6
MÁRIO CAEIRO 1 Estado em que não podemos discernir se estamos num campo de gravidade zero ou em queda livre… 2 Carlos Vidal; Definição da Arte Política, Fenda, Lisboa, 1997. 3 Pedro Brandão; A Cidade entre Desenhos. Profissões do Desenho, Ética e Interdisciplinaridade, Livros Horizonte, Lisboa, 2006. 4 Neste sentido, a iniciativa independente Em Trânsito [2005], coordenada por Marta Galvão Lucas e Daniela Brasil, foi tão rara quanto exemplar. 5 Lisboa Capital do Nada – Marvila 2001, Extra]muros[, Lisboa, 2002. Propomo-nos pensar a arte pública crítica, modalidade da praxis artística na cidade, a partir de um princípio activo que convencionaremos chamar extramuros. Elencamos um conjunto de intervenções realizadas em Lisboa, convictos de que o seu carácter interpreta um espírito de liberdade, responsabilidade e consciência, condições sine qua non para um habitar verdadeiramente colectivo da cidade contemporânea. Abordamos a Arte Pública como noema que reúne uma genealogia de projectos mas sobretudo se constitui como momentum filosófico, energia centrífuga, desejo de superação do papel instrumental da criatividade. Trata- se de a arte conquistar novos territórios, reequacionando os paradigmas do monumento à luz de novos valores culturais; reavaliando a sua auto- confinação decorativa no seio do Design Urbano; construindo uma trama de conteúdos sócio-antropológicos a partir de processos de colaboração e participativos. O Espaço Público, enquanto categoria filosófica, encontra-se em crise na sua função territorializada – por via da privatização das suas valências –, mas também enquanto conceito, o que resulta da caducidade das suas premissas burguesas. Mas qualquer ameaça à ideia de Espaço Público como princípio moral deveria levar a comunidade artística e projectual a reconsiderar a crucialidade do mesmo. Nesse sentido, na cidade edificada, o exercício da consciência, da criatividade e da experiência estética, decorrente de aspirações humanas básicas inalienáveis, exige a criação e a preservação de lugares e situações vocacionadas para a interacção livre entre os seus fruidores, num espírito de imponderabilidade 1 . Tal desafio radica num compromisso com um filosofar público do quotidiano colectivo: à refundação do compromisso político, numa política da felicidade e do prazer […] do evento ou do acontecimento no labirinto das singularidades, por oposição à política das representações, corresponderá uma arte igualmente refundada para além do princípio das indústrias culturais. 2 É possível surpreender em várias formas de arte na esfera pública qualidades essenciais que sucessivos autores condensaram em modelos ou categorias: situacionismo [Debord, Vaneigen], escultura social [Beuys], crítica institucional [Haacke], campo expandido [Krauss], arte contextual [Ardenne], estética relacional [Bourriaud], place-specific [Lippard], new genre public art [Lacy]… Todos percepcionaram a arte como construção colectiva de significados e vivências, sendo que a sua interpretação crítica é a que nos coloca dentro do processo de avaliação e revificação destes fenómenos e não nos expulsa para o papel de meros consumidores. Com a metáfora extramuros abarca-se uma praxis artística emancipatória, relativamente às vivências, aos significados e à própria construção mental que todos fazemos do mundo e de, nele, o[s] lugar[es] da arte. Essa dimensão crítica consuma-se em acontecimentos que irrompem no espaço quotidiano, sob múltiplas formas e resultando de actos de desenho [instância anterior ao Projecto 3 ], e que pressupõem uma ideia de partilha de informação, muitas vezes em tempo real 4 . Arte pública será assim uma forma de conhecimento da cidade, considerando o Espaço Público na sua dimensão desenhada, mas igualmente imaterial, de experienciação do real no quotidiano. As disciplinas que enquadram esta disponibilidade são as que projectam a cidade, das ciências sociais à geografia, passando por qualquer área do saber que aceite a arte como co-ciência e lhe confira um lugar no processo de investigação, como acontece no trabalho exemplar de Kristzof Wodisczo, Francis Alÿs, Gabriel Orozco, Atelier Van Lieshout ou os Stalker… A arte pública crítica será assim uma espécie de poiesis da urbanidade, equivalendo a uma batalha pela representação do próprio Espaço Público, explicitando formas de se fazer o social em que a arte, modalidade de produção de significado, campo e habitus, aceita confrontar-se com outras esferas de poder e legitimidade. Acontecimento, democracia, aforismo O ‘acontecimento urbano’ Lisboa Capital do Nada 5 assumiu, em 2001, esse desígnio programático e essa função de encontro com o social, sob o mote ‘criar, debater e intervir no espaço público’. A ‘carta branca’ dada aos criadores fez a diferença mas com os interesses de todos os agentes envolvidos a terem de ser negociados, logo com os valores abstractos a terem de adaptar-se tacticamente às condições de produção e recepção e 020 arq./a Maio 2008 CRÍTICA arquitectura Habitar o espaço público Da prática crítica da arte urbana 57-Critica.indd 20 18-04-2008 12:47:54

Da prática crítica da Arte Urbana

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Page 1: Da prática crítica da Arte Urbana

MÁRIO CAEIRO

1 Estado em que não podemos discernir se estamos num campo de gravidade zero ou em queda livre…2 Carlos Vidal; Definição da Arte Política, Fenda, Lisboa, 1997.3 Pedro Brandão; A Cidade entre Desenhos. Profissões do Desenho, Ética e Interdisciplinaridade, Livros Horizonte, Lisboa, 2006.4 Neste sentido, a iniciativa independente Em Trânsito [2005], coordenada por Marta Galvão Lucas e Daniela Brasil, foi tão rara quanto exemplar.5 Lisboa Capital do Nada – Marvila 2001, Extra]muros[, Lisboa, 2002.

Propomo-nos pensar a arte pública crítica, modalidade da praxis artística

na cidade, a partir de um princípio activo que convencionaremos chamar

extramuros. Elencamos um conjunto de intervenções realizadas em

Lisboa, convictos de que o seu carácter interpreta um espírito de liberdade,

responsabilidade e consciência, condições sine qua non para um habitar

verdadeiramente colectivo da cidade contemporânea.

Abordamos a Arte Pública como noema que reúne uma genealogia de

projectos mas sobretudo se constitui como momentum filosófico, energia

centrífuga, desejo de superação do papel instrumental da criatividade. Trata-

se de a arte conquistar novos territórios, reequacionando os paradigmas

do monumento à luz de novos valores culturais; reavaliando a sua auto-

confinação decorativa no seio do Design Urbano; construindo uma trama

de conteúdos sócio-antropológicos a partir de processos de colaboração e

participativos.

O Espaço Público, enquanto categoria filosófica, encontra-se em crise na

sua função territorializada – por via da privatização das suas valências –,

mas também enquanto conceito, o que resulta da caducidade das suas

premissas burguesas. Mas qualquer ameaça à ideia de Espaço Público

como princípio moral deveria levar a comunidade artística e projectual a

reconsiderar a crucialidade do mesmo. Nesse sentido, na cidade edificada,

o exercício da consciência, da criatividade e da experiência estética,

decorrente de aspirações humanas básicas inalienáveis, exige a criação e

a preservação de lugares e situações vocacionadas para a interacção livre

entre os seus fruidores, num espírito de imponderabilidade1.

Tal desafio radica num compromisso com um filosofar público do quotidiano

colectivo: à refundação do compromisso político, numa política da

felicidade e do prazer […] do evento ou do acontecimento no labirinto das

singularidades, por oposição à política das representações, corresponderá

uma arte igualmente refundada para além do princípio das indústrias

culturais.2

É possível surpreender em várias formas de arte na esfera pública

qualidades essenciais que sucessivos autores condensaram em modelos

ou categorias: situacionismo [Debord, Vaneigen], escultura social [Beuys],

crítica institucional [Haacke], campo expandido [Krauss], arte contextual

[Ardenne], estética relacional [Bourriaud], place-specific [Lippard], new

genre public art [Lacy]… Todos percepcionaram a arte como construção

colectiva de significados e vivências, sendo que a sua interpretação crítica

é a que nos coloca dentro do processo de avaliação e revificação destes

fenómenos e não nos expulsa para o papel de meros consumidores.

Com a metáfora extramuros abarca-se uma praxis artística emancipatória,

relativamente às vivências, aos significados e à própria construção

mental que todos fazemos do mundo e de, nele, o[s] lugar[es] da arte.

Essa dimensão crítica consuma-se em acontecimentos que irrompem no

espaço quotidiano, sob múltiplas formas e resultando de actos de desenho

[instância anterior ao Projecto3], e que pressupõem uma ideia de partilha de

informação, muitas vezes em tempo real4.

Arte pública será assim uma forma de conhecimento da cidade,

considerando o Espaço Público na sua dimensão desenhada, mas

igualmente imaterial, de experienciação do real no quotidiano. As

disciplinas que enquadram esta disponibilidade são as que projectam

a cidade, das ciências sociais à geografia, passando por qualquer área

do saber que aceite a arte como co-ciência e lhe confira um lugar no

processo de investigação, como acontece no trabalho exemplar de Kristzof

Wodisczo, Francis Alÿs, Gabriel Orozco, Atelier Van Lieshout ou os Stalker…

A arte pública crítica será assim uma espécie de poiesis da urbanidade,

equivalendo a uma batalha pela representação do próprio Espaço Público,

explicitando formas de se fazer o social em que a arte, modalidade de

produção de significado, campo e habitus, aceita confrontar-se com outras

esferas de poder e legitimidade.

Acontecimento, democracia, aforismo

O ‘acontecimento urbano’ Lisboa Capital do Nada5 assumiu, em 2001,

esse desígnio programático e essa função de encontro com o social, sob

o mote ‘criar, debater e intervir no espaço público’. A ‘carta branca’ dada

aos criadores fez a diferença mas com os interesses de todos os agentes

envolvidos a terem de ser negociados, logo com os valores abstractos a

terem de adaptar-se tacticamente às condições de produção e recepção e

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com os artistas trabalhando num quadro organizacional que pressupunha

serem cidadãos a corpo inteiro. Através da LXCN, como mais tarde

de outros projectos como Sinais – a Cidade Habitada6 e algumas das

intervenções da Luzboa – Bienal Internacional da Luz7, a deriva política da

arte contemporânea reencontrou-se com a actividade contextual, na esfera

pública. Esses encontros fundaram-se a partir da categoria experiencial do

momento [Lefèbvre].

A Lisboa Capital do Nada não foi certamente o único acontecimento de

arte crítica da década, mas motivou produção intelectual e posicionou-se

como paradigma8. Na LXCN, tratou-se de ressalvar a pertinência de uma

arte do interstício urbano, da rua: A pergunta fundadora do ‘movimento’

[como lhe chamaria Antoni Remesar, observador do evento]: A que

papel podem aspirar criadores, profissionais da área projectual e actores

não-profissionais da vida urbana, na reivindicação de uma ocupação

6 Projecto de sinalética desenvolvido em 2003, com a comunidade a ser envolvida, por via de questionários e várias acções conviviais, na elaboração de designações, logotipo, imagem gráfica e mobiliário urbano. Cf. 3 Projectos Experimentais.7 www.luzboa.com8 Não deverá ser escamoteada a concidência terminológica que une vários projectos que em sucessivas décadas interpretaram um desígnio paradigmático, em torno da figura do recomeço: Alternativa 0 em 77, 6=0 em 86, Lisboa Capital do Nada em 2001.

Hetpakt, Fado Morgana, Luzboa 2006

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do planeador, dos poderes locais instituídos – que podem ter ganho novas

ferramentas para praticar velhos vícios, agora transformados em virtudes,

graças à caução de um conjunto de experiências que, por vezes, revelou

forma subtis de irresponsabilidade, desconhecimento e arrogância12.

Happening, participação, discurso

Esta questão de uma condensação interactiva, relacional, do simbólico

em tempo real, na paisagem urbana, foi característica fundamental nos

happenings criados por Catarina Campino ou André Guedes. Paisagem

Combinada, deste último, consistiu no movimento encenado de jovens

de um clube desportivo local na paisagem do Vale de Chelas. Nos dias

de apresentação, uma bancada com 40 lugares era mais do que o indício

de que havia ali um espectáculo, ela era o símbolo da espectacularidade

própria de todo aquele momento urbano. Mariana Viegas, com Caminhos,

registou os percursos que os adolescentes percorrem no seu dia-a-dia,

acompanhando-os e estabelecendo com um pequeno grupo de estudantes

do Secundário um relação de estreita colaboração. No final, os resultados

foram ‘devolvidos’ à escola, nos seus espaços de convívio. Também

Paula Figueiredo, em Ádito, empreendeu numa primeira fase do projecto

uma acção de recolha, [imagens antigas da arquitectura industrial e dos

trabalhadores que a habitaram]. Depois expôs as imagens no Clube Oriental

de Lisboa, montando-as – sem legendas – por entre velhas recordações,

nos corredores, no bar, no átrio. Quanto a Catarina Campino, a sua série

de cinco concertos de ópera em outros tantos espaços-tipo do território

– constituiu-se como uma violenta colagem tridimensional, deliberadamente

impositiva mas, paradoxalmente, foco de emoções estéticas inequívocas.

Sinais – a cidade habitada foi um outro projecto interdisciplinar e

experimental, desta vez de sinalética participativa, que deu continuidade à

Lisboa Capital do Nada, embora com enfoque no design de equipamento

e comunicação. Incluiu inquéritos à população, acções conviviais, a

instalação de protótipos no espaço urbano. O pragmatismo do esforço

desenvolvido, com a instalação de dezenas de estruturas de sinalética

urbana, respondeu a um ‘Espaço Público’ mais ‘objectivo’ que o de todos

responsável do espaço público, enquanto lugar de cidadania?

A LXCN integrou nos processos criativos mecanismos de socialização,

por via da auscultação, colaboração, da participação, da negociação, aos

mais diversos níveis e fases. Chegou a imolar o estatuto de partida dos

projectistas, aceitando, por exemplo, a realização apenas parcial de um

projecto enquanto confirmação da sua qualidade crítica9. De certa forma,

o facto artístico obrigou-se a uma operação radical de auto-confinação

antropológica, como na peça Porque é que existe o ser em vez do Nada?

Esta foi uma campanha de comunicação elaborada por José Maçãs

de Carvalho, que deu visibilidade a «heróis» quotidianos de Marvila.

Seleccionou cinco jovens que figuraram em mupis, cartazes, folhetos,

postais e na internet, cuja fotografia era acompanhada por um telefone

móvel, numa campanha de tipo hotline, irrupção do real no espaço público

mediático.

Relevar o princípio extramuros desta arte equivale a dizer que nas obras

mais emblemáticas os artistas ‘saíram’ de algum lado [o seu estatuto, o

estatuto da arte, disciplina de origem, enquadramento académico] para

se apresentar ao mundo como apenas cidadãos, colocando porém as

suas competências específicas [capacidade de simbolização/significação/

representação, perícia técnica, saber integrado] ao dispor de situações de

intersubjectividade carregadas de interesse genuíno pelo destino colectivo

[representado, por exemplo, pela comunidade de um lugar]. Foi o que

aconteceu com o cordão humano que, dia 1 de Outubro de 2001, levou

4 000 pessoas da Freguesia de Marvila a ‘dar as mãos por nada’, unindo o

«casco velho» e o «casco novo» daquele território.

Mas também é de frisar que muita da arte produzida no quadro da LXCN

valeu pela instauração de dificuldades críticas. Foi o caso de Francisco

Tropa10, cuja peça foi ao mesmo tempo mito risível, argumentação política,

e, acima de tudo, aforismo urbano.11 Este estatuto aforístico, que permeou

outras intervenções, decorre até certo ponto da consciência da potencial

violência simbólica [Bourdieu] inerente à actividade artística: é possível que

com Lisboa Capital do Nada saia mais uma vez reforçado o exercício de

poderes tradicionais – do artista, do comisário, do arquitecto, do designer,

9 Caso de um parque infantil de João Pedro Vale que não passou das páginas do catálogo.10 Tropa, com a verba que lhe foi disponibilizada para realização do seu projecto, mandou fazer um pequeno cilindro em ouro e ofereceu-o ao presidente da Junta de Freguesia, afinal a corporização máxima do Espaço Público ao nível da representatividade política.11 Muita da arte extramuros é assumidamente aforística, porque esta é uma categoria genérica que, também no campo da visualidade, coloca no espectador a responsabilidade de descodificar, em tensão, as possibilidades interpretativas que é obrigado a interiorizar e organizar se quiser assumir o estatuto de espectador consciente e emancipado do acto artístico.12 Mário Caeiro, in Lisboa Capital do Nada.

Lisboa Capital do Nada, Lisboa 2001. Cordão Humano e José Maçãs de Carvalho, Porque é que existe o ser em vez do Nada?

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os projectos artísticos anteriores. Mas também nos Sinais houve activismo

intersticial. Diversas fotografias foram instaladas nos sítios em que foram

feitas as tomadas de vista, aplicadas nos suportes de sinalética. Emanuel

Brás concebeu esta intervenção como convite à deriva: passear por Marvila

como se fosse a primeira vez, olhar a realidade envolvente, estar no lugar.

Nas sinaléticas, esta abordagem político-filosófica da paisagem enquanto

lugar mental e de valor, encontra-se representada pelo pictograma azul

«Lugar-paisagem», confirmando um cuidado que decorre da primazia da

experiência sobre a representação. Até hoje, a cidade de Lisboa mantém

portanto um projecto permanente de elevado rigor conceptual que persiste

em fornecer uma informação urbana crítica; e que em Junho de 2008, às

portas da terceira travessia do Tejo, que cairá em Marvila, mantém a maior

actualidade…

O princípio de extraterritorialização cultural e diluição institucional que

defendemos para a arte no Espaço Público – que já não corresponde

necessariamente a oportunidades estáticas de activar um lugar, colocando

arte num determinado espaço, mas antes resultado da consideração do

sítio e do mundo [Cauquelin] – levou um artista como Christian Nold a

projectos de arte-investigação13 que são exemplares de uma suspensão

da categoria ‘arte’ em prol de uma acção directa e imediata baseada

na intersubjectividade. O resultado dos seus workshops é um mapear

alternativo da cidade. Caso extremo do discurso verbal como obra de arte

pública emancipatória, são as frases que Mel Jordan e Andy Hewitt14

espalham pelos mais variados media: The social function of public art is

to subject us to civic behaviour. / The economic function of public art is to

increase the value of private property. / The aesthetic function of public art

is to codify social distinctions as natural ones. Da Foz do Arelho15 a Veneza,

as frases funcionam como obras de arte [!?]… portáteis. Esta diluição

radical do objecto anda a par da problematização do contexto socio-político

em que arte pública se desenvolve. Na obra The Freee Collective Manifesto

for a Counterhegemonic Art16, os FREEE [Jordan, Hewitt + Dave Beech]

propõem uma radical pulverização do sistema das artes e das ideias

culturais que lhe estão subjacentes [a divisão cultural]. Nessa obra, o

13 Ver http://www.softhook.com ou www.biomapping.net.14 Mel Jordan, Andy Hewitt; I Fail to Agree, Site Gallery, 2004.15 Hewitt e Jordan participaram em 2006 num simpósio-retiro na Foz do Arelho, organizado em parceria com a ESAD.CR; no dia seguinte, apresentaram uma conferência na Casa d’Os Dias da Água, juntamente com Malcolm Miles.16 Beech, Dave; Hewitt, Andy; Jordan, Mel; The Freee Art Collective Manifesto for a Counter-Hegemonic Art, Shefield, 2007.

(em cima) Emanuel Brás, Do Lugar à Paisagem, Sinais - A Cidade Habitada, 2003(em baixo) Ron Haselden, Family Idea, Luzboa 2004

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noema Espaço Público é a pedra de toque de uma programa político para

a habitabilidade do espaço urbano, desenho urbano crítico sob a forma

discursiva, ainda nos interstícios – mas agora do campo intelectual e do

mundo da arte…

Da Luz Urbana… sismógrafos visuais

Sem verdadeiramente se oporem às estratégias políticas em matéria de

iluminação publica, alguns artistas contrapõem ao poder de atracção

da luz a sua transformação num revelador visual das complexidades

muitas vezes invisíveis da cidade, e até do seu tecido social. […] A luz,

neste caso, induz uma interpretação do sentido dos lugares, em vez de

neles incorporar um sentido orientado, decidido por alguns.17 A Luzboa

promoveu em 2004 e 2006 uma vertente da arte contemporânea que

perseque este programa de refundação do papel da Luz na cidade. Esta

‘Arte da Luz’ implica a crítica da ‘grande arte’ e ao mesmo tempo uma sua

actualização. Em L’Art après le Grand Art, Jean-Claude Pinson pergunta-

se: quelle sorte alors de grandeur l’art d’aujourd’hui peut’il être credité?18

Não hesitamos: é a grandeza do social, contingente, partilhado. E uma

expressão caracteriza os eventos que reúnem as múltiplas formas de

intervenção urbana por via da Luz e da Iluminação: sismógafos visuais de

qualidades urbanas19.

Vozes, famílias, corpos

Nos melhores momentos da Luzboa, trata-se de, mais uma vez,

promover uma arte em fluxo, e que entretanto a filósofa Christine

Buci-Glucksmann estabilizou como Estética do efémero20, uma teoria

da sensibilidade em que a beleza é faculdade de recriar sentido, de

maneira a construir uma ‘hermenêutica do sujeito’ aberta ao cuidado

de si e do outro. E se L’éphémère n’est pas le temps mais sa vibration

devenue sensible21, poderia haver melhor descrição do trabalho de

habitação temporal que os Hetpakt empreenderam nas Escadinhas de

São Cristóvão? A peça recorreu a soluções de produção de luz, imagem

e som básicas [captação por pin hole, projecção de slides sobre panos

brancos] e habitou o espaço por forma a estabelecer um momento

que celebraria a alma [musical] de uma cidade, por via de um ‘coro

urbano’ de vozes individuais que, juntas, compusessem uma espécie de

consciência-memória colectiva. Proporcionando a partilha de emoções

profundas, a peça permitiu um raro tipo de fusão entre espectador e

obra, um ‘fazer corpo com o dao’22.

Antes, em 2004, já Ron Haselden interpretara o programa da Luzboa

por via de uma peça participativa. Family Idea foi a representação

dos desenhos feitos por crianças da Cova da Moura, convidadas a

desenvolver a sua ‘ideia de família’ e a apresentá-la no centro da cidade.

17 Marc Latapie, in Luzboa – Lisboa Inventada pela Luz, Extra]muros[, Lisboa, 2006.18 Jean-Claude Pinson, L’art après de grand art, Éditions Cécile Defaut, Paris, 2005.19 Bettina Pelz, in Luzboa – Lisboa Inventada pela Luz, Extra]muros[, Lisboa, 2006.20 Christine Buci-Glucksmann, Estétique de l’ephémère, Galilée, Paris, 2003.21 Idem.22 Idem.

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O resultado expressou vivências individuais no jardim público do Parque

Eduardo VII [único local central que a fúria publicitária do EURO 2004

deixara inadvertidamnente livre]. A obra é hoje um must dos festivais de

Luz, tendo desde 2004 sido apresentada já nas cidades de Lüdensheid,

Genebra e Eindhoven.

Em contraste com tais monumentos à vida imaterial da cidade, Javier

Núñez Gasco apresentou na Luzboa a obra Misérias Ilimitadas, que

consistiu na constituição e gestão de uma empresa, com o nome

de Misérias Ilimitadas, Lda. Contratou pessoas para pedir esmola,

actividade ilícita, mas recorrendo à electricidade pública e sem

descurar todas as obrigações relativas ao pagamento dos devidos

impostos. Terá passado despercebido ao campo cultural, que, no dia

em que a Luzboa era chamada de capa nos media de referência,

estes ‘mendigos profissionais’ faziam o pleno das contracapas dos

jornais sensacionalistas, evitando assim o logro do chamamento – o

‘vem’ [Derrida] que subjaz a muita arte participativa – e conseguindo

pulverizar a rotina estética23. Obras como esta de Núñez Gasco celebram

portanto o Espaço Público num registo que não o da mera teatralização

do social, mas da própria plasticidade desse social.

Utopia station :)Pode ser uma fantasia, mas, com Malcolm Miles24: we ask for a location

in which a society is continuously renegotiated as an always-unfinished

determination of itself.25 Claro que, depois de uma crise radical das

ideias utópicas, a percepção do lugar de cada na construção do colectivo

é árdua: After the failure of 1968 there was a retreat. Now there is

hardly anywhere to which to retreat. This does not mean personal

experiences and moments are any less abundant, and may imply

that they become increasingly a location for critical and liberative acts

of imagination. […] I would see critical art practice as also engaged

in such reinterpretation, with the caution that – learning from the

failures of all the avant-gardes, it is not a work of interpretation but of

recognition.26

No fundo, estamos perante uma dificuldade de articulação entre

pensamento e acção; da exercitação radical do músculo utópico

que sabemos, todos, possuir… É que estes projectos são capazes

de proporcionar oportunidades de autonomia a pessoas concretas

e explicitam a dialéctica inerente à relação indivíduo-corpo social.

Convidam o espectador a sê-lo criticamente – co-produtor, co-

enunciante, elemento consciente dos processos de troca e fruição de

imagens, de modelos mentais, de visões do passado, do presente, do

futuro, no espaço urbano enquanto quotidiano expandido. Por isso, na

sua radicalidade relacional, estes projectos têm o condão de explicitar

aspectos da vida social, e da responsabilidade que se exige ao cidadão.

Estão a mapear a vida social com resultados práticos ineludíveis, e a

‘obrigar’ as pessoas, todas as esferas de poder, a repensar-se enquanto

agentes e protagonistas do habitar colectivo.

Mário Caeiro nasceu em Lisboa em 1966.

É designer, investigador e docente na Escola Superior de Arte e Design das Caldas da Rainha.

Preside desde 2000 à Extra]muros[ associação cultural para a cidade.

23 Inclusive a dos funcionários bancários, fiscais das finanças, forças de segurança ou técnicos camarários com quem o artista e a Organização da Bienal mantiveram contactos.24 Autor britânico, da Universidade de Plymouth, cujos textos em português foram todos editados pela Extra]muros[, nomeadamente Para Além do Espaço Público, Lisboa, 2001.25 Malcolm Miles, in ‘Displaced Monuments and Public Spheres’, Luzboa – Lisboa Inventada pela Luz.26 Idem.

(à esquerda) Bruno Peinado, Lune, Luzboa 2006(em baixo) Javier Núñez Gasco, Misérias Ilimitadas, Lda., Luzboa 2006(ao lado) Jana Matejkova, Coração, Luzboa 2006

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