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1 D uda começava a escovar os dentes quando ouviu tocar a campainha da porta social. Àquela hora, ninguém batia em seu apartamento, nenhum dos garotos do condomínio. Nem o pai nem a mãe recebiam visitas pela manhã. Antigamente, Beta vinha esperá-lo para irem juntos à escola, mas, desde o ano passado, ela mudara de turno, passara para a tarde, e dormia a ma- nhã toda. Era um acontecimento raro, mas também não era caso de alarme: sempre aparece um vendedor, um sujei- to equivocado procurando outro endereço (uma vez ba- teram em sua porta pensando que fosse consultório de dentista). O mais incrível era como essas pessoas conse- guiam driblar os porteiros e seguranças do condomínio, que nunca estão onde deveriam. Duda ouviu a voz da mãe, que conversava com al- guém na sala. Ele prestou atenção e notou que havia dois homens dentro na sala. Bem, isso sim era uma coisa fora da rotina. O fato de a mãe ter aberto a porta significava

D uda começava a escovar os dentes quando ouviu tocar a ...img.travessa.com.br/capitulo/GALERA_JUNIOR/CRIME_MAIS_QUE_PERFEITO... · chão, uma bagunça infernal: — Parem! Parem

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Duda começava a escovar os dentes quando ouviu

tocar a campainha da porta social. Àquela hora,

ninguém batia em seu apartamento, nenhum dos

garotos do condomínio. Nem o pai nem a mãe recebiam

visitas pela manhã. Antigamente, Beta vinha esperá-lo

para irem juntos à escola, mas, desde o ano passado, ela

mudara de turno, passara para a tarde, e dormia a ma-

nhã toda.

Era um acontecimento raro, mas também não era

caso de alarme: sempre aparece um vendedor, um sujei-

to equivocado procurando outro endereço (uma vez ba-

teram em sua porta pensando que fosse consultório de

dentista). O mais incrível era como essas pessoas conse-

guiam driblar os porteiros e seguranças do condomínio,

que nunca estão onde deveriam.

Duda ouviu a voz da mãe, que conversava com al-

guém na sala. Ele prestou atenção e notou que havia dois

homens dentro na sala. Bem, isso sim era uma coisa fora

da rotina. O fato de a mãe ter aberto a porta significava

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que os visitantes deviam ser conhecidos. Mas a voz dela,

de repente, mais alta, revelou que estava nervosa.

Ainda com o rosto molhado, Duda abriu a porta do

banheiro, que dava para o pequeno corredor interno. A

voz da mãe agora era bem clara.

— É um absurdo! Não posso acreditar! O que os se-

nhores pretendem?

Um dos homens insistia:

— São ordens. Acredite, não estamos fazendo isso

por prazer. É o nosso dever.

— E não temos tempo a perder — falou outra voz,

mais baixa, soprada com raiva.

Duda percebeu que alguma coisa não ia bem. Preci-

sava ir até lá. Secou o rosto de qualquer jeito e jogou a

toalha para dentro do banheiro sem olhar: por pouco ela

não caiu dentro do vaso sanitário — e ele levaria a bron-

ca de sempre; na semana passada, deixara cair dentro da

privada o aparelho de barbear do pai.

A entrada do garoto na sala não alterou a situação.

A mãe estava agora sentada numa poltrona, a cabeça

apoiada nas mãos, atônita. E, à sua frente, dois homens

vestidos de paletó e gravata, com cara de poucos amigos

e muitas intenções.

— O que está havendo? — perguntou Duda.

Os visitantes olharam para ele e pareceram surpreen-

didos.

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— Quem é esse garoto? — perguntou um deles.

— É meu filho... o nosso filho — respondeu a mãe. E

aí sim, vendo o menino no meio dos dois homens, come-

çou a chorar:

— Não é possível! Não é possível!

Duda aproximou-se da mãe e acariciou o rosto dela

— coisa que não fazia há muito tempo.

— O que está acontecendo aqui? Não estou enten-

dendo nada!

Os homens não deram importância à pergunta e um

deles limitou-se a comunicar:

— Bem, Dona Antônia, não leve a mal, temos que

começar. A senhora e o garoto ficam aqui na sala, sem

mexer em nada. Tem empregada?

— Temos — disse a mãe, fungando. — Está de folga

hoje, pediu para ver um parente que está mal, deve voltar

depois de amanhã... mora longe, em Barra do Piraí.

— Então vamos começar pelos quartos.

Os homens sumiram pelo corredor e Duda sentou-se

ao lado da mãe, sentindo uma zonzeira, tinha que fazer

alguma coisa, mas não sabia o quê.

— Quem são esses caras?

— A polícia, meu filho! — E se sentiu justificada para

chorar mais alto.

Poucas vezes Duda tinha visto a mãe assim. Se mor-

ria um parente próximo, ela sentia, claro, chorava, mas

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nunca foi de fazer escândalo. Quando se comovia, ficava

com os olhos úmidos, apenas isso. Agora não: ela estava

aos prantos, tremia toda, como se estivesse recebendo

choques elétricos. Duda foi buscar água na cozinha, sem

se lembrar da recomendação dos policiais. Ao abrir a

geladeira, um dos homens apareceu subitamente a seu

lado e fechou a porta, antes mesmo de ele ter apanhado

a garrafa de água.

— Eu disse para não sair da sala! Não gosto de ser

contrariado!

— Mas... mamãe está passando mal... um pouco de

água...

— Deixa que eu mesmo levo — disse o homem. —

Onde tem copo?

Duda arranjou o copo, o policial encheu-o e voltou

à sala. Diante da dona da casa, ele passou o copo ao

garoto:

— Pronto. Dê água à sua mãe e agora fique quietinho.

Não saia daqui para nada sem antes nos avisar. Quere-

mos acabar logo com isso.

— Mas acabar com o quê? — Duda quase berrava.

O homem olhou para ele e, mesmo sem querer ser

mau, fez uma cara terrível:

— Cala a boquinha, meu anjo! Daqui a pouco chega

a sua vez!

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E voltou para os quartos. O garoto ajudou a mãe a

beber água e, então, não teve vergonha de abraçá-la, tal

como fazia quando era criança.

— Agora me conta, mãe! Explique o que está aconte-

cendo, vamos avisar ao papai...

Ela aumentou o choro:

— Não... não fale com seu pai... Álvaro não precisa

saber de nada, ele é inocente... ninguém vai encontrar

nada aqui... ora, onde já se viu...

Entre soluços, começou a contar o que se passava:

— Imagina, meu filho, esses homens da polícia estão

dando uma busca... uma busca aqui em casa para ver...

para ver se encontram o dinheiro.

— Que dinheiro?

— O dinheiro, ora essa... um dinheirão... roubaram

de uma velha por aí... veja só, logo o seu pai, que lida com

dinheiro há tantos anos... lá no banco... logo ele, matar

uma velha para roubar... essa gente está maluca.

— Mas... — Duda começou a sentir o estômago revi-

rar, parecia que ia vomitar. — Mas o que papai tem a ver

com isso? Ele não é ladrão!

— Nem assassino, meu filho. Esses homens vão per-

ceber que estão enganados.

Duda, num impulso, dirigiu-se ao corredor, disposto

a enfrentar a situação. Os homens revistavam o quarto

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dos pais, estavam revirando tudo, as gavetas jogadas no

chão, uma bagunça infernal:

— Parem! Parem com isso! É uma palhaçada!

Os policiais olharam espantados para o garoto, sur-

preendidos com aquela reação inesperada. Um deles re-

mexia no fundo do armário, e o outro examinava o col-

chão. Por um momento, eles não souberam o que fazer,

mas, recuperados do susto, avançaram contra Duda:

— Escuta aqui, franguinho, quem deixou você sair

do castigo? Nós mandamos você ficar lá na sala, junto

da sua mãe. Quer complicar as coisas? Assim não termi-

namos nunca!

— Meu pai não roubou nada! Quando ele chegar...

Os homens riram. O que estava examinando o col-

chão aproximou-se do garoto e deu um tapinha de leve

no rosto dele.

— Seu pai não chega mais, pirralho! Está em cana

desde hoje cedo, quando saiu de casa para ir ao banco. O

jeito é você não amolar mais a gente, pra tudo isso termi-

nar o mais depressa possível.

Duda atirou-se contra o homem e por pouco não le-

vou um soco na cara. O policial se conteve, mantendo-o a

distância. O outro veio por trás e facilmente o dominou.

— Quer ser amarrado? Fique quieto ou nós te amar-

ramos numa cadeira! Menino malcriado é assim, tem

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que ficar de castigo — disse um dos policiais com ar de-

bochado.

A mãe ouvira a confusão e não aguentara: viera da

sala e pedia calma aos homens:

— Não! Não encostem a mão no meu filho! Pelo amor

de Deus! Já basta o que está acontecendo!

Foi quando Duda falou o mais calmo que pôde:

— É isso mesmo! Já basta esta situação! E a gente

aqui sem entender nada! Por que tudo isso? Essa vio-

lência, minha mãe chorando... E os senhores revirando

tudo.

Duda, enfim, conseguiu comover os dois homens,

que, de certa forma, ficaram menos agressivos:

— Tá certo, menino, tá certo! — falou um deles. —

Você não quer encrenca, não é? Nós podíamos fazer uma

verdadeira miséria aqui dentro. Mas preferimos tratá-los

com educação, queremos cumprir a nossa missão de for-

ma simpática e rápida. Temos respeito por sua mãe, vê-se

logo que vocês são gente boa. Não estamos aqui por von-

tade própria, lá na delegacia esperam pela gente, pelo

nosso relatório. Fique sabendo que estamos proibidos de

falar, de dar explicações. Recebemos ordens para vas-

culhar tudo, arrebentar tudo, as paredes, os colchões, o

teto, levantar o assoalho, se necessário for. Precisamos

achar o dinheiro que seu pai roubou da velha.

— Meu pai não roubou dinheiro nenhum!

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O policial continuou:

— Vocês vivem no mundo da lua? Então não sabem

do caso da velha, que morava pertinho do banco em que

seu pai trabalha? Ele foi lá, matou a milionária e trouxe

a bolada. O diabo é que a gente tem de achar esse dinhei-

ro. Deve estar por aqui, em qualquer canto. Seu pai não

seria idiota de depositar no banco e levantar suspeitas,

também não teve tempo de mandá-lo para fora do país.

A mãe de Duda começou a suar frio. Uma nuvem

passou-lhe pelos olhos e ela desabou. Os homens aju-

daram o garoto a reanimá-la. Levaram-na para a sala,

deitaram-na no sofá e pediram que o rapaz não os in-

terrompesse mais. Eram apenas policiais, não tinham

autoridade para mais nada. Não podiam julgar nem ab-

solver. Eram pagos apenas para acatar as ordens de seus

superiores.

— Mas é impossível — murmurava a mãe, ainda fra-

ca pelo rápido desmaio. — Álvaro não faria uma coisa

dessas, nem roubar e muito menos matar. Um absurdo!

Os senhores não conhecem o Álvaro.

— Onde está meu pai? — perguntou Duda, disposto

afinal a enfrentar a situação com realismo. Sentia agora

que não adiantava reagir de forma violenta.

— Preso na 14ª Delegacia, em Copacabana.

— Podemos ir até lá para falar com ele?

— Não. Agora não. Vocês têm advogado?

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Duda não respondeu. O pai de Beta era advogado,

mas talvez não entendesse de crimes, vivia metido em

companhias financeiras, em empresas.

Mas poderia orientá-los, indicar um criminalista. Um

zumbido nos ouvidos começou a importuná-lo, sentia-se

diante de um destino. Virou-se para a mãe e segurou-lhe

a mão.

— Eu cuido disso.

— Mas você, meu filho, tão menino, como vai enfren-

tar essa complicação toda?

O garoto levantou-se e declarou aos policiais:

— Vamos logo, o que tem de ser feito, deve ser feito.

Vou ajudar vocês.

E, junto com os dois homens, voltou ao quarto dos

pais e começou a levantar tapetes, a arrastar móveis, a

revirar roupas. Depois de certo tempo, os homens não

prestaram mais atenção nele, e Duda aproximou-se do

telefone no escritório do pai. Discou com cuidado, para

não ser ouvido, e falou baixinho, bem perto do bocal.

— Dona Vera? Por favor, chame a Beta, depressa...

— Mas a essa hora, Duda? Ela pediu para não acor-

dá-la tão cedo.

— É importante, Dona Vera, tenho pressa, chame a

Beta, por favor!

Ela estranhou a aflição do garoto e foi acordar a fi-

lha. Beta ficou enfurecida:

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— Que droga! A essa hora! O Duda não tem jeito

mesmo!

— Dê um pulo aqui embaixo, depressa, venha logo, é

muito importante, caso de vida ou morte!

— Você não devia estar na aula, não?! Que mistério

é esse?

— Venha logo que eu não posso...

Duda teve de desligar porque percebeu que um dos

policiais vinha para o escritório, a fim de examinar as es-

tantes e os livros. Teve sorte de largar o telefone na hora:

mais um pouco e seria apanhado com a mão no aparelho.

Nem cinco minutos se passaram e a campainha to-

cou. Os policiais se entreolharam, e um deles mandou

que Duda fosse abrir, avisando:

— Eu vou também. Se for alguém de fora, despache

logo, porque não temos tempo a perder. Não abra o bico.

Duda abriu a porta e Beta abriu os olhos:

— Você não tem jeito mesmo! Já disse...

— Beta! — gritou Duda, impedindo que ela conti-

nuasse a falar. — Foi bom você chegar. Fique com ma-

mãe, temos um problema!

O policial tentou impedir a entrada da garota, mas

ela já estava dentro da sala, ao lado da mãe de Duda.

— Está passando mal, tia?

Como conhecia Dona Antônia desde pequena, Beta

se habituara a chamá-la de tia.

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— Eu pensei que Duda estivesse...

— Beta, pare de falar! Você veio para ajudar ou para

atrapalhar?

Só então a menina reparou na presença dos dois ho-

mens. Em poucas palavras, Duda explicou o que estava

acontecendo. Beta logo se arrependeu de ter sido tão

intolerante com o namorado. Arranjou uma almofada

para Dona Antônia colocar a cabeça e se sentou ao lado

dela.

Duda voltou com os homens para os quartos e reini-

ciou a tarefa. Uma hora depois tinham terminado: estava

tudo de pernas para o ar. Todos os cantos haviam sido

revirados. Os três suavam, mas Duda suava mais.

— Como é? Não encontraram nada? — perguntou o

garoto.

Os homens estavam cabisbaixos, mas nem por isso

deram a batalha por perdida.

— Vai ver que ele guardou a grana em outro lugar.

Nada mais tinham a fazer ali. Foram até a sala, pe-

diram desculpas e, mais uma vez, aconselharam Dona

Antônia a contratar um advogado. Seria esse o primeiro

passo para uma longa caminhada, até que pudesse tirar

o marido da cadeia. Então se retiraram, depois de dei-

xarem algumas instruções: não deveriam comunicar o

fato a ninguém. Novas ordens viriam da delegacia ainda

naquele dia.

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— E agora? O que vai ser de nós? O que vai ser do Ál-

varo? Como será que ele está? — a mãe de Duda reiniciou

o choro convulsivo, enquanto Beta procurava consolá-la:

— Papai é advogado e vai dar um jeito nisso, ele en-

tende dessas coisas, daqui a pouco chega ao escritório e

aí eu telefono...

Mas Duda parecia decidido:

— Deixa por minha conta, mãe. Vou resolver tudo

sozinho desta vez!

— Você?! E pode me explicar por que quer dispensar

a ajuda da turma? Eu, Jacaré e Joca já te ajudamos a

resolver tantos casos, e agora você quer dar uma de au-

tossuficiente?! — protestou a namorada.

— Este caso é diferente, Beta. Trata-se da honra do

meu pai! Além disso, esta manhã, agora mesmo, eu vivi

muito. Não sou mais aquele garoto que brinca de ser de-

tetive com a turma. Sou um homem feito. Vocês vão ver.

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