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89 Último Andar [21] – março de 2013 DA INTOLERÂNCIA RELIGIOSA AOS DIREITOS HUMANOS FROM THE RELIGIOUS INTOLERANCE TO HUMAN RIGHTS Antonio Baptista Gonçalves Mestre e Doutor em Filosofia do Direito, Pós-doutorando em Ciências da Religião (PUC/SP) Resumo A Religião é a responsável direta por temas como proselitismo, laicismo e laicidade. Portanto, compreender como eram as relações religiosas nos tempos antigos trará o arcabouço de conhecimento necessário para apresentar a intolerância religiosa professada e praticada em larga escala pelas religiões ocidentais, principalmente. Assim, a liberdade religiosa que hoje se propaga e se busca através dos elementos protetivos de Direitos Humanos é fruto direto de uma evolução histórica da própria religião, bem como de sua influência na vida das pessoas e da disputa pelo poder entre o Estado e a Igreja. E a tolerância será o resultado de toda uma construção dos organismos internacionais em defesa dos direitos do homem, ou os Direitos Humanos. Palavras-chave: Intolerância; Religião; Direitos Humanos Abstract The religion is the main responsible for subject-matters such as proselytism, secularism and secularity. Therefore, comprehend how those religious relations were taken in ancient times would bring up the baggage of knowledge necessary to present the explicit religious intolerance, performed on a wide range for western religions mainly. By that, the religious freedom, propagated and sought through the protective elements of the Human Rights, was born from the historic evolution of religion itself, as well as the influence on people´s lives and on the struggle for power between the State and the Church. And the tolerance would be the result of the construction of international organs, in defense of rights of humankind, the Human Rights. Keywords: Intolerance; Religion; Human Rights

Da Intolerância Religiosa Aos Direitos Humanos

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Da Intolerância Religiosa Aos Direitos Humanos

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    ltimo Andar [21] maro de 2013

    DA INTOLERNCIA RELIGIOSA AOS DIREITOS HUMANOS

    FROM THE RELIGIOUS INTOLERANCE TO HUMAN RIGHTS

    Antonio Baptista Gonalves

    Mestre e Doutor em Filosofia do Direito, Ps-doutorando em Cincias da

    Religio (PUC/SP)

    Resumo

    A Religio a responsvel direta por temas como proselitismo, laicismo e laicidade.

    Portanto, compreender como eram as relaes religiosas nos tempos antigos trar o

    arcabouo de conhecimento necessrio para apresentar a intolerncia religiosa professada e

    praticada em larga escala pelas religies ocidentais, principalmente. Assim, a liberdade

    religiosa que hoje se propaga e se busca atravs dos elementos protetivos de Direitos

    Humanos fruto direto de uma evoluo histrica da prpria religio, bem como de sua

    influncia na vida das pessoas e da disputa pelo poder entre o Estado e a Igreja. E a tolerncia

    ser o resultado de toda uma construo dos organismos internacionais em defesa dos direitos

    do homem, ou os Direitos Humanos.

    Palavras-chave: Intolerncia; Religio; Direitos Humanos

    Abstract

    The religion is the main responsible for subject-matters such as proselytism, secularism and

    secularity. Therefore, comprehend how those religious relations were taken in ancient times

    would bring up the baggage of knowledge necessary to present the explicit religious

    intolerance, performed on a wide range for western religions mainly. By that, the religious

    freedom, propagated and sought through the protective elements of the Human Rights, was

    born from the historic evolution of religion itself, as well as the influence on peoples lives

    and on the struggle for power between the State and the Church. And the tolerance would be

    the result of the construction of international organs, in defense of rights of humankind, the

    Human Rights.

    Keywords: Intolerance; Religion; Human Rights

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    Introduo

    A liberdade religiosa passou por momentos delicados na histria. E, em grande parte,

    tais atos foram fomentados pela atuao da prpria Igreja em uma ntida disputa pelo poder

    com o Estado. Quando, em verdade, a questo central deveria ser a f e a funo religiosa em

    primeiro plano. Contudo, a Igreja atravs de seus lderes influenciou sobremaneira nas

    atitudes polticas dos Estados, amealhando, assim, poder, influncias, riquezas e posses.

    Somado a isso a Igreja, em especial a crist, propalou e disseminou a intolerncia

    religiosa atravs do proselitismo da Santa Inquisio, um dos processos de perquirio e

    julgamento mais sangrentos que a histria religiosa conheceu.

    A resposta da sociedade foi impor o laicismo s religies ocidentais, em especial

    crist. Esse bloqueio estatal, como resposta s inferncias religiosas perdurou at as duas

    grandes Guerras Mundiais, quando o enfoque passou a ser outro.

    De tal sorte que, analisar a evoluo histrica desta relao com a religio e a

    intolerncia, ainda que de forma sinttica, ser fundamental para compreender qual a relao

    da tolerncia religiosa com esta evoluo e, at mesmo, com o surgimento dos Direitos

    Humanos.

    1. A influncia da religio na vida humana

    A religio se mostra presente no cotidiano da sociedade h mais tempo do que a

    existncia das religies com mais quantidade fsica de adeptos e seguidores1 (Cristianismo,

    Islamismo, Hindusmo, Budismo, Judasmo) que conhecemos nos dias correntes.

    As religies tm um passado muito longo. Os homens de Neandertal,

    que viveram entre 95000 e 35000 a.C. e cujos vestgios foram

    encontrados da Frana ao Oriente Mdio, j prestavam homenagem a

    seus mortos. A mais antiga sepultura at hoje conhecida provm de

    uma gruta situada perto de Nazar e foi descoberta em 1969: de um

    adolescente de aproximadamente 14 anos. Revela um verdadeiro

    ritual: escavao e arrumao da cova, colocao do corpo em

    posio intencional e oferendas de significado simblico. (Delumeau;

    Melchior-Bonnet, 2000, p. 17)

    1 Cristos 32,84%, Muulmanos 19,9%, Hindus 13,29%, Budistas 5,92% e Judeus 0,23% Revista Curiosidades,

    Poltica, Cultura e Geografia de Povos e Naes, 2009, p. 12.

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    E se faz necessrio apresentar que a relao do homem com o culto a uma divindade

    igualmente se modificou com o transcorrer do tempo.

    O modelo monotesta seguido e difundido por religies como o Cristianismo,

    Islamismo e Judasmo, no era o predominante em piscas eras2, mas sim, um culto a vrios

    Deuses, isto , o politesmo, o mais puro conceito de liberdade religiosa, desde o comeo dos

    tempos3.

    David Hume (2005, p. 23) afirma ser um fato incontestvel que toda a humanidade h

    1700 anos era politesta4, e vai mais alm (Hume, 2005, p. 24):

    At onde a escrita ou a histria penetram, a humanidade, nos tempos

    antigos, parece ter sido universalmente politesta. Afirmaremos que

    em tempos mais remotos ainda, antes do conhecimento da escrita ou

    da descoberta das artes e das cincias, os homens professavam os

    princpios do puro monotesmo? Ou seja, que quando eram ignorantes

    ou brbaros descobriram a verdade, mas que caram no erro assim que

    adquiriram conhecimento e educao?5

    2 H uma polmica sobre se o monotesmo, a crena em um s Deus, era uma forma original de religio. Essa uma postura assumida h muito tempo pelos judeus, cristos e muulmanos de todo o mundo, de acordo com a

    histria da criao, do primeiro homem e da primeira mulher, Ado e Eva. So Paulo aproveitou esse argumento e disse que o politesmo (a crena em muitos deuses) era uma degenerao, resultado de coraes embrutecidos

    porque as pessoas haviam se afastado de Deus. Essa viso foi rejeitada pelos estudiosos dos sculos XIX e XX,

    baseados na perspectiva evolucionria. ODonnell, Kevin. Conhecendo as religies do mundo. So Paulo: Edies Rosari, 2007, p. 10. 3 Paolo Scarpi ao se reportar ao conceito de religio no mundo antigo: As religies no mundo antigo constituem um bloco um tanto compacto e homogneo, circunscrito cronolgica e geograficamente, mas com

    todas as diferenas que permitiram a cada civilizao expressar uma cultura prpria e especfica. Essas religies

    se configuram como tnicas, pois pertencer por nascimento a um preciso contexto tnico condicionava a participao na vida religiosa, o que era, por si s, garantia de identidade cultural. A conscincia dessa

    identidade, nem sempre expressada, levava celebrao de cultos comuns dedicados s mesmas divindades. E a

    presena do politesmo, em que os deuses so organizados em um sistema, constitui o segundo elemento

    caracterstico e comum s religies do mundo antigo. Nenhuma delas, pois, tem aspiraes universalistas, o que se tornaria uma orientao tpica na poca do Imprio Romano. Tambm no se apresentam como religies do livro, no qual esto contidas verdades reveladas que fundamentam uma teologia. (...) Desprovidos da prpria noo de religio, os povos politestas do mundo antigo no separavam e no distinguiam propriamente a

    dimenso religiosa do conjunto de outras atividades humanas que, pelo contrrio, eram impregnadas e

    legitimadas pela dimenso religiosa. Scarpi, Paolo. Egito, Roma, Grcia, Mesopotmia, Prsia Politesmos: As religies do mundo antigo. So Paulo: Hedra, 2004, pgs. 11 e 12. 4 Politesmo um termo culto, documentado na Frana a partir do sculo XVI, onde usado, no sentido

    teolgico, em oposio a monotesmo. Composto com o sufixo tesmo, como monotesmo, uma construo moderna derivada do vocbulo grego pols, muitos, e thes, (deus). No mbito histrico-religioso, o termo politesmo determina um tipode religio e, portanto, classifica e descreve formas religiosas que admitam a coexistncia de mais de uma divindade, s quais se devota um culto. Conseqentemente, para poder classificar uma religio como politesta, ela deve admitir a noo de divindadeou pressupor uma noo anloga a esta e por ela assimilvel. Isto , ela requer ao menos uma idia de transcendncia dos seres sobre-

    humanos diante da realidade humana, em relao qual, todavia, participam ativamente. bastante provvel

    que essa idia tenha se originado na regio mesopotmica e que de l tenha sido exportada por um processo de

    difuso. Scarpi, Paolo. Egito, Roma, Grcia, Mesopotmia, Prsia Politesmos: As religies do mundo antigo.

    So Paulo: Hedra, 2004, p. 12. 5 E conclui: Essa afirmao contradiz no somente toda a aparncia de probabilidade, mas tambm nossos

    conhecimentos atuais a respeito dos princpios e opinies das naes brbaras. As tribos selvagens da

    AMRICA, FRICA e SIA so todas idlatras. No h uma nica exceo a essa regra. De tal modo que, se

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    E, gradualmente, essa viso e adorao a vrios deuses perdeu intensidade e deu lugar

    a um cultuar singular, a um nico Deus, em uma viso monotesta, como ao modelo adotado

    pelos cristos, muulmanos, judeus, etc.6 O que no significa que o culto politesta deixou de

    existir, pois, o Hindusmo tem por sua essncia a adorao a vrios deuses.

    Assim, com o transcorrer do tempo, o que se torna quase que uma premissa

    indiscutvel a aceitao dos povos acerca da presena de uma fora, um poder, um ser

    superior, invisvel, Deus7, os nomes variam de acordo com a religio ou o entendimento

    religioso.8

    E esse culto a um nico Deus propiciou uma srie de interpretaes variadas sobre

    qual o Deus que deve ser cultuado. E, assim, se disseminou a pluralidade religiosa com o

    surgimento de vrias religies que cultuam um nico Deus, porm, diferentes entre si, seja na

    forma do culto ou na prpria divindade.

    um viajante se mudasse para uma regio desconhecida e encontrasse ali habitantes versados nas cincias e nas

    artes ainda que tal hiptese haja probabilidade de eles no serem monotestas -, nada poderia concluir sobre esse tema sem antes realizar uma investigao mais profunda. Mas se ele os considerasse ignorantes e brbaros,

    poderia afirmar, antecipadamente, com mnimas possibilidades de erro, que eram idlatras. Hume, David.

    Histria natural da religio. So Paulo: Editora UNESP, 2005, p. 24. 6 Erich Zenger: Em algum momento no decorrer da Antiguidade as datas oscilam entre o final da Era do Bronze e o final da Antiguidade ocorreu uma mudana que foi mais decisiva para o mundo do que todas as alteraes polticas com as quais convivemos hoje. Trata-se da mudana das religies politestas para aquelas monotestas, de religies de culto para religies de livros, de religies especficas de determinadas culturas para religies universais, em suma: de religies primrias para religies secundrias. ZENGER, Erich. Violncia em nome de Deus O preo necessrio do monotesmo bblico? In Frst, Alfons. Paz na Terra? As

    Religies Universais entre a Renncia e a disposio violncia.So Paulo: Idias & Letras, 2009, p. 19. 7 A Revista Superinteressante produziu uma edio especial, na qual chamou de Deus uma biografia: Cada

    sociedade v a figura do Criador sua maneira. Cada indivduo, at. Para Einstein, Ele era as leis que governam o tempo e o espao a natureza em sua acepo mais profunda. Para os ateus, Deus uma iluso. Para o papa Bento 16, o amor, a caridade. Quem ama habita Deus; ao mesmo tempo, Deus habita quem ama, escreveu em sua primeira encclica. Pontos de vista parte, toda cultura humana j teve seu Deus. Seus deuses, na

    maioria dos casos: seres divinos que interagiam entre si em mitologias de enredo farto, recheadas de brigas,

    lgrimas, reconciliaes. Os deuses eram humanos. Mas isso mudou. A imagem divina que se consolidou bem

    diferente. Deus ganhou letra maiscula na cultura ocidental. Os pantees divinos acabaram. Deus tornou-se

    nico. o Deus da Bblia, Jav, o criador da luz e da humanidade. O pai de Jesus. Essa concepo, que hoje

    parece eterna, de tanto que a conhecemos, no nasceu pronta. Ela fruto de fatos histricos que aconteceram

    antes de a Bblia ter sido escrita. O prprio Jav j foi uma divindade entre muitas. Fez parte de um panteo do

    qual no era nem chefe. O fato de ele ter se tornado o Deus supremo, ento, marcante: se fosse entre os deuses

    gregos, seria como se uma divindade de baixo escalo, como o Cupido, tivesse ascendido a uma posio maior que a de Zeus. A histria de Jav, a figura que comeou como um pequeno deus do deserto e depois moldaria a

    forma como cada um de ns entende a idia de Deus, no importando quem ou o que Deus seja para voc.

    Revista Superinteressante, n 284. Deus uma biografia. So Paulo: Abril, p. 59. 8 David Hume uma vez mais: A nica questo teolgica sobre a qual encontramos um consenso quase universal entre os homens que existe um poder invisvel e inteligente no mundo. Mas se esse poder supremo ou

    subordinado, se est nas mos de um nico ser ou distribudo entre vrios, quais atributos, qualidades, conexes

    ou princpios de ao devem ser atribudos a esses seres? Sobre todas essas questes existe a mais completa

    divergncia nos sistemas teolgicos populares. Hume, David. Histria natural da religio. So Paulo: Editora UNESP, 2005, p. 43.

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    Neste movimento trs religies despontaram sobremaneira: Judasmo9, Islamismo

    10 e

    Cristianismo11

    .

    9 H 4.000 anos, os judeus (ou hebreus) se uniram como uma nao. Abrao, Isaac e Jac, nas antigas histrias judaicas, eram os lderes dessa nova nao. Mais tarde, os judeus foram dominados pelos egpcios e forados a

    partir para o Egito e trabalhar como escravos. Depois de muito tempo, foram salvos por um lder chamado

    Moiss que os conduziu para fora do Egito, para a terra hoje conhecida como Israel. Isso aconteceu cerca de

    1.250 anos antes do nascimento de Jesus Cristo. Charlesworth, Max & Ingpen, Robert. Trad. de Elda Nogueira. Religies no mundo.So Paulo: Global, 2003, p. 17.

    Kevin ODonnell: Os judeus acreditam que foram eleitos por Deus; que foram chamados por Deus para aprender suas leis e representar o seu caminho entre as demais naes. Eles esto ligados a Deus pela aliana

    feita com Moiss, seu grande profeta e lder espiritual. Uma aliana um compromisso solene, um juramento de

    unio entre duas partes. A Lei foi dada a seu povo e sua parte na aliana seguir a Lei: Deus libertou seu povo

    da escravido no Egito, e demonstrando gratido, eles devem segui-lo. A responsabilidade desse chamado ficou

    clara com o passar do tempo. Eles devem ser a luz das naes e os propsitos de Deus frustrar-se-iam se seu povo abandonasse suas leis. As histrias dos ancestrais tm suas origens no que hoje o territrio conhecido como Israel, mas que naquela poca era chamado de Cana. As tribos ocuparam o topo da montanha da Judia e

    transformaram Jerusalm em sua capital. Uma sucesso de reis os manteve unidos durante anos. O mais famoso

    destes reis foi David.

    O nome inicial das tribos era hebreus, termo que significa viajante ou errante. Literalmente o significado do outro lado ou, em outras palavras, do outro lado do Rio Tigre e do Rio Eufrates. As histrias dos ancestrais mostram as tribos viajando da rea do golfo at a regio de Cana. Hebreu tambm pode significar o mesmo que o antigo termo habiru, aqueles que no se estabelecem. Seus ancestrais, s vezes so chamados arameus. O termo Israel foi introduzido logo no incio do ciclo de sagas ancestrais; foi o nome dado a seu ancestral Jac,

    depois da revelao de Deus. Os hebreus tornaram-se israelitas, depois o termo judeu passou a indicar aquele que vem da terra da Judia. Essa regio ficava ao sul do reino e continuou existindo mesmo depois que os

    assrios conquistaram a regio norte. Ento, hebreu, israelita ou judeu so trs termos que designam o mesmo povo. Ao longo dos anos apareceram diferentes tipos de Judasmo. Havia sacerdotes e sacrifcios desde a poca

    do Templo, e depois da queda de Jerusalm, em 70 d. C., comearam a existir os rabis e as sinagogas. Os rabis

    so especialmente treinados na Lei, a Tor, e nas tradies orais de seu povo, a Halach. ODonnelll, Kevin. Conhecendo as religies do mundo. So Paulo: Edies Rosari, 2007, p. 89. 10 Maom era rabe. Nasceu por volta de 570 d.C., na cidade de Meca, na Arbia Saudita. Maom conhecia o judasmo e o cristianismo. Aos quarenta anos, recebeu uma mensagem de Deus pedindo-lhe para ser seu profeta,

    ou mensageiro. Charlesworth, Max & Ingpen, Robert. Trad. de Elda Nogueira. Religies no mundo. So Paulo: Global, 2003, p. 30. E ainda Kevin ODonnell: A f do Isl considerada pelos muulmanos como a f original, a f revelada. Eles acreditavam que ela foi revelada a Ado e aos profetas, incluindo Abrao, Moiss,

    David e Jesus. Mais tarde, no comeo do sculo VII d.C., surgiu um novo profeta na Arbia, que confirmava as

    profecias anteriores. Suas mensagens profticas foram apreendidas na memria e mais tarde foram reunidas no

    Alcoro. A palavra Islvem do verbo slm em rabe e significa paz ou submisso. A palavra tem sentido duplo, mas os muulmanos acreditam que devem se submeter vontade de Deus (Al), para encontrar a paz. A palavra

    muulmano tambm deriva da mesma raiz significando aquele que se submete (a Deus). A primeira surata (seo) do Alcoro, a orao Fattiha, fala sobre essa submisso e o caminho para a paz. A palavra Al o termo rabe para Deus. Hoje em dia ela significa o Deus ou o Deus nico, mas as tribos rabes j veneraram muitos deuses, em um panteo em que Al era o deus principal, juntamente com sua consorte, Allat e suas trs

    filhas. Muhammad (Maom) ouviu falar do Deus nico dos judeus e dos cristos em suas viagens, e identificou

    Al com esse Deus nico, rejeitando sua consorte e rejeitando a hiptese de ele ter uma descendncia. ODonnell, Kevin. Conhecendo as religies do mundo. So Paulo: Edies Rosari, 2007, p. 142. 11 A religio crist teve incio com Jesus Cristo. Jesus era judeu e vivia na regio hoje conhecida como Israel. Seus primeiros seguidores tambm eram judeus. O cristianismo desenvolveu-se dentro do judasmo, sendo,

    portanto, uma ramificao dessa religio. Mais tarde, quando o cristianismo tornou-se a religio da Europa, os cristos eram, na maioria, no-judeus gregos, romanos e outros povos vizinhos. Charlesworth, Max & Ingpen, Robert. Trad. de Elda Nogueira. Religies no mundo. So Paulo: Global, 2003, p. 22. E Kevin

    ODonnell: O Cristianismo uma crena religiosa baseada no Cristo, que se acredita ser Jesus de Nazar. Jesus foi um judeu que viveu no sculo I d.C.. Os cristos acreditam que ele era Deus e homem ao mesmo

    tempo, a unidade sublime da terra com o cu. Prossegue: O Cristianismo comeou como um movimento judeu no Oriente Mdio. Jesus era um Galileu, que viveu em um lugar afastado no Imprio Romano, entre os anos 4

    a.C. e 33 d.C. A f que ele inspirou espalhou-se por todo o Imprio Romano, ganhando status de religio oficial

    no sculo 4 d.C.. Sculos de venerao ao imperador e aos deuses pagos foram descartados em favor do profeta

    e do carpinteiro do Ocidente. A f tambm alcanou a antiga Prsia, China e ndia, o mundo grego e a regio

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    Esse cultuar de maneiras distintas o mesmo Deus ou um Deus diferente propiciou a

    busca dos lderes religiosos em difundir a sua prpria religio entre as pessoas e, assim,

    amealhar novos fieis. Com isso, existe a possibilidade concreta de migrao de fieis de uma

    religio para outra ou na adeso de uma pessoa, at ento, sem religio, por uma crena

    determinada.

    E nesta relao entre a aceitao das pessoas e a difuso de idias por um lder

    religioso que os problemas despontam, pois, o objetivo fulcral de uma religio cultuar o(s)

    Deus(es) que acreditam, porm, atrair a maior quantidade de fieis possvel

    No entanto, o objetivo no apenas atrair novos fieis, pois os outros lderes religiosos

    tambm usaram de tal estratagema. Ao mesmo tempo, o lder religioso tambm deve se

    preocupar em manter seus prprios fieis imunesas propagandas das outras religies.

    Ento, se proteger e atrair os demais ao mesmo tempo, fazer sua religio crescer

    diminuindo as demais. A esse teste da prpria f e dos participantes da f alheia denomina-

    se proselitismo.

    2. O proselitismo e seu impacto positivo e negativo

    Proselitismo12

    : zelo ou diligncia em fazer proslitos: o proselitismo religioso.

    Proslito13

    . Do grego proselytos, pelo latim eclesistico proselytus). 1. Pessoa que se

    converteu a uma religio. 2. Pessoa que abraou uma seita, uma doutrina, um partido;

    adepto, partidrio. 3. Pessoa que abjurava suas crenas para adotar a religio judaica.

    Proselitismo, ento, deve ser entendido como o convencimento de uma pessoa a trocar

    de religio, ou caso no possua uma, a aderir a uma determinada crena. E podemos citar

    que depois se tornaria a Europa. O Cristianismo uma f construda sobre um paradoxo. Alega-se no somente

    que Deus poderia se tornar homem, mas tambm que um homem crucificado podia ser saudado como Salvador

    e Senhor. A crucificao era uma punio brbara que os romanos aplicavam nos criminosos e rebeldes e morrer

    dessa maneira era uma desonra. Mas os cristos acreditavam que aquele homem que aparentemente havia

    falhado to fragorosamente era o mesmo que depois se tornaria o mais sublime de todos. Os valores do

    Cristianismo giram em torno da humildade, do perdo e da graa divina (ato de generosidade de Deus para com o homem, mesmo quando este no alcanou o mrito necessrio por meio das boas aes). ODonnell, Kevin. Conhecendo as religies do mundo. So Paulo: Edies Rosari, 2007, p. 117. 12 Grande Enciclopdia Larousse Cultural. So Paulo, 1998, vol.20, p.4805. Proselitismo. 1. Atividade ou

    esforo de fazer proslitos, catequese, apostolado. 2. Conjunto de proslitos. Dicionrio Houaiss da lngua

    portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.2315. 13

    Grande Enciclopdia Larousse Cultural. So Paulo, 1998, vol.20, p.4805. Proslito. 1. Entre os antigos

    hebreus, indivduo recm-convertido religio judaica. 2. Pessoa que foi atrada e que se converteu a uma outra

    religio, uma seita, uma doutrina ou um partido, um sistema, uma idia, etc. Adeptos, sectrio, partidrio.

    Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.2315.

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    duas, dentre vrias religies que possuem essa prtica: os Testemunhas de Jeov14

    e os

    Mrmons15

    .

    O proselitismo a forma encontrada pelas religies tanto no papel dominante, como

    maioria, ou como minoria religiosa, para atrair novos fieis a sua crena. Para isso, uma gama

    de estratgias e formas de apresentao dessa crena desenvolvida. Tudo no intuito de

    convencer o indivduo de que a sua religio no a adequada e que se sentir muito melhor

    fsica, moral, psicolgica e espiritualmente se migrar e adotar a nova palavra.

    O proselitismo sempre foi um importante catalisador dos iderios das igrejas,

    independentemente da religio escolhida. Ao longo de uma missa, quando o padre realiza o

    seu sermo e elogia a sua religio e enfatiza uma srie de passagens, do que estamos falando

    seno de proselitismo?

    Alm disso, temos de incluir as manifestaes pblicas de f, as viagens apostlicas e

    a forma como as igrejas se utilizam de seus mrtires como forma de captao da f alheia.

    Em tempos presentes o proselitismo ganhou novas armas: a internet, os programas de

    rdio, os programas de TV, jornais especializados etc. Todos meios de comunicao em

    massa com o objetivo nico de disseminar a doutrina e conquistar novas pessoas crena

    religiosa.

    No entanto, no apenas de aspectos positivos temos o proselitismo, e, assim,

    importante analisar o proselitismo negativo. Sobre o proselitismo negativo16

    temos dois

    pontos controvertidos: o proselitismo em si e a relao do proselitismo com os Estados que

    adotam uma religio de forma oficial ou que so influenciados politicamente por ela.

    14 A comunidade religiosa Testemunhas de Jeov foi fundada no EUA no final do sculo XIX por integrantes da

    sociedade Torre de Vigia de Sio, cujo primeiro presidente foi Charles T. Russel. At o incio da dcada de

    1930, eram conhecidos como Estudantes da Bblia, passando ento a ser denominados de Testemunhas de

    Jeov. Revista Conhecimento Prtico de Filosofia, n 26. Filosofia e guerra. So Paulo: Escala, p. 21. 15 A comunidade religiosa Mrmons, inicialmente era conhecida como A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos

    ltimos Dias. Foi organizada em 6 de abril de 1830, em Fayette, Nova York. Entre os seis primeiros membros

    estava Joseph Smith, primeiro profeta e presidente da Igreja restaurada. Em 1823, Joseph foi mandado, por um

    mensageiro celestial chamado Morni, a um monte perto de Palmyra. L mostrou a Joseph placas de ouro que

    continham a histria secular e religiosa de uma antiga civilizao americana. Quatro anos mais tarde, Joseph teve permisso para tirar as placas da colina e traduzi-las para o ingls. O volume traduzido, que leva o nome de

    um dos antigos profetas e historiadores que havia guardado os registros, foi publicado como o Livro de

    Mrmon. O apelido da Igreja "Mrmon", vem do ttulo deste livro sagrado. O Livro de Mrmon contm a

    histria de vrias civilizaes da Amrica antiga, entre cerca de 2200 a.C e 420 d.C. O volume inclui um relato

    do ministrio de Jesus Cristo no continente americano, depois de sua ressurreio. Fonte:

    www.mormons.com.br, acesso em 13 de fevereiro de 2011. 16 O Brasil sofreu o proselitismo negativo quando os jesutas, atravs de suas misses praticamente obrigaram os

    ndios a seu converterem e a aceitar a sua nova crena, o cristianismo, sem se importar com os prprios desejos

    ou anseios da comunidade.

  • 96

    ltimo Andar [21] maro de 2013

    O primeiro aspecto se refere ao proselitismo propriamente dito. Ocorre que essas

    tentativas de converso nem sempre cumprem com os ritos ideais de lisura e respeito

    religio alheia.

    O ponto que cerca o proselitismo no a liberdade religiosa e nem o convertimento de

    pessoas a sua crena religiosa. O problema impera na forma como alguns procedimentos so

    feitos, pois, se transformam em verdadeiras prticas de (in)tolerncia religiosa, especialmente

    em locais em que o Estado adota uma religio de forma oficial17

    .

    Em Estados que no so considerados laicos18

    esse posicionamento considerado

    como prejudicial para o governo, pois, a converso de seus fiis ou a propagao das idias

    diferentes da religio oficial do pas podem perturbar a ordem e, quem sabe, incitar a

    populao, logo, representam uma ameaa s pretenses estatais.

    Os representantesdo governo tendem a reprimir essas minorias religiosas, como

    forma de assegurar a integridade religiosa do prprio Estado, o que, de forma alguma,

    justifica ou, tampouco, autoriza a intolerncia religiosa. Com isso a liberdade religiosa e o

    livre direito de circulao e de pensamento j foram prejudicados.

    3. Religio e (in)tolerncia

    O proselitismo o exemplo de que as prprias religies podem ultrapassar a lisura e a

    cordialidade das relaes que as mesmas professam para manter os fieis em seus quadros e,

    ainda, retirar alguns de outro culto. E ao acrescentar mais um elemento: o Estado, temos o

    cenrio a ser analisado em termos de tolerncia religiosa: o povo, a Igreja e o Estado.

    O tema religio por si s j espinhoso. Tente definir religio, ou melhor, pergunte a

    dez pessoas aleatoriamente o que vem a ser religio para cada uma delas e lhe asseguramos:

    haver dez respostas diferentes.

    E a existncia de uma complexidade acerca da definio da religio tambm gera

    controvrsias acerca de sua aceitao, pois, no cenrio global a religio vista de forma

    muito diversa.

    17 A actuao do Estado face ao proselitismo encontra-se estritamente ligada proteco concedida liberdade religiosa e aos direitos do homem, o que depende em ltima anlise do regime poltico perfilhado e mesmo da

    confisso religiosa dominante. Guerreiro, Sara. As Fronteiras da Tolerncia Liberdade religiosa e proselitismo na Conveno Europia dos Direitos do Homem. Coimbra: Almedina, 2005, p. 180. 18

    Mesmo o Estado laico pode adotar uma postura restritiva acerca do proselitismo, se for perceptvel que a

    liberdade de crena do prprio Estado est prejudicada e se faz necessria uma interveno estatal para

    assegurar os direitos da coletividade. Frana e Espanha, inclusive possuem respostas penais para as atividades

    abusivas derivadas do proselitismo.

  • 97

    ltimo Andar [21] maro de 2013

    A Igreja em uma busca pela consolidao de uma soberania e de um poder teve como

    escopo buscar no apenas o seu espao religioso, mas, tambm, exercer uma influencia

    poltica, para assim, ter a fora sobre a coletividade.

    Com isso, houve uma confuso de interesses, assim, o objetivo religioso e a busca

    para levar a palavra divina se mesclaram a pretenses terrenos e, principalmente, ratificao

    de fora que, em um segundo momento, se converteriam em acmulo de riquezas.

    A Igreja passou a se relacionar intrinsecamente com o Estado e o resultado foi uma

    confuso entre as partes, pois, o Estado teve tanta influncia da Igreja que as decises

    passaram a ser subordinadas vontade da Igreja, independente da religio A, B ou C, pois,

    foi assim com o Judasmo, Cristianismo e com o Islamismo.

    Quando essa disputa por poder no aflige nenhuma das partes envolvidas, ento, tem-

    se a paz e, por conseguinte, a tolerncia religiosa19

    . No entanto, a Igreja, em sua busca por

    amealhar novos fieis, nem sempre de forma amistosa, como no caso das cruzadas20

    , professou

    mais a intolerncia do que os preceitos religiosos fundamentais.

    A histria nos mostra que a relao entre Estado e Igreja sempre foi prxima, em

    especial, com o advento do cristianismo, contudo, a influncia da religio muito maior do

    que a existncia da prpria igreja, visto que no Egito antigo bem como na Grcia no se fazia

    uma ntida distino entre o domnio religioso e o Estado em si.

    19 Particularmente no gostamos do termo tolerncia religiosa, pois, mais parece que a religio alheia no

    respeitada, mas sim suportada, e esse no o objetivo de um Estado laico e, muito menos deve ser a atitude de

    seus membros. Tolerncia parece muito mais um sentimento de que a pessoa, no possuindo alternativa, ir

    respeitar o prximo, por enquanto, quase que uma manifestao latente de um sentimento de preconceito

    religioso e descontentamento que, a qualquer momento, poder vir tona. 20 As cruzadas foram movimentos religiosos, polticos e militares, liderados pela Igreja Catlica, apoiados e

    patrocinados pela nobreza europia, com a finalidade de dominar a cidade de Jerusalm, considerada santapor judeus, cristos e muulmanos e lugar de peregrinaes para estes povos. Quando Jerusalm foi tomada pelos turcos otomanos, no ano de 1071, por estes serem muulmanos e intolerantes, proibiram aos cristos as

    peregrinaes aos lugares sagrados. Por essa razo e pela crise do feudalismo europeu, em 1095, o papa Urbano

    II conclamou a populao a defender o cristianismo contra os infiis rabes muulmanos, afirmando ser esta a vontade de Deus. Woloszyn, Andr Lus. Terrorismo Global Aspectos gerais e criminais. Porto Alegre: Est

    Edies, 2009, pgs. 47 e 48. Os mtodos e a rotina dos membros das cruzadas na maioria das vezes eram cruis

    e violentos e o que importava era o objetivo final, para que o leitor tenha uma idia mais concreta

    apresentaremos abaixo o relato acerca da primeira cruzada, que ocorreu muito antes da descoberta do Brasil,

    para que assim, possa ser desfeita a imagem romntica de que as cruzadas foram um movimento pacifico que

    tinha como condo apresentar a boa palavra da Igreja para os nativos. O relato acerca da primeira cruzada, que

    j relatava os indcios dos saques e a grande religiosidade envolta nas misses: Tendo entrado na cidade, nossos peregrinos perseguiam e massacravam os sarracenos at o templo de Salomo, onde estes estavam reunidos e onde travaram com os nossos o mais furioso combate durante todo o dia, a ponto de ficar banhado de

    seu sangue o templo inteiro. [...] Os cruzados correram logo por toda a cidade, apoderando-se rapidamente do

    ouro, da prata, dos cavalos, dos mulos e saqueando as casas. Depois, muitos contentes e chorando de alegria, os

    nossos foram adorar o Sepulcro de nosso Salvador Jesus e se desoneraram da dvida para com ele. Na manh

    seguinte, os nossos escalaram o teto do templo, atacaram os sarracenos, homens e mulheres e, puxando a

    espada, decapitaram-nos. Alguns se lanaram do alto do templo. Vendo isso, Tancredo encheu-se de indignao.

    Ento, os sacerdotes decidiram em conselho que todos dariam esmolas e fariam oraes, para que Deus elegesse

    aquele que ele gostaria que reinasse sobre os outros e governasse a cidade. Delumeau, Jean & Melchior-Bonnet, Sabine. Trad. Nadyr de Salles Penteado. De Religies e de Homens. So Paulo: Ipiranga, 2000, p. 171.

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    ltimo Andar [21] maro de 2013

    Sobre o cristianismo necessria a sua relao com o Imprio Romano e, em especial

    com o Imperador Constantino, pois o cristianismo ainda claudicava21

    , at a converso de

    Constantino22

    , quando despontou poucas dcadas depois23

    .

    O cristianismo teve papel decisivo para inserir a Igreja como protagonista nas relaes

    de governana, como relata J. Vasconcelos:

    A medida em que o Cristianismo avanava por toda parte do Imprio

    Romano, a Igreja Catlica foi se organizando como uma poderosa fora

    institucional, salientando-se uma poderosa classe sacerdotal. Com o vazio deixado pela queda do imprio, a Igreja enveredou por uma poltica de

    expanso e destruio das crenas nativas das regies europias, para tanto

    usando da persuaso e da fora. (Revista Conhecimento Prtico Filosofia, n

    26. Filosofia e guerra, p. 18)

    Segundo Trcio Sampaio Ferraz Jnior (2003, pgs. 63-65) , aps o declnio do Imprio

    Romano a herana espiritual e poltica do poder poltico romano passou para a Religio

    crist24

    .

    21 Um dos acontecimentos decisivos da histria ocidental e at mesmo da histria mundial deu-se no ano de 312 no imenso Imprio Romano. A Igreja crist tinha comeado muito mal esse sculo IV de nossa era: de 303 a

    311, sofrera uma das piores perseguies de sua histria, milhares foram mortos. Em 311, um dos quatro

    coimperadores que repartiam entre si o governo do Imprio estava decidido a pr fim quele estado de coisas,

    reconhecendo amargamente em sua atitude de tolerncia que perseguir no adiantava nada, pois muitos cristos

    que tinham renegado sua f para salvar a vida no tinham voltado ao paganismo. Assim (e esse, poca, foi um

    assunto de inquietao para um governante), criaram-se buracos no tecido religioso da sociedade. Veyne, Paul.

    Quando nosso mundo se tornou cristo. Trad. Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2010, p.

    11. 22 Ora, no ano seguinte, 312, deu-se um dos acontecimentos imprevisveis: outro dos coimperadores,

    Constantino, o heri dessa grande histria, converteu-se ao cristianismo depois de um sonho (sob este sinal vencers). Por essa poca, considera-se que s cinco ou dez por cento da populao do Imprio (70 milhes de habitantes, talvez) eram cristos. Veyne, Paul. Quando nosso mundo se tornou cristo. Trad. Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2010, p. 11. 23

    Oitenta anos mais tarde, como se descobrir depois, num outro campo de batalha e ao longo de um outro rio,

    o paganismo ser proibido e acabar vencido, sem que tenha sido perseguido. Porque, ao longo de todo o sculo

    IV, a prpria Igreja, deixando de ser perseguida como o tinha sido ao longo de trs sculos, ter o apoio

    incondicional da maioria dos Csares, tornados cristos; assim, no sculo VI o Imprio estar quase todo

    povoado apenas de cristos. Veyne, Paul. Quando nosso mundo se tornou cristo. Trad. Marcos de Castro. Rio

    de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2010, p. 12. 24 Paul Veyne relata a virada positiva para o cristianismo com a prpria ascenso de Constantino no Imprio

    Romano: Em 324, a religio crist assumia com um golpe nico uma dimenso mundiale Constantino estaria alado estatura histrica que dali em diante seria a sua: ele acabava de esmagar Licnio no Oriente, outro

    pretenso perseguidor, e assim restabelecia sob seu domnio a unidade do Imprio Romano, reunindo as duas metades sob o seu cetro Cristo. O cristianismo dispunha da em diante desse imenso imprio que era o centro

    do mundo e que se considerava com a mesma extenso da civilizao. Aquilo a que se chamar por longos

    sculos de Imprio Cristo, sim, a Cristandade acabava de nascer. Veyne, Paul. Quando nosso mundo se tornou

    cristo. Trad. Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2010, p. 19. Aps a queda do Imprio

    Romano, toda a edificao cultural e religiosa estava a disposio plena do cristianismo, afinal, o Imprio rura,

    porm, no o Clero ou a religio. Assim, todo o arcabouo de conhecimento, riqueza, influencia poltica, social

    e ideolgica apenas permaneceu. O resultado foi uma mudana da geografia do planeta, mas no da influencia

    religiosa sobre os novos atores. A Igreja Catlica era a referencia, e seus lderes tinham ntida influencia de

    poder sobre os governantes.

  • 99

    ltimo Andar [21] maro de 2013

    O cristianismo representou um perodo de grande prosperidade e influncia da Igreja

    com o Estado. Relao esta que trouxe pontos positivos e, em concomitncia, uma srie de

    problemas a serem analisados25

    .

    4. A Igreja Catlica fomenta a intolerncia

    Importante salientar que a partir deste momento trataremos dos eventos advindos e

    decorrentes da influencia da Igreja, em especial, no mundo ocidental. No se aplicando,

    assim, os fatos a seguir na realidade do mundo rabe e dos seguidores da religio islmica.

    A relao da religio com a liberdade religiosa, ou seja, a possibilidade de crer em

    um Deus e de poder cultu-lo marcada por passagens que variam de tolerncia a

    intolerncia ao longo da Histria.

    Outrossim, a prpria Igreja Catlica26

    contribuiu negativamente para o

    desenvolvimento da intolerncia com a Inquisio27

    . De tal sorte que a intolerncia religiosa,

    a violncia e a destruio do patrimnio cultural e religioso de outras sociedades foi o marco

    deste movimento imposto pela Igreja Catlica28

    .

    A prosperidade do cristianismo perdurou at o seu movimento mais audacioso: a Inquisio, pois, o que deveria

    ter sido sua catequese maior foi, em verdade, o princpio de sua runa e da chegada de um perodo sombrio em

    contraponto a toda a prosperidade de sculos de conquistas e expanses. 25 Alfons Frst: No cristianismo, as converses tornaram-se um fenmeno de massa. No sabemos o que levou a

    maioria dos cristos e das crists a se converter nem o que vivenciaram, tampouco o que a converso significou

    para eles mais tarde, simplesmente porque nada consta das fontes. Contudo, alguns eruditos entre os cristos

    manifestaram-se a respeito de sua converso, e seu relato geralmente feito de modo bastante comedido permite-nos observar determinado trao de sua mentalidade religiosa. (...) Ser que essa mentalidade

    condicionava a intolerncia e a disposio violncia? Segundo a rigorosa concepo da Igreja da Antiguidade,

    converter-se significava distanciar-se da maneira mais clara possvel do ambiente religioso, social e cultural,

    relativizar seus valores e suas pretenses, question-lo ou rejeit-lo. Mesmo quando esse procedimento se mostrava profundamente ambivalente pois os cristos no podiam simplesmente abandonar o tempo e a cultura em que haviam crescido e em que continuaram a viver e a pensar -, sua mentalidade era determinada, em

    primeiro lugar, pela delimitao religiosa. Frst, Alfons. tica da paz e disposio violncia Sobre a

    ambivalncia do monotesmo cristo em seus primrdios. In Frst, Alfons. Paz na Terra? As Religies

    Universais entre a Renncia e a disposio violncia.So Paulo: Idias & Letras, 2009, p. 97 e 98. 26 Antes da Inquisio Jacques Le Goff j aponta traos de intoler6nacia por parte da Igreja crist: Dos sculos

    XI a cristandade torna-se uma sociedade de perseguio. Beneficiada por um grande desenvolvimento demogrfico, econmico, militar, poltico e cultural, ela quer defender suas conquistas contra aqueles que lhe

    parecem amea-las; e passa a adotar os instrumentos da represso e da agresso. Le Goff, Jacques. A razes

    medievais da intolerncia. In A Intolerncia. Trad. Elo Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 39. 27 Toby Green: preciso comear reconhecendo a amplitude do tema. De 1478 a meados do sculo XVIII, a Inquisio foi a mais poderosa instituio da Espanha e de suas colnias nas ilhas Canrias, na Amrica Latina e

    nas Filipinas. A partir de 1536, no vizinho Portugal e nas colnias portuguesas na frica, na sia e no Brasil, a

    Inquisio foi preeminente durante 250 anos. Isso quer dizer que foi uma fora significativa em quatro

    continentes por mais de trs sculos; estamos tratando de um perodo que se estende da unificao da Espanha

    sob Fernando e Isabel, no sculo XV, s guerras napolenicas. Green, Toby. Inquisio O reinado do medo.Trad. Cristina Cavalcanti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p. 30. 28 A Inquisio atingiu o pice da violncia na Espanha, nos primeiros cinqenta anos aps sua criao, em

    1478, perodo em que, segundo estimativas, cerca de 50 mil pessoas foram julgadas e uma parcela significativa

    desse nmero foi queimada na fogueira na condio de relaxados. Em alguns anos, como em 1492m 2 mil

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    ltimo Andar [21] maro de 2013

    Nesta esteira, a justificativa para tamanha atrocidade foi a defesa da prpria Igreja

    Catlica ao perseguir os considerados hereges29

    . E o resultado seria a pureza da religio

    catlica sem a influncia negativa dos maus convertidos ou dos infiis.

    A Inquisio foi um claro exemplo de proselitismo negativo com o uso da intolerncia

    de forma indiscriminada e atroz30

    . E a difuso de sua fora propiciou a Igreja Catlica outras

    ambies que no as religiosas. E a principal delas foi ratificar uma influencia poltica sobre

    os Estados. E, assim, os lderes catlicos perceberam que a busca pelo poder estava

    diretamente atrelada a uma demonstrao de fora, logo, um alinhar de interesses com o

    Estado seria vital para as novas pretenses eclesisticas.

    Sendo assim, tal como j tinha ocorrido no Imprio Romano a religio comea a

    influenciar, via Igreja, nos poderes decisrios dos mandatrios. E, com isso, no logrou muito

    tempo para a Igreja estar no centro das decises polticas. O perodo histrico foi

    determinante para a influncia da Igreja31

    .

    pessoas podem ter sido relaxadas e outras 2 mil podem ter tido suas efgies queimadas. Aproximadamente setecentas pessoas foram mortas s em Sevilha entre 1481 e 1488, e outras cinqenta em Cidade Real entre

    1483 e 1484. Cerca de 10% de toda a populao de Toledo foi julgada pela Inquisio entre 1486 e 1499, e 3%

    foi relaxada em vida ou em efgie. Green, Toby. Inquisio O reinado do medo.Trad. Cristina Cavalcanti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p. 32 e 33. 29 A Inquisio for a criada na Espanha para detector supostos maus cristos entre os convertidos. Green, Toby.

    Inquisio O reinado do medo.Trad. Cristina Cavalcanti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p. 42. 30 Alfons Frst: A dificuldade dos cristos com a pluralidade religiosa era relevante no apenas do ponto de

    vista teolgico e interno Igreja, mas tambm do lado social e poltico. No final da Antiguidade, o mundo era

    em grande parte pluralista. No gigantesco Imprio Romano, que ia da latitude de clima temperado-frio das ilhas

    britnicas e do centro da Europa at as zonas subtropicais do Alto Egito, de Gibraltar e do Monte Atlas no

    Ocidente at o Tigre e o Eufrates no Orientes, viviam inmeros povos com suas respectivas lnguas, culturas e

    tradies, em conjunto ou paralelamente. A religiosidade dessas comunidades ecumnicas (no sentido antigo)

    era marcada por uma multiplicidade de usos e cultos que se interpenetravam e misturavam permanentemente

    num clima bastante favorvel ao sincretismo. Essa situao religiosa e por si s variegada parece ter-se alterado

    profundamente nos primrdios do perodo imperial. Inserida na famlia, no cl, na tribo e na cidade, a religio, que uma questo de uso e tradio, passou a ser uma questo de livre-arbtrio. Em termos mercantis, surgiu

    uma concorrncia entre grupos religiosos, desconhecida nos primrdios da Antiguidade, e o novo

    comportamento que levava a conflitos, principalmente queles condicionados pela religio. O cristianismo no

    chegou ao mundo como novo grupo religioso. Era uma oferta de sentido a mais no mercado das esperanas de

    salvao e promessas de cura. Contudo, do ponto de vista dos antigos, os cristos agiam com seu mpeto

    missionrio e com enorme importncia que, na falta de outras marcas de identidade, eles atribuam com

    inabitual agressividade confisso religiosa. Frst, Alfons. tica da paz e disposio violncia Sobre a

    ambivalncia do monotesmo cristo em seus primrdios. In Frst, Alfons. Paz na Terra? As Religies

    Universais entre a Renncia e a disposio violncia.So Paulo: Idias & Letras, 2009, p. 102 e 103. 31 Pinto Ferreira: A sociedade antiga era de ndole religiosa. Do mesmo modo o Estado antigo e o Estado medieval, com suas crenas religiosas, o primeiro dominado pelo paganismo e o segundo pelo catolicismo. A Idade Mdia assistiu ao domnio pleno da Igreja Catlica, inclusive atuando na esfera poltica, com a idia da

    espada temporal e da espada espiritual, do poder sobre o mundo e sobre as almas. A religio catlica teve

    predomnio intenso, impedindo a liberdade de crena e de culto, queimando nas fogueiras da Inquisio os

    hereges e os que discordavam de sua orientao. Basta lembrar o caso de Giordano Bruno, queimado em 1600,

    torturado lentamente na fogueira durante duas horas, por defender idias que foram inclusive adotadas por

    Einstein. Inmeras figuras pagaram com a morte as suas crenas, como um crime de lesa-religio. Guerras

    surgiram entre as naes e massacres entre as pessoas da mesma ptria, como na noite de So Bartolomeu, na

    Frana, em 1572, quando os catlicos trucidaram inmeros huguenotes (protestantes). Ferreira, Pinto. Curso de

    direito constitucional. 9 ed. So Paulo: Saraiva, 1998, p. 102.

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    A Igreja se aproveitou do perodo em que exercia forte influncia, inclusive sobre o

    Estado, para acumular riquezas, conquistar territrios e ampliar seu domnio. O resultado

    direto foi o ganho de poder por parte da Igreja e, por conseguinte, amealhar no apenas novos

    fieis para sua crena, como tambm, uma expanso territorial e o acmulo de riquezas. E,

    assim, a religio se distanciava de sua principal funo: a religiosa. Agora as preocupaes

    eram nitidamente polticas em uma clara busca por poder.

    O domnio da Igreja apenas aumentava, bem como seu patrimnio e sua riqueza. Na

    Europa, particularmente na Frana32

    , se tornou comum os governantes serem coroados pelo

    Papa em uma clara demonstrao de que o lder supremo do Estado estava submisso

    Igreja.33

    Evidentemente, os governantes no se mostraram felizes com essa expanso, todavia,

    contrariar o povo seria ainda pior, portanto, o perodo de dominao da Igreja perdurou por

    muitos sculos, mas comeou a declinar exatamente com a prpria Inquisio.

    O temor, as mortes sem sentido, a cultura que se perdeu devido enormidade de

    livros que foram queimados abalaram a confiana cega do povo na Igreja. A figura do

    salvador se transformou na do inquisidor, uma ntida ameaa. E, com a queda da Inquisio a

    prpria Igreja comeou a perder sua influncia, foi, portanto, a oportunidade perfeita dos

    governantes reaverem seus territrios e aumentarem seus poderes.

    Em decorrncia, a burguesia era a mais afetada com a expanso territorial da Igreja.

    Logo, ao perderem terras e, em concomitncia, o Estado no ter o poder decisrio pleno

    ambos os lados perceberam que o cerne do problema era o mesmo: a influencia da Igreja nas

    relaes de poder.

    Assim, uma forma de se afastar a Igreja do poder era o mote fundamental a ser

    desenvolvido.

    32 Georges Lefebvre: Na antiga Frana, a lei distinguia trs ordens: o clero, a nobreza e o Terceiro Estado. Suas propores numricas so imprecisas: dos 23 milhes de habitantes que o reino podia conter, sem dvida no

    havia mais de 100 mil sacerdotes, monges e freiras, e de 400 mil nobres; todo o resto pertencia ao Terceiro Estado. Lefebvre, Georges. 1789 O surgimento da Revoluo Francesa. Trad. Cludia Schilling. 2 ed. So

    Paulo: Paz e Terra, 2011, p. 43. 33 Toby Green: Ao longo de seus mais de trezentos anos de existncia, naturalmente as estruturas da Inquisio

    evolura. No devemos pensar que seu alcance administrativo tenha sido sempre universal e todo-poderoso, e,

    como vimos, na Espanha o nmero de familiares diminuiu rapidamente no sculo XVII. No entanto, no h

    dvidas de que, durante a maior parte de sua existncia, a Inquisio atingiu quase todos os aspectos da vida da

    maior parte das pessoas. Por volta do sculo XVII, em Portugal, era considerada um Estado dentro do Estado e,

    indiscutivelmente, contava com a maior e mais poderosa burocracia do pas. Green, Toby. Inquisio O reinado

    do medo.Trad. Cristina Cavalcanti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p. 277.

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    E foi a Frana, com o crescimento da burguesia, que determinou a mudana do poder,

    os eventos que antecederam a Revoluo Francesa e a chegada ao poder por Napoleo

    Bonaparte acabaram por cindir a relao poltica que outrora existia entre Igreja e Estado34

    .

    A prpria coroao de Napoleo Bonaparte j demonstra isso, pois, atravs de

    pinturas existe a retratao do Papa corando Napoleo, em uma inferncia clara ao domnio

    da Igreja sobre o Estado. Contudo, em outra tela temos Napoleo retirando a coroa das mos

    do soberano religioso e se autocoroando, em uma separao entre Estado e Igreja.

    Napoleo era um lder inteligente e astuto, portanto, excluir a Igreja, em um primeiro

    momento seria uma idiossincrasia, ento, inicialmente houve uma aproximao, quando

    Bonaparte decretou uma trgua trazendo a igreja para o abrigo do Estado, porm com uma

    srie de restries impostas pelo governante francs, o que culminou com uma ruptura

    definitiva.

    Entretanto, aos olhos do povo Napoleo estava com a Igreja e foi esta que o

    abandonou, logo, o governo conseguiria, assim, consolidar a separao poltica definitiva

    com a Igreja.

    O relato nos trazido por E. Beau de Lomnie, primeiro sobre a tentativa de

    reconciliao entre Bonaparte e a Igreja e depois a ciso:

    Bonaparte compreendeu que lhe era necessrio achar um acrdo com a

    Igreja, isto , com o papado. Logo que subiu ao poder procurou entrar em

    negociaes com Roma. Mas chocou-se imediatamente com muitas resistncias. Os homens bem colocados, comprometidos por seu passado

    anticlerical, e com les os eclesisticos que tinham aderido constituio

    civil do clero, temiam as represlias. As negociaes foram longas e difceis (Lomnie, E. Beau, 1958, p. 116-117).

    O acordo firmado ficou conhecido como a concordata de Bonaparte e teve uma curta

    durao como nos relata em um segundo momento Lomnie:

    E outras complicaes tinham surgido. Bonaparte no se contentara de

    negociar com a Igreja. No mesmo esprito de conciliao, le procurara aliar

    34 Essa conjuno de fatores tambm foram igualmente importantes para a derrocada da Inquisio como relata Toby Green: Assim, podemos resumir da seguinte maneira os inimigos e os amigos da Inquisio em 1789: os

    inimigos era a liberdade, a igualdade e a interdependncia; os amigos eram o status quo e a hierarquia. A

    instituio prosseguiu seriamente em suas tentativas de censura. A proibio de livros e a inspeo de

    bibliotecas tornaram-se sua funo principal. Seus arquivos secretos cresciam com o grande nmero de casos

    documentados, medida que cada vez mais livros eram publicados, promovendo o que ela considerava idias

    ultrajantes. O grande nmero de livros proibidos naquela poca assinala tanto o florescimento das edies

    quanto a incapacidade da Inquisio de conter seu fluxo.(...) Era impossvel conter a libertinagem e o escrnio

    sobre a Inquisio e sobre tudo que ela prezava. Green, Toby. Inquisio O reinado do medo. Trad. Cristina

    Cavalcanti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p. 369.

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    a si, dando-lhes lugares em seus quadros administrativos, alguns dos

    membros da antiga nobreza que tinham voltado da emigrao logo que a ordem interior fra restabelecida. (...) O assunto cujas consequncias iam ser

    as mais catastrficas foi o Bloqueio Continental, destinado em princpio a

    impelir a Inglaterra runa, fechando ao seu comrcio todos os portos da Europa.

    Na Itlia, o Papa recusou fechar seus portos aos inglses. Napoleo ocupou ento os Estados Pontificais. Da surgiram irritaes que, ajuntando-se s

    dificuldades j suscitadas pela aplicao da Concordata, levaram Napoleo a

    deportar o Papa Pio VII para Savana. (Lomnie, E. Beau, 1958, p. 118).

    Era a ruptura entre a Igreja e o Estado...

    Esse movimento iniciado na Frana, com Napoleo Bonaparte, culminou com a ciso

    definitiva entre Estado e Igreja em 9 de setembro de 1905, quando a Terceira Repblica

    promulgou a separao definitiva entre a Igreja e o Estado em forma de lei.

    Contudo, a ruptura no foi apenas a nica conseqncia a ser enfrentada pela Igreja,

    pois, a maior punio aos lderes religiosos seria o laicismo.

    5. A chegada do laicismo

    O Estado sempre buscou uma autonomia de decises em relao Religio, afinal

    dividir a soberania no um interesse almejado pelos representantes do povo. Inmeras

    foram as aes de governantes para afastarem a influncia da Igreja, ou melhor, da Religio

    de seus governos. Entretanto, a resistncia religiosa tambm existiu e, por conseguinte, os

    estratagemas de manter o vnculo ativo.

    Sobre o tema Lucy Risso Moreira Csar:

    Contra as pretenses dos Estados de se afastarem da influncia do sacerdcio e da Igreja, os Papas Gregrio XVI e Pio IX comeam a

    combater as conseqncias do novo direito pblico, surgido das teorias

    protestantes, da Revoluo Francesa, do sculo das luzes, do naturalismo e laicismo modernos (Cesar Lucy Risso Moreira, 1982, p. 13)

    E demonstra qual foi o contra remdio adotado pela Igreja:

    Neste sentido, inauguram as encclicas, novo exerccio do magistrio que

    substitui o poder sobre a sociedade temporal. Trata-se de ensinamentos que ultrapassam o testemunho da f, desenvolvendo as razes e conseqncias

    da doutrina, atravs da teologia, para esclarecer os problemas da Igreja e da

    sociedade. (Cesar Lucy Risso Moreira, 1982, p. 13)

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    Esse relato histrico nos mostra que a Igreja nunca deixou de tentar manter seu poder

    poltico, independente da sua fora religiosa, afinal, a expanso territorial e o acmulo de

    riquezas da igreja se deveu muito em parte ao estratagema de unir f e poltica.

    Entretanto, Marco Aurlio Cassamano em sua tese de Doutorado (2006) apresenta trs

    acontecimentos fundamentais para a queda da Igreja e a ascenso do Estado: a) o Estado

    Moderno, b) a Reforma35

    e o Protestantismo e c) a secularizao.

    E justifica o porqu desses trs eventos:

    O Estado Moderno representa a supremacia da fora poltica, concentrada nas mos do monarca absolutista, em detrimento da Igreja. A Reforma e o

    Protestantismo ocasionaram a quebra do monoplio religioso mantido at

    ento pelo Catolicismo, provocando uma profunda mudana nos laos que

    prendiam a poltica religio. J a secularizao o processo pelo qual as pessoas, perdendo confiana num outro mundo ou no sobrenatural,

    abandonaram suas crenas religiosas, ou pelo qual a religio perdeu a sua

    influncia na sociedade.(Cassamano, 2006, p. 94)

    Com a ruptura do Estado com a religio a influencia poltica da Igreja sobre o Estado

    cessou. Contudo, o receio dos detentores do poder em uma possvel nova ascenso motivou

    uma resposta enrgica por parte dos governantes. Como se fora um recado direto sobre quem,

    agora, retinha o poder.

    Destarte, na Frana, com a ruptura em 1905 se inaugurou um perodo de completa

    intolerncia Igreja, foi o que se denominou de Laicismo.

    Laicismo pode ser traduzido como a completa ignorncia da presena da Igreja e,

    pior, da prpria Religio, como em um ato de censura, especialmente a Frana a partir da

    ruptura com a Igreja em 1905, instaurou a proibio de manifestao religiosa, atos de f e,

    por que no dizer da prpria manifestao da Igreja.

    A Carta do Papa Joo Paulo II a D. Jean-Pierre Ricard, Arcebispo de Bordus e

    Presidente da Conferncia Episcopal Francesa possuem importante dados acerca da separao

    do Estado e da Igreja e a relao de tais fatos com o laicismo:

    Em 1905, a lei de separao da Igreja e do Estado, que denunciava a

    Concordata de 1804, foi um acontecimento doloroso e traumatizante para a

    35 Miguel Chaia: A tolerncia contra a intolerncia religiosa desloca-se, de forma laica, para a ordem poltica.

    Calvino, mesmo reconhecendo que o governo secular e o reino interno e espiritual de Cristo so diferentes,

    tornou-se partidrio de uma ordem poltica que toma a seu cargo impedir que a verdadeira religio, a qual est contida na lei de Deus, seja manchada e violada com impunidade pela heresia pblica e ofensiva. A lei moral,

    com duplo sentido, quais sejam reverenciar a Deus e amar nosso prximo, fornece a argamassa para a

    organizao poltico-crist que engendrada a partir da Reforma e afeta a ordem civil, as leis e a organizao do

    povo. Chaia, Miguel. Tolerncia e liberdade aforismos intempestivos. In Passetti, Edson e Oliveira, Salete (coord.). A Tolerncia e o intempestivo. So Paulo: Ateli Editorial, 2005, p. 39.

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    Igreja na Frana. Ela regulava o modo de viver em Frana o princpio do

    laicismo e, neste mbito, ela mantinha unicamente a liberdade de culto, relegando ao mesmo tempo a f religiosa para a esfera privada e no

    reconhecendo vida religiosa e Instituio eclesial um lugar no seio da

    sociedade. Desta forma, a vida religiosa do homem era considerada unicamente como um simples sentimento pessoal, no reconhecendo assim a

    natureza profunda do homem, ser ao mesmo tempo pessoal e social em

    todas as suas dimenses, incluindo a dimenso espiritual.36

    Sendo assim, podemos concluir que o laicismo a supresso da religio da realidade

    estatal, a ponto de a mesma no ser considerada sequer como um elemento de f, pertencente

    a todos os seres humanos, logo, presente na sociedade.

    As pessoas poderiam cultuar seus deuses, exercer seus votos religiosos, desde, que

    no turbassem a ordem social, ou seja, o mesmo que dizer que a religio somente estava

    autorizada no interior dos lares das pessoas.

    A inteno for realmente cindir qualquer tipo de influencia da Igreja com o Estado,

    como conseqncia direta ruptura promovida pela Frana, atravs dos atos relatados

    anteriormente por ns e que culminaram na definitiva ruptura em 1905.

    E prossegue Joo Paulo II a falar sobre o laicismo na mesma carta:

    O princpio do laicismo, ao qual o vosso Pas est muito ligado, se for bem

    entendido, faz tambm parte da Doutrina social da Igreja. Ele recorda a necessidade de uma justa separao dos poderes (cf. Compndio da

    Doutrina Social da Igreja, nn. 571-572), que faz eco ao convite feito por

    Cristo aos discpulos: "Dai, pois, a Csar o que de Csar e a Deus o que de Deus" (Lc 20, 25). Por seu lado, a no-confessionalidade do Estado, que

    uma no-ingerncia do poder civil na vida da Igreja e das diferentes

    religies, assim como na esfera do espiritual, permite que todos os

    componentes da sociedade trabalhem juntos ao servio de todos e da comunidade nacional. De igual modo, como recorda o Conclio Vaticano II,

    a Igreja no tem por vocao a gesto do que temporal, pois, "em razo da

    sua misso e competncia, no pode confundir-se de modo algum com a comunidade poltica nem est ligada a nenhum sistema poltico"

    (Constituio Gaudium et spes, n. 76; cf. n. 42). Mas, ao mesmo tempo,

    fundamental que todos trabalhem pelo interesse geral e pelo bem comum. neste sentido que o Conclio diz: "No terreno que lhe prprio, a

    comunidade poltica e a Igreja, so independentes e autnomas. Mas ambas,

    embora a ttulos diferentes, esto ao servio da vocao pessoal e social dos

    mesmos homens. Exercero tanto mais eficazmente este servio para o bem de todos quanto mais cultivarem entre si uma s cooperao".

    37

    A manifestao papal apenas demonstra que a Igreja nunca deixou de lutar contra esse

    banimento por parte do Estado.

    36

    Fonte: http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/letters/2005/documents/hf_jp-ii_let_20050211_french-

    bishops_po.html, acesso em 3 de fevereiro de 2011. 37 Fonte:http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/letters/2005/documents/hf_jp-ii_let_20050211_french-

    bishops_po.html, acesso em 3 de fevereiro de 2011.

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    O que o Papa insiste em dizer que no se pode suprimir a f das pessoas como forma

    de ratificar a soberania poltica de um Estado, uma coisa no se confunde com outra, logo, a

    soluo apresentada pelo Pontfice a liberao da religio sem nenhum tipo de vnculo com

    o Estado, o que viria a se denominar laicidade.38

    6. Os Direitos Humanos e a ruptura do laicismo

    Enquanto nos pases ocidentais, a Igreja observava sua dominao e sua influencia ser

    nitidamente reduzida, o mesmo no se pode dizer dos pases do mundo rabe, aos quais, em

    sua esmagadora maioria no apenas adotam o islamismo como religio oficial, como esta tem

    uma influencia muito presente em termos polticos.

    Ao invs de existir e de se edificar uma aproximao entre as religies o que se viu ao

    longo dos sculos foi um profundo distanciamento, com caminhos a serem trilhados em

    movimentos distintos.

    Enquanto que as religies crists buscavam ocupar novamente o centro decisrio com

    uma influencia poltico-religiosa os lderes islmicos se preocupavam em edificar o Estado de

    acordo com os seus interesses e, assim, criar um ideal poltico religioso.

    A mudana da realidade religiosa ocidental ocorreu com dois eventos que

    modificaram sobremaneira o cenrio poltico e geogrfico do mundo: as duas Guerras

    Mundiais.

    Mais importante do que discutir o boicote aos ideais da Igreja tivemos uma profunda

    mudana acerca do conceito da vida humana, pois a banalizao e o descarte motivados pelas

    milhares de vidas dizimadas como esplio de Guerra, agora, eram a agenda do dia.

    38 Parte final da Carta de Joo Paulo II, como forma de ratificar a laicidade: Reconhecer a dimenso religiosa das pessoas e dos componentes da sociedade francesa, significa querer associar esta dimenso s outras

    dimenses da vida nacional, para que contribua com o seu dinamismo para a edificao social e para que as

    religies no se refugiem num sectarismo que poderia representar um perigo para o prprio Estado. A sociedade

    deve poder admitir que as pessoas, no respeito do prximo e das leis da Repblica, possam manifestar a sua

    pertena religiosa. Em caso contrrio, corre-se sempre o risco de um fechamento de identidade e sectrio, e do

    incremento da intolerncia, que impede a convivncia e a concrdia no seio da Nao. Devido vossa misso,

    estais chamados a intervir regularmente nos debates pblicos sobre as grandes questes da sociedade. De igual modo, em nome da sua f, os cristos, pessoalmente ou em associaes, devem poder tomar a palavra

    publicamente para expressarem as suas opinies e manifestar as suas convices, contribuindo assim para os

    debates democrticos, interpelando o Estado e os seus concidados sobre as responsabilidades de homens e

    mulheres, principalmente no campo dos direitos fundamentais da pessoa humana e do respeito da sua dignidade,

    do progresso da humanidade que no pode ser obtido a qualquer preo, da justia e da igualdade, assim como da

    proteo do planeta, so mbitos que dizem respeito ao futuro do homem e da humanidade, e responsabilidade

    de cada gerao. Eis por que a laicidade, longe de ser o lugar de um confronto, verdadeiramente o espao para

    um dilogo construtivo, no esprito dos valores de liberdade, igualdade e fraternidade, que so justamente muito

    queridos ao povo da Frana.

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    Afinal, com o trmino da Segunda Guerra Mundial, que perdurou de 1939 a 1945 e

    deixou um esplio estimado entre 40 a 52 milhes de pessoas mortas em decorrncia dos

    conflitos (Dados da Grande Enciclopdia Larousse Cultural,1998, p. 2863).

    No existe afronta maior contra a vida de um ser humano do que uma guerra? O que

    diriam as autoridades e os defensores dos direitos humanos por conta da ao humana mais

    de quarenta milhes de vidas deixaram de existir?

    Ademais, somente as mortes j seria uma justificativa minimamente razovel para

    uma mudana de paradigma, porm, a Segunda Guerra mundial conteve requintes especficos

    de crueldade que afrontam a dignidade de qualquer ser humano.

    O holocausto produziu cenas terrveis protagonizadas em campos de concentrao, em

    especial Auschwitz39

    e Bikernau com esterilizao em massa, experimentos em seres vivos,

    em corpos, mortes em cmaras de gs, perseguies e agresses que culminaram com mortes

    por conta de orientao sexual, raa e religio.

    A histria nos mostra que os direitos humanos sempre foram impulsionados por

    acontecimentos histricos, isto , se firmaram ao longo do tempo como uma resposta aos

    fatos sociais em um determinado espao-tempo, assim, receberam a classificao de direitos

    humanos de primeira, segunda e terceira gerao.

    Para nosso estudo ser importante situar o surgimento dos direitos humanos, portanto,

    iremos apresentar o surgimento histrico dos direitos humanos, sem deixar de mencionar as

    influncias histricas, contudo, no adentraremos na questo da classificao dos direitos

    humanos, pois, iremos por um caminho distinto.

    Nossa misso ser apresentar como eram os direitos humanos ps Independncia

    Americana e Revoluo Francesa e como ficaram aps as duas grandes guerras mundiais, as

    mudanas de paradigma e o novo caminho a ser defendido.

    Toda a nossa ateno sobre os Direitos Humanos estaro centradas na questo

    religiosa, tanto na permissibilidade como no combate aos abusos.

    39 Hannah Arendt fornece o relato histrico acerca da funcionalidade de Auschwitz: Lendo as atas do julgamento, deve-se ter sempre em mente que Auschwitz fora estabelecido para massacres administrativos que

    deviam ser executados segundo as regras e regulamentos mais rigorosos. Essas regras e regulamentos tinham

    sido estipulados pelos assassinos burocratas, e eles pareciam excluir provavelmente tinham a inteno de excluir toda iniciativa individual, quer para melhorar a situao, quer para pior-la. O extermnio de milhes foi planejado para funcionar como uma mquina: os prisioneiros chegando de toda a Europa; as selees na

    rampa, e as selees subseqentes entre aqueles que tinham sido robustos na chegada; a diviso em categorias

    (todos os idosos, crianas e mes com filhos deviam ser gaseados imediatamente); os experimentos humanos; o

    sistema dos prisioneiros de confiana, os caps e os comandos de prisioneiros que manejavam as instalaes de extermnio e detinham posies privilegiadas. Tudo parecia previsto e assim previsvel dia aps dia, ms aps ms, ano aps ano. E, ainda assim, o que resultou dos clculos burocrticos foi o exato oposto da

    previsibilidade. Foi uma completa arbitrariedade. Arendt, Hannah. Responsabilidade e julgamento.Trad.

    Rosaura Eichenberg. So Paulo: Companhia das letras, 2004, pgs. 319 e 320.

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    6.1. Os Direitos Humanos evoluo histrica

    A doutrina determina que a primeira gerao de direitos humanos tenha seu incio

    com a Independncia Americana e a Revoluo Francesa40

    . Contudo, inegvel a

    contribuio de alguns outros atos anteriores. Foi assim com a Magna Carta Inglesa em 1215,

    e, principalmente, com os atos impulsionados nos sculos XVI e XVII, por advento do

    movimento conhecido como iluminismo, quando uma srie de atos foram profcuos para o

    desenvolvimento dos direitos humanos fundamentais atravs do habeas corpus act, de 1679;

    o Bill of Rights em 1689. No entanto necessrio compreender o contexto histrico para

    concordar com a doutrina.41

    Afinal, se a concesso de um direito dependia de um soberano, ento o direito no era

    universal e a disposio do homem, logo, ao ser atrelado a vontade de outrem se tornava

    restrito, realidade essa, que realmente, somente se modificou com as Declaraes Americana

    de 1776 e Francesa de 1789.

    Todavia, a quebra de paradigma se iniciou com o iluminismo, pois esse movimento

    foi o responsvel por impulsionar novamente os iderios dos direitos humanos, que

    resultaram nos processos de conflitos na Frana e nos Estados Unidos, que culminaram com a

    40 Nilo Odalia: Compreender-se a Revoluo Francesa como fundadora dos direitos civis impe que no nos

    esqueamos de que o sculo XVIII conhecido como o sculo do Iluminismo e da Ilustrao, por ser o sculo

    de Voltaire e Montesquieu, de Kant e Holbach, de Diderot e DAlembert, de Goethe e Rousseau, de Mozart e Beethoven. Nele se deu, tambm, a tentativa de transformar as cincias da natureza em cincias da razo e da

    experimentao. Odalia, Nilo. A liberdade como meta coletiva. In Pinsky, Jaime & Pinsky, Carla Bassanezi

    (org.). Histria da cidadania. 5 ed. So Paulo: Contexto, 2010, p. 159. Somado ao relato de Nilo Odalia temos de

    considerar os sculos de opresso da Igreja Catlica em decorrncia da Inquisio, a dominao do Clero e da

    Nobreza sobre a esmagadora maioria da populao francesa denominada de Terceiro Estado. No entanto, o Terceiro Estado, ao qual se situava a Burguesia, era explorado e perdia riquezas e territrios para o Clero,

    especialmente, e para a nobreza. Em toda essa conjuntura histrica era de se esperar que a Revoluo fosse

    apenas uma questo de tempo. E ainda, com a influencia dos ideais propostos pela abertura de Napoleo

    Bonaparte o avano em defesa das liberdades e a ciso com a tirania e com a submisso eram inevitveis. E o

    marco dessa Revoluo foi a conseqncia direta produzida ao longo do globo, pois, se no foi o embrio dos

    direitos fundamentais, foi, sem dvida, a sua mola propulsora. 41 Na verdade, Norberto Bobbio elucida a importncia dos movimentos anteriores Revoluo Francesa e

    explica os motivos de no serem considerados como marcos para os direitos humanos: A relao tradicional entre direitos dos governantes e obrigaes dos sditos invertida completamente. At mesmo nas chamadas

    cartas de direitos que precederam as de 1776 na Amrica e a de 1789 na Frana, desde a Magna Charta at o Bill

    of Rights de 1689, os direitos ou as liberdades no eram concedidos ou concertados, devendo parecer mesmo que fossem resultado de um pacto entre sditos e soberano como um ato unilateral deste ltimo. O que equivale dizer que, sem a concesso do soberano, o sdito jamais teria tido qualquer direito. No diferente o

    que ocorrer;a no sculo XIX: quando surgem as monarquias constitucionais, afirma-se que as Constituies

    foram octroyes pelos soberanos. O fato de que essas Constituies fossem a conseqncia de um conflito entre

    rei e sditos, concludo com um pacto, no devia cancelar a imagem sacralizada do poder, para a qual os

    cidados obtm sempre o resultado de uma graciosa concesso do prncipe. As Declaraes de Direito estavam

    destinadas a inverter essa imagem. E, com efeito, pouco a pouco lograram invert-la. Hoje, o prprio conceito

    de democracia inseparvel do conceito de direitos do homem. Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 114.

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    Revoluo Francesa e a Independncia norte americana, respectivamente e que determinaram

    o surgimento da primeira gerao dos direitos humanos42

    .

    Todos esses atos foram importantes para desenvolver o conceito de liberdade,

    fraternidade e igualdade entre todos os homens. Contudo, os conflitos e, especialmente, as

    mortes impulsionaram uma necessidade de buscar a valorao do prprio homem. E a

    Primeira Guerra Mundial que ocorreu entre 1914 e 1918, com um saldo negativo de 9

    milhes de mortos acelerou ainda mais o processo (Dados da Grande Enciclopdia Larousse

    Cultural, 1998, p. 2859.

    No entanto, como que as Naes se organizaram para discutir e desenvolver um

    contraremdio s agruras trazidas pelas guerras? A resposta a essa indagao, a nosso ver,

    representou a evoluo concreta dos direitos humanos para a defesa do cidado.

    6.2. Os Direitos humanos ps I e II Guerras Mundiais

    Os Direitos Humanos conheceram uma nova fase com o final da Segunda Guerra

    mundial, em um movimento que se iniciou com as guerras francesas e sua Declarao dos

    Direitos do Homem em 1789.

    O marco histrico a presena na Declarao Francesa de 1789 o artigo 243

    :

    A finalidade de toda associao poltica a preservao dos direitos naturais

    e imprescritveis do homem. Esses direitos so a liberdade, a prosperidade, a

    segurana e a resistncia opresso.

    Com o trmino das guerras e a perda inestimvel de milhes de vidas, o primeiro

    grande ato em busca da defesa dos direitos humanos foi a criao em 26 de junho de 1945,

    em So Francisco de um rgo que iria representar os cinqenta e um pases signatrios e

    proteger os cidados, suas relaes, liberdades, etc., nascia assim a Organizao das Naes

    Unidas (ONU).

    Apenas trs anos aps a sua criao, em 1948, a ONU aprovou a Declarao

    Universal de Direitos do Homem44

    , que notadamente foi influenciada pela Declarao de

    1789, mas lapidada pelas agruras dos acontecimentos histricos j referidos.

    42 Fbio Konder Comparato afirma: O artigo I da Declarao que o bom povo da Virgnia tornou pblica, em 16 de junho de 1776, constitui o registro de nascimento dos direitos humanos na Histria. Comparato, Fbio

    Konder. A afirmao histrica dos Direitos Humanos. 3 Ed. So Paulo: Saraiva, 2003, p. 49. 43

    Fonte: http://www.senat.fr/lng/pt/declaration_droits_homme.html, acesso em 3 de fevereiro de 2011. 44 Norberto Bobbio afirma que: A Declarao Universal dos Direitos do Homem pode ser acolhida como a maior prova histrica at hoje dada do consensus omnium gentium sobre um determinado sistema de valores. Os

    velhos jusnaturalistas desconfiavam e no estavam inteiramente errados do consenso geral como

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    O prembulo j possui os elementos norteadores do que viriam a se traduzir em um

    novo conceito de Direitos humanos ao justificar os anseios sociais das pessoas comuns.45

    Jos Lindgren Alves j apontava as semelhanas:

    Seus postulados fundamentais, que remontam Revoluo Francesa, so a

    liberdade, a igualdade e a fraternidade, expressos na formulao do Artigo 1 de que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, devendo agir reciprocamente com esprito de fraternidade. Desses postulados decorre o princpio da no discriminao por motivo de raa, cor sexo, lngua, religio, opinies, origem nacional ou social, riqueza,

    nascimento ou qualquer outra condio, inclusive a situao poltica,

    jurdica ou nvel de autonomia do territrio a que pertenam s pessoas explicitado no Artigo 2. (Alves, 1997, p. 27.)

    Com a Declarao Universal dos Direitos Humanos46

    , de 1948, o homem, ou melhor,

    a dignidade da pessoa humana passou a principal preocupao e o alvo mximo de proteo.

    E, tambm, um novo marco histrico fundamental, pela primeira vez fora criado um

    documento universalmente aceito pela maioria das pessoas, atravs da ratificao de seus

    governos, um conjunto de regramentos e comportamentos sociais criados pelo prprio

    homem, sem que houvesse algum tipo de envolvimento a Igreja e que abrangesse a todos e

    no a determinados grupos, como no caso da religio e das Igrejas.47

    fundamento do direito, j que esse consenso era difcil de comprovar. Seria necessrio buscar sua expresso

    documental atravs da inquieta e obscura histria das naes, como tentaria faz-lo Giambattista Vico. Mas

    agora esse documento existe: foi aprovado por 48 Estados, em 10 de dezembro de 1948, na Assemblia Geral

    das Naes Unidas; e, a partir de ento, foi acolhido como inspirao e orientao no processo de crescimento

    de toda a comunidade internacional no sentido de uma comunidade no s de Estados, mas de indivduos livres

    e iguais. Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 47. 45 Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da famlia humana e de seus direitos iguais e inalienveis o fundamento da liberdade, justia, e da paz no mundo, Considerando que o

    desprezo a o desrespeito pelos direitos humanos resultou em atos brbaros que ultrajaram a conscincia da

    Humanidade e que o advento de um mundo no qual os seres humanos gozem de liberdade de expresso e de

    crena e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspirao

    do homem comum. (Duas primeiras partes do prembulo). Alves, Jos Augusto Lindgren. A arquitetura

    internacional dos direitos humanos. So Paulo: FTD, 1997, p. 49. 46 Norberto Bobbio tinha dvidas se a humanidade tinha conscincia da grandeza do que a Declarao Universal

    dos Direitos do Homem representava para a prpria histria: No sei se tem conscincia de at que ponto a Declarao Universal representa um fato novo na histria, na medida em que, pela primeira vez, um sistema de

    princpios fundamentais da conduta humana foi livre e expressamente aceito, atravs de seus respectivos

    governos, pela maioria dos homens que vivem na Terra. Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 47. 47 Norberto Bobbio: Com essa declarao, um sistema de valores pela primeira vez na histria universal, no em princpio, mas de fato, na medida em que o consenso sobre a validade e sua capacidade para reger os

    destinos da comunidade futura de todos os homens foi explicitamente declarado. (Os valores de que foram

    portadoras as religies e as Igrejas, at mesmo a mais universal das religies, a crist envolveu de fato, isto ,

    historicamente, at hoje, apenas uma parte da humanidade.) Somente depois da Declarao Universal que

    podemos ter a certeza histrica de que a humanidade toda a humanidade partilha alguns valores comuns; e podemos, finalmente, crer na universalidade dos valores, no nico sentido em que tal crena historicamente

    legtima, ou seja, no sentido em que universal significa no algo dado objetivamente, mas algo subjetivamente

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    Sempre a humanidade reagiu positivamente aps um grande mal causado pelo prprio

    homem, foi assim com a Conveno de Viena, aps o final da I Guerra Mundial e, foi assim,

    com a criao de um organismo transnacional, independente responsvel por regular as

    relaes sociais e humanitrias entre os seus Estados-Membros, papel esse que passou a ser

    desenvolvido pela ONU a partir de 1945.

    Aps a Declarao Universal dos Direitos do Homem, de 1948, uma srie de atos,

    resolues e medidas foram desenvolvidas para proteger o direito das minorias e, acima

    disso, garantir a igualdade de direitos, independentemente da orientao poltica, sexual ou

    religiosa.

    Assim, com a busca por um sistema de Direitos Humanos calcado na liberdade

    religiosa no mais fazia sentido o laicismo e, paulatinamente, este foi sendo transmutado pela

    laicidade, ou seja, a no interferncia do Estado em questes religiosas e vice-versa.

    Trata-se, portanto, de um novo cenrio para o Estado e para a Igreja: a segunda tem

    total liberdade na sociedade, desde que no atue politicamente ou, tampouco, influa no poder

    decisrio do Estado.

    a acepo da tolerncia e da liberdade religiosa, a qual a prpria Igreja teve papel

    fundamental com o Pacem in Terris, como demonstra Claude Geffr:

    Tomemos o exemplo da Frana onde fizemos a aprendizagem, de parte a

    parte, tanto da parte do Estado como da parte da Igreja, do que significa uma

    verdadeira toler6ancia, aps a herana difcil da Revoluo vivida pelos catlicos. certo que o Vaticano II operou uma reviravolta notvel, ou seja,

    pela primeira vez a Igreja j na pessoa de Joo XXIII no momento da Pacem in Terris em 1963, e depois no conclio do Vaticano II em sua Declarao sobre a liberdade religiosa aceitou o princpio de uma sociedade leiga, de uma sociedade pluralista, de uma sociedade que tem sua

    legitimidade, mesmo se essa sociedade no possui um fundamento

    imediatamente religioso (Geffre, 1993, p. 50).

    J o Estado no minora ou interfere nas prticas religiosas da Igreja e professa, uma

    liberdade de crena e culto, ou seja, o surgimento de um Estado tolerante, ou laico. Assim

    sendo, o mote fundamental passou a ser a defesa de uma liberdade religiosa, da possibilidade

    de se cultuar o seu Deus, de se fazer o proselitismo religioso, desde que nenhum destes atos

    interfira negativamente na liberdade dos demais.

    E a questo da tolerncia foi englobada como um dos principais meios de proteo da

    Constituio dos Pases. E, na ausncia de um tipo normativo especifico os Estados tm

    acolhido pelo universo dos homens. Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 48.

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    aderido a uma srie de instrumentos internacionais desenvolvidos para assegurar a tolerncia,

    atravs de Tratados, Convenes, Pactos etc.48

    6.3. A tolerncia religiosa

    Jacques Le Goff (2000, p. 38) afirma que o conceito de tolerncia surgiu no sculo

    XVI:

    A noo de tolerncia (e, correlativamente, a de intolerncia) surge no sculo XVI. Uma de suas primeiras utilizaes pblicas encontrada no

    Edito de Tolerncia (1562), que concede liberdade de culto aos protestantes.

    A partir do final do sculo XVII, ela amplamente utilizada ( assim como a de intolerncia). A idia de que a tolerncia no natural, mas exige um

    certo esforo para ser aceita, uma disciplina, perdura at nossos dias. A

    tolerncia uma construo, uma conquista.

    A Santa Inquisio ensinou o que deve ser tolerncia e como que a violncia e a

    manipulao poltica podem ser usadas a fim de manter um ideal forosamente49

    .

    48 Declarao Francesa de Direitos do Homem, atravs do seu artigo 10; A Carta das Naes Unidas, de 26 de

    junho de 1945; O prembulo da Declarao Universal dos Direitos do Homem, bem como o seu artigo 2; A

    Conveno Europia dos Direitos do Homem, firmada em Roma, em 4 de novembro de 1950, atravs dos artigos 14, 18 e 26; Declarao sobre a Preveno e Punio do Crime de Genocdio; A Carta Encclica PACEM

    IN TERRIS editada pelo Vaticano, em 11 de abril de 1963; Na seqncia, o Vaticano emitiu, em 1965, a

    Declarao DIGNITATIS HUMANAE; O artigo 4 da Conveno Relativa ao Estatuto dos Refugiados; No

    mesmo sentido, a proteo a pratica religiosa em relao aos aptridas, conforme os artigos 3 e 4 da

    Conveno relativa aos Aptridas; Em 1965, um novo marco histrico com a criao da Conveno

    Internacional sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao Racial; Na mesma esteira temos o Pacto

    Internacional sobre Direitos Civis e Polticos, de 1966; Ainda em 1966 tivemos o Pacto Internacional Sobre

    Direitos Econmicos, Sociais e Culturais e a questo da liberdade religiosa est presente no artigo 13; Em 1979,

    a Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao Contra as Mulheres; Em 1980, o ento

    Papa Joo Paulo II emitiu uma mensagem aos pases signatrios do Ato final de Helsinque; E, em 1981, a ONU

    emitiu a mais importante Declarao sobre o assunto religio: A Declarao sobre a Eliminao de Todas as

    Formas de Intolerncia e Discriminao Baseadas em Religio ou Crena; Em 1 de janeiro de 1988, o Papa Joo Paulo II emite uma mensagem por ocasio da celebrao do XXI dia mundial da paz; Em 1989, a ONU

    edita a Conven