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1 X SEL – Seminário de Estudos Literários UNESP – Campus de Assis ISSN: 2179-4871 www.assis.unesp.br/sel [email protected] DA INVECTIVA À IRONIA EM LIMA BARRETO Áureo Joaquim Camargo (Mestre – UFMS/MS) RESUMO: A obra de Lima Barreto é vasta. Escreveu romances, sátiras, crônicas e artigos que refletiam bem o seu estado de espírito crítico com relação aos problemas sociais, econômicos e culturais do Rio de Janeiro. Este trabalho procura delinear alguns aspectos da construção da sua crítica, através da leitura de duas crônicas: “O ideal do Bel-Ami” e “O oráculo”. Num primeiro momento, teceremos alguns comentários sobre a sua militância e o seu enfrentamento ao sistema literário da época, e do qual se sentia um excluído. Num segundo momento, propomos a análise da construção da sua crítica pelo viés da invectiva e da ironia. PALAVRAS-CHAVE: Lima Barreto; crônicas; crítica; ironia. Lima Barreto: um projeto de literatura militante A obra de Lima Barreto constitui um elemento importante na análise dos muitos problemas existentes no Rio de Janeiro do início do século XX. O escritor carioca procurou usar a literatura como ferramenta de crítica aos desmandos dos poderosos, principalmente com relação à política vigente na época. Elementos importantes dentro de sua produção são suas crônicas, as quais usou também para criticar o sistema literário, principalmente no que se referia à política editorial, ao mandarinato literário, como ele mesmo assim o definia. Mas a grande dificuldade enfrentada pelo escritor também era decorrente de suas críticas ácidas, principalmente após a publicação de Recordações do Escrivão Isaías Caminha, em 1909, um roman à clef, em que narra os bastidores de um grande jornal, O Globo; na realidade, tratava-se do Correio da Manhã. A ousadia do jovem escritor seria combatida com o fechamento das portas das editoras e com a crítica dos senhores da literatura; os que vestem casa e frequentam a Livraria Garnier,

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X SEL – Seminário de Estudos Literários UNESP – Campus de Assis ISSN: 2179-4871 www.assis.unesp.br/sel [email protected]

DA INVECTIVA À IRONIA EM LIMA BARRETO

Áureo Joaquim Camargo (Mestre – UFMS/MS)

RESUMO: A obra de Lima Barreto é vasta. Escreveu romances, sátiras, crônicas e artigos que refletiam bem o seu estado de espírito crítico com relação aos problemas sociais, econômicos e culturais do Rio de Janeiro. Este trabalho procura delinear alguns aspectos da construção da sua crítica, através da leitura de duas crônicas: “O ideal do Bel-Ami” e “O oráculo”. Num primeiro momento, teceremos alguns comentários sobre a sua militância e o seu enfrentamento ao sistema literário da época, e do qual se sentia um excluído. Num segundo momento, propomos a análise da construção da sua crítica pelo viés da invectiva e da ironia. PALAVRAS-CHAVE: Lima Barreto; crônicas; crítica; ironia.

Lima Barreto: um projeto de literatura militante

A obra de Lima Barreto constitui um elemento importante na análise dos muitos

problemas existentes no Rio de Janeiro do início do século XX. O escritor carioca procurou usar

a literatura como ferramenta de crítica aos desmandos dos poderosos, principalmente com

relação à política vigente na época. Elementos importantes dentro de sua produção são suas

crônicas, as quais usou também para criticar o sistema literário, principalmente no que se referia

à política editorial, ao mandarinato literário, como ele mesmo assim o definia.

Mas a grande dificuldade enfrentada pelo escritor também era decorrente de suas

críticas ácidas, principalmente após a publicação de Recordações do Escrivão Isaías Caminha,

em 1909, um roman à clef, em que narra os bastidores de um grande jornal, O Globo; na

realidade, tratava-se do Correio da Manhã.

A ousadia do jovem escritor seria combatida com o fechamento das portas das editoras

e com a crítica dos

senhores da literatura; os que vestem casa e frequentam a Livraria Garnier,

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jamais lhe perdoarão a ousadia da violenta arremetida, as diatribes ferinas que dirigira a certos príncipes do jornalismo e das letras, as caricaturas cruéis que ainda hoje cobrem de ridículo medalhões cheios de empáfia, os mais importantes medalhões da época. (BARBOSA, 1975, p. 175).

Assim, o amanuense do Ministério da Guerra começava sua história literária,

procurando criticar os vícios que ele abominava nos jornais da época. Zélia Nolasco-Freire

afirma que

é possível que todo o confronto que existiu em Lima Barreto e a Crítica Literária logo no início da carreira do escritor, deve-se em grande parte ao romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909). Isso não quer dizer que o romance não apresente qualidades literárias, mas por se posicionar contra o estilo literário vigente. Subentende-se que a Crítica ─ por se sentir ameaçada ou despreparada ─ analisa-a somente pelo viés: vida e obra. Quando não, implantam a lei do silêncio. Além de fazer um retrato cruel do mundo jornalístico é o romance no qual o escritor mais se deixa transparecer. (FREIRE, 2005, p. 132).

O próprio Lima se ressente dessa situação, quando escreve em seu Diário Íntimo:

Hoje pus-me a ler velhos números do Mercure de France. Lembro-me bem que os lia antes de escrever o meu primeiro livro. Publiquei-o em 1909. Até hoje nada adiantei. Não tenho editor, não tenho jornais, não tenho nada. O maior desalento me invade. Tenho sinistros pensamentos. Ponho-me a beber; paro. Voltam eles e também um tédio da minha vida doméstica, do meu viver quotidiano, e bebo. (BARRETO, 1956, p. 171).

Mesmo com as dificuldades particulares, como o seu alcoolismo e os surtos psicóticos

que o acometiam, Lima Barreto não se esquivou de sua militância intelectual. Tinha perfeita

consciência de que estava na contramão das normas estéticas e intelectuais da época. Para

FANTINATI,

Claro está que, para um artista que se propõe à militância, sua atitude, face ao campo intelectual, é de conflito e de dissensão, pois, impondo-se a tarefa de desestruturar a sociedade, encontra aí justamente seu primeiro obstáculo. Se, desde o primeiro momento, assume uma atitude militante, estreia, em busca da aceitação social, terá que ser feita à margem dos padrões convencionais de acesso ao campo intelectual: não poderá ser amparado pelo escritor consagrado, não contará com a predisposição à receptividade por parte de editores, jornalistas, críticos e de instâncias outras de legitimação. Em outros termos: seu trabalho não contará com a solidariedade da admiração mútua, em que, em dados momentos, se transforma o campo intelectual (1978, p.6).

As dificuldades de relacionamento com a elite intelectual da época estavam mais

ligadas à visão de mundo e de literatura do que propriamente pela diferença racial e econômica

de Lima Barreto. Tinha ele pretensões de sucesso na literatura, procurava seu lugar de

destaque, principalmente concorrendo a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.

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Embora o artista militante seja um contestador da sociedade e, por conseguinte, do sistema intelectual vigente, apresenta ele, em relação ao intelectual triunfante num sistema simbólico, um ponto comum, a saber, a busca do sucesso. Se a marca do artista que goza do beneplácito do campo intelectual é o êxito social, a necessidade imanente ao projeto do artista militante é a de uma recepção social positiva, facilmente compreensível se se atentar para o fato de que uma recusa social de sua obra significa para ele um sintoma de fracasso na tarefa que atribui a si mesmo. (FANTINATI, 1978, p. 7).

Tentou Lima Barreto por três vezes entrar para a Academia Brasileira. Preterido nas

duas primeiras vezes, retirou a sua candidatura na terceira vez. Em 13 de agosto de 1921, em

crônica publicada na revista Careta, ele afirma:

Vou escrever um artigo perfeitamente pessoal; e é preciso. Sou candidato à Academia de Letras, na vaga do Senhor Paulo Barreto. Não há nada mais justo e justificável. Além de produções avulsas em jornais e revistas, sou ator de cinco volumes, muito bem-recebido pelos maiores homens de inteligência de meu país, nunca lhes solicitei semelhantes favores; nunca mendiguei elogios. Portanto, creio que minha candidatura é perfeitamente legítima, não tem nada de indecente. Mas [...] chegam certos sujeitos absolutamente desleais, que não confiam nos seus próprios méritos, quê têm títulos literários equívocos e vão para os jornais e abrem uma subscrição em favor de suas pretensões acadêmicas (BARRETO, 1921).

Mais adiante, o cronista cita sua condição de não ter o apoio dos grandes meios de

comunicação da época, como o Correio da Manhã:

Se não disponho do Correio da Manhã ou do Jornal [cremos se tratar do Jornal do Comércio], para me estamparem o nome e o retrato, sou alguma coisa nas letras brasileiras e ocultarem meu nome ou o desmerecerem, é uma injustiça contra a qual eu me levanto com todas as armas ao meu alcance ( BARRETO,1956, p. 44).

A afirmação de FANTINATI (1978, p. 6) de que o escritor, mesmo militando contra a

sociedade vigente, procura encontrar o reconhecimento de sua obra, é corroborada por Lima

Barreto, na mesma crônica citada anteriormente:

Eu sou escritor e, seja grande ou pequeno, tenho direito a pleitear as recompensas que o Brasil dá aos que se distinguem na sua literatura. Apesar de não ser menino, não estou disposto a sofrer injúrias nem a me deixar aniquilar pelas gritarias de jornais. Eu não temo abaixoassinados em matéria de letras (BARRETO, 1956).

Seu sonho de entrar para a academia acabou não sendo realizado. Embora o seu livro

Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá tenha recebido menção honrosa pela Academia de Letras,

em abril do mesmo ano, Lima Barreto retiraria sua candidatura para a vaga aberta pela morte de

Paulo Barreto.

Ao morrer, Lima Barreto deixaria uma infinidade de artigos, crônicas, sátiras e contos,

além de seus romances. Sua contribuição para as revistas e os jornais do Rio de Janeiro

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constitui numa das mais importantes para a literatura brasileira, principalmente se levarmos em

consideração sua postura crítica diante dos sistemas político, econômico e literário da época.

Da invectiva ao ataque direto

Nos artigos e crônicas de Lima Barreto, encontramos uma galeria de fatos e

personagens que ilustra muito bem o panorama dos primeiros vinte anos do século XX carioca.

A cidade do Rio de Janeiro, com seus problemas e sua disparidade cultural, econômica e

política, serve ao cronista como o motivo de sua escrita, o motivo de sua paixão.

O Rio de Janeiro das crônicas de Lima Barreto é a cidade dos contrastes, das revoltas, das ruínas sob o vento do progresso, mas é antes de mais nada a expressão de uma paixão tão forte que as outras, mais humanas, não deixa espaço. Sozinho na multidão, de ninguém pode se aproximar realmente, por estar tomado de um sentimento excessivo de proximidade, com toda a cidade que só a literatura pode expressar. (RESENDE, 1993, p. 100).

Essa relação com a cidade e suas peculiaridades não é tão simples assim. Ela se

constrói de modo arrevesado, pois, apesar da sua paixão pela cidade, o escritor se sente uma

das muitas vítimas do processo de reestruturação pela qual passou a cidade, com as reformas

de Pereira Passos. Como voz que se porta contrária aos anseios de uma cidade que se quer ver

europeia, principalmente parisiense. Muitos cronistas aderiram ao projeto de remodelação da

capital, procurando impor os modelos europeus, tal como a revista Kosmos e a seção Binóculo,

a cargo de Figueiredo Pimentel, na Gazeta de Notícias.

A revista Kosmos, por exemplo,

Não fora pensada para questionar nenhum tipo de sistema: literário ou não. Seu conteúdo de arte ─ constrói-se sobre tendências diversas do panorama intelectual europeu fin-de-siécle, no qual entrecruzam-se simbolistas, parnasianos, decadentes, realistas já em fase de dissolvência. Antes de mais nada, Kosmos era ato de afirmação; veículo móvel, comprobatório do remodelamento urbano, sua extensão. Protagonista de uma consciência urbana moderna que se modelava à custa da negligência dos subúrbios cariocas, espaço da competência de Lima Barreto. (DIMAS, 1983, p. 10).

A postura de Lima Barreto diante da moda, da militância do dandismo e do smartismo

é da crítica social, que procura mostrar aos leitores os malefícios que a reforma da cidade, com a

destruição de certa característica tropical, que acabaria por levá-lo sempre ao inconformismo.

Lima Barreto, segundo Antônio Dimas,

em seu habitual (e delicioso!) desempenho de advogado do diabo, ainda em 1920, denunciava o lado negativo do reformismo, sem se inquietar com a pecha de reacionário.

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Para ele, era preciso cuidar da “função social” de certas construções, sem o que elas pareciam “arremedos parisienses, [...] fachadas e ilusões cenográficas” (DIMAS, 1983, p. 11).

Não é só contra a abertura de avenida e prédios a que se opunha Lima Barreto; ele

também se posicionou contra os desmandos, a incompetência administrativa e econômica dos

políticos, da situação de pobreza que era imposta aos menos favorecidos. Em mais de uma

crônica, o escritor mostrou sua indignação contras os modelos políticos, culturais e econômicos

da época.

A crítica contumaz de Lima Barreto é processada por meio de vários procedimentos,

passando pela invectiva, pela ironia, pelo escracho puro e pelo tom jocoso em alguns casos. O

uso dessas técnicas tinha como objetivo a crítica àqueles contra os quais se ressentia.

A sua verve ferina voltava-se principalmente contra o mandarinato literário, não

deixando de atacar também o sistema político da República Velha com seus representantes. Em

uma crônica publicada em 1916, pelo jornal A.B.C., ele ataca duas figuras públicas da época, os

quais teriam sido escolhidos para exercerem cargos no exterior. Trata-se da crônica “O ideal do

Bel-Ami”.

Nesta crônica, a maneira pela qual faz sua crítica é através da invectiva, ou seja, pelo

ataque direto, nominal. O cronista trata da designação de Miguel Calmon para reger o curso de

Estudos Brasileiros, em Coimbra, e a de Hélio Lobo para o curso de História da Diplomacia

Brasileira, em Harvard.

No início da crônica, o autor faz um desabafo, como uma espécie de justificativa para

sua crítica: “É doloroso depois de certa idade, depois de ter perdido muitas das ilusões de

menino, vir publicamente demonstrar intolerância”. A esse posicionamento de intolerância com a

qual o autor principia seu texto é juntada uma validação das invectivas e críticas ácidas que se

seguiram pela crônica afora:

Da vida, pouco me resta de esperança e nada de ilusões, e eu não sairia a campo para dizer as verdades que aí vão ditas, se não fossem o nojo e o ódio que sinto ao ver a desfaçatez e o cinismo chegarem ao cúmulo em nossa terra, em questões de literatura (BARRETO, 1916) (grifos nossos).

A escolha lexical dos termos “nojo” e “ódio” contrapõe aos termos “desfaçatez” e

“cinismo”, que marcam o objeto da crítica do cronista.

Ao centrar sua crítica às figuras de Hélio Lobo e Miguel Calmon, está centrando sua

crítica ao sistema literário e, por vias indiretas, ao grupo estabelecido no poder. Ao se referir às

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indicações de Lobo e Calmon, ele sentencia: “Que parelha!”. O termo “parelha”, usado

comumente para se referir às formações de animais de tração, ganha no texto um significativo

valor na intencionalidade do rebaixamento do objeto da crítica.

O rebaixamento da imagem das duas figuras continua nos próximos parágrafos da

crônica, aumentando a acidez da crítica. Nos dois próximos parágrafos o alvo recai sobre Hélio

Lobo e as invectivas e indiretas referem-se à sua presumível mediocridade como escritor:

[...] é o mais presumido bobo de que se tem notícia no Brasil que escreve; [...] Dele, não há nada nos seus livros; o que há de propriedade do mesmo nas obras em põe o nome, são os comentários mais tolos, indignos do mais humilde repórter de polícia.

Para concluir o rebaixamento do oponente e relacioná-lo à proposta de mostrar sua

intolerância quanto à “desfaçatez e o cinismo” que chegaram “em questões de literatura”, o

cronista declara: “É um homem desses que vai não sei para onde representar a inteligência do

Brasil”. Continuando com o desmerecimento da indicação de Lobo para o cargo, Lima Barreto

dirige-se aos leitores e refere-se ao fato de que Harvard é famosa pelas disputas esportivas e

que o indicado não tem aptidão física para tal. A referência ao fato é irônica, pois quer mostrar

que o outro não tem qualidades físicas nem intelectuais para o cargo de professor de Harvard.

Confessa Lima que conhece pouco Hélio Lobo, mas que conhece muito bem Miguel

Calmon, pois estudara com ele na Escola Politécnica, onde, segundo o cronista, “andei

vagabundando e conhecendo os homens durante alguns anos de minha meninice”. A referência

ao ex-colega não é menos ácida do que a que fez a Hélio Lobo: “Desde cedo, [Calmon] tomou

ares solenes e idiotas, para impressionar toda a gente. Morava em Niterói, com uma claque de

baianos, que diziam da inteligência dele as maiores maravilhas”. Nota-se, então, uma crítica à

personalidade que se forma (Calmon) e àqueles que a formam (a claque). Uma crítica àquele

que ilude e àqueles que são iludidos.

Da invectiva, passa ao ataque irônico: “Calmon, que nunca tinha sido notado nos

primeiros anos, de repente, graças à claque, passou a ser tido como um gênio, o que não era

difícil de admitir nele, em virtude de um fraque rabudo e duns precoces cabelos brancos”. Aqui, o

alvo do ataque é reduzido a uma mera figuração criada pelo vestuário (o fraque rabudo) e um

falso sinal de experiência (precoces cabelos brancos).

O ataque continua na crônica, com referências à formação intelectual e política de

Calmon, reforçando a maneira como foi criada a fama dele pelos “bajuladores profissionais das

gazetas”. Um dos bajuladores profissionais a que se refere é Mário Cataruzza que, segundo o

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cronista, era “galopim internacional de cavações, que, como os genealogistas dos cabarets

parisienses, afirmou que Calmon descendia de Turenne”.

Como afirmamos anteriormente, a estratégia usada por Lima Barreto é a de

rebaixamento da figura do oponente, qualificando-a como representante de parte da sociedade

que se pretende reformar. Está claro que o cronista ataca o sistema literário e a maneira como

se forma a inteligência brasileira:

O senhor Calmon é o exemplo da ideia que, no Brasil, se tem de coisas de inteligência. Ele nada fez nem aquilo que estudou, nem aquilo que pretendeu, ele, se não é velho, também não é menino; tem tido todas as facilidades, mas não tem uma obra, um ensaio, uma página que diga alguma coisa dele mesmo.

A seguir indaga:

À vista de tais exemplos, pergunto: que todos nós devemos pensar sobre o rumo que as coisas vão tomando no Brasil? Que devemos ensinar aos meninos? Os pais, que devem ensinar aos filhos? As mães, que devem incutir na alma das criaturas que elas geraram? É a abnegação? É a honra? É o sacrifício pelo ideal? É o estilo? O que é?

A resposta é arrevesada, irônica:

Não deve ser nada disso; nada, meu Deus! O que nós devemos ensinar aos filhos, aos moços, aos meninos, é que aprendam o Bel-Ami, de Maupassant; façam Pachecos, mas que tenham sempre em mira prometer casamento à filha deste, para arranjar por intermédio do casamento, tudo.

Referindo-se a um exemplo da literatura francesa, a do sujeito de origem humilde que

ascende socialmente através das relações com mulheres ricas e influentes, o cronista afirma sua

tese de que no Brasil as relações são formadas através dos conchavos, do apadrinhamento, dos

casamentos arranjados. É como termina a crônica, implacavelmente pela ironia: “É preciso não

deixar de obter umas medalhinhas nas escolas e faculdades, como as meninas das irmãs. O que

nós devemos pregar aos moços não é um ideal cavalheiresco; é o ideal do Bel-Ami” (grifos

nossos).

A ironia, aliada à invectiva confere ao texto de Lima Barreto um instrumento para

demonstrar o seu repúdio aos elementos que compõem o lado contrário, deixando transparecer

sua ideologia combativa:

A ironia retórica corresponde ao primeiro grau de evidência da ironia, o da ironia coberta, no dizer de Wayne Booth. Trata-se daquele nível em que ela pretende ser compreendida como tal, isto é: a mensagem deve ser percebida em sentido contrário, antifrástico, caso em que a tática de ação pode ser tanto a simulação quanto a dissimulação. Embora o sentido pretendido não seja diretamente expresso, uma verdade é afirmada, há uma

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mensagem a compreender, o que pode significar uma ideologia a exaltar ou a defender. (DUARTE, 2006, p. 31).

Portanto, o procedimento técnico de Lima Barreto deixa transparecer seu pensamento

quanto ao papel da inteligência nacional e da formação do caráter da população. O exemplo a

ser seguido não é o de Hélio Lobo e Miguel Calmon, nem mesmo o da personagem de

Maupassant, mas justamente o contrário. Se Lima começa a crônica com invectivas, passa

então à ironia com a intenção de ridicularizar os vícios da sociedade ─ os que iludem e os

iludidos ─ para pregar um discurso totalmente contrário, corroborando sua crítica e sua

ideologia.

Podemos, sem sombra de dúvida, relacionar o procedimento técnico de Lima Barreto

ao procedimento usado pelo discurso político. Recorremos então ao trabalho feito por Carlos

Erivany Fantinati sobre os estudos do discurso político na Alemanha após 1968.1 Nesse

trabalho, o autor tem o objetivo de difundir uma proposta de análise do discurso político

elaborada pelo germanista Hans Dieter Zimmermann. Vejamos um trecho, que muito nos

interessa em relacionar com o texto de Lima Barreto:

Zimmermann compõe “um catálogo das figuras retóricas, orginárias da Antiguidade, organizando-as, não segundo critérios estilísticos, mas conforme as seguintes perspectivas funcionais: superestimação, subestimação e conciliação. Se as conseguir determinar [...] a função que tomam os esquemas retóricos de expressão no texto, pode-se descobrir, como decorrência, a intenção do orador e o interesse que o orienta” (FANTINATI, 1990, p. 4).

Então, tomemos como base os termos aludidos na citação acima, superestimação e

subestimação, para relacionarmos ao discurso ideológico de Lima Barreto. Superestimação, para

Zimmermann (apud FANTINATI, p. 4), é “a construção da posição do orador e respectivamente

de seu grupo. O orador procura apresentar sua posição de uma maneira tão favorável que lhe

assegure a adesão de seu ouvinte.” Não se percebe no texto termos que indiquem a

superestimação, mas temos que observar que o discurso ideológico se faz por vias enviesadas.

Ao subestimar as qualidades de Lobo e Calmon, Lima, por outro lado, pratica a superestimação

de suas qualidades, aquelas que ele entende como as que devem prevalecer.

A subestimação, conforme entende Zimmermann, é “destruição da posição contrária. O

opositor é apresentado de maneira tão negativa que os ouvintes devem rejeitá-lo” (apud

FANTINATI, 1990, p. 5). Lima Barreto ao invectivar Lobo e Calmon está, na realidade, impondo

um novo discurso, ou seja, uma outra ideia. O que se pretende é mostrar que situações que

1 FANTINATI, Carlos Erivany. Sobre o discurso político. Alfa, nº 34, p. 1-10, 1990.

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criam figuras como Lobo e Calmon devem ser combatidas. E podemos, assim, chegar a uma

conclusão: a subestimação do grupo a que pertencem as duas figuras criticadas cria por outro

lado a superestimação do grupo que a combate, no caso, a cargo do cronista.

Mas Lima Barreto não usou apenas a invectiva como forma de crítica. Ele também

lança mão da zombaria e do escracho para atacar seus alvos. Vejamos o caso de outra crônica

de Lima Barreto: “O oráculo”, publicada no Correio da Manhã, em 19l4. Nesta crônica ele trata

da pretensa procura de Pelino Guedes2 por um curandeiro para poder resolver um problema de

vistas. Logo no início o cronista usa a ironia para se referir à atividade do oponente: “Pelino, que,

durante vinte e tantos aos, ajudara, na sua banca humilde, os ministros a cumprir as leis e os

regulamentos resolveu consultar uma curandeiro.” Sabendo que Lima Barreto repudiava Pelino

Guedes, a expressão “banca humilde” é carregada de ironia.

Na sequência da crônica, relata o cronista a visita de Guedes ao curandeiro, o qual,

após ler alguns livros de sua vasta biblioteca,

E depois de ter lido assim e citado a esmo, o sabichão expectorou a sua transcendente receita: lave os olhos com a água do banho da mulher que tenha sido sempre fiel a seu marido. / Pelino pagou, porque se pagava, e saiu a pensar no récipe que lhe dera o curandeiro. Quem seria a mulher? Pensou mais ainda e concluiu, com muita razão, que devia ser a sua. / Chegou em casa e, dentro em breve, pode experimentar o remédio. / Apanhou um bom bocado de água do banho da esposa, e com ela lavou abundantemente os olhos uma, duas, três vezes; e neles a luz não se fez abundantemente.

Esse é o final da crônica, em que podemos fazer alguns questionamentos para tentar

compreender o objetivo da sátira criada pelo cronista. A quem ele satiriza? A Pelino Guedes por

acreditar em curandeiros? Ou ele coloca em dúvida a receita do médico? Ou coloca em dúvida a

fidelidade da esposa do oponente?

De qualquer forma, o objetivo de Lima é atingido, que é o de ridicularizar o outro, ou

seja, o objeto de crítica. Ao colocar em dúvida a honestidade da esposa de Pelino, o cronista

desqualifica-o para construir sua crítica. É a técnica da redução da qual trata Hodgart:

2 Pelino Joaquim da Costa Guedes (1858-1919) foi um dos muitos alvos de Lima Barreto na sua literatura, especialmente nas crônicas, por motivos pessoais. Guedes era o diretor-geral da Diretoria de Justiça, “com quem Lima Barreto teve de se entender muitas vezes para ‘liquidar’ a aposentadoria paterna. Como irritava aquele homenzinho meticuloso, que estava sempre a exigir-lhe um inimigo feroz, protegido por uma certidão! Por trás da sua secretária, o alto funcionário representava-lhe um inimigo feroz, protegido por uma cidadela inexpugnável de convenções, a inventar toda sorte de dificuldades, a criar os maiores obstáculos, num sadismo de burocrata, indiferente ao problema humano que tinha diante de si” (BARBOSA, 1975, p. 110). Guedes também será representado na pele de Xisto Beldroegas (Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá) e também em Numa e a Ninfa. Em A nova Califórnia, temos o Capitão Pelino Guedes, “um gramático azedo da Gazeta de Tubiacanga, passando o tempo ‘a corrigir e emendar as maiores glórias nacionais’” (PRADO, 1988, p. 119).

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La tecnica del satirico es la reducción: la degradación o desvalorización de la victima mediante el rebajamento de su estatura y dignidad. Esto pude conseguirse em el terreno del argumento y casi siempre se proseguira em el del estilo y el leguaje (HODGART, 1969, p.115).

Satirizar através da ironia é uma das formas mais usadas por Lima Barreto na sua

literatura, pois assim ele procura atacar seu objeto de crítica com mais contundência. Ao afirmar

que mesmo seguindo o que foi prescrito pelo curandeiro, Pelino não teve sucesso no seu

tratamento. Podemos então seguir duas linhas de raciocínio para perceber a ironia: se levarmos

em conta que Lima Barreto sugere a infidelidade da esposa de Guedes, o mesmo é rebaixado,

pois se trata de um marido traído. Por outro lado, levando em consideração que a esposa é fiel e

o marido foi enganado pelo curandeiro, ele continua sendo o rebaixado, pois se trataria de um

incauto. É justamente ridicularizado por acreditar em um curandeiro.

Como vimos, a intenção de ridicularizar Pelino é bem sucedida, pois, ao olharmos

todas as possibilidades de interpretação, o alvo será sempre o oponente: a principal figura

rebaixada. Com essa chave irônica, podemos entender a crítica feita de uma maneira indireta,

pois o ataque é feito através de uma situação criada inusitadamente. Em se tratando de uma

figura pública, Pelino Guedes é representante de parte de uma sociedade em que o escritor

concentra sua crítica e, diante disso, esta parte da sociedade também é criticada.

Após a leituras das crônicas “O ideal de Bel-Ami” e “O oráculo”, temos uma noção de

alguns dos instrumentos de Lima Barreto para construir sua crítica. Vimos no primeiro caso que

o cronista usa a invectiva como principal forma de crítica. No segundo caso, o autor usa o

deboche ao criar uma situação fictícia com uma pessoa real, Pelino Guedes.

À medida que a crítica deixa de ser feita por invectivas e passa para o ataque indireto,

através da ironia e do deboche, a crônica barretiana perde o valor documental e passa a ter um

valor ficcional. Em “O ideal de Bel-Ami”, o autor usa da invectiva e propõe uma reflexão sobre o

sistema da formação da intelectualidade e da formação do caráter da sociedade. Na crônica “O

oráculo”, o deboche é usado como forma de denegrir a imagem de uma pessoa que representa

também o sistema que o autor repudia e que se sente vítima dele.

Mas, nos dois casos, é nítida a intenção satírica de Lima Barreto. A sátira usa

basicamente três elementos para a sua construção: o ataque agressivo, a norma e a indireta.

Mesmo no caso em que a invectiva é ferina, a intenção do autor é a de desmoralizar o oponente,

como no caso do primeiro elemento da sátira, o ataque agressivo:

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O ataque agressivo deve aqui ser entendido como uma ação baseada numa motivação pisco-individual, resultante da irritação, ódio, raiva ou agressividade provocados no sujeito por certos objetos (BALLMANN; LOEFFEL, 1981, p. 4) como a vilania, a vileza, a covardia, a hipocrisia, o vício, a falsidade, que enfermam o indivíduo e a sociedade. Tais objetos são vistos pelo satirista como constitutivo de uma realidade ameaçadora, contra a qual dirige seu ataque agressivo (FANTINATI, 1995, p. 94).

As figuras de Hélio Lobo e Miguel Calmon são tomadas por Lima Barreto como

aquelas que devem ser combatidas e que representam, para ele, modelos de pessoas que são

criadas pelo modelo de literatura da época. Pondo-se como a voz que combate o sistema e quer

ver sua remodelação, rebaixa as duas figuras e procura ridicularizá-las após fazer invectivas,

indicando que a norma da qual fazem parte não deve ser seguida.

Já a figura de Pelino Guedes é atacada pela forma indireta, através do deboche de

uma situação pouco provável na vida real, mas que é usada para atingir a figura do alvo da

crítica. A forma indireta é

a terceira característica da sátira e refere-se à forma como o satirista faz seu ataque agressivo. Duas coisas estão em jogo aí: uma, a sátira supera o ataque agressivo direto por meio de um discurso fictício ou ficcional; outra, o conteúdo é sulcado pelo cômico. Ao se compor uma sátira, por exemplo, sob a forma de reportagem, não se escreve, na verdade, uma reportagem, mas sim está é imitada, dando-se a entender ao leitor, por meio de diversos sinais, que não deve lê-la como uma informação real. O autor do texto fala com voz dissimulada, oblíqua, disfarçada. Seus mais importantes recursos são os contrastes cômicos em todas suas modalidades, quer se trate da ironia, da caricatura, da paródia, do travesti ou do grotesco, quer do inflar do pequeno e do fútil, quer da redução do sublime ao comum (FANTINATI, 1995, p. 95).

Sabedores de que Lima Barreto não era íntimo de Pelino Guedes, e tampouco amigos,

a sátira está estabelecida nessa crônica. Subjacente, percebe-se o discurso contra a ideologia

de que Pelino Guedes compartilhava. As várias referências a pseudo-intelectuais e as situações

criadas na crônica demonstram a crítica enviesada ao sistema de conhecimentos e pesquisas

científicas. Isso é demonstrado quando o cronista descreve o momento da consulta de Pelino

Guedes com o “oculista”: a referência à biblioteca e a maneira e o livro que consulta para receitar

o tratamento.

Seja pela invectiva ou pela ironia pura, ou mesmo pelo deboche, Lima Barreto constrói

sua crítica, tornando-se assim um dos mais importantes cronistas brasileiros. No seu projeto de

literatura militante, o caminho mais seguro para levar adiante seu intento, foi o de usar a sátira

como arma de combate. Mesmo que procurasse ser reconhecido como um dos grandes valores

da literatura, ele não se eximia de lutar contra aqueles que ele julgava como causadores do

atraso econômico, político e cultural do Brasil.

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Acima de tudo, o projeto de Lima Barreto é humanista. É o do sujeito que vê no modelo

da República os males da sociedade, mas, mesmo assim, não é monarquista. Para ele, a forma

de governo seria indiferente. O que se busca é a forma de uma sociedade justa, não importando

o regime que se estabeleça.

O cronista é aquele que anda pelas ruas, pelos bondes e vê no povo o seu motivo de

escrever, seu campo de luta. Ao invectivar e ironizar as situações e personalidades, o escritor

não quer apenas rebaixar, ele quer transformar. Lima Barreto constrói sua crítica na justa medida

de quem procura no horizonte um novo momento para sua nação. Ele procura desconstruir uma

sociedade viciada e injusta, mas, acima de tudo, propõe soluções. É a chave da ironia: aquilo

que está escrito é na verdade o reverso do espelho.

E Lima Barreto procura no reverso do espelho as soluções, mesmo que as imagens

produzidas estejam contorcidas. Nos espectros que se produzem estão as propostas de

mudanças.

Referências bibliográficas

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REZENDE, Beatriz. Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ; Campinas: Ed. UNICAMP, 1993.