de todo o
processo comunicativo e para a produção de mensagem. Não só nos discursos orais nos
tribunais, nas assembleias e em ocasiões solenes, como também (e marcadamente a partir
do séc. I e seguintes, época culturalmente designada como Segunda Sofística). Ainda hoje
se aplicam estas grelhas de análise para a hermenêutica de discursos, artigos de opinião,
11
literatura, textos religiosos. Até produtos de comunicação não verbal (de artes plásticas,
por exemplo). O citado livro de George A. Kennedy constitui um ensaio de análise de vários
textos do NT com base nos três géneros retóricos definidos por Aristóteles: judicial,
deliberativo e epidíctico. Não aprofundaremos esta questão, salvo se for relevante para a
interpretação pontual de um passo do NT.
Podemos desenvolver um pouco: aquele que comunica fá-lo mediante uma mensagem
(oral ou escrita), o logos, a um público. Ao fazê-lo, pretende ensiná-lo, corrigi-lo, louvá-lo
ou censurá-lo em algo, enfim, persuadi-lo, convencê-lo. O logos, a mensagem, a palavra
em si mesma é o veículo para esse fim. E investe nele os recursos argumentativos (também
estilísticos, pois as famosas figuras de estilo ou recursos expressivos têm função
argumentativa, aquém de a terem estética.
E o logos, a palavra, convence ou não. Mas o emissor figura como pessoa, logo, quer
queira quer não, dá também de si uma dada imagem de carácter (ethos). Esta imagem do
orador é ou não persuasiva: a pessoa é ou não digna de crédito, tem a elevação ou a
imagem ética necessárias para nos convencer e nos querer ensinar? Não há dias em que
não façamos mentalmente este raciocínio em relação a professores, pais, aos que têm
responsabilidades governativas. Já estamos a ver que na Bíblia isto existe, não é? A palavra
ethos tanto pode designar a prova ética, relativa ao carácter do orador, como as emoções
tranquilas do público.
Por fim, a persuasão. O público é persuadido por três vias: pelo discurso, palavra ou
logos, composto de argumentos logicamente concatenados e com demonstrações cabais
e provas; nas suas emoções, que ficam serenamente convencidas; e nas outras emoções,
as que tem pontualmente, nas paixões que saem daquele registo neutro (zen) tanto no
sentido da alegria mais exacerbada como na da tristeza mais profunda, tanto no da ira
como no da compaixão. Estas paixões (pathos, no plural pathe) têm o seu lugar em
momentos de emergência, quando é necessário entusiasmar para uma batalha, levar ao
ódio a um inimigo ou a condenar exemplarmente um criminoso que não merece desculpas.
Quando se está à beira de uma decisão urgente a tomar: estou numa bicha e escolho
BigMac ou CheeseBurger? HÁ GENTE ATRÁS À ESPERA!
Terminamos esta sessão com uma palavra-chave tanto da retórica como da
terminologia bíblica: pistis. Aristóteles dava-lhe extrema importância. É a prova. E esta,
como vimos, pode ser de três categorias: lógica (logos), ética (ethos) e patética (pathos).
Na Bíblia, é a palavra designa fé. Indica o efeito retórico esperado, a persuasão. Em outros
sentido, é o meio de inspirar confiança, a prova. Aristóteles toma-o neste sentido, para
fazer dele o coração da obra da retórica, enquanto prova produzida pelo orador pelo
discurso. A pistis está também presente na imagem do orador (ethos) como “digno de
12
crédito” (Rhet. 1.2 1356a). A dupla acepção pode ser, com felicidade, expressa em
português por uma única palavra: crédito: o crédito dado pelo orador, e crédito do auditor,
isto é, a fé produzida nele tanto pelo discurso como pela pessoa do orador. Espera que o
auditor persuadido, longe de ficar passivo, reaja, que as suas convicções sejam
transformadas e se aja de determinada forma. É assim na retórica e na história da oratória
greco-romana. Vê-lo-emos na Bíblia.8.
8 Perelman & Olbrechts-Tyteca (2010), Tratado da argumentação, fim do § 10, escrevem : « l’argumentation dans ses
effets pratiques : tournée vers l’avenir, elle se propose de provoquer une action ou d’y préparer, en agissant par des moyens discursifs sur l’esprit des auditeurs. »
13
Fica este esquema analítico:
Orador/escritor ethos pathos auditor/leitor
Palavra/dis-
curso, texto
logos
14
Aula II
Retórica: fé, prova, persuasão e convicção. Palavra, autoridade da
fonte da Palavra e efeito no receptor; a Palavra que ensina e
corrige. Leitura e interpretação orientada de passos do NT.
Já vimos na sessão passada que a retórica era parte essencial da formação no mundo
grego e, posteriormente, no helenístico. De disciplina que ensinava a preparar um discurso
argumentativo para o público e o orador para a tarefa, tornou-se mais ainda, matéria de
ensino, de exercícios escolares, já não apenas para formar oradores, mas tornou-se apta a
formar escritores e leitores.
Algumas noções importantes:
Persuasão: muitas definições, desde a Antiguidade, da retórica, contêm este elemento:
com o fim de persuadir. Independentemente de o esforço ser bem sucedido ou não. Se
estes elementos não constam das definições, é inegável que o propósito da retórica é
atingir a persuasão, mesmo que se defina mais modestamente, como Aristóteles, na sua
Retórica, que consiste em descobrir os meios aptos a persuadir, caso a caso.
Prova: a prova (pistis), na sistematização aristotélica, é o elemento central. Dentre as
várias categorizações de provas, lembremos a tríade:
logos — prova lógica, que demanda a adesão intelectual do público, cujo meio é o
discurso, o texto, e que procede pelo instrumento de argumentos/inferências
lógicas de natureza dedutiva (entimema ou silogismo retórico) e indutiva
(parádeigma ou exemplo);
ethos — ética, relacionada com a imagem que o orador dá de si mesmo e com o
estado de espírito de apaziguamento e adesão emocional, empática, consciente do
público);
pathos — patética, que respeita às emoções suscitadas/provocadas pelo orador no
público, emoções essas que levam o público a aderir, concordar, agir ou não de
acordo com o que o orador pretende incutir nele.
A retórica grega era especulativa, apropriada para os debates em que contendiam
posições contrárias, sem pretensão de verdade, mas de verosimilhança, probabilidade. A
15
retórica religiosa é de autoridade, proclamação (kerygma), apresenta como verdadeiras as
proposições. No entanto, escreve George A. Kennedy, no livro citado (1984, 7):
“even in old parts of the Bible, something is added which seems to give a reason why the proclamation should be received and thus appeals, at least in part, to human rationality.”
E dá como bom exemplo disso os 10 Mandamentos (Êxodo 20:2-27), cujos cinco
primeiros são acompanhados por razões, entimemas, os quais estabelecem um padrão de
autoridade para tornar menos necessário o investimento em razões e entimemas nos
restantes cinco. Neste texto veterotestamentário, por exemplo, lêem-se repetidas
fórmulas “Porque eu sou o Senhor, teu Deus, que...” + um predicado do Senhor, ou uma
acção cometida pelo Senhor a favor do povo, os quais validam o Mandamento enunciado.
Estamos perante a união de um argumento de autoridade (o Senhor) com um entimema.
Fé: muito se tem escrito sobre fé. Em dicionários teológicos, comentários, literatura
vária. É um conceito central nas chamadas religiões abraâmicas. Atrevo-me a dizer, por
exemplo, que não é pura e unicamente religioso. Diria mais, humano. Mesmo os ateus têm
fé! Não acreditamos todos que no dia tal cai na conta bancária a transferência do
ordenado? Ao sairmos de casa para ir às compras, não partimos do princípio de que vamos,
fazemos o que temos a fazer e voltamos sãos e salvos? Ao irmos abastecer o carro, não
confiamos que haverá combustível no depósito, caso contrário alguém teria colocado um
aviso “ESGOTADO!”? Não acreditamos que amamos e somos amados pelos cônjuges, pelos
filhos, pela família e amigos? Pessoalmente, não temos como sério e susceptível de atenção
o argumento ateu que exige provas científicas da existência de Deus ou da fé em Deus. Esta
exigência é frustrante, face ao que escrevemos e sabemos da vida empírica que levamos
no mundo. Há provas científicas do amor que o meu cônjuge tem por mim? Há provas
científicas de que a minha entidade patronal me vai pagar ao fim do mês? Note-se: esperar
um mês, confiar que virá a remuneração do trabalho desempenhado, mas apenas no fim!
Existe uma forma de fé no efeito placebo e nocebo; na recuperação de vícios como o álcool
ou as drogas, e na remissão de uma doença. A fé (uma forma dela) reprograma
neurologicamente o nosso cérebro, e este promove mudanças ao nível das hormonas e
químicos que produz ou manda produzir e enviar para o corpo, gerando nele um certo
efeito. Falamos de fé em sentido lato, natural, se quisermos, essa faculdade humana,
irracional, da intuição que leva o ser humano a querer, a poder, a agir, a suportar dores, a
superar-se. O homem, sabemo-lo todos, é muito mais do que razão, do que logos. Os
retores antigos sabiam-no bem! Com tudo isto, propusemos como tradução geral de pistis,
tanto enquanto fé como enquanto prova, como crédito. Damos crédito àquela empresa
que nos vendeu um computador e à garantia e pós-venda, ao patrão, ao médico que vamos
16
consultar por causa das nossas dores nas costas e aos medicamentos que nos prescreve.
Damos mais crédito aos princípios, propostas ou programa daquele candidato a presidente
de câmara do que aos de outro.
Fé consiste numa convicção. Esta é o efeito da persuasão. Esta noção é de certo modo
o ponto de contacto entre os mundos examinados aqui. O mundo da Bíblia conhece ambos
os sentidos do conceito (ver o livro de L. Kinneavy, 1987, 109-119)9. Todavia, ambos são
compatíveis e correlatos e ambos se fundam estruturalmente nos mesmos elementos. A
Bíblia, como toda a mensagem persuasiva, implica a credibilidade do locutor, o livre
assentimento do auditor à mensagem, convida a crer para seu próprio bem; e a mensagem,
deste modo, passa de informação a um certo conhecimento do assunto10.
Na fé como na retórica, há então um elemento comum de persuasão (ib., 52). Põe-se a
questão de saber se que a própria formulação do noção neotestamentária de fé teria sido
influenciada pelo pano de fundo cultural saturado de conceitos, procedimentos e maneiras
de raciocinar da retórica grega. No entanto, a despeito de semelhanças, existiria
desigualdade entre as noções de fé dos dois Testamentos. Esta desigualdade foi notada por
eruditos, tanto judeus como cristãos. James L. Kinneavy aborda a questão no seu livro
citado11. Não é o primeiro, porém. A questão é: o que se designa fé no AT e no NT não são
9 James L. Kinneavy (1987), Greek Rhetorical Origins of Christian Faith. An Inquiry, por exemplo, o quadro analítico das ocorrências de pistis e do verbo pistéuo no Novo Testamento, 109-119. 10 Sobre a compatibilidade de persuasão e fé cf. ibid, pp. 50-53. Confiança da qual Deus é digno, assentimento do ser humano e o conhecimento transmitido— eis a “velha” formulação “protestante” utilizado por Karl Barth e que parece paralela a uma outra, proposta por ele, em matéria de fé: Deus como pistos (digno de crédito); os seres humanos, quando crêem (pisteúō), tomam uma decisão; a fé (pistis) é o ensino divino revelado. Todo o processo de comunicação pode ser assim considerado, pensa Kinneavy, ib., 50-51, “simply having in common semantic base for the noçãos of persuasion and faith. What faith and persuasion have in common, besides this genus structure of communication, is the species nature of persuasion as a particular kind of communication”. A Bíblia, ainda que certos dos seus livros sejam poéticos e que ela contenha informações que possam ser percebidas como científicas na cultura que as produziu, teria um carácter persuasivo.
11 Naquilo que designa “Old Thesis”. As posições dos eruditos vão da rejeição da origem veterotestamentária da noção neotestamentária de fé, passando pela rejeição da origem grega, até à análise da visão negativa de pistis no pensamento grego. O conceito cristão não seria oriundo do judaico, nem seria grego, nem dependente das religiões de mistério desses tempos. Uma abordagem as diferenças e semelhanças entre os conceitos pode ser achada nos artigos pistis e “pisteúō do Theological Dictionnary of the New Testament, por Rudolf Bultmann. As conclusões a reter são que pistis, mesmo na Setenta, não tem relação com o conceito cristão e que pisteúō não era entendido como termo com sentido religioso (cf. na versão integral do Theological Dictionnary of the New Testament, vol. VI, 174-182, 197-228, esp. 197-199). Poderíamos sublinhar a posição de distinção entre dois tipos de fé (à partir do clássico na matéria D. M. Baillie (1927), “Faith in God and Its Christian Consummation”; ver também William Henry Paine Hatch (1917), “The Pauline Idea of Faith and Its Relation to Jewish and Hellenistic Religion”, Harvard Theological Studies II, Cambridge, Mass., Harvard University Press, reimpr., New York, Kraus Reprint Co.; Edward D. O’Connor, C.S.C. (1961), “Faith in the Synoptic Gospels: A Problem in the Correlation of Scripture and Theology”, South Bend, Ind., University of Notre Dame Press; Louis Jacobs (1968), Faith, Londres: Valentine, Mitchell, 1968; sobretudo Martin Buber (1951), Two Types of Faith, tradução
17
exactamente a mesma coisa. A despeito de semelhanças, há diferenças. Segundo esta tese,
a fé veterotestamentária, judaica, é uma confiança em Deus, ao passo que a do NT ganhou
a noção de crença, persuasão. Kinneavy propõe que, em geral, a educação dos meninos
judeus, entre os quais os escritores do NT, incluiria provavelmente uma introdução à
retórica grega, quer através da ephebia (escola grega que formava adolescentes masculinos
para a cidadania e especialmente proporcionava treino militar), quer através da escola
rabínica (ou, acrescento eu, para os judeus mais helenizados e integrados no modelo de
sociedade e cultura helenística — pensemos nos da diáspora — nos ciclos escolares
gregos). Sabemos que Paulo conhecia poetas gregos. Assim, estes escritores, enquanto
estudantes, teriam ficado imbuídos de noções e formas de elaboração do pensamento e
concepção do texto da retórica grega, como dito na sessão passada.
Veja-se o seguinte esquema de Kinneavy:
Para a formação do conceito de pistis (fé) neotestamentária teriam, em não pequena
medida, contribuído noções aprendidas da retórica grega. Mais uma vez, à confiança
juntou-se a persuasão. Uma crítica é possível, como a toda a hipótese científica: a fé
neotestamentária apela frequentemente ao amor, ao amor de Deus, vivido na certeza
inglesa do original alemão de 1950 por Norman P. Goldhawk, M. A., New York, Macmillan, 1951), que estabelecem uma distinção entre dois tipos de fé, a confiança, do AT, judaica, e a crença, não inteiramente intelectual mas cujos fundamentos seriam intelectuais, originária do pensamento grego, mediante o reconhecimento, como verdadeiro, de uma proposição pronunciada a propósito de um objecto de fé. Este reconhecimento tem uma forma lógica, noética e racional, ainda que o seu fundamento seja “irracional” (cf. a obra de Buber, espc. pp. 7, 9-11, 170-174).
18
factual da sua morte e ressurreição — tendo o Messias já consumado a sua missão e não
apenas sendo aguardado — e dos benefícios que estas trazem, fonte de uma relação de
amor com Ele e com Cristo. Relação que pode ser espiritual mas também orgânica. Usam-
se as figuras da relação pai-filho para ilustrar esta confiança/fé. No entanto, não é de negar
que o NT tem argumentação lógica, ética e patética, usa à profusão (como é comum no
discurso das religiões) do argumento de autoridade. Poderíamos dizer que a génese da
noção de fé é complexa e multigenética, tendo na sua base, obviamente, a noção e a
experiência judaicas. Analisaremos mais adiante passos do NT.
Palavra e autoridade da fonte da Palavra: o discurso religioso, não apenas cristão ou
judaico, tem uma forte componente de autoridade, de proclamação de verdade. Estamos
longe da retórica especulativa, dos debates, próprios da experiência grega, mas mais no
campo do discurso investido de autoridade. E donde lhe vem esta autoridade? Da fonte.
Na Bíblia há proclamações de autoridade da Palavra, porque é de Deus. Deus fala, por
vezes, assim como Jesus, em seu próprio nome como autoridade:
“Eu sou o Senhor, que te sara.”
que te livrou da terra do Egipto.”
Etc.
Em declarações destas sobre si mesmo, Deus coloca-se em relação ao povo como
auctoritas. Mas esta é sustentada numa aitia, razão.
“Assim diz o Senhor: ……”
As alocuções iniciadas desta forma introduzem uma declaração. A auctoritas é o
Senhor, que transfere para a Palavra por ele comunicada essa auctoritas. Assim, quando se
fala da autoridade da Palavra, não se fala de logos. A menos que haja aitiai, razões (ver o
que diz acima Kennedy sobre a enunciação dos Mandamentos 1-5), que são sustentáculo
de entimemas (argumentos retóricos). Quando é a Palavra exclusivamente, nua
(proclamação religiosa como verdadeira), estamos mantes perante ethos. Porquê? A sua
auctoritas depende da fonte. Em nada difere, diz Kennedy, da de um guru indiano ou da de
um oráculo grego (por exemplo, o de Delfos, de Apolo). Sim, os Gregos procuravam
declarações de autoridade para os ajudar a tomar decisões, os oráculos, as pitonisas, as
bruxas da época! Os racionais Gregos!
O mesmo se dirá de:
“Como disse Nietzsche…”
“Como disse Einstein…”
“Como disse Confúcio…”
19
“Como disse Marx…
“Como disse o profeta Mohammad…”
“Como diz a ciência…”
Esta última, não raro. Há coisa menos definitiva, mais sujeita a debate, revisão,
argumentos e contra-argumentos, provas e contra-provas do que a ciência e o chamado
“consenso científico”? Esta última expressão, aliás, provém dos meandros de uma
mentalidade religiosa.
Em que assenta, pois, esta autoridade? Para a podermos caracterizar dentro do
esquema aristotélico das três provas, teríamos de considerá-la ética. Lembremo-nos do
esquema da elaboração da cria: nela havia o juízo de um antigo. Sempre que assim
fazemos, mesmo fora do campo religioso, mesmo como investigadores, sempre que
citamos uma autoridade, um especialista na matéria, usamos o chamado argumento de
autoridade. No religioso, a autoridade é Deus, Jeová, Jesus, Vixnu, Apolo, Zeus, etc. As suas
declarações são lei para os humanos.
Efeitos no receptor: já temos falado nisto. O público é levado a experimentar efeitos
lógicos (persuasão intelectual), éticos (emoções tranquilas e apaziguadas, boa disposição,
adesão) e patéticos (emocionais, pode ficar como “encantado”, com medo ou coragem,
etc.). Na retórica cristã, é conduzido a uma escolha livre, a interiorizar uma verdade e um
conhecimento.
O esquema analítico de Kinneavy toma seis elementos:
conversão a Cristo
uma medida de certeza
provas extrínsecas (segundo Aristóteles, aquelas que não dependem da arte do
orador; hoje são as principais, são as provas documentais, indiciais,
testemunhais, indiciais)
lógico
ético
patético
Vejamos por exemplo a cura dos dois cegos em Mat 9:27-31 (versão BPT):
27 Ao sair daquele lugar, houve dois cegos que foram atrás de Jesus, gritando: «Filho de David tem piedade de nós!» 28 Quando Jesus ia a entrar em casa, os dois cegos aproximaram-se dele e Jesus perguntou-lhes: «Vocês acreditam que eu tenho poder para vos fazer isso?» Responderam eles: «Sim, Senhor, acreditamos!» 29 Então Jesus tocou-lhes nos olhos e disse:
20
«Pois seja feito conforme a vossa fé!» 30 E os dois cegos ficaram a ver. Jesus recomendou-lhes em tom severo: «Olhem que ninguém deve saber disto!» 31 Eles, porém, saindo dali começaram a falar dele por toda a região.
Num passo em que a fé em que a fé se combina à Palavra, a cura dos dois cegos (Mat.
9:27-31), Kinneavy (ib. 109), detecta no v. 28 cinco dos seis elementos retóricos da sua lista
de análise: conversão, medida de certeza, ethos, pathos, logos. O logos estaria presente na
interrogação de Jesus se eles criam que ele poderia curá-los (v. 28). Não parece ser uma
análise rigorosa: o logos está aí ausente. A questão concerne aquilo que Jesus poderia
fazer, e não as suas palavras, os seus argumentos. Parece mais bem que a questão concerne
a fé em Jesus e o seu poder (efectivamente, o ethos). Jesus somente depois pronuncia a
Palavra, sendo isso que põe o processo em funcionamento. Jesus, ao ordenar a cura, dá
uma razão que a sustenta: a fé daqueles homens. Lido mais profundamente o episódio, e
com olhos retóricos, é estruturalmente um entimema: sede curados porque tendes fé.
Explanemo-lo num silogismo completo (um entimema é um silogismo retórico, em que
uma das premissas, ou a conclusão, está subentendida). As partes do entimema podem ser
expressas em ordem diferente da da estrutura silogística completa. Neste episódio, a
premissa menor vem no fim (v. 30), pois é a razão que, segundo Jesus, sustenta o resultado
(a fé é responsável pela cura).
Presente?
Premissa maior (geral) Todo aquele que acredita que Jesus tem para curar será curado
Sim, expressa por Jesus sob forma interrogativa
Premissa menor (aplicação particular)
Aqueles cegos crêem que Jesus tem poder para curá-los
Expressa sob forma de resposta taxativa pelos cegos. Os cegos declaram a sua fé.
Conclusão (resultante da ligação necessária e logicamente válida das primeiras)
Em consequência, os cegos são curados.
Expressa por uma afirmação imperativa sustentada numa razão (da premissa menor)
O pathos pode ler-se ao longe da totalidade do episódio, nos pedidos de socorro, na
expectativa ansiosa do que pudesse vir a acontecer, e na alegria irreprimível dos curados,
que os impulsiona a ir por toda a parte testemunhar do benefício que lhes havia sido
concedido por Jesus, esquecidos da recomendação que este lhes fizera.
Analisemos outro episódio retoricamente e segundo a leitura de Kinneavy. Encontra-se
exclusivamente no quarto Evangelho. Relata o caso de um oficial do rei (Herodes Antipas),
que vai ao encontro de Jesus, em Cafarnaum. Estando o seu filho doente, o pai esperava
uma solução (João 4:46-54):
21
Jesus dirige-se inicialmente às testemunhas e à sua falta de fé. Estabelece-se então um
diálogo (v. 49) : “O funcionário régio diz-lhe: “Senhor, desce, antes que o meu filhinho
morra! (versão minha).” Kinneavy não analisa este versículo. O Evangelista confirma que
foi a fé que impeliu este homem a procurar ajuda junto de Jesus. Podemos reconhecer nele
a presença de uma certa medida de certeza e ethos: a fé em Jesus, na sua autoridade e no
que seria capaz de fazer.
No v. 50, João, no entanto, precisa: foi a fé na palavra de Jesus (a qual operara a cura).
Todavia, Kinneavy somente vê aqui ethos e pathos. Não concordamos de todo. Jesus diz:
“Vai: o teu filho está vivo!” Foi, principalmente, o ethos, a autoridade de Jesus que
promoveu a cura, tendo uma palavra sido o meio. A palavra de Jesus constitui uma
exortação, um apelo emocional em si mesma. Mas fornece-lhe, em apoio, uma razão para
essa coragem, para voltar confiante a casa: a certeza de que o seu filho foi curado, um
exemplo (parádeigma) que confirma a tese subentendida na mensagem e na situação
narrada: Jesus tem poder e autoridade para realizar sinais miraculosos . Temos, por isso,
logos. O texto diz então que logo que o pai soube que o filho estava bem, no mesmo
instante se produziu a cura. E graças a este facto, toda a família acabou por crer em Jesus.
Isto é, nele como Cristo.
Vamos a análise de Kinneavy, começando por reproduzir o esquema, que propõe, de
comparação dos efeitos retóricos segundo a retórica clássica e o Novo Testamento. Na
pergunta de Jesus às testemunhas do v. 48:
Jesus perguntou-lhes: «Se não credes em sinais nem prodígios, não crereis, não é?»
Kinneavy12 vê três dos seis elementos retóricos da sua análise das ocorrências do verbo
pisteúo no Novo Testamento:
a conversão, que é o que está em jogo;
a sua mensagem (logos)
as emoções implicadas (pathe).
Kinneavy distingue, no Novo Testamento, duas espécies de sinais e prodígios:
1. Os que são uma promessa. Estes, tal como a as promessas de vida eterna, relevam
do pathos, como recompensas da fé
2. Os que são relatados como ocorridos. Esta espécie, enquanto exemplos (os
paradeígmata aristotélicos), reforçam o argumento (com as parábolas, as
explicações midráshicas do Antigo Testamento, cf. Kineavy, ib. 107-108), relevam
da prova lógica.
12 Ib., p. 110.
22
Por outro lado, as provas extrínsecas, aquelas que não dependem da arte verbal do
orador, segundo Aristóteles, tais como:
Confissões sob tortura
Juramentos
Leis
Contratos
Testemunhas
Estas provas têm como paralelos, no NT:
Operações da graça, do Pai ou do Espírito (para quem crê) ou, ao invés, pelo Diabo
e demónios (para os descrentes).
No entanto, estas distinções não têm, em meu entender, razão de ser totalmente clara.
Com efeito, não parece razoável compreender sinais prometidos, como um estímulo
emocional (patético) para crer e manter a esperança, ainda que os sinais e prodígios
possam ser entendidos como exemplos sustentadores da fé, não parece adequado não
tomar em consideração o seu componente emocional. Tanto os sinais e prodígios
prometidos como os efectivamente cumpridos podem produzir um estímulo emocional;
quem deles necessita será assim induzido a crer que os receberão, do mesmo modo que
quem já os recebeu. Estaríamos sempre num registo de promessas cujo cumprimento se
espera, pela fé. Por outro lado, os sinais e prodígios poderiam ser entendidos como
testemunhos13 da acção divina, portanto como uma prova extrínseca “by operation of grace
or the Father or the Spirit.” (ib. 108).
Na cura, Kinneavy somente vê ethos e pathos (v. 50), mas o texto conta que o homem
creu na palavra proferida por Jesus, palavra essa acompanhada por uma razão parar crer,
como explicámos acima. A interpretação restrita de Kinneavy não parece pois colher.
No v. 53, o texto diz que o homem e toda a sua família creram quando lhe contaram
que a cura se produziu no próprio instante em que Jesus falou. Haveria, segundo Kinneavy,
une conversão com prova ética (porque a sua autoridade se confirma), a lógica e a patética.
Ver aqui uma prova lógica não se pode compreender salvo se se tomar em conta a razão
para terem crido, as curas, e se considerarem as curas como exemplos (paradeígmata)
sustentadores de tese a argumentar (a capacidade terapêutica de Jesus e de sua Palavra).
O estímulo patético impregna a cena, o momento em que crêem.
13 Cf. sobre os martyres (“testemunhas”) cf. Aristóteles, Retórica. 1.2. 1355b.
23
Vejamos o esquema analítico dos efeitos retórico, na retórica clássica e no NT
(Kinneavy, ib., 107). Este esquema ajuda a percebe a exegese retórica que este autor faz
das ocorrências do verbo pisteúo no NT (ib., 108-119).
No último capítulo, Kinneavy reconhece os limites do seu livro14. Podemos com
propriedade pensar que uma delas é de tudo reduzir ao esquema de retórica grega, ainda
que se admita que um tal plano de fundo cultural helenístico permita pressupor a sua
influência sobre o pensamento dos povos do Oriente Próximo. Postular uma influência
helenística a toda a redacção do NT não equivale exactamente a aplicar uma grelha retórica
de análise à leitura desses textos e culturas. Em nossa opinião, a proposta teórica de
Kinneavy permanece como hipótese exegética, com os seus limites.
A PALAVRA QUE ENSINA E CORRIGE
14 Ib., p. 143 sq. Será necessário tomar em consideração a cultura que produziu as narrativas da vida e obra de Jesus. Com efeito, os autores do NT entendem a proclamação da Palavra como um acto de “testemunho” (Ac. 1.8 martyres et Apoc. 12.10 a palavra do testemunho).
24
No famoso trecho de 2 Timóteo 3:16 lê-se:
Toda a Escritura é divinamente inspirada e útil para ensino, refutação, correcção e educação na justiça.
Eis uma proclamação da virtude da Palavra, do Logos. A virtude aqui declarada é
pedagógica. Lembremo-nos: um dos efeitos retóricos, veiculado pelo logos, mediante
argumentos dedutivos e indutivos, era o de ensinar, esclarecer (na fórmula latina, docere).
Se na retórica clássica esta noção de ensino se limitava mais propriamente ao
esclarecimento do público relativamente a um assunto civil ou jurídico, com Isócrates (o
protagonista da cria sobre a educação), discípulo de Sócrates e um dos homens da reacção
aos exageros da retórica sofistica (acusada de preponderantemente emocional, destituída
de ética, visando apenas as aparências e as opiniões e que os jovens aprendizes
aprendessem a vencer na vida graças a essa arte de aparências) a retórica começa a ser
vista como formadora não só de eloquência (necessária para a política e a advocacia) como
também de cidadania e de carácter. Com a escola helenística, a retórica como educadora
ganhou força: treinava para a composição de discursos e textos como também a elevação
moral, graças ao estudo do exemplo das personagens ilustres. Entre os Romanos essa
faceta educativa da retórica ganhou raízes. Os defensores da tese NT como monumento
pura ou eminentemente helenístico vêem nas histórias sobre Jesus uma colectânea de crias
(Evangelho “Q”) posteriormente desenvolvido. À maneira helenística.
A famosa citação acima, posta na pena de Paulo, denunciará uma concepção
helenística, o logos como retórica? Para começar, útil, um dos tópicos principais finais da
retórica. Dizê-lo tem intuito nitidamente argumentativo: mostrar a importância capital de
algo.
A isto mistura-se um quê de judaico: a preocupação com a justiça segundo Deus e com
a inspiração divina, de alocução cuja fonte remota seja Deus, como nas acções dos
profetas? Ou algo mais profundo: sem prejuízo de a Palavra ser tudo isso, a virtude
formativa parece ou não acentuada? Neste versículo ocorrem duas palavras importantes
para o helenismo, mas também para o mundo judaico helenista, para quem estas questões
eram importantes: didaskalia (ensino) e paideia (educação). Não é, por certo difícil
reconhecer aqui concepções da utilidade da Palavra bebidas, ou análogas, da retórica grega
(cf. por exemplo George A. Kennedy, 1987: 86-96 a propósito de 2 Coríntios; 141-156 a
propósito de Tessalonicenses, Gálatas, Romanos; a análise retórica de Manuel Alexandre
Júnior, 2010: 209-227 a propósito de Gálatas; e 229-255 a propósito de 2 Coríntios15).
Analisemos.
15 Manuel Alexandre Júnior (2010), Hermenêutica Bíblica, Lisboa: Sociedade Bíblica de Portugal.
25
O termo traduzido como refutação é elegmos. Na Bíblia em grego (LXX e NT) só ocorre
aqui e em Salmo 149:7. Neste último passo, o sentido a reter é realmente de repreensão,
censura aos povos. Em 2 Tim 3:16, Frederico Lourenço verteu como “comprovação”,
escrevendo em nota “refere-se àquilo que, num argumento, proporciona comprovação
(mas também refutação).” O termo é cognato de elenxis, que ocorre na LXX, Job 21:4 com
o mesmo sentido de reprovação, refutação; no NT, em 2 Pedro 2:16 como censura, assim
vertendo (bem) Frederico Lourenço. Censura, ou repreensão, neste caso, de uma
transgressão cometida por alguém. Élenxis figura também em lugares da literatura secular
grega com o mesmo sentido. Ambos os termos, por sua vez, são cognatos de élenchos,
termo técnico da retórica. A versão “clássica” francesa de Louis Segond (séc. XIX) verte o
passo que estamos a analisar por “convaincre”. O termo pode, em suma, ter uma acepção
e a sua contrária: comprovação e refutação. Retoricamente, era um teste, uma prova a que
o argumento era submetido, especialmente com o intuito de o refutar. Fora da retórica,
enquanto vocábulo de uso comum, tinha as acepções de censura, reprovação, repreensão,
desonra.
Ora, élenchos ocorre no NT noutro célebre passo, o da definição em fé (pistis) em
Hebreus 11:1. Aqui tem, obviamente, o significado de prova certa, comprovação.
Que conclusão tirar? Neste texto, que Paulo acrescente “na justiça” como meta da
educação é ir mais longe, não no sentido de um conhecimento simples, de informação nem
sequer moralmente elevado e de formação do carácter e dos costumes. Estamos perante
o conceito básico de justiça bíblica, aquele estado ou condição espiritual de aprovação por
Deus (pelas obras, pela Lei ou pela Graça) que exige uma transformação íntima, um
trabalho de destruição do pecado na alma humana e reconstrução desta, recta,
transformada para melhor pela Palavra. Trata-se de algo de outra dimensão, religiosa, que
vem desde o judaísmo. Todavia, talvez o escrito da carta encontrasse analogias, pontos de
contacto entre os fundamentos da paideia helenística e a educação religiosa na doutrina e
na fé. Por outro lado, poder-se-ia ver aqui outra situação: não a da educação retórica
helenística, mas os métodos exegéticos midráshicos, que visavam instruir e edificar os
jovens não só moral como também espiritualmente.
26
Aula III
Técnicas de argumentação e composição literária. Leitura e
interpretação orientada de passos do NT
Comecemos por um v. conhecido, em que Paulo declara que a sua pregação não
consiste em persuasão de sabedoria, mas em demonstração do poder de Deus (1 Cor 2:14).
Claramente, o apóstolo teria tido alguma aprendizagem de retórica e/ou filosofia
gregas. Pois se sabedoria (sophia) aponta mais para a filosofia dialéctica, persuasão fala-
nos de retórica. Nenhum dos dois grandes pólos concorrentes da educação helenística faz
o que Paulo faz. O que ele faz é reconhecê-los e à sua relevância, mas procura dar de si
mesmo uma imagem de despojamento em relação às artes da palavra e da educação do
mundo de então, mas que Deus é quem produz e faz o que ele faz. Confessa não querer
que lhe fique colada uma fama de sofista eloquente, mas de alguém que dependia
totalmente de Deus. E no entanto pode dizer-se que o outro Paulo, a outra sua faceta, a
das cartas, do Paulo mais reflexivo, muito devem a essa sofia retórica e filosófica.
Voltemos ao esquema designado elaboração da cria, na mais remota explanação
conhecida, a de Pseudo-Hermógenes:
Cria: “Isócrates disse que a raiz da educação é amarga, mas o seu fruto doce”
1 encómio ou elogio “«Isócrates era sábio», e desenvolverás um pouco o tema.”
2 paráfrase da cria / cria
“Em seguida a cria: «Ele disse isto…»; e não o farás de forma despojada, mas desenvolverás o enunciado.”
3 razão “Com efeito, os maiores empreendimentos de bom grado aceitam o esforço para atingir o sucesso, e o sucesso, uma vez alcançado, traz a satisfação.”
4 a partir do contrário “Pois, enquanto os empreendimentos fortuitos não exigem esforço e no fim não satisfazem, com os mais nobres passa-se o contrário.”
5 a partir de uma parábola
“É que, como os agricultores devem trabalhar a terra com esforço para poderem colher os frutos, assim também sucede com aqueles que trabalham com a palavra.”
27
6 a partir de um exemplo
“Demóstenes fechou-se em casa e empenhou-se duramente, mas mais tarde colheu o fruto, coroas e proclamações públicas.”16.
7 a partir de um juízo “Com efeito, Hesíodo disse: «à frente da virtude, os deuses dispuseram-nos o suor»17; e outro poeta diz: «todos os bens os deuses no-los venderam ao preço das nossas dores.»18
8 Exortação “Deve dar-se crédito à pessoa que falou ou agiu.”
Outros teóricos retomaram-na, desenvolvendo-a. Por exemplo, Aftónio (séc. IV)19
E examinemos agora um quadro sinóptico das partes do discurso, do livro de Garavelli
(1996: 69):
Esta sinopse cruza-se com o esquema da elaboração da cria. Constitui um mínimo
denominador comum entre propostas teóricas várias e de autores vários, gregos e latinos.
Tudo, porém, se pode resumir e reduzir ao seguinte esquema:
Proémio ou exórdio (introdução)
Narração (dos factos que vão ser examinados, fundamental no discurso jurídico,
mas não obrigatória)
Proposição (próthesis ou propositio): apresentação da hipótese a defender
16 Sobre a coroa 18.58 17 Trabalhos e dias 289. 18 Pseudo-Epicharmeia frgg. 271-272 Kassel-Austin. 19 Aftónio era estudado 19entre os Jesuítas.
28
Argumentação, a parte mais complexas, que pode conter vários argumentos e
também várias divisões, tais como:
o Provas, razões, argumentos a favor
o Refutação dos argumento contrários
Epílogo ou peroração
É importante ter diante dos olhos estes esquemas, assimilá-los de algum modo para as
leituras comentadas, com base nos critérios da exegese retórica, de trechos das cartas aos
Gálatas e 1 Coríntios. É o trabalho que de seguida nos vai ocupar. Esta sessão é de natureza
mais prática do que a as anteriores. Estas cartas foram analisadas na sua estrutura retórica
por vários estudiosos. Passaremos em revista essas análises, com especial incidência na de
Manuel Alexandre Júnior. O que elas demonstram é que é estas cartas têm propósito
argumentativo e que, na sua estrutura, são devedoras da composição retórica grega; por
consequência, que o seu autor era um conhecedor e utilizador mais ou menos consciente
e profundo desta educação. Não devemos menosprezar o midrash como método rabino
judaico de debate e hermenêutica das Escrituras. Paulo terá, certamente, conjugado
judaísmo rabínico com retórica grega e, assim, combinado uma rede de influências ao
compor, teorizar, ensinar, interpretar.
Reproduzimos de seguida páginas do livro Hermenêutica Bíblica, de Manuel Alexandre
Júnior (2010) com esquemas analíticos retóricos, primeiramente de Aos Gálatas, depois de
1 aos Coríntios. Com base na análise retórica deste especialista no domínio, leremos alguns
passos destas cartas, de modo a apreciar a adequação destas análises a estes textos e
perceber, retrogradativamente, se Paulo acusa o uso dos esquemas de composição da
retórica grega e em que medida.
29
30
Toda a carta Aos Gálatas se estrutura como um discurso oratório complexo em várias
partes, que responde a um problema, propõe uma tese. Inserta na complexa estrutura,
uma secção parece aproximar-se do esquema da elaboração de uma cria. Este exercício e
esquema retórico de composição e argumentação parece ter sido tão proficuamente
treinado na escola antiga, helenística e romana (ver o artigo de Manuel Alexandre Júnior
de 1989) que a sua presença se detecta em não pequeno número de trechos de autores
dos sécs. I-II d.C.. Este autor vê a proposição (parte de um discurso que sucede à narração
e precede as provas) desta carta desenvolvida precisamente segundo este esquema
(Gálatas 2:15-21):
11 Tese 16a Sabemos porém que uma pessoa não é
justificada pelo cumprimento da lei mas por meio da fé
em Jesus Cristo. Ora nós cremos em Jesus Cristo para
sermos justificados pela fé e não por termos feito o que
a lei manda.
22 razão 16b Pois ninguém será justificado perante Deus por
cumprir a lei.
33 contrário 17 Então se, procurando ser justificados pela nossa
união com Cristo, somos considerados pecadores
como esses tais, quer isso dizer que é Cristo promotor
de pecado? De modo nenhum.
44 Razão/analogia:
edifício
18 Se volto a construir aquilo que tinha destruído,
então mostro-me culpado.
6 5
Exemplo: eu
retórico
19 Morri no que respeita à lei. Foi a mesma lei que
me fez morrer para eu viver para Deus. Estou
crucificado com Cristo..
6 6
20 Por isso, já não sou eu que vivo; é Cristo que vive
em mim. E a minha vida presente vivo-a por meio da fé
no Filho de Deus que me amou e deu a sua vida por
mim.
77 conclusão 21 Não desprezo a graça de Deus, pois se alguém
pudesse ser justificado pelo cumprimento da lei, então
a morte de Cristo de nada serviria.
A composição da I aos Coríntios acusa também influência da retórica.
31
32
33
Aula IV
Pensamento filosófico: integração e rejeição de Platonismo e
Estoicismo no NT. Leitura e interpretação orientada de passos do
NT.
Na cultura helenística, bem como na sua herdeira, a romana — que nesta matéria
continuou e adaptou à sua própria cultura e mentalidade ética e cívica dos Helenos —
floresceram algumas correntes filosóficas gregas, com as suas metamorfoses e variações:
platonismo, estoicismo e epicurismo. As duas primeiras eram as mais cultivadas entre os
intelectuais e homens de elevada cultura e estatuto social. O epicurismo teve menor
repercussão.
Já nos sécs. IV a II, graças à abertura de fronteiras operada por Alexandre o Grande e
seus sucessores, povos diversos entraram em contacto com estas correntes filosóficas, ao
mesmo tempo que os Gregos se deixaram influenciar pela cultura e religião de outros. Estas
mudanças facilitaram alguma aproximação Um dos grandes centros culturais e científicos
da época era Alexandria, no Egipto. A comunidade judaica aí instalada helenizou-se
culturalmente, enquanto permanecia judaica de religião. Os eruditos tradutores da LXX,
rabinos e mestres pensavam nas Escrituras em grego e com mente grega. Um nome
importante: Fílon, do séc. I d.C., que revela um intelecto embebido em formas de exegese
platónicas e estóicas. Não aprofundaremos as várias escolas filosóficas nas suas
metamorfoses nem a exegese filoniana. Citaremos apenas um ou outro aspecto.
As correntes filosóficas gregas representavam uma mudança de paradigma no
pensamento grego, pois questionaram a religião tradicional do culto aos deuses, os mitos
e os valores do homem. A reflexão filosófica, sem negar a divindade, mas a religião dos
muitos deuses já não fazia, para algumas mentes, sentido. O pensamento sobre a divindade
tendeu a um certo monoteísmo impessoal e/ou panteísta. A filosofia estóica via nos muitos
deuses manifestações do único, Zeus. E Zeus era mente, um deus impessoal. E com muitos
nomes.
Vejamos o famoso hino de Cleantes de Assos (séc. IV-III a.C.) a Zeus, na tradução de
Maria Helena da Rocha Pereira:
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Um deus soberano, que tudo governa e tudo provê. Não parece haver coincidência
ideológica com a Bíblia? Mas o deus estóico é tendencialmente impessoal e panteísta, ao
contrário do da Bíblia. Tratar esta entidade como um tu parece mais proposopeia do que a
invocação de uma entidade pessoal, pese embora na descrição dos atributos deste Zeus
figurem imagens tradicionais associadas à iconografia deste deus (as nuvens e o raio). E
notem-se os versos 19-20: a harmonização do bem com o mal numa unidade. O kosmos
estóico contém ambos os elementos em harmonia. Daqui origina-se a “Palavra”, o logos
“eterno de tudo” (v. 21), “universal e que passa através de tudo” (12). Este logos é “lei
universal” (24), perpassa tudo. O v. 4 “em ti está a nossa origem” não lembra nada
conhecido? Zeus era o nome tradicional, um nome, O deus estóico passou a ser designado,
filosoficamente, logos.
E o que era o logos estóico? Um princípio, um fogo animador do kosmos, que o
organizava, regia, lhe dava sentido. Na exegese judaica o termo logos foi tomado para
designar, não Deus, mas pensamento de Deus e emanação comunicativa dele. E
intermediário na criação. Aparece assim em Fílon. Uma das virtudes do logos na articulação
entre aquilo que está na mente de Deus e a sua exteriorização é a de constituir imagem de
Deus, Forma das Formas e Ideia das Ideias, existente na mente de Deus e modelo
arquetípico da criação do mundo sensível (cf. Mos. 2.127; Op. 25)20, paradigma do
macrocosmo e da mente humana, o microcosmo21. Este é um Fílon de Alexandria que
mistura concepções platónicas e estóicas na exegese das Escrituras. Pais da Igreja
seguiriam pelo caminho da hermenêutica filoniana, ancorando o termo, na linha do
evangelista João, como um outro significante da pessoa de Jesus Cristo.
Ora, chegámos então ao prólogo joanino: o logos estava com Deus, era Deus —
proposição que um estóico poderia subscrever sem reserva, mas jamais um judeu. Dai,
parte para uma complicação (no sentido próprio, de tornar complexo, não simples) da
exegese, embrenha-se por caminhos antes explorados pela exegese judeu-helenística
(logos no seio do Pai, v. 18), e nisto apresenta a declaração nova, que causaria escândalo
tanto a Gregos como a Judeus: o logos tornou-se carne, humano.
Chegados a Saulo, o apóstolo Paulo, temos o estudioso da literatura rabínica como da
grega, e o conhecedor das regras de hermenêutica retórica grega e judaica (o midrash). Por
essa razão, teria havido troca de correspondência entre esta ilustre personagem e outra, o
estóico filosófico romano Séneca (nascido em Córdova, actual Espanha). Tais documentos
existem, mas teriam sido posteriormente forjados, como pensam alguns, no séc. IV, como
20 Marian Hilar, “The Logos and Its Function in the Writings of Philo of Alexandria: Greek Interpretation of the Hebrew Myth and Foundations of Christianity”, vol. 7 no. 3 part I p. 27. 21 David Winston, Logos and Mystical Theology in Philo of Alexandria, 1985, Cincinnati, Hebrew Union College Press, p. 16.
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textos para dar a ler a cristãos, fazendo-os aproximar da filosofia estóica, e vice-versa, para
aproximar leitores pagãos de Séneca da fé e escritos cristãos. Já explorámos as influências
que o conhecimento da retórica grega terá sido na composição e estruturação das cartas
paulinas. Porém, o seu contacto com a cultura não se terá limitado à retórica.
Paralelamente, todo o menino e jovem que frequentasse a escola grega, ou rudimentos de
escolaridade grega na escola rabínica, era passado por currículos que incluíam língua,
estudo de poetas e, mais tarde, de filosofia (via curricular alternativa à escola superior de
retórica). O que Paulo não terá aprendido na escola, poderá ter lido e estudado ao longo
da vida, nas suas inúmeras viagens, em bibliotecas e/ou contactos com mestres sofistas.
Depois de convertido, há períodos elípticos na sua história. Há quem pense que num desses
períodos terá regressado à sua terra natal, Tarso (ver Actos 9:30), aí terá tido conhecimento
do poema Fenómenos de Arato, nascido em Solos, cidade da mesma região, em 315 a.C., e
convivido com estóicos e as suas doutrinas. Voltaremos mais adiante a Arato.
A narrativa da qual é uma das personalidades em destaque, o livro de Actos, no
encontro com o Jesus glorioso na estrada de Damasco, este, ao confrontar o atordoado
viajante Saulo, pergunta-lhe porque o persegue e cita, como argumento de autoridade, um
dito (Actos 26:14): “é duro dar pontapés contra os aguilhões”. Ora, estas palavras, que têm
como fonte o verso 1624 da peça Agamémnon de Ésquilo (séc. V a.C.), poderiam já ter um
uso proverbial. Aliás, do estudo escolar de poetas e filósofos se retiravam colecções de
máximas para transmitir valores aos jovens. Citá-los repetidamente tornava estas máximas
provérbios. Jesus, ao citá-las, alude à cultura clássica do seu perseguidor, para demonstrar
o que esse verso representa: uma censura à teimosia obstinada.
Na 1 aos Coríntios 15:33 Paulo escreve que “más companhias arruínam bons costumes”.
Esta frase, provavelmente um dos tais versos de poetas tornados máximas, tem como fonte
a peça Taís de Menandro, poeta cómico do séc. IV a.C.. As palavras “os Cretenses são
sempre mentirosos, feras más, barrigas preguiçosas” citadas em Tito 1:1222, são atribuídas
a um “profeta” dessa ilha. Natural de Cnossos e tendo vivido no séc. VI a.C., Epiménides,
autor desta frase, era considerado poeta, místico, filósofo e xamã. Justamente Paulo lhe
chama “profeta”, o que é estranho. Seria no sentido em que a palavra surge nas Escrituras
— homem que fala inspirado e sob mandato do Deus de Israel, para orientação espiritual
do povo —, ou porque cumpria, entre esse povo, uma função análoga à dos profetas de
Israel e Judá? Também dele Diógenes Laércio (Vidas de eminentes filósofos) relata um
episódio em que a sua intervenção salvou Atenas de uma peste. Desprezando a religião
tradicional, cria num deus único, e nesse episódio teria levado umas ovelhas ao Areópago,
prometendo que estas se dirigiram a um certo local e instruindo os presentes a oferecerem
22 E a partir de Paulo citada por Clemente de Alexandria, Stromata I 14.
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sacrifícios ao deus local. E foram feitos sacrifícios em altares sem nome, nos locais em que
cada ovelha estacionava. Então, a peste cessou. Será o altar ao deus desconhecido em
Actos 17:23 um desses altares?
E vamos ao discurso no Aerópago de Paulo, em Actos 17:17-31. Paulo deambula pela
ágora de Atenas. Aflige-o a religiosidade tradicional (como ao velho Epiménides) de culto
às estátuas dos incontáveis deuses (não apenas greco-romanos, mas também
provavelmente egípcios e das regiões orientais). A par desta, a teologia estóica, de um deus
princípio, centelha que tudo anima e mantém, panteísta, impessoal.
16 Enquanto esperava em Atenas por Silas e Timóteo, Paulo sentia-se revoltado ao ver a cidade tão cheia de ídolos. 17 Por isso discutia na sinagoga com os judeus e com os simpatizantes do Judaísmo. E, na praça pública, falava todos os dias com os que lá apareciam. 18 Alguns filósofos epicuristas e estóicos trocavam impressões com ele. Uns diziam: «Que é que este fala-barato quererá dizer?» Outros afirmavam: «Parece que é propagandista de outros deuses.» Diziam isto porque Paulo lhes anunciava a boa nova acerca de Jesus e da ressurreição. 19 Então levaram-no a uma reunião num lugar chamado Areópago e perguntaram-lhe: «Poderemos saber que nova doutrina é essa que ensinas? 20 O que nos dizes é muito estranho e gostaríamos de saber o que isso quer dizer!» 21
De facto, tanto os atenienses como os estrangeiros que viviam em Atenas passavam o tempo a ouvir e a contar as últimas novidades. 22 Então Paulo pôs-se de pé diante da Assembleia do Areópago e disse: «Atenienses, vejo que são em tudo muito religiosos. 23 Com efeito, quando dei uma volta pela cidade e vi os vossos monumentos religiosos, reparei num altar que tinha estas palavras escritas: “Ao Deus desconhecido.” Pois bem, esse Deus que adoram sem o conhecer, é o Deus de que eu vos falo. 24 É o Deus que fez o mundo e tudo o que nele se encontra, e é o Senhor do Céu e da Terra. Não habita em templos feitos pelos homens, 25 nem precisa que os homens lhe façam coisa nenhuma, pois ele mesmo é quem dá a todos a vida, a respiração e tudo o mais. 26 Deus criou primeiro um homem e desse vieram todas as raças humanas que vivem no mundo inteiro. Foi ele mesmo quem marcou os tempos e os lugares onde os povos deviam morar. 27 Fez isso para que o pudessem procurar e se esforçassem por encontrá-lo. De facto, ele não está longe de cada um de nós. 28 É nele que temos a vida, nele nos movemos e existimos. Como alguns dos vossos poetas também disseram: “Nós até somos da família de Deus.” 29 Sendo nós então da família de Deus, não devemos pensar que Deus seja parecido com uma imagem de ouro, de prata ou de pedra, feita pela arte e pela imaginação dos homens. 30 Deus passou por cima da ignorância das pessoas, até aos dias de hoje. Mas agora, ele ordena que toda a gente, em toda a parte, se arrependa dos seus pecados. 31 Marcou um dia para julgar o mundo com justiça, por meio dum homem a quem designou e deu autoridade diante de todos, ressuscitando-o de entre os mortos.»
Como bom orador, encontra pontos de ligação com os auditores que tem no momento
pela frente, captando-lhe a benevolência: chama-lhes “pessoas religiosas”, o que, no
contexto, é um elogio, e cita autoridades pertencentes ao mundo deles. Não deixa de os
censurar, como um qualquer orador o faria, mas por “ignorância” da forma correcta de
adorar Deus. Indica-lhe que, afinal, mantêm um altar a um “deus desconhecido” (um dos
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de Epiménides, se o relato de Diégenes Laércio é verdadeiro) Assim prepara o terreno para
lhe anunciar o kerygma do novo Deus estranho como o verdadeiro, e de Cristo.
As palavras “nele nos movemos e vivemos” têm sido atribuídas ao Epiménides referido
acima, mas outros autores não estão disso tão certos23. Curiosamente, foram achadas, em
conjunto com a citação da carta a Tito 1:12, como uma sequência única de quatro versos
de uma obra de Epiménides intitulada Cretica (Coisas cretenses), num comentário aos
Actos dos Apóstolos de Isho’dad de Merv, teólogo e bispo da igreja nestoriana de Hadita
(na margem oriental do rio Tigre, na confluência deste com o Grande Zab, no território do
actual Iraque) falecido em 852. Este comentário foi escrito em siríaco (siríaco aramaico ou
siríaco clássico, dialecto do Aramaico Médio que se tornou língua literária de prestígio no
Médio Oriente entre os séculos IV e VIII d.C.). J. Rendel Harris (1906, 1907, 191224)
descobriu esta tradição indirecta da citação de Epiménides, editou-a, retroverteu-a em
grego e traduziu-a. Trata-se de uma reconstituição a partir de uma tradução, com o seu
quê de traição ao original ausente. O excerto poético consiste numa invocação a Zeus por
Minos, o lendário rei de Cnossos. Traduzo em português a partir da retroversão de Harris:
Um túmulo fabricaram para ti, Augusto e Altíssimo, Os Cretenses, perenes mentirosos, feras más, barrigas preguiçosas. Mas não, tu não morreste, permaneces e vi Pois em ti vivemos e ainda nos movemos e existimos.
O último verso deste conjunto é apenas ligeiramente diferente, em grego, ao da citação
paulina no Areópago. Parece, por conseguinte, como provável que o apóstolo cita
Epiménides no Areópago — além de Arato — e que, constituindo estes versos uma
sequência dos Cretica, Paulo os conhecia bem, os estimava, os usava e deles disporia como
um manancial de tópicos à disposição para usar como argumento de autoridade em
diferentes ocasiões e em função da necessidade argumentativa de cada momento. Tal é
muito mais verosímil do que supor que Paulo só os conheceria como ditos proverbiais em
circulação, soltos, sem ter lido a obra — mesmo que em fragmentos. Se assim fosse,
teríamos mais provavelmente versos soltos, não uma sequência de versos, embora citados
separadamente. O testemunho de Isho’dad reveste-se, em suma, de uma importância
filológica enormíssima.
O apóstolo declara então (v. 28):
23 Max Pohlenz (1949), “Paulus und die Stoa”, Zeitschrift für die neutestamentliche Wissenschaft 42, pp. 69-104. 24 Numa série de artigos publicados em Expositor, Outubro 1906: 305–17; Abril 1907: 332–37;
Abril 1912: 348–353.
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Como poetas vossos se exprimiram: pois também dele provém a nossa origem.
O verso 4 de Cleantes, Hino de Deus, visto acima, tem de diferente apenas o pronome:
em vez de terceira pessoa, como aqui, a segunda pessoa: de ti. O verso é de Arato (cerca
de 310-245 a.C.), Fenómenos v. 5. Arato de Solos, de uma cidade sita na mesma região de
Tarso (a Cilícia), quase conterrâneo de Paulo mas seu antecessor em três séculos. Este
poema, cujo como tema era a astronomia, tornou-se muito popular. O verso citado por
Paulo encontra-se no prólogo invocativo de Zeus. Também este poema concebe Zeus não
como o mito, mas como divindade impessoal panteísta. Paulo pregava um Deus único e
pessoal, não panteísta. Pode dizer-se que citou fora do contexto. Usou estes textos para
enunciar uma mensagem diferente. Todavia, este procedimento de citar uma autoridade e
adaptá-la à hermenêutica do citante não está totalmente fora da prática antiga. Nem nos
dias de hoje: exemplo disso é a celebérrima afirmação “A minha pátria é a língua
portuguesa” de Bernardo Soares, semi-heterónimo de Fernando Pessoa, citada amiúde a
despropósito como autoridade probatória de um argumento antitético ao da intenção do
escritor.
Leiamos o contexto (Arato, Fenómenos 1-5):
Por Zeus principiemos, a quem nós homens nunca deixamos inominado. Repletas de Zeus estão todos os caminhos e todas as humanas praças, repletas o mar e portos; de todos os lados proclamamos Zeus. Pois somos também sua progénie
Aqui chegados, percebe-se que Paulo, na sua actividade apostólica, se socorria dos seus
conhecimentos de cultura grega para melhor atingir o público. Mais, percebe-se que deste
modo inaugurou uma compreensão do Outro que teria herdeiros entre os Pais da Igreja,
embora outros tenham desprezado tudo o que era pagão pelo simples facto de o ser.
Mesmo hoje, o problema se coloca nas denominações cristãs: sem abdicar da exclusividade
de Jesus Cristo, haverá entre os outros povos uma certa dimensão de revelação válida.
Ignoram a verdade e a sua verdadeira dimensão e características. Essa foi a mensagem de
Jesus à samaritana: não conhecem na plenitude o que adoravam os seus compatriotas.
Todavia, Paulo fala por artifício retórico de captação da benevolência ao auditório, ou por
convicção? Em minha opinião, o apóstolo de facto nutria a ideia sincera de que a teologia
filosófica helenística, ainda que desprovida do conhecimento que de Deus só por revelação
somente os Judeus tinham, terão chegado a concepções mais ou menos próximas e
análogas mediante a reflexão que empreenderam. E nisto teria visto a possibilidade de
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encontrar analogias, encetar diálogos que construíssem as pontes necessárias para
comunicar ao Outro, o pagão, a plenitude da verdade do verdadeiro Deus e de Cristo.
Esse diálogo com o Outro usando as categorias de pensamento dele e achando nelas
elementos de validade intelectual possíveis de ser conjugados com um pensamento
propriamente judaico numa pregação que parecia basicamente judaica. A 1 carta aos
Coríntios apresenta um forte influência de pensamento estóico na elaboração a doutrina
do Corpo de Cristo. Esta é a sugestão da tese de Michelle V. Lee (2006). Numa primeira
abordagem, esta elaboração (cap. 12 a 14) parece simples e directa: Paulo compara a igreja
e os seus membros a um corpo humano, sendo cada membro daquela como um membro
deste; no conjunto, formam um corpo de que cada membro contribui para o bem e
crescimento harmonioso do todo com o seu dom. Mas duas questões surgem, segundo a
Autora:
veria Paulo a igreja “como” um corpo?
ou quereria ele dizer que a comunidade seria em certo sentido um corpo real?
Por outras palavras, em Paulo, o corpo de Cristo é metáfora ilustrativa da unidade da
igreja em e com Cristo ou concebida como um corpo físico?
Na primeira parte da obra, a autora explana o pano de fundo: os Estóicos, o corpo e a
ética, a metáfora do corpo, a noção de “corpo” e sua relevância para a humanidade
universal. Deve-se aos Estóicos a forja da noção de Humanidade, nesse todo integrado que
é o kosmos. Dionísio de Halicarnasso (Antiguidades Romanas 6.86.1) cita um discurso do
orador Menénio Agripa (cônsul em 503 a.C.), em que este afirma que uma comunidade se
assemelha de algum modo a um corpo humano. A humanidade universal implica uma ética
de actos rectos e apropriados, princípios e preceitos. Dentro do corpo humano, social, é
dever de cada contribuir para o bem comum. Escreve Lee (ib. 45), em síntese, sobre a
metáfora do corpo nos Estóicos: “o universo não era um corpo apenas por virtude de ser
um macrocosmo do microcosmo do corpo humano, como em Platão. A natureza corpórea
do universo baseava-se também na sua concepção de realidade, em que tudo o que existia
constituía um «corpo».” Por isso — acrescenta — os Estóicos não falavam da “metáfora”
do corpo, pois segundo eles “ser um «corpo» era uma componente fundamental da
natureza da existência. O universo era pois um ser vivo. Cleantes compara o crescimento e
desenvolvimento das partes do corpo nos seres individuais no momento oportuno à
formação de todas as partes particulares do universo — animais, plantas , etc. — nos
momentos oportunos. O universo é um corpo unido mediante o pneuma (espírito) e
governado pelo nous (mente). Estes termos tornam-se equivalentes de Deus (ib. 57). E
lembramos que o universo tem como princípio animador e criador o logos25.
25 Cf. a expressão e doutrina do logos spermatikós, o logos seminal, testemunhada por Fílon de Alexandria, por exemplo, em Da criação do mundo 43 e, séculos mais tarde, pelo apologeta cristão Justino-o-Mártir, do séc. II d.C., para a aplicar à explicação, em Apologia II aos Cristãos 8.3, 13.3.
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Isto traz implicações éticas para uma humanidade que é também vista como una.
Segundo Crisipo de Solos (séc. III a.C., discípulo de Cleantes), “as nossas naturezas
individuais são partes da natureza do todo do universo”; deste modo, a vida pautada pela
virtude produz a harmonia da vida dos indivíduos com a ordem universal26. A vida, os actos
e conduta individuais virtuosos, guiados pela razão, adequam-se e conformam-se à vida,
actos e conduta da natureza. Os Estóicos e o romano Cícero aplicaram o conceito de um
corpo universal a uma unidade corpórea composta de humanidade e deuses. E viria a
desenvolver-se a ideia da comunidade do império como um corpo, cuja cabeça é o
imperador. Estas noções definem a base do sistema ético estóico. Os Estóicos procuravam
o que era o bem comum e para o todo. As acções individuais deveriam contribuir para ele
e o manter. Paulo, em 1 Coríntios 12:7, por seu turno, não se refere aos dons como servindo
para o “bem comum”, mas para aquilo que é “vantajoso”. “Bom” e “vantajoso” eram alguns
dos tópicos capitais de argumentação retórica, mas também filosófica. E mesmo os
Estóicos pensavam no “vantajoso”. Para o seu sistema integrado e harmonizado, o que era
vantajoso/benéfico para um indivíduo deveria ser o que é benéfico para o todo, e assim
era considerado virtuoso. Como no Estoicismo havia preceitos e princípios (cf. Séneca) cujo
conhecimento é necessário para tomar decisões moralmente avisadas, Paulo também usa
método análogo para ensinar os Coríntios e lembra-los da sua identidade corpórea com
Cristo. (Lee, 101). Igualmente no corpo de Cristo há implicações éticas. Paulo insiste em
que a comunidade coríntia entenda que é o corpo de Cristo e compara-a a um corpo
humano. Usa a imagem de corpo de dois modos, como os estóicos: o ser corpo (identidade)
e o ser como um corpo (analogia, metáfora). Como os Estóicos, constituem uma nova
humanidade, comparada a um corpo, unida no mesmo pneuma e com o mesmo nous, a
mesma mente, a de Cristo (1 Cor 2:16). Notem-se as coincidências/sobreposições de
termos entre Estóicos e Paulo, ainda que se devam salvaguardar as nuances de sentido em
que uns e outro os usaram. Conceitos semelhantes na base, embora com variações
semânticas e de referente. Por exemplo, o deus estóico é impessoal e panteísta (permeia
e imbui tudo), enquanto para os Cristãos é pessoal, corporizou em Cristo e é imanente. O
nous que governa o universo estóico passa a ser, no Cristianismo (primeiramente em Paulo,
depois em autores da Patrística), Cristo, a pessoa Cristo, que é Deus e criador de tudo e
tudo sustenta.
A tese de Michelle V. Lee, de 228 pp., e parece bem fundamentada, pelos testemunhos
de autores antigos e de estudos de autores modernos dedicados a esta matéria, pelos
conceitos passados a pente fino e pelos paralelos que efectua. Não se cinge à mera
comparação entre Estoicismo e Paulo no que à noção de corpo respeita, mas vai ao fundo
de uma exegese ideológica e filosófica dos textos analisados e dos problemas, tanto dos do
26 Diógenes Laércio, Vidas dos filósofos, 7.87.
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contexto comunitário coríntio como do entendimento da vida cristã. É uma tese desafiante,
para dizer o mínimo. É fortemente convincente a demonstrar que Paulo e recorreu e
reconheceu a utilidade da física e ética estóica para articular a teoria do corpo de Cristo.
Sintetiza a autora (ib. 199):
“… todas as acções devem ser praticadas em amor, o que cria os mais fortes laços para a comunidade espiritual (1 Cor. 13). Tal como para os Estóicos, o amor acha o seu fundamento na natureza do universo, e assim é compreendido pela razão. Para Paulo, isto toma a forma do nous Christou (mente de Cristo) e é visto no exemplo do Cristo crucificado.
O recurso ao Estoicismo por Paulo não se destina a corroborar as duas concepções
religiosas sobre Deus. O apóstolo não parece fazer uso de doutrinas desta escola filosófica
meramente como instrumento, mas acolhê-las e aproveitá-las naquilo que têm de válido
para construir pensamento sobre os mistérios de Cristo e da igreja como corpo unido de
Cristo, composta de membros integrados nesta nova humanidade, e para comunicar Cristo
como a verdade. O propósito do apóstolo é incutir uma mudança profunda na mentalidade
dos membros da comunidade, tanto acerca de si próprios como indivíduos, quanto acerca
dos outros. Estamos perante quiçá um dos maiores exemplos de influência helenística no
NT. Influência essa tolerada, aceite e integrada na proclamação do Evangelho e suas
proposições de verdade. Lee não é, porém, a pioneira na investigações de relações paulinas
com o Estoicismo. Já J. B. Lightfoot, no estudo “St. Paul and Seneca” na sua comentada da
Epístola aos Filipenses (1881, 1.ª ed.), apontara paralelos27. Outras dívidas paulinas ao
Estoicismo (não referidas por Lee) seriam, por exemplo, a autarkeia (auto-suficiência) em
2 Cor 6:10, e a noção de família e cidade de Deus em âmbito lato (Efésios 2:19; Colossenses
3:11). E note-se, a Cilícia, região donde era Paulo natural, vira nascer filósofos estóicos.
Recordem-se Arato e Crisipo, ambos de Solos. Alguns autores afirmam que a própria Tarso
era uma das praças-fortes da escola estóica. Estaria criado o quadro para a hipótese de
Paulo ter convivido com as suas doutrinas.
Paulo inaugura o caminho, fabrica as pontes que serão largamente atravessadas pelos
escritores/teólogos/filósofos da Patrística dos séculos seguintes.
27 Este autor não é citado na bibliografia de Lee. Nem o estudo de Frederick Clifton Grant (Maio 1915), “St. Paul and Stoicism” in The Biblical World 45, 268-291.
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Aula V
Noção de educação e seus frutos entre Judeus e Helenos:
concepções análogas, influência de quem em quem ou espírito do
tempo? Leitura e interpretação orientada de passos do NT.
A educação na Antiguidade, quer fosse um grego helenístico como para um judeu, como
já o fora para um escriba egípcio, à educação estava associada a noção de castigos
corporais. Signos linguísticos que, inicialmente, designavam o conceito de “educar”
passarem a significar também o de “castigar”, tornando-se assim, por metonímia,
sinónimos: o substantivo hebraico mûsar tinha ambos os sentidos, tal como paídeia para o
falante do grego helenístico. Ainda hoje, no grego moderno, paideúō, além de “educar”
significa “afligir, atormentar” e, como intransitivo paideuomai,”afligir-se”. Os tradutores da
LXX utilizaram paideia para o vocábulo hebraico citado, acabando o termo grego por
significar, nas suas penas, simplesmente “castigo”28 (Marrou 1981: 239). Está-se perante
um caldo cultural partilhado por várias civilizações diferentes da bacia do Mediterrâneo.
Pode-se, justamente, falar-se de partilha de influências mútuas, de uma comunidade de
modos de pensar, de viver, de concepções sobre a educação, afinal.
Recuperemos a elaboração da cria analisada no início deste curso, por Pseudo-
Hermógenes mas agora também no tratamento que lhe Aftónio, autor e mestre do séc. IV
d.C., no seu manual de Exercícios preparatórios, mais desenvolvido no tratamento dos
exercícios do que o Pseudo-Hermógenes, que é mais elementar. Recorde-se: o tema é a
educação, a personagem em apreço é o orador, logógrafo e pensador Isócrates de Atenas
(sécs. IV-III a.C.). Vamos repescar algumas das ideias, já lidas, e compará-las com a Epístola
Aos Hebreus 12:5-11, que explana o tema da educação por Deus. Esta explanação parece
seguir o esquema da elaboração da cria, mas trata o tema discutindo de forma mais
dialéctica alternando entre os pólos de uma analogia:
28 Henri-Irénée Marrou (1981), Histoire de l’éducation dans l’Antiquité, vol. I : Le monde grec. Paris: Seuil.
45
“Será que já se esqueceram das palavras de ânimo que Deus vos dirige como seus filhos?
[Cria] Meu filho, considera seriamente
a correcção do Senhor.
Não desanimes quando ele te repreender.
6 É que o Senhor corrige aqueles que ama
e castiga aqueles a quem tem por filhos .
11 Paráfrase na forma
de exortação e
afirmação em tese
7a Sujeitem-se, pois, à correcção que Deus vos impõe.
22 Prova da tese:
premissa menor de
entimema
7b Deus trata-vos como filhos
23 Prova da tese:
premissa maior de
entimema
7b Sim, qual é o filho a quem seu pai não corrige?
44 Pelo contrário 8 Se Deus não vos corrige, como faz com todos os seus
filhos, então não são filhos legítimos, mas ilegítimos.
25 Analogia:
os pais terrenos e
Deus
9 Mais ainda: os nossos pais corrigiam-nos e nós
continuávamos a respeitá-los. Com muito mais razão
devemos então aceitar as correcções do nosso Pai celestial
para obtermos a vida eterna.
26 Analogia:
os pais terrenos e
Deus
10 Os nossos pais terrestres corrigiam-nos conforme
achavam justo nesta curta vida. Mas o Pai celestial corrige-
nos para nosso próprio bem, com o fim de virmos a participar
da sua santidade.
27 Epílogo: correcção
no presente produz
frutos futuros
11 Claro que ao recebermos uma correcção isso não nos
dá alegria, mas sim tristeza. Porém, mais tarde, produz frutos
de paz e de justiça naqueles que a aceitam.
As partes 1 a 3 formam um entimema (silogismo retórico) completo e perfeito. A citação
inicial, de Prov. 3:11-12, figura como uma cria, portadora da afirmação em tese: Deus
corrige e repreende os seus filhos. A prova da tese é dupla (2-3 v. 7b): a primeira, premissa
menor (Deus é pai para nós, nós somos como filhos para ele), seguida da maior (não há pai
que não castigue os filhos) Na elaboração da cria segundo Pseudo-Hermógenes, na
analogia com a agricultura figuram as seguintes palavras já lida:
É que, como os agricultores devem trabalhar a terra com esforço para poderem colher os frutos, assim também sucede com aqueles que trabalham com a palavra.
Aftónio desenvolvido um pouquinho a formulação de Pseudo-Hermógenes:
46
Assim como aqueles que trabalham a terra é com dor que à terra lançam a semente, e com maior prazer colhem os frutos, do mesmo modo os que se dão à dor da educação gozarão depois de renome.
Há pontos em comum entre o pensamento da elaboração da cria e Hebreus. Por um
lado, o passo analisado desta carta parecer respeitar a estrutura retórica da elaboração da
cria. Outras semelhanças estão no conteúdo e no tratamento do tema.
Vejamos. O tema é a educação. A educação na Antiguidade compreendia duas
vertentes. Uma, o princípio, identificada metaforicamente com raiz, composto de
dedicação, disciplina e dor dos castigos. Aftónio igualmente evoca o medo instigado aos
alunos, os castigos temíveis quando falham. A outra vertente, futura, identificada
metaforicamente com fruto, representa o resultado. E todos os documentos falam do
sucesso, da glória e, no caso do texto cristão, da justiça.
São grandes os paralelos entre estes documentos não só na concepção da educação
estruturada entre os pólos dialécticos antitéticos da disciplina e do fruto-sucesso. Também
na escolha da metáfora comum do fruto.
Não é certo se o autor de Hebreus teria presente esta elaboração da cria específica, a
cria de Isócrates, os caminhos argumentativos seguidos no tratamento de um tema com
pontos em comum ao compor a sua carta. Não é certo se não se poderia antes falar de um
espírito comum cultural, espírito esse largamente disseminado pelas escolas, na
comunicação entre as pessoas, nos discursos. Os paralelos, porém, falam bastante alto:
teria o autor de Hebreus, que escreve em bom grego, literária e retoricamente, aprendido
este exercício na escola e do seu tema e modos de tratamento se teria apropriado para
servir o propósito de ensinar os leitores sobre a correcção de Deus? É pelo menos plausível.
Fica, pelo menos, a questão em aberto.
Certamente que se manuais de ensino dos progymnasmata (assim se chamavam estes
exercícios escolares de retórica), compostos por sofistas, mestres, com propósito didáctico
com séculos de distância uns dos outros, transmitiram esta elaboração da cria a partir da
cria de Isócrates a razão é que seria efectivamente dado aos alunos, geração após geração.
E não for motivo fortuito: é um modelo e o seu tema é a educação. Nenhum outro se
prestaria melhor a preparar o espírito dos meninos para o que aí viria, a vida escolar com
as suas asperezas mas também com as suas promessas de glória futura. Pode pensar-se,
por isso, que seria o primeiro exemplo de elaboração que lhes era exposto. Geração após
geração, na escola que da antiga e helenística perdurou, nos seus modelos e estruturas,
nos séculos medievais.
De tal que a analogia entre a paideia e a agricultura, difundida neste exercício mais do
que milenar, ainda será encontrado, por exemplo, na Magna Charta Priuilegiorum
outorgada em 15 de Fevereiro de 1309 à Universidade de Coimbra pelo rei D. Dinis. Lê-se
no documento:
47
Ora o Rei de maneira alguma poderá conseguir obter estes frutos da justiça, que ele tanto estima, senão mandando semear, com as mais variadas sementes, a terra, isto é, o Reino que lhe está confiado; assim, com efeito, graças Àquele que, se a semente morrer, produz muito fruto, o Reino se abrirá em palmas de justiça e a terra fará germinar os seus frutos, quer dizer, varões a vários títulos insignes pelo conhecimento das ciências; e consequentemente, mercê da Vossa graça celeste, o Rei e o Reino se fortalecerão com a solidez da justiça, em virtude do trabalho de homens letrados, em ordem a todos os .
O texto acumula referências evangélicas com a tradição do exercício da elaboração da
cria, fundindo-as e tornando uma as duas sementes de que na verdade fala: a primeira,
Jesus Cristo, que disse de si próprio que a semente precisa de cair à terra, sendo essa queda
uma morte, da qual resultaria nova génese, novo rebento que haveria de frutificar
(Evangelho segundo João 10:24). Jesus alude metaforicamente à sua própria morte, à qual
se sucederia sepultamento, para culminar na ressurreição e no nascimento de nova árvore
frutífera, metáfora de Cristo e dos seus discípulos por vir, de si próprios gerados, numa
palavra, da sua igreja. Este fruto evangélico converte-se, no que aos estudos universitários
respeita, naqueles que por ela passando obterão sucesso como “insignes pelo
conhecimento das ciências” e “pela solidez da justiça”. Numa palavra, no fruto da
educação.
Pela escola a memória destas metáforas persistia, viva.
CURIOSIDADES
Como prometido, leremos trechos do Encómio (ou elogio) de Helena do sofista sículo
Górgias de Leontinos (sécs. V-IV a.C.) sobre o poder da Palavra e compará-los-emos com
um texto bíblico. Lê-se no parágrafo 8 (Barbosa / Ornellas e Castro, 1993):
48
O Discurso é um senhor soberano que, com um corpo diminuto e quase imperceptível leva a cabo acções divinas. Na verdade, ele tanto pode deter o medo como afastar a dor. […]
E no parágrafo 14
Relação idêntica possuem a força do Discurso em ordem à disposição do espírito e a prescrição dos medicamentos para a saúde do corpo. Na verdade, assim como certos medicamentos expulsam do corpo certos humores, suprimindo uns a doença e outros a vida, outros que encantam, outros que atemorizam, outros que incutem coragem no auditório, outros ainda que, mediante uma funesta persuasão, envenenam e enfeitiçam o espírito.
O Discurso, ou Palavra (logos, a faculdade verbal humana com a sua concretização por
meio de verbalização) constitui um medicamento (pharmakon). Este termo grego pode ser
mais bem vertido por veneno, em vez de pelo anódino medicamento, sentido que passou
para as línguas modernas. Mais ainda: o poder da retórica é como o da feitiçaria. A analogia
entre a retórica e o orador e a medicina têm uma tradição que ultrapassou os dois milénios
e meio. A analogia era tão forte que mesmo a medicina tinha, e continuou a ter por alguns
séculos (e ainda continua a ter em sociedade tribais em África, Ásia, Oceânia e América,
permeáveis ainda às influências do que entendemos por civilização), uma relação
intrínseca com as artes mágicas. As bruxas dos contos tradicionais europeus não são
mágicas malévolas e possuidoras de conhecimentos secretos de filtros e poções? E em
grego antigo, a bruxa chamava-se pharmakeia, aquela que sabe manipular essas
substâncias e preparados para os mais variados fins.
Leiamos agora a Epístola de Tiago 3:6-12:
Também a língua é fogo, o mundo da injustiça; […] mas a língua, nenhum homem a pode domar; um mal instável, repleto de peçonha mortal! Com ela bendizemos o Senhor e Pai; com ela também maldizemos os homens, que são a imagem de Deus; da mesma boca saem bênção e maldição. Não pode, meus irmãos, ser assim.
Eis linhas impressionantes sobre o poder da Palavra (representada, por catacrese, pela
metonímia “língua”). A Palavra que abençoa ou que maldiz, que excita os pathe de quem a
ouve. Ela pode ter o efeito de um “peçonha mortal” (ios thanatópphoros). Pode também
restituir a vida e a morte, como escreveu o sábio autor dos Provérbios (cf. loc. cit.). não se
está, parece, e a despeito de algumas cambiantes, da ideia gorgiânica da Palavra. O
apóstolo, do mesmo modo que Górgias, fala da língua como de uma peçonha; Tiago pensa
num fármaco nocivo, ao passo que o sofista vê a dupla face da Palavra, para o bem-estar
ou o mal-estar. A Palavra é para ambos qualquer coisa de muito poderoso pelos seus feitos,
ainda que fraca na aparência. Comparem-se o v. 5 do presente passo da carta de Tiago e o
49
parágrafo 9 do Elogio de Helena. As abordagens são diferentes, como o são o plano de
fundo cultural e doutrinário que os separa. Como quer que seja, ambos partilham a ideia
de que a Palavra tem o poder de influenciar as almas e mover as emoções.
50
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