d - Correa, Maria Isabelle Palma Gomes

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MARIA ISABELLE PALMA G O M E S C O R R E A

A GUA, OS DEUSES E O PODER NA M E S O P O T A M I A : REFLEXES SOBRE OS S M B O L O S AQUTICOS NA VERSO NIN1VITA DO PICO DE G1LGAMESH

Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre cm Histria, Curso de Ps-Graduao em Histria, Setor de Cincias Humanas, Letras c- Artes, Universidade Federal do Paran. Orientadora: Prof." Dr." Mrcia Dalledone Siqueira

CURITIBA 2003

fililtiftllilU F P R

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN SETOR DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTESRua General Carneiro, 460 6 o andar fone 360-5086 FAX 264-2791COORDENAO DOS CURSOS DE PS GRADUAO EM HISTRIA

PARECER

Os Membros da Comisso Examinadora designados pelo Colegiado dos Cursos de Ps-Graduao em Histria para realizar a argio da Dissertao da candidata Maria Isabelle Palma Gomes Corra, sob o ttulo "A gua, os deuses e o poder na Mesopotamia: reflexes sobre os smbolos aquticos na verso ninivita do pico de Gilgamesh " para obteno do grau de Mestre em Histria, aps haver realizado a atribuio de notas so de Parecer pela .o-pn-o veuixla... sendo-lhe conferidos os crditos previstos na regulamentao dos Cursos de Ps-Graduao em Histria, completando assim todos os requisitos necessrios para receber o grau de Mestre. Curitiba, 13 de outubro de 2003

Prof. Dr...

Prof. Dr. 2 Examinador U

A GRA

DECIMENTOS

liste trabalho s pode ser realizado graas s inestimveis

contribuies

de todos

aqueles que, com /.xtcincia e boa vontade, direta ou indiretamente, desenvolvimento gratido.

auxiliaram jara o

e concluso das pesquisas. Gostaria de deixar aqui registrada a minha

A Professora Doutora Mrcia falledonc Siqueira, que orientou esta dissertao

de

fontta eficiente, com carinho e compreenso fundamentais para a efetivao de um estudo to exaustivo, lambem aos Professores Doutores Renan friguelto leram a verso preliminar do texto e apontaram vrios e Johnni Langer, que e omisses,

problemas

apresentando Professores Universidade

valiosas sugestes para a composio do texto JinaL O mesmo fizeram os da linha de pesquisa Inderal Cultura e Poder do Departamento de Histria estiveram da

do Paran, que durante os anos de Mestrado

lendo,

avaliando e sugerindo meios para a construo da pesquisa. Ao 1'rofessor Mrcio Loureiro pelas leituras que realizou neste trabalho, Teolgica

despendendo um tempo precioso de suas atividades como docente da Taculdade

Americana em .Londrina. Tambm agradeo pelo envio de material de pesquisa e pelas criticas que enriqueceram muito esta Aos assirilogos brasileiros dissertao. Pozzer

Professor h.manuel Houzon e Professora Ktia e recomendar

por terem concedido algum tempo para debater, fornecer inigualvel jxira a elaborao da pesquisa.

obras de valor

A CAPLS, pela concesso de uma bolsa de estudos, aliviando boa parte dos encargos econmicos decorrentes da pesquisa. Tambm Universidade Tederal do Paran e

1'IJNPAR que em diferentes ocasies financiaram passagens para congressos e seminrios, demonstrando incentivo e apoio produo Gostaria de agradecer cientfica. Maria Jos e Daniele, que sempre

aos meus familiares,

prestaram auxilio e estimulo, dedicando-me

seu amor e ateno. Lm especial, ao meu pai leu e revisou algi4ns captulos do

Daniel que, alm do carinho e presena constantes, trabalho, sugerindo mudanas e acrscimos.

Ao meu comjKtnheiro Fbio Schneider por

apoiar. compreender e auxiliar na composio deste trabalho, assumindo vrios encargos

meus e revisando, na medida do possvel, o texto disser/ativo.

Por fim, sou grata minha preocupaes...

filha Beatrice, que soube como ningum relevar minhas ausencias e

LISTA DE ILUSTRAES

MAPA

1

Localizao

geogrfica

da

rea

e

perodo

de

estudo:

vale 11 15 19

mesopotmico, sculo XVI a.C MAPA FIGURA FIGURA 2 I 2 Aspectos fsicos da regio mesopotmica Kudurru de Melisbipak II, sculo XII a.C., 68 cm, Museu do Louvre . Ilustrao de Ludmila Zelman representando Gilgamesh e Enkidu, sculo XX d.C, 26 cm FIGURA 3 Detalhe da fachada de um palcio babilnico, cerca de 580 a.C., Iraque FIGURA FIGURA FIGURA FIGURA 4 5 6 7 Vaso de ouro do perodo aquemnida Gilgamesh e o leo, sculo VIII a.C., 4,70 m, Museu do Louvre Face de Humbaba, Sippar, 700 a.C., 8 cm, Museu do Louvre Face de Humbaba, aproximadamente 2 milnio a.C., Museu do Louvre (sem referncias dimensionais) FIGURA 8 Estatueta da deusa da fertilidade, 16,1 cm (sem referncias de perodo histrico e localizao atual) FIGURA 9 Ilustrao de Ludmila Zeman representando a morte de Enkidu e o lamento de Gilgamesh, sculo XX d.C, 26 cm FIGURA 10 A pomba do dilvio extrada de uni afresco palaciano do rei ZimriLim de Mari (sculo XVIII a.C ), sem referncias dimensionais FIGURA 11 Dudu, o escriba de Lagash, sculo XXV a.C., Museu de Bagd (sem referncia dimensional) FIGURA 12 Tbua cuneiforme em escrita acadiana, 1700 a.C. (sem referncia dimensional e localizao atual) FIGURA QUADRO QUADRO QUADRO 13 Fonte d'gua em forma de divindade, palcio de Mari, 1,4 m I 2 3 Evoluo do sinal cuneiforme estrela Transi iterao e traduo do signo cuneiforme Quadro comparativo de narrativas diluvianas

31

31 32 33 35

35

37

38

44

48

49 78 51 52 83

VI

RESUMO Anlise do simbolismo aqutico na Epopia de Gilgamesh, entendendo tal narrativa do ponto de vista mtico, por constituir os valores absolutos e paradigmticos que orientam e, de alguma forma, determinam as atividades do homem antigo. E, pois, pela experincia com o sagrado, pelo encontro com o transcendente, que surge a realidade de qualquer coisa e que guia o homem dando um significado sua existncia. O mundo transcendente dos Deuses, Heris e Antepassados mticos se torna acessvel atravs da reatualizao do presente, j que sua funo consiste em anular o Tempo profano (cronolgico e histrico) e recuperar o Tempo sagrado dos primordios. O homem arcaico constri uma ao real somente quando deixa de ser ele mesmo (para um observador moderno) e pass a integrar as realizaes arquetipicas dos deuses, imitando e repetindo os sinais do Misterioso, dos acontecimentos primevos em conseqncia dos quais todo o Mundo passou a existir. O sentido da prpria vida do homem na Antigidade est condicionado pelos modelos extrahumanos que fundam a sua realidade. Assim, viver significa estar inserido plenamente no mago do real, entendendo este como as hierofanias primordiais em que aparecem as revelaes in illa tempore das normas de existncia formuladas por uma divindade ou por um ser mtico. Atravs da linguagem simblica, os homens antigos traduziram por meio de sinais misteriosos o modo que lhes cabia viver e agir em sociedade. Cada rea da experincia humana foi representada no conjunto de imagens religiosas capazes de explicar o natural e o sobrenatural. O sagrado assim se manifestava em todas as experimentaes humanas, revelando uma ntima relao entre o numinoso e o profano. Essa religiosidade foi sendo revelada no decorrer de um longo processo histrico, cujo aparecimento da escrita exerce uma influncia vital, pois possibilitou o registro dos textos mticos oriundos da tradio oral. O objetivo desse trabalho compreender o simbolismo da gua na narrativa mtica de Gilgamesh, uma das histrias mais conhecidas da Mesopotamia. Foi composta por um conjunto de poemas, conectados harmnicamente uns aos outros. provvel que a epopia tenha se originado a partir de tradies orais, recitadas muito antes de seus registros escritos Os poemas referentes ao grande rei Gilgamesh indicam as metforas que o homem elaborou para tornar legveis as hierofanias do seu mundo. O estudo dos simbolismos intrnsecos 110 texto abriga uma compreenso significativa na anlise geral da religio mesopotmica. Palavras-chave: Mesopotamia, mito, smbolos, gua.

Vil

ABSTRACT

Analysis of the aquatic symbolism in the Epic poem of Gilgamesh, understanding such narrative for the mythical point of view, for constituting the absolute and paradigmatic values that guide and, in some way, they determine the old man's activities. It is, therefore, an the experience with the sacred, an encounter with the transcendent, that the reality of anything appears and that it guides man giving a meaning tb his/her existence. The transcendent world of Gods, Heroes and mythical Ancestors turns accessible through the reactualisation of the present, since his/her function consists of annulling the profane Time (chronological and historical) and to recover the sacred Time of the origins. The archaic man builds a real action only when he stops being himself (for a modern observer) and starts to integrate the gods' archetypal accomplishments, imitating and repeating the signs of the Mysterious, of the primal events as a consequence of which everyone started to exist. The sense of the man's own life in antiquity is conditioned by the superhuman models that are found in his or her reality. Thus, to live means to be inserted fully in the heart of the real, understanding this as the primordial hierofanias that appear in revelations in illo tempore (in that time) of the existence norms formulated by a divinity or for a mythical being. Through the symbolic language, the ancients translated by means of mysterious signs the correct way to live them and how to act in society. Each area of the human experience was represented in the group of religious images capable to explain the natural and the supernatural. The sacred was manifested in all human experiences, revealing an intimate relationship between the sacred and the profane. That religiosity was revealed over a long historical process, whose emergence in writing, exercises a vital influence, because it made possible the registration of die mythical texts originating the oral tradition. The objective ofthat work is to understand the symbolism of the water in the mythical narrative of Gilgamesh, one of the best known histories from Mesopotamia. It was composed by a group of poems, connected harmoniously, with each other. It is probable that the epic poem originated in oral traditions, recited a lot before their being written. The poems regarding the great king Gilgamesh indicate the metaphors that the man elaborated to turn readable the hierofanias of his/her world. The study of the intrinsic symbolisms in the text harbors a significant understanding in the general analysis of the Mesopotamian religion. Key-words: Mesopotamia, myth, symbol, water.

VIII

INTRODUO

Questes ambientais tm sido constantemente objeto de diferentes preocupaes no mundo contemporneo. A relao de problemas que afetam o equilbrio ecolgico do planeta tende a se tornar o centro de acirradas discusses, haja vista a significativa quantidade de prejuzos que o homem moderno, pelo nvel d desenvolvimento tecnolgico que alcanou, causa ao meio ambiente. Dentre as preocupaes iminentes encontra-se o problema da quantidade e qualidade de gua disponvel para o consumo humano, j que as reservas aquticas naturais tiveram suas composies alteradas pela constante emisso de resduos poluentes, tornando-as imprprias para a utilizao do homem. Alm disso, cada fonte fluvial que sofra o impacto da poluio afeta todo o ecossistema vizinho, o que inclui as condies de sobrevivncia no s da fauna e flora circundante cmo tambm das populaes humanas que dela dependam direta ou indiretamente. Os recursos hdricos disponveis hoje no globo no so suficientes para dar conta da demanda populacional em crescimento. , pois, no sentido de solucionar ou minimizar os efeitos catastrficos da ao humana sobre o meio ambiente que Naes e Organizaes do mundo todo mobilizam seus esforos para garantirs geraes futuras disponibilidade de gua potvel. Isto porque a gua o elemento primordial no ciclo de vida das espcies e condio indispensvel para a sua manuteno em qualquer perodo da histria. Tal a sua importncia que o estabelecimento e posterior desenvolvimento do homem na Terra s foi possvel atravs do aproveitamento das fontes fluviais, Muito cedo, o homem percebeu que sua sobrevivncia estava associada em grande parte aos meios aquticos naturais e s suas formas d utilizao. Os primeiros cls pr-histricos buscaram nas imediaes dos rios o ambiente propcio para sedimentar aquilo que posteriormente originaria os centros urbanos complexos da Antigidade. Especialmente no vale mesopotmico, floresceram inmeras civilizaes que consolidaram instituies sociais, polticas, econmicas e culturais atravs do domnio sobre as guas dos rios Tigre e Eufrates. As populaes que se desenvolveram na regio encontraram os mecanismos necessrios para a prtica sistemtica da produo agrcola, o que permitiu, a longo prazo, o surgimento de cidades e reinos com estruturas sociais diversificadas. A presena do vale fluvial formado pelos rios mesopotmicos somada capacidade humana de transformar o meio geogrfico em proveito prprio permitiu que

reconhece-se que as imagens so dotadas de certa materialidade 1 , ou seja, traduzem uma representao visual, cuja gnese pode ser encontrada no mundo sensvel. Em funo disso, o trabalho busca numa segunda abordagem discutir como as imagens das guas ganharam expresso mtica atravs da contemplao do mundo concreto 2 . As percepes de mundo do homem arcaico, bem como as representaes que delas fez, podem ser analisadas atravs das narrativas mticas que construiu. Por meio de imagens e smbolos, os mitos em sociedades arcaicas repassam de gerao em gerao seus valores religiosos 3 , suas significaes e perspectivas sucessivamente num longo processo histrico. Com a sistematizao de registros escritos que pudessem prescrever maior confiabilidade memria, as civilizaes da Antigidade passaram a compor colees escritas de seus mitos mais significativos. Ao historiador moderno cabe compreender o imaginrio simblico de sociedades antigas atravs de algumas narrativas que puderam ser reconstitudas pela arqueologia. Esses textos, apresentando um conjunto de signos cifrados, cuja tendncia principal expressar um contexto anterior que os definiu, constituem o foco centralizador desta pesquisa. Assim, o processo de construo do trabalho tomar por base a narrativa epopica de Gilgamesh, buscando compreender como foi manifestado o simbolismo da gua no interior do mito, associando a conjuntura histrica da civilizao cassita. O recorte temporal foi delimitado tendo em vista a poca em que foi registrado o pico, ou seja, durante o reinado de Nabucodonosor 1 (1124-1 103 a.C ), quando este monarca de origem cassita reconquistava a Babilnia. Aspectos contextuis do perodo em questo constituem um foco problemtico, haja vista a dificuldade em reconstruir a histria dos cassitas na Babilnia pela escassez de documentao. Alm disso, a forma como os cassitas pentraram em Babel (atravs de infiltraes graduais at culminar com o conflito final que destituiu a ltima dinastia amonta na Babilnia) contribuiu para que houvesse um intercmbio cultural muito intenso que permaneceu arraigado nos costumes e hbitos dos povos subseqentes. De um modo geral, em funo das disputas por territrios dentro do vale mesopotmico, cada civilizao incorporou vrios

1 Cf. BACHELARD. Gaston. A gua c os sonhos: ensaio sobre a imaginao da malcra. S;lo Paulo : Martins Fontes, 1.998. 3 Cf. SANTAELLA. Lcia c NTH. Winfried. Imagem; cognio. semitica, mdia. Silo Paulo : Iluminuras,'1997. 3 Entendendo religio no sentido arcaico, isto e. como um aglomerado de relaes que perpassa i mu eras reas da experiencia humana.

3

aspectos de diferentes culturas, j que aquelas sociedades estavam em permanente contato (atravs das guerras ou mesmo em periodos de trgua). Uma questo que se impe como obstculo nos estudos da Antigidade diz respeito traduo da fonte histrica analisada que, no caso da Epopia de Gilgamesh, por constituir um poema longo, no ser realizada aqui. Obviamente, o conhecimento de epigrafa acadiana da autora no profundo o suficiente para que a anlise tenha por base o documento original; um problema a ser sanado em trabalhos vindouros. Por enquanto, fica o registro de que a traduo utilizada, proposta por Benjamim Foster', constitui uma obra recente de autoria consagrada entre os assirilogos, dada a seriedade que dedicou ao trabalho realizado. Ainda assim, omisses e distores devem ser levadas em conta por se tratar de uma traduo. De um modo geral, as escritas antigas so registros complexos cujo processo de decifrao acontece, na maior parte das vezes, atravs de mtodos comparativos com lnguas mais recentes do ponto de vista histrico - o caso do cuneiforme, por exemplo, que s pode ser decifrado a partir de textos bilnges, cujas verses em persa propiciaram desvendar sua enigmtica estrutura. Segundo Neyde ThemP, historiadora do mundo clssico, as pesquisas com textos antigos constituem um estudo to laborioso que, no raro, o pesquisador, ao passar a maior parte do tempo preocupado na decifrao e leitura dos documentos, acaba impedido de chegar a anlise do contedo propriamente dito. Nesta pesquisa optamos por uma metodologia inversa, utilizando uma traduo da fonte histrica para uma lngua estrangeira moderna, a fim de proceder com uma anlise dos simbolismos internos do poema. A Epopia de Gilgamesh , sem dvida, uma fonte literria, registrada por homens de letras (os escribas) da antiga Babilnia em algum perodo da histria, cuja preciso cronolgica difcil buscar. Seu contedo indica parte dos anseios e aspiraes dos homens que a produziram e compreender a linguagem simblica que compe a narrativa permite que se apreenda um pouco melhor sobre a vida e o pensamento do homem antigo. Sendo um texto literrio, ainda que pleno de imagens mticas e paradigmticas, alguns momentos no trabalho historiogrfico so muito significativos para anlise

' TIIE EPIC of Gilgamesh: ;i new translation, analogues, criticism Translated and edited In BliNJAMIN R. FOSTER. New York. London : Norton < i Company. 2 0 0 ] . S r Comunicao livre da autora no IV Congresso Nacional de Estudos Clssicos, promovido pela Sociedade Brasileira de Eslvidos Clssicos ( S B E O . 10 de agosto de 20UI. Ouro Prelo/MG

4

Segundo Edgar de Decca 6 , "a obra literria deve ser encarada como um fato esttico, o que exige uma anlise particular das relaes entre o texto literrio e seus leitores'". Isso porque a narrativa literria produz um certo perfil de leitor que busca referncias semelhantes (representaes de mundo vlidas a um grupo de indivduos leitores que se identificam entre si). A problematizao dessa historicidade permite delimitar o universo mental desse leitor, uma vez que ele, como sujeito, traduz o texto em sua existncia e aes cotidianas. A possibilidade de significaes mltiplas na

compreenso dos smbolos lingsticos o que concede obra literria uma flexibilidade e variabilidade de representaes. Na Epopia de Gilgamesh, o simbolismo da gua est inserido nessa teia de significaes mltiplas, e perceber em que medida essas formas lingsticas so apreendidas e compreendidas pelo leitor permite reconstmir esse universo simblico.

Como c que um texto, que c o mesmo para todos que o lem, pode transformar-sc cm instrumento dc discrdia c dc brigas entre seus leitores, criando divergncias entre eles e levando cada um, dependendo dc seu gosto pessoal, a ter uma opinio diferente?"

Assim, a leitura atribui significados particulares ao texto que no esto mais sujeitos "s intenes originais dos autores (...) ou dos produtores de livros. (...) Ler entendido como uma 'apropriao' do texto"". Os discursos (contidos nesse campo simblico, representativo) podem ser direcionados por um grupo de indivduos que procuram legitimar ou mesmo impor seus posicionamentos. Constituem, assim, a produo de estratgias e prticas sociais que estabelecem uma relao dc poder e dominao, na mesma medida em que possibilitam "reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira prpria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posio'"", dando continuidade existncia do grupo institucional mente. Nesse caso, os sentidos construdos para a apreenso do real por meio da leitura (entendida atravs da linguagem simblica) so

" DECCA. Edgar Snlvadori dc. Lilcmluni. Modernidade e Histria. In: RUA - Revista do Nclvo dc Desenvolvimento da Criatividade da UNICA M P I :7-35. 1995 7 Ibid.. p. Kl. * CH ARTIER. Roger Textos. Impresso. Leituras. In HUNT. Lvnn A nova histria cultural S fio Paulo: Martins Fouies. 1992. p 2 II. " Ibid.. p. 214-215. Ibid.. p. 23.

representaes do mundo social "deteijninadas pelos interesses de grupo que as forjam"". Infelizmente, no se pode delimitar com certeza que dimenso social o pico abrangeu, pois no foram encontrados registros dos possiveis leitores ou ouvintes da histria. provvel que tenham existido e muitos, uma vez que os poemas sobre Gilgamesh (como tantos outros mitos antigos) foram presumivelmente transmitidos por tradio oral. E o que indica a estrutura do texto: as repeties de trechos inteiros denotam uma certa musicalidade Epopia, comum em versos destinados ao canto Outra caracterstica que informa a transmisso oral a quantidade de recenses encontradas, demonstrando que vrias verses foram registradas para a exposio em pblicos diferentes. Entretanto, improvvel produzir uma definio conclusiva sobre as diferentes significaes que o texto adquiriu com o passar do tempo. Mesmo no existindo subsdios suficientes para determinar os leitores/ouvintes de Gilgamesh, a anlise sobre as relaes de poder embutidas na produo literria ainda possvel. Apesar de se caracterizar como uma histria sagrada, porque revelaos destinos de um deus, narrando uma experincia exemplar e, portanto, significativa para as demais atividades humanas, Gilgamesh est inserido nessa relao de poder sobre a construo do discurso. E, portanto, interesse desta pesquisa investigar sob quais circunstncias a Epopia foi composta, tendo em vista a anlise do momento histrico cm que viveu aquela sociedade. Assim sendo, a Epopia de Gilgamesh, desde suas origens como tradio oral at o registro escrito por volta do sculo XII antes de Cristo, passou por uma srie de filtros, quer sejam histricos, lingsticos (uma vez que comps a iradio mtica de vrios troncos tnicos diferentes) ou mesmo institucionais; filtros estes, que devem ser considerados na pesquisa historiogrfica. O trabalho est disposto sob a forma de trs captulos, contendo cada um deles itens especficos que auxiliam na compreenso total do texto. O primeiro captulo aborda questes referentes contextualizao histrica do perodo mdio babilnico, poca do registro da Epopia de Gilgamesh. Especial ateno destinada estrutura poltica e econmica daquela sociedade com referncia s prticas agrcolas constitudas a partir do controle organizado de diques e canais de irrigao sobre as guas dos rios Tigre e Eufrates. Inserida nele encontra-se tambm uma discusso sobre o contexto da

" CHAR TUER. A histria ctihural.... p. I 7

b

fonte e as relaes de poder possveis entre a produo literria do perodo e o contexto cassita de dominao. Segundo Emanuel Bouzon 12 , essa verso atribuda em um catlogo neo-assrio de textos e autores a um sacerdote exorcista babilnico chamado Snleqiunnini. Nesse sentido, esse capitulo tambm contm, em linhas gerais, quem eram esses escribas, seu papel social e como exerceram influncia sobre a sociedade mesopotmica. O segundo captulo apresenta o significado dos mitos em sociedades arcaicas, bem como os simbolismos aquticos que partejam a sacralidade do mundo. Esse segundo momento do texto procura compreender as relaes entre as "guas simblicas" e o ambiente geogrfico que essas civilizaes habitaram, discutindo de que forma aquelas sociedades atriburam poderes mgicos a um elemento primordial para sua existncia. O terceiro captulo procura sistematizaros conceitos anteriormente desenvolvidos, enfocando a Epopia propriamente dita. Trs momentos do pico, onde possvel encontrar fortemente a presena da gua como um veculo gerador da transcendncia csmica, so privilegiados na pesquisa, a saber, a passagem de Gilgamesh pelas guas da morte, o dilvio e o retorno do heri para Uruk. As histrias centrais privilegiadas para anlise buscam uma conexo cronolgica dos eventos narrados. Mas, aqui e ali, as guas amarram diversos temas na Epopia e, na medida do possvel, esta pesquisa procura contemplar outros trechos picos concernentes ao simbolismo aqutico.

' BOUZON. Emanuel. Ensaios Babilnicos: sociedade, economia c cnllnni na Babilnia prc-crisi Porto Alegre: Edipncrs. WX.

7

CAPTULO 1

.l

CONSIDERAES

CONTEXTUAIS:

A DOMINAO

CASSITA

E O

P R O B L E M A DAS GUAS M E S O POTA M1 CA S

As inmeras civilizaes que habitaram a regio mesopotmica encontraram nesse territrio solo frtil e clima favorvel para sua sobrevivncia. Graas ao percurso dos dois grandes rios Tigre e Eufrates que se estendem por aproximadamente 2000 km atravs da Turquia, Sria e Iraque, muitos povos nmades oriundos de zonas ridas atravessaram o deserto arbico ou a cadeia montanhosa dos Zagros e fixaram suas aldeias nas imediaes desse vale fluvial, o que garantiria o desenvolvimento de melhores condies de vida. Por essa razo, a Mesopotamia conheceu no decorrer de um longo processo histrico uma srie de reinados estabelecidos por grupos tnicos diferentes (hurritas, amoritas, cassitas, sumrios, etc ) que buscavam nessas dominaes fundar centros urbanos caractersticos de sua cultura, tendo por base o aproveitamento da gua dos rios para o desenvolvimento econmico dos seus reinos calcados na agricultura. Assim sendo, j constata-se que no a dificuldade dc falo em um reconstituir nico povo uma histria

mesopotmica,

existiu

mesopotmico.

"Mesopotmicos? No existen!", afirma Jean-Claude Margueron 1 . No desenrolar de muitas experincias, cada civilizao viveu e desenvolveu formas genunas de expresso cultural, o que gerou mltiplos processos histricos dentro de um s territrio. Com efeito, na assiriologia pode-se identificar especialistas em Sumria ou Babilnia, mas dificilmente encontra-se aquele que pode discorrer com a mesma profundidade sobre todas as civilizaes que habitaram o vale. Levando em conta essa diversidade tnica e cultural das civilizaes

mesopotmicas, este estudo prope delinear o contexto histrico do perodo mdiobabilnico, poca da dominao cassita na Babilnia, aproximadamente entre os sculos XVI e XI antes de Cristo. Esse recorte temporal foi estabelecido tendo em vista o documento histrico eleito para investigao a chamada verso standard da Epopia de Gilgamesh, registrada no reinado de Nabucodonosor I, quando esse monarca de origem cassita reconquistava a Babilnia

1

MARGUERON. Jcan-Claudc. Lm Mesopotamiens. Madrid: Ctedra. 1996. p. I x

8

Embora tenha sido encontrada por arquelogos do sculo XIX d.C. na biblioteca de Assurbanipal em Ninive (antiga capital do imprio 2 assrio), a verso padro do pico parece ter sido composta numa poca anterior ao perodo neo-assrio, por um sacerdote exorcista chamado Snleqiunnini durante o mdio-babilnico, quando as escolas babilnicas exerciam intensa atividade de compilao das obras antigas mais importantes. A histria cassita na Mesopotmia considerada pelos estudiosos como um perodo obscuro, cujas informaes escassas no permitem uma reconstituio

abrangente de seus aspectos mais pontuais. Alm disso, vrios desses grupos emigrantes que penetraram na Mesopotmia (amontas, cassitas, arameus) acabaram incorporando as estruturas tradicionais encontradas. Assim, o estudo da cultura desses povos perpassa a anlise de certos aspectos comuns que iniciaram numa poca anterior e foram absorvidos em periodos posteriores. Por exemplo, algumas deliberaes administrativas no tocante ao regime fundirio foram estabelecidas na dinastia hammurabiana (origem amorita) e perduraram at o perodo assrio1. Nesse sentido, muitas caractersticas da cultura cassita so encontradas no apenas entre os resqucios arqueolgicos dos sculos correspondentes ao mdio-babilnico (caracterizado fundamentalmente pela

administrao desse grupo na Babilnia), mas tambm durante o pleo-babilnico (por volta da primeira metade do 2 o milnio a.C ), j que os cassitas iniciam desde ento uma pacfica e silenciosa penetrao cm Babel, assimilando muito do universo semita. Apesar disso, eles s aparecem na Babilnia com fora poltica significativa no lim da dinastia de Hammurabi, numa poca em que a Babilnia e os sucessores desse monarca enfrentam com dificuldade uma grave crise interna, resultado dos conflitos com povos vizinhos. Por volta de 1594 a.C., o rei h ti ta Mursiiis I invade a Mesopotmia pondo fim dinastia de Hammurabi. Os hititas no permaneceram em Babel e o espao poltico deixado vazio foi preenchido pelos cassitas. A hiptese mais plausvel acerca dessa invaso hitita na Babilnia diz respeito a uma possvel coligao anterior: buscando proteger-se de seus vizinhos hurritas, o reino hitita procuraria apoio entre os cassitas que desde muito tempo estavam infiltrados porEmbora a palavra "imperio" conlenlia algumas restries conceituais do ponto de vista liislrico c etimolgico (por ser uma designadlo posterior ao perodo apresentado), convencionou-se entre os especialistas adotar o termo ao tratar de algumas civilizaes mcsopotmicas (sobretudo a Assiria c Babilnia) que conquistaram ccrto poder hegemnico sobre as demais regies do Vale. O uso da palavra "imperio" neste trabalho segue atendendo a esta ressalva Referncia ao sistema do Hku. caracterizado pela concesso real de ternis, que conferia ao beneficirio a obediencia ao cumprimento de encargos militares Cl GARELLI. Paul El Prximo Oriente asitico: desde los orgenes hasta las invasiones de los pueblos del mar Barcelona : Labor. 1970. p. I(>X.

todo o alto e mdio Eufrates. Em contrapartida, Mursiiis 1 teria aceitado ajudar os seus aliados a proceder com a conquista na Babilonia, retirando os seus exrcitos e retomando Anatlia assim que a dominao estivesse consumada. Essa teoria, desenvolvida por Landsberger e citada por Paul Garelli', pode ser fundamentada pela anlise do contexto posterior, quando encontramos nas dcadas seguintes tomada da Babilnia o reino hitita em harmoniosas relaes coin os cassitas justamente num periodo em que a Mesopotamia vive a efervescncia de vrios reinos locais conflitantes entre si. De fato, desde o fim da dinastia hammurabiana at a consolidao do imprio assrio no final do sculo XI a.C., na Mesopotamia grassou um verdadeiro mosaico de reinos independentes com forte tendncia ao conflito. Distribudos por todo o vale, nenhum desses reinos administrados por civilizaes diferentes conseguiu impor um poder hegemnico com propores imperiais. A origem desses povos ainda incerta, as fontes que demonstram sua formao a partir do sculo XVI a.C. so escassas e apenas apontam para a possibilidade de que ondas migratrias indo-europias tenham empuado populaes inteiras para o vale mesopotmico. Quando 110 sculo XV a.C. os documentos reaparecem, a regio j est dividida em reinos complexos fundados por dinastias especficas: os cassitas na Babilnia, os clamitas a leste, os hurritas na Sria, os hititas 11a Anatlia e os assrios em processo de fortificao de seu imprio ao norte\ Veja na pgina seguinte o mapa ilustrativo" indicando a Mesopotamia e os respectivos reinos estabelecidos por volta do sculo XVI a.C. H ainda muitas controvrsias quanto origem dos cassitas. Segundo Paul Garelli, bem possvel que tenham vindo dos Zagros, pois um dos primeiros reis conhecidos, Agum-Kakrime ou Agum II, proclama-se "rey de Padan y de Alman, rey de GutiuirT, territrios que de acordo com Garelli podem ser identificados com a cadeia montanhosa a leste do Vale7. Entretanto, por problemas na datao, ainda subsiste a dvida se tal designao anterior conquista (o que seguramente provaria a procedncia cassita dos Zagros) ou relaciona-se a um perodo posterior dominao na Babilnia. A questo, portanto, permanece aberta, sendo possvel apenas presumir que os cassitas tenham penetrado no vale a partir do leste mesopotmico1 Ibid.. p 256. " Cl". LEVEQUE. Pierre. As primeira* civilizaes mcsopolmia c luiiias. Rio dc Janeiro: Edies 70. " 19X7. p. 90-95. " Disponvel cm A ~ M l lu/wrrwA.

-Ilimcicd

v

.

TV

I - Signo cuneiforme na forma tradicional (periodo neo-assrio). II - Valores fonticos do sinal. III - Data e localizao. IV - Valores ideogrficos, indicando o gnero de textos em que se encontrou o ideograma.

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noo pouco realista de uma cultura escrita ampla e popular na Antigidade." 91 H que se considerar os significados que aqueles cujo acesso ao mundo das letras era restringido ou mesmo impossibilitado atribuam ao poder da escrita: Assim, muito mais importante que o oficio de escrever e 1er era em si o produto de tal atividade, ou seja, a valorizao social de um escriba resultava da relevncia atribuda ao registro escrito propriamente dito. Isso explicaria porque um beneficirio de terras, sem conhecimento dos sinais grficos que permitissem a leitura de documentos, gurdaria com tanto apreo o registro da doao real, mesmo sem a possibilidade de decodificar seu contedo. Talvez pelo fato de tr tomado-se to eminente e indispensvel o registro para uma grande quantidade de pessoas (independente do domnio sobre a escrita) que os monarcas antigos se preocuparam em institucionalizar colees; de textos e documentos por meio da construo de bibliotecas, intencionando formar um "corpus de la tradicin, conjunto de textos a los que se podra considerar como el sistema de referencia de la tradicin cuneiforme." 92 / "corpus da tradio, conjunto de textos que se poderia considerar como o sistema de referncia da tradio cuneiforme." A mais famosa biblioteca da antigidade mesopotmica a que foi construida por Assurbanipal (669630 a.C.) em Nnive, antiga capital do imprio assrio. Ele conseguiu reunir um acervo de 1200 a 1500 tbuas das quais apenas pouco mais de 900 resistiram ao do tempo. A maior parte delas continha textos de pressgios e encantamentos que serviram para auxiliar exorcismos e processos adivinhatrios encarregados de proteger o rei e, por conseqncia, o reino91. Segundo Jean-Claude Margueron os textos literrios

encontrados no tinham mais que uma funo secundria, pois, associados aos silabrios, eram empregados para o exerccio da aprendizagem-Contudo, s o fato de serem copiados diversas vezes como treino para escribas estudantes do cuneiforme j revela a importncia que tais textos adquiriram no interior das sociedades antigas. possvel que a Epopia d Gilgamesh, durante o perodo neo-assrio de Assurbanipal, nao tenha se mostrado mais to fundamental para o exerccio do poder como quando foi registrada no babilnico mdio sob o reinado de Nabucodonosor I. Entretanto^ mesmo no fazendo parte dos textos preponderantes na biblioteca ninivita, os docmentos literrios (a Epopia de Gilgamesh, o relato da Criao e a Epopia de Etana9?) foram

" ibid.. p. 16 "2 MARGUERON. op. cit.. p. 443. '" Ibid.. p 444-445 :M Id. "'Id.

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considerados pelos antigos como elementos do corpus que compunham a tradio de sua cultura.

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CAPTULO II 2.1 MITOLOGIA: OS PRIMORDIOS DE UMA CINCIA

O termo mitologia, concebido a partir da juno d duas razes gregas (mylhos e logos), conseguiu traduzir de maneira harmoniosa o conjunto das tradies antigas que revelam as crenas hbitos de diferentes civilizaes. "Mitologia [grifo do autor] pode, pois ser o conjunto mais ou menos organizado dos mitos de um povo, de uma cultura ou, at, de uma rea cultural mltipla'". Mas ela pode ser entendida tambm como estudo dos mitos, que analisa sua funo social, a origem de seu contedo, os seus sentidos internos, a forma como se manifesta e modifica uma cultura. Essa segunda possibilidade de definio "para a palavra suscitou ma srie de caminhos dentro do saber acadmico com autores que procuraram sistematizar uma cincia dos mitos. Desde o sculo XIX, quando so fundadas as primeiras escolas de mitologia comparada, vrias interpretaes foram sendo construdas para explicar os sistemas mticos de sociedades antigas. A teoria novecentista que mais. se destacou (e que continua at nossos dias cmo uma viso preponderante no entendimento do mito) a imagem romntica d m homem "primitivo" que, no compreendendo o

funcionamento das foras naturais, transformou-as em deuses e registrou a admirao sentida por uma natureza incompreensvel sob a forma de narrativas mticas. Essa corrente, conhecida c o m o naturalista, procurou identificar entre os corpos celestes aquele que, pela freqncia com que foi invocado e grau d importncia atribudo, ocupasse o papel central em diversas mitologias. Assim, vrios estudos do fim do sculo XIX e incio d sculo XX apontaram diferentes astros ou fenmenos da natureza - o Sol, a Lua, a chuva, os ventos, o planeta Venus, etc. - que pudessem Corresponder a esse princpio na construo dos mitos. Uma grande quantidad de autores dedicados a fundamentar suas respectivas posies, lanaram mo de teorias, hipteses, mtodos qe pudessem comprovar, a primazia de um astro ou fora natural na origem das formulaes mitolgicas antigas. Outros pensadores optaram por compreender os mitos como o registro fabuloso de acontecimentos histricos. Pra eles, portanto, as narrativas da tradio tiveram origem em uma realidade antiga e ganharam dimenses fantsticas com o passar do tempo.

JABOUILLE. Vctor. Do mvthos ao mito. uma introduo problemtica da mitologia. Lisboa: Cosmos! 1993. p 16

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Uma abordagem bastante inovadora nas reflexes sobre o mito foi apresentada por Edward Bunnett Tylor, um ntroplogo ingls que, na segunda metade do sculo XIX, agregou elementos do evolucionismo e da religiosidade para interpretar as narrativas mticas. Essa teoria, conhecida como animismo, procurou posicionar as mitologias

como a manifestao de um fenmeno religioso (que ser. rechaado no fim do sculo XIX por rzes que sero discutidas adiante). Sendo relacionado com a religiosidade, o esiudo da mitologia envolvia tambm questes concretas como o culto, o smbolo, o ritual, etc. Essa nfase no mito como parte da religio gerou novas discusses para uma outra linha de pensamento que se engendrou a partir das conexes entre mito e ritual. E, ainda no fim do sculo XX, foram estabelecidos mais sistemas explicativos para a mitologia que se propagaram atravs de interpretaes psicolgicas, com Freud, em primeiro lugar, e com Jung num momento posterior. Com efeito, a "cincia dos mitos", embora no tenha se cristalizado como saber autnomo ("Ningum formado em Mitologia" 2 ), engloba e tema de estudo em vrias reas do conhecimento: na antropologia, na psicologia, na filosofia, na histria das religies ou mesmo na lingstica e na literatura. A maior prte dessas explicaes procura estabelecer modelos abrangentes que tentam abarcar o todo; tarefa um tanto penosa e na maioria das vezes ineficiente:

Eles Ios sistematizadores I encaram a questo de forma decididamente monstica (esto sempre propensos ao sofisma pars pro tolo Igrifo do autor], - a hipstase que transforma o mtodo num absoluto - c a outros erros de lgica que aparcenVom manuais dc ensino) c evitam olhar para as excees e anomalias que chamaro a ateno do prximo pesquisador, ou do seguinte. Contudo, seus discernimentos iniciais so geniais.3

EsSe trabalho no se prope fazer um mapeamento rigoroso das idias que surgiram para a interpretao e origem dos mitos em sociedades antigas. Mesmo porque, cada uma dessas Correntes, com seus autores clssicos, fomentaram o surgimento de outras idias que, por sua vez, se cristalizaram e fundaram novos sistemas tericos. Assim, uma discusso profunda sobre o processo histrico em que se organizou o pensamento contemporneo no estudo dos mitos e uma empreitada que exige m espao maior, at porque a mitologia um terna que suscita a curiosidade e o debate desde a Grcia clssica, com Homero, Plato, Herdoto e 7 ucdides (citando apenas alguns dos mais conhecidos), passando por autores do medievo (marcados pelo- RUTH VEN. K.K. O mito S;1o Paulo : Perspectiva. 1997 p. 15 'Ibid.. p. 14.

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evemerismo, que buscou revelaras verdades sagradas do Cristianismo em contraposio ao paganismo da Antigidade), pelos pensadores iluministas e pelas primeiras sistematizaes acadmicas (com ctedras especficas para o estudo do mito) do sculo XIX. Embora os discursos sobre a mitologia tenham sido apresentados sob enfoques diferentes no decorrer de um longo processo que proporcionou a paulatina cristalizao do conhecimento acerca dos mitos antigos, foi sobretudo o sculo XIX que deixou suas marcas mais profundas. Primeiro, porque institucionalizou a mitologia enquanto objeto acadmico de investigao atravs das escolas europias de estudos comparativos, que encontraram na filologia seus mais importantes argumentos. , segundo, porque foram os modelos explicativos dessas instituies que solidificaram uma relao muito prxima entre mito e fantasia, gerando a disseminao (e at deturpao) do conceito no uso corriqueiro da palavra De fato, o termo mito freqentemente empregado para designar uma falsa idia sobre determinado assunto ou para supervalorizar a personalidade de dolos contemporneos. De um modo geral, s escolas do sculo XIX que procuraram conhecer e analisara gnese dos mitos que povoaram o pensamento do homem antigo contriburam para a distoro (pr vezes, abusiva) das mitologias arcaicas. Em maior ou menor grau, os pesquisadores desse perodo definiram a "cincia dos mitos" como uma disciplina que explicasse a origem das histrias e aventuras selvagens, infames e absurdas" que povoaram o imaginrio e a literatura das pessoas na Antigidade, onde os deuses eram canibais, adlteros, assassinos, cruis e incestuosos. A mitologia , assim, revestida por uma atmosfera fantasiosa, vista como o resultado de fatos imaginrios sobrepostos realidade histrica ds antigos: Herana da Razo iluminista, o conhecimento sobre as narrativas mitolgicas residia no na interpretao de seu contedo, mas numa investigao sobre as origens de seu enredo: "... no h p o r q u e interpretar a fbula ou a mitologia. S o que merece interpretao a origem que revela a natureza errnea da fbula e sua futilidade, infantil (...) ou perversa . " 5 As explicaes para a origem de tais narrativas aparecem com um forte acento evolucionista:

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' DETIENNE. Marcel. A inveno da mitologia. 2.cd. Brasilia : UnB. 1998. p 17 Ibid.. p. 24.

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So produtos toscos do esprito humano primitivo que podem, atualmente, ser explicados como parte de um estgio da sociedade e da inteligncia humanas, n qual fatos que nos parecem irracionais e extraordinrios so ento aceitos cmo, acontecimentos normais ou evidncias imediatas. Nas civilizaes mais adjantads, os mitos acabaram se fossilizando sob a forma de superstio - resqucios Igrifo do autor] qe tanto podem ser rejeitados como absurdas mentiras, quanto aceitos pela histria.6 Tais pressupostos, ao mesmo tempo em que encontravam a chave para solucionar os problemas referentes o surgimento das mitologias, esvaziaram a tal ponto o sentido do mito que acabaram pondo em risco a prpria religio como um todo. Pois os deuses antigos, apesar de fazerem parte da religiosidade de uma determinada civilizao (na qual se reconhecem cultos e sinais caractersticos de um sistema religioso), so os mesmos deuses que aparecem travestidos pela roupagem "infame" das crueldades mais grotescas. A sada para esse dilema, j no fim do sculo XIX e incio do XX, foi distinguir mitologia de religio. "No se pode [mais] confundir a apreenso de Zeus como deus absoluto e as histrias imorais que circulam a seu respeito" 7 Com efeito, o que propunham esses autores que o sentimento religioso nunca foi inexistente na Grcia, mas com freqncia a mitologia confundiu e obscureceu suas divindades 8 . Entretanto, no foi to simples estabelecer os campos distintos em que ora dominava a religio, ora a mitologia, at porque os prprios antigos no diferenciaram claramente o sagrado do profano ou o religioso do no religioso. O ajuste, garantido pelo critrio moral, ressoa hoje, mais d 50 anos aps a fundao de uma antropologi relativista, como um desvio que tende a padronizar atitudes e impor comportamentos. "Quando se fala na existncia de um grande ser, justo e bom, que tudo faz e no morre, no h dvida de que estamos no domnio da religio. Se, ao contrrio, a razo aviltada e o senso de moral se escandaliza, trata-se de mitologia" 9 A mitologia continuar durante o sculo XX a inspirar curiosidade cientfica,, sedimentando Cada vz mais seu campo epistemolgico Esse breve panorama aqui exposto exemplifica como se fotjou uma noo rdcinista que imperou sobre s primeiras tentativas de anlise da mitologia. Noossa que tem suas razes nos sculos XVII e XVIII com os primordios de um saber cientfico que repudiou o mito (pela sua pseudo-irracionalidade) e sua importncia

" Ibid.. p. 35. 7 Ibid.. p. 37. x Id.Ibid.. p. y ) .

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simblica. Uma idia que se solidificou com fora suficiente para permanecer at os dias atuais no discurso do senso comum. Academicamente, novas possibilidades interpretativas foram lanadas, incluindo aqueles que, como Gaston Bachelard,

aproximaram os dois lados de um mesmo conhecimento: a razo e a imaginao (ou a imagem em ao)10. Mas a concepo da mitologia enquanto narrativa puramente fantasiosa continua sendo expressada nas entrelinhas de muitos pensadores

contemporneos. Furio Jesi", por exemplo, defende que por sua origem etimolgica, a palavra mitologia uma contradio, pois foi construda a partir de dois termos antagnicos entre si: o logos e o mythos. Essa forma de entendimento esvazia as

possibilidades de anlise dos mitos porque impede ver as narrativas antigas atravs de suas dimenses internas, de seu conhecimento intrnseco e do saber prprio que lhes caracteriza.

2.2 UMA POSSVEL DEFINIO DO MITO

Quaisquer que sejam as divrgncias nas variadas abordagens para o estudo do mito, um de seus problemas mais gerais, que pode mais Ou menos ser reconhecido nas diferentes linhas interpretativas, diz respeito sua definio. De fato, poucos autores conseguiram conceituar o mito de forma a contemplar todos os seus aspectos plenamente. Talvez porque ele mesmo no se permita escravizar por regras de anlise, talvez porque eles, os mitos, "signifiquem simplesmente o que dizem'" 2 . O mito "resiste a tudo, fazendo no fundo com que suas interpretaes sejam, quase sempre, matriaprima para novos mitos'" 1 . Ele se constitui como um modo complexo de expresso cultural, que pode ser analisado e interpretado sob perspectivas mltiplas e variadas. Desse modo, esse trabalho prope, dentre as vrias possibilidades tericas, delinear o esboo de uni significado para o entendimento do mito, levando em conta os aspectos mais relevantes de algumas teses e hipteses discutidas por estudiosos e especialistas do mundo antigo. Com efeito, j a partir da dcada de 80 do sculo XX d.C., as cincias humanas passaram pela ento chamada "crise dos paradigmas", determinando o abandono de modelos explicativos rgidos e favorecendo o trnsito entre diferentes formas de anlise!'" Cf. JABOU1LLE. Victor Iniciao cincia dos mitos. Lisboa . Editorial Inqurito. 1994. p. 2X-29. " JESI. Furio. O mito. Lisboa : Presena. 1977. p. 9 ct. scq. 12 RUTH VEN. op. cit.. p. 14. 11 ROCHA, Evcrardo P.G. O que c mito. So Paulo : Brasilicnsc. 19X1. p. 1X1.

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Isso impulsionou uma flexibilidade terica que muito colaborou para que os novos trabalhos fossem concebidos com interpretaes tericas plurais, gerando concluses amplificadas. Do mesmo modo, esse estudo procura dialogar com os diferentes campos epistemolgicos que, em maior ou menor grau, contriburam para o surgimento de um discurso (ou discursos) sobre o mito. Embora no se procure recorrer a uma especificidade terica (justamente para que se diminua o risco de minimizar e tabular as dimenses do sagrado a partir de referenciais que, por sugerir modelos explicativos fechados, acabam restringindo uma abordagem originalmente ampla), os principais autores aqui apresentados (Eliade, Campbell, Bachelard) acabam sugerindo uma tendncia de carter simbolista para o estudo do mito. So os textos gregos antigos que fornecem as primeiras indicaes para uma possibilidade de definio do mito, embora eles mesmos no apresentem

homogeneidade no emprego do vocbulo 14 (ora concebido como "um veculo de afirmaes falsas'" 5 , ora como a "encarnao antropomrfica da verdade'" 6 ). Contudo, muito antes de filsofos como Plato e Aristteles terem procurado compreender a essncia dos mitos e traar consideraes sobre eles, sobretudo nos textos homricos, a llada e a Odissia, que a palavra surge com dois sentidos fundamentais: como discurso (coisa dita) e narrativa (histria) 17 . "O vocbulo surge na Wada como a palavra narrada (na Odissia juntamente com o substantivo epos) e tambm, na como histria/narrativa [grifos do autor]'" y . Esses dois sentidos iniciais permitem uma primeira caracterizao do mito. um discurso pblico narrado. Uma histria que contada (ou, em muitos casos, cantada) e repassada de gerao em gerao at que, em determinado momento, se cristaliza atravs do registro escrito com uma verso mais ou menos definitiva para uma dada civilizao. O mito , portanto, uma narrativa pblica, reconhecida, aceita e Odissia,

institucionalizada pela Coletividade: "no assunto pessoal de algum, mas de um grupo" 20 . Sua autoria original annima ("No procurem o texto original, porque ele

Cf. GINZBURG, Cario. Olhs dc madeira: nove reflexes sobre a distncia. So Paulo : Companhia das Lclras. 2001. p. 42-84. 15 Ibid.. p. 46. '" Ibid : p 62 17 JBOUILLEv Iniciao cincia..., p. 25. Na obra lniciaflo ciencia do mito. Victor Jabouillc traduz eps como pblico (discurso pblico). JABOUILLE. Do mythos ao mito.... p. 17. "'! DABEZIES. Andre. Mitos primitivos a mitos literrios. In: BRUNEL, Pierre (org.) Dicionrio de mitos literrios. Prefacio edio brasileira Nicolau Scvcenko. 2.cd. Braslia : UriB Editora Jose Oyinpio. 1998. p.731.

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no existe."[grifos do autor] 21 ), pois encontra sua fora criativa no num indivduo, mas no imaginrio coletivo e tambm por ele modificada. E, embora tenha um certo acabamento final quando uma de suas verses escrita, sua. maleabilidade permanece. O mito mutante, dinmico, porque expressa as metamorfoses que o imaginrio humano consegue criar. Ainda que haja uma estagnao momnnea de suas imagens e smbolos cm o registro escrito, as criaes miticas da humanidade continuam em movimento. E mais, sua linguagem simblica no representa uma realidade crua; antes, est permeada de valores codificados, cifras, mensagens subentendidas que variam de acordo com o contexto histrico.

... o mito processa experincias e sensaes, consolida paradigmas de compreenso do universo e os oferece como modelos de comportamento. lx>ngc dc estar desencarnada, como epifenmeno face o social, a narrativa mitolgica constri representaes que so, a um s tempo, produto c vetor das relaes entre os homens. 22

O sentido mais interno do mito parece ser o de informar uma situao humana, expressando uma maneira prpria de compreender o universo e a insero do homem no conjunto social em que se encontra. O mito representa, portanto, "tudo aquilo que d sentido e valor ao homem existente, tudo aquilo que o expressa [sem grifos no

original]" 23 . Assim, por estar relacionado uma imagem que compartilhada, o mito fornece certos smbolos paradigmticos, estruturas comuns de pensamento que fundam aes exemplares. Desse modo, as histrias mticas pressupem padres simblicos que norteiam as atividades humanas, quer se propague nas funes do cotidiano (prticas medicinais, ritos, ligados ao casamento, ao nascimento e morte) quer se relacione s cerimnias especiais da comunidade (ritos de Ano Nvo, festas da colheita,

homenagens aos deuses)2,1. E, portanto, pela experincia com o sagrado, pelo encontro com o mundo transcendente atravs da rememorao de histrias que tiveram seu lugar numa poca remota, que surgem as realidades do presente. Isso vale para qualquer manifestao Humana que tenha sido representada sob a forma de narrativas mticas: o surgimento de uma instituio, de uma certa ordem social, de Um. hbito ou21

DETIENNE, op. cil., p.77. " REDE, Marcelo. Gilgamesh - religio c milo entre os mcsopotinicos. In: ANTUNES FILHO. Gilgamesh (Adaptao teatral). So Paulo : Veredas. 1999. p. 97. 23 Ib.f p 734 24 E necessrio salientar qu essa diviso entre o cotidiano c.o excepcional no deve ser compreendida dc forma to simples, pois constituem aspectos muito embaralhados na vida do ,hpmcin antigo. Ele mesmo no prccc 1er imposto tais linhas divisrias. Aqui. essa fronteira e apresentada apenas para possibilitar uma anlise didtica.

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comportamento Nesse sentido, possvel dizer que as mitologias informam a fundao de um mundo, porque explicam ou justificam uma situao existente 25 . A seginte definio, proposta por Victor Jabouille, comporta alguns dos princpios discutidos at agora.

O mito lima narrativa (com ao e personagens memorveis), cujo autor no identificvel, (porque pertence ao patrimnio cultural coletivo), que tem como tema o fundo lendrio, tnico imaginrio, (com base na tradio) e, que, ao ser geralmente aceite (sic), se integra num sistema, na maior parte dos casos, religioso, e, muitas vezes sob forma literria (oral ou escrita), agrupa-se e constitui-se em mitologia [grifo do autor]. (...) Parece-nos - e queremos desde j afirma-lo (sic) - que precisamente por utilizar material imaginrio coletivo e tradicional, o MITO tem, tambm, na sua origem, um sentido profundo - de explicao, de justificao, dc transmisso do saber . . 2 6

Cabe, nesse momento, apontar algumas questes referentes ao uso poltico do mito, naquilo que se refere s relaes de poder. ra, se o mito um discurso sujeito a modificaes constantes segundo as exigncias do momento histrico em que rememorado, possvel dizer que suas variaes dependem ds interesses conjunturais que esto se propagando no interior da sociedade.

Todo mito literrio suscetvel de variar cm funo das conjunturas polticas, sociais c econmjcas e ate mesmo dos problemas espirituais dc uma coletividade, que no so nccessriamente idnticos nas diferentes etapas dc sua histria; 27

E assim, ele retomado e vivificado sob novas roupagens. Pode, por um lado, ter sido registrado em diversas recenses com omisses e acrscimos ( o caso das diferentes cpias encontradas que versam sobre um ncleo mtico comum em pocas variadas com as peculiaridades que caracterizam cada uma das histrias) e, por outro lado, pode ter recebido essas mltiplas variaes j muito antes de se ter cristalizado sob a forma escrita. No entanto, essas duas proposies rio parecem ser excludentes entre si: n verdade^ muito provvel que tenham ocorrido modificaes (deliberadas ou no) no texto mtico em ambas as circunstncias acima apontadas, u seja, no momento em que su enredo era transmitido oralmente e quando suas.< histrias se solidificaram . atravs da escrita. O mito portanto entendido como uma histria ViVa que interage no mundo humano por meio de cifras, cuja traduo e leitura de seus smbolos revelam as~5 A idia dc. .que mito um sistema, na maior parte dos casos, cosmognico, isto e, informam- a origem, revelam uma criao! foi inuito desenvolvida por Mireea Eliade nos seus estudos dc histria das religies. 2f 'JABOUILLE. Iniciao cincia.... p :36-37. 27 FERRIER-CAVENIR. Nicole. Figuras histricas c figuras mticas. In: BRUNEL. op cit.. p. 387

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linguagens mgico-religiosas das imagens que fundam as mais significativas atividades do homem. Destarte, mito pode ser compreendido como um representao de mundo, um smbolo impregnado de valores histrico-culturis. Aqui, o conceito de representao assume pelo menos duas dimenses

entrelaadas. Segundo Carlo Ginzburg28, as imagens representativas contm tanto a ausncia, porque substituem uma realidade distante, quanto a presena, pois ao evoclas, afirmam sua existncia. "Por um lado, a 'representao' faz as vezes da realidade representada e, portanto, evoca a ausncia; por outro, torna visvel a realidade representada e, portanto, sugere a presena" 29 . Embora possam; parecer duas formas d expresso distintas, as imagens contidas no campo simblico dos mitos acionam ambos os mecanismos: so cdigos porque do forma a m contedo ausente e so mensagens na medida em que aproximam e ratificam a mesma realidade. Essas duas facetas que envolvem o sentido do termo representao (ausncia/presena) so obviamente complementares e esto, em certa medida, associadas forma como as diferentes sociedades em seus mais variados desenvolvimentos histricos produziram e

encarnaram seus simbolismos

Meu computador me proporcionou uma revelao sobre a mitologia. Voc compra um determinado programa e ali est todo um conjunto dc sinais que conduzem realizao do seu Objetivo. Sc voce comea tateando com sinais que pertencem outro sistema dc programas, a coisa simplesmente no funciona. E o que acontece na mitologia: ao sc defrontar com uma mitologia cm que a metfora para o mistrio o pai, voc ter. um conjunto dc sinais diferentes do que teria se a metfora pra a sabedoria c o mistrio do mundo fosse a me. E ambas so metforas: perfeitamente adequadas. (...) preciso entender que cada religio c uma cspccic de programa com seu conjunto prprio dc sinais, r que funcionam"30 Sendo histricos, isto , situados no tempo, os sinais que caracterizam a forma como as civilizaes representaram seu modus vivendi, muitas vezes atravs de sus mitos, so tambm objetos de anlises conjunturais O que. se prope nesse trabalho analisar a manifestao de um simbolismo (a gua) que se expressa. por meio da narrativa ninivit do pico de Gilgamesh. Para isso, necessrio compreender que ao simbolismo aqtico, assim como a outros elementos da natureza, somm-se todas as referncias que a sociedade do perodo construiu em torno de si nas expresses simblicas de seu prprio universo. Desse modo, decorre que, embora esse estudo seGINZBURG. op cit.. p, 85-103. " Ibid.. p. 85. 3 " C AMPBELL. Joseph. O poder do mito. So Paulo Palas Alhena. 1990. p. 212 28

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proponha traar algumas consideraes sobre as representaes mgicas da sacralidade da gua, no se pode perder de vista que para cada civilizao os simbolismos tendem a ser um conjunto prprio de metforas, de representaes:

Os temas imaginrios (...) podem ser universais, intemporais, enraizados nas estruturas da imaginao humana;, mas sentido de cada um deles tombem pode ser muito diferente, conforme os homens c as sociedades e conforme sua situao cm um dado momento. Por essa razo e qu a interpretao do smbolo, (...) deve inspirar-se no apenas na figura, mas cm seu movimento, em seu meio cultural e em seu papel particular hie et mine. (grifo original do autor]31

Apesar das variaes com que os smbolos se manifestaram a partir da cultura e das condies histricas que envolveram as sociedades antigas, vivel caracterizar seus pontos em comum na busca por uma universalidade simblica do mito. Os smbolos so especificamente as portas que permitem acesso ao mundo da cultura humana, no por apenas reproduzirem uma imagem; mas no sentido de que "cada uma delas gera e partej seu prprio mundo significativo" 32 . A funo simblica pode ser defina como uma

mediao que informa "as diferentes modalidades de apreenso do real, quer opere por meio dos signos lingsticos, das figuras mitolgicas c da religio, ou dps conceitos do conhecimento cientfico. (...) |Cassircrj designa assim por. "forma simblica" todas as categorias c todos os processos que constrocm (sic) o mundo como representao 33 Desse modo, as frmas simblicas traduzem a realidade, na medida em que possibilitam a captao visibilidade do real. So tambm universais, na medida que "tudo tem um nome" (uma representao), e flexveis, pis expressam inmeros significados, representam diversos valores.

CHEVALIER. Jean. GHEERBRANT. Alain et al., op. cit.. p. xv. Ibid.. p 22. 3 \HARTIER. Roger. A histria cultural; entre prticas c representaes. Rio de Janeiro : Bertrand do Brasil. 1990.12

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2.3 HIEROFANIAS E AS GUAS SIMBLICAS

Uma das questes fundamentais para a compreenso dos valores que permeiam o pensamento antigo diz respeito s relaes entre o homem e a natureza. Enquanto as modernas sociedades ocidentais encontraram as mais diversas explicaes para

interpretar os fenmenos da natureza com base na lgica cientifcista, as civilizaes arcaicas buscaram uma experimentao mgico-rligiosa para elaborar suas concepes acerca das foras naturais. De fato, um dos primeiros pressupostos que permitem compreender o modo como o homem antigo se comunicou com a natureza expressou i os mltiplos aspectos envolvidos nessa relao que para ele as foras naturais manifestavam e carregavam um profundo valor religioso: "a Natureza nunca exclusivamente natural"34. Os elementos do universo (o sol, a lua, a Terra, as chuvas, os rios, os ventos, as flores, as plantas e o prprio homem) tiveram uma origem divina, foram concebidos pelos deuses, portanto foram dotados primordialmente de um poder suprahatural. E desse modo que o homem antigo percebeu a natureza a partir das epifanas qu a sua condio histrica e cultural permitiu: uma rvore ou um rio no fazia parte de Um conjunto de conceitos fsicos, mas demonstrava a fora de uma revelao sagrada. Precisamente por ter sido criada pelos deuses, a natureza continha em si uma potncia divina capaz de manifestaes a todo instante. Se, por um lado, o sobrenatural agia atravs dos fenmenos da Natureza concedendo um ambiente propcio ao aparecimento e manuteno da vida (a gua dos rios, as colheitas, o sol, etc.), poroutro, essas mesmas foras nem sempre se mostraram em uma relao amistosa com os homens (as cheias irregulres dos rios, inundaes, pestes, conjunes astrais de maus agouros, etc.). Em muitos momentos dessa relao, as sociedades adotaram uma postura terminantemente defensiva que exigiria daqueles homens um constante esforo par apaziguar os desgnios de deuses "temperamentais". A interferncia humana sobre as foras naturais, processada por meio de preces, hinos, oferendas, festividades, rituais, etc., era uma constante necessidade preventiva, pois estabelecia uma convivncia mais tranqila com o divino. A ira dos deuses deveria ser sempre arrefecida e nisso identifica-se uma religiosidade baseada na submisso do

M

EL1ADE. sagrado e o profano.... p. 99.

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homem para com os deuses. o que Rudolf Otto 35 chama de mysterium tremendum ou o mistrio que faz tremer.

[Dos deuses] eyita-se a proximidade ntima, guarda-se a distncia que exige sua elevada posio, como a da estrela que, na escrita cuneiforme, acompanha seus nomes, fazendo as vezes de um determinativo gramatical. Uma das caracterstics salientes das deidades , justamente, o brilhante esplendor que delas emana, intenso a ponto de oprimir, constranger. (...) As idias acerca do carter dos deuses operam um divrcio profundo entre eles e os homens, culminando na mortalidade destes, como trao distintivo por excelncia.36 Nesse contexto, a religio cumpria com a funo de estabelecer uma certa organizao csmica (uma forma de conceder ordem possibilidade de uma situao catica), sobretudo atravs de narrativas mticas que reatualizavam periodicamente o presente ao repetir os gestos cosmognicos primordiais na perfeio em que o mundo fora criado pelas divindades primevas37. Segundo Mircea Eliade38, esse aspecto do mito que traduz uma religiosidade por excelncia, representa a forma como as sociedades arcaicas puderam evitar (ou, pelo menos, postergar) a degenerao do mundo e das relaes entre o homem e seu universo. Outro ponto de fundamental importncia fato de que a religio na Antigidade constitua o princpio de toda organizao social. No sagrado repousava a maioria das funes da sociedade "em dimenses que, na atualidade, aparecem separadas entre si e institucionalizadas individualmente: filosofia, poltica, economia, tica, direito etc."39. Nesse sentido, as sociedades tradicionais no apresentaram uma distino clara entre o mundo do sagrado (entendendo este como o espao transcendente, onde a natureza ocupa papel central) e o mundo profano (aquele que expressa as atividades concretas da vida prtica). Essa integrao de valores divinos e humanos constitua uma viso de mundo global na forma cmo construam no imaginrio a realidade em que lhes cabia viver e agir. Assim, os valores sociais so traduzidos conforme um sistema unvoco de imagens e smbolos que tecem os "estilos culturais" daquelas civilizaes. Em sociedades arcaicas a

OTTO. Rudolf. sagrado. Lisboa : Edies 70, 1992. p.21-34. REDE op. cit, p.98-99: 37 Cf. EL1ADE. Aspectos do mito. p. 12-24. 38 Id. 39 CARDOS; Ciro Flamarion. Deuses, mmias c ziggu rats: uma comparao das religies do Egito c da Mcsopotmia; Poii Alegre': ipucrs."'1999. p. 13.36

35

6 6

antropomorfizao da natureza e a naturalizao da convivncia humana (na magia) criam uma totalidade de semelhanas e correspondncias: nada t diferente que no possa estar numa relao universal recproca; tudo est ligado a tudo de modo evidente. Pesquisando sistematicamente todas as possibilidades do confronto analgico de cultura e natureza, o < pensamento (mtico) : constri umgigantesco jgo de espelhos, no qual a imagem recproca do homem e do mundo se refletem at o infinito, cindindo-se e recompondo-se continuamente no prisma das relaes entr natreza e cultura.40

Em funo dessa integrao entre o divino e o humano, da presena constante de foras sobrenaturais nas atividades do homem, o mundo antigo permaneceu rodeado por todos os tipos de perigos visveis e invisveis. Assim como o sagrado se manifestava por meio de sinais misteriosos e interferia (beneficamente ou no) nas aes humanas, a convocao peridica das foras da natureza constituiu uma possibilidade de defesa e comunho com o myserum tremenum. Assim, em suas origens, os sistemas religiosos sustentavam a viso de um mundo integrado, onde a distino entre o sagrado e o profano no aparecia com a nfase que a modernidade solidificou. N o s dias atuais, a religio encarada como uma esfera adjacente em relao ao todo d ordem social: um entre os outros elementos da sociedade. No cabe aqui, no entanto, insistir sobre as notveis disparidades existentes no funcionamento de sociedades antigas e modernas. Essas comparaes apenas elucidam o fato de que uma anlise histrica da Antigidade muitas vezes depende (e, na maioria dos casos, exig) que s conceitos modernos sobre o mundo, sejam considerados no seu prprio universo significativo e no transferidos para o entendimento da historia antiga Desse modo, um trabalho que se proponha analisar a histria de uma religiosidade no poderia colocar em evidncia apenas os processos histricos no meio dos quais se desenvolveu a religio. preciso antes, compreender em que medida uma certa cultura manifestou suas concepes religiosas. Com efeito, os sistemas religiosos antigos consubstanciaram as sociedades, consolidaram s associaes humanas partindo de seus ncleos mais primrios (as famlias) at as complexas instituies sociais. Nas formas concretas da vida prtica ou nas abstraes do pensamento se delineava um tipo de experincia transcendente. Submersas numa atmosfera eminentemente religiosa, as realidades do homem antigo eram reveladas por meio d sagrado. A essa constante manifestao da sacralidade.

HABERMAS. Jrgen. Para a reconstruo do materialismo histrico. So Paulo : Bnisilicnsc; 1983. p. 82.

411

6 7

Mircea Eliade41 desenvolve o conceito de hierofania, que pode tanto se referir s formas materiais que sstentvam a vida fsica e visvel do homem, quanto estar relacionada s estrutras mentais que organizavam e circunscreviam as relaes humanas. A saralizao dos elementos naturais pode ter tido origem sob vrias

circunstncias: provvel que, dependente do meio geogrfico e observador de uma natureza expressiva (o nascer e o pr do sol, os ciclos da lua, as tempestades, a fluidez dos rios, o caminho dos ventos, o nascer das plantas, etc.), o homem arcaico tenha atribudo poderes mgicos e extraterrenos ao Cosmos. E possvel tambm que diante da falta de uma compreenso formal do mundo, a humanidade antiga tenha elaborado suas primeiras interpretaes religiosas. Contudo, o objetivo desse estudo no responder incansvel questo sobre a origem da religiosidade humna, mas apenas informar que existiu, no interior das sociedades arcaicas, uma saralizao da natureza e que as hierofanias dos fenmenos csmicos tiveram expresses simblicas, muitas das qais traduzidas sob a forma de narrativas mticas Esse trabalho prope particularmente a anlise de algumas imagens referentes saralizao da natureza e, em especial, manifestao d sacralidade da gua, nos simbolismos intrnsecos que os constitui. Outros smbolos esto associados s representaes mticas da gua, como aqueles concernentes terra e fertilidade, mesmo porque a experincia mgico-religiosa da Antigidade no. "recortou" o sagrado; ao contrrio, concebeu o Cosmos numa totalidade : de relaes. Na medida do possvel, as outras hierofanias csmicas so apontadas e inseridas como parte da investigao histrica, mas no constituem o eixo central da anlise. Antes de tudo, necessrio reconhecer que o pensamento simblico polivalente, ou seja, se expressa por meio de um grande conjunto de significaes. "Traduzir uma Imagm na sua terminologia concreta, reduzindo-a a uni nico dos seus planos referenciais, pior que mutil-la, aniquil-la, anul-la como instrumento de

conhecimento'"12. Assim, muitas representaes podem ser avistadas no simbolismo aqutico e a abordagem sob esse ou aquele aspecto depender da forma como as sociedades absorveram e re-significaram a imaginao de tal matria. As guas podem ter uma simboiogia que referencie o amor ou a morte, a pureza ou a violncia, a maternidade ou a sexualidade feminina, etc.'13: Aqui nos interessa especialmente a

12 13

ELIADE, O sagrado c o profano.... p. 17 ct scq. ELIADE: Mircea. Imagens e smbolos. Silo Paulo : Martins Fontes. 1996. p.2. Cf. BACHELARD, op cit., passim.

6 8

hierofania da gua que teve expresso na verso ninivita do pico de Gilgamesh, documento mesopotmico da poca cassita (entre os sculos XVI e XI a.C ). No significa, contudo, que as significaes da gua nesse texto e perodo no encontrem correspondncias simblicas em outras narrativas, quer sejam da prpria histria cultural mesopotmica ou de civilizaes distintas. A valorizao religiosa que a gua recebeu na. narrativa epopica. de Gilgamesh44 apresenta dois significados fundamentais: a marca da morte, do esgotamento ltimo da existncia e o surgimento da vida, um renascer profundo (porque simblico) para outras dimenses vitais. A hierofania da gua supe, assim, duas manifestaes que, ao mesmo tempo em que parecem antagnicas, so complementares do pont de vista simblico: carregam num s momento as imagens da dissoluo e da recomposio. Nas guas desaparecem as formas originais enquanto criam outras figuras, fertilizadas, renovadas e purificadas. A prpria imagem fsica da gua, com sua fluidez incapaz de adquirir um aspecto formal (no seu estado lquido), preconiza a dissoluo do mundo. Possibilita, por outro lado, a reconstituio das formas, por meio da irrupo de uma nova existncia.

... a imcrso na gua simboliza a regresso ao pr-formal, a reintegrao no modo indifcrcnciado da preexistncia. A emerso repete gesto cosmognico da manifestao formal; a imcrso equivale a uma dissoluo das formas. por isso que o simbolismo das guas implica tanto a Morte como o Renascimento. O contato com a gua supe sempre uma regenerao, de um lado, porque a dissoluo e seguida de um "novo nascimento"; dc outro, porque a imcrso fertiliza c multiplica o potencial da vida. (...) a imcrso nas Aguas equivale no a uma extino definitiva, mas a uma reintegrao, passageira no indistinto, seguida de uma nova criao, dc uma nova vida ou dc um homem novo, segundo s trate de um momento csmico, biolgico o sotcrilgico. 45

Essas caractersticas associam-se ao simbolismo da purificao, onde o rito sacramental do batismo encontra o melhor e mais evidente exemplo. Quando m homem aceita cumprir os desgnios de uma certa religio, sua iniciao promovida pela imerso nas guas, ocorrendo uma ruptura na sua vida. Esse homem torna-se outro: um ser regenerado, liberto dos pecados que a vida anterior ao. batismo havia lhe proporcionado. As guas possibilitam que os pecados sejam lavados e extirpados do;

Objetivando alcanar uma estrutura textual dc melhor compreenso, optamos pr apresentar a anlise da simbologia aqutica dentro do pico d Gilgutesh no captulo seguinte', hdc a nfasc;central situa-se ein discutir como se manifestou a sacralidadc da gua cm alguns trechos da narrativ a mtica. 45 ELIADE. Imgcns e Smbolos, p. 151-152.

44

6 9

interior humano para que esse homem novo possa compartilhar do sagrado ao recuperar sua semelhana com Deus . evidente que a liturgia do batismo nas guas diz respeito principalmente s religies calcadas no Cristianismo. Contudo, levando em considerao os ritos

funerrios indianos que preconizam a imerso do cadver no rio Ganges, percebemos que a dualidade morte/renascimento permanece presente no simbolismo aqutico mesmo em crenas n crists. O morto tem sua alma purificada para encontro com o sagrado: uma nova existncia para ele garantida pela libertao e purificao atravs das guas. Do ponto de vista sapiencial, as histrias diluvianas tambm clarificam o simbolismo aqutico. As chuvas trrenciais so enviadas por Deus (ou plos deuses, no caso dos dilvios das religies politestas) para extirpar uma humanidade corrompida e fazer surgir uma nova. Aqui, a morte iniciatria tambm cumpre com a funo simblica da destruio de um status quo nefasto para o surgimento de uma condio humana recuperada. As imagens mticas da gua no esto mergulhadas exclusivamente em uma atmosfera simblica, mas as expresses do sagrado (dentro do conjunto de

representaes que o imaginrio humano criou) so dotadas de uma materialidade.

Para que um devaneio tenha prosseguimento com bastante constncia para resultar cm uma obra escrita, para que. no seja simplesmente a disponibilidade dc uma hora fugaz, c preciso que ele encontre sua matria |grifo do autor], c preciso que um elemento material lhe dc sua prpria substncia, sua prpria regra, sua potica especfica. 4 6

Signo e significado so elementos comuns na interpretao do mundo que o homem props a si mesmo. No h, portanto, iinagens subjetivas que no tenham um correspondente material no universo dos objetos visuais. E a relao recproca: os objetos materiais do mundo suscitam a formao de significados simblicos. Uma porta, por exemplo, no contm em si a idia de porta (poderia ter uma infinidade de outros nomes inclusive), mas contm a representao daquilo que imaginario humano concretizou, tanto para designar uma funo simples do cotidiano (abrir e fechar o acesso os cmodos de urra casa) como para ampliar seu sentido mais profundo (a entrada ritual a um espao transcendente do numinoso). "No h imagens como representaes visuais que no tenham surgido de imagens na mente daqueles que asBACHELARD; op. cil . p. 4

7 0

Algumas

hipteses

acerca

da

viabilidade

de

compreender

a

narrativa

mesopotmica sobre Gilgamesh do ponto de vista mtico foram levantadas por Mircea Eliade na su histria das idias e crenas religiosas' 5 . A base do pensamento de Eliade apresenta o mito como uma narrativa de fundao, isto ,

... conta como, graas aos feitos dos Seres Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, quer seja 'a realidade total, o Cosmos, quer apenas um fragmento: uma ilha, uma espcie vegetal, um comportamento humano, uma instituio. E, portanto, a narrao de uma 'criao': descreve-se como uma coisa foi produzida, como comeou a existir [grifo do autor]10 Assim, segundo Eliade, o mito transmite mensagens exemplares que funcionam como modelos trans-humanos para as atividades do homem no mundo. Da mesma maneira, possvel reconhecer, no Gilgamesh pico, um gnese, a-fundao de uma realidade ao proclamar a "precariedade da condio humana, a impossibilidade - at mesmo para um heri - de adquirir a imortalidade'" 7 . um texto mtico porque sugere um ensinamento, transmite um saber, ao explicar ou justificar uma situao humana 18 . Alm disso, apresenta os princpios fundamentais que, segundo Victor Jabouille19, conceitualiza um discurso mtico: a Epopia de Gilgamesh caracteriza-se como uma narrativa que teve lugar em uma poca remota e de autoria annima porque foijad no interior de uma coletividade (embora o registro da verso padro do pico tenha tido uma "autoria", as histrias narradas tm origem indubitvel na tradio: no apenas das outras recenses escritas como tambm durante o perodo anterior ao cuneiforme, em que as lendas sobre o grande rei Gilgamesh circulavam oralmente).

15

1617 18 19

ELIADE, Histria das crenas..., p. 104-108.

ELIADE, Aspectos do mito, p. 12.ELIADE, Histria das crenas.... p. 105. Cf. JABOUILLE. Iniciao cincia. .. p. 36-37. Id.7 7

3.2 AS G U A S DE G I L G A M E S H : O S I M B O L I S M O N O P I C O

Figura 12 - d e u s a d o v a s o e n c o n t r a d a na sala oficial do p a l a c i o de M a r i . U t i l i z a d a c o m o fonte d'gua*

A Epopia de Gilgamesh se tornou parte de um sistema religioso comum ao expor, por meio da linguagem simblica, um conjunto de hierofanias csmicas (a gua, a

terra, a rvore da vida, o problema da morte, o guardio das lorestas, o tema da amizade, a relao com os deuses, etc.) que informam sobre as concepes de mundo que os cassitas (quando se trata especificamente da verso padro do pico) e as outras populaes mesopotmicas (se compararmos as diferentes recenses da expressaram atravs de sua literatura. C o m efeito, a Epopia uma fonte de grande valor para o estudo da histria da Antigidade Oriental Um texto potico permeado de sentidos implcitos que permitem vrias interpretaes Neste trabalho, optamos tratar do simbolismo aqutico em trs a travessia de Gilgamesh pelas guas da morte, o dilvio e o narrativa)

momentos da narrativa

retorno do heri para l Jruk (embora a gua aparea constantemente na Epopia em muitos outros trechos do poema)

' Figura 12 MARGUHRON. op cil . p 151 78

Aps a morte de Enkidu, na tbua VII, Gilgamesh parte em busca de Utnapishtim, aquele que sobreviveu ao dilvio, objetivando tornar-se imortal, tal como aquele "No mesopotmico". Muitos perigos ele enfrenta at que enfim chega taverna de Siduri, "the tavern keeper, who dwells at the edge of the sea" 2 ' / "a taverneira, que habita a beira do mar". E justamente esse mar de guas letais ("waters of death" 22 / "guas da morte") que Gilgamesh ir atravessar ao lado de Ur-Shanabi, o barqueiro de Utnapishtim para encontrar o Longnquo 23 . Mesmo aps muitos avisos sobre os perigos da travessia, Gilgamesh insiste em encontrar Utnapishtim ("If need be, I'll cross the sea, If not, I'll roam the steppe."2'1/ "Se necessrio for, eu atravessarei o mar, se no, eu vagarei as estepes"). A travessia pelas guas da morte presume uma iniciao: h que se ultrapassar os obstculos para a obteno do conhecimento. O prprio termo "guas letais" sugere uma morte simblica que, em essncia, o sentido ltimo de um rito iniciatrio ou de passagem: a destruio de uma forma de conscincia anterior para a obteno de uma nova vida, numa dimenso reconstruda. Gilgamesh sai vitorioso no apenas da travessia, mas tambm de todo seu empreendimento anterior pelas florestas, pelas estepes, pelos oceanos. Simbolicamente, o rei de Uruk est pronto para a metamorfose de tornar-se outro homem, renascido para a imortalidade. Ao se afastar de uma das margens do grande mar letal em direo morada de Utnapishtim, Gilgamesh parece despir-se no apenas das roupas exteriores ("Gilgamesh tore off his clothes from his body" 2 7 "Gilgamesh rasgou suas vestes do corpo"), mas tambm de sua vida anterior. Inicia uma nova etapa para Gilgamesh: a possibilidade de driblar sua finitude como homem, de se tornar um deus. "I have grown afraid of death, so I roam the steppe, (...) Enkidu, my friend whom I loved, is turned clay! Shall 1 too not lie down like him, And never get up, forever and ever?"26/ Eu cresci com medo da morte, por isso rondo as estepes, (...) Enkidu, meu amigo que eu amava, tornou-se barro! No deveria eu tambm residir no mundo inferior como ele, E nunca subir, para sempre e sempre?". Esse questionamento de Gilgamesh expressa su ansiedade em no se transformar em barro e habitar o mundo dos mortos. Ele est disposto a tornar-se um conhecedor dos segredos divinos ao se juntar queles que no so mortais.

21

THE EPIC of Gilamesh... (FOSTER), p.72. Ibid.. p.76. 23 Longnquo c o epteto de Utnapishtim na Epopia. 21 THE EPIC... (FOSTER),op. cit.. p. 76. 2 ' Ibid.. p. 79 2(; Ibid.. p. XL227 9

Ao encontrar Utnapishtim, Gilgamesh narra sua triste jornada e indaga sobre o mistrio da vida eterna: "You then, how did you join the ranks of the gods and find eternal life?"27/ "Como ento voc juntou-se aos deuses e encontrou a vida eterna?". Mesmo com as reprovaes que Utnapishtim lana sobre as expectativas de

imortalidade de Gilgamesh, o heri permanece resoluto em sua busca. Assim, o Longnquo comea a relatar a histria do dilvio que, segundo o texto, havia garantido a Utnapishtim e sua esposa a vida eterna.

1 will reveal to you, O Gilgamesh, a secret matter. And a mystery of the gods I will tell you The city Shuruppak, a city you yourself have knowledge of. Which once was set on the [bank] of the Euphrates, That aforesaid city was ancient and gods once were within it The great gods resolved to send the deluge, Their father Anu was sworn, The counselor the valiant Enlil, Their throne-bearer Ninurta, Their canal-officer Ennugi, Their leader Ea was sworn with them (...) O Man of Shuruppak, son of Ubar-Tutu, Wreck House, build boat, Forsake possessions and seek life, Belongings reject and life save! Take aboard the boat seed of all living things. The boat you shall build. Let her dimensions be measured out: Let her width and length be equal, Roof her over like the watery depths... '*/

Eu revelarei a voce, O Gilgamesh, um assunto secreto, E um misterio dos deuses eu contarei a voce. A cidade dc Shuruppak, uma cidade que voc mesmo conhece. Que outrora foi colocada sobre a [margem] do Eufrates, Essa referida cidade era antiga c os deuses certa vez estiveram dentro dela. Os grandes deuses resolveram enviar o dilvio, Seu pai Anu jurou, O valente e conselheiro Enlil, seu mensageiro Ninurta, Seu irrigador [trabalhador do canal] Ennugi, Seu lder Ea, jurou com eles. (...) O Homem dc Shuruppak, filho de Ubar-Tutu, Desmonte a casa, construa uma arca. Abandone posses e busque a vida Recuse s posses c salve a vida! Leve a bordo da arca a semente de todas as coisas vivas. A arca vocc deve construir Deixe que suas dimenses sejam medidas por fora:27

2

Ibid.. p. 84. * Ibid.. p. 85.

8 0

Deixe que sua largura e seu comprimento sejam iguais Seu telhado como as guas profundeis.

Uma histria diluviana muito semelhante narrativa bblica, com algumas peculiaridades: os grandes deuses do panteo resolvem enviar chuvas torrenciais para acabar com toda a vida na terra. Toda a humanidade deveria ser destruda ("... No man was to survive destruction!" 29 / "Nenhum homem era para sobreviver destruio!"). Ao contrrio da histria bblica em que Deus destri a.humanidade, mas salva uma de suas criaturas (No) com a semente de todas as outras formas de existncia, no dilvio mesopotmico, os deuses parecem arrependidos de suas obras e no esperam que existam sobreviventes. Por uma deciso de Ea (o deus da sabedoria), discordando da atitude de Enlil (o deus dos ventos e das tempestades), a terra poder ser novamente povoada, pois ao revelar em sonho para Utnapishitim o segredo dos grandes deuses, permite que um novo comeo seja estabelecido. E muito simblico que o aviso pra Utapshitim das intenes destruidoras das grandes divindades, seja dirigido por Ea, o deus da sabedoria. Esse conhecimento repassado para o Longnquo, sob a forma de segredo divino, o que permitiu sua imortalidade. Em certa medida, o aviso de Ea pode ser entendido como a revelao de um saber especificamente divino, que, quando apropriado por um homem, torna-o semelhante ao sagrado. As palavras de Ea so conciliadoras e traduzem sua discordncia em relao ao dilvio:

Let the Lion rise up to diminish the human race! Instead of your bringing on a flood, Let the wolf rise up to diminish the human racc! Instead of your bringing on a flood, Let famine rise up to wreak havoc in the land! Instead of your bringing on a flood. Let pestilence rise up to wreak havoc in the land!*'/

Deixe o Leo subir para diminuir a raa humana! Em vez dc levar a inundao, Deixe o lobo subir para diminuir a raa humana! Em vez dc levar a inundao, Deixe a fome subir para descarregar a destruio na terra! Em vez de levar a inundao. Deixe as pestes subir para descarregar a destruio na terra.Ibid.. p. 9. Ibid.. p. 90-91.

8 1

Contudo, no havendo mais como reparar a atitude de Ea, Enlil resolve tornar Utnapishtim e sua esposa seres imortais como os deuses: "Hitherto Utanapishtim has been a human being, Now Utanapishtim and his wife shall become like us gods"51/ "At agora Utanapishtim tem sido um ser humano, Agora Utanapishtim e sua esposa devero tornar-se deuses como ns". Utnapishtim, ao sobreviver a um desgnio divino, vence uma prova iniciatria: ele conquistou a imortalidade porque sobreviveu ao dilvio, tornou-se semelhante aos deuses e ocupar, a partir de ento, o lugar privilegiado do sagrado (isto , no habitar o mundo inferior, cujas descries so sombrias e negativas). Narrativas diluvianas aparecem com freqncia em inmeras civilizaes

antigas*". Sem dvida, foi a tradio judaico-crist que expandiu e tornou conhecida por todo o ocidente a histria de No. Em geral, tais narrativas apresentam sempre um denominador comum, ou seja, os dilvios acontecem como forma de punio divina pelas faltas cometidas pelos homens. "... so evocative humanity's response that in widely divergent cultures, there arose the belief in (...) the flood as an act of the gods""/ "...ento a responsabilidade dos homens evocada, j que em inmeras culturas, acreditou-se (...) no dilvio como um ato dos deuses". Atrahasis (perod acadiario), Ziusudra (Sumria), Utnapshitim (verso pleobabilnica e ninivita), No (hebraica) e Xisouthros (helenstica)"1 so os heris que sobreviveram de forma muito semelhante ao castigo torrencial enviado pelos deuses par extirpar a vida na I erra. No periodo helenstico (terceiro sculo a.C ), por exemplo, a histria do dilvio foi transmitida para os gregos pelo sacerdote babilnico Berossus. Escrevendo a Babyloniaca, Berossus procurou informar aos novos conquistadores da Mesopotmia (os gregos) a origem da realeza babilnica. Esse legado teria sido fundado num perodo pr-diluvian, no tempo primordial dos comeos, quando deuses e homens mantinham relaes mais prximas. A histria comea, segundo Schmidt35, com o heri Xisouthros (uma verso helenstica do smrio Ziusudra) sendo alertado com um sonho

31

Ibid.. p. 91. Fragmentos dc histrias diluvianas foram descobertas na Anatlia, Sria c Palestina, alm do Egito. Orccia e Roma, para citar apenas as populaes mcditcrrnicas c asiticas. Cf. SCHMIDT, Brian B. Flood narratives of ancient western sia. In: SASSON. Jack (Org.) Civilizations of the ancicnt near cast. Pcabodv : Hendrickson. 2000 . p. 233X. " Ibid . p. 2 3 3 7 / M Vide quadro ilustrativo na pgina seguinte. " SCHMIDT, op cit.. p. 2342. '

8 2

QUADRO COMPARATIVO DE ALGUMAS NARRATIVAS DILUVIANAS DO MUNDO ANTIGO*

Atrhasis (perodo acadiano) Causa do dilvio Revelao Heri Famlia sobrevivente Forma do dilvio Durao do dilvio Arca Pssaros soltos Monte da arca Sacrifcio ao deus Recompensa do heri Outros sobreviventes barulho dos homens aviso Atrhasis sim tempestades 7 dias e 7 noites sim omisso no texto omisso no texto sim longevidade (o texto contm omisses) animais (o texto contm omisses)

Gilgamesh (perodo pleobabilnico/ninivita) omisso no texto sonho Utapshitim sim tempestades 6 dias e 7 noites sim pomba/andorinha/corvo Monte Nimush sim vida eterna animais

Gnesis (tradio hebraica) violncia entre os homens aviso divino No sim tempestades 40 dias e 40 noites sim corvo/pomba/pomba Monte Ararat sim renovao da humanidade animais e agricultura renovada

Babyloniaca (perodo helenstico)

Eridu (Sumria) omisso no texto

sonho Xisouthros sim-

texto danificado Ziusudra (rei)-

3 dias sim 3 grupos de pssaros no nomeados Monte Gordyene ou Gordion sim vida eterna animais, amigos e renovao da realeza

7 dias e 7 noites sim-

-

sim vida eterna renovao da realeza

* Traduzido e adaptado de SCHMIDT, Brian B. Flood narratives of ancient western Asia. In: SASSON, Jack (Org.) Civilizations of the ancient near east. Peabody : Hendrickson, 2000. p. 2346-2347.

8 3

pelo deus Kronos para impedir um dilvio catastrfico. O motivo das inundaes torrenciais omitido no texto. Kronos sugere que Xisouthros construa um barco e acomode sua famlia, seus amigos, comida, bebida, pssaros e quatro casais de cada espcie animal. Ele deveria tambm enterrar todos os registros escritos da cidade de Sippar, sua terra de origem. Passado um curto perodo de trs dias at que as tempestades cessassem, Xisouthros solta os pssaros (talvez pombas) que retornam ao barco no encontrando um lugar para pousar. No quar