Da Essência do Sagrado: Um estudo a partir da compreensão de Verdade e Linguagem no pensamento de Martin Heidegger

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    UFJF Universidade Federal de Juiz de Fora.

    Programa de Ps-graduao em Cincia da Religio/ Mestrado.

    DA ESSNCIA DO SAGRADO:UM ESTUDO A PARTIR DA COMPREENSO DE

    VERDADE E LINGUAGEM NO PENSAMENTO DE MARTIN HEIDEGGER.

    Augusto Csar Dias de Araujo.

    Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de

    Mestre ao Programa de Ps-graduao em Cincia da Religio, do

    Instituto de Cincias Humanas e Letras da Universidade Federal de Juiz

    de Fora.

    Orientador: Prof. Dr. Lus Henrique Dreher.

    Juiz de Fora, Setembro de 2004.

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    AUGUSTO CSAR DIAS DE ARAUJO.

    DA ESSNCIA DO SAGRADO:UM ESTUDO A PARTIR DA COMPREENSO DE

    VERDADE E LINGUAGEM NO PENSAMENTO DE MARTIN HEIDEGGER.

    Dissertao aprovada como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre no Programa de Ps-

    graduao em Cincia da Religio da Universidade Federal de Juiz de Fora, pela comisso formada

    pelos professores:

    Orientador: _______________________________________________________________

    Prof. Dr. Lus Henrique Dreher.

    Titular: ___________________________________________________________________

    Prof. Dr. Paulo Afonso Arajo.

    Presidente: ________________________________________________________________

    Prof. Dra. Acylene Maria Cabral Ferreira.

    Juiz de Fora, Setembro de 2004.

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    A S.S. Dhanvantari Swami Maharaj:

    querido mestre e fonte de contnua inspirao.

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    Com gratido e reconhecimento:

    A meus pais, Antnio e Marina, e aminha tia Eunice, por apostarem, com

    amor, em todos os meus sonhos.

    Aos velhos e novos amigos. Pela

    presena feliz de todos os momentos.

    No seria possvel listar todos aqui

    sem cometer a injustia de me

    esquecer de algum.

    A Lus Henrique Dreher, meu

    orientador, que suportou

    pacientemente as minhas demoras.

    A todos que me ensinaram os

    (des)caminhos da Filosofia.

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    Deus claro relmpago e tambm escuro nada

    Que nenhuma criatura v com sua prpria luz.

    Angelus Silesius.

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    Resumo.

    Buscamos neste trabalho pensar a temtica do Sagrado a partir do

    pensamento de Martin Heidegger (1889-1976) sobre os conceitos de verdade e

    linguagem. Esta busca nasce da intuio de que, no pensamento

    heideggeriano, Ser e Sagrado coincidam numa mesma experincia: aquela emque o mundo torna-se mundo pela fora da linguagem poeticamente

    compreendida. Esta experincia, levada a efeito primeiramente entre os

    gregos, abrange, alm de uma concepo peculiar da linguagem, uma outra

    concepo, no menos peculiar, da verdade. Segundo Heidegger, embora tal

    experincia remonte s origens do pensamento entre os gregos, ela no

    totalmente estranha poca moderna uma vez que, tanto agora como nas

    origens, ela (a experincia) tenha permanecido impensada. Nossa pesquisaobjetiva deixar vir tona esta experincia do pensamento em suas origens tal

    como este foi interpretado pelo filsofo alemo.

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    Abstract.

    This thesis is an attempt to think about the issue of the Holy (or the Sacred)

    based on Martin Heideggers (1889-1976) views on truth and language. Such

    an attempt has its source in the intuition that in Heideggers thought Being and

    the Holy (or the Sacred) converge on the experience that the world becomes

    world by the power of language poetically understood. This experience first

    made by the Greeks encompasses both a peculiar view of language and a not

    less peculiar view of truth. According to Heidegger, although this experience

    can be traced back to the very origins of thought among the Greeks, it is not

    entirely foreign to modern times. This is due, however, to the fact that today as

    well as in the origins it has remained unthought. Thus the goal of our research

    is to let come to the surface this experience of thinking in its origins in the way it

    has been interpreted by the German philosopher.

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    SUMRIO.

    Introduo ............................................................................................................. 10

    CaptuloI A essncia do Sagrado ......................................................................

    1. A essncia da modernidade ...............................................................................

    2. Desdivinizao e Niilismo ...................................................................................

    3. A verdade originria e a possibilidade da viragem .............................................

    4. Concluso ...........................................................................................................

    18

    Captulo IIVerdade e Sagrado na proximidade do originrio .............................

    1. A essncia do pensamento e os pensadores originrios ...................................

    2. A co-pertinncia essencial entre pensamento e Sagrado na proximidade da

    origem...................................................................................................................

    3. A verdade na proximidade da origem .................................................................

    4. Verdade e Sagrado: a Teogonia como onto-teo-fania cosmognica ..................

    - O mito das Musas .................................................................................................

    5. Concluso ...........................................................................................................

    43

    Captulo III O Sagrado como linguagem na proximidade da origem ..................

    1. Zeus e sua relao com o raio e o fogo nos fragmentos de Herclito ................

    71

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    2. Zeus e lgos: em busca do a-se-pensar no pensamento desde sua relao

    com o Sagrado ........................................................................................................

    3. A essncia pr-metafsica do lgos: colheita e linguagem originria .................

    4. Concluso ...........................................................................................................

    Concluso .............................................................................................................. 92

    Bibliografia ............................................................................................................ 100

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    INTRODUO.

    O alemo Martin Heidegger (1889-1976) um dos maiores filsofos, se no o

    maior, do sculo XX. E, muito embora sua polmica biografia ainda hoje suscite

    discusses, sua filosofia, marcada pela busca incessante pelo sentido do Ser,

    influenciou toda uma gerao de pensadores. De Heidegger e seu pensamento

    poderamos dizer, parafraseando o prprio filsofo, que todo grande pensador

    pensador de uma nica questo.1 Tal como um grande poeta, que sustenta

    todo seu dizer potico numa nica poesia, o grande pensador sustenta

    inteiramente seu pensar nesta nica e mesma questo. E Heidegger fez isso

    de maneira incomparvel. At o fim de seu labor filosfico a sua nica

    motivao era a de devolver vida o mistrio que ameaa desaparecer na

    modernidade.2 Um mistrio que, desde 1927 com a publicao de Ser e

    1 Todo poeta s poeta de uma nica poesia. A grandeza de um poeta se mede pelaintensidade com que est entregue a essa nica poesia a ponto de nela sustentar inteiramenteo seu dizer potico. Cf.HEIDEGGER, M. A linguagem na poesia. In: ______. A caminho da

    linguagem. Petrpolis: Vozes, 2003. p.27.2 SAFRANSKI, Rdiger. Heidegger. Um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. So Paulo:Gerao Editorial, 2000. p.17

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    Tempo, se anuncia como e se articula em torno , j referida, questo pelo

    sentido do Ser.

    Para Heidegger esta uma questo de mxima urgncia. O pensamento

    ocidental h muito se esqueceu dela. Na verdade, desde seus primrdios a

    histria do pensamento ocidental se fundamenta neste esquecimento. O Ser

    sempre o que se encontra pressuposto em toda atividade filosfica. Ele o

    conceito mais universal e evidente, alm de indefinvel, e, por isso mesmo,

    nunca colocado em questo. , pois, contra esta compreenso do universal e

    do evidente por si que Heidegger se posiciona em seu pensar. medida que a

    filosofia se fundamenta sobre o evidente ela avana, sem dvida. Mas neste

    avanar encontra-se implicado um afastamento progressivo do mistrio,

    daquele espanto originrio que moveu os primeiros pensadores. E neste seu

    avano progressivo a filosofia, ou metafsica, se desenvolver em cincia e

    tcnica na modernidade.

    Ser em sua anlise da modernidade que Heidegger melhor expor as

    razes deste afastamento das origens e seus efeitos concretos. Tendo a

    filosofia desde seus primrdios com Scrates, Plato e Aristteles partido em

    busca do fundamento ltimo de todas as coisas; e sendo a modernidade a

    culminao deste mesmo e nico processo do pensamento, ela (a

    modernidade) torna-se a poca da indigncia, da profunda carncia

    fundamento e sustentao. a poca sem deuses, poca na qual os homens

    perdem contato com sua prpria essncia mortal.3 A poca de maior

    3Ao falar sobre a modernidade Heidegger afirmar que este (...) tempo permanece indigente,no apenas porque Deus est morto, mas tambm porque os mortais j no conhecem nem

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    afastamento e esquecimento do originrio no pensar. A poca qual o prprio

    Heidegger se refere como a "noite do mundo.4 Noite de um dia que comea na

    madrugada originria do pensamento grego. Ser, pois, na distenso, na

    distncia entre a madrugada grega e a noite moderna que o pensamento de

    Heidegger revelar seu vigor. Um vigor que pode ser concentrado, mas no

    resumido, na expresso o sentido do Ser.

    Buscar pelo sentido do Ser. Posicionar-se contra o imprio do evidente

    por si. Resgatar o mistrio que corre o risco de desaparecer. Todas estas

    expresses so concordes em indicar o mesmo: Heidegger almeja por um novo

    princpio para a filosofia, uma nova madrugada que surja radiante da escurido

    da noite moderna. Seu pensamento quer ser, pois, uma preparao para este

    novo amanhecer no pensamento ocidental. Na distncia entre a primeira

    madrugada e a noite atual vigora o mesmo esquecimento, o mesmo velamento

    do Ser, que precisa agora ser pensado, auscultado, como nunca o foi at este

    momento. Pois nesta distncia e dilogo que:

    O primevo da madrugada do destino apareceria ento como

    primevo em relao ao derradeiro (schaton)5, isto em relao

    despedida do destino do ser at agora velado. O ser do ente

    rene-se (lgesthai, lgos)6 no extremo do seu destino. Aqueleque, at agora, tem sido o estar-a-ser [Wesen] do ser afunda-se

    na sua verdade ainda velada. A histria do ser rene-se neste

    adeus. A reunio neste adeus enquanto reunio (lgos)7 do mais

    dominam sua prpria mortalidade. Os mortais ainda no esto em posse de sua essncia. Cf.:HEIDEGGER, M. Para qu poetas? In: ______. Caminhos de Floresta. Lisboa: CalousteGulbenkian, 2002. p. 315.4 HEIDEGGER, M. Para qu poetas? In: op.cit. pg 309. Cf. nota 3.5

    Em caracteres gregos no original.6 Idem.7 Idem.

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    extremo (schaton)8 daquilo que tem sido, at aqui, o seu estar-a-

    ser [Wesen], a escatologia do ser. O ser ele prprio tem um

    destino, , em si prprio, escatolgico. (...) Se pensarmos a partir

    da escatologia do ser, ento, temos de esperar um dia primevo do

    que h-de vir e temos de aprender hoje a pensar o primevo a partirda.9

    Pensar o futuro, o h-de vir, a partir do primevo, e o primevo a partir do

    que h-de vir. O primevo, o passado, no est perdido para o presente. De fato

    ele aqui vigora na plenitude de suas possibilidades assumidas. A madrugada

    no se encontra irremediavelmente distante e separada da noite que a sucede.

    Antes a madrugada s madrugada desde sua relao com a noite escura que

    a sucede, e vice-versa. Na madrugada encontra-se, desde sempre, a

    possibilidade do anoitecer, e o anoitecer encontra-se prenhe da possibilidade

    de um novo amanhecer. No extremo da noite, em sua parte mais escura, inicia-

    se um novo dia. Da mesma forma, no extremo da noite, o dia anterior se

    concentra, se recolhe inteiro em seu prprio limite. Para Heidegger, com a

    modernidade o ocidente se aproxima da parte mais escura de seu dia que teve

    incio entre os gregos. Neste ponto extremo o pensamento deve voltar-se sobre

    si mesmo, recolhido no extremo de sua possibilidade a fim de que acontea o

    milagre de um novo amanhecer. E o filsofo alemo bem poderia ser o profeta

    deste novo amanhecer.

    Sua profecia, seu pensamento, caminha, no entanto, de mos dadas

    com a poesia. Isto porque Heidegger acredita que pensamento e poesia

    encontrem-se na proximidade de uma mesma experincia com o essencializar-

    8

    Idem.9 HEIDEGGER, M. O dito de Anaximandro. In: _______. Caminhos de Floresta. Lisboa:Fundao Calouste Gulbenkian. p. 378-379.

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    se (Wesen) do Ser do ente. Uma experincia que se ordena em torno de uma

    concepo especfica de linguagem entendida no como meio de expresso e

    comunicao de pensamentos e sentimentos humanos, mas como o prprio

    essencializar-se, o prprio tornar-se, do Ser do ente.

    desta proximidade que, em ltima anlise, tratar esta pesquisa. Seu

    ttulo Da Essncia do Sagrado: Um estudo a partir da compreenso de

    Verdade e Linguagem no pensamento de Martin Heidegger abre caminho

    para esclarecermos nossa convico de que ali onde pensamento e poesia

    encontram-se em maior proximidade, ou seja, na origem do pensamento

    ocidental, a experincia de Ser e Sagrado (embora estes no sejam ali

    explicitamente tematizados) anuncie o mesmo que, como ficar claro no

    desenvolver da pesquisa, se constitui para Heidegger como o um, o nico

    digno a-se-pensar.

    Ora, se verdade que a temtica do Ser do ente e do Sagrado

    coincidem numa mesma experincia originria a ponto de afirmarmos que

    pensamento e poesia encontrarem-se numa proximidade tambm originria,

    no deve ser menos verdadeiro afirmar que no ponto extremo do esquecimento

    do Ser do ente encontre-se simultaneamente o ponto extremo de afastamento

    do Sagrado. Por isso que nosso trabalho deve principiar por um diagnstico

    da poca moderna. No primeiro captulo, portanto, tentaremos situar a

    necessidade de se pensar sobre o Sagrado desde seu afastamento na poca

    moderna em sua indigncia. Neste esforo utilizaremos como guias alguns dos

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    textos de Heidegger, do perodo compreendido entre os anos 1935-1946, e que

    foram reunidos no volume Holzwege10da obra completa deste pensador.

    O captulo segundo, por sua vez se deter na considerao do

    fenmeno originrio da verdade e em sua co-pertinncia essencial com o

    Sagrado. Neste captulo, utilizaremos como base de nossa reflexo textos nos

    quais Heidegger se deter na interpretao do pensamento originrio de

    Herclito de feso, e isto por meio tanto dos fragmentos deste pensador

    quanto por meio de duas estrias sobre o mesmo. Tais estrias nos indicaro

    que ao pensamento de Herclito familiar a proximidade dos deuses. Esta

    familiaridade se configura como o modo prprio deste pensamento se

    processar. A partir disto, partiremos em busca de uma melhor compreenso do

    modo grego de lida com os seus deuses. Para tanto nos serviro os estudos

    que o professor Jaa Torrano faz do mito do mundo e do modo mtico de ser no

    mundo 11 a partir da Teogonia de Hesodo.12 Tais estudos nos possibilitaro

    um vislumbre de como, na poca do mito, entre os gregos pela primeira vez

    so experenciadas a verdade como ilatncia ou desvelamento (altheia) e a

    linguagem como uma fora numinosa (Musas).

    No captulo terceiro nos deteremos numa detalhada considerao sobre

    a presena do Sagrado, nomeado como Zeus, nos fragmentos de Herclito,

    como indicativo de que, na madrugada do pensamento, o Sagrado se constitui

    10 Na traduo portuguesa este volume foi intitulado Caminhos de floresta; e na francesa,Chemins qui ne mnent nulle part. Cf. Bibliografia.11 TORRANO, J. O sentido de Zeus. O mito do mundo e o modo mtico de ser no mundo. So

    Paulo: Iluminuras, 1996. Alm disso, ver tambm: ______. O mundo como funo de Musas.In: HESODO. Teogonia. A origem dos deuses. So Paulo: Iluminuras, 2003. p.11-102.12 HESODO. Teogonia. op.cit.. Cf. nota 11.

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    como a ambincia desde onde este pensamento se d pela primeira vez. Por

    outro lado pretendemos ainda demonstrar que esta presena do Sagrado na

    origem do pensamento se coloca mediante um modo especfico de

    compreenso da linguagem muito prximo quele descrito no captulo anterior

    e que foi experenciado pelos gregos no contexto especfico da revelao dos

    deuses.

    Esperamos que, a partir destas consideraes sobre a verdade e a

    linguagem, sempre tendo como base o pensamento de Martin Heidegger,

    possamos chegar a vislumbrar a coincidncia entre o Ser do ente e o Sagrado

    como aquilo desde onde as coisas vm a ser e se mantm sendo o que so.

    Ou seja, procuramos entender de que modo podemos novamente, desde

    aquela indigncia que caracteriza nossa poca, vir a pensar o mundo no

    como imagem de nosso representar objetivo, mas como totalidade todo-

    abarcante onde o homem se encontre novamente de posse de sua essncia

    mortal.

    Deliberadamente desconsideramos neste trabalho a possibilidade de

    uma delimitao cronolgica dos textos de Heidegger que serviro de base

    pesquisa. Consideramos aqui o pensamento de Heidegger como um todo que

    se estrutura em torno questo do Ser. No levamos em considerao nem

    mesmo a j clssica diviso da trajetria do autor em primeiro e segundo

    Heidegger. Assumimos esta postura porque entendemos que ela mais

    conforme o procedimento do prprio autor em questo no exerccio do seu

    pensar. Alm disso, almejamos que este trabalho se configure como um ensaio

    hermenutico, mais do que como um mapeamento da questo do Sagrado na

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    obra do autor. Portanto, confiantes que no crculo hermenutico, onde princpio

    e fim coincidem, no haja sentido se falar de algo como uma diviso em

    perodos de pensamento, preferimos que a escolha dos textos se pautasse

    pela possibilidade de que estes nos conduzissem mais seguramente

    consecuo de nosso objetivo: deixar vir tona a proximidade originria entre o

    Ser do ente e o Sagrado. Neste sentido, ainda devemos considerar que este

    ensaio no esgotar, certamente, o tema. Nem mesmo cobrir todo o

    pensamento de Heidegger, o que seria impossvel. Embora se estruture em

    torno de uma nica questo, este pensamento rico em nuances diversas que

    no caberiam no espao de uma dissertao de mestrado. E enquanto um

    ensaio todo o trabalho que aqui ser desenvolvido provisrio e cheio de

    incertezas. Tais provisoriedade e incerteza advm daquilo mesmo que posto

    em questo, a essncia do Sagrado em sua coincidncia com o essencializar-

    se do Ser do ente, o qual sempre refratrio a qualquer certeza e objetividade.

    Como diria o prprio Heidegger, os caminhos do pensamento se

    constituem antes de tudo como desvios. E isso no somente no sentido de que

    os caminhos do pensamento sejam caminhos mais abrangentes que os

    caminhos da cincia ou do senso comum. Os caminhos do pensamento so

    desvios (...) porque, com eles, apenas damos voltas em torno da coisa

    mesma 13, o Ser do ente em seu essencializar-se. Estes desvios so, em

    suma, caminhos de floresta: caminhos que, de repente, cessam, que nos

    conduzem at um ponto, no qual se interrompem e sem mais desaparecem.14

    13

    HEIDEGGER, M. Os conceitos fundamentais da metafsica. Mundo. Finitude. Solido. Rio deJaneiro: Forense Universitria, 2003. p. 10.14 Idem. Ibidem.

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    CAPTULO I

    AESSNCIA DO SAGRADO.

    A primeira parte do ttulo deste trabalho de pesquisa diz de nossa busca

    fundamental: a essncia do Sagrado. Isto significa que nossa busca pela

    essncia do Sagrado se configura como um questionar que poderia ser

    formulado da seguinte maneira: o que o Sagrado?Dito assim pode parecer

    que estejamos aqui em busca de uma definio do Sagrado, j que o lugar

    tradicional da verdade sobre a essncia de algo sua definio. Mas, ser que

    j no existem definies o suficiente do Sagrado em vigor em nossos dias eque precisemos partir em busca de ainda mais uma? Sim, este o caso. No

    entanto, no estamos aqui em busca de mais uma definio alm das j

    existentes. Para tornar claro o modo como compreendemos o que significa aqui

    buscar pela essncia do Sagrado e o que almejamos ao empreender uma tal

    busca, precisamos antes dizer de que maneira estamos compreendendo a

    palavra essncia.

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    Nossa busca pela essncia do Sagrado delimitada pela fonte desde

    onde essa busca se estabelece. Determinamos aqui que esta fonte seja o

    pensamento de Martin Heidegger. Especificamente consideramos como via de

    acesso questo da essncia do Sagrado o pensamento heideggeriano acerca

    dos conceitos de verdade e linguagem. Isso significa que devemos

    compreender no s os conceitos acima referidos no mbito do pensamento

    heideggeriano, como tambm a palavra essncia deve ser compreendida neste

    contexto.

    Para Heidegger a palavra essncia (Wesenem alemo) designa mais

    que o sentido filosfico tradicional indicado pelo termo qididade, essncia ou

    natureza intrnseca de uma coisa. Em sua origem etimolgica o termo alemo

    a substantivao do verbo wesen. Este verbo, em desuso na lngua alem

    moderna15, possui originariamente o sentido de ser, ficar, durar, acontecer,

    vigorar. Heidegger apropriando-se deste sentido originrio do verbo cunha o

    substantivo explicitamente verbal Wesung, que pode ser traduzido como

    essencializao. Assim, Wesen, a essncia, quando compreendida em sua

    relao com o sentido verbal, nos oferece o significado de, como diria

    Emmanuel Carneiro Leo, estrutura em que vigora, isto , a estrutura em que

    algo desenvolve a fra (sic) de seu vigor, o agir.16 Deste modo poderamos

    dizer que ao buscarmos aqui a essncia do Sagrado desde o pensamento de

    15 Sobre o uso do verbo wesenna lngua alem moderna o Dicionrio Heidegger, de MichaelInwood, no verbete essncia diz que: O verbo wesen (...) origina o particpio passado,gewesen, de sein, ser, e sobrevive em compostos como: anwesend, (presente) e abwesend(ausente). Cf: INWOOD, M. Dicionrio Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.

    p. 54.16 CARNEIRO LEO, Emmanuel. Nota de rodap. In: HEIDEGGER, M. Sobre o Humanismo.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995. p. 23.

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    Heidegger, estamos buscando pelo essencializar do Sagrado, pelo seu

    acontecer, sua manifestao. Ao buscarmos pela essncia do Sagrado por

    sua Wesungque buscamos. Ou seja, buscamos algo como uma experincia

    pensante com o Sagrado em seu essencializar-se. Ora, para Heidegger:

    Fazer a experincia de alguma coisa significa: a caminho, num

    caminho, alcanar alguma coisa. Fazer uma experincia com

    alguma coisa significa que, para alcanarmos o que conseguimos

    alcanar quando estamos a caminho, preciso que isso nos

    alcance e nos comova, que nos venha ao encontro e nos tome,

    transformando-nos em sua direo.17

    Assim, nossa busca se configura no como a busca por uma definio do

    conceito de Sagrado, mas antes o que almejamos ser atingidos pelo

    Sagrado, tomados por ele numa experincia pensante permitindo que ele nos

    sobrevenha como um acontecimento.

    Mas, desde onde uma tal busca e questionamento se colocam como

    possveis e necessrios? Segundo Martin Heidegger o autor que tomamos

    como guia em nosso questionar todo questionamento uma procura18 e

    toda procura retira do procurado sua direo prvia19. Assim sendo, nossa

    procura pela essncia do Sagrado retira do prprio Sagrado seu prvio

    direcionamento. Esta constatao pode nos levar a crer que nossa tarefa aqui

    se torna facilmente exeqvel, uma vez que muito j foi dito sobre Sagrado no

    mbito daquilo que se convencionou chamar de Cincia da Religio. Da

    17 HEIDEGGER, M. A essncia da linguagem. A caminho da linguagem. Petrpolis: Vozes,

    2003. p.137.18 HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrpolis: Vozes, 1997. p. 30.19 Idem. Ibidem.

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    21

    mesma forma muito j foi dito sobre o Sagrado no pensamento de Heidegger.

    Tudo isso, talvez, nos tornasse mais acessvel o tema, mas to logo pensemos

    mais detidamente sobre a questo essa acessibilidade se mostra apenas

    aparente. Pois, se verdade que todo questionamento umaprocura, no

    menos verdade que toda procura uma busca pelo ausente. Somente o que se

    encontra ausente pode vir a ser buscado num questionamento, pois somente o

    ausente pode conceder o distanciamento necessrio para se constituir como

    procurado. Heidegger acena para isto no ensaio A essncia do niilismo(1946-

    1948) ao afirmar:

    Procurar significa aproximar-se de algo para encontr-lo: para

    encontrar o anteriormente ausente enquanto um presente, para

    ach-lo. Para encontrar algo ou, pelo menos, para experimentar

    desde seu fundamento a impossibilidade do encontro, toda

    procura tem de adentrar a dimenso essencial, no interior da qual

    o procurado, se esse o caso, pode vir ao encontro enquanto

    descoberta.20

    No mbito prprio de nossa pesquisa o procurado o Sagrado em sua

    essncia, ele este algo do qual tentamos nos aproximar para encontr-lo.

    este o anteriormente ausente que queremos encontrar enquanto um

    presente. Por isso, queremos aqui adentrar a dimenso essencial do

    Sagrado, no interior da qual o procurado, se esse o caso, pode vir ao

    (nosso) encontro enquanto descoberta.

    Mas, o que significa dizer aqui que o Sagrado, enquanto nosso

    procurado, o anteriormente ausente? Mais ainda, o que significa afirmar que

    20 Idem. A essncia do niilismo. In:______. Nietzsche, Metafsica e Niilismo. Rio de Janeiro:Relume Dumar, 2000. p. 211.

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    buscamos encontrar o Sagrado (o anteriormente ausente) enquanto um

    presente? Segundo compreendemos o nosso questionar procurando pelo

    Sagrado faz com que este se torne de algum modo presente. Podemos arriscar

    dizer que o nosso questionar que o torna, enfim, de alguma forma, presente.

    Contudo, uma tal presena , em si mesma, muito distinta daquela outra, no

    tempo em que o Sagrado no se fazia ainda sentir como ausncia. Em sua

    primeira presena vamos chamar assim o Sagrado no era colocado em

    questo. Houve um tempo diferente do nosso tempo em que o Sagrado no

    havia se convertido em objeto do pensar; no porque no fosse digno de tanto,

    mas porque nesse tempo o pensar ainda no admitia para si a frmula sujeito

    versus objeto. Somente em nosso tempo, a poca moderna, acontece ao

    pensamento algo como a oposio sujeito versus objeto. E, to logo um

    pensamento assim se torna possvel, o Sagrado em sua essncia torna-se

    ausente do mundo e pode converter-se em objeto de uma investigao

    cientfica. Portanto, se o Sagrado se nos apresenta como o anteriormente

    ausente enquanto um presente que deve ser encontrado, nessa perspectiva

    (moderna) que se apresenta.

    Porm, este apresentar-se como objeto ao pensamento deve para ns

    aqui se constituir enquanto a nica via de acesso dimenso essencial do

    Sagrado. Um tal acesso em direo quilo que mais propriamente o Sagrado

    em seu per-fazer-se. Caminhar por esta via de acesso pode, enfim, preparar-

    nos para um retorno do Sagrado ao mundo, no mais como um objeto de

    nosso pensar, mas em seu essencializar-se mais prprio. E com o retorno do

    Sagrado, talvez, retornem tambm os deuses, de cuja divindade o Sagrado se

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    configura como vestgio. Assim, a busca pela essncia do Sagrado, tal como a

    propomos a partir do pensamento de Heidegger, se coloca como um exerccio

    preparatrio para um novo advento do Sagrado ao mundo. Neste sentido, todo

    este trabalho, fazendo eco ao pensamento do prprio filsofo alemo,

    posiciona-se ao modo de uma propedutica possvel mas no certeira re-

    habitao do mundo pelo Sagrado.21

    Tendo em vista o que foi dito acima, e traado nosso objetivo, faremos o

    esforo de, neste captulo, primeiramente colocar as bases da compreenso

    heideggeriana da modernidade e de como, no seio de tal poca, encontra-se o

    fenmeno da desdivinizao e o conseqente afastamento do Sagrado e sua

    transformao em um objeto de uma cincia especfica: a Cincia da Religio.

    Em seguida veremos como a partir deste acontecimento da modernidade

    chega-se ao niilismocomo fundamento da essncia da modernidade e como

    esse fenmeno , simultaneamente, a consumao do esprito da poca

    moderna e a via de acesso para o retorno do Sagrado. Por fim, indicaremos os

    caminhos para se pensar o Nada essencial do niilismoa partir da diferena

    ontolgica em direo ao conceito heideggeriano de verdade, que ser tratado

    extensivamente no prximo captulo.

    1. AESSNCIA DA MODERNIDADE.

    Queremos pistas ou indicaes sobre a direo que devemos tomar em nossa

    investigao (busca) pelo (re)encontro do Sagrado em sua essncia. Para

    21 Conforme dissemos anteriormente (vide: Introduo, p.10) a provisoriedade e a incerteza quecaracterizam esta investigao se devem natureza mesma daquilo que aqui se investiga.

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    tanto se faz necessrio compreender de que forma torna-se o Sagrado ausente

    em nossa poca. Ora, se quisermos compreender isto precisamos,

    primeiramente, compreender o que caracteriza essencialmente a poca

    Moderna para, em seguida, podermos vir a considerar em que medida esta

    ausncia pode ser considerada um fenmeno moderno.

    Para Heidegger a histria do Ocidente no seio da qual floresce a

    Modernidade , ela mesma a histria do desenvolvimento da metafsica. Ela

    tem sua origem com a primeira pergunta pelo Ser do ente feita na aurora do

    pensamento grego. Contudo, essa histria marcada pelo esquecimento deste

    mesmo Ser. A pergunta pelo Ser do ente sempre tomou o Ser como aquilo que

    era o mais evidente em todo pensamento, e nunca se questionou acerca do

    seu sentido. Esse esquecimento provoca em seu pleno desenvolvimento, no

    pleno desenvolvimento da metafsica ao longo de sua histria, o fim da filosofia,

    o acabamento de todas as suas possibilidades. Todo pensamento de

    Heidegger ir apontar na direo de elaborar a tarefa do pensamento no fim da

    Filosofia.22 Por isso o pensamento heideggeriano, a partir da elaborao da

    ontologia fundamental em Ser e Tempo (1927), ter sempre como objetivo

    tornar o mais compreensvel essa tarefa fundamental do pensamento. Ainda

    que, como o pensador mesmo sempre repetia, de modo provisrio.

    na modernidade que, segundo Heidegger, a metafsica atinge a

    plenitude de suas possibilidades. Essa plenitude , ao que parece,

    simultaneamente a verdadeira indigncia da era moderna. Indigncia porque

    22 Cf. HEIDEGGER, M. O fim da Filosofia e a tarefa do pensamento. In: ______. Conferncias eescritos filosficos. Col. Os Pensadores. So Paulo: Nova Cultural, 1999. p.89-108.

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    no auge de seu desenvolvimento a metafsica se transforma na cincia

    moderna, na tcnica e na tecnologia. Enquanto tal a metafsica se v

    fragmentada nas diversas cincias nticas que se ocupam de regies

    especficas de entes. Indigncia porque nessa fragmentao oculta-se um dos

    fenmenos fundamentais da modernidade: a desdivinizao. Mais do que uma

    simples referncia ao atesmo moderno e suas ramificaes, o conceito de

    desdivinizao aponta, ao que nos parece, para o fenmeno do niilismo

    compreendido como o fundamento da essncia da modernidade.

    A fim de chegarmos a pensar de que maneira o niilismopode vir a se

    constituir como o fundamento da essncia da modernidade, ns analisaremos

    aqui, luz de outros textos de Heidegger, um texto onde o prprio autor busca

    determinar uma tal essncia a partir da anlise de um dos fenmenos que

    melhor caracterizam a poca Moderna: a cincia. Esse texto, intitulado O

    tempo da imagem do mundo (1938), publicado como parte integrante dos

    Holzwege(volume que foi publicado em 1949 e contm textos heideggerianos

    do perodo 1935-1946), pretende estabelecer a modernidade como o tempo em

    que o mundo se transforma em imagem a partir da capacidade representativa

    adquirida pelo homem.

    O texto comea com Heidegger propondo cinco fenmenos essenciais

    da modernidade: em primeiro lugar encontra-se a cincia moderna, seguida

    imediatamente da tcnica de mquinas. Em terceiro vem o deslocamento da

    arte para o mbito da esttica, enquanto o quarto, intimamente ligado ao

    anterior, diz que o fazer humano na modernidade passa a ser concebido e

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    cumprido como cultura. Por fim, e no menos importante para ns, encontra-se

    o fenmeno da desdivinizao, caracterizado como o estado de ausncia de

    deciso sobre o deus e os deuses.23 Embora todos os cinco fenmenos sejam

    aspectos essenciais da modernidade, Heidegger, neste texto, se restringir

    anlise do primeiro, a cincia, alegando que a compreenso de apenas um

    desses fenmenos pode nos levar ao encontro procurada essncia da

    modernidade. O texto, ento, segue a partir de agora nessa direo: a essncia

    da modernidade se nos abrir pela compreenso da essncia da cincia

    moderna.

    Qual , pois a essncia da cincia moderna? ir se perguntar

    Heidegger. A resposta simples e objetiva aparece na palavra investigao.

    Diferentemente da epistmegrega e da scientiamedieval, a cincia moderna

    investigativa. Mas em que consiste, pois, a essncia da investigao? A

    resposta a essa questo divide-se ao longo do texto em trs partes: a essncia

    da investigao composta pelo rigor e o projeto24, que garantem cincia,

    seja ela natural ou histrica (humana), seu carter de avano progressivo (por

    meio do projeto) e seu rigor especfico (que aqui no deve ser confundido com

    a exatido das cincias naturais matemticas, uma vez que s cincias do

    23 Idem. O tempo da imagem do mundo. In: ______. Caminhos de Floresta. Lisboa: FundaoCalouste Kulbenkian, 2002. p. 97-98.24 preciso compreender o que aqui se quer indicar com a palavra projeto. O termo alemo,usado por Heidegger, Entwurf. Em sua raiz este vocbulo possui ligao com o verboentwerfen, o qual sugere um lanar (werfen), jogar fora (ent-), tirar. Muito embora, emportugus, possa-se compreender o projeto como a designao de um plano, esboo ourascunho, Heidegger entende que um Entwurf a condio prvia a todo planejamento. assim, pois com o Dasein que deve projetar um mundo e possuir uma compreenso pr-ontolgica do Ser como condio prvia a toda lida com os entes intramundanos. De formasemelhante, no uso especfico que tem aqui, o projeto designa tudo aquilo que previamente seconstitui como carcterstico da cincia moderna: sua comprenso do que o ente, do que

    experincia, da verdade, etc. Por meio de uma correspondncia rigorosa quilo que constituiseu projeto a cincia moderna obtm seu progresso. Cf. INWOOD, M. op.cit.Verbete: projeoe a priori. p.151s. Cf. nota 15.

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    esprito cabe um rigor prprio marcado pela no-exatido); em seguida a

    investigao marcada pelo procedimento, que se configura especialmente

    nos experimentos levados a efeito em funo do estabelecimento, ou

    edificao, de leis e de sua verificao e comprovao; e, por ltimo, pela

    empresa, ou o estabelecimento da autoridade da cincia em bases

    institucionais e que marcada essencialmente pela crescente especializao

    das cincias particulares no seio da cincia e pela transferncia do

    investigador para o mbito da tcnica; e no mais da erudio. Nisto se resume

    a essncia da cincia moderna enquanto investigao. Como diz o prprio

    autor:

    A cincia moderna funda-se e singulariza-se, ao mesmo tempo,

    nos projectos de determinadas reas objectuais. Estes projectos

    desenrolam-se no procedimento correspondente, assegurado

    atravs do rigor. O procedimento respectivo institui-se na

    empresa. Projecto e rigor, procedimento e empresa, exigindo-se

    mutuamente, constituem a essncia da cincia moderna,

    tornando-se investigao.25

    Depois de estabelecer qual seja a essncia do fenmeno fundamental

    da modernidade, Heidegger passa a questionar qual seja o fundamento

    metafsico da modernidade. Ou seja: qual a concepo de ente e qual conceito

    de verdade fundamentam a cincia como investigao? Segundo Heidegger a

    cincia enquanto conhecer investigativo do ente, a este pede contas acerca de

    como e em que medida ele pode ser tornado disponvel para o representar.26

    O que significa que o conhecer na modernidade, enquanto manifesto na

    investigao, deseja estabelecer e dispor do ente enquanto aquilo que pode

    25 HEIDEGGER, M. O tempo da imagem do mundo. op.cit. p.109. Cf. nota 23.26 Idem. Ibidem.

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    ser calculado no seu curso futuro, pelas cincias naturais, e aquilo que pode

    ser conferido enquanto passado, pelas cincias histricas. O ente assim

    calculado e conferido torna-se objetodo representar que explica quer o ente

    isoladamente quer em sua totalidade. A tal ponto que s , s vale como

    sendo, aquilo que deste modo se torna objecto.27 Mas o que a representao

    que se encontra como fundamento desta objetivao do ente? Em alemo re-

    presentar diz-se Vor-stellen, colocar diante, frente, como aquilo que tem

    como objectivo trazer para diante de si qualquer ente, de tal modo que o

    homem calculador possa estar seguro do ente, isto , possa estar certo do

    ente, pois s se chega cincia como investigao se, e apenas se, a

    verdade se transforma em certeza do representar.28

    Segundo Heidegger isso se d pela primeira vez na histria da

    Metafsica com o pensamento de Descartes. no pensamento cartesiano que

    o ente pela primeira vez determinado como objetividade do representar e que

    a verdade determinada como certeza desse representar. No aditamento (4)29

    conferncia em anlise, Heidegger ir afirmar que com Descartes comea o

    acabamento da Metafsica, sua consumao final e que, pela primeira vez,

    poder-se- falar, a partir da interpretao cartesiana do ente e da verdade, de

    uma teoria ou metafsica do conhecimento. Isso porque o pensamento de

    Descartes ser o primeiro a transformar o homem essencialmente em sujeito,

    27 Idem. Ibidem.28 Idem. Ibidem. p. 109-110.29 Segundo as referncias publicadas pelo prprio filsofo no fim do volume dos Holzwege, osaditamentos foram escritos ao mesmo tempo em que a conferncia, embora no tenham sido

    apresentados juntamente com ela. No entanto, esses aditamentos trazem excelentescontribuies para a ampliao e aprofundamento das discusses levadas a efeito pelo autorno corpo da conferncia, como no caso acima.

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    subjectum30, o subjacente que, enquanto fundamento, rene tudo sobre si.31

    Com isso torna-se o homem o centro de referncia do ente enquanto tal. E

    dessa forma o ente transforma-se em objeto do conhecimento. Muda-se, com

    isso, a concepo do mundo, do ente em sua totalidade.

    Ao ente em sua totalidade chama Heidegger j desde Ser e Tempo

    (1927) o mundo. Neste tratado o conceito mundo desenvolvido a partir da

    concepo de mundo circundante que concentra, na trilha do pensamento

    aberto na busca pelo sentido do Ser, a atitude do Dasein que desde a sua

    abertura acolhe o ente em sua totalidade desde uma dis-posio. A partir da

    entende-se como cada poca ou era histrica, desde uma dis-posioque lhe

    caracterstica, lida com o mundo. Seguindo esse raciocnio e levando-o de

    encontro com o que foi dito at aqui sobre a conferncia O tempo da imagem

    do mundo, depreende-se que na modernidade a dis-posio fundamental

    aquela descrita como representao, a qual caracteriza a essncia da cincia

    moderna como investigao. E desde essa dis-posio fundamental da re-

    presentao que tudo pe diante do homem como um objeto que o mundo

    torna-se imagem. Como diz o prprio Heidegger:

    O ente na totalidade agora tomado de tal modo que apenas e s

    algo que , na medida em que posto pelo homem

    representador-elaborador. Onde se chega imagem do mundo,

    cumpre-se uma deciso essencial sobre o ente na totalidade. O

    30Descartes cria, com a interpretao do homem como subjectum, o pressuposto metafsicopara a antropologia futura, seja de que tipo for. (...) Atravs da antropologia, introduzida apassagem da metafsica para o processo do mero terminar e abandonar de toda a filosofia.

    Cf.: HEIDEGGER, M. O tempo da imagem do mundo. op.cit. Aditamento (4). p. 123. Cf. nota23.31 Idem. Ibidem. p. 111.

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    ser do ente procurado no estar-representado [Vorgestelltheit] do

    ente.32

    Assim, ao tornar o mundo em imagem, o homem enquanto sujeito o tem

    em poder re-presentativo e pode descrev-lo ou explic-lo, na medida em que

    o mundo torna-se objeto. Nesse mbito essencial da modernidade desenvolve-

    se a cincia como investigao nas mais variadas formas a partir da

    segmentao da imagem do mundo em regies nticas. Que o mundo se

    torne imagem e que o homem, dentro do ente, se torne subjectum, um e o

    mesmo processo.33 Nesse duplo processo desenvolve-se a interpretao

    antropolgica do mundo, onde a posio humana no meio do ente torna-se

    mundividncia, como intuio da vida. Tudo isso aponta, como j dito

    anteriormente34 para o fim da filosofia na modernidade e a sua substituio

    pela antropologia como explicao plausvel da estadia humana no mundo.

    Tudo se transforma, em sentido lato, em antropologia, porque, de uma forma

    mais radical do que entre os sofistas gregos, o homem transforma-se na

    medida de todas as coisas. O homem transforma-se em sujeito. Desta maneira

    fica estabelecido que a metafsica moderna tem uma viso sobre a essncia do

    ente como objeto; que o ente em sua totalidade visto como imagem

    representvel por um sujeito (o homem); e que a essncia da verdade

    caracterizada como a certeza do representar.

    No entanto, em que esta anlise da essncia da modernidade a partir do

    fenmeno da cincia moderna nos auxilia em nossa busca pela essncia do

    32

    Idem. Ibidem. p.112-113.33 Idem. Ibidem. p.115.34 Cf. nota 30.

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    Sagrado? Para responder a isso devemos nos deter naquilo que foi proposto

    por Heidegger como o quinto fenmeno da modernidade no incio da

    conferncia. Precisamos analisar o fenmeno da desdivinizaocomo algo que

    se encaixa perfeitamente na essncia da modernidade. Para isso se faz

    necessrio entendermos primeiramente o que Heidegger quer dizer com o

    termo desdivinizao.

    2. DESDIVINIZAOENIILISMO.

    Heidegger afirma que desdivinizaono diz respeito to somente simples

    eliminao dos deuses, o atesmo grosseiro. Ao contrrio:

    A desdivinizao o dplice processo de, por um lado, a imagem

    do mundo se cristianizar, na medida em que o fundamento do

    mundo estabelecido como o infinito, o incondicionado, oabsoluto, e, por outro lado, o cristianismo transformar a sua

    cristianidade numa mundividncia (a mundividncia crist) e, deste

    modo, se modernizar. A desdivinizao o estado de ausncia

    deciso sobre o deus ou os deuses. Ao cristianismo cabe a maior

    parte no seu despontar. Mas a desdivinizao no s no exclui a

    religiosidade, como at s atravs dela que a relao aos

    deuses se transforma em vivncia religiosa. Ao chegar-se aqui,

    porque os deuses fugiram. O vazio que surgiu substitudo pela

    investigao historiogrfica e psicolgica do mito.35

    Alguns elementos devem aqui ser destacados. Heidegger afirma que o

    processo de desdivinizao na modernidade comea e tem grande parte de

    seu desenvolvimento devido mundividncia crist por um duplo processo, a

    saber: a imagem do mundo cristianizada com o estabelecimento do

    35 HEIDEGGER, M. O tempo da imagem do mundo. op.cit. p. 98. Cf. nota 23.

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    fundamento do mundo como sendo o infinito, o incondicionado e o absoluto.

    Enquanto, por outro lado, a cristianidade do cristianismo se converte em

    mundividncia e assim se moderniza. O que isso significa? Ora, parece-nos

    que Heidegger faz uma referncia aqui ao fato de no incio da modernidade o

    pensamento cartesiano, ao fundamentar e condicionar toda a veracidade da

    existncia do mundo no argumento ontolgico, como que cristianiza a imagem

    do mundo colocando-o sobre um fundamento infinito, incondicionado e

    absoluto. Simultaneamente, toda a cristianidade do cristianismo medieval

    converte-se em mundividncia, para fazer parte da modernidade. Ora, no incio

    desse processo, com Descartes, o deus cristo se torna um artifcio racional

    para garantir a veracidade da existncia do mundo, para em seguida, com o

    desenvolvimento da histria da metafsica moderna, com Nietzsche chegar-se

    ao anncio de sua morte. Por isso, na modernidade, o mito torna-se, tambm

    ele, objeto da anlise historiogrfica e psicolgica. Ento, a vivncia religiosa

    na modernidade passa a expressar sobremaneira a fuga dos deuses e do deus

    cristo e transforma-se em religiosidade. Fogem os deuses e surge o vazio. O

    lugar metafsico ocupado por eles fica vazio. E o mundo fica na indigncia da

    falta de um fundamento.

    Esse mesmo tema parece haver sido tratado pelo filsofo na conferncia

    Para qu poetas?(1946), ao afirmar que a modernidade tempo indigente, o

    tempo da noite do mundo, que se caracteriza pela ausncia de Deus, pela

    falta de Deus.36 E pode-se ler tambm nessa conferncia o que acabamos de

    afirmar acima:

    36 Idem. Para qu poetas? In: ______. op.cit. p. 309. Cf. nota 3.

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    A falta de Deus significa que j no existe um Deus que rene em

    si, visvel e univocamente, as pessoas e as coisas e que, com

    base nessa reunio, articule a histria do mundo e a estncia

    humana nessa histria. A falta de Deus anuncia, porm, algo de

    muito pior. No s se foram os deuses e Deus, como tambm se

    apagou na histria do mundo o fulgor da divindade. (...) Com esta

    falta, fica fora do mundo o fundo como aquilo que fundamenta.37

    Ora, a ausncia de deus anuncia que se apagou na histria o fulgor da

    divindade da qual o sagrado vestgio. Vestgio este que, com o avano da

    noite do mundo em direo sua meia-noite a sua hora mais escura vai-se

    tambm perdendo enquanto aquilo que conduz divindade, e mais, se vo

    tambm extinguindo os vestgios deste vestgio perdido38. Assim, a ausncia

    de fundamento, provocada pela ausncia de Deus ou por sua fuga, coloca o

    mundo suspenso sobre o sem fundo, sobre o abismo.

    Poderamos dizer, sobre o Nada? Cremos que sim, pois nos parece que

    o mesmo fenmeno que aqui aparece sob o nome desdivinizao ou fuga

    dos deuses e de Deus, aparece j em Nietzsche como o anncio da morte de

    Deus. Em sua Gaia Cincia (1882) no fragmento nmero 125, intitulado O

    homem louco, Nietzsche depois de fazer o anncio da morte de Deus e de

    denunciar seus executores, coloca na boca de seu personagem uma srie de

    perguntas que surgem desde a constatao desse fato:

    Ns o matamos vocs e eu. Somos todos seus assassinos! Mas

    como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o

    mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que

    37 Idem. Ibidem. p. 309.38 Idem. Ibidem. p. 313.

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    fizemos ns, ao desatar a terra de seu sol? Para onde se move ela

    agora? Para onde nos movemos ns? No camos

    continuamente? Para trs, para os lados, para frente, em todas as

    direes? Existem ainda em cima e embaixo? No vagamos

    como que atravs de um nada infinito? No sentimos na pele osopro do vcuo? No se tornou ele mais frio? No anoitece

    eternamente? No temos que acender lanternas de manh? No

    ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? No sentimos o

    cheiro da putrefao divina? tambm os deuses apodrecem!

    Deus est morto!39

    No vagamos como que atravs de um nada infinito? pergunta-se o

    pensador. No seria essa mesma questo que faz Heidegger suscitar o tema

    da desdivinizao? No tratadoA palavra de Nietzsche Deus morreu(1943) e

    no ensaio A essncia do niilismo (1946-1948) Heidegger ir comentar esse

    mesmo fragmento de Nietzsche em busca de uma possibilidade de pensar a

    essncia do niilismo. Ao que nos parece, o tema do niilismo aparece para

    Heidegger no mesmo horizonte em que aparece o tema da essncia da

    modernidade, uma vez que, enquanto fenmeno que ganha notoriedade na

    modernidade, o niilismo encontra-se intimamente vinculado ao movimento

    histrico da metafsica. quase como que sua conseqncia natural porque,

    segundo Heidegger, o niilismo movimenta a histria segundo o modo de um

    processo fundamental que quase no reconhecido no destino dos povos

    ocidentais.40 Portanto, a falta de deus ou de deuses indica que nosso mundo

    ficou sem seu fundamento, e sem um tal fundamento nosso mundo suspende-

    se sobre o abismo. Assim, o fenmeno da desdivinizao, ou da fuga dos

    39

    NIETZSCHE, F. A Gaia Cincia. So Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.147-148.40HEIDEGGER, M. A palavra de Nietzsche Deus morreu. In: ______. Caminhos de Floresta.Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2002.p.252.

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    deuses e a morte do Deus moral cristo41, define a indigncia da era moderna

    como a carncia de fundamento. Ou seja, a era moderna pende sobre o Nada.

    Em Para qu poetas? Heidegger se coloca a questo sobre uma

    possvel viragem42 em tal situao de indigncia. Tal viragem, supondo que

    seja mesmo possvel, apenas poder surgir, segundo ele, se o mundo virar a

    partir do prprio abismo em que se encontra. Isso significa que uma tal viragem

    no se torna possvel a partir do renascimento do Deus cristo ou da sada de

    um esconderijo de um velho deus, ou pelo advento de um novo deus. Significa,

    segundo cremos, que a modernidade s poder promover sua prpria viragem

    se se detiver no pensamento sobre aquilo que para ns ainda permanece o

    impensado: do fundamento de sua essncia. preciso que a modernidade se

    detenha no pensamento sobre o Nada. Somente a partir disso poder-se-

    estabelecer a viragem do mundo desde o abismo, e o Sagrado, talvez, assim

    novamente o venha habitar. Mas como pensar o Nada?

    3. A VERDADE ORIGINRIA E A POSSIBILIDADE DA VIRAGEM.

    Um caminho para a resposta questo acima parece encontrar-se no

    aditamento (14) da conferncia O tempo da imagem do mundo. Vejamos:

    41 NUNES, B. Do primeiro ao ltimo comeo. In: ______. Crivo de papel. So Paulo: tica,1998. p.57.42O termo viragem aqui tem um sentido bem preciso, a saber: possibilidade de que no seiomesmo da modernidade, enquanto a poca mxima do esquecimento do Ser, possa vir a serexperimentada a proximidade da verdade do Ser, tal como aconteceu na origem dopensamento. Isso, contudo, no significa que a poca moderna necessite de algo como umretorno nostlgico poca da origem do pensamento. A viragem aqui significa descobrir esta

    proximidade do Ser nas possibilidades mesmas da modernidade. O retorno poca da origem, ao que parece, uma forma de, no dilogo com esta poca distante, adquirir propriedade doque realmente significa in totoa poca moderna e sua essncia.

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    O nada nunca nada, muito menos algo no sentido de um

    objecto; o ser mesmo a cuja verdade o homem entregue

    quando se superou como sujeito, isto , quando j no representa

    o ente como objecto.43

    O Nada no o nihil negativum, pura e simplesmente dado. Tambm no

    uma coisa, um objeto. Nada e Ser aqui coincidem. Mas coincidem na verdade

    do Ser qual entregue o homem que se superou como sujeito. O que isso

    pode significar alm do fato de que no pensamento sobre a verdade do Ser j

    se encontra um indcio para a reflexo sobre o Nada? O homem que se supera

    como sujeito o homem que se pergunta pela prvia condio desde onde ele

    mesmo se pe como sujeito. Nesse sentido a viragem, como foi dito acima, s

    pode ser possvel no assumir a prpria condio de sujeito e ir em direo

    sua essncia. Pensar essa essncia do sujeito, a sua condio de

    possibilidade, foi o que Heidegger levou a efeito em sua analtica existencial na

    obra de 1927. Essa reflexo sobre o Dasein, o existente, o levou em direo

    reviso do conceito de verdade e busca do sentido originrio da palavra

    (linguagem). Nossa hiptese que nesse pensamento sobre a essncia da

    verdade, em sua reviso, e na busca do sentido originrio da linguagem,

    encontra-se a possibilidade de um pensamento sobre o Nada bem como a

    possibilidade de viragem que resta modernidade em meio sua indigncia.

    Mas como uma tal viragem tornar-se- possvel? Na conferncia Sobre a

    essncia da verdade (1943)44 Heidegger a partir do resgate etimolgico da

    palavra grega altheia como des-velamento ir dar o direcionamento para a

    43 HEIDEGGER, M. O tempo da imagem do mundo. In: ______. op.cit.,p.138. Cf. nota 23.44

    Idem. Sobre a essncia da verdade. In: ______. Conferncias e escritos filosficos. Col. OsPensadores. So Paulo: Nova Cultural, 1999. p.149-183.

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    resposta a essa questo. Para o autor a palavra abriga um duplo sentido. Por

    um lado a palavra a-ltheiadiz de um no-velamento, um no-esquecimento;

    graas ao prefixo negativo colocado junto a lthe, que quer dizer

    esquecimento. Por outro lado, o prefixo negativo no privativo no sentido de

    que altheiaexclua inteiramente de si o esquecimento. Ao contrrio, lthe, o

    esquecimento, o encobrimento, parte essencial da verdade como altheia. A

    verdade, originariamente compreendida, para Heidegger diz desse des-

    encobrimento e encobrimento simultneos. Mas o que se encontra em jogo

    nessa simultaneidade? O que na verdade se des-encobre e encobre seno o

    Ser? Heidegger nomeia essa verdade originria como sendo a verdade do Ser.

    No porque ela trate do Ser em algum tipo de discurso demonstrativo, mas

    porque no seu movimento des-velamento/velamento o Ser que se mostra e

    se oculta a cada vez.

    No aditamento (15) de O tempo da imagem do mundo, Heidegger dir

    que o Dasein, o ser-a, ele mesmo o mbito exsttico (sic) do

    desencobrimento e encobrimento do ser.45 O homem, o existente, o mbito

    ex-sttico da verdade do Ser. Em outras palavras, ele o entre, o nico ente

    que sendo coloca em questo seu prprio ser, e, por isso, o ente que pertence

    ao ser e, no entanto, permanece um estranho no ente 46 em sua totalidade.

    Por isso ao homem dada a chance nica de se deter junto ao impensado

    numa meditao genuna, que se demora junto ao Ser. Uma tal meditao para

    Heidegger o que possibilita a superao do pensamento metafsico. Uma

    superao que, ao contrrio de destruir, prope um retorno sobre a histria

    45 Idem. O tempo da imagem do mundo. In: ______. op.cit. p.138. Cf. nota 23.46 Idem. Ibidem. p.119.

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    mesma da Metafsica ou do pensamento ocidental. Essa histria tem seu

    marco inicial com Scrates, Plato e Aristteles. Os pensadores anteriores a

    estes so chamados por Heidegger de pr-metafsicos, ou simplesmente,

    pensadores originrios porque se encontravam na proximidade da verdade e

    da linguagem originrias. Ainda que no a tenham tematizado. Nesses

    pensadores o Ser ainda se revelava na proximidade dos deuses atravs da

    phsis, a natureza entendida no como o conjunto dos entes naturais, mas

    como ecloso de sentido.

    Ao falar sobre esse retorno sobre a histria da metafsica at suas fontes

    originrias pode parecer que estamos afirmando que Heidegger prope para a

    viragem da modernidade um retorno nostlgico a um tal perodo, como se na

    poca da desdivinizaobastasse-nos reviver o mito grego para que a fuga do

    Sagrado se revertesse. Mas no se trata disso. Ao propor uma volta ao

    passado originrio da metafsica Heidegger prope sim um caminho: o caminho

    de pensar o impensado. Da mesma forma que os pensadores pr-metafsicos

    embora vivessem na proximidade da verdade do Ser no tenham pensado

    sobre ela; ns, os modernos, ainda no nos detivemos suficientemente sobre

    tal tema. O caminho do pensamento sobre a verdade o caminho do

    pensamento sobre o impensado. E, como dissemos acima, o Nada o

    impensado em nossa poca. O que significa que para ns pensar a verdade

    pensar o Nada.

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    Diz Heidegger no Prefcio terceira edio (1949) de Sobre a essncia

    do fundamento(1928): O nada o no do ente.47 Isso significa que o Nada

    tudo quanto o ente em sua totalidade no . Mas esse Nada no um nihil

    negativum, como foi dito na citao no incio desse tpico. Tambm no um

    ente que possamos representar e sobre o qual possamos discorrer. Ele antes

    uma ausncia que se coloca a si mesma como condio de possibilidade de

    todas as coisas. Nesse sentido o Nada pode ser qualificado como correlato ao

    Ser, como tambm j foi dito acima. Para Heidegger o Ser se revela em sua

    verdade a partir da diferena ontolgica, cuja definio tambm se encontra no

    Prefcio de 1949: a diferena ontolgica o noentre ente e ser.48

    Ou seja, o Ser no um ente; tambm no a totalidade do ente; no

    entanto coisa alguma seno pelo Ser. Nesse sentido o Ser Nada, enquanto

    tudo simultaneamente. Talvez pudssemos falar de uma inconcebvel

    igualdade e diferena simultneas entre ente e Ser. Isso talvez revelasse o

    carter paradoxal da diferena ontolgica. Um carter que no se revela pela

    linguagem discursiva, mas to somente por uma linguagem que seja tambm

    ela originria. Que linguagem seria essa?

    Heidegger ir se posicionar favoravelmente linguagem potica como

    sendo a linguagem que melhor se aproxima do mbito do originrio. Isso

    porque esse tipo de linguagem no se prende ao conceito tradicional de

    verdade como adequao; ao contrrio, ele supera um tal modelo. Claro que

    aqui no se encontra em jogo a linguagem potica como vista pela teoria

    47

    Idem. Sobre a essncia do fundamento. In: ______. Conferncias e escritos filosficos. Col.Os Pensadores. So Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 111.48 Idem. Ibidem.

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    literria. Poesia, aqui, se refere ao sentido grego de poisiscomo produo. A

    linguagem potica originria porque se situa no mbito da produo de

    sentido para o ente em sua totalidade. Uma produo que no a de um

    sujeito que, tomando as rdeas, cria algo. A produo a que se refere

    linguagem potica a produo prpria do mundo no des-encobrimento e no

    encobrimento do Ser em sua verdade.

    4. Concluso.

    Apesar de tudo quanto foi dito at aqui permanece no respondida a questo:

    de que maneira o pensamento sobre a essncia da modernidade e seu

    fundamento (o niilismo) pode nos auxiliar em nosso caminho rumo essncia

    do Sagrado?

    Como foi dito, na poca moderna, em sua essncia, encontra-se o

    fenmeno da desdivinizao, ou fuga/morte dos deuses. Um tal fenmeno

    indica-nos a relao entre modernidade e niilismo. Contudo, indica-nos tambm

    que no seio da poca moderna aloja-se a objetivao do Sagrado na

    interpretao psicolgica e historiogrfica de mitos e ritos. Estes so

    considerados pela fenomenologia da religio como documentos que registram

    a experincia que homens primitivos tiveram do Sagrado em seu momento

    histrico preciso. Tais documentos, transformando-se em objeto de anlise de

    disciplinas cientficas tais como a historiografia e a psicologia fazem com

    que aquilo que descrevem tambm se torne um objeto. Esta transformao, tal

    como aquela outra ocorrida na aurora do pensamento ocidental com o Ser e

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    que, em seu desenvolvimento, levou-nos ao seu (do Ser) esquecimento, leva-

    nos agora a constatar que o Sagrado, tambm ele, embora lembrado como

    categoria de uma experincia psicolgica ou da descrio historiogrfica, se

    nos tornou estranho. Por isso pensamos que, ao nos determos aqui sobre o

    fenmeno da desdivinizao, e a ocorrncia mesma de um tal fenmeno que

    aponta para a realidade do afastamento dos deuses e do deus cristo em

    nossa poca, surge a necessidade de se falar sobre o Sagrado. Isso , sem

    dvida, uma marca essencial da modernidade, dado que num mundo

    divinizado no haveria tal necessidade.

    Em seguida, deve-se pensar que a indigncia de nosso tempo cuja

    essncia repousa sobre o fenmeno da desdivinizao aponta para uma

    situao angustiante: a ausncia de fundamento. Isso gera a necessidade de

    uma viragem, um retorno sobre si mesmo em busca da origem da essncia da

    poca em que vivemos, o que se d sob a gide de uma meditao demorada

    sobre o Ser e sua verdade. Essa mesma verdade se encontrava na

    proximidade do pensamento dos primeiros pensadores e dos mitos na Grcia

    arcaica, ainda que de forma no tematizada. Ou seja, de alguma forma a

    verdade originria se encontrava na proximidade dos deuses. Ainda que o

    retorno do Sagrado em nossa poca seja, de algum modo, uma necessidade,

    isso no se dar pela volta dos deuses ou do deus cristo. No entanto, talvez

    isso se faa possvel na linguagem dos poetas, pela sua proximidade originria

    com a verdade e a origem do mundo.

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    A linguagem potica garante a medida do mundo e isso desde a

    poesia de Hesodo, por exemplo, at a de nossos dias. Medida que garante

    aos mortais serem mortais em sua oposio aos imortais (os deuses) e com

    eles se relacionar. Garante tambm a distncia necessria entre o ter (o cu)

    e a terra, como princpios originrios do mundo. a linguagem potica que

    garantir nossa poca a revelao do espao a partir do qual se estabelece a

    diferena do mesmo, a diferena entre ente e Ser, onde cada um dos opostos

    se revelam.

    Por isso tudo, ns cremos que este captulo aponta decisivamente para

    o prximo desenvolvimento de nossa pesquisa. Ser necessrio que nos

    detenhamos, num primeiro momento, com maior acuidade sobre o Ser e sua

    verdade; para depois levarmos a efeito uma reflexo sobre a linguagem potica

    e sua funo mundanizante. Mas, nosso esforo dever se concentrar agora

    no mais na concepo moderna do Ser e da verdade. Ao contrrio, devemos

    caminhar em direo ao originrio onde o Nada j se encontrava presente,

    embora no tematizado. Talvez, seja preciso agora uma reflexo sobre as

    origens do pensamento e sua proximidade com o Sagrado. Esperamos que isto

    possa, por sua vez, abrir nossos caminhos e, enfim, nos conduzir para a

    proximidade do Sagrado no seio de nossa prpria poca.

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    CAPTULO II

    VERDADE E SAGRADO NA PROXIMIDADE DO ORIGINRIO.

    Buscamos, a partir de Heidegger, a essncia do Sagrado. No captulo anterior

    vimos como esta busca se processa necessariamente desde a ausncia do

    Sagrado na poca moderna. Vimos tambm que a essncia desta poca se

    fundamenta sobre o Nada enquanto ausncia de fundamento. E que, se

    quisermos chegar a um real pensamento sobre a essncia do Sagrado na

    poca de sua ausncia, precisamos rumar em direo a esse Nada, sem,

    contudo, transform-lo em mais um dentre os muitos objetos de nosso pensar.

    Como fazer isso? O caminho que se anuncia, a partir de nossa considerao

    da obra de Martin Heidegger, o de determo-nos mais demoradamente num

    pensar da verdade do Ser na proximidade da origem do pensamento ocidental.

    Somente assim, talvez, o Nada se nos apresente ao pensamento e nos

    propicie uma viragem desde o fundo de nossa poca de indigncia.

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    Por isso, neste segundo captulo, preciso que nos detenhamos em

    compreender como Heidegger recolhe um novo conceito de verdade. Conceito

    este que marca toda a sua filosofia como empreendimento de superao da

    metafsica na busca pela origem do pensamento ocidental. No podemos ainda

    perder de vista que o objetivo principal da pesquisa a busca pela essncia do

    Sagrado como possibilidade preparatria de uma viragem no interior da

    modernidade desde o abismo de sua prpria indigncia. Por isso, este captulo

    se ocupar tambm de verificar se existe, de fato, a partir do pensamento de

    Heidegger, uma co-pertinncia essencial entre o pensamento e o Sagrado na

    proximidade da origem.

    O primeiro e mais necessrio passo no cumprimento de tais objetivos

    o de esclarecer o que estamos compreendendo aqui com a palavra origem.

    Precisamos definir nosso conceito a partir das significaes que a idia de

    origem assume no pensamento heideggeriano. De certo modo, para ns, o

    conceito de origem um conceito hbrido marcado por duas significaes que

    Heidegger d em sua obra quilo que a palavra portuguesa de imediato nos

    sugere. Estas duas significaes se distinguem e ordenam em alemo a partir

    de dois grupos semnticos: a) o grupo que se ordena em torno do verbo

    springen (pular, saltar); b) o grupo que se ordena em torno do verbo fangen

    (pegar, agarrar, capturar, apanhar).49

    49 INWOOD, M. op.cit. Verbete: origens e comeos. p. 134-136. Cf. nota 15.

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    No primeiro grupo temos o substantivo Ursprungcom o sentido comum

    de origem. Enquanto derivado do verbo springen, Ursprung, entendido como

    origem, tem um valor semntico a ser explorado. Se springen se traduz

    correntemente como pular, saltar, o substantivo correspondente Sprungdeve

    ser traduzido como o salto, o pulo. No entanto, verbo e substantivo apontam

    para um sentido anterior de surgir, elevar-se, rebentar, brotar/emanar. Donde

    Sprung deveria ser entendido como um salto que brota, tal como o salto de

    uma fonte de gua. Precedido da partcula Ur-(ou Er-no alemo arcaico), cujo

    significado indica algo de primordial, original, o substantivo Sprungpassa a

    sugerir algo como um salto original, primordial. Da que Ursprnglichkeit, no

    signifique originalidade no sentido de uma mera novidade. Para Heidegger a

    originalidade sugere antes a proximidade do primitivo, primevo, primordial, a

    fonte de onde algo provm.

    Em termos filosficos esta a definio para Ursprung que o prprio

    Heidegger nos oferece em seu tratado A Origem da Obra de Arte (1935/36),

    cujo ttulo em alemo Der Ursprung des Kunstwerkes:

    Origem significa aqui aquilo a partir do qual e pelo qual algo

    aquilo que e como . quilo que algo , [sendo] como ,chamamos a sua essncia [Wesen]. A origem de algo a

    provenincia de sua essncia.50

    E, poderamos completar, a pergunta pela origem do pensamento Ocidental

    pergunta pela provenincia da sua essncia. No entanto, por agora, deixemos

    em suspenso o que seja a essncia do pensamento ocidental.

    50 HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte. In: ______. Caminhos de Floresta. Lisboa:Fundao Calouste Gulbenkian, 2002. p. 7.

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    No segundo grupo de palavras temos Anfang, no significado de origem,

    comeo. A raiz da palavra aponta para o verbo fangenque, como dissemos,

    significa pegar, agarrar, capturar, apanhar. Tambm derivado de fangen e

    mais prximo de Anfangencontra-se o verbo anfangen, cujo significado mais

    primitivo o de arrebatar, apossar-se de, e que hoje diz apenas comear,

    iniciar. Dito isso, talvez fosse correto afirmar que Anfang a origem, o comeo

    onde ocorre como que uma captura, um apossar-se daquilo mesmo que

    principia. No um comeo causal, mas um apanhar em pleno salto aquilo que

    no salto originrio (Ursprung) brota a partir de si mesmo e que, em sendo

    apanhado, se mantm em seu ser.

    Para nosso trabalho aqui ser necessrio que a palavra origem traga em si

    esta dupla significao de, por um lado, fonte e provenincia da essncia de

    algo; e de, por outro lado, comeo, princpio onde o salto originrio pela

    primeira vez pressentido e, em certa medida, apanhado pelo pensamento.

    Porque, se nossos propsitos exigem que consideremos a origem do

    pensamento ocidental, faz-se necessrio que esta considerao siga este

    duplo caminho da significao da palavra origem. Donde se conclui que em

    nossa considerao devemos pensar: a) a essncia do pensamento em funo

    de sua provenincia; b) fazer isso a partir da poca histrica onde pela primeira

    vez o essencializar-se do pensamento colhido.

    1. A ESSNCIA DO PENSAMENTO E OS PENSADORES ORIGINRIOS.

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    Se concordarmos que a essncia de algo designa aquilo que este algo e

    como , devemos buscar no prprio pensamento este algo que lhe garante sua

    identidade. Em primeiro lugar devemos assumir que parte importante daquilo

    que o pensamento encontra-se caracterizado na palavra atravs da qual o

    pensamento ocidental ficar tradicionalmente conhecido. Antes de mais a

    palavra que designa o pensamento philosopha. Esta uma palavra que,

    mesmo antes de conhecido o seu significado, revela-nos algo de mais

    imediato. A palavra que nomeia o pensamento ocidental uma palavra grega.

    Este fato muito mais importante do que primeira vista podemos contemplar.

    Alm de situar junto ao povo grego a origem (Anfang) do pensamento no

    ocidente, esta palavra diferencia este pensamento do pensamento de outros

    povos. Dizer que a philosopha grega significa dizer que ela nasce e se

    desenvolve segundo o modo prprio de questionar deste povo especfico. E

    mais do que nosso mundo moderno e globalizado possa pensar, uma filosofia

    oriental algo to estranho quanto uma filosofia crist e um ferro de

    madeira.51 A philosopha, pois, sempre ocidental e, em sua origem, grega.

    Mas, o que significa aqui, para ns, afirmar que a filosofia grega?

    Grego, no nosso modo de falar, no designa uma peculiaridade

    tnica ou nacional, nenhuma peculiaridade cultural eantropolgica; grego a madrugada do destino segundo o qual o

    ser ele prprio clareia no ente e reclama um estar-a-ser52 do

    homem que, enquanto estar-a-ser relativo ao destino, tem o seu

    processo histrico no modo como esse estar-a-ser preservado

    no ser e libertado dele, embora, apesar disso, nunca seja

    separado dele.53

    51

    Idem. Introduo Metafsica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. p. 38.52 Em alemo Wesen, o essencializar-se.53 HEIDEGGER, M. O dito de Anaximandro. In: ______. op.cit. p.389. Cf. nota 9.

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    Em segundo lugar e em conseqncia do que foi dito: qual , afinal, este

    modo prprio do questionamento filosfico que vem tona pela primeira vez

    entre os gregos? Segundo Heidegger o modo grego de questionar marcado

    essencialmente pela pergunta pelo ente em sua totalidade. O que no significa

    que os primeiros pensadores gregos buscassem compreender algo como o

    conjunto total dos entes individuais. Na verdade, a expresso heideggeriana

    quer traduzir para uma linguagem contempornea aquilo que os primeiros

    pensadores nomearam como phsis. O que diz, pois, phsis, Heidegger

    quem nos esclarece:

    Evoca o que sai ou brota de si mesmo (por exemplo, o brotar de

    uma rosa), o desabrochar, que se abre, o que nesse despregar-se

    se manifesta e nele se retm e permanece; em sntese, o vigor

    dominante (Walten) daquilo que brota e permanece. (...) Physis

    significa, portanto, originariamente, o cu e a terra, a pedra e a

    planta, tanto o animal como o homem e a Histria humana,

    enquanto obra dos homens e dos deuses, finalmente e em

    primeiro lugar os prprios deuses, submetidos ao Destino. Physis

    significa o vigor reinante, que brota, e o perdurar, regido e

    impregnado por ele. Nesse vigor, que no desabrochar se

    conserva, se acham includos tanto o vir-a-ser como o ser

    entendido esse ltimo no sentido restrito da permanncia esttica.

    Physis o surgir [Ent-stehen], o ex-trair-se a si mesmo do

    escondido e assim conservar-se.54

    O que devemos, pois, considerar como sendo isso que brota e permanece

    neste mesmo brotar/desabrochar? A totalidade do ente, o mundo. Pois a

    physis o Ser mesmo em virtude do qual o ente se torna e permanece

    observvel.55 Phsis o Ser do ente na sua totalidade, ou seja, ela o

    54 Idem. Ibidem. p.44-45.55 Idem. Ibidem. p. 45.

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    desabrochar do ente e sua permanncia desde o horizonte do Ser. Phsis,

    segundo Heidegger, a vigncia auto-instauradora do ente na totalidade.56

    Os primeiros pensadores que se ocuparam da phsis ficaram

    conhecidos como fisilogos. Heidegger, porm, a fim de evitar certa

    compreenso baseada no anacronismo de classificar os primeiros pensadores

    como fsicos primitivos, prefere nome-los como pensadores originrios.

    Para o filsofo alemo estes pensadores originrios so no somente os

    primeiros em ordem cronolgica, mas aqueles que se encontram em maior

    proximidade com a provenincia da essncia do Pensamento, na vizinhana da

    Origem. Em vrias ocasies Heidegger se deter na interpretao de trs

    destes pensadores: Anaximandro, Parmnides e Herclito. Estes seriam como

    que os profetas da origem.

    Para nosso propsito, neste trabalho, ns nos limitaremos s

    interpretaes heideggerianas do pensamento de Herclito. Nossos objetivos,

    ao nos determos nessas interpretaes, so: primeiro, verificar se, a partir da

    questo da phsis, existe algo como uma co-pertinncia essencial entre

    pensamento e Sagrado, na proximidade da origem; em seguida, verificar se, no

    mbito do pensamento de Herclito, tal como interpretado por Heidegger,

    pode-se vir a compreender a verdade de um modo mais originrio.

    2. A CO-PERTINNCIA ESSENCIAL ENTRE PENSAMENTO E SAGRADO NA PROXIMIDADE

    DA ORIGEM.

    56 Idem. Os Conceitos Fundamentais da Metafsica. op.cit. p. 32. Cf. nota 13.

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    No semestre de vero do ano de 1943 Heidegger ir oferecer um seminrio

    sobre este mesmo tema A origem do pensamento Ocidental a partir dos

    fragmentos de Herclito de feso. O pensador alemo ir afirmar que, mais do

    que uma historiografia do pensamento, ele pretende com este seminrio

    distncia fazer a experincia do fundamento do comeo da filosofia, isto ,

    da metafsica numa dimenso prpria.57 Neste seminrio, parece-nos ficar

    clara dentro da interpretao que o autor faz aos fragmentos de Herclito

    qual , na origem do pensamento Ocidental, a essncia impensada da

    verdade. Esta essncia, perceberemos pela anlise, encontra-se em relao

    necessria com o Sagrado. Em nosso auxlio para a correta interpretao deste

    escrito, recorreremos, como no captulo anterior, a outros textos de Heidegger.

    J na Introduo ao Seminrio em questo Heidegger aponta para a co-

    pertinncia essencial entre o pensamento heraclitiano e o Sagrado. E isto a

    partir de duas estrias.58 Nestas encontram-se, para ns, a chave para o

    aprofundamento da temtica do Sagrado no seio da cultura grega da qual

    Herclito herdeiro.

    A primeira estria conta que:

    (...) Herclito assim teria respondido aos estranhos vindos na

    inteno de observ-lo. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se

    junto ao forno. Ali permaneceram, de p, (impressionados

    57 Idem. A origem do pensamento Ocidental. Herclito. In: ______. Herclito. Rio de Janeiro:Relume Dumar, 1998. p. 18.58 O termo estria considerado por alguns dicionrios da Lngua Portuguesa como umaartificialidade criada para diferenciar, como no Ingls, uma narrativa (story) de um fato relatado

    pela historiografia (History). Apesar disto a tradutora do seminrio Herclito, a professoraMrcia S Cavalcante Schuback usa, na referncia s narrativas sobre o efsio, o termoestria. Em ateno a este fato preservaremos neste trabalho o mesmo termo.

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    sobretudo porque) ele os (ainda hesitantes) encorajou a entrar,

    pronunciando as seguintes palavras: Mesmo aqui, os deuses

    tambm esto presentes.59

    A narrativa nos lana de imediato na conjuno entre o Pensamento e o

    Sagrado. Os visitantes esperam ver o pensador, observ-lo, numa aura

    extraordinria e o que encontram? Um homem aquecendo-se junto ao forno.

    No o pensador ocupado em se aprofundar nalgum mistrio, mas um homem

    comum, exatamente como eles, numa cena comum. Heidegger aponta para

    esta ordinariedade da cena com veemncia a fim de destacar a fala-convite de

    Herclito aos que o visitavam: Mesmo aqui junto ao forno, no cotidiano

    mesmo aqui os deuses tambm esto presentes. Segundo Heidegger,

    Herclito, ao dizer isto, como se dissesse: somente aqui, no ordinrio do

    cotidiano, abriga-se (vigora) o extraordinrio (os deuses).

    A proximidade do pensador e do forno revela a presena do fogo. Ora,

    alm de aquecer o fogo ainda fonte de luz e ardor. Estas ddivas do forno e

    do fogo no cotidiano juntamente com a ddiva do po so sinais da

    presena dos deuses. E nesta ambincia que, segundo Heidegger, o

    pensamento do pensador se avizinha do Sagrado como extraordinrio. Nesta

    mesma ambincia onde o extraordinrio vigora no seio e desde o ordinrio

    sem o excluir o pensamento se avizinha da sacralidade dos deuses e pode

    vir luz como luta, em grego ris. Este modo de o pensamento vir luz como

    luta se mostra a partir da proximidade da deusa rtemis, como nos conta a

    segunda estria.

    59 Apud:HEIDEGGER, M. op.cit. p. 22. Cf. nota 57.

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    Dirigiu-se, porm, ao santurio de rtemis para l jogar dados com

    as crianas; voltando-se aos efsios que se puseram de p ao seu

    redor, exclamou: Seus infames, o que esto olhando aqui to

    espantados? No melhor fazer o que estou fazendo do que

    cuidar da plis60

    junto com vocs?.61

    Aqui se revela igualmente a proximidade dos deuses, mais propriamente

    a presena-proximidade da rtemis dos efsios, em cujo santurio Herclito se

    refugia para jogar dados com (e, porque no, como) as crianas, para o

    assombro de seus conterrneos. Na interpretao desta estria Heidegger

    aponta, primeiramente, em direo afirmao de que Herclito, de fato, ao

    ocupar-se do jogo, cuidava melhor da plis e de seus interesses do que se

    estivesse envolvido em qualquer discusso poltica. O pensador alemo se

    questiona: E se, no modo grego de pensar, a forma mais elevada de cuidar da

    plis62 fosse cuidar da presena dos deuses?.63 Ao que responde logo em

    seguida: Na verdade isso. Para Heidegger o modo grego de pensaraponta exatamente para o fato de que se dedicando ao cuidado dos deuses

    cuida-se igualmente da plisque o plo e a sede em torno dos quais giram

    tanto o aparecimento essencial dos entes, como tambm o no-essencial de

    todo ente.64 A mesma idia est presente no ensaio A origem da obra de

    arte65 (1935/1936) quando Heidegger pretende tornar acessvel a busca pela

    verdade atravs da anlise do templo grego. Nesta considerao o templo

    aparece como o espao a partir do qual o deus se manifesta como deus, em

    sua imortalidade; o mundo se manifesta como totalidade; e os homens

    60 Em caracteres gregos no original.61 Apud: HEIDEGGER, M. op.cit. p. 25. Cf. nota 57.62 Em caracteres gregos no original.63

    HEIDEGGER, M. op.cit. p. 27. Cf. nota 57.64 Idem. Ibidem. p. 27.65 Idem. A origem da obra de arte. In:______. op.cit. p. 38-41. Cf. nota 50.

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    recebem, pela primeira vez, a perspectiva acerca de si mesmos, ou seja, a

    medida de sua mortalidade.

    Um segundo momento do desenvolvimento da interpretao desta

    estria envolve a nomeao explcita da deusa rtemis, a protetora da cidade

    de feso. Se o cuidado dos deuses o melhor cuidado que se pode oferecer

    plis, o fato de a deusa em questo tratar-se de rtemis significativo.

    Segundo Heidegger a vastido das conexes que se abrem desde o templo

    grego o mundo deste povo histrico. E s a partir dele (o templo) e nele

    que este (povo histrico, o povo grego) retorna a si mesmo para a realizao

    de sua determinao.66 Sendo assim, e sendo Herclito um efsio, seu

    pensamento participa desta vastido de conexes que se abrem como

    compreenses articuladas a partir da presena do templo de rtemis no

    corao da cidade. O pensamento do pensador deve, dest