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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 Versão Online ISBN 978-85-8015-054-4 Cadernos PDE VOLUME I

DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens contém reflexões do autor sobre a compreensão das questões sociais

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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE

2009

Versão Online ISBN 978-85-8015-054-4Cadernos PDE

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ORIGEM DAS DESIGUALDADES NO PENSAMENTO DE ROUSSEAU E O POVO

NEGRO EM CURITIBA: Notas sobre a Mídia Impressa entre 2005 e 2010

Marco Antonio Pelike1 Orientador: Ivo Pereira de Queiroz2

Resumo

O artigo utiliza alguns conceitos e idéias presentes na obra Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens, do filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712–1778), bem como de outros autores, que fornecem elementos sólidos e fundamentais para se encetar reflexões a respeito do tema povo negro na mídia impressa do período de 2005 a 2010, na cidade de Curitiba-PR. O estudo visa proporcionar subsídios para uma reflexão sobre a questão das desigualdades raciais, apontando e examinando situações e grupos de pessoas marcadas pelo abandono por parte da sociedade e das principais instituições sociopolíticas existentes na capital paranaense. O problema de pesquisa fundamenta-se na percepção que se pode alcançar, no âmbito na cidade de Curitiba, em termos de respeito ao povo negro como ser humano, reconhecimento da sua história e dos seus direitos como cidadão. Desta forma, esse estudo procura levantar questões concernentes à prática da discriminação racial velada na capital paranaense, podendo ensejar pesquisas posteriores mais aprofundadas.

Palavras-chave: Povo negro; Rousseau; desigualdade racial; discriminação racial;

cidadania.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo analisa os resultados do estudo desenvolvido por meio do

Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE) do Estado do Paraná, norteando-

se pela seguinte indagação: “Como se manifesta, na mídia impressa de Curitiba-PR,

a desigualdade racial?”. O objetivo geral de pesquisa consiste em analisar, a partir

de reportagens veiculadas na mídia impressa de Curitiba-PR, a situação do povo

1 Especialização em Metodologia do Ensino Superior, graduação em Filosofia, professor do Colégio Estadual Prieto Martinez 2 Professor de Filosofia da UTFPR, mestre em Tecnologia (UTFPR). Filiado ao Movimento Negro Unificado – MNU.

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negro em relação ao conceito de desigualdade, conforme apresentado por Jean-

Jacques Rousseau. Como objetivos específicos destacam-se:

Apresentar os principais aspectos do conceito de desigualdade

elaborado por Jean-Jacques Rousseau;

Verificar como reportagens apresentadas pela mídia impressa curitibana,

ao longo do período de 01/01/2005 a 01/01/2011, abordam a temática do

povo negro;

Criticar o entendimento dos alunos do Ensino Médio da Rede Pública de

Ensino do Estado do Paraná, em Curitiba, a respeito da questão da

desigualdade racial a que se encontra submetido o povo negro;

Com vistas a atingir os objetivos selecionados, foram adotados os seguintes

procedimentos metodológicos, a serem executados em momentos determinados:

1) Identificação do conceito de desigualdade conforme consta da obra de

Rousseau, tendo em vista a produção de uma premissa maior a partir da

qual serão confrontados os dados colhidos dos estudos de caso;

2) Apresentação e análise dos dados coletados;

3) Apresentação de sugestões para novas pesquisas.

Como primeiro passo, são apresentados os principais conceitos derivados

da teoria filosófica de Jean-Jacques Rousseau, no tocante à temática da

desigualdade entre os homens, como o intuito de confrontá-los com a realidade da

prática da desigualdade na cidade de Curitiba-PR e, assim, verificar a situação de

desigualdade do povo negro na capital paranaense. Em seguida, serão

apresentados e analisados os dados colhidos durante o estudo de caso. Na

sequência, após o confronto da situação concreta, levantada no estudo de caso,

com os conceitos elaborados pelo filósofo em tela, serão apresentadas

considerações referentes à possibilidade de se empregar os elementos resultantes

dessa confrontação na produção de um conceito de educação emancipadora que

privilegie o desenvolvimento da igualdade racial e social.

A elaboração do projeto faz parte das diretrizes do Programa de

Desenvolvimento Educacional (PDE) do Estado do Paraná, visando analisar e/ou

problematizar o planejamento, desenvolvimento e execução de projeto didático-

pedagógico a ser realizado pelo professor no âmbito da escola em que atua sempre

em atendimento a normas e padrões pré-estabelecidos pela Secretaria de Ensino do

Estado do Paraná.

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A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional-LDB (BRASIL, 1998)

estabeleceu uma série de inovações no currículo da disciplina de História do Brasil e

que devem ser trabalhadas junto aos alunos no decorrer das aulas da disciplina. Em

atendimento a este novo paradigma de ensino, as aulas de História do Brasil devem

levar em consideração as contribuições das diferentes culturas e etnias para a

formação do povo brasileiro, especialmente no que diz respeito às matrizes

indígenas, africana e européia.

Para atender aos novos ditames da LDB, buscou-se realizar um projeto

didático-pedagógico que envolvesse alunos da educação básica, buscando destacar

a percepção, nos últimos cinco anos, das desigualdades existentes em Curitiba,

especialmente no que se refere à realidade de vida do cidadão negro nesta cidade.

O presente estudo partiu do pressuposto de que a observação e análise dos fatos

históricos referentes à desigualdade social permitem ao aluno compreender a

condição sócio-racial do povo negro. Sob este aspecto considerou-se que o estudo

das hierarquizações sociais e raciais, por meio da construção dos preconceitos

raciais no imaginário da população, bem como o papel sociopolítico que

desempenham na sociedade, poderia estimular a busca de alternativas para a

superação desta realidade socialmente construída.

De acordo com as Diretrizes Curriculares da Disciplina de História

(PARANÁ, 2006, p. 22), “as relações humanas determinam os limites e as

possibilidades das ações dos sujeitos de modo a demarcar como estes podem

transformar constantemente as estruturas sócio-históricas”. Com base em tal

assertiva, pontua-se a necessidade de o estudante dos ensinos Fundamental e

Médio assumirem seu potencial de agentes transformadores das relações raciais em

sua vida cotidiana.

2 ROUSSEAU E AS DESIGUALDADES ENTRE OS HOMENS

O filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) escreveu obras

importantes e polêmicas no campo da política e da análise social. Estreou como

escritor com uma crítica às artes e às ciências a que deu o nome de Discurso sobre

as Ciências e as Artes. Em seguida, vieram o Discurso sobre a origem e os

fundamentos da desigualdade entre os homens, o romance Nova Heloísa e as obras

Contrato Social e Emílio ou da Educação. Informa Jairo Marçal (2009, p. 566) que

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Rousseau, a partir de 1752, entrou em choque com outros filósofos de seu tempo,

como o francês Voltaire. Este fazia a apologia do luxo, considerando que este

representava um sinal de evolução das sociedades desenvolvidas. Rousseau, por

outro lado, via o luxo como sinal apenas de riqueza, nunca de virtude, sendo

resultado justamente da desigualdade social que se assentava na ociosidade e no

desejo de notoriedade.

Rousseau angariou inimigos por todos os lados, pois, apesar do enorme

sucesso literário do romance Nova Heloísa, tanto o Contrato Social como Emílio

foram proibidos tanto em países católicos quanto em países protestantes. Essas

duas obras chegaram a ser queimados em Genebra, terra natal do filósofo. Perto do

final da vida escreve um diálogo, Rousseau juiz de Jean-Jacques, com o qual

pretendia desmascarar um pretenso “complô” armado contra ele pelos demais

filósofos. (MARÇAL, 2009, pp. 566-570).

A leitura das obras filosóficas de Rousseau fornece elementos teóricos

fundamentais para o entendimento de determinados processos históricos que

culminaram na construção das desigualdades raciais em discussão. Tendo em

mente a hipótese rousseauniana de que o Homem, em sua essência, é naturalmente

bom, com o contexto social em que ele se encontra inserido sendo o responsável

pela corrupção de seu estado primitivo de bondade, a origem dessas desigualdades

será analisada, tendo em vista compreender e explicar a condição sócio-racial do

povo negro em Curitiba.

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os

homens contém reflexões do autor sobre a compreensão das questões sociais que

se constituíram nas sociedades modernas. Como o Discurso sobre as artes e as

ciências foi escrito antes pelo filósofo suíço, não raras vezes o Discurso sobre a

Origem3 acabou sendo conhecido, também, como Segundo Discurso. Apesar de não

possuir a profundidade e nem ter despertado a repercussão do livro que lhe

sucedeu, o Discurso sobre as Ciências e as Artes também se reveste de interesse

na medida em que foi nele que Rousseau, pela primeira vez, expôs sua teoria sobre

ser o Homem inerentemente bom e que os costumes degeneram porque os homens

desenvolvem de formas diferentes, o gosto pelos estudos e letras. No entender de

Rousseau, devido a focar-se insistentemente em seus interesses particulares e seu

3 Doravante mencionado com esta grafia com vistas a uma maior concisão do texto.

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egoísmo o Homem acaba se afastando dos seus semelhantes, o que o torna um ser

simultaneamente feliz e infeliz. Seja como for, Rousseau não explica em

profundidade as causas de tal degeneração dos costumes e da índole humana, o

que ele viria a fazer apenas no Discurso sobre a Origem.

Na abertura de seu “Segundo Discurso”, Rousseau (1973, p. 241) deixa

claro que o objeto de seu estudo é o Homem ao afirmar que “É do homem que devo

falar, e a questão que examino me diz que vou falar a homens, pois não se propõem

questões semelhantes quando se tem medo de honrar a verdade”. Em seguida, o

filósofo discorre sobre os diferentes tipos de desigualdade existente no seio da

espécie humana. A primeira delas sendo a desigualdade natural e física, que ocorre

quando a natureza determina os diversos aspectos do ser humano, com altura, cor

de cabelos e olhos, sexo ou compleição física, entre outros. Depois, explica, surge a

desigualdade de cunho moral e política, que depende da autorização dos homens,

ou seja, são estabelecidas na sociedade por meio das convenções ou

consentimentos dos cidadãos (ROUSSEAU, 1973, p. 241).

A primeira parte do Discurso sobre a Origem apresenta uma reflexão sobre a

ação do homem frente aos desafios da natureza, mostrando a necessidade deste se

defender dos perigos naturais com o uso de sua estrutura física e biológica e de sua

evolução humana. Ao surgir sobre a Terra, o homem não possuía muitos meios para

defender-se dos animais perigosos e encontrava dificuldades para alimentar-se e

abrigar-se das intempéries. Embora a descoberta de armas, como o arco e a flecha,

o auxiliem a defender-se de animais ferozes e mais poderosos fisicamente, o

Homem terá ainda pela frente um inimigo insidioso, invisível e implacável: a doença.

Comenta Rousseau (1973, p. 246) que “outros animais, mais temíveis e em face dos

quais o homem não conta com os mesmos meios para defender-se, são as

enfermidades naturais, a infância, a velhice e as doenças de toda espécie [...]”.

Apesar dessas dificuldades, o filósofo francês não hesita em declarar que este

homem primitivo, de certo modo, vivia em um paraíso, pois só se preocupava com a

satisfação de suas necessidades básicas, como alimentação, vestuário e moradia.

Não haviam surgido, ainda, criações supérfluas do engenho humano, como bens de

consumo, prestígio, poder, guerras, inveja ou roubos e assaltos. Era essa vida

comunitária, sem concorrência e outros valores fúteis, o paraíso terrestre

mencionado por Rousseau e que representava, em seu entendimento, o estágio em

que a Humanidade deveria ter detido sua evolução. Entretanto, esta visão de

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Rousseau sobre a bondade inata do ser humano não era compartilhada por outros

filósofos, como era o caso do inglês Thomas Hobbes (1588-1679), falecido trinta e

três anos antes do nascimento de Rousseau.

Como Rousseau, Hobbes também examina o Homem na natureza, mas não

considera que a vida natural seja calma e tranquila como o primeiro imaginava.

Hobbes postulava que quando os homens viviam sem um governo, sem um “poder

maior” que dirigisse seus destinos, acabavam experenciando um estado de

competitividade exacerbada, que os levava a uma vida de constante temor da morte

violenta e de receio frente ao convívio com os outros homens. Contudo, Marçal

(2009, p. 342), pondera que:

Hobbes não está dizendo que os homens têm uma índole competitiva, que sempre procuram tirar proveito uns dos outros ou algo assim. O que ele diz é que, ali onde os homens contam apenas com o próprio poder para fazer valer sua vontade, na eventualidade de entrarem em conflito com os outros, a tendência é que suas relações se degradem numa relação de guerra generalizada, numa condição de disputa pelo poder.

Hobbes considerava, portanto, que os homens no que chamava de “estado

da natureza”, enfrentariam uma perpétua condição de luta de todos contra todos, o

que configurava a prevalência da lei do mais forte. Ao explicar porque os indivíduos

aceitam o poder do Estado civil sobre suas vidas, Bobbio (1985, p. 101) considera

que:

A razão apresentada por Hobbes, como se sabe, é que sendo o estado de natureza uma situação de guerra de todos contra todos, nele ninguém tem garantia da própria vida: para salvar a vida, os indivíduos julgam necessário assim submeter-se a um poder comum suficiente para impedir o emprego da força particular.

Hobbes acreditava que o impulso que levava o homem a abdicar da

liberdade do estado da natureza era justamente o medo da morte: “nesse estado,

reina o medo e, principalmente, o grande medo: o da morte violenta” (CHAUÍ, 2004,

p. 372). Independentemente do enfoque pessoal de Hobbes ou Rousseau sobre a

índole que o ser humano apresentava quando vivendo na natureza, Chauí (1998, p.

399-400) lembra que “o Estado de Natureza de Hobbes e o Estado de Sociedade de

Rousseau evidenciam uma percepção do social como a luta entre fracos e fortes,

vigorando a da selva ou o poder da força”.

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Rousseau, para explicar sua visão da sociedade como fator de corrupção do

Homem enquanto “bom selvagem”, criticou a propriedade privada, apontando-a

como uma das causas da miséria entre as pessoas, primeira forma de degeneração.

Para ele, o homem se torna egoísta e desigual nos vários períodos da história,

dando origem às divisões de classes, sendo, principalmente a propriedade privada é

a origem da desigualdade. Rousseau (1973, p. 264) adverte sobre os males da

propriedade privada:

O verdadeiro fundador da sociedade foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, arriscou-se a dizer: ‘isso é meu’, e encontrou pessoas bastante simples para acreditar nele, foi o verdadeiro da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, mortes, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: Fugi às palavras desse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos pertencem a todos, e que a terra não é de ninguém.

Rousseau, contudo não creditava unicamente à propriedade privada a

responsabilidade pela degeneração do estado “puro” do homem primevo. Ele

entendia que a capacidade humana de aperfeiçoar-se constantemente o levava, na

verdade, a buscar, junto aos demais seres humanos, uma forma de sobressair-se,

de adquirir fama e prestígio na sociedade. Seria, então, esta faculdade da

perfectibilidade que promoveria a passagem do homem natural para o homem

social, aquele capaz de expressar e cultivar sentimentos de desprezo e inveja em

relação aos seus semelhantes. Tudo começou, segundo Rousseau (1973, p. 269),

quando:

Os homens habituaram-se a reunir-se diante das cabanas ou em torno de uma árvore grande; o canto e a dança, verdadeiros filhos do amor e do lazer, tornaram-se a distração, ou melhor, a ocupação dos homens e das mulheres ociosos e agrupados. Cada um começou a olhar os outros e a desejar ser ele próprio olhado, passando assim a estima pública a ter um preço. Aquele que cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais astuto ou o mais eloquente, passou a ser o mais considerado, e foi esse o primeiro passo para a desigualdade quanto para o vício; dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo, e, de outro, a vergonha e a inveja.

O surgimento da necessidade humana de comprovar suas qualidades e

habilidade perante seus semelhantes levou o homem a se escravizar ao desejo de

cultivar e sustentar uma imagem positiva na sociedade. Para isso, entretanto,

precisa recorrer, não poucas vezes, ao engodo, à mentira e à ostentação, o que

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acarreta na necessidade de elaborar mais e mais formas de iludir, de enganar seu

semelhante, aparentando o que, no fundo, não é. O sentimento de vaidade pontua

Rousseau (1973, p. 273), levou o ser e o parecer a se tornarem:

[...] duas coisas totalmente diferentes. Dessa distinção resultaram o fausto majestoso, a astúcia enganadora e todos os vícios que lhes forma o cortejo. Por outro lado, o homem, de livre e independente que antes era devido a uma multidão de novas necessidades passou a estar sujeito, por assim dizer, a toda a natureza e, sobretudo, a seus semelhantes dos quais num certo sentido se torna escravo, mesmo quando se torna senhor: rico, tem necessidade de seus serviços; pobre, precisa de seu socorro, e a mediocridade não o coloca em situação de viver sem eles.

A Humanidade chegou a uma situação de conflito de interesses

insustentável, fazendo com que eles decidissem estabelecer leis e normas que

protegessem as propriedades (bens) do indivíduo: Ao crescer o cultivo de terras

estas precisaram ser partilhadas. Assim, quando o direito de propriedade foi

reconhecido surgiram, consequentemente, “as primeiras regras de justiça, pois, para

dar a cada um o que é seu, é preciso que cada um possua alguma coisa”

(ROUSSEAU, 1973, p. 272).

Com forma de resolver as situações de conflito e demais problemas oriundos

das hierarquizações sociais, as sociedades humanas passaram a ser regidas pelo

direito. Então, as leis propiciaram a divisão por classes sociais, as quais dividem os

homens em ricos e pobres. Argumenta Rousseau (1973, p. 283):

Se seguirmos o processo da desigualdade [...] verificaremos ter constituído seu primeiro termo o estabelecimento da lei e do direito de propriedade; a instituição da magistratura, o segundo; sendo o terceiro e último a transformação do poder legítimo em poder arbitrário. Assim, o estado de rico e de pobre foi autorizado pela primeira época; o de poderoso e de fraco pela segunda; e, pela terceira, o de senhor e escravo, que é o último grau da desigualdade e o termo em que todos os outros se resolvem, até que novas revoluções dissolvam completamente o Governo ou o aproximem da instituição legítima.

A partir da reconstrução do problema da desigualdade e da análise

Rousseau desenvolveu a este respeito, evidenciou-se uma série de movimentos que

passaram pela divisão de terras, pela formulação do direito de propriedade e a

regulamentação pelas leis. No entender de Rousseau tais experiências foram

passos que a humanidade, deu na direção da divisão de classes, com todos os seus

problemas. De certo modo, a previsão funesta de Hobbes sobre o estado de disputa

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entre os homens se realizou. As classes mais poderosas, isto é, aqueles indivíduos

que possuíam maiores porções de terra e, portanto, maior prestígio e poder,

passaram a preocupar-se com a possibilidade de perder sua posição privilegiada.

Assim, criaram mecanismos que protegessem seu status e seus bens. O resultado

deste processo tem consolidado o abismo social que passou a separar os homens e

que só tende a aumentar.

Durante o período em que vivia em comunhão com a natureza o homem não

encontrava problemas maiores para conviver com seus semelhantes e seu sentido

comunal era de cooperação e amizade. A desigualdade entre os homens vem do

sentimento de propriedade que os leva a querer destacar-se dos demais homens

pela posse de bens e poder (político, religioso ou militar, dentre outros) que lhes

garanta uma posição privilegiada frente aos demais. Para tanto, é preciso justificar,

constantemente, o “direito” de determinados indivíduos “serem” superiores aos

demais. As leis e convenções sociais são usadas nesse sentido para segregar as

classes inferiores e proteger, cada vez mais, os interesses das classes dominantes.

Com o passar do tempo, a ânsia de justificar, como se fosse natural, a superioridade

de alguns desaguará na diferenciação social em face das características específicas

de cada indivíduo.

Da perspectiva da construção social da desigualdade entre os homens, o

racismo busca “justificar” a separação dos homens com base na cor da pele, ou na

etnia à qual o indivíduo pertence. Para verificar se o surgimento desta modalidade

de divisão social pode ser explicado com base no pensamento Rousseauniano será

investigada, na seção seguinte, a existência ou não de desigualdade racial na

cidade de Curitiba e a forma de suas manifestações dessa desigualdade. Em

seguida, as características da prática de desigualdade serão confrontadas com o

pensamento filosófico de Rousseau.

3 O POVO NEGRO E A DESIGUALDADE RACIAL EM CURITIBA

O homem rousseauniano, naturalmente bom, corrompe-se na luta pelo

poder, pelo prestígio e pelas riquezas, que o levam a se afastar de seus

semelhantes e a desconfiar a deles. Essa desconfiança assume várias formas,

produzindo no indivíduo um temor paranóico de que os demais homens vivem

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constantemente conspirando para lhe tomar aquilo que ele considera essencial para

sua própria sobrevivência e felicidade. Esse medo da perda leva à separação da

sociedade em classes sociais. A divisão da sociedade em classes e raça como

forma de dominação pelas elites é aponta por Chauí (2004, p. 85) ao explicar que:

A ciência política e econômica demonstra que, no interior de uma mesma sociedade, formam-se grupos e classes sociais que se apropriam das riquezas e do poder, colocam (pela força, pelo medo, pela superstição, pela mentira, pela ilusão) outros grupos e classes sociais sob sua dominação e justificam tal fato afirmando que tais grupos ou classes são inferiores e que possuem características físicas e mentais que os fazem ser uma “raça inferior”. “Raça”, portanto, não existe. É uma palavra inventada para legitimar a exploração e a dominação que um grupo social e político exerce sobre os outros grupos.

Sobre o uso do conceito de raça e classe social na formação de algumas

nações, registre-se que a ênfase neste discurso desvia a atenção de outras

questões que transcendem o mero aspecto racial e envolvem conceitos como

cidadania e participação sociopolítica do indivíduo. Sobre isso, pondera Schwarcz

(2008, p. 244) que:

[...] se a questão racial foi operante na medida em que apontava para determinadas compreensões da sociedade, impediu ou relativizou a realização de outros debates. Ao mesmo tempo em que uma leitura determinista gerou o fortalecimento da importância das raças na formação da nação, em contra partida levou a um esvaziamento do debate sobre a cidadania e sobre a participação do indivíduo. Entendo o sujeito como resultado do seu grupo ‘racio-cultural’. Esse tipo de teoria tendeu a negar a vontade individual frente a coerção racial.

A sociedade, em geral, tende a ignorar ou mesmo relativizar certos atos do

indivíduo, desde que estes levem a resultados que sejam costumeiramente

valorizados pela ideologia dominante. Na verdade, não se dá a devida atenção aos

meios empregados pelo indivíduo para alcançar seus objetivos. Maria Aparecida da

Silva Bento (2005, p. 7) alerta para o risco de essa atitude propiciar práticas

discriminatórias, uma vez que:

Em nossa sociedade, essa questão — que pertence ao campo da ética — não tem sido alvo de preocupações. Assim, muitas vezes, a pessoa alcança o sucesso através da expropriação, da marginalização, e até da destruição do outro. Ou seja, o respeito ao outro, aos seus direitos, vira apenas uma questão de discurso, e acabamos por considerar ‘natural’ que as pessoas busquem sempre levar vantagens umas sobre as outras. Parto da premissa de que nossa sociedade reproduz as desigualdades ao longo dos séculos

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com ampla participação da população, quer intencional, quer inconscientemente, seja através de ações discriminatórias ou da omissão frente às práticas discriminatórias.

A investigação histórica pode detectar “causalidades voltadas para

descobertas de relações humanas, e causalidades internas que buscam

compreender e interpretar os sentidos que os sujeitos atribuem às suas ações”.

(PARANÁ, 2006, p. 22). Portanto, para entender o problema da desigualdade racial

na capital paranaense convém examinar a visão que determinados historiadores,

ainda utilizados como referência na elaboração dos livros de história das redes

municipais e estaduais de ensino, promoveram a respeito do papel do negro na

construção do Estado do Paraná e sua capital. Sobre a campanha de “ocultação” da

presença do povo negro no Paraná empreendida por tais historiadores, comenta

Marcilene Garcia de Souza (2003, p. 39) que:

Wilson MARTINS, em seu livro Um Brasil Diferente, pretendeu demonstrar a influência dos elementos culturais estrangeiros ‘na sociologia meridional do Brasil’, colocando o Paraná e, especificamente Curitiba, como um local com características singulares do país e, principalmente, pela não presença do elemento negro na construção do Estado, privilegiando os imigrantes que aqui chegaram no século XIX. Para ele, o Paraná formou-se de ‘uma civilização original’, diferenciada das demais regiões brasileiras. Estatisticamente, na história do Paraná, a população negra, antes escravizada, atualmente vem diminuindo gradativamente de acordo com os censos. Alguns historiadores remetem a história do Paraná a partir da chegada dos imigrantes europeus no Estado e em Curitiba.

Na tentativa de minimizar a importância da escravidão negra em terras

paranaenses, alguns historiadores fazem questão de afirmar que esta modalidade

de mão-de-obra não foi exclusiva na formação do estado. Informa Souza (2003, p.

40) que Wilson Martins chega a considerar que “o fator de maior importância – do

Estado do Paraná ser um Brasil Diferente – não está no fato de Paraná ter tido uma

forte imigração européia, mas sim devido à não presença de negros na sua história”.

Aliás, um dos tópicos de uma das obras desse historiador intitula-se “Não houve

escravatura no Paraná”.

Esta distorção proposital dos fatos históricos demonstra, no entender de

Souza, como as pessoas em geral podem, mesmo inconscientemente, “apreender [e

assimilar] os discursos construídos acerca da identidade cultural da cidade, que por sua

vez são reproduzidos pelo poder local, pelos meios de comunicação e pela educação

escolar.” (SOUZA, 2003, p. 41). Encontra-se aqui, um importante ponto de contato da

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situação de desigualdade racial na cidade de Curitiba com os pressupostos filosóficos

rousseaunianos. Ao se considerar a tese filosófica da bondade inata do homem, como o

quer Rousseau como verdadeira, não fica difícil prever que as crianças curitibanas, tão

logo adentrem o universo escolar acabem sendo induzidas, de forma sub-reptícia, a

adotar em suas vidas o preconceito racial que lhes chega através dos livros escolares e

outras prédicas. Ao comentarem a questão da abordagem de formas implícitas de

desigualdades raciais em livros didáticos, Costa e Silva (2007, p. 160), alertam para o

fato de que:

[...] o papel dos sistemas de ensino, das escolas, dos cursos de formação de professores e dos professores e alunos continua importante, pois devem ser instrumentalizados para analisar criticamente as mensagens que estabelecem formas diversas de hierarquias entre brancos e outros grupos raciais.

A “doutrinação” racial infiltrada nos mecanismos de ensino da História não

se trata e mera especulação ou exagero paranóico do tipo “teoria da conspiração”.

Ao denunciar a presença insidiosa de práticas de desigualdade nas diversas

instâncias da vida brasileira, Kabengele Munanga (1996, p. 89) comenta:

Estamos num país onde certas coisas graves e importantes se praticam sem discurso, em silêncio, para não chamar a atenção e não desencadear um processo de conscientização, ao contrário do que aconteceu nos países de racismo aberto. O silêncio, o implícito, a sutiliza, o velado, o paternalismo são alguns aspectos dessa ideologia.

O alcance pernicioso desse tipo de abordagem truncada dos fatos históricos

não se destina apenas a preparar os novos membros das classes dirigentes sobre a

importância e validade da promoção da segregação social e racial. Visa, igualmente,

manter as próprias minorias discriminadas em estado de alienação, evitando, assim,

que procurem lutar por seus direitos de cidadão. Acrescenta AZEVÊDO (1987, p. 48)

que, “das consequências da escravatura, não temos dúvidas de que pior que a

pobreza, a miséria, o analfabetismo, a marginalização e a doença, é a perda da

autovisão de valor”. O maior problema do povo negro torna-se, assim, as

dificuldades encontradas para definir sua própria identidade como ser humano.

A desigualdade racial está intrinsecamente associada à desigualdade na

distribuição da renda no Brasil. O processo de concentração de renda encontra suas

raízes históricas no próprio processo de formação social do Brasil. Nos dizeres de

PRADO JUNIOR (1987, p. 281) “abre-se assim um vácuo imenso entre os extremos

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da escala social: os senhores e os escravos; a pequena minoria dos primeiros e a

multidão dos últimos”. Após examinarem dados compilados por uma organização

não-governamental que investiga a situação educacional, econômica e política de

negros e brancos no Brasil, Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes (2006, p. 171)

concluíram tratar-se de uma desigualdade:

[...] construída ao longo do processo histórico, político e social do país, que afeta diferentemente a população branca e negra [...] O abismo racial brasileiro existe, de fato, e são as pesquisas e estatísticas que comparam as condições de vida, emprego, escolaridade entre negros e brancos que comprovam a existência da grande desigualdade racial em nosso país. Essa desigualdade é fruto da estrutura racista, somada à exclusão social e à desigualdade socioeconômica, que atinge toda a população brasileira e, de modo particular, os negros.

Em suma, as desigualdades sociais e raciais fazem parte de um processo de

segregação que se arrasta desde os dias da escravidão negra até estes primeiros

anos do século XXI. Neste processo segregacional entram fatores como a negação

ao povo negro de tomar conhecimento de sua própria identidade e de ter acesso às

benesses da modernidade, a concentração da maior parte da renda do país nas

mãos da parte branca da população, bem como a sistemática “programação”

doutrinária no sentido de justificar e propagar a idéia de que a opressão sobre o

povo negro na verdade não existe, haja vista a enorme diversidade de raças e etnias

que vivem no Brasil.

Este quadro conduz a uma série de indagações, como, por exemplo, “como

se manifestam as desigualdades sociais em Curitiba, no tocante a aspectos como

trabalho, moradia, saúde, mortalidade infantil e distribuição de renda?” ou “como os

governos municipais têm conduzido suas ações a respeito das desigualdades

raciais?” É fato que Curitiba recebeu e continua recebendo prêmios por ser

considerada uma capital modelo, que aplica padrões europeus ao seu projeto de

desenvolvimento urbano. Entretanto, é fato, também, a existência de um abismo no

tratamento governamental dispensado ao centro curitibano e “bairros nobres”

quando comparado com o atendimento aos bairros periféricos, com suas muitas

carências em termos de infraestrutura. Na periferia concentra-se a maior parte da

população curitibana, entretanto são excluídas socialmente por um sistema que

busca negar e/ou ocultar sua presença dos olhos das elites dominantes. Souza

(2003, p. 15) comenta sobre o assunto que:

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Considera-se, ainda, a existência de um processo de ‘invisibilização’ da população negra, seja na arquitetura, parques, bosques, portais, meios de comunicação e educação nas escolas, que contribui para a percepção de que ela não chega a se constituir como um grupo racial ‘merecedor’ dos bens sociais, econômicos e culturais do pacto social que consideraria todos os indivíduos como ‘cidadãos’, independentemente do sexo, cor, raça,etnia, religião ou procedência nacional.

Para que seja possível constatar se Curitiba apresenta o fenômeno da

desigualdade social e racial esse fenômeno e se o sistema de ensino fundamental e

médio da capital paranaense possui algum projeto ou medida para conscientizar os

alunos sobre a profundidade do racismo uma linha de ação é a pesquisa e análise

da mídia impressa de Curitiba no sentido de detectar como estes veículos de

comunicação repassam, à população, a imagem do povo negro.

Essa ação de análise das inserções midiáticas do povo negro se justifica, pois

se sabe que a perpetuação de estereótipos pode acirrar ainda mais as

desigualdades raciais ao penetrar no espaço escolar, ajudando a reproduzir formas

negativas de conhecimento da história e cultural afro-brasileira. Inclusive, sobre a

tendência dos meios de comunicação de massa de utilizar, especialmente em

propagandas e anúncios, modelos preferencialmente brancos, Iray Carone e Maria

Aparecida Silva Bento (2002, p. 30) lembram que “quando precisam mostrar uma

família, um jovem ou uma criança, todos os meios de comunicação social brasileiros

usam quase que exclusivamente o modelo branco”. Bento (2005, pp. 39-40),

acrescenta, ainda, que:

Em nossa sociedade constroem-se ou divulgam-se imagens positivas ou negativas de diferentes grupos através de diversos meios. Entre os principais meios destacam-se a televisão, os jornais, as revistas, o cinema – que contribuem extraordinariamente para que as pessoas formem imagens positivas ou negativas sobre outras pessoas ou acontecimentos do dia-a-dia. [...] os meios de comunicação são considerados formadores de opinião. Dependendo do tipo de imagem que divulgam podem estimular as pessoas a terem uma posição negativa ou positiva em relação a acontecimentos ou a grupos de pessoas.

Rousseau considerou que o homem é bom por natureza e que são as

instituições sociais que o levam a um estado de corrupção. Existem indícios da

prática da desigualdade social e racial em relação ao povo negro em Curitiba estar

sendo oculta, ou ao menos disfarçada, pelos meios de comunicação de massa da

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capital paranaense. Da mesma forma, existem indícios de parte do material didático

destinado ao ensino de história no âmbito dos ensinos Fundamental e Médio das

redes municipal e estadual de ensino estar sujeito a incorporar uma visão deturpada

da presença e participação do povo negro na construção do Estado do Paraná. Esta

situação mostra a oportunidade de se desenvolver uma ação pedagógica junto aos

alunos das redes públicas de ensino da cidade de Curitiba com vistas a detectar a

forma como os veículos de comunicação de massa curitibanos tratam a temática do

povo negro. Esta ação pedagógica será apresentada na seção seguinte.

4 AÇÃO PEDAGÓGICA

Uma rápida leitura das manchetes dos principais jornais impressos da

cidade de Curitiba permite vislumbrar, sempre que o tema enfocado envolve o povo

negro, uma tendência de apresentar os fatos, dissimulada ou abertamente, de forma

preconceituosa ou mesmo pejorativa. Essa constatação mostra a importância de

uma pesquisa que examine como, de fato, a imprensa local escrita se comporta

frente ao tema da presença do povo negro na vida da cidade. Esta pesquisa,

debruçando-se sobre as formas de inserção do negro na mídia impressa, em termos

de imagens, entrevistas, ilustrações, anúncios e propagandas, possibilita identificar

os interesses por trás de tais ações e se há intuito de silenciar as vozes dos

excluídos de nossa sociedade.

A implementação de um projeto didático pedagógico requer a participação

ativa e decisiva dos alunos da escola em que este será desenvolvido. No presente

caso, a participação dos estudantes ocorreu por meio de uma pesquisa

desenvolvida no sentido de aquilatar a situação do povo negro em Curitiba. A

metodologia de pesquisa empregada foi a aplicação de questionários e exame de

manchetes sobre o tema em tela, veiculadas pelos principais meios de comunicação

impressa da cidade de Curitiba. Estas atividades foram realizadas tanto em grupo

como em nível individual.

O projeto de ação pedagógica desenvolveu-se em quatro fases distintas,

porém complementares. Na primeira, os alunos responderam a um questionário

padronizado com o objetivo de criticar seu próprio conhecimento sobre a questão da

desigualdade racial. A segunda, ocorrida após a realização de leitura, reflexão e

análise dos conhecimentos prévios sobre o assunto, envolveu a pesquisa de

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percepção dos principais jornais impressos da cidade de Curitiba, com vistas a

verificar como os mencionados veículos de comunicação tratavam a questão da

presença do povo negro na cidade de Curitiba. Nesta fase, participaram sessenta

alunos, com faixa de idade variando entre os 14 e os 17 anos. A maioria residia em

regiões periféricas e na Região Metropolitana de Curitiba-RMC. Todos cursavam o

Ensino Médio.

A intenção desta fase de pesquisa não visava apresentar dados definitivos

sobre o tema da inserção do negro nos veículos de comunicação impressos ou

avaliar a inserção do povo negro na sociedade curitibana. O intuito precípuo desta

pesquisa de caráter qualitativo era colher a percepção que os alunos partícipes

apresentariam sobre o tema em questão. Sendo assim, os resultados obtidos

apresentam feição subjetiva, dificultando sua exposição sob a forma de gráficos ou

tabelas. Na verdade, a experiência serviu para apontar indícios e despertar nos

membros do corpo discente reflexões e interesse sobre o tema da desigualdade

social e racial.

Em termos estatísticos, a pesquisa de percepção em relação aos jornais

impressos revelou que, em se tratando de temas referentes à comunidade, política,

segurança e imprensa foi possível encontrar algumas notícias que ligavam a

presença do negro a estes temas. Entretanto, no tocante a setores como comércio,

construção civil, docência, serviços gerais, saúde, religião, esportes e empresariado,

apresentaram resultados quase nulos à percepção da presença negra. Em suma, foi

possível perceber que a mídia impressa não destaca a participação do povo negro

na vida da cidade de Curitiba, constituindo tal procedimento mais uma forma de

exclusão e fomento da desigualdade racial.

A terceira fase consistiu na confrontação do diagnóstico das informações

coletadas na mídia impressa com as principais idéias contidas nos escritos

rousseaunianos. O resultado dessa confrontação possibilitou aos membros do corpo

discente que participaram da pesquisa, elaborar textos que respondessem às

seguintes questões:

1) Como tem se comportado a mídia impressa curitibana e paranaense no

tratamento às políticas públicas de interesse do povo negro?

2) Que aspectos contribuíram para a “invisibilidade” do negro na cultura

curitibana?

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Antes de prosseguir com a produção de textos foi realizada, ainda, a leitura

de um artigo de Isabella Silva e Wellington dos Santos (2010, p. 8) sobre o tema

“mídia e racismo”, bem como de textos que discorriam sobre o Discurso e os

Fundamentos da Desigualdade entre os homens, do filósofo Jean–Jacques

Rousseau.

Os membros do corpo discente foram estimulados a refletir sobre as fontes

das desigualdades existentes na sociedade brasileira, o distanciamento cada vez

maior que o Homem apresenta em relação às suas raízes, e as correlações entre a

situação de desigualdade do mundo atual e o conceito de oposição entre os

chamados “estado da natureza” e “estado social”, segundo preconizava Rousseau.

Os partícipes desta fase do projeto deveriam apresentar suas considerações sobre a

questão da propriedade privada como fator de produção do egoísmo humano, de

surgimento da divisão de classes sociais entre ricos e pobres, em oposição ao

conceito da liberdade como princípio básico do homem natural.

A partir das leituras realizadas, somadas aos subsídios retirados da

observação dos textos dos meios de comunicação de massa impressos, os alunos

elaboraram redação dissertativa expondo suas visões frente aos argumentos

apresentados e demonstrando sua compreensão dos conceitos veiculados.

O ensino da disciplina de História deve atender aos ditames da Lei

10.639/2003, cabendo aos educadores destacar a valorização da história e cultura

afro-brasileira e africana no meio escolar, podendo, inclusive, recorrer à exposição

do corpo discente ao que se costuma denominar “lugares de memória”, isto é, locais

da cidade onde se desenvolveram fatos importantes da manifestação da cultura do

povo negro. Com efeito, “à medida que desaparece a memória tradicional, nós nos

sentimos obrigados a acumular religiosamente vestígios, testemunhos, documentos,

imagens, discursos, sinais visíveis do que foi”. (NORA, 1993, p. 15). Cabe aos

educadores apresentar estes testemunhos da participação do povo negro na

formação do Estado do Paraná e sua capital aos alunos sob sua responsabilidade,

permitindo que eles possam apropriar-se desse conhecimento e, assim,

compreender a importância da luta contra as desigualdades de todo tipo,

principalmente a racial.

A terceira fase do projeto de ação pedagógica terminou com a apresentação

ao corpo discente de imagens fotográficas ligadas ao passado e à cultura do povo

negro na cidade de Curitiba. Entre as imagens mostradas é possível destacar a

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Igreja do Rosário dos Pretos de São Benedito, localizada no Largo da Ordem, uma

vista da Vila Capanema (atualmente Jardim Botânico), onde se localizava a sede da

antiga Escola de Samba Colorado; a Praça Zumbi dos Palmares, localizada no

bairro Pinheirinho, bem como placas de ruas da cidade que ostentam nomes de

personalidades de destaque do povo negro, como Engenheiros Rebouças e Enedina

Alves Marques, sendo que esta, por exemplo, notabilizou-se por se tornar, a um só

tempo, a primeira negra e primeira mulher a se graduar em engenharia civil no

Brasil, pela UFPR, em 1945.

Na área cultural, o corpo discente travou conhecimento com as imagens e

histórias de vida de expoentes do povo negro, como Palminor Rodrigues Ferreira,

conhecido como “Lápis”, músico e compositor brasileiro, bem como o violonista

virtuose Waltel Branco. Ressalte-se que, ao abordarem a discriminação racial que

Waltel sofria no próprio meio artístico, Waltel Branco e Claúdio Menandro de Oliveira

(2008, p. 13) comentam o processo de “invisibilização” a que muitos negros são

submetidos ainda hoje:

A invisibilidade que o cerca muitas vezes chega à ficha técnica das gravações discográficas. Seu nome é omitido, deliberadamente ou não, em muitas faixas para cujas músicas ele emprestou seu talento seja como instrumentista ou arranjador. Por questões várias, até o nome é alterado quando o produto aparece como “internacional”. Waltel aceitou ter vários pseudônimos na carreira: W. Blanc, Magalhães Patto, Bianco, Airto Fogo, William Hammer, Tito Velásquez.

Ao final da atividade foi possível perceber que o interesse por parte dos

estudantes participantes da pesquisa no sentido de conhecer os lugares e

personagens que se destacaram na história paranaense. Ao aprofundar a pesquisa

sobre os artistas mencionados no parágrafo acima, ficou patente o desconhecimento

a respeito deles nos dias atuais. Aproveitou-se o ensejo para fazê-los conhecer um

pouco mais da vida, obras, canções, letras e métodos de composição utilizados por

aqueles artistas que contribuíram para o desenvolvimento da música popular em

nosso Estado.

O Grupo de Trabalho em Rede (GTR) trouxe para o ambiente virtual,

significativas contribuições de vários docentes para êxito das tarefas de

implementação do projeto nas várias escolas do Estado do Paraná. Ficaram

comprovadas a importância e a atualidade do tema eleito para análise e da Lei

10.639/2003, e do “Estatuto da Igualdade”, bem como a necessidade de apoio ao

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desenvolvimento de ações políticas afirmativas. A troca de experiências e sugestões

entre os corpos docente e discente foi uma constante durante o transcorrer do curso,

com discussões em fóruns e participações em atividades à distância.

A fase final do projeto de ação pedagógica visou demonstrar os resultados da

pesquisa e as atividades desenvolvidas pelo corpo discente na implementação do

material pedagógico. Assim, no segundo semestre de 2010, mais especificamente

no dia 20 de novembro, no auditório do Colégio Estadual Prieto Martinez, foram

realizadas atividades de música e dança como parte das comemorações referentes

ao dia da consciência negra, data comemorativa do aniversário de martírio de Zumbi

dos Palmares, líder do quilombo mais importante da história brasileira e símbolo da

resistência do negro à escravidão e à opressão sob todas as formas. Foram

proporcionados momentos de reflexão e conscientização no ambiente escolar, por

intermédio de jograis, danças (capoeira/hip hop) e músicas, além de painéis

comemorativos elaborados pelos alunos com o apoio e supervisão das professoras

das disciplinas de Artes e Língua Portuguesa. O tema proposto conseguiu despertar

um vivo interesse sobre a questão das desigualdades raciais em todos os

participantes, favorecendo a apresentação de questionamentos e propostas de

conteúdos a serem inseridos no plano curricular do ano de 2011.

5 CONCLUSÃO

As ações pedagógicas previstas pelo Programa de Desenvolvimento

Educacional (PDE) e executadas na escola alvo da pesquisa, permitiram verificar o

alto grau de desconhecimento dos alunos a respeito da história e das políticas de

reconhecimento da realidade do povo negro em Curitiba. Da mesma forma, os

estudantes ignoram temas atuais como os da implantação de cotas de vagas

reservadas para afrodescendentes em concursos públicos e vestibulares de

universidades e das políticas afirmativas no combate às desigualdades raciais

existentes.

Verificou-se, porém, que o confronto dos conceitos a respeito da origem das

desigualdades apresentados pelo filósofo Jean-Jacques Rousseau com a análise

das matérias veiculadas na mídia impressa curitibana, no período 2005-2010,

despertou posicionamentos reflexivos, suscitando um novo olhar do corpo discente

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sobre a realidade local e sobre o posicionamento da escola frente aos vários

projetos desenvolvidos no ambiente escolar.

As atividades em sala de aula, no laboratório de informática e na execução

das ações requeridas para implementação do material-didático pedagógico, permitiu

constatar as trocas de experiências e o oferecimento de sugestões, através de

debates formais e informais, entre os corpos docente e discente da escola alvo da

pesquisa. Esta apontou caminhos a serem explorados em futuras ações de

conscientização social desenvolvidos no projeto de ação pedagógica. Assim por

exemplo, um professor sugeriu que, a cada ano, no dia de celebração da Abolição

da Escravatura, seja convidado um representante de algum movimento de luta pelos

direitos do povo negro para ministrar palestra que venha a esclarecer, junto aos

corpos discente e docente, pontos pouco conhecidos da realidade do povo negro em

nosso país e, em especial, na cidade de Curitiba. Por sua vez, um aluno aventou a

possibilidade de, no dia 20 de novembro de cada ano, isto é, no Dia da Consciência

Negra, seja realizada, por estudantes do Colégio Martinez, uma encenação teatral

da vida e martírio de Zumbi.

Embora Rousseau considerasse que o homem, apesar de sua natureza

propensa ao bem, torna-se egoísta e desigual em razão dos determinismos

históricos a que é submetido, a promoção de políticas afirmativas e campanhas de

conscientização dos alunos dos anos iniciais do ensino tem a capacidade de mostrar

que é possível conciliar a vida em sociedade com ações de integração social e uma

participação sociopolítica livre de desigualdades sociais e raciais.

Conclui-se, portanto, que a implementação de políticas públicas na área da

educação, trabalho e cidadania, visando a conscientização sobre a questão das

desigualdades raciais são necessárias de forma mais consistente e contínua.

Fortalecer e investir cada vez mais no aprimoramento da escola significa torná-la um

organismo seguro e capaz de tornar os seres humanos conscientes e construtores

de um mundo humano e fraterno, em que se valorize não a cor, as posses materiais

ou os títulos honoríficos, e sim o ser humano. Ainda há tempo para fazer o ser

humano humanizado, filho da Terra, irmão das estrelas e árvores, triunfar por toda a

parte.

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