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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
DA “IDADE DAS TREVAS” À LAMPARINA: O SIMULACRO DE RUPTURA E AS
REPRESENTAÇÕES DAS MULHERES NO DISCURSO DE PROFISSIONALIZAÇÃO DA
ENFERMAGEM NA INGLATERRA
Sóstenes Ericson Vicente da Silva1
Resumo: Neste trabalho, recupero as representações das mulheres no discurso de profissionalização da enfermagem
moderna, tomando como materialidade uma obra de sua precursora, Florence Nightingale, “Anotações de Enfermagem
– o que é e o que não é” (1860). Com base nos pressupostos inaugurados por Pêcheux, evidencio que há duas
representações de mulheres em disputa. A primeira foi forjada a partir da expulsão das freiras católicas dos hospitais
ingleses, é dada a bebida alcóolica, é de moral duvidosa, é desobediente, é prostituta, é pecadora, uma identidade que
marca a “idade das trevas”, no período pré-profissional. A segunda representação é voltada à ciência, detentora de
moral ilibada, submissa, devota, cristã. A obra organizou dizeres que legitimaram um estereótipo de mulher enfermeira,
influenciado pelos efeitos metafóricos da lamparina e pelo discurso religioso da moral cristã, tentando romper com as
“trevas”, enquanto, contraditoriamente, atualizou na memória a relação indissociável entre a puta (trevas), que precisava
negar, e a santa (luz) que pretendia profissionalizar. Considero que o efeito de temporalidade nas marcas discursivas
silencia uma relação dialética que coexiste na dissimetria, pois a segunda representação passou a ser dominante,
simulando a ruptura no discurso modernizador. Tal relação influencia a formação teórico-política e reforça a ideologia
do cuidado, naturalizando a condição das mulheres na enfermagem, sob a influência do discurso machista e patriarcal.
Palavras-chave: Representações discursivas. Mulheres. Enfermagem - Inglaterra.
Introdução
Nesse trabalho, mobilizo um gesto de interpretação/análise para tratar das representações
das mulheres no discurso de profissionalização da enfermagem moderna, extraindo materialidades
de uma obra de sua precursora, Florence Nightingale, Notes on Nursing – what it is and what it is
not (1860). Busco entender o processo de construção das representações discursivas de mulheres
enfermeiras e os sentidos aí produzidos, em sua relação com a sociedade e com a história. As
materialidades são analisadas de acordo com a teoria materialista do discurso, especificamente, em
algumas de suas categorias, conceitos e noções, conforme apresento a seguir.
De acordo com Pêcheux, as condições de produção do discurso são “determinações que
caracterizam um processo discursivo, inclusive as características múltiplas de uma situação concreta
que conduz à produção do sentido linguístico” (PÊCHEUX; FUCHS, [1975] 1997, p.183),
considerando que o sentido vai além de sua materialidade linguístico-sintática. Esta noção traz um
componente amplo (determinações que caracterizam um processo discursivo), como também
1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística (PPGLL/UFAL) – Maceió, Brasil; Em Estágio Pós-
Doutoral em Linguística (IEL/UNICAMP) – Campinas, Brasil.
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considera um caráter restrito (características múltiplas de uma situação concreta que conduz à
produção do sentido linguístico).
Os sentidos produzidos, em condições de produção dadas, decorrem da imbricação de dois
componentes: intradiscurso e interdiscurso. Para Pêcheux ([1975] 2009), o intradiscurso é “um
efeito do interdiscurso sobre si mesmo, uma ‘interioridade’ determinada como tal ‘do exterior’”
(p.154). Por sua vez, “o interdiscurso enquanto discurso-transverso atravessa e põe em conexão
entre si os elementos discursivos constituídos pelo interdiscurso enquanto pré-construído” (idem,
grifos da obra). Tais componentes são submetidos aos efeitos ideológicos dentro das formações
discursivas. Ainda de acordo com Pêcheux, uma formação discursiva é “aquilo que, numa formação
ideológica dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito
(articulado em forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um
programa etc.)” (PÊCHEUX, [1975] 2009, p.147). Para além da explicação de como os discursos
são produzidos, suas condições de produção possibilitam ao analista interpretar o processo de
produção dos efeitos de sentido que daí decorrem, enquanto uma condição constitutiva no discurso
que articula realidade histórica, materialidade linguística e sujeito.
Em trabalho recente2, ao tratar dos elementos discursivos de identidade na
profissionalização das mulheres enfermeiras, a partir do Livro Anotações de Enfermagem: o que é o
que não é, de Florence Nightingale ([18603] 2010), considerei sua publicação um acontecimento
discursivo, uma vez que irrompeu no discurso biomédico, instaurando um novo campo de saberes.
Tal consideração tem base em Pêcheux ([1988] 2008), para quem o acontecimento é entendido “em
seu contexto de atualidade e no espaço de memória que ele convoca e que começa a reorganizar”
(p.19). Nesse momento, interessa considerar que na obra em tela há duas representações de
mulheres em disputa, o que requisita considerar os efeitos metafóricos do discurso religioso cristão
nas representações de mulheres enfermeiras, como também os sentidos produzidos na simulação da
ruptura construída e a representação da enfermeira nightingaleana.
Nas representações das mulheres em Notes on Nursing, os efeitos metafóricos do discurso
religioso cristão
2 Trata-se do trabalho “DEVOÇÃO, ABNEGAÇÃO E SUBMISSÃO: marcas discursivas de identidade na
profissionalização das mulheres enfermeiras no Brasil”, apresentado no X Congresso Internacional da Associação
Brasileira de Linguística (ABRALIN), Niterói/RJ, 2017. 3 Editado em 1859 e publicado, em sua primeira edição, em janeiro de 1860.
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Nascida em 12 de maio de 1820 em Florença/Itália, filha de um milionário inglês, Florence
Nightingale foi aluna do King’s College de Londres. De formação anglicana, Nightingale atribuía o
seu ingresso na enfermagem à vocação e a um chamado divino, sendo um marco desse período
inicial a visitação a hospitais no Egito. Não menos importante foi sua atuação em 1851 na
Alemanha, na Escola de Enfermagem Fliedner, onde atuou com as religiosas protestantes de
Kaiserwerth. Em 1854, apesar da resistência familiar e de militares, Nightingale organizou um
grupo de enfermeiras para atuar no Hospital Militar Inglês de Scutari/Turquia, experiência voltada à
assistência aos soldados anglo-franceses na Guerra da Crimeia/Ucrânia.
Destaco, nesse período, a atuação de Mary Jane Seacole que, nascida na Jamaica e com
nacionalidade britânica, tentou ingressar na equipe organizada por Nightingale, uma vez que
possuía conhecimentos de medicina tradicional, aprendidos com sua mãe (de origem jamaicana)
que cuidava de militares inválidos em sua pensão, como também sobre doenças epidêmicas, a
exemplo da cólera e da febre amarela, pois tinha atuado nas Bahamas, Haiti, Cuba e Panamá.
Todavia, a referida candidata não foi aceita (mesmo tendo apresentado cartas de recomendação de
médicos da Jamaica e do Panamá) e alguns historiadores atribuem a recusa, sobretudo, ao fato dela
ser negra e por razões religiosas, pois era comum considerar que havia influências das religiões de
matrizes africanas nos negros e mestiços provenientes das colônias britânicas do Caribe.
Apesar da recusa, Mary Seacole arrecadou recursos financeiros e, por conta própria, fundou
o British Hotel, local que servia de alojamento para militares doentes e em convalescência, atuando
também no socorro aos feridos no campo de batalha (MELO; GOMES, 2011). Ao retornar para a
Inglaterra em 1856, à beira da miséria e doente, Mary Seacole recebeu ajuda dos combatentes e
publicou sua autobiografia Wonderful Adventures of Mrs. Seacole in Many Lands/1857, a primeira
obra escrita por uma mulher negra na Grã-Bretanha, livro que era vendido para garantir o seu
sustento. Mary Seacole ficou esquecida4, vindo a ser descoberta, casualmente em uma livraria de
Londres, somente em 1973, pela enfermeira britânica Elsie Gordon.
Além do que apontei em relação à Mary Seacole, destaco também as dificuldades
enfrentadas por Nightingale e pela equipe de enfermagem, tanto para se instalar no Hospital de
Scutari, como para iniciar e manter suas atividades naquele espaço, dada a centralidade do trabalho
4 Cabe lembrar que, entre as comendas recebidas, destaca-se a Medalha de Guerra da Crimeia e da Legião de Honra
Francesa. Postumamente, foi inaugurada uma estátua em sua honra, na Westminster Bridge Rd. no acesso ao Hospital
de St Thomas, com a descrição “pioneira”, o que gerou algumas discordâncias. Também foi controversa a proposta da
sua exclusão do currículo escolar britânico. Mary Seacole dá nome à Associação Jamaicana de Enfermagem.
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médico e a resistência à presença de mulheres em instituições militares. Ao retornar a Londres,
Nightingale continuou enfrentando o preconceito de gênero nas instituições hospitalares, bem como
entre algumas personalidades políticas. Sua formação, experiência e conhecimentos (em aritmética,
estatística, anatomia, etc.), no entanto, foram fundamentais para influenciar a opinião pública e a
categoria médica sobre a necessidade de reorganização dos hospitais e da formação profissional
para a enfermagem.
Do ponto de vista discursivo, considero o título do livro da Florence Nightingale Notes on
Nursing (Notas sobre Enfermagem), enquanto expressão referencial, que inaugura na enfermagem
moderna um campo de saberes distinto e a partir do qual outros dizeres e representações discursivas
das mulheres enfermeiras vão sendo (re)produzidos. É com base nesse pressuposto que identifico
duas representações principais, em torno das quais vão sendo produzidos os sentidos de enfermeira
no “modelo nightingaleano”. Historicamente, a primeira representação vinha sendo forjada a partir
da expulsão das freiras católicas dos hospitais ingleses. Este acontecimento histórico abriu espaço
nas instituições hospitalares (à época, voltados aos pobres e aos militares) para o ingresso de
mulheres dadas a bebida alcóolica, de moral duvidosa, prostitutas, compondo uma representação de
mulher pecadora, sendo esta uma identidade que marca o que na enfermagem ocidental tem sido
chamado de “idade das trevas”, correspondendo ao período pré-profissional. A segunda
representação é voltada à ciência, detentora de moral ilibada, submissa, devota, cristã, conforme
observo a seguir:
a enfermeira deve [...] eu não necessito dizer, ser estritamente sóbria e honesta;
mais do que isto, deve ser uma mulher religiosa e devotada; deve ter um respeito
por sua própria vocação, porque o presente precioso de Deus (a vida)
frequentemente é colocado literalmente em suas mãos; deve ser sólida e
observadora, atenta e rápida; e deve ser uma mulher de sentimentos delicados e
decente (NIGHTINGALE, 2010 [1860], p.188, grifos da obra).
Nesta importante passagem de Notes on Nursing, são postas em reciprocidade dialética duas
representações de mulheres, sendo apenas uma aquela à qual a enfermeira deve tomar como
modelo. Buscando se inscrever no campo das ciências da saúde, a referida obra tem, no
atravessamento do discurso religioso, um espaço que possibilita a produção de sentidos que
reificam o ideário do cuidado realizado pelas freiras no campo da enfermagem moderna. Vê-se que
o argumento apreendido do discurso religioso cristão para a construção de tal representação se deve
ao fato de que “o presente precioso de Deus (a vida) frequentemente é colocado literalmente em
suas mãos.” Nessa perspectiva, a “sua própria vocação” e o motivo pelo qual a enfermeira deve se
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identificar com a formação discursiva da enfermagem moderna tem sua base deslocada do plano
terreno.
Para apontar seu caráter histórico, destaco que, publicada na Era Vitoriana (1837-1901),
Notes on Nursing teve em sua primeira tiragem 15 mil exemplares e apenas 79 páginas, inserindo-se
no espaço restrito de publicações científicas da época e sua autoria trouxe uma contribuição para a
produção acadêmica realizada por mulheres (brancas). Surgiu em um período caracterizado pela
expansão do Império britânico no exterior e pela consolidação da Revolução Industrial inglesa. As
novas invenções e as transformações culturais realçavam com maior intensidade as mudanças
sociais e políticas e a ascensão da classe média na Inglaterra.
A publicação da referida obra ocorreu no mesmo ano em que Nightingale fundou a Escola
de Enfermagem do St. Thomas Hospital em Londres5, considerada a primeira escola secular de
enfermagem do mundo. Em seu momento pré-profissional, as práticas de enfermagem eram,
predominantemente, desenvolvidas nas instituições religiosas voltadas à caridade, razão pela qual
considero o caráter secular da referida Escola um diferencial, embora isso não signifique uma
ruptura com o ideário religioso. Tal publicação produziu também um deslocamento no discurso
biomédico, uma vez que pôs em questão sua homogeneidade e possibilitou a circulação de dizeres
que passaram a disputar espaço nessa formação discursiva, e para além dela.
Na concepção de Nightingale ([1860] 2010), o propósito da sua principal obra era
“simplesmente dar sugestões para reflexão às mulheres que têm a responsabilidade de cuidar de
outrem” (s.p.). Escrito em primeira pessoa do singular, o livro apresenta uma sequência entre os
seus 13 capítulos, que aponta para um encadeamento de certa complexidade nos procedimentos que
a autora descreve e comenta. À medida que as descrições e comentários vão sendo apresentados, a
identidade pretendida para as enfermeiras e o que se requisita da sua atuação profissional assume
um caráter relacional. Na referida obra, ao tempo em que são apresentados adjetivos que vão
compondo os sentidos de enfermeira, no que constitui o que “a enfermeira deve ser”, também vão
sendo colocados implicitamente o seu oposto e silenciadas outras possibilidades de representação.
Pelo efeito da polarização (entre o explícito e o implícito), apresento um movimento de
contraposição, entre o que a enfermeira deve ser e o que não deve.
5 Posteriormente, incorporada ao King’s College de Londres.
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A enfermeira deve ser A enfermeira NÃO deve ser
estritamente sóbria
honesta
uma mulher religiosa e devotada
ter um respeito por sua própria vocação,
ser sólida e observadora
atenta e rápida
uma mulher de sentimentos delicados
decente
dada à bebida alcóolica
desonesta
uma mulher profana e descrente
não ter respeito por sua própria vocação/não ter
vocação
não ser firme e não ser observadora
desatenta e lenta
uma mulher de sentimentos embrutecidos
indecente
Considerando a estrutura social do patriarcado, aponto que para além do discurso religioso
cristão e do discurso da enfermagem moderna, há um funcionamento que remete à divisão sexual do
trabalho que, em seus termos, reduz a mulher à condição de mera executora de trabalho manual e,
portanto, menos prestigiado. O início dessa condição e reprodução se dá no espaço doméstico.
Engels afirma que no matrimônio, no caso do casamento burguês, a mulher “só diferencia da
prostituta habitual pelo fato de que não aluga seu corpo por hora, como assalariada, mas sim porque
o vende de uma vez, para sempre, como uma escrava” (s.d.,p.91). Tal condição da mulher, imposta
pelos valores sociais da sociedade burguesa, é reificada nas chamadas profissões femininas,
reforçando a discriminação de gênero e com isso reproduzindo a supremacia masculina e a
naturalização dos atributos “característicos” do ser feminino. Todavia, cumpre esclarecer que:
Enquanto a família torna possível a produção da força de trabalho, a mulher tem
como incumbência preparar o contato dessa futura força de trabalho (os filhos) com
a realidade social. É na continuidade da vida familiar que se processa a
socialização da força de trabalho, apta em todos os níveis de seu existir (corpóreo,
psicológico etc.) para exercer a plenitude de sua realização enquanto criadora de
valor na produção capitalista. Essa dupla tarefa faz impossível a compreensão de
qualquer modelo numa sociedade capitalista, sem o exame do papel da mulher na
estrutura familiar e desta na reprodução do próprio sistema (MAGALHÃES, 2005,
p.70).
Não é à toa que “o novo movimento feminista vem sendo questionado, ao longo do tempo e
em todo o mundo, como uma ameaça aos valores estabelecidos. A desestabilização da família, a má
educação dos filhos, são algumas das consequências apontadas pelos críticos desse movimento”
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(MAGALHÃES, 2005, p.52). É por esta via que a representação da santa (em alusão à Maria) é
materializada na figura da mãe e a enfermeira (“mulher religiosa e devotada”) é requisitada como
exemplificação desse papel, inicialmente no espaço hospitalar, e depois para além dele,
considerando os diversos cenários de atuação profissional. Nesse sentido, a representação de
Florence Nightingale como A Dama da lâmpada, em razão das visitas noturnas que fazia aos
enfermos, nas quais usava uma lamparina, assume um efeito metafórico do discurso religioso no
campo de enfermagem, em oposição à chamada “idade das trevas”, antiga alusão de renascentistas à
Idade Média, caracterizada pelo domínio da Igreja Católica, que influenciou, de modo importante, a
cultura e o desenvolvimento econômico, político, científico e técnico.
É esse movimento de sentidos da “idade das trevas” à lamparina que identifico nas
representações de mulheres enfermeiras em Notes on Nursing como reificação da puta e da santa,
postas numa relação em que as luzes da religião e da ciência, apesar de suas distinções, são
simbolizadas na lamparina, que se põe como uma metáfora do fundamento sobre o qual a identidade
da mulher enfermeira deve ser produzida, em oposição à puta, representação social da “idade das
trevas” na enfermagem pré-profissional.
Os sentidos produzidos na simulação da ruptura com o discurso religioso e a representação da
enfermeira nightingaleana
Notes on Nursing materializa um discurso no campo da enfermagem moderna que procura
se inscrever no espaço científico e, portanto, teria de romper com os dizeres alinhados ao período
pré-profissional, caracterizado pela forte influência religiosa na prática do cuidado (em Instituições
professionais), contrastando com o ingresso de mulheres de “moral duvidosa” em instituições
hospitalares seculares. O paradigma científico moderno na área da saúde, por sua vez, requisitava
que os postulados tivessem base nas ciências biológicas e nas ciências médicas, sendo estes os
elementos de saber que configuraram o discurso biomédico, dominante desde então, a exemplo do
que se lê: “fui levada a crer, tanto por homens científicos quanto por mulheres ignorantes, que a
varíola, por exemplo, foi algo do qual houve uma vez um primeiro espécime no mundo [...]” (p.46).
É precisamente nessas condições de produção que Notes on Nursing irrompe, deslocando dizeres do
discurso dominante e produzindo outros sentidos no deslocamento.
Destaco alguns excertos em que são apresentados dizeres que procuram apontar a filiação do
discurso da enfermagem moderna ao discurso científico, fazendo distinção com o discurso
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biomédico, ainda que, por vezes, tomando-o por referência. Por exemplo, ao tratar da necessidade
do estudo das “leis da vida”, considerado como um conhecimento que não deveria ser exclusivo de
determinada categoria profissional, Nightingale afirmou: “chamam a isso o conhecimento médico
ou psicológico, que é apropriado somente aos doutores” (p.13).
Ao tomar por argumento a necessidade da formulação de um campo próprio de saberes, que
legitimasse a formação e atuação de enfermeiras, a partir de bases científicas, tem-se, então, uma
recorrente adjetivação da representação de enfermeira que se pretendia, como também daquela a
que procurava distinguir para negar. As sequências discursivas (SD) a seguir apresentam uma
construção na qual é possível identificar “o que deve ser” (SD1) e sua distinção do que já é/era
(SD2) – e que, portanto, é preciso negar ou questionar - “que tipo de enfermeira é essa?” (p.171).
SD1 – “uma enfermeira deve ser focada” (p.15).
SD2 – “uma enfermeira descuidada” (p.18).
Em se tratando da enfermeira “focada”, é reclamada a sua atenção permanente, orientada a
partir da necessidade instaurada no campo de cuidados. Nesse caso, “uma enfermeira cuidadosa
manterá observação sobre seus doentes, especialmente os casos mais debilitados, prostrados e com
doenças prolongadas, para resguardá-los [...]” (NIGHTINGALE, [1860] 2010, p.21). Não menos
importante é o uso do artigo indefinido singular, apontando para a necessidade de distinção de
“uma” representação ideal de enfermeira entre outras que não se alinhavam com o modelo que
estava sendo forjado. Um aspecto importante é o fato de que na língua inglesa, o substantivo
“nurse” é indefinido. No entanto, os adjetivos que são empregados na sua qualificação contribuem
para a produção de sentidos do feminino em suas representações, sob a influência dos demais
elementos da enunciação (SD3).
SD3 – “Os sentidos das enfermeiras e das mães tornam-se tão embotados com o ar viciado, que elas
ficam realmente inconscientes a que tipo de atmosfera deixam expostas suas crianças, funcionários
e hóspedes” (p.21).
Enfermeiras e mães compõem então uma formulação em que “enfermeiros” (apesar de ser
possível na tradução) soaria estranho, pelo efeito de naturalização da atuação das mulheres nas
práticas de cuidado. Tencionando a relação entre a mulher e o cuidado, para pensar o trabalho da
enfermeira numa perspectiva questionadora da suposta naturalização da práxis do cuidado, é
possível uma aproximação da abordagem feminista recente sobre o trabalho do care. Cabe aqui
lembrar a observação feita por Paperman, ao afirmar que:
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O Inglês tem apenas uma palavra - care – já o Francês o multiplica. Os termos
franceses podem ser distinguidos como os que indicam os tipos de sentimentos ou
tipos de ações. O conceito de care captura os dois aspectos simultaneamente, e é
por isso que eu prefiro usar o termo Inglês. Como será compreendido a seguir, uma
das dificuldades da ética do cuidado é a articulação entre o care como atividade
prática e o care como sentimento (PAPERMAN, 2004, p.413, nota 1, tradução
minha).
Nesta perspectiva, mais recentemente, por ocasião do Colóquio Internacional “Teorias e
Práticas do Cuidado” (Paris, junho de 2013), a definição de cuidado foi ampliada/aprofundada,
sendo este então considerado não somente enquanto uma atitude de atenção, tendo em vista que o
cuidado é, como recuperado por Kergoat (2016):
um trabalho que abrange um conjunto de atividades materiais e de relações que
consistem em oferecer uma resposta concreta às necessidades dos outros. Assim,
podemos defini-lo como uma relação de serviço, apoio e assistência, remunerada
ou não, que implica um sentido de responsabilidade em relação à vida e ao bem-
estar de outrem (p.17, tradução minha).
Considerando a particularidade do cuidado de enfermagem, nos termos apresentados por
Silva e Cavalcanti (2013), considero-o como inscrito no setor de serviços, e tendo em conta a sua
objetivação no setor público, penso ser importante considerar o fato de que aí não há produção de
mais-valia. No entanto, a sua importância na garantia da reprodução da força de trabalho radicaliza
a sua relação com a produção capitalista, que o requisita, legitima e explora. Esta relação, todavia, é
silenciada/apagada na superfície discursiva analisada (SD3), sendo, portanto, fundamental ao
analista, a partir da imediaticidade do dizer, alcançar o sentido-outro, através do qual é possível
considerar que “o cuidado não é simplesmente uma disposição ética, é principalmente um trabalho”
(MOLINIER, 2011, p.339, tradução minha)6.
Todavia, influenciada pelo ideário religioso, a representação da enfermeira que é construída
no discurso da enfermagem moderna, ao tempo em que requisita certa autonomia para o campo de
enfermagem, não consegue romper com a figura da santa, opondo-a à pecadora, descuidada,
desonesta. Ao longo da obra em tela, sob diversos aspectos, os elementos discursivos que
caracterizam a enfermeira nightingaleana vão sendo apresentados: “cuidadosa enfermeira” (p.25);
“se a enfermeira for muito cuidadosa” (p.27); “as enfermeiras de verdade” (p.46); “as enfermeiras
6Como também que “o care como perspectiva feminista parece originalidade não para dissociar a experiência da
responsabilidade de pessoas vulneráveis, colocando-se no debate das implicações morais e políticas das relações
estabelecidas em torno da dependência. Esta perspectiva parte da afirmação de que as necessidades e sofrimentos das
pessoas vulneráveis não podem ser deixadas sem resposta” (PAPERMAN, 2011, p.328, tradução minha).
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profissionais” (p.62); “uma boa enfermeira” (p.70, p.122), “a enfermeira experiente” (p.176), a
enfermeira observadora” (p.183-4), etc.
A representação no imaginário vai sendo construída também pelo modo como a enfermeira
deve se vestir, andar e falar/ler, e nesse sentido, Notes on Nursing é ilustrativa dessa preocupação no
estabelecimento de um “padrão”:
SD4 – “penso eu que seja alarmante [...] observar que as roupas femininas estão cada vez mais
impróprias para qualquer ‘missão’, ou que são em geral sem qualquer serventia” (p.67, grifo da
obra).
SD5 – “uma enfermeira com um vestido que farfalha é o horror de um paciente” (p.68).
SD6 – “O que está se tornando o passo da mulher? Aquele passo firme, leve e rápido que pedimos
antes?” (p.67).
SD7 – “Como uma velha enfermeira experiente, eu sinceramente desaprovo todas essas palavras
descuidadas e negligentes” (p.77).
SD8 – “Ler em voz alta para o doente deve ser sempre muito lento e preferivelmente em voz
distinta, mas não balbuciada; quase monótono, porém não cantando; alto, de preferência, mas não
de modo barulhento e, sobretudo, não demasiado longo” (p.81).
SD9 – “Pode não ser necessário dizer a uma enfermeira que ela deve estar limpa” (p.133).
A caracterização da “boa enfermeira”, atendendo ao “padrão” nightingaleano tem aí alguns
de seus principais elementos, para além de outros requisitos, como inteligência e criatividade, por
exemplo: “é aqui que a enfermeira inteligente aparece” (p.101), ou ainda “se a enfermeira for um
ser inteligente, e não um mero portador de dietas para o paciente, deixe-a exercitar sua inteligência
nessas coisas” (p.101). Todavia, não conseguiu romper com o discurso religioso que aí atualiza,
nem admitiu que outros modelos (inadequados para o “padrão” estabelecido) fossem aceitos, caso
da Mary Seacole.
Considerações finais
A obra Notes on Nursing materializou dizeres que legitimaram um estereótipo de mulher
enfermeira na Inglaterra, influenciado pelos efeitos metafóricos da lamparina e pelo discurso
religioso da moral cristã, tentando romper com as “trevas”, enquanto, contraditoriamente, atualizou
na memória a relação indissociável entre a puta (trevas), que precisava negar, e a santa (luz) que
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pretendia profissionalizar. Considero que o efeito de temporalidade nas marcas discursivas silencia
uma relação dialética que coexiste na dissimetria, pois a segunda representação passou a ser
dominante, simulando a ruptura no discurso modernizador.
Tal relação influencia a formação teórico-política e reforça a ideologia do cuidado,
naturalizando a condição das mulheres na enfermagem, sob a influência do discurso machista e
patriarcal. No entanto, entendo que o avanço efetivo nas questões que envolvem a luta contra a
opressão da mulher, precisa incorporar aí as chamadas questões gerais da sociedade, e é nesse
movimento que situo a luta feminista na sua relação indissociável com a luta de classes.
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FROM THE “AGE OF THE DARKNESSES” TO THE LAMPARINE: the breaking
simulator and the representations of women in the discourse of nursing professionalism in
England
Astract: In this work, I retrieve the representations of women in the discourse of modern nursing
professionalization, taking as materiality a book of their precursor, Florence Nightingale, “Notes on
Nursing - What It is and What It is not” (1860). On the basis of the assumptions made by Pêcheux, I
note that there are two representations of women in dispute. The first was forged from the expulsion
of Catholic nuns from English hospitals, she was given to alcohol, with morally dubious,
disobedient, prostitute, a sinner, an identity that marks the “dark ages” in the pre-professional. The
second representation is science-oriented, holds moral, submissive, devout, Christian. The work
organized statements that legitimized a stereotype of a woman nurse, influenced by the
metaphorical effects of the lamp and the religious discourse of Christian morality, trying to break
with the “darkness”, while contradictorily actualizing in memory the inextricable relationship
between the bitch (darkness), which it needed to deny, and the saint (light) that it intended to
professionalize. I consider that the temporality effect on discursive marks silences a dialectical
relationship that coexists in dissimetry, since the second representation became dominant,
simulating the rupture in the modernizing discourse. This relationship influences the theoretical-
political formation and reinforces the ideology of care, naturalizing the condition of women in
nursing, under the influence of the macho and patriarchal discourse.
Keywords: Discursive representations. Women. Nursing - England.