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X SEL – Seminário de Estudos Literários
UNESP – Campus de Assis
ISSN: 2179-4871
www.assis.unesp.br/sel
LIMA BARRETO E A CRÍTICA: A PUBLICAÇÃO DE RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS
CAMINHA1
Clara Asperti Nogueira (Doutoranda – UNESP/Assis)
RESUMO: Este artigo tem por objetivo levantar e analisar a bibliografia crítica sobre o escritor Afonso Henriques de Lima Barreto a partir do momento da publicação, ainda em folhetins, das primeiras páginas do romance de estreia Recordações do escrivão Isaías Caminha. Deste modo, pretende-se inventariar a crítica oficial acerca do trabalho do escritor bem como revelar a imagem que esta crítica, no limiar do século XX, disseminou sobre Lima Barreto. Ponderar sobre a leitura da obra limana feita através da crítica literária oficial do século XX é maneira fértil não somente de resgatar o modo de atuação da crítica do período, mas também modo interessante de se revelar os rótulos impostos a Lima Barreto no momento em questão. Para tanto, nosso artigo se concentrará em analisar textos críticos acerca da obra de Lima Barreto, principalmente, aqueles cujo conteúdo foi publicado na estreia oficial do romance citado.
PALAVRAS-CHAVE: Crítica literária; Lima Barreto; Recordações do escrivão Isaías Caminha; literatura; jornalismo.
Um.
As relações sociais geradas a partir das ligações entre autor — criação/obra — público
leitor formam o chamado campo intelectual, que
[...] constitui um sistema de linhas de força: isto é, os agentes ou sistemas de agentes que o compõem podem ser descritos como forças que se dispondo, opondo e compondo, lhe conferem sua estrutura específica num dado momento de tempo (BOURDIEU, 1968, p. 105).
O campo intelectual é o formador de instâncias específicas de seleção e de
consagração — consequentemente, gerador de autoridade e legitimidade cultural — em que o
próprio público, atuando como um crítico amador e de forma involuntária, é um dos árbitros.
1 Este artigo, ainda que modificado, foi apresentado ao curso Crítica literária brasileira, ministrado pelo Dr. Luiz Roberto Velloso Cairo, em 2009, como requisito parcial para a conclusão da disciplina.
ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”
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Este campo intelectual, no início do século XX, dividia-se claramente entre aqueles que
eram os porta-vozes do ideário dominante, ou seja, partidários e agentes instauradores da
República, defensores das reformas urbanas em prol de uma Capital Federal mais salubre e
consequentemente mais moderna. Eram os partícipes das sociedades literárias consideradas,
por seus pares, instâncias consagradoras por excelência, tendo como a principal a Academia
Brasileira de Letras e a eterna figura do fundador Machado de Assis. Além de homens das letras
que, remanescentes da chamada geração de 1870, “introduziram o Realismo, o Naturalismo, o
Parnasianismo e cujas figuras de proa passaram a instituir os paradigmas da produção
intelectual do país” (MICELI, 1977, p. 11), e perpetuavam a literatura verborrágica e erudita
reinante no século XIX e, para finalizar, as principais editoras do Rio de Janeiro à época:
Livrarias Garnier, Laemmert e Francisco Alves. Olavo Bilac e Coelho Neto personificam
perfeitamente o grupo de literatos proeminentes da elite intelectual do momento. Do outro lado,
encontramos, exemplarmente, a figura símbolo da oposição ao status quo vigente: Lima Barreto.
Com plena consciência do fazer literário, partícipe militante, engajado e preocupado
em tornar públicas, por meio da sua literatura, as mazelas políticas e sociais que assolavam o
país e principalmente o Rio de Janeiro, Lima Barreto se pôs inteiramente à disposição de uma
literatura de protesto e inconformismo.
Ainda que Lima Barreto não tenha tido grande repercussão entre as camadas populares 2 de sua época, uma vez que a essas era vetado o acesso à literatura, foi um escritor importante para a sua expressão (CURY, 1981, p. 21).
É interessante pensar na repercussão da literatura de Lima Barreto entre a população
leitora, pois ensina Bourdieu que, fundamentalmente, a intenção criadora é de tornar a obra
pública, e que cabe também ao leitor o papel de julgar a criação artística, mesmo porque é fato
que “o autor escreve para um público” (1968, p. 113).
Na transição do século XIX para o século XX, grandes e profundas mudanças
marcaram o ambiente social brasileiro, principalmente o Rio de Janeiro. Capital Federal da
República, a cidade era o grande centro aglutinador e irradiador das novas tendências culturais
que chegavam ao Brasil. Nos anos iniciais do novo século, o campo intelectual brasileiro
transformava-se radicalmente. A relação social marcada pela boêmia literária dos cafés
metamorfoseia-se na boêmia dos salões literários, frequentados pelos novos dândis
2 Não podemos deixar de mencionar, além da pobreza, o analfabetismo como fator limitador importante para a disseminação da obra barretiana.
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afrancesados. Assim, “por volta de 1900, as principais figuras da chamada geração boêmia de
1889 já se haviam aburguesado” (BROCA, 2004, p. 39).
De certo modo, como afirma Brito Broca (2004), a vida literária, no raiar dos 1900,
superava a literatura, que passava a caminhar junto à vida mundana, propiciada pela sensação
de tranquilidade imposta à Capital Federal, após o abafamento das revoltas pós - Proclamação
da República. É o momento da voga da fotografia, das ilustrações, do cinematógrafo, dos
grandes edifícios e exposições internacionais. Ocasião ideal para o advento do cosmopolitismo
copiado da França, com seus contornos art nouveau, casas de chás e chopperias, clubes e
salões literários. Nada foi tão fortemente afetado como a cultura nacional e, essencialmente, a
carioca que, de certa maneira, perdia sua identidade e passava a ser um espectro do cotidiano
cultural europeu:
Nunca exerceu Paris tão forte influência sobre nossa vida literária quanto no período do pré-guerra, em 1914, quando o próprio cinema – que seria, mais tarde, grande veículo de infiltração norte-americana em nossos costumes – vinha então em boa parte da França (BROCA, 2004, p. 141).
A personalidade carioca se transfigurava e o escritor, antes festejado por seu
temperamento boêmio e notívago, passava a não se ajustar mais com o esnobismo dos gestos
blasés dos novos artistas de ares refinados, ostentando polainas, monóculos e chapéus-coco. A
imagem perfeita deste novo personagem social — condizente com a aceleração cultural dos
novos tempos — se estereotipou na figura do escritor João do Rio, personificação coerente da
“literatura sorriso da sociedade”, emblema da literatura amena de Afrânio Peixoto.
A nova face da “República das Letras”, impulsionada pelas reformas urbanas e sociais
cariocas, se ampliaria com a fundação da Academia Brasileira de Letras em 1897, reduto de
estabilidade e consagração por excelência. Definitivamente, não havia mais espaço de atuação
social para o boêmio desajustado aos moldes de Lima Barreto:
A geração nova de então surgia nesse clima diferente, em que já não se compreendia a atitude do artista morrendo de fome, do escritor sacrificando tudo pelo ideal literário e fazendo uma própria vitória do seu desajustamento no ambiente social. (BROCA, 2004, p. 39)
Todavia, sendo ainda a voz dissonante do período, sem jamais perder o estilo crítico e
aceitando o estereótipo de escritor maldito (FANTINATI, 1978, p. 42), Lima, por meio dos
romances, escritos autobiográficos, crônicas e críticas e de uma linguagem direta, fluente e
inquisitiva, que chocava os mandarins literários da época, detentores do poder cultural instituído,
daria voz às ruas, aos excluídos desse campo intelectual predominante e opressor.
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A imagem de escritor marginal, estigmatizado pela cor, pelo alcoolismo, e,
principalmente, pela linguagem cáustica, irreverente e irônica, acabou por se tornar o escudo de
Lima. Através da exclusão social que lhe foi imposta pela elite burguesa intelectual do período,
Lima Barreto optou pela libertação dos moldes literários tradicionais, aceitou a liberdade da
linguagem esteticamente revolucionária para os padrões validados da época; e de figura
estranha e estigmatizada, outsider e exilado em uma literatura que se propunha ser o “sorriso da
sociedade”, optou pelo enfrentamento social. Usou os jornais e as revistas que lhe davam
acesso para dizer “toda a verdade aos poderosos (a sua verdade, pelo menos)” (ASSIS
BARBOSA, 2002, p. 329) e, com “o velho hábito de fazer memórias” (ASSIS BARBOSA, 2002, p.
347) por meio da literatura, Lima atuou como o verdadeiro intelectual, contestando o sistema
vigente.
Para um artista militante, sua função não é exclusivamente produzir uma obra de arte esteticamente válida, mas, e, sobretudo, realizar uma obra que contenha um sentido revolucionário do ponto de vista social (FANTINATI, 1978, p. 3).
Apesar do início do século XX ficar marcado pela mudança das relações sociais e
culturais no âmbito da criação literária, com novas temáticas mundanas, novas tecnologias de
impressão e ilustração, um maior público leitor, no campo da crítica, ainda pode ser observada
certa manutenção das ideias deterministas e cientificistas que se destacaram no último quartel
do século XIX.
Prefaciando a obra A recepção crítica, de Salete de Almeida Cara, Antonio Candido
(1983, p. VII) traça uma síntese panorâmica de nossa crítica:
No Brasil, e de resto em toda a América Latina, os projetos críticos sempre tiveram, consciente ou inconscientemente, um traço comum à produção literária: o sentido ou a deliberação de ver nos textos uma contribuição para formar a cultura nacional.
De modo geral, desde as primeiras tentativas críticas elaboradas, ainda no espírito
romântico do século XIX, por Gonçalves de Magalhães, Santiago Nunes Ribeiro, Francisco
Adolfo Varnhagen e Joaquim Norberto de Sousa Silva até Machado de Assis, todas se pautavam
claramente pela busca de um sentimento nacional para a Literatura Brasileira.
Salete de Almeida Cara (1983, p. 9) afirma que “as coordenadas que, desde o início do
século XIX, orientaram a produção literária (e crítica) brasileira são o nacionalismo, nativismo,
civismo, patriotismo” e conclui, à frente, que “o século XIX e ainda o século XX, entre nós, estão,
assim, mergulhados nessa ideologia de país novo e, consequentemente, no nacionalismo
ufanista” (1983, p. 12); de maneira que, como a literatura nascente tinha como objetivo delinear o
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caráter brasileiro, a crítica, ainda incipiente, se lançava também como um instrumento formador
do nacional.
Seguindo os pressupostos traçados pelo Romantismo do século XIX, a crítica na virada
do século mantinha-se em dia com a consciência nacional:
Em crítica literária, a fase 1880-1900, por suas três principais figuras – Sílvio Romero, Araripe Júnior e José Veríssimo – havia desenvolvido e apurado a tendência principal do nosso pensamento crítico, isto é, o que se poderia chamar a crítica nacionalista, de origem romântica (CANDIDO, 2000, p. 115).
O pensamento crítico oficial, no limiar do novo século, é, até certa medida, reflexo do
campo intelectual desenhado ainda pelos grandes nomes do passado recente, e “se acomodara
em fórmulas estabelecidas pelos predecessores” (CANDIDO, 2000, p. 116). O comprometimento
com a problemática nacional, o compromisso com a cultura vernácula e a busca pela identidade
brasileira na literatura ainda são as marcas da geração crítica surgida na década de 1870, com o
advento do cientificismo, o que em literatura denotava consagrar ao estudo literário os
procedimentos de outras ciências. Luiz Roberto Velloso Cairo (1996, p. 38), em pesquisa sobre a
produção crítica de Araripe Júnior, confirma a voga das tendências cientificistas:
Era importante, naquele momento, dar um caráter de ciência à literatura e à crítica literária. O crítico tinha um método científico e nele fundamentava a sua análise, e assim contribuía para a criação da Ciência Literária. A crítica literária, dessa maneira, perdia o caráter de simples especulação interpretativa e ganhava o cunho de seriedade e veracidade que reveste o conhecimento científico.
Conforme estudo amplo sobre a crítica literária no Brasil, Wilson Martins (2002) elenca
o grupo atuante na virada do século e coloca em destaque personalidades como Sílvio Romero
fazendo de sua crítica um amplo estudo sociológico; Araripe Júnior, Medeiros e Albuquerque,
Alcides Maia e Nestor Vítor, críticos estes de tendência mais impressionista; Osório Duque-
Estrada, defensor da crítica de cunho gramatical e José Veríssimo para o qual os padrões
estéticos seriam o método e a norma de julgamentos mais seguros.
Sem menosprezar o trabalho crítico dos demais, como a tentativa de Nestor Vítor de
entender o Simbolismo (estética que poucos se aventuraram a estudar), e considerado por
Martins (2002, p. 325) “o quarto mosqueteiro da crítica oitocentista”; a realidade é que, entre
todos estes, a trindade realista-naturalista maior — ou “os mosqueteiros intelectuais”, na
expressão forjada por João Alexandre Barbosa (1974, p. 77-111), — se formava entre Araripe
Júnior, Sílvio Romero e José Veríssimo, mais afamado e respeitado de todos. É bem verdade
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que nos decênios inaugurais do século XX a possibilidade de se amparar nos pressupostos
racionalistas importados pelo cientificismo entrou em declínio:
Não é injusto dizer que, amparando-se nos três mestres e modelos já citados, os críticos se eximiram de aprofundar e renovar pontos de vista. Denotam conformismo e superficialidade, indicando não apenas o esgotamento da crítica nacionalista, mas a incapacidade de orientar-se para rumos mais estéticos e menos científicos, como se esperaria de uma geração inclinada ao diletantismo, o purismo gramatical, o culto da forma. A passagem do historicismo à estética se esboçava na obra de José Veríssimo, o mais literário dos nossos velhos críticos [...] (CANDIDO, 2000, p. 116)
Entre 1878 e 1916, a atividade crítica de José Veríssimo manteve-se praticamente
ininterrupta, apenas nota-se um breve retraimento de sua participação no meio intelectual por
volta de 1908, quando se afasta temporariamente da lide jornalística, e “entrega-se, nessa
época, naturalmente, à elaboração de sua História da literatura brasileira, como o arremate e o
coroamento de uma carreira, produto da experiência de longos anos de crítica” (BROCA, 2004,
p. 317).
Fato notável é o volume da produção crítica de Veríssimo. A vasta colaboração
periódica do crítico estende-se por publicações importantes do cenário cultural brasileiro na
transição do século XIX para o século XX, entre elas estavam o Correio da Manhã, o Jornal do
Comércio, as revistas Kosmos e a Renascença, O Imparcial e a Revista Brasileira que, na sua
terceira fase, seria o embrião da futura Academia Brasileira de Letras, que contaria com
Veríssimo entre os imortais fundadores da Casa.
Dois.
A autoridade sobre o pensamento crítico oficial, nos primeiros decênios do século XX,
pertencia não somente e ainda aos nomes que divulgaram os ideais deterministas a partir da
década de 1870, como também a personalidades de tendências críticas variadas como Gonzaga
Duque, João Ribeiro, Osório Duque-Estrada, Andrade Murici, Agripino Grieco, Medeiros e
Albuquerque e, posteriormente, Tristão de Ataíde, que compartilharam com Sílvio Romero e
Araripe Júnior a função de serem os porta-vozes da crítica oficial brasileira. No entanto, entre
todos, sem sombra de dúvidas, era José Veríssimo o mais experiente, profícuo e de “prestígio
incontestável” (MARTINS, 2002, p. 329) entre seus pares.
Tentando unir impressionismo crítico à tendência menos ortodoxa do cientificismo, com
sua “dupla face de Janus”, como lucidamente propôs João Alexandre Barbosa (1974), Veríssimo
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situava o exercício de sua crítica entre o ofício de crítico estético e o rigor do historiador literário.
É clara, na leitura de sua produção crítica, a negação dos valores teóricos mais rígidos definidos
pela geração de 1870 e a opção pela interpretação da literatura brasileira pelo viés estético,
contudo, sem deixar de observar, através da literatura, a presença da consciência nacional. José
Veríssimo soube, e aí está o seu diferencial, equilibrar os dilemas de sua época: literatura,
história, nacionalidade.
Sem abrir mão da visão naturalista que conduzia os estudos literários ainda nos
primórdios do século XX, Veríssimo optou pelo estético. Em sua faina crítica, privilegiou a defesa
de uma literatura brasileira baseada na originalidade e, principalmente, no talento individual.
Ao tentar estabilizar a imagem de uma literatura representativa do sentimento nacional,
Veríssimo não se propôs a delinear um conceito categórico, mas deixou em História da literatura
brasileira uma caracterização bem pertinente, na qual, para ele, literatura fundamentalmente
seria:
[...] sinônimo de boas e belas letras, conforme a vernácula noção clássica. Nem se me dá da pseudo-novidade germânica que no vocábulo literatura compreende tudo o que se escreve num país, poesia lírica e economia política, romance e direito público, teatro e artigos de jornal e até o que se não escreve, discursos parlamentares, cantigas e histórias populares, enfim autores e obras de todo gênero (VERÍSSIMO, 1963, p. 12).
Diferentemente de Sílvio Romero, que pregava a literatura como sendo todas as
manifestações de um povo, José Veríssimo, constante na defesa da literatura como sinônimo
das “belas letras” — e, consequentemente, reflexo da manifestação da originalidade, concluiu
que, “A história da literatura brasileira é, no meu conceito, a história do que da nossa atividade
literária sobrevive na nossa memória coletiva de nação”. (VERÍSSIMO, 1963, p. 15).
Integrante do campo intelectual, — colocando-se como um leitor especializado, — o
crítico tem por função fazer uma leitura selecionada da criação literária. Pierre Bourdieu pondera
que a verdade social da obra é dada inicialmente pelo crítico que, agindo como um “intérprete
privilegiado” julga o valor da criação dando-lhe sentido público. Por essa primeira recepção
social e por esse primeiro crivo, o crítico, no seu papel de “homem de gosto”, detentor do saber e
autoridade em “formar o gosto de seus contemporâneos” (BOURDIEU, 1968, p. 121) autoriza a
fama, — o sentido público da obra, — ou compete para seu ostracismo.
Agindo como legitimador cultural na estrutura do campo intelectual brasileiro no início
do século XX, José Veríssimo colaborou, de certa maneira, para o insucesso da repercussão
crítica da obra de estreia de Lima Barreto, em 1909, Recordações do escrivão Isaías Caminha.
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Conforme A Tradição do Impasse (1974), estudo sobre a linguagem crítica de José
Veríssimo, a sua atividade intelectual concentrou-se entre 1878 e 1916, e pode ser dividida em
três fases, de acordo com o desenvolvimento, o empenho e a especialização da linguagem
crítica. Em linhas gerais, a primeira fase do crítico acompanhou os anos de atividade intelectual
provinciana entre 1878 e 1890, fase esta em que podemos destacar a publicação de A Educação
Nacional. Neste momento, a nacionalidade como critério de evolução literária ainda estava bem
presente na produção de Veríssimo, influenciado pelo naturalismo. Em um segundo momento,
entre 1891 e 1900, deu-se a afirmação de Veríssimo como crítico regular de jornais e revistas. Já
transferido para o Rio de Janeiro, publicou, entre outros, Estudos Brasileiros: Segunda Série
(1889-1893), em 1894, fase na qual a ironia e o ceticismo superariam a influência naturalista na
crítica, possibilitando-lhe até incursões entusiasmadas pelo impressionismo. A partir de 1901, e
até sua morte em 1916, a especificidade da crítica literária se uniria ao desejo de participação,
pelas Letras, na vida nacional, em que há, nitidamente, a retomada da abordagem histórica e
que culmina com a publicação póstuma da História da literatura brasileira em 1916. Este terceiro
momento da produção crítica de Veríssimo é o momento da “Dupla face de Janus”,
[...] uma [face] voltada para os desígnios de nossas primeiras buscas de auto-identificação (critérios de nacionalidade/substratos etnográficos) e a outra proposta pelas modificações da sociedade (aspiração da especificidade crítica/começo de um novo modelo de reflexão) (BARBOSA, 1974, p. 157).
José Veríssimo, paradigma da crítica desenvolvida entre as três últimas décadas do
século XIX e a primeira do século XX, representou, através da sua obra histórico-literária, “o
crítico, empenhado na avaliação e no julgamento das obras, e o historiador literário, correndo
tranquilo por entre valores já firmados, e, por isso, podendo, de forma bem mais convincente,
tentar a aliança entre o impressionismo crítico e o modelo naturalista” (BARBOSA, 1974, p.161).
E é nesta terceira fase, de maturidade, que se encerram os comentários de Veríssimo sobre a
obra de Lima Barreto.
A obra de estreia literária de Lima, Recordações do escrivão Isaías Caminha, é de
1909. Entretanto, os capítulos iniciais do romance (o primeiro, o segundo e parte do terceiro
capítulos) já haviam saído, preliminarmente, na fugaz revista Floreal, dirigida e editada pelo
próprio Lima Barreto em 1907.3 Entre a publicação em folhetins e a circulação em volume do
3 Com o sonho de fazer da Floreal um instrumento de intervenção na sociedade e, desencantado com a imprensa burguesa, o diretor e editor Lima Barreto pôs nas ruas cariocas, em 25 de outubro de 1907, o primeiro número de sua revista. Publicação de caráter autoral – quase um grito de afirmação – Lima Barreto tentava, assim, a construção de uma rede de sociabilidade e a chance de sair do anonimato. Apenas quatro edições circularam da
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romance, deu-se o primeiro entre parcos — mas sintomáticos — dois comentários feitos por
Veríssimo sobre a obra barretiana. A segunda manifestação seria em 1910.
Muitos estudiosos da obra crítica de Veríssimo acusam que “a verdadeira militância” do
crítico “se encerra em 1908, para ser retomada em 1912” (BARBOSA, 1974, p. 168); a
informação é de grande relevância se pensarmos que a segunda opinião emitida por Veríssimo,
em 1910, encaixa-se no momento do retraimento de sua atividade crítica, principalmente dos
jornais e das revistas. Talvez daí se explique o fato dessa citada segunda manifestação ter-se
dado em forma de carta, ou seja, de forma íntima e não publicada.4
Por que um crítico, considerado por todos de sua época, militante e assíduo
colaborador intelectual de jornais e revistas de grande circulação, se omitiu da opinião pública
sobre a obra, — hoje um dos mais conhecidos textos de Lima Barreto? Justificaria a suposta
“aposentadoria” temporária da lide jornalística em 1908? Ou o romance, claro libelo contra a
política preconceituosa e elitizada dos periódicos do momento, seria a causa de tamanho
silêncio por parte do importante crítico?
Certamente, o que com segurança podemos afirmar é que nem o mais prestigiado
crítico se manifestou nem os demais em atividade se arriscaram em tal empreitada. Couberam
somente a Medeiros e Albuquerque e Alcides Maia as minguadas e as superficiais referências a
Recordações do escrivão Isaías Caminha.
A primeira manifestação crítica de José Veríssimo sobre a obra de Lima Barreto foi
publicada em 9 de dezembro de 1907, na coluna “Revista Literária” do Jornal do Comércio.5
Conhecido pelo seu temperamento crítico judicativo, pelo qual, muitas vezes, era chamado de
“Severíssimo”, é importante registrar seu primeiro comentário crítico acerca da obra, ainda em
folhetim, de Lima Barreto:
Ai de mim, se fosse a “revistar” aqui quanta revistinha por aí aparece com a presunção de literária, artística e científica.
revista, tendo seu último número editado em 31 de dezembro de 1907. Sobre a revista Floreal: BOTELHO, Denílson. Floreal e o Jornalismo no Tempo de Lima Barreto. Trabalho apresentado no VI Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom. Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – UnB – 6 a 9 de setembro de 2006. 4 Esta carta, enviada em 5 de março de 1910, só viria a público na primeira edição da biografia de Lima Barreto, de autoria de Francisco de Assis Barbosa, na década de 1950. BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 8 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002. 5 O mesmo texto, atualmente, é parte integrante do prefácio ao volume Recordações do escrivão Isaías Caminha. BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. In: BARBOSA, Francisco de Assis (Org.). Obras Completas. São Paulo: Brasiliense, 1956.
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Não teria mãos a medir e descontentaria a quase todos; pois a máxima parte delas me parecem [sic] sem o menor valor, por qualquer lado que as encaremos. Abro uma justa exceção, que não desejo fique como precedente, para uma magra brochurazinha que, com o nome esperançoso de Floreal, veio ultimamente a público, e onde li um artigo “Spencerismo e Anarquia”, do Senhor M. Ribeiro de Almeida, e o começo de uma novela, Recordações do escrivão Isaías Caminha, pelo Senhor Lima Barreto, nos quais creio descobrir alguma coisa. E escritos com uma simplicidade e sobriedade, e já tal qual sentimento de estilo que corroboram essa impressão.
O primeiro número da Floreal saiu nas ruas cariocas em 25 de outubro de 1907, com o
primeiro capítulo de Recordações. A manifestação de Veríssimo somente viria em dezembro do
mesmo ano, quase concomitantemente à publicação do quarto e derradeiro número da
“revistinha”. É curioso pensar por que um crítico demorou tanto para emitir sua opinião, mesmo
sendo ela breve e superficial como podemos notar. Na realidade, o que se observa é mais um
breve elogio à revista Floreal do que propriamente uma crítica de consistência aos primeiros
momentos do romance ali publicado. Percebe-se na intenção de Veríssimo, além de deixar
evidente sua imparcialidade e sobriedade no comentário, o tom esperançoso que depositava no
promissor escritor Lima Barreto.
Após esse breve interesse de Veríssimo, Lima achou cordial agradecer-lhe,
pessoalmente, a referência. A apreciação do crítico geraria empolgação na redação da Floreal e,
nas palavras de Francisco de Assis Barbosa (2002, p. 177), certo “rebuliço” e discussões pelo
artigo, principalmente em Lima e Ribeiro de Almeida, que foram os únicos colaboradores da
revista a serem citados nominalmente por Veríssimo. No Diário Íntimo (1956, p. 125-126), Lima
Barreto descreveu, além dos conselhos dados, o modo cordial pelo qual foi recebido pelo crítico:
O ano que passou foi bom para mim. Em geral, os anos em 7 fazem grandes avanços aos meus desejos. Nasci em 1881; em 1887, meti-me no alfabeto; em 1897, matriculei-me na Escola Politécnica. Neste andei um pouco, no caminho dos meus sonhos. Escrevi quase todo o Gonzaga de Sá, entrei para o Fon-Fon, com sucesso, fiz a Floreal e tive elogio do José Veríssimo, nas colunas de um dos Jornais do Comércio do mês passado. Já começo a ser notado. Pelas vésperas do Natal, fui ao Veríssimo, eu e o Manuel Ribeiro. Recebeu-nos afetuosamente. Ribeiro falou muito, doidamente, difusamente; eu estive calado, ouvi, dei uma opinião aqui e ali. Deu-me conselhos, leu-me Flaubert e Renan, aconselhando aos jovens escritores. Falou da nossa literatura sem sinceridade, cerebral e artificial. Sempre achei a condição para obra superior a mais cega e mais absoluta sinceridade.
É importante lembrar-se também da vasta colaboração de Veríssimo para o Jornal do
Comércio, no qual sua coluna “praticamente dirigiu todo o movimento literário nas primeiras
décadas do século [XX]...” (SEVCENKO, 2003, p. 112). José Veríssimo tinha um grande veículo
de divulgação da crítica em suas mãos, já que o Jornal do Comércio era um dos principais e
mais respeitados periódicos da época; no entanto, publicamente, Veríssimo só se expressaria
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essa vez sobre o romance de estreia de Lima Barreto. Após esse primeiro contato com a
produção de Lima, Veríssimo somente se manifestaria novamente, como dito, em 1910.
Sabemos do seu afastamento em 1908 para dedicar-se exclusivamente à conclusão de
sua grande obra História da literatura brasileira; mas, em 1907, o crítico ainda estava na ativa.
Havia publicado naquele ano, em volume, o livro Que é literatura? E outros escritos,6 no qual
colocava a ciência e a arte como as bases da produção intelectual, assim como a ideia de
literatura como “boas e belas letras”. Para Veríssimo, o que separava, fundamentalmente, arte
de ciência é “que esta é saber, conhecimento, verdade, aquela emoção” (VERÍSSIMO apud
BARBOSA, 1978, p. 7), além de deixar clara, no ensaio, sua opção pelo estético e pela literatura
como arte literária, já que esta teria a qualidade de permanência, de despertar interesse pela
emoção:
Na obra de arte literária, na obra de literatura, há, porém, mais que o aspecto, de algum modo exterior, da forma. A simples perfeição dela poderá, nas belas-artes em geral, constituir uma obra-prima, que vença os séculos, sempre admirada. Que outro mérito há na Vênus de Milo? A arte literária exige mais. Para viverem, precisam suas obras virtudes intrínsecas que acaso aquelas outras artes dispensam. E para que alcancemos uma noção exata do que é literatura ou dela nos aproximemos, carecemos descobrir pela análise dos fatos literários o que se pode rigorosamente chamar assim (VERÍSSIMO apud BARBOSA, 1978, p. 4-5).
Três.
Em 1910, em carta, Veríssimo mais uma vez se interessaria por Lima. Entretanto,
chama a atenção, novamente, a demora do crítico em comentar a publicação do romance
Recordações do escrivão Isaías Caminha, então editado em volume. Após a inacabada
publicação em folhetim do romance na revista Floreal, Lima conseguiu publicar, em dezembro de
1909, por uma editora portuguesa, sua obra de estreia. No entanto, a “carta-crítica” de Veríssimo
somente seria enviada em março de 1910, e sem se tornar um manifesto público. A notícia de
que a edição de Recordações do escrivão Isaías Caminha somente foi aceita por uma casa
editora lisboeta é, de certa forma, sintomática sobre a dificuldade de se produzir literatura no
Brasil nas primeiras décadas do século XX. Contudo, o mote central do volume de estreia de
Lima também, provavelmente, incentivou não apenas a dificuldade de sua publicação, mas
também a indiferença da classe crítica do momento.
6 “Que é literatura?”, um dos ensaios mais importantes que compõe o citado volume, foi publicado originalmente no Jornal do Comércio em 22 de outubro de 1900.
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O panorama ácido da imprensa carioca que Lima Barreto traçou nos capítulos do
romance possivelmente em nada contribuiu para o sucesso entre seus pares. Não podemos
desconsiderar que a imprensa, principalmente carioca, era o veículo divulgador das letras
nacionais e, portanto, da crítica literária circulante. Lima Barreto criticou aqueles que obviamente
poderiam publicá-lo e disseminá-lo.
Por mais que, em 1910, Veríssimo estivesse afastado do trabalho crítico nos periódicos
cariocas,7 a sua reputação permitir-lhe-ia emitir julgamento em qualquer jornal respeitável e de
grande circulação, mas a opinião do crítico permaneceu inédita até a década de 1950:
Não me foi de todo possível agradecer-lhe há mais tempo a remessa do seu livro Recordações do escrivão Isaías Caminha e as generosas expressões de que o acompanhou. [...] Sincera e cordialmente o felicito pelo seu livro. Há nele o elemento principal para os fazer superiores, talento. Tem muitas imperfeições de composição, de linguagem, de estilo, e outras que o senhor mesmo, estou certo, será o primeiro a reconhecer-lhe, mas com todos os seus senões é um livro distinto, revelador, sem engano possível, de talento real. Não lhe estou fazendo crítica, da qual estou por completo afastado [...] Digo-lhe apenas chã e amistosamente a minha impressão geral do seu livro que é, e muito obrigado por ela, excelente. Há nele, porém, um defeito grave, julgo-o ao menos, e para o qual chamo a sua atenção, o seu excessivo personalismo. É pessoalíssimo, e, o que é pior, sente demais que o é. Perdoe-me o pedantismo, mas a arte, a arte que o senhor tem capacidade para fazer, é representação, é síntese, e, mesmo realista, idealização. Não há um só fato literário que me desminta. A cópia, a reprodução, mais ou menos exata, mais ou menos caricatural, mas que se não chega a fazer a síntese de tipos, situações, estados d’alma, a fotografia literária da vida, pode agradar à malícia dos contemporâneos que põem um nome sobre cada pseudônimo, mas, escapando à posteridade, não a interessando, fazem efêmero e ocasional o valor das obras. Eu que isto lhe digo, eu mesmo me deliciei, com sua exata e justa pintura da nossa vida jornalística e literária, mas não dou por boa a emoção que ela me causou. A sua amargura, legítima, sincera, respeitável, como todo nobre sentimento, ressumbra de mais no seu livro, tendo-lhe faltado a arte de a esconder quanto talvez a arte o exija. E seria mais altivo não a mostrar tanto. [...] Vê que nem a estima real que tenho pelo seu talento revelado neste livro me faz perder os maus vezos de velho crítico, e que lhe digo, com a sinceridade que devo à sua estima, os senões que me parece há nele. Esses o senhor, estou certo, os reconhecerá espontaneamente – e é ainda a melhor crítica – e deles se corrigirá em novas obras mais perfeitas que as nossas letras lhe hão de dever. [...] Felicito-o pelo seu livro, ao qual desejo o bom sucesso que merece, e rogo-lhe creia nos sentimentos cordiais com que sou.
Seu confrade e obrigado. José Veríssimo8
7 Em 1912, José Veríssimo voltaria a colaborar n’O Imparcial. 8 A carta de José Veríssimo poderá ser consultada, na íntegra e na forma original, na Coleção Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional ou no tomo I da Correspondência, pertencente ao conjunto de suas Obras
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Por mais que revelasse não estar fazendo crítica, Veríssimo elencava, de forma direta
e sem subterfúgios, — mas elegantemente, — as imperfeições e os senões da obra barretiana.
Se há a presença do talento, as deficiências de estilo, de composição e de linguagem que serão
os constantes “defeitos”, observados pelos demais críticos da obra, se fazem presentes na
observação do crítico. Apelando para o impressionismo do “gosto ou desgosto”, sem excluir o
talento do escritor, Veríssimo criticou o personalismo do romance, a nítida amargura pessoal do
autor transportada para o texto e a intenção de Lima de fazer de Recordações apenas um álbum
de fotografias da sociedade da época. Se na primeira manifestação de Veríssimo, esse se
mostrou esperançoso e via uma carreira promissora para Lima Barreto, na carta, observamos
impressões severas e até muito intransigentes do crítico.
O que fica presente é que talvez Veríssimo, já no final da carreira, não quisesse se
comprometer com a opinião pública, assim preferindo uma carta endereçada a Lima no lugar de
uma análise crítica formal do romance, logo percebemos que suas manifestações por mais
severas que aparentem, não são profundas ou detalhadas. Afinal, Recordações era um grande
manifesto contra a imprensa da época, tendo como principal personagem o fictício jornal O
Globo, clara alusão ao importante Correio da Manhã carioca, e a crítica, de qualquer modo, era
veiculada por essa imprensa. Mesmo tendo fama de fiel aos seus valores, o crítico preferiu,
provavelmente, o silêncio ao invés de comprometer-se com seus possíveis “empregadores”.
Apesar de Veríssimo desejar, ao final de sua carta-crítica, sucesso para o romance, na
realidade, isto pouco aconteceu. Se o crítico, em sua carta de 1910, continuou fazendo de
Recordações do escrivão Isaías Caminha uma ode ao personalismo, entre 1907, momento da
primeira manifestação de José Veríssimo sobre o romance, e 1910, data da segunda e última
expressão do crítico sobre o Recordações, apenas duas novas opiniões surgiram: a de Medeiros
e Albuquerque e a de Alcides Maia, ambas de dezembro de 1909 , por ocasião da publicação em
volume do romance. Insistindo nos mesmos ”erros” já mencionados pela carta de Veríssimo, os
dois críticos, através do vespertino A Notícia e do Diário de Notícias respectivamente, concluíram
ser o volume apenas mais um romance à clef, dando-lhe assim certa conotação de inferioridade.
Em artigo publicado em 15 de dezembro de 1909, através d’A Notícia, Medeiros e
Albuquerque foi o primeiro, oficialmente, a atacar a estreia do romancista Barreto na seção
“Crônica Literária”:
Completas. Carta a Lima Barreto (5 de março de 1910). In: BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Correspondência Ativa e Passiva (1º tomo). São Paulo: Brasiliense, 1956, p. 203-206.
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“Mau romance” – explica – “porque é da arte inferior dos romans à clef”. “Mau panfleto, porque não tem a coragem do ataque direto, com os nomes claramente postos e vai até a insinuação a pessoas, que mesmo os panfletários mais virulentos deveriam respeitar” (Apud ASSIS BARBOSA, 2002, p. 197).
E seguindo a mesma invariável crítica, — de apenas se interessar pelas alusões
pessoais presentes na obra, — Alcides Maia, em 16 de dezembro de 1909 no Diário de Notícias,
complementava a crítica de seu confrade Medeiros e Albuquerque:
Com palavras amáveis, sem dúvidas sinceras, traduzindo a sua real estima pelo escritor, Alcides põe a nu o principal defeito do livro – a sua nota pessoal, que o reduz quase a um “álbum de fotografias”. Não era um romance, mas uma “verdadeira crônica íntima de vingança, diário atormentado de reminiscências más, de surpresas, de ódios”. E mais adiante: “O volume, vez por outra, dá a penosa impressão de um desabafo, mais próprio das seções livres que do prelo literário” (Apud ASSIS BARBOSA, 2002, p. 197).
Definitivamente, Lima Barreto sentiu-se incompreendido.
De todas as restrições da crítica ao seu livro de estreia, a que mais o magoou foi precisamente a de considerarem o Isaías Caminha só e unicamente um romance à clef, pertencente, por isso mesmo, a um gênero inferior de literatura.
Revoltava-se contra semelhante juízo, que reputava injusto. Um romance à clef pode, afinal de contas, ser um bom romance. Além do mais Isaías Caminha não seria, para ele, um “simples álbum de fotografias”, mas a história de um adolescente pobre em conflito com a sociedade que o esmagava ao peso das suas limitações (ASSIS BARBOSA, 2002, p. 200).
Na realidade, o que Lima Barreto queria, ao publicar Recordações do escrivão Isaías
Caminha, em sua estreia como romancista, era causar impacto na opinião pública leitora, como
fica evidente em carta enviada a Gonzaga Duque9 em fevereiro de 1909:
Mandei [para Portugal] as Recordações do Escrivão Isaías Caminha, um livro desigual, propositalmente mal feito, brutal por vezes, mas sincero sempre. Espero muito nele para escandalizar e desagradar, e temo, não que ele te escandalize, mas que te desagrade (BARRETO, 1956, 169-170).
Não há como afirmar se a sociedade realmente escandalizou-se, no entanto,
provavelmente, escandalizam-se os jornais da época. Afora as breves manifestações públicas de
Medeiros e Albuquerque e Alcides Maia, e a carta de Veríssimo, nenhum outro órgão da
imprensa se manifestou, no momento da publicação do volume, sobre o romance. Imperou o
total silêncio da crítica, e o silêncio feriu Lima mais do que críticas severas, — caso essas
existissem:
9 In: Correspondência Ativa e Passiva (1º tomo). BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Obras Completas. BARBOSA, Francisco de Assis (Org.). São Paulo: Brasiliense, 1956, 17 vv.
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A única crítica que me aborrece é a do silêncio, mas esta é determinada pelos invejosos impotentes que foram chamados a coisas de letras, para enriquecerem e imperarem (BARRETO, 1956, 29-30).10
Se, por um lado, os grandes periódicos o exilaram pela sua irônica e direta crítica ao
poder, — especificamente, a grande imprensa, — por outro, essa postura outsider possibilitou-
lhe a liberdade de expressão pouco notada em outro autor contemporâneo. E, a partir do
momento em que se aposentava do serviço público em 1918,11 as últimas amarras que o
prendiam são desfeitas. Ao não ter mais vínculo com o funcionalismo, Lima aceita inteiramente a
arte participante, não plástica e tampouco contemplativa. Os anos entre 1920 e 1922
representam o momento de aposentadoria e liberdade, e também período mais fértil e ferino de
sua escrita.
Já que a Lima não coube participar do discurso legitimador da literatura oficial à sua
época, coube-lhe tarefa um tanto mais árdua: a arte da denúncia e da crítica ao status quo
vigente. Nas palavras de Jean-Paul Sartre, a função do escritor é “fazer com que ninguém possa
ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele” (1989, p. 21), e Lima Barreto, intelectual
questionador, oprimido e estigmatizado por uma biografia que sempre o influenciaria, antecipou,
pelos seus escritos, o pensamento crítico e engajado que seria proposto durante o século XX.
Entretanto, a postura militante de Lima trouxe-lhe dificuldades muito perceptíveis. A
crítica literária oficial agiu duramente sobre a obra barretiana, não lhe poupando certo ostracismo
e esquecimento, tampouco estereótipos marcantes.
Em vida, as produções barretianas receberam poucos aplausos. Se a obra
Recordações do escrivão Isaías Caminha mereceu a “crítica do silêncio” pelos jornais e críticos
do início do século XX, não muito diferente se manteve o julgamento estético de sua produção
durante o resto de sua carreira literária. A cultura dominante, ou seja, a crítica oficial, oscilou
entre os estereótipos do “mulato inconstante e desleixado” a quase total indiferença frente à
publicação das grandes obras de Lima Barreto, como o caso de Triste fim de Policarpo
Quaresma.
No entanto, com a revolução estética ocasionada pela Semana de Arte Moderna em
1922, a visão sobre o conjunto da obra barretiana é, de certo modo, reavaliada. Considerado
“inovador”, “modernista” e “revolucionário” pelo grupo paulista, Lima surgia agora como a
10 In: Histórias e Sonhos. BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Obras Completas. BARBOSA, Francisco de Assis (Org.). São Paulo: Brasiliense, 1956, 17 vv. 11 Lima Barreto foi nomeado amanuense da Diretoria do Expediente da Secretaria da Guerra em outubro de 1903. Cf. BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002, p. 405.
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personificação da genialidade e da novidade estética literária. Lima Barreto faleceu no ano-
marco do movimento modernista e, como é sabido, os ecos do modernismo pouco influenciaram
a cultura carioca; assim, podemos afirmar que, na realidade, Lima Barreto já era precursor da
estética “modernista” muito antes mesmo que os jovens escritores liderados por Mário de
Andrade assim o percebessem.
Nos dias atuais, podemos ressaltar a retomada da obra de Lima, apesar da maioria
dos estudos universitários e críticos ainda oscilarem entre a imagem de um Lima Barreto
inconstante, ferino e, sobretudo, genial. 12 Contudo, se o reconhecimento do brilhantismo da
prosa de Lima Barreto deu-se através da crítica post-mortem, consolidada, por exemplo, por
meio da publicação de suas Obras Completas em 1956, a percepção, mesmo que tardia, de sua
genialidade e o título de antecipador de inovações literárias ajudam Lima Barreto a emergir do
entre-lugar a que muitas vezes é relegado pela crítica e manuais literários: o chamado Pré-
Modernismo.
Não se pode esquecer de que, certamente, além de seus romances, também suas
crônicas, publicadas muitas vezes em pequenos periódicos de vida breve, ajudaram duplamente
a vida e obra de Lima Barreto:
Nas crônicas de Lima Barreto temos o registro da “história dos vencidos”, para usar a expressão de Walter Benjamin, história construída não por vozes oficiais, nem tampouco pelos tradicionais intermediários que buscaram falar, por tanto tempo, por aqueles que não tinham voz própria. São a voz de alguém à margem, de um membro da marginália, fora [...] do centro hegemônico das decisões políticas... (RESENDE, p. 2004, p. 11).
Se por um lado, a publicação destas produções jornalísticas o mantinha em voga em
um período dominado por uma literatura preconceituosa, estetizante e falseadora da realidade
nacional, as crônicas também lhe serviam como palco para se fazer ouvir em uma sociedade
tradicional, excludente e que, abertamente, queria manter o mulato alcoólatra, alucinado e,
sobretudo, brilhante, fora do eixo do poder.
12 A propósito da evolução da crítica oficial sobre o conjunto da obra de Lima Barreto: MARTHA, Alice Áurea Penteado. E o boêmio, quem diria, acabou na Academia... Lima Barreto: inventário crítico. Tese de Doutoramento em Letras. Assis: FCL da UNESP, 1995.
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