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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) · Paulo Sérgio Weyl Albuquerque Costa e Ricardo Araujo Dib Taxi..... 147 A Teoria do Caos e sua Incidência no Direito

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Encontro de Internacionalização do CONPEDI (1. : 2015 : Barcelona, ES) I Encontro de Internacionalização do CONPEDI / organizadores: José Alcebíades

de Oliveira Junior, Marco Antônio César Villatore. – Barcelona : Ediciones Laborum, 2015.

V. 14

Inclui bibliografia ISBN (Internacional): 978-84-92602-86-5 Depósito legal : MU 859-2015 Tema: Atores do desenvolvimento econômico, político e social diante do Direito

do século XXI

1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Congressos. 2. Teoria. 3. Filosofia 4. História do direito I. Oliveira Junior, José Alcebíades de. II. Villatore, Marco Antônio César. III. Título.

CDU: 34

Copyright © 2015 Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito

Todos os direitos reservados e protegidos.Nenhuma parte deste livro, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados sem prévia autorização dos editores.

Produção Editorial: Equipe ConpediDiagramação: Marcos JundurianCapa: Elisa Medeiros e Marcos Jundurian

Impressão:Nova Letra Gráfica e Editora Ltda.CNPJ. nº 83.061.234/0001-76

Editora: Ediciones Laborum, S.L – CIF B – 30585343Deposito legal de la colección: MU 859-2015

1º Impressão – 2015

EDICIONES LABORUM, S. L.CIF B-30585343

Avda. Gutiérrez Mellado, 9 - 3º -21- Edif. CentrofamaTeléfono 968 88 21 81 – Fax 968 88 70 40

e-mail: [email protected]

Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071

E56p

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Diretoria - Conpedi

Presidente

Prof. Dr. Raymundo Juliano Feitosa - UFRN

Vice-presidente Sul

Prof. Dr. José Alcebiades de Oliveira Junior - UFRGS

Vice-presidente Sudeste

Prof. Dr. João Marcelo de Lima Assafim - UCAM

Vice-presidente Nordeste

Profa. Dra. Gina Vidal Marcílio Pompeu - UNIFOR

Vice-presidente Norte/Centro

Profa. Dra. Julia Maurmann Ximenes - IDP

Secretário Executivo

Prof. Dr. Orides Mezzaroba - UFSC

Secretário Adjunto

Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto - Mackenzie

Conselho Fiscal

Prof. Dr. José Querino Tavares Neto - UFG /PUC PR

Prof. Dr. Roberto Correia da Silva Gomes Caldas - PUC SP

Profa. Dra. Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches - UNINOVE

Prof. Dr. Lucas Gonçalves da Silva - UFS (suplente)

Prof. Dr. Paulo Roberto Lyrio Pimenta - UFBA (suplente)

Representante Discente

Mestrando Caio Augusto Souza Lara - UFMG (titular)

Secretarias

(Diretor de Informática)

Prof. Dr. Aires José Rover - UFSC

(Diretor de Relações com a Graduação)

Prof. Dr. Alexandre Walmott Borgs - UFU

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(Diretor de Relações Internacionais)

Prof. Dr. Antonio Carlos Diniz Murta - FUMEC

(Diretora de Apoio Institucional)

Profa. Dra. Clerilei Aparecida Bier - UDESC

(Diretor de Educação Jurídica)

Prof. Dr. Eid Badr - UEA / ESBAM / OAB-AM

(Diretoras de Eventos)

Profa. Dra. Valesca Raizer Borges Moschen - UFES

Profa. Dra. Viviane Coêlho de Séllos Knoerr - UNICURITIBA

(Diretor de Apoio Interinstitucional)

Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira - UNINOVE

Rua Desembargador Vitor Lima, 260, sala 508Cep.: 88040-400

Florianópolis – Santa Catarina - SCwww.conpedi.org.br

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Apresentação

Este livro condensa os artigos aprovados, apresentados e debatidos no Iº ENCONTRO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – CONPEDI, realizado entre os dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014, em parceria com a Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona – Espanha. O evento teve como tema os “Actores del Desarrollo económico, político y social frente al Derecho del siglo XXI”. Para o evento foram submetidos e avaliados mais de quinhentos artigos de pesquisadores do Brasil e da Europa. Após as avaliações foram aprovados em torno de trezentos artigos para apresentação e publicação.

O principal objetivo do evento foi o de dar início ao processo de internacionalização e fundamentalmente, o de construir espaços para a inserção internacional e divulgação de pesquisas realizadas pelos Pesquisadores dos Programas de Pós-Graduação em Direito do Brasil, associados ao CONPEDI. A realização deste primeiro evento procurou estimular o debate e o diálogo sobre questões atuais do Direito envolvendo a realidade brasileira e espanhola.

Os artigos apresentados analisaram o papel dos “Actores del Desarrollo económico, político y social frente al Derecho del siglo XXI” praticamente em todas as áreas do Direito. Considerando a amplitude do tema, as diversas abordagens e buscando uma aproximação entre as áreas de conhecimento optou-se pela organização de seis grupos de trabalhos (GTs), que foram constituídos da seguinte forma: a) Derecho Constitucional, Derechos Humanos e Derecho Internacional; b) Derecho Mercantil, Derecho Civil, Derecho do Consumidor e Nuevas Tecnologías; c) Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social; d) Derecho Administrativo, Derecho Tributario e Derecho Ambiental; e) Teoría del Derecho, Filosofía del Derecho e História del Derecho; f) Derecho Penal, Criminología e Seguridad Pública.

Além da promoção do intercambio entre as Instituições e profissionais da área do Direito do Brasil e Europa, a possiblidade de ampliar e difundir a produção cientifica no âmbito internacional e a melhoria dos indicadores dos Programas de Pós-graduação brasileiros, com a realização do primeiro evento internacional

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a atual Diretoria do CONPEDI também cumpre com um de seus compromissos assumidos quando eleitos. A transcendência da realização deste primeiro evento internacional para os pesquisadores brasileiros da área do Direito se reflete no resultado final obtido. A publicação de 15 livros, através da Ediciones Laborum da Espanha em parceria com o CONPEDI, com todos os artigos apresentados e debatidos nos GTs representa uma expressiva conquista que trará importantes resultados para os programas de Pós-graduação brasileiros e, fundamentalmente, para a área do Direito.

Barcelona/Florianópolis, março de 2015.

Os Organizadores

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Sumário

A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 e a Ne-cessária Inserção do Paradigma de Gênero no Direito: Uma Análise a Partir da Filosofia da LinguagemLúcia Freitas e Cecilia Caballero Lois .................................................... 11

A Batalha Jurídica de Belo Monte: Os Argumentos Elaborados no Campo Jurídico do Direito Constitucional pelas Posições Favoráveis e Contrárias à Construção da Usina Hidrelétrica de Belo MonteAlfredo de J. Flores e Gustavo Castagna Machado .................................. 31

A Constitucionalização dos Direitos Fundamentais e os Desafios a sua Efetivação: Considerações Sobre a Interpretação Moral da Consti-tuiçãoRiva de Freitas e Matheus Felipe de Castro ............................................ 69

A Dignidade Humana em Perspectiva: Uma Reflexâo Sobre o Fun-damento dos Direitos Humanos na Moral e na AntropologiaJaci Rene Costa Garcia e Vicente de Paulo Barretto ................................ 91

A Metafísica no Direito como Antítese ao Culturalismo Relativsta: Salvaguarda da Pessoa e da Justiça à Luz da Filosofia ClássicaAlessandro Severino Valler Zenni .......................................................... 113

A Recepção da Hermenêutica Filosófica na Filosofia do Direito BrasileiraPaulo Sérgio Weyl Albuquerque Costa e Ricardo Araujo Dib Taxi .......... 147

A Teoria do Caos e sua Incidência no DireitoRoseli Borin e Pietro Alarcón ................................................................. 163

Deliberação e Racionalidade Prática: Uma Reflexão a Partir da Teoria da Lei Natural de Tomás de AquinoJúlio Aguiar de Oliveira e Bárbara Alencar Ferreira Lessa ...................... 199

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i encontro de internacionalização do conpedi

Direito de Resistência e Desobediência CivilSergio Pereira Braga e Ruy Cardozo de Mello Tucunduva Sobrinho ........ 219

Direito e Fenomenologia em HegelJosemar Sidinei Soares e Tarcísio Vilton Meneghetti ............................... 231

Entre a Realidade e a Fantasia: Uma Crítica Foucaultiana e uma Análise Freudiana ao Discurso Moderno de Legitimação da Ordem JurídicaJulio Cesar Pompeu e Ricardo Gueiros Bernardes Dias ........................... 255

Federalismo e Governabilidade: Da Proclamação da República ao Estado NovoMartônio Mont’Alverne Barreto Lima e Marcelo Dias Ponte .................. 273

Formação do Mestre: Nietzsche e Direito ContemporâneoMarisa Forghieri .................................................................................. 291

Impactos da Metáfora Mecanicista da Modernidade na Teoria do Ordenamento Jurídico na Visão do Positivismo JurídicoAlvaro de Azevedo Gonzaga e Leonam Baesso da Silva Liziero ............... 307

Irracional ou Hiper-Racional? A Ponderação de Princípios Entre o Ceticismo e o Otimismo IngênuoFernando Leal ...................................................................................... 335

Justiça Intergeracional e a Sociedade do Século XXI: Direito, Ética e Moral em uma Escala Hiperdilatada de TempoDempsey Pereira Ramos Júnior e Edson Damas da Silveira .................... 371

O Direito Justo em São Tomás e em Jürgen HabermasLino Rampazzo e José Marcos Miné Vanzella ......................................... 411

O Revisionismo de Ronald Dworkin e a Crise dos Postulados Clás-sicos do JuspositivismoFrancisco Carlos Duarte ...................................................................... 445

Os Desafios Políticos e Jurídicos da Salubridade Pública em Tempos de Seca no Ceará (1870-1890)Daniel Camurça Correia ...................................................................... 461

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volume 14 9

Perspectivas de uma Nova Teoria das Alterações de Funções no Con-trato de TrabalhoClaudio Pedrosa Nunes ......................................................................... 487

Por Trás de Marbury Vs. Madison: Uma Análise Histórica Sobre a Política Envolvendo a Criação do Controle Jurisdicional de Cons-titucionalidadeLuiz Magno Pinto Bastos Junior e Eduardo de Carvalho Rêgo ................ 513

Por uma Filosofia no Processo Judicial: A Linguagem como Ponto de Partida e ReflexãoCristiano Becker Isaia ........................................................................... 541

Retórica Entimemática como Estratégia Judicial dos Atores do Desen-volvimento Econômico, Político e Social no Direito do Século XXILorena Freitas e Enoque Feitosa ............................................................ 579

Secularismo e Liberdade Religiosa na Abordagem de Charles TaylorCarlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira ............................................ 597

Um Olhar Semiótico-Prescritivo Sobre a Linguagem e a Norma JurídicaAparecida Luzia A. Zuin e Bruno Valverde Chahaira ............................ 615

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a ação de descumprimento de preceito fundamental nº 54 e a necessária

inserção do paradigma de gênero no direito: uma análise a partir da

filosofia da linguagem

Lúcia Freitas1

Cecilia Caballero Lois2

Resumo

A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, considerada um marco na construção de um rol de direitos reprodutivos das mulheres, buscou solucionar a polêmica acerca da possibilidade de interrupção voluntária da ges-tação em caso de feto anencéfalo. Tratada por alguns como decisão revolucionária, este artigo procura desmistificar esta visão, valendo-se, especialmente, de elementos de análise da linguagem que servirão para demonstrar que, longe de representar um avanço, a decisão termina, em certa medida, por cristalizar assimetrias de gênero, desconsiderar a autonomia das mulheres sobre seu próprio corpo e, especialmente, perpetua a ideia de que a mulher deve ser objeto de proteção do poder judiciário e não sujeito de direitos. Ainda neste sentido, o texto procura demonstrar que a referida decisão não se alinha aos discursos feministas e não é perpassada pelo paradigma de gênero, valendo-se inclusive de construções estereotipadas e simplistas.

Palavras-chave

Decisão judicial; Análise da linguagem; Gênero e direitos reprodutivos.

1 Professora pesquisadora da Universidade do Estado de Goiás na área de linguagem e gênero. Doutora em linguística pela Universidade de Brasília. Realiza estágio de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

2 Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista de Produtividade/CNPq (PQ2).

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Resumem

La Acción por Incumplimiento de Precepto Fundamental nº 54, considerado un marco en la construcción de los derechos reproductivos de la mujer, trató de resolver la controversia sobre la posibilidad de la interrupción voluntaria del embarazo en caso de feto anencefálico. Tratada por algunos como una decisión revolucionaria, este artículo pretende desmitificar esta visión, aprovechando, especialmente los elementos del análisis del lenguaje que servirán para demostrar que, lejos de representar un paso adelante, la decisión cristaliza las diferencias de género, limita la autonomía de la mujer sobre su propio cuerpo y sobre todo perpetúa la idea de que las mujeres deben ser objetos a la protección de la justicia y no sujeto de derechos. También en este sentido, este artículo pretende demostrar que la decisión de no se alimenta de los discursos feministas y también incluye construcciones estereotipadas y simplistas.

Palabras clave

Decisión Judicial; Análisis del lenguaje; Género y derechos reproductivos.

1. introdução

Este trabalho tem por objetivo apresentar uma análise inicial de parte das pesquisas realizadas em teoria do direito e da constituição desenvolvidas no âmbito do Observatório da Justiça Brasileira (FND/UFRJ). O Observatório da Justiça Brasileira (doravante OJB) é um laboratório de pesquisas de caráter tanto teórico quanto empírico, composto por professores, pesquisadores associados e estudantes ligados ao Programa de Pós-Graduação em Direito, da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Seu trabalho consiste no acompanhamento da jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal (STF), e a consequente análise política, jurídica e institucional, depen-dendo da natureza da decisão. É, portanto, neste contexto que nasceu o interesse de analisar um acórdão em particular: o resultante da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 (doravante ADPF 54), que buscou solucionar a polêmica acerca do direito das mulheres de interromperem voluntariamente uma

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gestação de feto anencéfalo, anomalia que impede as condições de sobrevivência da criança após o parto.

A escolha dessa decisão se deve ao interesse crescente de uma parte do grupo sobre questões de gênero no direito e, ainda, ao fato de que o desfecho da ADPF 54 foi alardeado como um significativo progresso em matéria de concretização de direitos reprodutivos da mulher no cenário da jurisdição constitucional brasi-leira. Segundo Pires (2013, p. 579), “a Corte brasileira, no caso, seguiu, nos limites do objeto da arguição, os parâmetros internacionais de crescimento do amparo jurídico às escolhas da mulher em relação ao controle do seu próprio corpo”. O controle do corpo feminino pelas próprias mulheres é uma célebre divisa feminista, que encontra no amplo e diversificado campo dos estudos de gênero muito esforço de publicação e debate, o que justifica, pelo menos em parte, nosso interesse em analisar essa decisão sob tal perspectiva.

Ademais, na ADPF 54 outra questão de gênero é tangenciada em quase toda a extensão do acórdão. Trata-se da perspectiva de descriminalização do aborto, reivindicação histórica de luta feminista e que perpassa, sem contudo enfrentar diretamente, o teor da decisão. Conforme destaca Pires (2013), dois aspectos chamam a atenção nesses termos: 1) a legitimação do cabimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental para a revisão do direito pré-constitucional; 2) a proteção da saúde mental da mulher como bem jurídico passível de tutela em contraposição a eventuais direitos do nascituro. E a autora complementa:

No primeiro aspecto, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento no sentido de que, diante do não cabimento da ADIn para a atualização do direito pré-constitucional, deve ser admitido, nessa hipótese, o conhecimento do instituto da ADPF. Nesse sentido, pode-se afirmar que a atuação da jurisdição constitucional é uma via aceitável para o conhecimento de ações que tenham por objeto a interpretação dos dispositivos do Código Penal que criminalizam o aborto voluntário, à luz dos princípios constitucionais, quando estão em apreciação outras possíveis condições fáticas e jurídicas justificadoras da necessidade da interrupção da gestação (Pires, 2013 p.580)

Nesses termos, compreendemos que a análise da ADPF 54 oportuniza uma série de discussões sobre questões concernentes à conquista de direitos das mu-

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lheres no Brasil. E, justamente por se tratar de uma decisão dessa natureza, en-tendemos que a perspectiva de gênero, como é discutida nos estudos feministas, deve ocupar a centralidade desses debates. Assim, buscamos, essencialmente, enfrentar um paradoxo: se, por um lado, a decisão foi comemorada com enorme entusiasmo por representar um avanço nas hipóteses de proteção à dignidade da mulher, por outro (e o presente texto centra-se nesta segunda hipótese), a forma como foi abordada e construída a decisão, não contribui de forma decisiva para o debate sobre os direitos reprodutivos das mulheres, nem representa um significativo avanço dos debates sobre gênero no direito, uma vez que estas questões não apenas foram negligenciadas, como claramente escamoteadas.

Para atingirmos o objetivo proposto, dividimos o texto em quatro seções: 1) Breve levantamento histórico da ADPF 54, na qual situamos o contexto que gerou a decisão; 2) A perspectiva de gênero no direito, em que realçamos a necessidade da comunidade jurídica de adotar tal categoria em suas decisões; 3) a questão de gênero no voto do relator a partir de uma análise crítica da linguagem utilizada; 4) Por fim, algumas considerações parciais, que procuram sintetizar o texto apresentado e apontam para novos rumos que a pesquisa deverá caminhar. A seguir, desenvolvemos o texto nessa ordem.

2. a arguição de descumprimento de preceito funda-mental 54: breve histórico

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 (ADPF 54) foi ajuizada em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS) perante o Supremo Tribunal Federal (STF), com assessoria da Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero) para questionar a constitucionalidade da interpretação dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal, que tratam do aborto legal, frente à possibilidade de mulheres grávidas de feto anencéfalo voluntariamente interromper a gestação. Tal procedimento, em uma clara tentativa de desvinculá-lo do aborto propriamente dito, foi chamado de “antecipação terapêutica de parto”.

O termo foi proposto pela antropóloga Debora Diniz (2003), professora da UnB e feminista ativista, membro da Anis, que lutou pelo direito das mulhe-

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res grávidas de bebês com anencefalia de interromperem a gestação. Em um de seus trabalhos a autora define a anomalia:

A anencefalia é um distúrbio de fechamento do tubo neural diagnosticável nas primeiras semanas de gestação. Por diversas razões, o tubo neural do feto não se fecha, deixando o cérebro exposto. O líquido amniótico gradativamente dissolve a massa encefálica, impedindo o desenvolvimento dos hemisférios ce-rebrais. Não há tratamento, cura ou qualquer possibilidade de sobrevida de um feto com anencefalia. Em mais da metade dos casos, os fetos não resistem à gestação, e os poucos que alcançam o momento do parto sobrevivem minutos ou horas fora do útero. O Brasil é o quarto país do mundo em número de partos de fetos com anencefalia. (Diniz e Velez, 2008 p.648)

A gravidez de anencéfalo tem sempre a morte do bebê como desfecho3. Anteriormente ao julgamento da arguição, as gestantes de anencéfalos que desejavam encurtar o sofrimento de uma gravidez dessa natureza tinham que recorrer individualmente ao poder judiciário com pouca chance de sucesso, uma vez que não havia uma uniformização da jurisprudência e, na maioria dos casos, a decisão somente ocorria após o nascimento.

Há que se destacar, ainda, nesta contextualização inicial que o Brasil possui uma das legislações mais restritivas em termos de aborto e que até recentemente, ou seja, antes da decisão, obrigava as mulheres a se manterem grá- vidas a despeito do diagnóstico da inviabilidade fetal. A indefinição quanto ao caráter do procedimento vinha se arrastando há mais de uma década, repercutindo no âmbito jurídico e suscitando questionamentos na sociedade brasileira. Isso porque, em nosso país, a interrupção voluntária da gravidez, o aborto, é tema polêmico, que suscita dúvidas e incertezas quanto a sua descriminalização, bem

3 Conforme dados da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), cinquenta por cento das mortes em casos de anencefalia acontecem ainda na vida intrauterina. Dos que nascem com vida, 99% morrem logo após o parto e o restante pode sobreviver por dias, ou poucos meses. “Os que sobrevivem, conseguem fazer o movimento involuntário de engolir, respirar e manter os batimentos cardíacos, já que essas funções são controladas pelo tronco cerebral, a região que não é atingida pela anomalia. Alguns não precisam do auxílio de aparelhos e chegam até a serem levados para casa, mas vivem em estado vegetativo, sem a parte da consciência, que é de responsabilidade do cérebro”. (GODIM, 2012)

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como movimenta lutas por sua proibição absoluta e incondicional. O Código Penal (CP) brasileiro proíbe a prática do aborto, exceto: I - Se não há outro meio de salvar a vida da gestante e; II - Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Ainda em 2004, à época do ajuizamento ADPF 54, uma liminar foi conce-dida pelo ministro Marco Aurélio de Mello, autorizando a interrupção da gestação em caso de anencefalia no feto. Essa liminar, no entanto, foi cassada na sessão plenária da Suprema Corte, em 20 de outubro de 2004, após quatro meses em vigência. A liminar fora derrubada por ter sido considerado necessário o julgamento prévio do instrumento jurídico utilizado para a apresentação da ação. Em 28 de abril de 2005, tiveram início as audiências públicas realizadas para o julgamento da ação, que se encerram em setembro do mesmo ano. Nesses momentos houve uma polarização bastante emocional de pontos de vista a favor e contra a descriminalização do aborto. Pires (2013, p.579) assim descreve o debate:

A favor da procedência do pedido, os participantes focaram suas falas nas possibilidades de diagnóstico da ciência médica, na ilegitimidade da imposição coletiva de uma determinada doutrina moral ou religiosa, e no consenso ético já estabelecido na sociedade civil brasileira, acolhedor do direito à interrupção da gestação de feto anencéfalo. Na perspectiva dos direitos da mulher, os profissionais da área médica relataram o impacto da gravidez de feto incompatível com a vida na saúde mental da gestante. De outra parte, os participantes contrários à descriminalização enfatizaram que não é possível o diagnóstico preciso de morte encefálica nos fetos ou bebês anencéfalos, que a permissão da antecipação do parto do anencéfalo pode desencadear o aumento de interrupções de gestação por motivos de eugenia, e que não há comprovação de graves danos à saúde da gestante se a gravidez for levada até o nascimento da criança, no que pese a carga emocional nela envolvida.

Em 12 de abril de 20124, a ADPF 54 foi julgada procedente por maioria dos votos. Considerou-se que as mulheres que decidem “antecipar o parto” em

4 Oito anos após a proposição da primeira ação.

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casos de gravidez de feto anencéfalo não estavam praticando crime tipificado no Código Penal.

O principal argumento proposto na ação era de que, por ser a anencefalia uma má- formação incompatível com a sobrevida do feto fora do útero, a interrupção da gestação não deveria ser tipificada, mas considerada como um pro-cedimento médico amparado em princípios constitucionais como o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III); da legalidade; da liberdade e da autonomia de vontade (art. 5o, II), bem como no direito à saúde (art. 6o e 196).

Chegava ao fim, portanto, após quase uma década, o julgamento de uma ação que deveria arbitrar sobre a liberdade de escolha da mulher de levar ou não adiante uma gravidez incerta, ainda que apenas em caso de feto anencéfalo. Contudo, podemos alertar desde já que, neste caso, o que se viu foi uma decisão que versa sobre questões de gênero que, porém, desconhece a mulher. Com efeito, ao longo da decisão restou claro que de forma alguma debateu-se a questão do aborto em si, como questão legítima das demandas feministas, mas apenas foram consideradas questões de saúde pública e de legalidade. É, contudo, nesta ausência, neste silenciamento da figura central da mulher e de seus direitos reprodutivos, que o presente texto pretende se centrar.

3. a perspectiva de gênero no direito

A introdução da categoria de gênero no campo de investigações nas ciências humanas veio consolidar uma abordagem a partir da compreensão de que a relação entre homens e mulheres é uma relação desigual construída socialmente. O gênero é considerado, assim, uma categoria de análise capaz de evidenciar a subsistência do patriarcado, a preponderância masculina, as relações de dominação entre os sexos e a desigualdade material entre homens e mulheres (Castilho, 2008). Tal conceito tem sido utilizado nas ciências sociais em função de propor uma visão mais aprofundada das relações entre os sexos, captando a criação inteiramente social das ideias sobre os papeis próprios dos homens, das mulheres e de outras identidades sexuais. Nesse sentido, a noção de gênero rejeita explicações biológicas, como as que encontram um denominador comum para várias formas de subordinação no fato de que as mulheres têm filhos e que os

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homens têm uma força muscular superior (Santos e Izumino, 2005). Assim, importa que se estude sob esse conceito, como se dá a construção social tanto das feminilidades quanto das masculinidades.

Não obstante, Monteiro (2003) observa que o tema é recente dentro no Direito, que historicamente o tratou no âmbito das relações de família, com base em uma radical diferença de funções entre o homem e a mulher que, antes mesmo de serem normatizadas, já se encontravam, de longa data, codificadas na cultura luso-brasileira. O autor ainda denuncia que esses papéis foram direcionados pelo modelo burguês de família, ao qual os codificadores e doutrinadores concedem sanção legal em detrimento da extrema variedade de práticas sociais relativamente à família no Brasil. Nesse sentido, o Direito, ao repartir estatutos e sancionar papéis, reproduz o jogo das estratificações sociais e, embora o faça em constante referência ao princípio da igualdade, recusa-se a reconhecer as reais desigual- dades entre os sexos.

No Brasil, a partir de meados da década de 70, quando ganha mais força o movimento brasileiro de mulheres, em particular o feminista, começa a crescer uma consciência da discriminação estrutural contra as mulheres, que atinge as áreas dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Progressivamente, a categoria de gênero fundamenta debates internacionais e nacionais sobre questões humanitárias. Mais recentemente, começa haver uma pressão dos movimentos internacionais no sentido de que tanto o paradigma de gênero quando o dos Direitos Humanos fossem incorporados no Brasil, implicando a promulgação de leis assim engajadas. Foi o caso da lei n.11.340, conhecida como Lei Maria da Penha. Seu texto faz referência explícita à categoria de gênero, conforme o termo foi apropriado na Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, adotada pela OEA em 1994), de quem a lei empresta a definição de violência contra a mulher: “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”.

Com relação à violência de gênero especificamente, Pimentel (2009) afirma que o acesso por parte das mulheres ao poder judiciário ainda é incipiente, apesar das garantias constitucionais e legais conquistadas. Soma-se a essa realidade o fato de que o poder judiciário ainda não se tem revelado suficientemente

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sensível à questão de gênero. Campos (2004) complementa, alegando que a não incorporação do “paradigma de gênero” no trato à violência contra a mulher no judiciário resulta na sua banalização, que por sua vez se reflete no arquivamento massivo das demandas, reprivatizando o conflito, com a devolução do poder ao agressor. Assim, para as autoras, o discurso jurídico esconde uma ideologia sexista que, em última instância, acaba por redobrar juridicamente a força normativa sociológica dos fenômenos sociais.

Uma outra pesquisadora que também reivindica a incorporação do para-digma de gênero na atuação do judiciário é Castilho (2008). Ao analisar um conjunto de sentenças e acórdãos sobre o tráfico de pessoas no Brasil, ela teve curiosidade de saber se os juízes examinavam a prova e sentenciavam desde uma perspectiva de gênero. Para ela, se a resposta fosse positiva, significava que esses profissionais de direito estariam atentos à desigualdade material entre homens e mulheres e estavam conscientes de sua causa e, portanto, cuidavam para que o processo penal não reforçasse a vitimização delas ou, em outras palavras, não reproduzia a violência de gênero contra as mulheres. Se a resposta fosse negativa, significaria que o processo penal reproduz a violência contra as mulheres e não alcança o desiderato da prevenção do crime de tráfico com fim de exploração da prostituição.

Ela conclui que as decisões judiciais revelam a subsistência da concepção da mulher como sexo frágil, e do seu papel tradicional no contexto familiar. Os juízes, ao aplicarem a sentença penal, confirmam a ideia socialmente construída de que mulheres pobres e pouco instruídas servem ao mercado do sexo, que a solução do problema consiste na melhoria das condições de educação, emprego e saúde. Em síntese, nas palavras da autora, o sistema penal é ineficaz para proteger as mulheres, “porque não previne novas violências, não escuta os distintos interesses das vítimas, não contribui para a compreensão da própria violência sexual e a gestão do conflito e, muito menos, para a transformação das relações de gênero” (Castilho, 2008 p.121).

Sobre a falta de um olhar atento do judiciário às questões de gênero nos casos em que este é o enquadre estrutural, Pimentel (2009) avalia a situação como uma “cegueira de gênero”. Ela complementa: “cegueira, por parte da sociedade enquanto um todo, cegueira dos profissionais de Direito e, inclusive, ainda,

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cegueira de muitas mulheres” (Pimentel, 2009 p.30). Para ela, muito mais do que um desafio, é um imperativo ético e jurídico a superação da cegueira de gênero, que mina a efetividade dos Direitos Humanos das mulheres.

Um tema que ocupa os estudos feministas e de gênero são os chamados “estereótipos de gênero”, que existem universalmente e estão presentes em todas as culturas, profundamente inculcados nos (in)conscientes de cada indivíduo. Eles naturalizam comportamentos e valores que perpetram posições assimétricas de poder entre os gêneros, gerando preconceitos e estigmas. Esses estereótipos, Segundo Pimentel (2009) são absorvidos pelos operadores do direito e refletidos na sua prática jurídica. Nesse sentido, ela insiste na necessidade de enfrentar os valores culturais patriarcais e as tensões axiológicas existentes na sociedade, no interior do Poder Judiciário, e até mesmo entre membros do Ministério Público, da Defensoria Pública, Advocacia e Polícia.

A superação da ideologia patriarcal que mina os Direitos Humanos das mulheres, reforçando estereótipos sociais, preconceitos, discriminação e violência contra nós, é, portanto, um grande desafio à melhoria da infraestrutura judi-ciária nacional. Pimentel (2009) assevera que todos os operadores devem realizar estudos e participar de análises e debates críticos em relação às condições de existência femininas, desiguais e injustas. Ela complementa:

Todos os profissionais da área jurídica e afins devem estar preparados para entender a violência contra as mulheres como manifestação perversa de discriminação de gênero que, lamen-tavelmente, integra as estruturas sociais, econômicas, culturais e políticas patriarcais. Também devem estar abertos e aptos para se comportar como nossos aliados, utilizando-se de um discurso em relação ao poder que repudie enfaticamente a ideia de que a subordinação social das mulheres e a consequente violência que sofrem não são um destino, “are not fate”, como afirmado no estudo recente 15 anos de relatoria especial da ONU sobre violência contra a mulher, suas causas e consequências (1994 – 2009) – Uma revisão crítica. (Pimentel, 2009 p.30)

Todas essas considerações nos direcionam a analisar o texto da ADPF 54 e a aplicabilidade da decisão sob o viés de gênero, pois, nessa perspectiva, questionamos, como o fez Castilho (2008), se os ministros e ministras do STF,

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ao sentenciarem em ações de direitos das mulheres, dão atenção à desigualdade material que existem entre estas e os homens e, assim, não reproduzem ou reforçam os estereótipos de gênero e as assimetrias de poder ou, pelo contrário, ao desconhecê-las, as reforçam. É o que iremos tratar no próximo item deste trabalho, a partir do voto do Ministro Relator, Marco Aurélio de Melo.

4. a perspectiva de gênero na adpf 54 e a questão fe-minista

Nesta seção, voltamos nossa atenção para o voto do relator da decisão com o objetivo de discutirmos a extensão da perspectiva de gênero nela expressa e até que ponto o julgamento se alia aos discursos feministas e às lutas pelos direitos das mulheres. Em seu voto, contrariamente às demandas feministas que centram suas reivindicações no direito ao próprio corpo e no controle dos direitos reprodutivos, o ministro Marco Aurélio destaca o âmbito de proteção maior a saúde mental da mulher, dando início, portanto, a um discurso protecionista e não emancipatório sobre a mulher. O principal argumento foi de que ao ser informada sobre a anencefalia do feto que gera, a gestante entra em estado de perturbação psíquica em grau elevado, como a angústia, a depressão e a síndrome de pânico, de forma que seus interesses devem prevalecer sobre o direito à vida do feto como valor constitucional. A partir daí, Pires (2013) arrisca-se a ponderar que outras causas excludentes da ilicitude do aborto podem ser acolhidas com fundamento na garantia da saúde mental da mulher, como está na base da permissão do aborto em caso de gravidez decorrente de estupro.

Esta seria uma interpretação que em muito agradaria os movimentos em prol da legalização do aborto, como é o caso do movimento feminista nacional - “Jornadas Brasileiras para o Aborto Legal e Seguro”. Movimento que lançou recentemente proposta de descriminalização do aborto voluntário até 12 semanas, por livre escolha da mulher, até 20 semanas em caso de violência se- xual, e em qualquer momento em casos de riscos à vida ou à saúde da gestante ou de anomalias fetais incompatíveis com a vida (Pires, 2013).

Para reforçar esta ideia, qual seja, a de estar construindo um voto associado às demandas das mulheres, o ministro cita textualmente, um dos ícones do feminismo, a autora Simone de Beauvoir:

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Simone de Beauvoir já exclamava ser o mais escandaloso dos escândalos aquele a que nos habituamos. Sem dúvida. Mostra-se inadmissível fechar os olhos e o coração ao que vivenciado diuturnamente por essas mulheres, seus companheiros e suas famílias. Compete ao Supremo assegurar o exercício pleno da liberdade de escolha situada na esfera privada, em resguardo à vida e à saúde total da gestante, de forma a aliviá-la de sofrimento maior, porque evitável e infrutífero (Trecho do voto do Ministro Relator Marco Aurélio no acórdão da ADPF 54, p. 68).

À primeira vista, parece haver entre o discurso do Ministro e o da feminista o que nos estudos linguísticos é chamado de expansão dialógica (Martin e White, 2007). O termo é uma categoria de análise dentro do sistema de engajamento que é proposto no campo dos estudos discursivos para analisar as vozes históricas e sociais lançadas pelos produtores de textos. Tendo como premissa a noção de que enunciados verbais são sempre dialógicos, essa categoria é teorizada para expor a forma como os produtores de um texto se filiam, ou se contrapõem a um dado contexto, bem como na forma como os outros são convidados a endossar pontos de vista. Se o alinhamento do falante em relação à dialogia é positivo, temos uma expansão dialógica, ao passo que, se, por outro lado, há o desafio, a restrição ou a crítica em relação ao escopo das vozes implicadas, temos uma relação de contração dialógica.

Em síntese, o sistema de engajamento é traçado para facilitar o acesso aos recursos de posicionamento subjetivo nas avaliações, revelando a voz ou as vozes autorais de onde elas partem e os significados pelos quais o falante tanto pode se aproximar ou se distanciar dos pontos de vista lançados em sua enunciação. Considerando-se a fala do ministro dentro dessa moldura teórica, diríamos que a menção a um ícone do feminismo, como Simone de Beauvoir, para dar suporte à retórica de que “compete ao Supremo assegurar o exercício pleno da liberdade de escolha situada na esfera privada, em resguardo à vida e à saúde total da gestante”, parece criar uma expansão dialógica entre o discurso do relator e o da feminista. Não obstante, uma análise mais detida do voto demonstra, em certa medida, justamente o oposto. É o que evidenciamos a partir do trecho a seguir:

Destaco a alusão feita pela própria arguente ao fato de não se postular a proclamação de inconstitucionalidade abstrata dos

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tipos penais, o que os retiraria do sistema jurídico. Busca-se tão somente que os referidos enunciados sejam interpretados conforme à Constituição. Dessa maneira, mostra-se inteiramente despropositado veicular que o Supremo examinará, neste caso, a descriminalização do aborto, especialmente porque, consoante se observará, existe distinção entre aborto e antecipação terapêutica do parto. Apesar de alguns autores utilizarem expressões “aborto eugênico ou eugenésico” ou “antecipação eugênica da gestação”, afasto-as, considerado o indiscutível viés ideológico e político impregnado na palavra eugenia (Trecho do voto do Ministro Relator Marco Aurélio no acórdão da ADPF 54, p. 33, grifos nossos).

Observa-se que o ministro lança aqui uma argumentação com o intuito de resguardar o Supremo Tribunal da discussão sobre o direito da mulher de, por livre escolha, interromper a gestação de um feto viável. Mais uma vez, à luz de uma abordagem linguística, essa articulação pode ser interpretada como uma estratégia de “proteção de face”. Para Goffman (1967) o conceito de “face” se refere ao valor social que os indivíduos reclamam para si e para os outros, considerando sempre os sentimentos envolvidos na interlocução. Um dos problemas de qualquer comunicação é o risco de comprometer a imagem social dos participantes, por isso a necessidade de estratégias que amenizem esse comprometimento, chamadas nos estudos de linguagem de “trabalho de face” (Freitas, 2013).

O tema em questão na ADPF 54 perpassa as discussões sobre o aborto que são, conforme já abordamos em seção anterior, extremamente polêmicas e movimentam em diversos setores sociais lutas acaloradas tanto por sua liberação quanto pela proibição absoluta e incondicional. Nessa disputa, o seguimento religioso se destaca. Nessa questão, o posicionamento das Igrejas em geral e da Igreja Católica, especificamente, é de que o aborto é um pecado perante Deus, e fere o direito à vida, que é considerada a partir da fecundação. Conforme analisaram Diniz e Velez (2008 p. 649), apesar da laicidade do Estado Brasileiro, “causa pouca controvérsia política a existência de congressistas religiosos ou com base política confessional, cuja pauta legislativa é promover e defender os inte-resses específicos de suas comunidades morais de origem e não uma ideia de pluralismo moral razoável”. Esse quadro justifica a necessidade de um trabalho

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de face que proteja o discurso decisório do STF das reações contrárias que podem advir de diferentes segmentos sociais em consequência da forma como foi textualizada a decisão.

É nessa direção que o Ministro Relator se protege, restringindo o alcance da decisão tão somente aos casos de gravidez de anencéfalos e deixando bem evi- dente que está excluída do pleito qualquer consideração sobre o aborto voluntário. Ele justifica essa restrição, usando a mesma estratégia discursiva do advogado subscritor da inicial, o jurista Luís Roberto Barroso, que alegou que a antecipação terapêutica de parto não suscita a discussão sobre o direito da mulher de, por livre escolha, interromper a gestação de um feto viável, tendo em vista que não se trata de aborto “tal como tipificado no Código Penal”. Observa-se que o Ministro, seguindo a mesma linha do advogado, cria uma distinção entre aborto e antecipação terapêutica de parto, sustentando que no plano da decisão da ADPF 54 o primeiro está descartado. Conforme comenta Pires (2013), perdeu-se a oportunidade de equacionar a colisão entre os interesses do nascituro e a autonomia reprodutiva da mulher.

Cabe nesse momento tecer um breve comentário sobre os recursos de lin-guagem que performaram tal distinção como um recurso de proteção de face no discurso do STF nessa decisão polêmica. Os termos “aborto” e “antecipação terapêutica de parto” são considerados na teoria linguística como nomeações (Fairclough, 2003). Nomear é considerar a relação ente nome e coisa de forma simbólica. Os sujeitos nomeiam a partir de sua posição em uma formação discursiva, assim, um nome não funciona como uma etiqueta, mas produz sentido historicamente e ideologicamente. Nomeações têm funcionalidade discursiva e ideológica. Não é despretensiosamente que o Ministro assume o “indiscutível viés ideológico e político impregnado” nas palavras, que no seu discurso se refere à palavra “eugenia”.

Nesse ponto, é oportuno retomar a questão que lançamos no início desta seção, quando questionamos se a citação das palavras de Simone de Beauvoir no voto do Ministro criava uma expansão dialógica entre seu discurso e o da feminista. Vamos argumentar em contrário, tomando como exemplo um trecho do segundo volume de “O segundo sexo”, texto referencial da Teoria Feminista, em que a autora expõe algumas noções sobre o aborto no senso comum das sociedades burguesas:

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Há poucos assuntos a cujo respeito a sociedade burguesa demonstre maior hipocrisia: o aborto é um crime repugnante a que é indecente aludir. Que um escritor descreva as alegrias e os sofrimentos de uma parturiente, é perfeito; que fale de uma abortante e logo o acusarão de chafurdar na imundície e de descrever a humanidade sob um aspecto abjeto: ora, há na França anualmente número igual de abortos e de nascimentos. É um fenômeno tão expandido que cumpre considerá-lo como um dos riscos normalmente implicados na condição feminina (Beauvoir, 1967 p. 248).

As palavras de Beauvoir dão sustentação ao posicionamento do movimento feminista, que prima pelo argumento do direito inalienável da mulher ao próprio corpo, sob a alegação de que o aborto constitui um problema de fórum íntimo e que deve ser lhe dado o direito de escolha quanto ao número e o momento de ter filhos. Nessa medida, juntas a Pires (2013), não podemos deixar de lançar um olhar crítico sobre os aspectos negativos da concepção corroborada pelo Supremo Tribunal de que o aborto e a antecipação terapêutica do parto são situações distintas e devem ser assim consideradas no plano jurídico.

É nesses termos que compreendemos que o discurso registrado no voto do Mi-nistro Marco Aurélio, ao contrário do que aparenta em um primeiro momento, não entra em expansão dialógica com o discurso feminista. Existe ai, na realidade, uma contração dialógica, uma vez que ao criar uma nomeação específica para o termo aborto de anencéfalos, o STF assume indiretamente a necessidade de criar novas conotações ideológicas à nomeação a fim de que dela sejam apagadas as noções estigmatizadas que lhes são inerentes. Assume-se, portanto, como criticou Beauvoir, que o aborto é “um crime repugnante a que é indecente aludir”.

Nessa perspectiva, a decisão não se alinha aos discursos feministas e não é perpassada pelo paradigma de gênero. Assim, não contempla os discursos que buscam evidenciar a subsistência do patriarcado, as relações de dominação entre os sexos e a desigualdade material entre homens e mulheres. Pode-se inclusive detectar no texto decisório algumas construções que são tidas dentro dos estudos de gênero como estereótipos, conforme se pode ver no recorte a seguir:

O determinismo biológico faz com que a mulher seja a portadora de uma nova vida, sobressaindo o sentimento maternal. São

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nove meses de acompanhamento, minuto a minuto, de avanços, predominando o amor. A alteração física, estética, é suplantada pela alegria de ter em seu interior a sublime gestação. As percepções se aguçam, elevando a sensibilidade. Este o quadro de uma gestação normal, que direciona a desfecho feliz, ao nascimento da criança (Trechos do Relatório do acórdão da ADPF 54, p, 14).

Determinismo biológico é justamente um dos alvos de ataque das teorias de gênero que buscam desnaturalizar tal construção nos discursos do senso comum e mesmo no científico e médico. Toda a articulação discursiva na decisão, em que o voto do Ministro em análise é parte fundamental, uma vez que foi a partir dele que se pronunciaram os demais juízes e juízas, é feita em moldes que buscam um enquadre dentro da cultura jurídica que é, como já esclareceram alguns autores (Monteiro, 2003; Castilho, 2008; Campos, 2004) eminentemente patriarcal, masculina e muitas vezes sexista.

5. conclusões

Ao chegarmos agora às considerações finais, é necessário chamar atenção para o que Wolff e Possas (2005) discutem sobre os discursos históricos sobre o feminino. Segundo essas autoras, há uma crescente releitura da história, à busca de novas interpretações para discursos sobre mulheres a partir do olhar masculino. As autoras citam os tratados médicos que ao “descreverem” o corpo feminino e seu funcionamento, reforçam a todo momento a ciência médica exercida por homens especialistas. Esses discursos ajudaram a estabelecer os profissionais obstetras no mercado dos partos, suas práticas de intervenção e a progressiva perda de autonomia das mulheres no que diz respeito a seu corpo ao longo dos séculos XIX e XX.

O mesmo precisa ser observado no campo do Direito. A estratégia de criar uma distinção entre aborto e antecipação terapêutica de parto, alegando-se que o caso não suscita qualquer discussão sobre o primeiro termo, certamente foi utilizada a fim de favorecer uma abertura interpretativa ao acolhimento do pedido veiculado na ADPF. O sucesso dessa estratégia, que reforça a atuação brilhante do advogado, demonstra que o grau de marginalização do argumento feminista de que o aborto constitui um direito moral da mulher de autonomia sobre o próprio corpo e sobre a própria consciência.

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De forma um tanto capciosa o STF aprovou a legalização da interrupção voluntária em caso de anencefalia, atendendo a uma reivindicação de correntes feministas, excluindo desse debate os discursos desse campo. Essa tática faz lembrar o que Donna Haraway (1995 p. 8) reportou sobre a questão da produção de conhecimento científico a partir do feminismo:

Nós, as feministas nos debates sobre ciência e tecnologia, somos os “grupos de interesse especial” da era Reagan no âmbito rarefeito da epistemologia, no qual o que tradicionalmente tem vigência como saber é policiado por filósofos que codificam as leis canônicas do conhecimento.     O “eles” imaginado constitui uma espécie de conspiração invisível de cientistas e filósofos masculinistas, dotados de bolsas de pesquisa e de laboratórios; o “nós” imaginado são os outros corporificados, a quem não se permite não ter um corpo, um ponto de vista finito e, portanto, um viés desqualificador e poluidor em qualquer discussão relevante, fora de nossos pequenos círculos, nos quais uma revista de circulação de “massa” pode alcançar alguns milhares de leitores, em sua maioria com ódio da ciência.

A análise aqui proposta, sob uma perspectiva de gênero e apoiada em recursos da área dos estudos linguísticos, demonstra a pouca abertura do campo de Direito para o conhecimento produzido a partir do feminismo para tratar de assuntos concernentes a questões do feminino.

Por fim, vale destacar que, no final do mês, o Ministério da Saúde publicou uma portaria que incluía o registro específico do aborto previsto em lei e em decisão do Supremo Tribunal Federal (gravidez por estupro, com risco de morte à gestante e feto anencéfalo) na tabela de serviços oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Dois dias depois, no entanto, a portaria foi revogada, sob pressão de parlamentares dogmáticos e conservadores que criticaram o texto, em mais um episódio no qual o Executivo cede a chantagem desses setores em temas ligados aos direitos sexuais e reprodutivos. Esse retrocesso gerou reação de entidades e movimentos de direitos humanos (que o SPW acompanhou), tendo em vista os efeitos deletérios que a ilegalidade do aborto no país tem sobre a saúde das mulheres.

6. referências

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a batalha jurídica de belo monte: os argumentos elaborados no campo

jurídico do direito constitucional pelas posições favoráveis e contrárias à construção da usina hidrelétrica de

belo monte

Alfredo de J. Flores1

Gustavo Castagna Machado2

Resumo

No presente artigo, buscamos responder à seguinte pergunta: quais foram os argumento jurídicos utilizados por cada parte da disputa da construção da Hidrelétrica de Belo Monte e com qual finalidade para tentar alcançar o seu objetivo, qual seja, de viabilizar ou inviabilizar a construção desta? Para responder à essa pergunta, temos por objetivo, primeiro, elaborar um pequeno histórico do estudo e da elaboração do projeto da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, para entender os interesses ambientais, políticos, econômicos e sociais envolvidos e os antagonismos que daí resultam. Segundo, temos por objetivo também investigar, descobrir e apresentar os argumentos postos a favor e contra a construção de Belo Monte, qual o discurso de cada parte envolvida. A partir desses argumentos, surge o terceiro, que é investigar quais foram os argumentos elaborados no campo jurídico do direito constitucional pelas posições favoráveis e contrárias à construção de Belo Monte para tentar alcançar o seu objetivo, qual seja, de viabilizar ou inviabilizar a construção desta. E, mais do que isso, buscar compreender porque cada argumento é utilizado por cada parte, qual seria a consequência da utilização de cada argumento. Constatou-se que, por parte de

1 Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGDir, UFRGS). Professor Adjunto de Metodologia Jurídica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutor em Direito e Filosofia pela Universitat de València (Espanha).

2 Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em estágio sanduíche no Max-Planck-Institut für  europäische Rechtsgeschichte (MPIeR), Alemanha, com bolsa CAPES.

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quem é a favor da construção de Belo Monte, o principal argumento utilizado para a construção da Usina foi o direito ao desenvolvimento, como desdobra-mento dos direitos humanos econômicos, que se apresenta em uma prerrogativa inerente à natureza humana, atuando na esfera particular de cada cidadão e perante as sociedades como um todo, surgindo daí a necessidade de o Estado elaborar e consagrar políticas públicas voltadas para a sua concretização. Do ponto de vista de quem era contra Belo Monte, o principal argumento constitucional material foi respeito ao direito da natureza e das gerações futuras.

Palavras-chave

História do Direito brasileiro; Ambientalismo; Direito e desenvolvimento; Usina hidrelétrica de Belo Monte; Verdismo; Neodesenvolvimentismo.

Abstract

In this article, we seek to answer the following research question: what were the legal arguments used by each part involved in the dispute related to the construction of the Belo Monte Dam and for what purpose in order to try to reach their aim, namely, to enable or disable the construction of the Dam? To answer this question, we aim, first, to prepare a brief history of the study and drafting of the Belo Monte Dam project, to understand the environmental, political, economic and social interests involved and the antagonisms that from there result. Second, we aim to also investigate, discover and present the arguments put for and against the construction of Belo Monte, which was the discourse of each party involved. From these arguments, arises the third, which is investigating what were the arguments developed in the constitutional law field for and against the construction of Belo Monte to try to achieve its aim, namely, to enable or disable the construction of the Dam. And, more than that, to try to understand why each argument is used by each party, what would be the consequence of the use of each argument. It was found that, by the ones who are in favor of the construction of Belo Monte, the main argument used for the construction of the Dam was the right to development, as the deployment of economic human rights, which presents as a prerogative inherent to human nature, acting in the particular sphere of every citizen and before societies as a whole, and hence the need for the State to prepare and consecrate public policies

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directed to its implementation. From the point of view of those who were against Belo Monte, the main material constitutional argument was the respect of the right of nature and the right of future generations.

Key words

Brazilian legal History; Environmentalism; Law and Development; Belo Monte Dam; Verdismo; Neo-developmentism.

1. introdução

Fazer história contemporânea não é uma tarefa fácil por diversos motivos. Um deles, sem dúvida, está relacionado com os ânimos aquecidos de uma disputa muitas vezes ainda em curso, como é o presente caso. No presente artigo, aceitando essa tarefa, buscamos responder à seguinte pergunta: quais foram os argumento jurídicos utilizados por cada parte da disputa da construção da Hidrelétrica de Belo Monte e com qual finalidade para tentar alcançar o seu objetivo, qual seja, de viabilizar ou inviabilizar a construção desta? Para responder à essa pergunta, temos por objetivo, primeiro, elaborar um pequeno histórico do estudo e da elaboração do projeto da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, para entender os interesses ambientais, políticos, econômicos e sociais envolvidos e os antagonismos que daí resultam. Segundo, temos por objetivo também investigar, descobrir e apresentar os argumentos postos a favor e contra a construção de Belo Monte, qual o discurso de cada parte envolvida. A partir desses argumentos, surge o terceiro, que é investigar quais foram os argumentos elaborados no campo jurídico do direito constitucional pelas posições favoráveis e contrárias à construção de Belo Monte para tentar alcançar o seu objetivo, qual seja, de viabilizar ou inviabilizar a construção desta. E, mais do que isso, buscar compreender porque cada argumento é utilizado por cada parte, qual seria a consequência da utilização de cada argumento. É um artigo que propõe ao leitor uma reflexão, do ponto de vista histórico, sobre o Direito e os seus usos pelos atores estudados. Dentro de sua metodologia, o artigo não pretende discutir qual seria o melhor argumento, ou que parte teria razão, mas compreender qual justificativa jurídica estaria associada com qual posição.

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2. origens do projeto

Ainda em 1975, durante o governo de Ernesto Geisel (1974-1979), foi iniciado pela Eletronorte (criada em 1973), subsidiária da Centrais Elétricas Brasileiras - Eletrobras na Amazônia Legal, os Estudos de Inventário Hidrelétrico da Bacia Hidrográfica do Rio Xingu, visando o aproveitamento hidrelétrico da Amazônia, cujo potencial representa 60% do total do Brasil, para servir de base de sustentação ao projeto de industrialização brasileiro. Esse trabalho, que tinha por meta mapear o rio e seus afluentes e definir os pontos mais favoráveis. para barramentos, ficou sob a responsabilidade do Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores S.A., integrante do grupo Camargo Côrrea3.

Embora a origem esteja em 1975, a Eletrobras, desde que contratou uma consultoria técnica para o primeiro estudo em 1975, já teve mais de quinze presidentes diferentes. O Ministério de Minas e Energia já teve mais de treze diferentes ministros. E ambos passaram por inúmeras trocas de equipe técnica, o que gerou diversas alterações no projeto original. O projeto atualmente em construção se apresenta de modo totalmente diverso daquele de quase quarenta anos atrás, devido a várias questões, sendo que as que mais se destacam são questões ambientais, sociais, políticas e econômicas.4

O relatório dos Estudos de Inventário Hidrelétrico da Bacia Hidrográfica do Rio Xingu que foi finalizado em 1980, no governo de João Baptista Figueiredo (1979-1985), pela Camargo Correa/CNEC, para a então Eletronorte, previa cinco barramentos, Kararaô, Babaquara, Ipixuna, Kokraimoro e Jarina, no trecho paraense do Xingu, mais um (Cachoeira Seca) no seu irmão menor, o rio Iriri.5

3 RODRIGUES, Luciana Rosa. Ciência no Tribunal: As Expertises Mobilizadas no Caso Belo Monte. Santa Maria, 2013. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Disponível em: < http://w3.ufsm.br/ppgcsociais/docs/dissertacoes/Luciana.pdf >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 12.

4 RODRIGUES, Luciana Rosa. Ciência no Tribunal: As Expertises Mobilizadas no Caso Belo Monte. Santa Maria, 2013. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Disponível em: < http://w3.ufsm.br/ppgcsociais/docs/dissertacoes/Luciana.pdf >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 12.

5 RODRIGUES, Luciana Rosa. Ciência no Tribunal: As Expertises Mobilizadas no Caso Belo Monte. Santa Maria, 2013. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Disponível em: < http://w3.ufsm.br/ppgcsociais/docs/dissertacoes/Luciana.pdf >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 12.

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Algumas fontes apontam sete barramentos6, mas não foi possível identificar qual seria o sétimo. A partir de então, a Eletronorte inicia os estudos de viabilidade técnica e econômica do chamado Complexo Hidrelétrico de Altamira, que reunia as Usinas de Babaquara e a Usina de Belo Monte, então denominada Kararaô.7

Em 1986, já no governo de José Sarney (1985-1990), é elaborado o Plano 2010 - Plano Nacional de Energia Elétrica 1987/2010, que afirma o aproveita-mento do Rio Xingu como o maior projeto brasileiro do final do século XX e começo do próximo, com a indicação de Belo Monte, então denominada Kararaô, como a melhor opção para iniciar a integração das usinas do Rio Xingu ao Sistema Interligado Brasileiro, retirando a prioridade de Babaquara8.

No ano de 1990, a Eletronorte envia ao Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE) o Relatório Final dos Estudos de Viabilidade do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte, antiga Kararaô (palavra que significa grito de guerra em Kaiapó e que, por isso, foi alterado), solicitando sua aprovação e outorga de concessão.9

No ano de 1994, já no governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), é apresentado ao DNAEE e à Eletrobras novo projeto, remodelado de acordo com os debates com ambientalistas e investidores estrangeiros. O reservatório da usina, por exemplo, é reduzido de 1.225 km2 para 400 km2, evitando a inundação da Área Indígena Paquiçamba.10 Em 1996 é criada a Aneel, que passa

6 MELLO, Cecília Campello do Amaral. Se houvesse equidade: a percepção dos grupos indígenas e ribeirinhos da região da Altamira sobre o projeto da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Novos Cadernos NAEA, Belém, v. 16, n. 1, jun. 2013. p. 126.

7 LUNA, Denise. Facões, artistas e contradições cercam Belo Monte. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 de abr. de 2010. Disponível em: < http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,facoes-artistas-e-contradicoes-cercam-belo-monte,14438e >. Acesso em: 10 jul. 2014.

8 FLEURY, Lorena Cândido; ALMEIDA, Jalcione. A construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte: conflito ambiental e o dilema do desenvolvimento. Ambiente & Sociedade, São Paulo, v.16, n. 4, out./dez. 2013. p. 142.

9 FAINGUELERNT, Maíra Borges. Meandros do Discurso Ambiental na Amazônia: uma Análise Crítica do Processo de Licenciamento Ambiental da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Niterói, 2011. Dissertação (Mestrado em Ciência Ambiental) - Universidade Federal Fluminense – UFF. Disponível em: < http://www.maisdemocracia.org.br/arquivos/DissertacaosobreUHEBeloMonte.pdf >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 54.

10 LUNA, Denise. Facões, artistas e contradições cercam Belo Monte. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 de abr. de 2010. Disponível em: < http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,facoes-artistas-e-contradicoes-cercam-belo-monte,14438e >. Acesso em: 10 jul. 2014.

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a funcionar como órgão regulador e fiscalizador do setor, assumindo as funções do Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE), e a Eletrobras dá início ao Projeto de Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro (RE-SEB).11

Com o objetivo de realizar os Estudos de Complementação da Viabilidade do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte, em 2000 é celebrado Acordo de Cooperação Técnica entre a Eletrobrás e Eletronorte. No mesmo ano, o Plano Plurianual de 2000-2003 - instrumento de planejamento de médio prazo das ações do Governo Brasileiro apresentado ao Congresso -, nominado Avança Brasil, contempla Belo Monte não apenas como uma obra estratégica para elevar a oferta de energia do país, mas também como um projeto estruturante do Eixo de Desenvolvimento - Madeira/Amazonas.12 Ainda em 2000, a Fundação de Amparo e Desenvolvimento de Pesquisas (Fadesp), vinculada à Universidade Federal do Pará (UFPA), é contratada para elaborar os Estudos de Impacto Ambiental (EIA) do Complexo Hidrelétrico de Belo Monte.13

Em maio de 2001, pouco antes do inicio da crise do “apagão”, que afetou o fornecimento e distribuição de energia elétrica e ocorreu entre 1 de julho de 2001 e 27 de setembro de 2002, o Ministério das Minas e Energia anuncia um plano de emergência de US$ 30 bilhões para aumentar a oferta de energia no Brasil. Inclui a construção de 15 usinas hidrelétricas, entre as quais o Complexo Hidrelétrico de Belo Monte, que seria avaliada pelo Conselho Nacional de Política Energética - órgão criado em 1997, vinculado ao Ministério de Minas e Energia, voltado à

11 FALCÃO, Alexandre. Belo Monte: uma usina de conhecimento. Rio de Janeiro: Insight, 2010. p. 36.

12 OLIVEIRA JÚNIOR, Raimundo Farias De. A Contribuição dos Indicadores de Desenvolvimento Humano na Formulação de Políticas Públicas no Contexto Urbano de Municípios Diretamente Afetados pela Hidrelétrica de Belo Monte: Altamira e Vitória do Xingu. Belém, 2013. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente Urbano) - Universidade da Amazônia – UNAMA. Disponível em: < http://www.unama.br/novoportal/ensino/mestrado/programas/desenvolvimento/attachments/article/132/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20Raimundo%20Farias.pdf >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 55.

13 OLIVEIRA JÚNIOR, Raimundo Farias De. A Contribuição dos Indicadores de Desenvolvimento Humano na Formulação de Políticas Públicas no Contexto Urbano de Municípios Diretamente Afetados pela Hidrelétrica de Belo Monte: Altamira e Vitória do Xingu. Belém, 2013. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente Urbano) - Universidade da Amazônia – UNAMA. Disponível em: < http://www.unama.br/novoportal/ensino/mestrado/programas/desenvolvimento/attachments/article/132/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20Raimundo%20Farias.pdf >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 55.

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formulação de políticas e diretrizes de energia - em junho do mesmo ano.14 Em junho, é editada a Medida Provisória 2.152-2, conhecida como MP do Apagão, que, dentre outras medidas, determina que o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) estabeleça licenciamento simplificado de empreendimentos do setor elétrico de “baixo impacto ambiental”. Estabelece também o Relatório Ambiental Simplificado, aplicável às hipóteses de obras em que não se exigirá o Estudo de Impacto Ambiental.15 Em setembro do mesmo ano, Belo Monte é reconhecida por resolução do Conselho Nacional de Política Energética como de interesse estratégico no planejamento de expansão de hidreletricidade até 2010.16 Em janeiro de 2002, a Eletrobras aprova a contratação de uma consultoria para definir a modelagem de venda do projeto de Belo Monte.17 Em março, a Resolução nº 1 do Conselho Nacional de Política Energética cria um Grupo de Trabalho (GT) com o objetivo de estudar e apresentar um plano de viabilização para a implantação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.18 Em abril, a Comissão de Minas e Energia realiza audiência pública sobre a construção de Belo Monte. Em junho, cópias dos Estudos sobre a Viabilidade de Implantação do Complexo Hidrelétrico Belo Monte são colocadas à disposição dos interessados na sede da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Em agosto, resolução do Conselho Nacional de Política Energética prorroga para 30 de novembro o

14 LUNA, Denise. Facões, artistas e contradições cercam Belo Monte. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 de abr. de 2010. Disponível em: < http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,facoes-artistas-e-contradicoes-cercam-belo-monte,14438e >. Acesso em: 10 jul. 2014.

15 RIOS, Verônica Sánchez da Cruz. Inovação em Políticas Públicas: um Estudo do Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu. Brasília, 2013. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/handle/10482/13287 >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 158.

16 RIOS, Verônica Sánchez da Cruz. Inovação em Políticas Públicas: um Estudo do Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu. Brasília, 2013. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/handle/10482/13287 >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 23.

17 PEREIRA, Renée; FRIEDLANDER, David; PAMPLONA, Nicola. Eletrobrás comanda leilão de Belo Monte. O Estado de São Paulo, São Paulo, 25 de abr. de 2010. Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,eletrobras-comanda-leilao-de-belo-monte,542630>. Acesso em: 10 jul. 2014.

18 VALLE, Raul Silva Telles do. Uma abordagem jurídica das idas e vindas dos projetos de hidrelétricas no Xingu. In: SEVÁ FILHO, Oswaldo A. (Org.). Tenotã-Mõ. Alertas sobre as conseqüências dos projetos hidrelétricos no Rio Xingu. São Paulo: International Rivers Network, 2005. p. 65.

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prazo para a apresentação do plano de viabilidade para a implantação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.19 Ainda em novembro, a Eletronorte e o Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB) promovem o seminário “Dinamismo Econômico e Conservação Ambiental: um Desafio para Belo Monte ...e para todos”. O objetivo é discutir textos preliminares da pesquisa Dinamismo econômico e conservação ambiental: o caso de Belo Monte, Pará, encomendada pela Eletronorte à UnB, e submeter a críticas os Planos de Desenvolvimento Sustentável da Região de Belo Monte (PDSBM) e o Plano de Inserção Regional (PIR). Nenhum representante da região, do Ministério Público ou especialista em energia está entre os expositores e debatedores do evento.20

Com a chegada do ano de 2003, e o governo de Luis Inacio Lula da Silva (2003-2010), embora quem acompanhasse o caso tivesse a sensação de que uma vitória do candidato Lula poderia sepultar o projeto Belo Monte, não foi o que aconteceu, em função de que durante os primeiros meses do novo governo, em 2003, o senador José Sarney, aliado do governo Lula, buscou convencer a cúpula federal da importância e oportunidade do projeto Belo Monte.21 O físico Luiz Pinguelli Rosa assume a presidência da Eletrobras e declara à imprensa que o projeto de construção de Belo Monte será discutido e opções de desenvolvimento econômico e social para o entorno da barragem estarão na pauta, assim como a possibilidade de reduzir a potência instalada.22 Em maio, o governo federal anun-

19 RIOS, Verônica Sánchez da Cruz. Inovação em Políticas Públicas: um Estudo do Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu. Brasília, 2013. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/handle/10482/13287 >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 159.

20 RIOS, Verônica Sánchez da Cruz. Inovação em Políticas Públicas: um Estudo do Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu. Brasília, 2013. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/handle/10482/13287 >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 159.

21 OLIVEIRA JÚNIOR, Raimundo Farias De. A Contribuição dos Indicadores de Desenvolvimento Humano na Formulação de Políticas Públicas no Contexto Urbano de Municípios Diretamente Afetados pela Hidrelétrica de Belo Monte: Altamira e Vitória do Xingu. Belém, 2013. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente Urbano) - Universidade da Amazônia – UNAMA. Disponível em: < http://www.unama.br/novoportal/ensino/mestrado/programas/desenvolvimento/attachments/article/132/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20Raimundo%20Farias.pdf >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 57.

22 LUNA, Denise. Facões, artistas e contradições cercam Belo Monte. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 de abr. de 2010. Disponível em: < http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,facoes-artistas-e-contradicoes-cercam-belo-monte,14438e >. Acesso em: 10 jul. 2014.

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cia que vai retomar os estudos de impacto ambiental para a construção da hidre-létrica de Belo Monte, no Rio Xingu, realizando ajustes ao projeto para obedecer às recomendações do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente. Em fevereiro 2004, o novo Presidente da Eletrobras, Luis Pinguelli Rosa, afirma pela imprensa que a Hidrelétrica de Belo Monte deve ser considerada um “projeto nacional” e se compromete a realizar consultas e de negociações em relação à obra.23 No ano de 2005, em julho, o Decreto Legislativo (PDC) nº 788, que autoriza a implantação da Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte (PA), é aprovado pela Câmara.24 No dia 8 de outubro 2006, no primeiro debate televisivo dos candidatos à Presidên-cia da República, Luis Inácio Lula da Silva (PT) e Geraldo Alckmin (PSDB) citam os projetos de construção das hidrelétricas de Tijuco Alto, no rio Ribeira de Iguape, na divisa entre São Paulo e Paraná, e de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará.

3. inclusão no programa de aceleração do cres-cimento (pac)

Em 28 de janeiro de 2007, no início do segundo mandato de Luís Inácio Lula da Silva (2007-2010), é lançado o Programa de Aceleração do Crescimento (mais conhecido como PAC), e Belo Monte é incluída no programa, o que, em tese, deveria ter o efeito de viabilizar e acelerar a sua construção. A justificativa para isso seria a de que o rápido crescimento socioeconômico do Brasil nos então últimos anos teria acarretado um aumento no consumo de eletricidade e, portanto, a necessidade de ampliar a oferta. Era apontado também que os níveis de consumo domiciliar médio anual de eletricidade no Brasil – 560 kWh por habitante – são baixos se comparados a 4.530 kWh nos Estados Unidos, 1.920 kWh do Reino Unido, 1.580 kWh na Espanha e cerca de 830 kWh na Rússia e na África do Sul.25

23 VIEIRA, Diego Mota. Mudança Institucional Gradual e Transformativa: Uma Construção de Stakeholders e Coalizões Políticas. Brasília, 2013. Tese (Doutorado em Administração) – Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/bits tream/10482/14711/1/2013_DiegoMotaVieira.pdf >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 60.

24 FEARNSIDE, Philip M. Dams in the Amazon: Belo Monte and Brazil’s Hydroelectric Development of the Xingu River Basin. Environmental Management, v. 38, n. 1, Jul. 2006. p. 7.

25 EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA. Projeto da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Perguntas Frequentes. Fevereiro – 2011. Disponível em: < http://www.epe.gov.br/leiloes/Documents/Leil%C3%A3o%20Belo%20Monte/Belo%20Monte%20-%20Perguntas%20Frequentes%20-%20POR.pdf >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 1.

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No ano seguinte, em 2008, Resolução nº 6 de 2008 do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) decidiu que Belo Monte seria a única usina hidrelétrica do Rio Xingu.26 Sob forte resistência, o leilão para concessão da hidrelétrica é anunciado para 2009. Em setembro de 2009 são realizadas quatro audiências públicas sobre Belo Monte, em seis dias, nas cidades de Brasil Novo, Vitória do Xingu, Altamira e Belém. Os ambientalistas alegam que o EIA completo só é disponibilizado dois dias antes da primeira audiência, sem tempo para uma análise qualificada pelas comunidades atingidas.27 O Ministério Público Federal (MPF) apresenta recomendação ao Ibama para realização de pelo menos mais treze audiências, de forma a incluir mais regiões que serão atingidas. De acordo com estudos iniciais, a usina de Belo Monte afetará direta e indiretamente 66 municípios e 11 Terras Indígenas. Em outubro, a Funai libera construção de Belo Monte, sob contestações de ambientalistas.28

Belo Monte é tema de audiência pública no Senado no dia 19 de novembro de 2009. A Comissão de Direitos Humanos de Legislação Participativa debate os termos do EIA com a presença do procurador da República em Altamira (PA), Rodrigo Timóteo.29 O secretário executivo do Ministério de Minas e Energia, Márcio Zimmerman, levanta a possibilidade de que o leilão para a concessão da hidrelétrica, previsto para 21 de dezembro, seja adiado para janeiro de 2010, tendo

26 RIOS, Verônica Sánchez da Cruz. Inovação em Políticas Públicas: um Estudo do Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu. Brasília, 2013. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/handle/10482/13287 >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 160.

27 RIOS, Verônica Sánchez da Cruz. Inovação em Políticas Públicas: um Estudo do Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu. Brasília, 2013. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/handle/10482/13287 >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 160.

28 OLIVEIRA JÚNIOR, Raimundo Farias De. A Contribuição dos Indicadores de Desenvolvimento Humano na Formulação de Políticas Públicas no Contexto Urbano de Municípios Diretamente Afetados pela Hidrelétrica de Belo Monte: Altamira e Vitória do Xingu. Belém, 2013. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente Urbano) - Universidade da Amazônia – UNAMA. Disponível em: < http://www.unama.br/novoportal/ensino/mestrado/programas/desenvolvimento/attachments/article/132/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20Raimundo%20Farias.pdf >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 57-58.

29 RIOS, Verônica Sánchez da Cruz. Inovação em Políticas Públicas: um Estudo do Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu. Brasília, 2013. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/handle/10482/13287 >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 160.

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em vista que o prazo original foi afetado pela falta da licença prévia ambiental.30 O ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, diz que a licença do Ibama sai quando todas as pendências estiverem solucionadas.

No dia 19 de novembro, ocorre audiência pública da Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado Federal, marcada por protestos indígenas, na qual apenas o diretor de Assistência e presidente substituto da Funai, Aloysio Guapindaia, comparece. Eletrobras e Ibama não enviam representantes e não justificam a ausência para a comissão. Em dezembro, a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (Índios e Minorias) do Ministério Público Federal promove Audiência Pública sobre a construção da usina, dia 1º, em Brasília, com o objetivo de obter explicações definitivas sobre a insistência do governo federal em construir o empreendimento e seus reais impactos e consequências, com a presença das autoridades envolvidas na construção da usina. Entretanto, o governo não comparece. Funai, Ibama, Ministério de Minas e Energia, Eletrobrás e Eletronorte, órgãos diretamente relacionados à obra, não mandam representantes.31 Em fevereiro de 2010, o Ministério do Meio Ambiente libera Belo Monte. A licença ambiental para construção da usina é publicada no dia 1º de fevereiro de 2010, com o leilão marcado para 20 de abril.32

Em 29 de março de 2010 é lançado o Programa de Aceleração do Cresci-mento 2 (mais conhecido como PAC 2), e Belo Monte novamente é incluída no programa.

O leilão foi realizado em 20 de abril de 2010, em meio a guerra de liminares ju-diciais, tendo sido alvo de pelo menos 8 processos nas 24 horas que antecederam

30 LUNA, Denise. Facões, artistas e contradições cercam Belo Monte. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 de abr. de 2010. Disponível em: < http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,facoes-artistas-e-contradicoes-cercam-belo-monte,14438e >. Acesso em: 10 jul. 2014.

31 RIOS, Verônica Sánchez da Cruz. Inovação em Políticas Públicas: um Estudo do Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu. Brasília, 2013. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/handle/10482/13287 >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 160.

32 LUNA, Denise. Facões, artistas e contradições cercam Belo Monte. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 de abr. de 2010. Disponível em: < http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,facoes-artistas-e-contradicoes-cercam-belo-monte,14438e >. Acesso em: 10 jul. 2014.

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o leilão.33 O leilão por Belo Monte foi disputado por dois consórcios: o Norte Energia, formado por nove empresas (Chesf, Queiroz Galvão, Gaia Energia e Participações, Galvão Engenharia, Mendes Energia, Serveng, J Malucelli Construtora, Contern Construções e Cetenco Engenharia), e o Belo Monte Energia, formado por Furnas, Eletrosul, Andrade Gutierrez, VALE, Neoenergia e Companhia Brasileira de Alumínio.34 A presença estatal mostrou-se forte na montagem dos consórcios, na medida em que as subsidiárias da Eletrobras tive-ram o comando dos grupos com quase 50% de participação, enquanto a fatia das empresas privadas não superou 12,75%,35 sendo que as empreiteiras Odebrecht e Camargo Corrêa desistiram do leilão por temerem não lucrar com a empreitada.36 O projeto leiloado, quando pronto, levará energia a 17 estados brasileiros e até 60 milhões de pessoas.37

4. mobilização contra o projeto

Ao longo dos anos, foram muitas as mobilizações contra o projeto. Ainda no ano de 1988, quando foi aprovado pelo Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE), extinto órgão regulador do setor elétrico, o Relatório Final dos Estudos de Inventário Hidrelétrico da Bacia Hidrográfica do Rio Xingu, Paulinho Paikan, líder Kaiapó, Kube-I Kaiapó e o etnobiólogo Darrel Posey, do Museu Emílio Goeldi do Pará, participam, em janeiro, na Universidade da Flórida, em

33 OLIVEIRA, Mariana. Após leilão polêmico, governo ainda enfrentará 15 ações contra Belo Monte. G1, Rio de Janeiro, 20 de abr. de 2010. Disponível em: < http://g1.globo.com/economia-e-negocios/noticia/2010/04/apos-leilao-polemico-governo-ainda-enfrentara-15-acoes-contra-belo-monte.html >. Acesso em: 8 jul. 2014.

34 MARQUES, Gerusa. Dois consórcios vão disputar a hidrelétrica Belo Monte. O Estado de São Paulo, São Paulo, 16 de abr. de 2010. Disponível em: < http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,dois-consorcios-vao-disputar-a-hidreletrica-belo-monte,14193e >. Acesso em: 10 jul. 2014.

35 ANDRADE, Renato; MARQUES, Gerusa. Justiça suspende leilão de Belo Monte. O Estado de São Paulo, São Paulo, 20 de abr. de 2010. Disponível em: < http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,justica-suspende-leilao-de-belo-monte,540497 >. Acesso em: 10 jul. 2014.

36 BRITO, Agnaldo. Belo Monte testa projeto energético de Lula. Folha de São Paulo, São Paulo, 18 de abr. de 2010. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi1804201002.htm >. Acesso em: 8 jul. 2014.

37 LEITE, Marcelo. Belo Monte deve atrasar geração de energia em um ano e culpa governo. Folha de São Paulo, São Paulo, 14 de jun. de 2010. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/06/1470222-geracao-de-energia-em-belo-monte-deve-atrasar-pelo-menos-um-ano.shtml >. Acesso em: 14 jul. 2014.

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Miami (EUA), de um simpósio sobre manejo adequado de florestas tropicais. Ali, criticam o fato de que o Banco Mundial (BIRD) financiaria um projeto de hidre-létricas no Xingu que, afirmam, inundaria sete milhões de hectares e desalojaria 13 grupos indígenas. Foram convidados a repetir o relato em Washington.38 Em março do mesmo ano, pelas declarações em Washington, Paiakan e Kube-I são processados e enquadrados na Lei dos Estrangeiros. Quando voltam ao Brasil, recebem o apoio do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), uma das organizações que originou o Instituto Socioambiental (ISA), que faz campanha mobilizando a opinião pública contra o ato. Na data de 16/02/1989, o Tribunal Federal de Recursos decidiria pela concessão de habeas corpus aos dois e também pelo trancamento da ação penal. Em novembro, lideranças Kaiapó se reúnem na aldeia Gorotire para discutir as barragens projetadas para o Rio Xingu, ocasião em que decidem convidar autoridades brasileiras para um encontro com os povos indígenas que seriam afetados pelas usinas. A convite de Paiakan, uma equipe do Cedi participa da reunião na aldeia Gorotire, assessorando os Kaiapó na formalização, documentação e encaminhamento do convite às autoridades.39

No ano de 1989 foi realizado o 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em fevereiro, em Altamira (PA). Patrocinado pelos Kaiapó, conta com a participação da equipe do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi) desde o início dos preparativos até a implantação, realização e avaliação do encontro. Seu objetivo é protestar contra as decisões tomadas na Amazônia e contra a construção do Complexo Hidrelétrico do Xingu. O encontro acaba ganhando notoriedade, com a presença da mídia nacional e estrangeira, de movimentos ambientalistas e sociais. Reúne cerca de três mil pessoas. Entre elas: 650 índios de diversas partes do país e de fora. Durante a exposição de Muniz Lopes sobre a construção da usina Kararaô, a índia Tuíra, prima de Paiakan, levanta-se da plateia e encosta a lâmina de seu facão no rosto do diretor da estatal num gesto de advertência. A cena é reproduzida em jornais de diversos países e torna-se histórica. Na ocasião,

38 RIOS, Verônica Sánchez da Cruz. Inovação em Políticas Públicas: um Estudo do Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu. Brasília, 2013. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/handle/10482/13287 >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 158.

39 OLIVEIRA, Anna Cláudia Lins (Org.). Direitos e Democracia. Lutas criminalizadas no Pará. A criminalização na história e na atualidade. Caderno I. Belém: Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, 2013. p. 44

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Muniz Lopes anuncia que, por significar uma agressão cultural aos índios, a usina Kararaô - nome que significa grito de guerra em Kaiapó - receberia um outro nome e não seriam mais adotados nomes indígenas em usinas hidrelétricas.40 O evento é encerrado com o lançamento da Campanha Nacional em Defesa dos Povos e da Floresta Amazônica, exigindo a revisão dos projetos de desenvolvimento da região, a Declaração Indígena de Altamira e uma mensagem de saudação do cantor Milton Nascimento.41

Em agosto 2001, após o Ministério das Minas e Energia anunciar um plano de emergência de US$ 30 bilhões para aumentar a oferta de energia no Brasil, com a construção de 15 usinas hidrelétricas, entre as quais o Complexo Hidrelétrico de Belo Monte, e a edição da Medida Provisória 2.152-2, conhecida como MP do Apagão, como reação, o Movimento pelo Desenvolvimento da Transamazônica e Xingu (MDTX), que reúne 113 organizações sociais, elabora um documento intitulado “SOS Xingu: um chamamento ao bom senso sobre o represamento de rios na Amazônia”.42 Em março de 2002, a Federação dos Trabalhadores da Agricultura Transamazônica promove debate em Altamira (PA) com a participação de representantes indígenas, igreja, políticos locais, ONGs, confederações e federações de agricultores como a Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Ministério Público, dentre outros.43

Em março, as entidades Fundação Viver, Produzir e Preservar (FVPP), o Movimento pelo Desenvolvimento da Transamazônica e Xingu (MDTX),

40 LUNA, Denise. Facões, artistas e contradições cercam Belo Monte. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 de abr. de 2010. Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,facoes-artistas-e-contradicoes-cercam-belo-monte,14438e>. Acesso em: 10 jul. 2014.

41 RIOS, Verônica Sánchez da Cruz. Inovação em Políticas Públicas: um Estudo do Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu. Brasília, 2013. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/handle/10482/13287>. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 158.

42 RIOS, Verônica Sánchez da Cruz. Inovação em Políticas Públicas: um Estudo do Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu. Brasília, 2013. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/handle/10482/13287>. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 159.

43 RIOS, Verônica Sánchez da Cruz. Inovação em Políticas Públicas: um Estudo do Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu. Brasília, 2013. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/handle/10482/13287>. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 159.

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o Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), a Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetagri/Regional) e o Conselho Indigenista Missionário - Cimi Norte II enviam carta ao então presidente Fernando Henrique Cardoso pedindo a suspensão de todas as obras de grande impacto na Amazônia, para que houvesse uma discussão e a construção de um consenso com a sociedade local.44 Em maio, ocorre o Encontro das Comunidades da Volta Grande do Rio Xingu. Participantes produzem carta com diversos pedidos às autoridades que estudam e discutem sobre o setor elétrico brasileiro. Realizado o 1º Encontro dos Povos Indígenas da Região da Volta Grande do Rio Xingu, em maio, que reúne cerca de 250 representantes da sociedade civil e povos indígenas, para reafirmar posição contrária à construção de Belo Monte.45 Em setembro, MDTX, Fundação Viver, Produzir e Preservar, Prelazia do Xingu, Comissão Pastoral da Terra e Arikafú - Associação dos Povos Xipaya da Aldeia Tukamã enviam carta aos membros do Conselho Nacional de Política Energética exigindo que o órgão tome as providências cabíveis, começando por ouvir todas as partes envolvidas nesse projeto, em especial, os povos indígenas, cujas associações alegam que nunca tiveram suas proposições consideradas pelo governo.46

De 13 a 15 de julho de 2005, em Altamira, um seminário com a presença de vários ambientalistas discute com a comunidade todas as implicações da construção da usina.47

Em maio de 2008, o encontro Xingu Vivo para Sempre reúne representantes de populações indígenas e ribeirinhas, movimentos sociais, organizações da

44 RIOS, Verônica Sánchez da Cruz. Inovação em Políticas Públicas: um Estudo do Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu. Brasília, 2013. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/handle/10482/13287>. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 159.

45 RIOS, Verônica Sánchez da Cruz. Inovação em Políticas Públicas: um Estudo do Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu. Brasília, 2013. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/handle/10482/13287>. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 159.

46 RIOS, Verônica Sánchez da Cruz. Inovação em Políticas Públicas: um Estudo do Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu. Brasília, 2013. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/handle/10482/13287>. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 159.

47 SEVÁ FILHO, Oswaldo A. Dados de vazão do rio Xingu durante o período 1931-1999; estimativas da potência, sob a hipótese de aproveitamento hidrelétrico integral. In: SEVÁ FILHO, Oswaldo A. (Org.). Tenotã-Mõ. Alertas sobre as conseqüências dos projetos hidrelétricos no Rio Xingu. São Paulo: International Rivers Network, 2005. p. 145-149.

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sociedade civil, pesquisadores e especialistas, para debater impactos de projetos de hidrelétricas na Bacia do Rio Xingu: a construção prevista da usina de Belo Monte, que então já fazia parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), e de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs). Durante o encontro de 2008, índios entram em confronto com responsável pelos estudos ambientais da hidrelétrica de Belo Monte e, no meio da confusão, o funcionário da Eletrobras e coordenador do estudo de inventário da usina, Paulo Fernando Rezende, fica ferido, com um corte no braço. Após o evento, o Movimento divulga a Carta Xingu Vivo para Sempre, documento final que avalia as ameaças ao Rio Xingu, apresenta à sociedade brasileira um projeto de desenvolvimento para a região e exige das autoridades públicas sua implementação.48

Em maio de 2009, o Xingu Vivo para Sempre exige diálogo sobre a Avaliação Ambiental Integrada (AAI) da Bacia do Rio Xingu em carta divulgada após evento ocorrido em Altamira, no Pará. O encontro, que não tem a participação de lideranças indígenas e ribeirinhas, as principais supostas afetadas por obras como a construção de Belo Monte e Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), deveria apresentar resultados preliminares da Avaliação Ambiental Integrada (AAI) da Bacia do Rio Xingu e gerar diretrizes para compor a versão final dos estudos. A carta apresentada pelo Movimento exige análise e consentimento dos povos que supostamente seriam atingidos pelos empreendimentos.49

Em julho do mesmo ano, em reunião com representantes de movimentos sociais do Xingu, procuradores da República, o bispo da Prelazia do Xingu e presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Dom Erwin Kraütler, e cientistas, o Presidente da República garante que Belo Monte só sai após ampla discussão e se for viável.50 Em outubro, ONGs e redes da sociedade civil divulgam

48 LUNA, Denise. Facões, artistas e contradições cercam Belo Monte. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 de abr. de 2010. Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,facoes-artistas-e-contradicoes-cercam-belo-monte,14438e>. Acesso em: 10 jul. 2014.

49 VIEIRA, Diego Mota. Mudança Institucional Gradual e Transformativa: Uma Construção de Stakeholders e Coalizões Políticas. Brasília, 2013. Tese (Doutorado em Administração) – Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/14711/1/2013_DiegoMotaVieira.pdf>. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 62.

50 RIOS, Verônica Sánchez da Cruz. Inovação em Políticas Públicas: um Estudo do Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu. Brasília, 2013. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/handle/10482/13287>. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 160.

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moção contra Belo Monte durante o seminário “Clima e Floresta em debate: REDD e mecanismos de mercado como salvação para a Amazônia?”, realizado em Belém (PA). A “Moção de solidariedade aos povos originários e às populações tradicionais do Xingu, contra a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte” afirma que a aliança entre os povos da floresta será capaz de barrar aquilo que chamam de ofensiva do grande capital sobre a Amazônia e que Belo Monte não passará. Um painel formado por 40 especialistas lança documento com análises do projeto hidrelétrico de Belo Monte. Os pareceres são entregues ao Ibama para servir como insumo da análise sobre a viabilidade ambiental do projeto, e ao MPF, para verificar se há violações da lei, dadas as alegadas graves consequências da obra. Ainda, seminário realizado em 26 de outubro, em Altamira, apresenta e debate, com a sociedade, os resultados da análise do painel de especialistas sobre o Estudo de Impacto Ambiental da hidrelétrica de Belo Monte.51 No mesmo mês, representantes de povos indígenas, ribeirinhos, extrativistas, ONGs, agricultores e movimentos sociais analisam os impactos da construção de Belo Monte e produzem parecer próprio sobre o projeto, durante o II Encontro dos Povos da Volta Grande do Rio Xingu, na Vila da Ressaca. Em carta, os participantes manifestam indignação porque se sentem excluídos do processo e denunciam a falta de esclarecimentos às dúvidas que apresentaram às empresas que elaboraram o EIA e também nas audiências públicas realizadas em setembro.52

No dia 2 de dezembro, indígenas e ribeirinhos fazem ato na rampa do Senado contra hidrelétrica de Belo Monte, após audiência pública da Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado Federal. Durante o evento, a índia kayapó Tuíra fica de pé em frente à mesa da Comissão de Direitos Humanos e aponta o dedo para o representante da Funai, dizendo que o governo os abandonou e agora ele mesmo os ameaça.53

51 VIEIRA, Diego Mota. Mudança Institucional Gradual e Transformativa: Uma Construção de Stakeholders e Coalizões Políticas. Brasília, 2013. Tese (Doutorado em Administração) – Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/14711/1/2013_DiegoMotaVieira.pdf>. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 62.

52 VIEIRA, Diego Mota. Mudança Institucional Gradual e Transformativa: Uma Construção de Stakeholders e Coalizões Políticas. Brasília, 2013. Tese (Doutorado em Administração) – Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/14711/1/2013_DiegoMotaVieira.pdf>. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 63.

53 JORNAL DO SENADO. Índios e ribeirinhos protestam contra Belo Monte. Brasília, 3 de dez. de 2009. Disponível em: <http://www12.senado.gov.br/jornal/edicoes/2009/12/03/indios-e-ribeirinhos-protestam-contra-belo-monte>. Acesso em: 10 jul. 2014.

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Ainda em dezembro, os indígenas participam de reuniões no Tribunal Regio-nal Federal da 1ª Região (TRF1) e no Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Ibama). Na mesma semana, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) envia ao relator da Organização das Nações Unidas (ONU), James Anaya, uma carta denunciando a violação do direito de consulta livre, prévia e informada, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e na Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas. O documento narra um processo unilateral e atropelado de licenciamento e violação do direito de consulta prévia, alegando descaso do governo brasileiro e falta de diálogo com os povos indígenas sobre Belo Monte. Coiab e ISA solicitam que o relator recomende ao Estado brasileiro que realize as devidas consultas antes do leilão da obra.54 A CNBB defende, em 24 de fevereiro de 2010, a paralisação do processo que autoriza a construção da hidrelétrica de Belo Monte.55

5. argumentos argumentos sociais, ambientais, polí-ticos e econômicos a favor do projeto

Ainda em abril de 2002, o então presidente Fernando Henrique Cardoso afirma que a “birra” de ambientalistas atrapalha o país, referindo-se à oposição e construção de usinas hidrelétricas. “Além do respeito ao meio ambiente, é preciso que haja também respeito às necessidades do povo brasileiro, para que a ‘birra’ entre os diferentes setores não prejudique as obras, porque elas representarão mais emprego.” Ele menciona que o projeto de Belo Monte foi refeito diversas vezes e que tem um “grau de racionalidade” bastante razoável.56

54 VIEIRA, Diego Mota. Mudança Institucional Gradual e Transformativa: Uma Construção de Stakeholders e Coalizões Políticas. Brasília, 2013. Tese (Doutorado em Administração) – Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/14711/1/2013_DiegoMotaVieira.pdf>. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 62.

55 VALOR ECONÔMICO. CNBB é contra início de obras em Belo Monte. São Paulo, 26 de fev. de 2010. Disponível em: <http://www.valor.com.br/arquivo/810735/cnbb-e-contra-inicio-de-obras-em-belo-monte>. Acesso em: 10 jul. 2014.

56 MONTEIRO, Tânia. FHC critica ambientalistas e juízes. O Estado de São Paulo, São Paulo, 24 de abr. de 2002. Disponível em: <http://infoener.iee.usp.br/infoener/hemeroteca/imagens/60882.htm>. Acesso em: 10 jul. 2014.

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Em audiência pública realizada em 22 de julho de 2009, o então diretor de Engenharia da Eletrobrás, Valter Cardeal, teria afirmado que “Temos a energia limpa, renovável e barata que os outros países não têm.” Além disso, teria afirmado também que “Quinze ou vinte mil pessoas não podem impedir o progresso de 185 milhões de brasileiros”. Também é atribuída a ele a declaração de que “...foi Deus colocou as quedas nos rios da Amazônia.”57 Em setembro de 2009, o ministro Edson Lobão, das Minas e Energia, afirma que: “Às vezes tenho a sensação de que existem forças demoníacas puxando para baixo o país e não deixando que avance, não deixando que tenhamos a segurança energética de que tanto precisamos”, disse, para completar em seguida que “nós vamos vencer, ou ficaremos derrotados no meio do caminho e partiremos para as usinas térmicas, que poluem mais”. Lobão atribuiu ao Ministério Publico (MP) e às Organizações Não-Governamentais o papel de forcas ocultas que impedem o desenvolvimento do país.58

Falava-se, em 2011, que para alcançar as metas de crescimento anual de 5% do PIB nos 10 anos seguintes, bem como de erradicação da pobreza e melhor distribuição de renda, o Brasil precisaria instalar, a cada ano, cerca de 5.000 MW de capacidade adicional.59 Em informativo elaborado pela Empresa de Pesquisa Energética, são rebatidas as principais críticas ao projeto. Dentre várias afirmações, é afirmado que o projeto prevê medidas para a redução nas emissões de gases de efeito estufa, que nenhuma das 10 terras indígenas localizadas na área de influência do projeto será alagada, que a Fundação Nacional do Índio (Funai) avaliou de forma independente o impacto deste projeto em novembro de 2009, em seu “Parecer Técnico nº 21 – Estudo do Componente Indígena do Impacto Ambiental”, concluindo que o empreendimento seria viável, desde que

57 AMIGOS DA TERRA BRASIL. Em  reunião histórica com movimentos sociais e povos indígenas, Lula se compromete que Belo Monte não virá „goela abaixo“. Disponível em: <http://www.natbrasil.org.br/Docs/boletimenergianova/belomonte.html>. Acesso em: 10 jul. 2014.

58 LIMA, Kelly. Lobão vê ‘forças demoníacas’ que impedem hidrelétricas. O Estado de São Paulo, São Paulo, 29 de set. de 2009. Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,lobao-ve-forcas-demoniacas-que-impedem-hidreletricas,442767>. Acesso em: 10 jul. 2014.

59 EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA. Projeto da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Perguntas Frequentes. Fevereiro – 2011. Disponível em: <http://www.epe.gov.br/leiloes/Documents/Leil%C3%A3o%20Belo%20Monte/Belo%20Monte%20-%20Perguntas%20Frequentes%20-%20POR.pdf>. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 1.

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atendidas as condições de vazão mínima, além de outros critérios.60 Segundo a Empresa de Pesquisa Energética, o Governo brasileiro adotou uma abordagem no planejamento do projeto envolvendo as comunidades que seriam afetadas. A Fundação Nacional do Índio (Funai) teria realizado mais de 30 reuniões entre 2007 e 2010, com a participação de cerca de 1.700 indígenas em aldeias locais, para discutir questões ligadas ao projeto da barragem de Belo Monte. A Empresa de Pesquisa Energética afirma que muitos líderes indígenas também estiveram ativamente envolvidos em reuniões públicas realizadas durante a elaboração do Es-tudo Impacto Ambiental (EIA). Além disso, cerca de 200 indígenas participaram de audiências públicas promovidas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), especialmente em Altamira.61 De acordo com a Empresa de Pesquisa Energética, a usina de Belo Monte está sendo construída em uma área atualmente ocupada por aproximadamente 4.300 famílias em zonas urbanas e 800 famílias em zonas rurais. A empresa informa que todos os residentes afetados pela construção da barragem poderão optar por indenização de terrenos e benfeitorias em dinheiro, relocação monitorada, ou reassentamento pelo empreendedor em zonas urbanas ou rurais. A Empresa de Pesquisa Energética afirma que o governo brasileiro vem mantendo um diálogo ativo com a comunidade local desde o início do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) em 2007, criando escritórios locais em Altamira e Vitória do Xingu, para manter ligação e comunicação com a população local.62

Rebatendo a principal crítica, a da falta de diálogo com as comunidades locais, a Empresa de Pesquisa Energética afirma que entre 2007 e 2010, os órgãos do governo envolvidos no projeto seguintes atividades, dentre outras: (a) 12 reuniões públicas, (b) 10 oficinas com comunidades, (c) 15 fóruns técnicos, quatro deles

60 EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA. Projeto da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Perguntas Frequentes. Fevereiro – 2011. Disponível em: <http://www.epe.gov.br/leiloes/Documents/Leil%C3%A3o%20Belo%20Monte/Belo%20Monte%20-%20Perguntas%20Frequentes%20-%20POR.pdf>. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 3-5.

61 EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA. Projeto da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Perguntas Frequentes. Fevereiro – 2011. Disponível em: <http://www.epe.gov.br/leiloes/Documents/Leil%C3%A3o%20Belo%20Monte/Belo%20Monte%20-%20Perguntas%20Frequentes%20-%20POR.pdf>. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 5.

62 EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA. Projeto da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Perguntas Frequentes. Fevereiro – 2011. Disponível em: <http://www.epe.gov.br/leiloes/Documents/Leil%C3%A3o%20Belo%20Monte/Belo%20Monte%20-%20Perguntas%20Frequentes%20-%20POR.pdf>. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 5-6.

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em Belém, (d) reuniões com gestores públicos na região do Xingu, (e) 30 reuniões em aldeias indígenas, com a participação de aproximadamente 1.700 indígenas, (f ) visitas dos agentes de comunicação social do projeto a 5.238 famílias, (g) 61 reuniões com comunidades, com a presença de 2.100 pessoas e (h) 10 palestras em escolas de ensino fundamental e médio para aproximadamente 530 alunos.63 Além disso, o Ibama promoveu: (a) quatro audiências públicas nos municípios de Brasil Novo, Vitória do Xingu, Altamira e Belém. Seis mil pessoas participaram da audiência em Altamira e (b) uma reunião em novembro de 2010 para colher informações que serviriam de subsídio para a emissão da licença de instalação. Participaram dessa reunião, que contou com mais de 100 pessoas, o empreendedor, o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública, órgãos do poder público local, várias ONG nacionais e internacionais, diversas entidades de classe e representantes de grupos indígenas.64 Além de melhorias nos municípios envolvidos, a Empresa de Pesquisa Energética afirma que o governo propôs a construção de casas de alvenaria em áreas urbanizadas para cerca de 4.500 famílias que hoje vivem em palafitas na cidade de Altamira e que são deslocadas pela prefeitura para abrigos provisórios nos períodos de cheia do rio Xingu.65

Da parte dos defensores do projeto de Belo Monte, a resistência ao projeto é identificada, principalmente, a um verdismo que é defendido por Marina Silva, ideologia chamada por cientistas políticos do porte de Wanderlei Guilherme dos Santos de “obscurantismo marineiro”, que afirma que ela nutre “subliminar desgosto com o desenvolvimento econômico”, mantendo uma “agenda retrógrada de suas convicções sociais e de costumes”66

63 EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA. Projeto da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Perguntas Frequentes. Fevereiro – 2011. Disponível em: <http://www.epe.gov.br/leiloes/Documents/Leil%C3%A3o%20Belo%20Monte/Belo%20Monte%20-%20Perguntas%20Frequentes%20-%20POR.pdf>. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 6.

64 EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA. Projeto da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Perguntas Frequentes. Fevereiro – 2011. Disponível em: <http://www.epe.gov.br/leiloes/Documents/Leil%C3%A3o%20Belo%20Monte/Belo%20Monte%20-%20Perguntas%20Frequentes%20-%20POR.pdf>. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 6-7.

65 EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA. Projeto da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Perguntas Frequentes. Fevereiro – 2011. Disponível em: <http://www.epe.gov.br/leiloes/Documents/Leil%C3%A3o%20Belo%20Monte/Belo%20Monte%20-%20Perguntas%20Frequentes%20-%20POR.pdf>. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 7.

66 SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Marina Silva, jogadora de pôquer. Carta Maior, 11 de maio de 2014. Disponível em: < http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Marina-Silva-jogadora-de-poquer/4/30894 >. Acesso em: 10 jul. 2014.

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6. argumentos argumentos sociais, ambientais, polí-ticos e econômicos contra o projeto

Os principais argumentos contra o projeto são que ele reduzirá a vazão do Rio na região de Volta Grande Xingú, com violações do direito à água, à alimentação e direito à saúde, que inundará região urbana de Altamira e sua população ribeirinha, com o desalojamento de cerca de 19 mil pessoas, a pressão populacional e risco de conflito, causando migração populacional, de uma estimativa de cerca de 95 mil moradores. Fala-se que os problemas principais dos estudos oficiais são o subdimensionamento da população afetada e ausência de estudo sobre índios isolados. Ademais, afirma-se também que o projeto vai causar a morte de parte considerável da biodiversidade na região da Volta Grande do Xingu.67

Afirma-se que, por trás do projeto, estão conceitos como modernização, desenvolvimento e busca de Grandeza, uma marca do desenvolvimentismo que, desde o início do século XX até o presente, teria por fundamento uma aliança entre os grandes proprietários de terra e as diversas encarnações dos industria-listas brasileiros.68

7. disputas judiciais

No ano de 2010, foi informado pelo Ministério Público Federal no Pará que, naquela altura, já haviam 13 ações de sua autoria - entre elas ações civis públicas, agravos e apelações - em tramitação na Justiça Federal do estado e no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília. Fora essas ações, haviam ainda dois outros processos: um ajuizado pelas entidades Amigos da Terra - Amazônia Brasileira e Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé e outro do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o que totalizaria 15 ações contra Belo Monte no Judiciário brasileiro.69

67 MAYBURY-LEWIS, Biorn; RANINCHESKI, Sonia (Orgs.). Desafios aos Direitos Humanos no Brasil Contemporâneo. Brasília: Verbena, 2011

68 MAYBURY-LEWIS, Biorn; RANINCHESKI, Sonia. Desafios aos Direitos Humanos no Brasil Contemporâneo In: MAYBURY-LEWIS, Biorn; RANINCHESKI, Sonia (Orgs.). Desafios aos Direitos Humanos no Brasil Contemporâneo. Brasília: Verbena, 2011. p. 10.

69 OLIVEIRA, Mariana. Após leilão polêmico, governo ainda enfrentará 15 ações contra

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Nessas 15 ações, estariam em questionamento diversos pontos, como a concessão da licença ambiental por parte do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama), a falta de audiências públicas específicas para os índios, os estudos de impacto ambiental feito por construtoras. Entre os órgãos do governo mais questionados estão o Ibama, a Eletrobras e a Aneel.70 Posteriormente, o número de ações aumentou, alcançado o número de 15 ações propostas pelo Ministério Público Federal no Pará.71

Ainda em maio de 2001, o Ministério Público move ação civil pública para suspender os Estudos de Impacto Ambiental (EIA) de Belo Monte, cujo pedido é atendido por uma liminar da 4.ª Vara Federal de Belém, porque não houve licitação para a Fadesp, acusada por ambientalistas, entre outros, de elaborar o EIA/RIMA das Hidrovia Araguaia-Tocantins e Teles-Tapajós com uma meto-dologia questionável sob o ponto de vista científico e técnico; no entendimento do MP a obra deveria ser licenciada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e não pelo governo do Pará, já que o Xingu é um rio da União; e os EIA deveriam examinar toda a Bacia do Xingu e não apenas uma parte dela.72

Em setembro do mesmo ano, a Justiça Federal concede liminar à ação civil pública que pede a suspensão dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) de Belo Monte.73 Em novembro de 2002 o presidente do Supremo Tribunal Federal

Belo Monte. G1, Rio de Janeiro, 20 de abr. de 2010. Disponível em: < http://g1.globo.com/economia-e-negocios/noticia/2010/04/apos-leilao-polemico-governo-ainda-enfrentara-15-acoes-contra-belo-monte.html >. Acesso em: 8 jul. 2014.

70 OLIVEIRA, Mariana. Após leilão polêmico, governo ainda enfrentará 15 ações contra Belo Monte. G1, Rio de Janeiro, 20 de abr. de 2010. Disponível em: < http://g1.globo.com/economia-e-negocios/noticia/2010/04/apos-leilao-polemico-governo-ainda-enfrentara-15-acoes-contra-belo-monte.html >. Acesso em: 8 jul. 2014.

71 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Processos judiciais do caso Belo Monte são publicados na íntegra pelo MPF/PA. Pará, 18 de mar. de 2013. Disponível em: < http://www.dhescbrasil.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=800:mpf-publica-conteudo-processos-caso-belo-monte&catid=69:antiga-rok-stories >. Acesso em: 10 jul. 2014.

72 RIOS, Verônica Sánchez da Cruz. Inovação em Políticas Públicas: um Estudo do Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu. Brasília, 2013. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/handle/10482/13287 >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 158.

73 LUNA, Denise. Facões, artistas e contradições cercam Belo Monte. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 de abr. de 2010. Disponível em: < http://economia.estadao.com.br/noticias/

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(STF), ministro Marco Aurélio Mello, nega pedido da União e mantém suspen-sos os Estudos de Impacto Ambiental de Belo Monte. Segundo o ministro, o artigo 231 da Constituição Federal prevê que é nulo e extinto “todo e qualquer ato” que tenha por objeto a ocupação, o domínio e a posse de terras indígenas, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. Embora a União tenha argumentado que a Constituição Federal não cita o EIA, o presidente do STF considera que a única ressalva do artigo 231 é a existência de “relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar” e, tal lei, ainda não existe. Também contou o fato de a Fadesp ter sido contratada sem licitação, o que poderia pesar sobre o patrimônio público. A defesa da União de que Belo Monte está voltada ao desenvolvimento do potencial energético nacional foi rebatida pelo presidente do STF pela necessidade de se “proceder com segurança, visando-se a elucidar os parâmetros que devem nortear o almejado progresso” e princípios constitucionais respeitados.74 Ainda em novembro, advogados da Eletronorte analisam com a Advocacia Geral da União (AGU) a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

Em 2005, o governo federal pediu o licenciamento do projeto junto ao Iba-ma, e o deputado federal Fernando Ferro, do PT, apresentou proposta de decreto legislativo que autorizava a obra. A proposta previa a oitiva das comunidades afetadas, mas O Ministério Público alega que tal oitiva não ocorreu, que a proposta foi aprovada na Câmara e no Senado rapidamente, e essa alegada falta da oitiva levou ao ajuizamento de outra ação.75

No dia 21 de julho de 2005, Instituto Socioambiental (ISA), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Greenpeace e Centro

negocios,facoes-artistas-e-contradicoes-cercam-belo-monte,14438e >. Acesso em: 10 jul. 2014.

74 VIEIRA, Diego Mota. Mudança Institucional Gradual e Transformativa: Uma Construção de Stakeholders e Coalizões Políticas. Brasília, 2013. Tese (Doutorado em Administração) – Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/14711/1/2013_DiegoMotaVieira.pdf >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 60.

75 PONTES JUNIOR, Felício de Araújo. Belo Monte: uma década de violência contra a lei, o meio ambiente e o ser humano. In: MERLINO, Tatiana; MENDONÇA, Maria Luisa (Org.). Direitos Humanos no Brasil 2011. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Rede social de Justiça e Direitos Humanos, 2011. p. 104.

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dos Direitos das Populações da região do Carajás entram com representação na Procuradoria Geral da República contra a implantação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte no Pará, aprovada pelo Congresso Nacional. A representação ao procurador-geral da República se baseia no fato de que o Congresso Nacional teria autorizado os estudos sem ouvir as populações que serão afetadas. No dia 26 de agosto, baseando-se na representação encaminhada pelas organizações da sociedade civil, o procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza ingressa com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no STF, contra o decreto que autoriza a implantação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e a realização de Estudos de Impacto Ambiental (EIA) sobre a obra, pedindo o deferimento de medida liminar para suspender os efeitos do decreto.76

Em 10 de outubro, o Instituto Socioambiental, o Greenpeace, o Fórum Carajás e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) ingressam com um pedido de Amicus Curiae junto ao Supremo Tribunal Federal para que possam participar da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3573. Tais entidades alegam a existência de problemas com a usina e com o processo que pretende autorizar sua implantação. Na petição apresentada, as organizações trazem ao STF aquilo que julgam ser uma série de informações relevantes sobre o projeto e suas consequências socioambientais, para que o tribunal possa contextualizar a questão.

O Instituto Socioambiental também apresentou representação ao Procurador Geral da República denunciando irregularidades no Decreto Legislativo 788/05, que autoriza a implantação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte no Rio Xingu, na região de Altamira (PA).

Em dezembro, por sete votos a quatro, o Supremo Tribunal Federal (STF) jul-ga inapropriado o meio utilizado, isto é, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), para questionar a constitucionalidade do Decreto Legislativo nº 788/05, que autorizou a implantação de Belo Monte, na região de Altamira, no Pará. A

76 RIOS, Verônica Sánchez da Cruz. Inovação em Políticas Públicas: um Estudo do Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu. Brasília, 2013. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/handle/10482/13287 >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 159.

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decisão contraria o relator do processo, ministro Carlos Britto, que havia julgado pela aceitação da ação.77

Em março de 2006, o processo de licenciamento ambiental da usina hidre-létrica de Belo Monte é suspenso por liminar concedida no dia 28 de março. A decisão impede que os estudos sobre os impactos ambientais da hidrelétrica prossigam antes que os povos indígenas que seriam afetados pelo empreendi-mento sejam ouvidos pelo Congresso Nacional.78 Outra ação foi encaminhada à Justiça em 2007, em função da alegação de que os estudos de impacto ambiental teriam começados a ser feitos sem o termo de referência, conjunto de diretrizes que o Ibama estabelece sobre o que deve ser abordado nesse tipo de levantamento.79 Em março de 2007, um ano após a Justiça Federal de Altamira paralisar liminarmente o licenciamento ambiental da usina, na decisão de mérito ela julgou improcedente o pedido do Ministério Público Federal (MPF) de anular o licenciamento ambiental feito pelo Ibama.80 No dia 16, o Supremo Tribunal Federal já havia autorizado a continuidade do licenciamento ambiental ao derrubar liminar que havia sido concedida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Com a sentença, a decisão do tribunal superior perde eficácia, já que se referia a uma decisão preliminar.

Em 2008, duas novas ações. Uma em função de um acordo de cooperação técnica, uma parceria, para a elaboração dos estudos realizada entre a Eletrobras e a Camargo Corrêa, Norberto Odebrecht e Andrade Gutierrez, sendo que o MP

77 VIEIRA, Diego Mota. Mudança Institucional Gradual e Transformativa: Uma Construção de Stakeholders e Coalizões Políticas. Brasília, 2013. Tese (Doutorado em Administração) – Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/14711/1/2013_DiegoMotaVieira.pdf >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 61.

78 LUNA, Denise. Facões, artistas e contradições cercam Belo Monte. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 de abr. de 2010. Disponível em: < http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,facoes-artistas-e-contradicoes-cercam-belo-monte,14438e >. Acesso em: 10 jul. 2014.

79 PONTES JUNIOR, Felício de Araújo. Belo Monte: uma década de violência contra a lei, o meio ambiente e o ser humano. In: MERLINO, Tatiana; MENDONÇA, Maria Luisa (Org.). Direitos Humanos no Brasil 2011. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Rede social de Justiça e Direitos Humanos, 2011. p. 104.

80 LUNA, Denise. Facões, artistas e contradições cercam Belo Monte. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 de abr. de 2010. Disponível em: < http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,facoes-artistas-e-contradicoes-cercam-belo-monte,14438e >. Acesso em: 10 jul. 2014.

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entendeu que a chamada parceria significava contratação sem licitação. Quanto à segunda ação, o motivo foi que essas empresas teriam acesso exclusivo às informações, o que as faria sair em vantagem em relação às concorrentes.81 Ainda em 2008, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, de Brasília, suspende uma liminar da Justiça Federal de Altamira e autoriza a participação das empreiteiras Camargo Corrêa, Norberto Odebrecht e Andrade Gutierrez nos Estudos de Impacto Ambiental da hidrelétrica de Belo Monte. O MPF do Pará recorre contra o que alegava ser privilégio para empreiteiras e defende necessidade de licitação para escolher os responsáveis pelo EIA-Rima.82 Duas novas ações em 2009. A primeira do ano, denunciava que estavam incompletos o Estudo de Impacto Ambiental de Belo Monte e seu Relatório (EIA/Rima) entregues ao Ibama pelas três empreiteiras, em associação com a Eletrobras. A segunda ação, de 2009, alegava falta de abrangência das audiências públicas.83

Em novembro de 2009, o caso de Belo Monte é apresentado em audiência pública da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em Washington, capital dos Estados Unidos. O encontro trata do impacto causado pelas grandes barragens na América Latina no que se refere a direitos humanos e meio ambiente. A audiência é uma solicitação de mais de 40 organizações ambientalistas nacio-nais e internacionais, além de comunidades afetadas, que apresentam as conclu- sões do relatório “Grandes Barragens na América. É o remédio pior que a doença?”, preparado pela Associação Interamericana para a Defesa do Ambiente (AIDA), em coordenação com várias entidades.84

81 PONTES JUNIOR, Felício de Araújo. Belo Monte: uma década de violência contra a lei, o meio ambiente e o ser humano. In: MERLINO, Tatiana; MENDONÇA, Maria Luisa (Org.). Direitos Humanos no Brasil 2011. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Rede social de Justiça e Direitos Humanos, 2011. p. 104.

82 VIEIRA, Diego Mota. Mudança Institucional Gradual e Transformativa: Uma Construção de Stakeholders e Coalizões Políticas. Brasília, 2013. Tese (Doutorado em Administração) – Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/14711/1/2013_DiegoMotaVieira.pdf >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 62.

83 PONTES JUNIOR, Felício de Araújo. Belo Monte: uma década de violência contra a lei, o meio ambiente e o ser humano. In: MERLINO, Tatiana; MENDONÇA, Maria Luisa (Org.). Direitos Humanos no Brasil 2011. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Rede social de Justiça e Direitos Humanos, 2011. p. 104.

84 VIEIRA, Diego Mota. Mudança Institucional Gradual e Transformativa: Uma Construção de Stakeholders e Coalizões Políticas. Brasília, 2013. Tese (Doutorado em Administração) – Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/14711/1/2013_DiegoMotaVieira.pdf >. Acesso em 05 de jun. de 2014. p. 63.

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No dia 10 de novembro de 2009, Justiça Federal suspende licenciamento e determina novas audiências para Belo Monte, acatando pedido do Ministério Público para que as comunidades atingidas sejam, de fato, ouvidas. No dia 11, cai a liminar que suspendeu o licenciamento de Belo Monte e o Ibama volta a analisar o projeto. Sem a licença prévia do Ibama, o governo não pode realizar o leilão de concessão do projeto da hidrelétrica, previsto para dia 21 de dezembro.85

Em 2010, o Ibama concede a licença e o MPF entra com nova ação judicial contra o governo. A segunda ação judicial de 2010 está relacionada com a alegação de que o aproveitamento hídrico em terras indígenas não está regulamentado em lei.86 No dia 1º de junho de 2011, o Ibama concedeu a licença de instalação e, cinco dias depois, o MPF ajuizou ação contra essa decisão.87 Em agosto de 2011, o MPF voltou à Justiça. Voltou a pedir a paralisação das obras diante da inevitável remoção de povos indígenas, o que o MPF entende como vedado pela Constituição.88 Em setembro de 2011, nova ação judicial. O novo processo pede novamente a suspensão das obras para que sejam resolvidas alegadas arbitrarie-dades e ilegalidades que teriam sido cometidas pela Norte Energia contra agricultores da região da Transamazônica que deverão perder suas terras para dar lugar à usina.89

As ações, ao longo do tempo, não conseguiram obter o efeito que visavam, qual seja, o de paralisar as obras de Belo Monte, tendo a obra atingido 50% de

85 LUNA, Denise. Facões, artistas e contradições cercam Belo Monte. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 de abr. de 2010. Disponível em: < http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,facoes-artistas-e-contradicoes-cercam-belo-monte,14438e >. Acesso em: 10 jul. 2014.

86 PONTES JUNIOR, Felício de Araújo. Belo Monte: uma década de violência contra a lei, o meio ambiente e o ser humano. In: MERLINO, Tatiana; MENDONÇA, Maria Luisa (Org.). Direitos Humanos no Brasil 2011. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Rede social de Justiça e Direitos Humanos, 2011. p. 105.

87 PONTES JUNIOR, Felício de Araújo. Belo Monte: uma década de violência contra a lei, o meio ambiente e o ser humano. In: MERLINO, Tatiana; MENDONÇA, Maria Luisa (Org.). Direitos Humanos no Brasil 2011. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Rede social de Justiça e Direitos Humanos, 2011. p. 106.

88 PONTES JUNIOR, Felício de Araújo. Belo Monte: uma década de violência contra a lei, o meio ambiente e o ser humano. In: MERLINO, Tatiana; MENDONÇA, Maria Luisa (Org.). Direitos Humanos no Brasil 2011. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Rede social de Justiça e Direitos Humanos, 2011. p. 107.

89 PONTES JUNIOR, Felício de Araújo. Belo Monte: uma década de violência contra a lei, o meio ambiente e o ser humano. In: MERLINO, Tatiana; MENDONÇA, Maria Luisa (Org.). Direitos Humanos no Brasil 2011. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Rede social de Justiça e Direitos Humanos, 2011. p. 108.

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avanço em maio de 2014.90 O argumento de que a Hidrelétrica de Belo Monte atingiria terras indígenas já foi afastado pelo Judiciário, embora ainda sem trânsito em julgado.91

Essa forte judicialização da questão fez com que, por um lado, o principal procurador da República no Pará ligado ao caso, Felício de Araújo Pontes Jr., bastante ligado a Marina Silva e seu verdismo, recebesse muito reconhecimento por parte de ambientalistas, tendo sido, por exemplo, o primeiro homenageado no Prêmio João Canuto de 2012, promovido pela ONG Movimento Humanos Direitos (MHuD), em parceria com a UFRJ, o Grupo de Pesquisa do Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC) e o Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (Nepp-DH), com grande presença de atores da Rede Globo no evento, e oferecido a aquilo que os organizadores entendem como “iniciativas expressivas na defesa dos Direitos Humanos”.92 Ele também recebeu no Senado Federal a comenda Dom Helder Câmara de Direitos Humanos, entregue a personalidades que se destacaram na luta pelos direitos humanos.93

Por outro lado, por três vezes, a Adavocacia-Geral da União protocolou reclamações disciplinares no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), solicitando o afastamento e a substituição de Felício nos processos que envolvem a construção de Usinas Hidrelétricas.94 Luís Inácio Lucena Adams, ministro da

90 MAGNABOSCO, André. Construção de  Belo Monte  alcançou 50%, diz Norte Energia. O Estado de São Paulo, São Paulo, 20 de maio de 2014. Disponível em: < http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,construcao-de-belo-monte-alcancou-50-diz-norte-energia,185378e >. Acesso em: 10 jul. 2014.

91 AGÊNCIA BRASIL. Hidrelétrica de Belo Monte não atinge terras indígenas, afirma Justiça do Pará. O Globo, Rio de Janeiro, 9 de jun. de 2011. Disponível em: < http://oglobo.globo.com/economia/hidreletrica-de-belo-monte-nao-atinge-terras-indigenas-afirma-justica-do-para-2877207#ixzz34p6nmBUV >. Acesso em: 8 jul. 2014.

92 MOVIMENTO DIREITOS HUMANOS. Prêmio João Canuto: defesa dos Direitos Humanos - UFRJ. Rio de Janeiro, 31 de out. 2012. Disponível em: < http://www.humanosdireitos.org/noticias/mhud-na-midia/556-Premio-Joao-Canuto--defesa-dos-Direitos-Humanos---UFRJ.htm >. Acesso em: 10 jul. 2014.

93 NAZÁRIO, Moisés de Oliveira. Senado entrega comenda a personalidades que se destacaram na luta pelos direitos humanos. Senado Federal, Brasília, 11 de dez. de 2012. Disponível em: < http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2012/12/11/senado-entrega-comenda-a-personalidades-que-se-destacaram-na-luta-pelos-direitos-humanos >. Acesso em: 10 jul. 2014.

94 MOVIMENTO XINGU VIVO PARA SEMPRE. Perseguido pela AGU, procurador Felício Pontes Jr. Recebe comenda do Senado. São Paulo, 12 de dez. de 2011. Disponível em: < http://

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AGU, criticou procuradores do Ministério Público Federal que estariam usando o instrumento jurídico da recomendação que lhe é dado como„ instrumento de constrangimento dos servidores “envolvidos com o licenciamento ambiental da usina.” Um procurador não pode ameaçar alguém, dizer‚ ou vocês adotam minhas recomendações ou será processado. “Isso é um absurdo”, disse Adams.95

8. argumentos jurídicos a favor do projeto

Dentro do recorte aqui utilizado, os argumentos materiais no campo do direito constitucional, nota-se que o principal argumento utilizado para a construção da Usina seria o direito ao desenvolvimento, como desdobramento dos direitos humanos econômicos, apresenta-se em uma prerrogativa inerente à natureza humana, atuando na esfera particular de cada cidadão e perante as sociedades como um todo, surgindo daí a necessidade de o Estado elaborar e consagrar políticas públicas voltadas para a sua concretização. É mencionada a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 14/12/1996, além de diversos artigos da Constituição da República, como fundamentos da República constan-tes na Constituição de 1988, como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e a cidadania (art. 1º, II), a regência do Brasil nas suas relações internacionais pela prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II), o dever de promover o bem de todos, erradicar a pobreza e a marginalização, e construir uma sociedade justa, livre e solidária (art. 3º, I, III e IV). O dever de a cidadania como fundamento da República ser interpretada em conjunto com todos os objetivos elencados no ar- tigo 3º, ou seja, (i) a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, (ii) garantia do desenvolvimento nacional, (iii) erradicação da pobreza e a marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais, (iv) promoção do bem de todos, sem qualquer tipo de preconceito ou discriminação, além da citação dos artigos da ordem econômica brasileira enunciada nos artigos 170 e 192 da Constituição.96

www.xinguvivo.org.br/2012/12/12/perseguido-pela-agu-procurador-felicio-pontes-jr-recebe-comenda-do-senado/ >. Acesso em: 10 jul. 2014.

95 BORGES, André. AGU reage e critica ações do MPF em Belo Monte. Valor Econômico, São Paulo, 26 de maio de 2011. Disponível em: < http://www.valor.com.br/arquivo/889571/agu-reage-e-critica-acoes-do-mpf-em-belo-monte >. Acesso em: 10 jul. 2014.

96 Uma argumentação que segue a mesma linha e é feita de forma mais elaborada pode ser encontrada em SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; SANCHES, Samyra Naspolini. Direito e Desenvolvimento no Brasil do Século XXI: uma Análise da Normatização Internacional e da

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9. argumentos jurídicos contra o projeto

Dentro do recorte aqui utilizado, os argumentos materiais no campo do direito constitucional, nota-se que nos processos propostos pelo Ministério Público Federal predominou a construção do respeito ao direito da natureza e das gerações futuras, cujo uso mais nítido se deu no processo 28944-98.2011.4.01.3900.

A ação proposta em agosto de 2011 discutiu, alegadamente, pela primeira vez no Judiciário brasileiro, o direito da natureza. Alega o MPF que o projeto vai causar a morte de parte considerável da biodiversidade na região da Volta Grande do Xingu. Para o procurador da República no Pará ligado ao caso, Felício de Araújo Pontes Jr., no século XXI a humanidade caminharia para o reconhecimento da natureza como sujeito de direitos. A visão antropocêntrica utilitária estaria superada. Isso significa que os humanos não podem mais submeter a natureza à exploração ilimitada. Entende o procurador que, apesar de ser um debate novo no judiciário brasileiro, o direito da natureza e das gerações futuras é objeto de pelo menos 14 convenções e tratados internacionais, todos promulgados pelo Brasil, além de estar presente na Constituição Federal.97

Também foram utilizados como argumento o direito à integridade cultural, à igualdade e à propriedade, o direito à autodeterminação (liberdade para deter-minar os seus futuros sociais, econômicos e culturais), o o direito à consulta e ao consentimento livre, prévio e informado.

Também é mencionada a convenção 169 da OIT, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (artigo 19), CF/88 (artigo 231) e jurisprudência da Corte Interamericana, envolvendo a consulta prévia e informada antes da implementação de qualquer medida legislativa ou administrativa que afete à população indígena de modo diferente da que afeta outras parcelas da população.

Constituição Brasileira. In: SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; SANCHES, Samyra Naspolini; COUTO, Monica Benetti (Orgs). Direito e desenvolvimento no Brasil do século XXI. Brasília: Ipea: CONPEDI, 2013. p. 123-150.

97 PONTES JUNIOR, Felício de Araújo. Belo Monte: uma década de violência contra a lei, o meio ambiente e o ser humano. In: MERLINO, Tatiana; MENDONÇA, Maria Luisa (Org.). Direitos Humanos no Brasil 2011. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Rede social de Justiça e Direitos Humanos, 2011. p. 107.

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10. conclusões

No presente artigo, buscou-se responder à seguinte pergunta: quais foram os argumento jurídicos utilizados por cada parte da disputa da construção da Hidrelétrica de Belo Monte e com qual finalidade para tentar alcançar o seu objetivo, qual seja, de viabilizar ou inviabilizar a construção desta? Para responder à essa pergunta, tivemos por objetivo, primeiro, elaborar um pequeno histórico do estudo e da elaboração do projeto da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, para entender os interesses ambientais, políticos, econômicos e sociais envolvidos e os antagonismos daí resultantes. Segundo, tivemos por objetivo também investigar, descobrir e apresentar os argumentos postos a favor e contra a construção de Belo Monte, qual o discurso de cada parte envolvida. A partir desses argumentos, surgiu o terceiro, que era investigar quais foram os argumentos elaborados no campo jurídico do direito constitucional pelas posições favoráveis e contrárias à construção de Belo Monte para tentar alcançar o seu objetivo, qual seja, de viabilizar ou inviabilizar a construção desta. E, mais do que isso, buscou-se compreender porque cada argumento é utilizado por cada parte, qual seria a consequência da utilização de cada argumento. Constatou-se que, por parte de quem é a favor da construção de Belo Monte, o principal argumento utilizado para a construção da Usina foi o direito ao desenvolvimento, como desdobra-mento dos direitos humanos econômicos, que se apresenta em uma prerrogativa inerente à natureza humana, atuando na esfera particular de cada cidadão e perante as sociedades como um todo, surgindo daí a necessidade de o Estado elaborar e consagrar políticas públicas voltadas para a sua concretização. Do ponto de vista de quem era contra Belo Monte, o principal argumento constitucional material foi respeito ao direito da natureza e das gerações futuras, além da violação do direito de consulta livre, prévia e informada, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e na Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

11. referências

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a constitucionalização dos direitos fundamentais e os desafios a sua

efetivação: considerações sobre a interpretação moral da constituição

Riva de Freitas1

Matheus Felipe de Castro2

Resumo

Foi nossa proposta desenvolver nesse artigo uma abordagem crítica sobre o fenômeno de Constitucionalização dos Direitos Fundamentais, especialmente no tocante às transformações e rupturas promovidas pela irradiação dos valores constitucionais a todo o ordenamento jurídico. Observamos que a Constitucionalização dos Direitos Fundamentais se aproximou da Filosofia contemporânea propondo, através de teses antipositivistas, uma hermenêutica constitucional capaz de (re)aproximar o Direito da Moral, com vistas à promoção de justiça material, com o protagonismo do Poder Judiciário. Entretanto,

1 Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (1982), obteve seu mestrado (1996) e doutorado (2003) em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Em 2007, realizou seu Pós-Doutorado na Universidade de Coimbra - Portugal. Foi Professora Assistente-Doutora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1988-2012). Atualmente é Professora e Pesquisadora do Programa de pesquisa, extensão e graduação em Direito da UNOESC. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direitos Humanos, atuando principalmente nos seguintes temas: direito constitucional, direitos humanos, garantias fundamentais, direito do estado e direito processual civil.

2 Professor Adjunto do Curso de Graduação em Direito da UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina; Coordenador Acadêmico Adjunto e Professor Titular do Programa de Mestrado em Direitos Fundamentais da UNOESC - Universidade do Oeste de Santa Catarina; Professor Visitante da ESA/SC - Escola Superior da Advocacia de Santa Catarina; Advogado criminalista, ativista dos direitos humanos e ex-vereador do Município de Florianópolis. É graduado em Direito pela UEM - Universidade Estadual de Maringá-PR (1999) e doutorado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2009). Sua experiência se concentra na área de Direito Constitucional, desenvolvendo pesquisas sobre as dimensões eficaciais dos Direitos Fundamentais e Liberdades Civis. Lidera, na UNOESC, os projetos de pesquisa Mecanismos de Efetivação Protetiva das Liberdades Civis e Direitos Fundamentais e Relações Privadas. É autor dos livros História Ideológica e Econômica das Constituições Brasileiras (Editora Arraes, 2015) e Capitalista Coletivo Ideal: O Estado, o Mercado e o Projeto de Desenvolvimento na Constituição de 1988 (Editora Lumen Juris, no prelo), além de dezenas de artigos em revistas, capítulos de livros e outros trabalhos científicos no Brasil e no exterior.

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constatamos também os impactos causados por essas teses identificando algumas dificuldades a serem enfrentadas, tais como: a segurança jurídica; a possibilidade de decisões particularistas e o desafio na construção de uma tese moral de validade universal.

Palavras-chave

Direitos Fundamentais; Constitucionalização dos Direitos Fundamentais; Hermenêutica Constitucional.

Abstract

Our proposal aims to ensure a critical approach about this phenomenon referred as Constitutionalization of Fundamental Rights, especially with regard to changes and breaks promoted by the radiation of the constitutional values through the whole legal framework. We observe that Constitutionalization of Fundamental Rights approached the contemporary philosophy through constitutional hermeneutics, seeking a rapprochement between law and moral, with a view to promoting material justice. However, observing the impact of these theses, we found some difficulties to be faced such as: legal certainty; the possibility of particularistic decisions; and the challenge of building a universal validity moral thesis.

Key words

Fundamental Rights; Constitutionalization of Fundamental Rights; Herme-neutic Constitutional.

1. introdução

Procuramos desenvolver nesse trabalho uma abordagem crítica sobre o fenômeno da Constitucionalização dos Direitos Fundamentais na atualidade, buscando entender os desafios que cercam essa temática, especialmente no tocante às transformações e rupturas promovidas pela irradiação dos valores constitucionais a todo o ordenamento jurídico.

Proposta inovadora e com grande poder de sedução, especialmente pela pos-sibilidade de realizar justiça substancial e avanços significativos para a inclusão

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social, vimos emergir e espraiar o efeito expansivo que as normas constitucionais adquiriram, em especial nos últimos 50 anos em face da Constitucionalização dos Direitos Fundamentais.

A força irradiante da Constituição centrou-se sobretudo no conteúdo material e axiológico das normas constitucionais, que passaram a condicionar a validade e o sentido de todas as normas infraconstitucionais, projetando-se para o interior do ordenamento jurídico, e nessa perspectiva, distanciando-se do que tradicionalmente se conhecia até então como Supremacia da Constituição, consoante o modelo kelseniano.

De outra parte, observamos que a Constitucionalização dos Direitos Fundamentais se aproximou significativamente da Filosofia contemporânea construindo, através da hermenêutica constitucional uma proposta de aproximação entre Direito e Moral, tornando obrigatória a materialização dos conteúdos morais dispostos nos Direitos Fundamentais.

Desta forma, vimos a afirmação de uma nova interpretação constitucional, tomando como ponto de partida a especificidade da Constituição, por apresentar valores constitucionais com força normativa e eficácia jurídica. Consoante esta nova abordagem, haveria um contraponto entre a “Constituição real” (texto escrito das normas constitucionais) e a “Constituição ideal”, interpretando a primeira através da irradiação de valores derivados da segunda.

A justificativa legitimadora para tanto seria a busca por uma justiça substan-cial a caminhar no sentido de uma decisão mais apropriada, capaz de promover a necessária inclusão social.

Entretanto, se é real a possibilidade de avanços no caminho da justiça material, e da inclusão social, algumas ponderações devem ser apresentadas no tocante ao impacto das teses antipositivistas em sede da Constitucionalização dos Direitos Fundamentais, entre elas: a questão da segurança jurídica; a formulação de eventuais decisões particularistas e autoritárias; para além da dificuldade da construção de uma tese moral por parte do Judiciário, capaz de contemplar a diversidade de concepções de Justiça existentes numa sociedade contemporânea extremamente fragmentada.

Essas ponderações, além de outras abordadas nesse texto, foram o objeto de nossas investigações no presente trabalho, sempre numa perspectiva de observar

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o limite dessas formulações teóricas e os riscos de uma atividade jurisdicional extremamente subjetiva e com ampla margem de discricionariedade. Nosso objetivo nesta oportunidade foi tão somente promover as necessárias reflexões sob o ponto de vista teórico, sem contudo realizar estudos de caso, o que certamente será enfocado posteriormente.

2. o fenômeno da constitucionalização dos direitos fundamentais na atualidade

Em resposta às atrocidades ocorridas no período referente às duas Guerras Mundiais observou-se, para além da confecção de Declarações e Tratados de Direitos Humanos entre os países envolvidos no conflito, o crescente prestígio dos Direitos Fundamentais positivados nos diplomas constitucionais, inclusive como forma de se evitar possível retorno à violência perpetrada anteriormente.

Consequentemente diversas inovações no âmbito do Direito Constitucional foram necessárias, de modo a estabelecer um diálogo com os diferentes ramos do direito, tendo por objetivo a criação de uma intersecção entre Constituição e os Direitos Civis e entre Constituição e Direitos Sociais. Estas transformações ora apontadas, que repercutiram substancialmente no âmbito da hermenêutica constitucional, ficaram conhecidas como: Constitucionalização dos Direitos Fundamentais.

Desta forma, uma outra compreensão da relevância das cartas constitucio- nais e da necessidade de se garantir a eficácia material dos Direitos Fundamentais nela consagrados, foi paulatinamente afirmada até tronar-se irreversível, buscando através da irradiação das suas normas e valores a implementação do conteúdo ideológico nela estruturado, ou ainda de outra parte, a realização do “sentimento” constitucional3 que traduziria uma ideia de justiça e adequação, no que se refere a uma convivência social equitativa.

Assim, a irradiação dos valores constitucionais referidos nos Direitos Fundamentais passou a alcançar todos os tecidos do ordenamento jurídico, bem como a nortear as relações sociais em geral, repercutindo inclusive em relações privadas de natureza horizontal.

3 VERDU, Pablo Lucas. O sentimento constitucional: aproximação do sentir constitucional como modo de integração política. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

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Desta forma, o que se pode observar em verdade é a superação da ideia de que os Direitos Fundamentais somente se prestariam à tutela dos cidadãos em face do Estado. Estes, consoante o novo entendimento, seriam compreendidos como postulados sociais, que revelariam uma ordem de valores a promover diretrizes ao processo legislativo, aos atos da administração pública bem como a toda jurisdição com força vinculante.

A Constitucionalização dos Direitos Fundamentais transformou-se portanto em fonte de inspiração a todo o direito e para tanto operou transformações sub-stanciais sobretudo na hermenêutica constitucional movendo-se paulatinamente para o âmbito da filosofia jurídica contemporânea, comungando com esta quer as críticas ao positivismo jurídico, quer propugnando pela reconciliação entre Direito e Moral, sempre legitimada pelo argumento da promoção da justiça e da inclusão social.

Proposta inovadora, com grande poder de sedução, na medida em que se mostrou capaz de promover avanços no tocante à inclusão social, a Constitucionalização dos Direitos Fundamentais com esse efeito expansivo, condicionante da validade e sentido de todas as normas infraconstitucionais se espraiou e se afirmou em vários países nas últimas décadas, recebendo especial destaque e posterior adoção por parte dos doutrinadores e da jurisprudência, em países da civil law e da common law.

A comprovar esta expansão vimos surgir na Alemanha, em 1958, o importante caso Lüth, construído através do trabalho jurisprudencial do Tribunal Constitucional Federal Alemão, que reformulou sentença proferida em instância inferior, em prol da eficácia do Direito Fundamental à Liberdade de Expressão, sob a justificativa de que esse direito deveria pautar toda a interpretação do código civil. Construiu de maneira bastante sofisticada inclusive a possibilidade de vinculação dos Direitos Fundamentais às relações horizontais entre particulares4.

A partir de então o fenômeno da constitucionalização ganhou força passando a influenciar a hermenêutica constitucional “impregnando”5 os mais variados

4 BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.

5 FAVOREU, Louis. La constituzionalisation du droit. In ABY, Jean-Bernard et al. L únité du droit: mélange en homage à Roland Drago. Paris: Economica, 1996.

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ordenamentos jurídicos, tornando o diploma constitucional um texto invasivo e extremamente expansivo. Fenômeno semelhante ao alemão alcançou também a constituições dos países Ibéricos – Constituição Portuguesa de 1976 e a Espanhola de 1978. Chegou è península Itálica em 1960 e posteriormente à França, como um processo de constitucionalização mais tardio, consoante nos relata Louis Favoreu6, doutrinador que cuidou do processo de constitucionalização francês de maneira bastante detalhada.

3. uma questão controvertida: a era da constitucio-nalização dos direitos fundamentais

È importante refletir sobre o momento histórico no qual emerge a locução: Constitucionalização dos Direitos Fundamentais, enquanto teoria inovadora para o Direito Constitucional. Em verdade trata-se de um fenômeno recente da dogmática constitucional dos países ocidentais.

De forma geral, costumamos identificar o fenômeno da Constitucionalização do Direito com o momento de apogeu do Estado Social, quando suas constituições buscaram a superação dos limites impostos pelo ideário liberal que as restringiam à organização do Estado e ao estabelecimento do rol de Direitos Fundamentais para implementar um novo constitucionalismo, capaz de assumir compromissos com a redistribuição de rendas e uma maior intervenção através de constituições dirigentes. Esta nova proposta constitucional implicaria também em uma intervenção em grande parte dos aspectos da vida jurídica dos cidadãos. Desta maneira, a Constitucionalização do Direito estaria próxima do ideal proposto pelo Welfare State, especialmente quando através do fenômeno da irradiação dos valores constitucionais estivesse efetivando justiça e inclusão social.

Entretanto, quando nos detemos a observar com maior cautela algumas características do Estado Providência, constatamos, já em primeiro plano um paradigma de Estado com particularidades bem distintas do que seria apropriado ao desenvolvimento e afirmação do fenômeno da Constitucionalização dos Direitos. O Estado Social, por exemplo, sempre se notabilizou pelo protagonismo do Poder Executivo e de uma regulação excessiva necessária à realização de suas atribuições intervencionistas na ordem econômica e social. Ora, essa imensa

6 Ibid.

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produção de normas, até por vezes desconexas, foram criadas com a finalidade de desenvolver e tornar aplicáveis as proposituras de uma constituição dirigente, através do processo de integração legislativa. Certamente tais caraterísticas esta- riam mais apropriadas a um arcabouço jurídico no qual vigorasse uma Consti-tuição dotada de supremacia a conferir validade a toda essa regulação.

Por outro lado, a proposta da Constitucionalização dos Direitos Fundamentais emerge com o protagonismo do Poder Judiciário. Trata-se de uma atividade preponderantemente jurisdicional, onde a nova hermenêutica constitucional, na medida em que propõe uma aproximação entre o Direito e a Moral legitima e confere aos seus atores (magistrados) uma margem de discricionariedade peri- gosamente ampla e sempre sob a justificativa de que caberia ao interprete do Di- reito Constitucional promover e garantir o compromisso das normas cons-titucionais de Direitos Fundamentais7.

Quer portanto nos parecer um equívoco a identidade pretendida entre Estado Social e Constitucionalização dos Direitos Fundamentais. Há um lapso ideológico evidente. Desta forma, não é sem razão que as teorias desenvolvidas pelo neoconstitucionalismo, através do fenômeno da Constitucionalização dos Direitos Fundamentais ganham relevância em momento posterior à crise do Estado de Bem Estar Social, período em que este já promoveu devidamente a sua desregulação de modo a fazer frente às novas demandas da econômica mundial8.

Neste sentido, há ainda um outro aspecto a ser refletido: o período em que se instaura a crise do Welfare State e sua desregulação corresponde também, “et pour cause”, à crise da econômica mundial, que se evidencia nos finais dos anos setenta. Verificamos, a partir de então a rearticulação da economia em outras bases, promovendo o que se convencionou chamar de globalização econômica. É especialmente nesse cenário que presenciamos em sede do Estado Social a reafirmação progressiva do modelo liberal, quer seja realizando reformas tributárias, liberalizando o comércio, promovendo a liberalização financeira, etc; para além das privatizações e da desregulação9

7 POZZOLO, Susanna. Neocontituzionnalismo e positivismo giuridico. Torino: Giappichelli, 2006.8 SAND, Inger Johanne. Changing forms of governance and the role of law: society and its law.

Oslo: Arena Working Papers, 2000.9 TEUBNER, Gunther. Juridification of social spheres: a comparative analysis in the áreas of

labour, corporate, antitruste and social welfare law. Berlim: Walter de Gruyter, 1987.

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Assim, se é verdadeiro afirmar que o processo de Constitucionalização do Direito teve a sua origem ainda no Estado Social, também é necessário entender que o período onde ele realmente se afirma e ganha notoriedade corresponde ao momento de reformulação do paradigma estatal em bases liberais.

Portanto, quando nos atemos aos argumentos levantados, encontramos ele-mentos para concluir que, o fenômeno da desregulação transformou-se em fator relevante à utilização dos princípios constitucionais na atividade jurisdicional, devido sobretudo a sua flexibilidade e abrangência, em momentos de ausência de regulação específica.

De outra parte, com a desarticulação do Estado Social, as políticas públicas implementadas em diferentes modelos de Social Democracia, que eram es-truturadas na proposta de redistribuição de renda, foram substituídas por outras demandas que priorizaram novos valores sociais, os então denominados “pós-materialistas”10 que pleitearam, para além do respeito à diversidade, qualidade de vida, ecologia, lazer, etc. Este descompasso entre o valor redistribuição de rendas que fundamentava o Estado Social qual seja: a diminuição das desigualdades sociais de natureza econômica e as novas necessidades sociais, promoveu um impacto de ordem cultural e sociológica que também contribuiu para a crise dos Estados de Bem Estar Social11. Em contrapartida, fez proliferar inúmeros conflitos, que foram carreados ao Judiciário em face de um Poder Executivo erodido, já sem a mesma credibilidade.

Mais uma vez a Constitucionalização do Direito mostrou-se bastante adequa-da à pacificação social quando utilizou recurso da hermenêutica pós-positivista e aproximou o Direito à Moral. Com esses recursos garantiu aos magistrados ampla discricionariedade para o enfrentamento dos conflitos sociais nesta nova fase.

Observamos portanto que a identidade propagada entre Estado Social e Constitucionalização dos Direitos Fundamentais não pode ser aceita sem algum questionamento. Há que se ter o cuidado necessário nessa afirmação porque, embora o Estado Providência tenha aberto caminhos à construção de novas teorias para o Direito Constitucional, certamente mais voltadas à realização de justiça social, a Constitucionalização do Direito apresenta qualidades distintas, mais

10 ROSANVALON, Pierre. La crise de L etat providence. Aris: Sevil, 1985, p.50.11 Ibid.

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apropriadas ao momento de retomada do ideário liberal, quando a proposta central foi a busca da eficiência necessária; e a construção de fórmulas procedimentais para a solução rápida de enorme gama de conflitos, com peculiaridades distintas e alto grau de sofisticação.

4. constitucionalização dos direitos fundamentais e supremacia da constituição: uma questão de her-menêutica constitucional?

A partir do momento em que se inicia o estudo sobre a Constitucionaliza- ção dos Direitos Fundamentais, tema tão evocado na atualidade, algumas dúvidas emergem já em primeiro plano: a) há realmente uma distinção substancial entre Supremacia da Constituição e Constitucionalização dos Direitos Fundamentais para a teoria Constitucional?; ou ainda b) Sendo a Constituição dotada de supremacia, não deveria ela sempre promover a irradiação de seus preceitos normativos a todo ordenamento jurídico? Qual inovação que esta teoria propõe?

Em que pese fazer sentido essas indagações e ainda sem pretendermos esgotar o tema, gostaríamos de apresentar algumas reflexões.

O papel relevante das constituições estatais remonta à construção do Estado Moderno e já se evidência a partir do século XVIII. Erigida pelo paradigma Liberal Clássico, as constituições já ofereciam elementos necessários para a afirmação do segmento burguês frente a Monarquia Absolutista, quer oferecendo limites ao exercício do poder estatal, quer apresentando o rol de Direitos Fundamentais que identificavam os valores e a ética que pretendiam atemporais12 e deveriam ser respeitadas portanto pelos governantes.

Assim, com imenso prestígio jurídico e político, as constituições serviram como referencial máximo para os Estados Modernos, conferindo-lhes estrutura, validade, para além de se constituir em fonte legitimadora do exercício do seu poder.

Entretanto, apesar de toda a importância de que sempre foram revestidas, no tocante a sua força normativa e eficácia jurídica, sempre houve inúmeras controvérsias.

12 BURDEAU, Georges. Les Libertes Publiques. Paris: Auzias, 1972.

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Basta que nos lembremos da célebre polêmica que se travou sobre a Força Normativa da Constituição entre Ferdinand Lassalle (1862) e Konrad Hesse (1959). Nesta oportunidade Ferdinand Lassalle, ainda que, com as melhores intenções buscando garantir maior participação do povo, apresenta as suas dúvidas quanto a natureza jurídica da matéria constitucional e sua força normativa, afirmação essa só contestada de forma consistente por Konrad Hesse muito tempo depois13.

Ainda no Brasil, em momento imediatamente posterior à promulgação da Constituição de 88, inúmeros debates sobre a aplicabilidade e a eficácia jurídica das normas constitucionais ocorreram entre doutrinadores, nas academias e por vezes ocuparam a mídia.

O debate centrava-se na discussão sobre a aplicabilidade de certas normas constitucionais e sua vocação para produzir os efeitos jurídicos descritos em seus enunciados. A dúvida recaía principalmente sobre a aplicabilidade e eficácia jurídica de normas constitucionais com disposição mais abrangentes, como por exemplo os princípios e as normas que estabeleciam diretrizes a serem implementadas pelos governantes: as normas programáticas. Para o esclarecimento dessas questões muitos contribuíram as construções teóricas de José Afonso da Silva14 sobre a eficácia e a aplicabilidade das normas constitucionais.

Em que pese as intenções políticas que cercaram o debate sobre sua apli-cabilidade (por exemplo, o engessamento da Constituição de 88) e que de resto sempre permearam polêmicas desta natureza, o que entendemos relevante demostrar é que, muito embora a Supremacia da Constituição tenha sido defendida pela dogmática constitucional, a Força Normativa da Constituição em verdade sempre foi colocada à prova, em momentos de ebulição política.

De qualquer maneira, a Supremacia da Constituição afirma-se definitiva-mente com as teorias interpretativas de Kelsen15 e suas considerações sobre a disposição hierárquica do ordenamento jurídico.

13 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1991.

14 SILVA José Afondo da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, 6ª ed.

15 KELSEN, Hans, Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998, 6ª ed.

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Kelsen16,quando apõe a norma constitucional no ápice do ordenamento jurídico e a ela reserva a atribuição de conferir validade a toda norma legal, desde que confeccionada consoante dispositivos constitucionais, em verdade esta propondo a separação entre Direito e Moral.

Assim, nenhuma norma do ordenamento jurídico seria avaliada ou mesmo validade pelo seu teor moral. A validade de uma norma estaria unicamente determinada pelo respeito às disposições da Constituição17.

Certamente a Constituição deveria espelhar em termos de Direito Positivo uma racionalidade originada a partir dos valores hegemônicos da sociedade, entretanto para Kelsen estas considerações morais não deveriam servir para a avaliação de uma norma em termos jurídicos18.

Embora não seja nosso objetivo para o momento promover uma abordagem aprofundada sobre as teorias de Kelsen, o que gostaríamos de pontuar é a separação entre Direito e Moral, desenhada por Kelsen como um elemento importante para entender as distinções entre Supremacia da Constituição e Constitucionalização dos Direitos Fundamentais.

Trata-se a Constitucionalização dos Direitos Fundamentais de um fenômeno muito mais abrangente onde, o que se observa é a preponderância do efeito expansivo das normas constitucionais ao longo das últimas décadas.

Tal difusão centra-se sobretudo na matéria constitucional mas, de forma inovadora, abarca também o seu conteúdo axiológico, propugnando por uma reaproximação entre Direito e Moral, operando com maior amplitude, e de forma distinta por todo o ordenamento jurídico19.

Tamanha é a dimensão dessa irradiação que teóricos tais como Nipperdey, Sarmento, Mendes, Naranjo de la cruz, Ubillos, Sarlet, entre outros defendem a possibilidade de que os valores constitucionais possam condicionar diretamente a validade ou corrigir o sentido de todas as normas infraconstitucionais.

16 Ibid.17 Ibid.18 Ibid.19 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010, 3ª ed.

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Verifica-se portanto, uma diferença substancial entre Supremacia da Constituição, enquanto um fenômeno marcado pelo positivismo jurídico, na medida em que, a finalidade e o sentido da norma são mantidos e respeitados, uma vez que o dispositivo pertença ao ordenamento jurídico.

A Constitucionalização do Direito, em contrapartida tende a aceitar a alte-ração e a validade da norma, consoante a irradiação dos princípios constitucio-nais, ainda que se trate de norma válida, ainda não declarada inconstitucional. Esta tarefa seria primordialmente atividade jurisdicional. Desta forma, constata-se portanto, que a última palavra sobre o sentido e validade do enunciado da lei pertence ao Poder Judiciário20.

Questão controvertida que merece ser observada, no que toca o inquestio-nável protagonismo do Judiciário, em sede da Constitucionalização dos Direitos Fundamentais, refere-se à legitimidade do mesmo para tal empreitada. A interpretação moral da Constituição conforme esta novel forma de interpretação constitucional (conhecida como neoconstitucionalismo) propõe para a Constitucionalização dos Direitos Fundamentais que o Poder Judiciário assuma responsabilidades no sentido de contrabalancear as escolhas políticas do Poder Legislativo21, com vistas à neutralizar decisões que mesmo consentâneas com a vontade da maioria e erigidas dentro de preceitos de uma democracia constitucional representativa, sejam consideradas tirânicas e promovam a exclusão de algum setor social minoritário.

O que é importante dizer entretanto é que não se pode assegurar com certeza o sucesso desta tarefa sob o ponto de vista social. O fato de haver possibilidade de correção nas decisões legislativas injustas pelo Judiciário, não garante absolutamente que o contrário não venha ocorrer, especialmente quando em presença de uma sociedade contemporânea fragmentada em partidos políticos, igrejas, religiões distintas e movimentos sociais emancipatórios, com diferentes concepções de justiça.

De outra parte, teríamos um enorme risco de promover um “governo de juízes”22 que, mau ou bem intencionados, sábios ou não, teriam a “accountability”

20 Pozzolo, Neocontituzionnalismo e positivismo giuridico. op. cit. , p. 119.21 Ibid.22 Ibid, p.100.

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de suas decisões, até porque não foram eleitos, nem são sujeitos delegados pelos cidadãos a fazerem escolhas políticas. Por outro lado, a autodeterminação dos indivíduos em sociedade e o exercício de sua cidadania ativa e passiva nas decisões em sociedade estaria largamente comprometida.

Em que pese os desvios da maioria quando constrói uma racionalidade excludente, (e toda a racionalidade o é em maior ou menor medida) ou produz uma lei injusta, a Liberdade e a autodeterminação política são valores fundamentais erigidos nas Constituições ocidentais. Assim, a liberdade de construir hierarquias axiológicas ou substituí-las por outras mais adequadas não pode ser desconsiderada. Esta pertence aos cidadãos, representados por seus delegados no exercício do Poder Legislativo. Não podemos supor de antemão uma superioridade moral do juiz em relação às escolhas do legislador23.

È certo que, ao oferecermos críticas ao viés neoconstitucionalista da Constitucionalização do Direito não estamos de forma alguma, propugnando pelo retorno do positivismo legalista, porque seria um retrocesso, ou mesmo à retomada de um Jusnaturalismo que entendemos anacrônico. O que não é possível entretanto é admitir que se proceda, através de uma jurisdição com poderes discricionários quase ilimitados, a desnaturação do Direito positivado, através de uma interpretação subjetiva, sob a justificativa de que a decisão seria fruto da irradiação do conteúdo moral supostamente contido em Direito Fundamental.

5. interpretação moral da constituição e justiça substancial: a proposta de um direito maleável

A Constitucionalização dos Direitos Fundamentais emerge num contexto político, social, histórico, científico e sobretudo filosófico que ficou conhecido como era da Pós-Modernidade, evidenciando desde o início uma crítica ao Positivismo Jurídico então estabelecido.

Em verdade é preciso salientar que a Pós-Modernidade representou uma busca de superação das ideologias afirmadas na Modernidade, com repercussões que abrangeram, como já afirmamos, diferentes áreas do conhecimento humano. Do

23 Ibid, p. 101.

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ponto de vista da Filosofia, observamos a formulação de críticas às concepções sobre o mito da Verdade Absoluta originadas na Modernidade, reconhecendo a Verdade como um construto da mente humana, elaborada pela racionalidade humana24.

Por outro lado, a atividade descritiva sobre a Verdade ganha extrema rele-vância, através do discurso e da linguagem, sobretudo porque é justamente através da descrição sobre o mundo e sobre as coisas que a racionalidade humana é constituída e comunicada, podendo ser falsa ou verdadeira, como afirma Rorty25.

Consoante essas novas concepções, já se pode concluir e até mesmo legitimar a ampliação da margem de subjetividade e discricionariedade conferida ao interprete do direito em geral, e em especial à atividade jurisdicional, na medida em que ficou definitivamente desacreditada qualquer possibilidade de neutralidade na atividade hermenêutica. Também certamente ganha relevância crescente o discurso argumentativo, para convencer e mais uma vez legitimar a decisão proferida.

Na esteira dessas transformações a hermenêutica jurídica aproximou-se também da filosofia da linguagem26 utilizando-se ainda do recurso da semiótica27 com vistas à construção de técnicas argumentativas a serem utilizadas pelos magistrados ou pelos cidadãos, no exercício do “agir comunicativo”, como propõe Habermas28.

A Constitucionalização do Direito pressupõe ainda a existência de uma especificidade na interpretação da Constituição, em comparação com as demais normas do ordenamento jurídico. Neste sentido, afirma Guastini29 que interpretar a Constituição é considerar a peculiaridade do próprio texto Constitucional, em termos comparativos a uma lei infraconstitucional ordinária. A Constituição

24 RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p 28-38.

25 Ibid.26 NADER, Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2010, 19ª ed, p.128.27 Ibid, p. 127.28 HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Rio de Janeiro:

Tempo brasileiro, 2010.29 GUASTINI, Riccardo. Specificitá dell´ interpretazione constituzionale? Distinguendo. Torino:

Gianppichelli, 1996.

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deve portanto estabelecer uma “ponte” entre o discurso jurídico, contido no seu enunciado e o discurso moral contido nos dispositivos constitucionais de Diretos Fundamentais. Naturalmente este argumento deriva da perspectiva da reconciliação do Direito com a Moral, proposta que adquire relevância na crítica formulada ao positivismo. Deste forma, interpretar a Constituição im-plica atribuir significado às normas constitucionais, preponderantemente aos princípios de Direitos Fundamentais. Assim, a Constituição sendo um diploma com características específicas, em face da presença dos Direitos Fundamentais deveria merecer uma interpretação distinta30.

Há autores ainda como Nino31 (1994) que propõem, por parte do interprete que este realize o procedimento hermenêutico baseando-se no confronto entre a “Constituição real” com a “Constituição ideal” interpretando a primeira (Cons-tituição real) através da irradiação de valores derivados da segunda (Constituição ideal).

Observamos portanto que, a interpretação moral da Constituição, erigida nas teses que propõem a Constitucionalização dos Direitos Fundamentais contrapõem-se frontalmente às interpretações que se restringem à literalidade dos dispositivos constitucionais. Estas últimas teriam maior afinidade com a hermenêutica positivista que partiria de um modelo constitucional do tipo descritivo, consoante nos ensina Guastini32.

A justificativa legitimadora, para a interpretação moral da Constituição seria, como já afirmamos anteriormente, a busca por uma justiça substancial, considerando-se que deveríamos estar sempre em presença de um “bom juiz”33, a caminhar no sentido de uma decisão mais apropriada, capaz de promover a necessária inclusão social.

Na esteira das teses antipositivistas ressaltamos Gustavo Zagrebelsky34 e sua proposta de que o Direito seja considerado uma “unidade dúctil” ou seja: um direito maleável ao seu interprete, corroborando com a dualidade já afirmada entre Constituição real” e “Constituição ideal”.

30 Ibid.31 NINO, Carlos Santiago. Derecho, moral y politica. Barcelona: Ariel, 1994.32 Guastini, Specificitá dell´ interpretazione constituzionale? Distinguendo. op. cit., 1996.33 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho ductil. Ley, derecho y justicia. Madri: Trotta, 1999.34 Ibid.

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As críticas ao positivismo jurídico quando propõe uma aproximação entre Direito e Moral, numa perspectiva de construir e realizar justiça substancial apontam em seus argumentos a necessidade de um instrumental jurídico capaz de fazer frente aos conflitos sociais contemporâneos, marcados pela diversidade de concepções de justiça, cuja decisão traria profundas repercussões éticas para a sociedade. Assim, uma separação entre Direito e Moral inviabilizaria os próprios instrumentos jurídicos e a ação jurisdicional nos dias atuais35.

Entretanto, é justamente em presença e tanta diversidade de concepções sobre o que é justo e adequado e de discordância sobre o que é “bom” ou “mau” em uma sociedade fragmentada, o que nos leva a perguntar: Como formular uma tese moral capaz de promover justiça substancial e ainda pacificar a sociedade? Qualquer escolha valorativa, para além do risco de ser autoritária, poderia reverberar em crise.

De qualquer forma autores antipositivistas que propugnam por um direito “constitucionalmente dúctil’ tais, como Zagrebelsky36, descartam definitivamente as técnicas adotadas pelo positivismo tradicional, entre elas o método dedutivo da subsunção. Para estes teóricos, o Direito Constitucional deve ser interpretado através de um instrumental mais maleável e flexível.

Ainda sobre princípios ressalta Dworkin37 que estes são normas formuladas por meio de uma linguagem genérica e que seu campo de atuação frequentemente se sobrepõe promovendo antinomias. Aprofundando o tema observa que a técnica de ponderação de princípios, utilizada para os conflitos de normas representa não apenas uma técnica interpretativa, mas sobretudo uma técnica de aplicação, através da qual o interprete deve buscar a construção da melhor relação entre os princípios possível, através da utilização de argumentos morais38.

Quanto à ponderação de princípios esclarece39 que poderá obedecer à técnicas distintas, quer utilizando-se da proporcionalidade ou da equidade, ou ainda propondo a otimização de princípios40 sempre dependendo, a escolha de critérios,

35 Pozzolo, Neocontituzionnalismo e positivismo giuridico. op. cit.36 Zagrebelsky, El derecho ductil. Ley, derecho y justicia. op. cit.37 Dworkin, Levando os direitos a sério. op. cit.38 Pozzolo, Neocontituzionnalismo e positivismo giuridico. op. cit.39 Ibid.40 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.

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das considerações que se queria dar ao caso concreto. Desta forma, haveria na grande maioria das decisões a possibilidade de uma solução particularista, dependendo do caso em tela e do contexto no qual ele se insere.

A este respeito observamos também as ponderações de Guastini41. Para ele, a ponderação daria lugar a uma hierarquia axiológica mutável caso a caso. Atribuir um cero peso a cada princípio em sobreposição, consoante o caso concreto, estabeleceria uma relação de prevalência entre eles (uma hierarquia axiológica), válida exclusivamente para o caso em questão, o que tornaria inviável a construção de uma tese moral válida “erga omnes”.

Assim, observando as ponderações de diferentes autores sobre as reais pos-sibilidades e inclusive sobre os riscos da interpretação moral da Constituição, concluímos que a Constitucionalização dos Direitos Fundamentais, na medida em que trilha este caminho, promovendo a aproximação entre Direito e Moral pode contribuir, em muito para a realização da justiça material necessária. Entretanto, verificamos que também procede o entendimento de que, ampliando em demasia a discricionariedade do interprete na atividade jurisdicional, poderiam ocorrer comprometimentos à segurança jurídica e à implementação de uma decisão justa.

6. conclusões

A Constitucionalização dos Direitos Fundamentais, consoante a herme-nêutica pós-positivista apontada nesse trabalho considera de extrema relevância a atividade criativa do juiz na interpretação do Direito. Do ponto de vista material haveria inclusive bastante semelhança entre os processos legislativo e jurisdicional, no que toca a possibilidade de criação do Direito.

Neste sentido, caberia à atividade jurisdicional as atribuições de entender, interpretar e (re)criar a norma dentro do sistema jurídico, partindo da premissa de que o Direito deve ser revelado não apenas através de seus enunciados escritos mas também através da interpretação moral desses mesmos enunciados.

Nesse caminho, as críticas ao positivismo jurídico propõem uma aproximação entre Direito e Moral, numa perspectiva de construir justiça substancial e

41 GUASTINI, Riccardo. Das partes as normas. São Paulo: Quartier latin, 2005.

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solucionar, de maneira eficiente, os conflitos na atualidade, marcados pela diversidade. Para tanto a teoria da argumentação torna-se fundamental para a legitimação e validade de uma decisão judicial.

Por outro lado, observamos que é justamente em presença de uma sociedade contemporânea tão fragmentada em sua concepção de justiça que adquire relevância a força normativa da constituição e a prevalência de seus valores em relação às demais normas infraconstitucionais.

Através da força normativa da Constituição, todas as normas constitucionais, quer sejam princípios ou regras adquirem validade, aplicabilidade e eficácia jurídica incontestáveis. Desta forma, os Direitos Fundamentais enquanto valores “universais” da pessoa, erigidos em normas constitucionais passam a promover uma irradiação sem precedentes por todo ordenamento jurídico e são considerados no exercício da atividade jurisdicional, de modo a construir uma leitura moral da Constituição, tornando “dúctil” e maleável o texto escrito de normas infraconstitucional.

Tamanha é a dimensão desse processo, que se convencionou chamar de Constitucionalização dos Direitos Fundamentais, que a força irradiante da Constituição se projeta para dentro do ordenamento jurídico reestruturando-o de forma contínua, sempre sob a justificativa de corrigir as possíveis distorções de leis injustas, originadas de uma racionalidade hegemônica, tirânica e exclu- dente, buscando realizar justiça substancial.

Entretanto, se é real a possibilidade de avanços no caminho da justiça material e da inclusão social, algumas ponderações devem ser apresentadas.

Sem pretendermos esgotar para o momento todas as reflexões sobre o impacto das teses antipositivistas em sede da Constitucionalização dos Direitos Fundamentais, elencaremos algumas desenvolvidas nesse trabalho.

I) Supremacia da Constituição: a rearticulação do problema da validade da norma fundamental

As normas constitucionais consoante o modelo kelseniano derivam sua supremacia a partir de uma perspectiva de neutralidade, afastando qualquer juízo de valor moral. Por sua vez, toda a regulação do ordena-mento jurídico haure sua validade da compatibilidade que possua com

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a norma fundamental, Assim, unicamente pelo motivo de conferir va-lidade às demais normas infraconstitucionais transforma-se em norma superior ou seja: norma constitucional dotada de supremacia.

Com a aproximação entre Moral e Direito, esta construção teórica fica ultrapassada, na medida em que os conteúdos morais dos Direitos Fun-damentais ganham obrigatoriamente e se projetam para dentro do or-denamento jurídico podendo, sobre o argumento da injustiça inviabi-lizar a aplicação de uma norma infraconstitucional. Ocorre que, diante de uma pluralidade de concepções de justiça haverá sempre o risco de uma decisão autoritária e extremamente injusta, capaz de comprometer definitivamente qualquer segurança jurídica.

II) Decisões particularistas com critérios não universais

Consoante a nova hermenêutica constitucional o fenômeno da Consti-tucionalização dos Direitos Fundamentais promove os valores contidos em seus enunciados à posição da Grundnorm, rompendo de certa for-ma com a unidade do sistema constitucional, onde até então princípios e regras possuíam a mesma hierarquia axiológica. De outra parte, sua interpretação torna-se obrigatória cabendo à atividade jurisdicional o desafio de construir e implementar uma tese moral.

Ocorre entretanto que os princípios constitucionais são formulados em linguagem extremamente genérica, com um campo de aplicação bas-tante amplo promovendo inúmeras vezes uma sobreposição de valores quando da sua aplicação.

Desse modo, o princípio não oferece uma única solução ao caso. As-sim, qualquer escolha e até mesmo o juízo de ponderação representará sempre uma atribuição de pesos diferentes aos princípios, buscando a construção de uma hierarquia axiológica mutável, baseada nas es-pecificidades do caso concreto, bem como nas circunstâncias que o cercam. Observamos portanto que devido as particularidades do caso, nem sempre a decisão poderá servir de parâmetro para o futuro, o que dificulta a formulação de um critério universal e estável.

Estas são apenas algumas das ponderações que entendemos devam merecer nossas reflexões, especialmente no momento em que a Constitucionalização

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dos Direitos Fundamentais, assim como as teses antipositivistas, ganham um prestígio sem precedentes. É certo que, ao oferecermos críticas ao viés neoconstitucionalista destas teorias não estamos, de forma alguma, propugnando pela retomada do positivismo legalista, o que seria um retrocesso, ou mesmo a volta de um jusnaturalismo anacrônico. O que não é possível entretanto é admitir que se proceda a desnaturação do direito positivado através de uma jurisdição com poderes quase ilimitados.

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a dignidade humana em perspectiva: uma reflexâo sobre o fundamento

dos direitos humanos na moral e na antropologia

Jaci Rene Costa Garcia1

Vicente de Paulo Barretto2

Resumo

O artigo envolve o estudo da dignidade humana entre a Ética e a Antropologia, estando delimitado na filosofia de Immanuel Kant. Importante à pesquisa evidenciar o conceito de homem a partir da comunidade e das relações estabelecidas, dando-se a partir da externalidade uma condição de análise do homem que completa os estudos sobre o campo dos deveres, respondendo-se a intrincada questão de quem é esse homem que vive em comunidade e que se move livremente circunscrito numa realidade em parte deontológica. A hipótese da pesquisa é a de que a construção do conceito de dignidade exige a confrontação do sujeito com a externalidade, sendo essencial à demonstração – ao menos em nível de experimento mental – uma investigação antropológica capaz de compreender o homem no contexto da sociedade e da cultura, considerando o tempo e o espaço onde a subjetividade humana projeta a si mesmo e se constitui como humanidade. Nessa perspectiva, o objetivo é o de percorrer o caminho traçado pela antropologia filosófica e verificar se poderá fornecer subsídios para a compreensão do conceito de dignidade da pessoa humana passando, pelos seguintes pontos: [i] análise da proposta de uma teoria ética na modernidade; [ii]

1 Doutorando em Direito pela UNISINOS, Advogado, [email protected]. Vinculado ao Grupo de Pesquisa Fundamentação Ética dos Direitos Humanos/Linha de Pesquisa Sociedade, Novos Direitos e Transnacionalização do PPG em Direito da UNISINOS e vinculado ao Grupo de Pesquisa Teria Jurídica no Novo Milênio/Linha de Pesquisa Teoria Jurídica, Cidadania e Globalização do Curso de Direito da UNIFRA.

2 Doutor em Direito, Professor no Programa de Pós-graduação em Direito da UNISINOS, Decano da Escola de Direito da UNISINOS, Líder do Grupo de Pesquisa Fundamentação Ética dos Direitos Humanos/Linha de Pesquisa Sociedade, Novos Direitos e Transnacionalização do PPG em Direito da UNISINOS, [email protected]

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caracterização da investigação antropológica bem com a sua possível contribuição ao conceito de dignidade humana; [iii] proposta de uma compreensão internalista-externalista do conceito de dignidade humana a partir da antropologia kantiana. Fruto da investigação antropológica da pessoa humana enquanto totalidade, a pesquisa pode identificar notas de um enfraquecimento da cisão entre natureza e cultura, ainda que preservada a distinção entre a coisa em si e o fenômeno.

Palavras-chave

Teoria do direito; Ética; Immanuel Kant; Dignidade Humana.

Abstract

The article involves the study of human dignity between Ethics and Anthropology, delimited in the philosophy of Immanuel Kant. To the research, it is important demonstrate the concept of the man starting from the comunity and established relationships, givin up, in the externality, a new condition of analysis of man. The hypothesis of the research is that the construction of the dignity concept requires the confrontantion of the subject with the externality, being essential to the demonstration – at least at the level of thought experiment – an anthropological investigation able to understand the man in the context of society and culture. In this perspective, the objective is to walk the path traced by philosophical anthropology and to verify if it may provide support for understanding the concept of human dignity, passing by the following points: [i] analysis of the proposal for an ethical theory in modernity; [ii] characterization of anthropological research as well as its possible contribution to the concept of human dignity; [iii] propose an internalist-externalist understanding of the concept of human dignity from the Kantian anthropology. Being a product of the anthropological investigation of human person as a totality, this research can identify signs of a weakening of the split between nature and culture, even if it is preserved the distinction between the thing itself and the phenomenon.

Key words

Theory of Law; Ethics; Immanuel Kant, Human dignity.

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1. introdução

A pergunta central sobre o que é o homem (“Was ist der Mensch?) é uma pergunta filosófica que irá fundar a antropologia, tornando-se, por tal fundamen-to de origem, desde sempre filosófica. Sob tal viés, a empreitada que se desenha busca encontrar externalidades que permitam dialogar com o fundamento do agir humano, utilizando-se, no presente estudo, como marco filosófico, a obra Antropologia do Ponto de Vista Pragmático, de Immanuel Kant.

Elegendo-se como tema a compreensão da dignidade humana a partir da antropologia filosófica, o trabalho restará delimitado nos escritos sobre Ética e Antropologia de Immanuel Kant, extraindo-se o conceito de homem a partir de um estudo do sujeito e de suas relações, dando-se a partir da experiência uma condição de análise do homem que completa os estudos sobre o campo dos deveres, respondendo-se a intrincada questão de quem é esse homem que vive em comunidade e que se move livremente inscrito numa realidade em parte deontológica. O trabalho intercepta o homem na perspectiva da Antropologia Filosófica, não sendo objeto da análise no presente estudo outros campos da Antropologia (Hermenêutica, Sociológica, etc.), investigando-se como e em que medida a antropologia filosófica poderá contribuir para a compreensão do conceito de dignidade humana.

A hipótese da pesquisa é a de que a construção do conceito de dignidade exige a confrontação do sujeito com a externalidade, sendo essencial à demonstração – ao menos em nível de experimento mental – uma investigação antropológica capaz de compreender o homem no contexto da sociedade e da cultura, considerando o tempo e o espaço onde a subjetividade humana constitui e projeta a si mesmo e se constitui como humanidade.

Nessa perspectiva, o objetivo é o de percorrer o caminho traçado pela an-tropologia filosófica e verificar se poderá fornecer subsídios para a compreensão do conceito de dignidade da pessoa humana passando, pelos seguintes pontos: [i] análise da proposta de uma teoria ética na modernidade; [ii] caracterização da investigação antropológica bem com a sua possível contribuição ao conceito de dignidade humana; [iii] proposta de uma compreensão internalista-externalista do conceito de dignidade humana a partir da antropologia kantiana, identificando notas de uma ultrapassagem da cisão entre ser e dever ser na

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ideia de complementariedade do sistema deontológico a partir da investigação antropológica da pessoa humana e da humanidade.

Para aclarar o propósito de realizar uma abordagem externalista da dignidade da pessoa humana, a partir da antropologia, uma ilustração poderá contribuir. O processo de orientação, inicialmente desenvolvido em treinamentos militares e tendo se tornado um esporte na atualidade, exige uma carta topográfica ou mapa, uma bússola e alguém que entenda as representações do mapa e que seja capaz de relacionar com o ambiente externo, sendo que por menor que seja a escala da carta nunca será o terreno representado, ou seja, o processo relacional e a capacidade de decodificar símbolos é que permite que se percorra um caminho tornando possível o alcance dos objetivos, uma precompreensão como possibilidade de compreensão. De outro lado, o exercício do esporte “orientação” exige que o praticante saiba exatamente onde se encontra para, a partir da identificação do lugar que ocupa, tenha condições efetivas de perseguir novos destinos.

A busca da resposta epistemológica sobre o sujeito permite uma trajetória mais segura na densidade do campo deontológio e, na analogia com a ilustração, significa encontrar o mote que permitirá uma orientação para realizar o escrutínio e dar conta do objetivo da pesquisa. Seguindo a ilustração, uma situação peculiar ocorre quando, num dado momento, o praticante se perde e não sabe onde se encontra. Em tal situação, busca no horizonte pontos que identifique na carta e, num processo de extração de ângulos, traça na carta duas retas que irão interseccionarem num determinado ponto. O ponto de intersecção encontrado na carta é o lugar onde se encontra no terreno. A partir da identificação do lugar, a possibilidade de caminhar e encontrar objetivos se torna novamente factível.

A desorientação dos juristas é evidente, em especial pelo fato que se debatem no plano do direito positivo e dos princípios, esquecendo-se de buscar a coerência que, em tese, pode ser encontrada nos fundamentos dos chamados direitos humanos que, em sendo possíveis, devem deixar pistas no mundo multifacetado da experiência.

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2. o contexto onde as preocupações teóricas se tor-nam relevantes: a universalidade dos direitos humanos como uma questão jurídica de fundo

Tem sido frequente a busca de um conceito universal dos direitos a fim de evitar o relativismo, mas a questão torna-se um desafio em razão do pluralismo cultural e da existência de sistemas culturais fechados. Ao abordar o tema Vicente de Paulo Barreto considera que a possibilidade de universalização dos direitos humanos é das indagações mais relevantes na teoria do direito, levantando a seguinte questão: “os direitos humanos constituem-se numa categoria ético-jurídica com abrangência universal? Ou para serem considerados como direitos devem responder somente às exigências de eficácia e validade, garantidas por um estado soberano?” (BARRETO, 2013, p. 240)

Boaventura de Souza Santos aponta os riscos de os direitos humanos uni-versais em abstrato operarem como uma forma de globalização hegemônica. De acordo com o autor, ao conceber os direitos humanos como universais – da forma como tem sido feito – estes tenderão a ser um instrumento de “choque de civilização”, ou seja, como “arma do Ocidente contra o resto do mundo [...], como cosmopolitismo do Ocidente imperial prevalecendo contra quaisquer concepções alternativas de dignidade humana”. (SANTOS, 2010, p. 13)

Para tratar da questão atinente a universalização dos direitos humanos, faz-se necessário definir o que seriam “direitos humanos”. Na obra “A era dos direitos” Norberto Bobbio (2004) alerta para a dificuldade de construir uma definição de direitos humanos que não seja simplesmente tautológica, que não se restrinja ao estatuto desejado ou proposto para esses direitos sem mencionar o seu conteúdo ou que tratando do conteúdo não introduza termos avaliativos que são interpretados de acordo com a ideologia do interprete. Para Bobbio nenhum dos três tipos de definições “permite elaborar uma categoria de direitos do homem que tenha contornos nítidos” (BOBBIO, 2004, p. 13). A vagueza da expressão “direitos do homem” é uma das dificuldades apontadas por Bobbio para a busca por um fundamento absoluto para tais direitos e, na pesquisa, sinaliza para a relevância de uma investigação antropológica da pessoa humana.

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Entretanto, a busca pelos fundamentos dos denominados “direitos humanos” é uma preocupação compartilhada por diversos autores que abordam a teoria dos direitos humanos. De acordo com Vicente de Paulo Barreto (2013, p. 240):

Quando falamos de uma teoria dos direitos humanos, podemos estar fazendo referência a dois tipos de análise: em primeiro lugar, à teoria jurídica dessa categoria de direitos, que analisa o conjunto de tratados, convenções e legislações sobre o tema, bem como a regulação dos mecanismos, internacionais e nacionais, garantidores dos direitos fundamentais da pessoa humana; ou então, podemos estar tratando, também, da análise dos chamados fundamentos desses direitos, tema que se destaca na filosofia social e política contemporânea.

O problema dos fundamentos dos direitos humanos é essencial na medida em que a eficácia desses direitos está ligada a sua fundamentação. Barreto afirma que a fundamentação dos direitos humanos foi por muito tempo deixada de lado por ser considerada questão metajurídica, irrelevante para a prática jurídica. A partir da reconstrução dos direitos humanos que passam a ser “considerados como conjunto de direitos que expressam valores da pessoa humana e que se encontram em contínua gestação” (BARRETO, 2013, p. 250) recupera-se a dimensão fundacional dessa categoria de direitos. Para Barreto (2013, p. 251):

O desafio da reflexão sobre os fundamentos dos direitos humanos reside, em última análise, na busca de uma fundamentação racional, portanto universal, dos direitos humanos, e que sirva, inclusive, para justificar e legitimar os próprios princípios gerais de direito.

Carlos Santiago Nino (2005) destaca que a análise conceitual dos direitos humanos e a busca por uma fundamentação são tarefas distintas: a primeira deve ser prévia e independente da valoração dos fenômenos referidos pelo conceito em questão. Entretanto, admite o autor que após estabelecer uma caracterização provisória inicia-se um processo de ajustes mútuos entre a elucidação conceitual e a elaboração de uma teoria de fundamentação do conceito.

Importante ainda analisar a positividade dos direitos humanos na medida em que as definições levam em consideração a construção histórica do conceito “direitos humanos”. A Declaração dos Direitos do Homem das Nações Unidas

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de 1948 estabelece um conjunto de direitos mínimos e mecanismos de controle garantidores dos direitos consagrados pelos estados signatários da Declaração. Barreto assevera que não houve um consenso entre os membros responsáveis pela elaboração do projeto da referida declaração quanto aos fundamentos teóricos dos direitos humanos, mas apenas quanto aos critérios mínimos aceitos em diferentes sistemas jurídicos nacionais (BARRETO, 2013, p. 34). Segue apontando que “a Declaração do Homem das Nações Unidas foi enriquecida por pactos políticos e sociais, que acrescentaram número significativo de direitos políticos e sociais ao documento de 1948” (BARRETO, 2013, p. 242).

Para Boaventura é preciso superar o debate sobre universalismo e relativismo cultural, propondo-se para isso um diálogo intercultural sobre preocupações convergentes de universos culturais distintos. Ainda, afirma o autor que todas as culturas possuem concepções de dignidade humana embora nem todas a concebam em termos de direitos humanos. De acordo com Boaventura de Souza Santos:

[...] todas as culturas são incompletas e problemáticas nas suas concepções de dignidade humana. A incompletude provém da própria existência de uma pluralidade de culturas, pois se cada cultura fosse tão completa como se julga, existiria apenas uma só cultura. [...] Aumentar a consciência de incompletude cultural é uma das tarefas prévias à construção de uma concepção emancipadora e multicultural de direitos humanos. (SANTOS, 2010, p. 45).

Percebe-se que para o autor uma possível solução para a questão passa por uma concepção intercultural das políticas emancipatórias de direitos humanos. De outro lado, para Barreto (2013, p. 243) é possível a construção de um argumento universalista que não fique “prisioneiro do monismo moral” a partir do reconhecimento de que é possível chegar a algumas características comuns dos seres humanos sem abstrair das realidades sociais. Para encontrar essas características comuns – que servirão de “fundamento para o estabelecimento de uma sociedade sedimentada nos laços de solidariedade” – é preciso realizar um diálogo intercultural.

Ao abordar o conflito entre o universalismo dos direitos fundamentais e a garantia do multiculturalismo, Luigi Ferrajoli apresenta um dos seus critérios

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axiológicos para a definição de direitos fundamentais como solução: “o papel de tais direitos como lei dos mais fracos” (FERRAJOLI, 2011, p. 106). Segundo o autor o critério por ele definido serve para proteger as pessoas contra as suas próprias culturas, defendendo os oprimidos contra as culturas opressivas. Da mesma forma que o universalismo dos direitos fundamentais protege os indivíduos, pois se tratam de direitos pertencentes a ele, é essa universalidade que garante o multiculturalismo, na medida em que a liberdade religiosa e de consciência – primeiro direito de liberdade historicamente afirmado - é essencialmente um direito cultural. (FERRAJOLI, 2011).

Analisando a posição adotada pelos autores, constata-se que não há um consenso sobre a possibilidade de universalização dos direitos humanos numa sociedade multicultural, sendo objeto, como contribuição no presente ensaio, uma investigação dos direitos humanos a partir da dignidade humana no seio da filosofia kantiana.

3. a concepção de dignidade da pessoa humana em kant: a relação entre liberdade, autonomia e igualdade na perspectiva de uma ética metafísica

Apropriado, então, realizar uma passagem pelo conceito de dignidade humana na filosofia kantiana para, na sequencia, tratar da Antropologia. Para Kant3 a razão possui limites e só uma filosofia crítica (entenda-se: uma filosofia que suspenda provisoriamente juízos e adote a crítica como um procedimento) poderia investigar os limites do conhecimento humano possível (a crítica - que em si mesmo é um procedimento cético - para evitar um ceticismo que negue qualquer uso válido da razão). Assim, nasce a filosofia crítica conformada na obra Crítica da Razão Pura, investigando o conhecimento humano e seus limites, porém, apenas quando trata da razão prática é que se dedica ao campo dos deveres e seus princípios e fundamentos.

3 A filosofia transcendental vai investigar o conhecimento a priori válido, investigando o sujeito (giro Copérnico da filosofia transcendental), abstraindo o objeto e focando a investigação no sujeito (válido para o estudo da teoria dos deveres). Partindo da premissa que todo conhecimento é constituído por juízos e, ainda, os juízos sintéticos acrescentam um predicado ao sujeito que não poderia ser extraído por análise e, ainda, considerando que toda a ciência pretende ser universalmente válida, esse juízo tem de ser a priori.

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Na crítica da Razão Pura, obra central da epistemologia kantiana, Kant anuncia que a Filosofia como fonte de “legislação da razão humana possui dois objetos, natureza e liberdade, contém, portanto, a lei natural como também a lei moral, inicialmente em dois sistemas separados, mas finalmente num único Sistema Filosófico”. (KANT, 1994, p.408).

Já no campo da razão prática, a Fundamentação da Metafísica dos Costumes irá trazer uma definição de liberdade como propriedade da vontade e como condição necessária da relação causal das condutas no mundo perpetradas por seres livres e racionais. A causalidade livre implica na ação que segue uma lei fornecida pela própria vontade, em respeito à faculdade humana da autonomia da vontade. Em Kant, uma vontade livre age sob o império da moralidade e, concomitantemente, é uma vontade legisladora universal que mantém a liberdade com unidade sintética a unir racionalidade e moralidade, pois para Kant “[...] uma vontade livre e uma vontade sob leis morais é uma e a mesma coisa.” (KANT, 2009, p. 349).

Na Crítica da Razão Prática, Kant trata a liberdade como pedra angular de todo o edifício do Sistema da Razão Pura, a saber: “se a lei moral não fosse antes nitidamente pensada na nossa razão, nunca nos consideraríamos autorizados a admitir algo como a liberdade.” (KANT, 1994, p. 2). Segue demonstrando a reciprocidade dos conceitos: “[..] se não houvesse nenhuma liberdade, de modo algum se encontraria em nós a lei moral.” (KANT, 1994, p. 2). Assim a liberdade é a ratio essendi da lei moral e esta se constitui na “ratio cognoscendi” da liberdade.

Sabidamente o sistema filosófico kantiano se ergue a partir da dicotomia da coisa em si (noumeno) e da sua representação no sujeito (fenômeno). De forma semelhante, a ética irá se filiar a essa dicotomia, apresentando uma parte formal e outra pragmática, algo já anunciado desde as primeiras linhas da Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Respeitando o esquematismo, Kant constrói o conceito de pessoa humana na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) e na Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático (1798). A unidade das duas obras também se dá em torno do conceito de liberdade, enquanto na primeira são estabelecidos os princípios morais não assujeitados empiricamente, ou seja, fundados na razão pura e na concepção de um sujeito autônomo; na

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Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático4, a experiência é tomada como fio condutor até chegar ao conhecimento interior do homem inserido num contexto – como cidadão do mundo – portanto com deveres na ordem privada e pública. Dessa forma, a Antropologia gira em torna da questão sobre o que o homem faz de si mesmo, ou pode e deve fazer como ser que age livremente5 (KANT, 1993), remetendo a uma reflexão das responsabilidades do ser humano como cidadão do mundo. Assim, ao ser humano dotado de liberdade, conceituada na Fundamentação como “a faculdade de se determinar a agir como inteligência, por conseguinte, segundo leis da razão independentemente de instintos naturais” (KANT, 1974, p. 253), passa a ser exigível, por força da autonomia do sujeito moral kantiano, um agir livre e responsável com o mundo que o cerca.

Percebe-se, também, que o conceito de direito em Kant também envolve uma implicação moral. Para Kant o conceito de Direito envolve o “conjunto de condições por meio do qual o arbítrio de um pode estar em acordo com o arbítrio do outro segundo uma lei universal da liberdade” (KANT, 1989, p. 479), trazendo como critério de aferição de uma ação justa aquela “ação que pode ou onde a máxima possa coexistir a liberdade de arbítrio de cada um com a liberdade de todo mundo segundo uma lei universal”. (KANT, 1989, p. 479). A necessidade da coexistência da ação com os demais sujeitos em comunidade (outras vontades), ao lado da compatibilidade da máxima da vontade com uma lei universal, permite a inferência de uma relação do dever jurídico com o dever moral envolvidos pela necessidade de universalização. Refere Kant que ao “dar-me uma máxima de agir segundo o direito é uma exigência que me coloca no domínio da Ética” (KANT, 1989, p. 479) e, ao lado do estudo da antropologia prática kantiana (diga-se: obra ainda pouco explorada no conjunto do estudo sobre eticidade no filósofo), conformam-se em indicativos de que a relação do sujeito em comunidade é condição sine qua non da externalidade das ações morais e jurídicas que irão permitir um exame de fora para dentro.

4 Segundo Loparic, “o objeto da antropologia pragmática é [...] o homem ou a natureza humana compreendida como o conjunto de condições subjetivas – faculdades, predisposições, propensões, tendências, caráter etc. –, favoráveis ou desfavoráveis [à] execução de regras tanto teóricas como práticas, e, dentro desse último grupo, de regras técnico-práticas e moral-práticas” (LOPARIC, 2007, p. 86).

5 Tradução com apoio da versão francesa “Anthropologie du Point de Vue Pragmatique”.

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Ademais, o princípio do direito também se apresenta sob a forma imperativa, qual seja: “Age externamente de tal forma que o livre uso do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal” (KANT, 1989, p. 479), pressupondo a ideia de moralidade, podendo-se concluir que as leis jurídicas “[...] resultam de uma especificação das leis morais pois elas são as leis morais que pressupomos válidas para todos [...] leis jurídicas impõe uma obrigação moral, válida enquanto tal para todos como um imperativo categórico [...]” (ALMEIDA, 2006, p. 221). Diz-se, então, que o sistema kantiano que inicia com a investigação do conhecimento humano possível na Crítica da Razão Pura, estabelece originalmente o conceito de liberdade e passa a relacionar com vontade e autonomia, apoiando reciprocamente a compreensão e a unidade da ordem dos deveres, tanto moral quanto jurídico.

Como moralidade e dignidade são conceitos que se retroalimentam, avança a pesquisa na direção de demonstrar a centralidade do conceito de dignidade também para a compreensão do direito de modo geral e dos direitos humanos em especial, apropriando-se de uma breve fixação histórica que o recolocam no mundo da vida

Os direitos humanos surgem como um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências de dignidade, liberdade e igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos, nos planos nacional e internacional. (PEREZ LUÑO, 1991, p. 48)

Segundo o PEREZ LUÑO (1991) os direitos humanos concretizam as exigências de dignidade, liberdade e igualdade humanas, sendo que tais exigências (se exigência, entenda-se como dever), do ponto de vista da reflexão filosófica, implicam na busca de uma resposta que fundamente o porquê de tais deveres, representada na tradição filosófica por apelos à experiência ou à razão.

O campo da razão prática (vontade) e a sua crítica irão exigir um esforço que parte de reflexões primeiras nas “Preleções sobre Ética” quando traz6

6 Rendo homenagens ao Professor Cristian Hamm do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria pelas aulas de alemão à época do mestrado e por textos que permitiram o apoio na intrincada leitura de Kant.

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Se julgo, pelo entendimento, que a ação é moralmente boa, falta ainda muito para eu realizar esta ação que julguei assim. Mas se esse juízo me leva a realizar a ação, então isso é o sentimento moral. O entendimento pode, decerto, julgar, mas dar a este juízo de entendimento uma força que faz dele um móbil capaz de determinar a vontade a executar a ação, isso é a pedra filosofal. (KANT, 1990, p. 54).

A investigação prima pela unidade entre a subjetividade do móbil (Trieb- feder – literalmente “mola propulsora”) e o motivo (Bewegungsgrund – literal-mente “razão movente”), que irá, no desenvolvimento da filosofia prática de Kant, encontrar a unidade entre sentimento e razão na forma de um imperativo.

Na transição da filosofia moral comum para a metafísica dos costumes, Kant (2009) vai concluir que o valor moral não está nas ações visíveis, mas nos princípios íntimos que movem as ações, ou seja, numa razão que determina a vontade por motivos a priori.

Poder-se-ia questionar: onde essa razão pode ser encontrada? Em que con- siste essa metafísica dos costumes? Na representação pura do dever – um princípio objetivo constitutivo para a vontade – dá-se o nome de mandamento que se apresenta sob a forma de um imperativo7 onde se estabelece a relação entre a lei objetiva da razão com a vontade e, sendo categórico, apresenta uma ação como objetivamente necessária, sem relação com qualquer fim. (KANT, 2009).

No decorrer da obra Kant irá constatar que a moralidade é a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmo (legislador no reino dos fins), em outras palavras, a moralidade e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas que têm dignidade. Ainda, vale inferir que a moralidade requer autonomia8 e esta passa a ser fundamento e exigência da dignidade da natureza humana.

7 Age como a máxima de tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal (une – a priori – o princípio subjetivo da ação “móbil” com a fórmula objetiva da lei moral “motivo”). O ser racional passa a ser legislador universal e limitado o seu arbítrio pelo conceito de pessoa como “fim em si mesmo” – merecendo igual consideração e igual respeito. (KANT, 2009).

8 Princípio da autonomia: não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas no querer mesmo, como lei universal (proposição sintética – reconhecida “a priori”). (KANT, 2009).

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Para sustentar a autonomia da vontade e o imperativo categórico como necessários e dados a priori, ou seja, admitir um uso sintético da razão pura prática necessitaria que se entendesse a vontade como uma espécie de causalidade dos seres racionais (gera efeitos), sendo a liberdade uma a propriedade desta causalidade (permitindo a eficiência das relações, independentes de uma determinação natural ou estranha). Permanecendo uma antinomia (como o conceito de causalidade (vontade) pode ser descrita por leis?), passa a ser resolvida no âmbito da autonomia enquanto propriedade da vontade de ser lei para si mesma (a vontade e a representação9 da vontade se harmonizam, ou seja, tem-se a unidade entre “querer” e “dever”). Assim como há leis universais da natureza, a razão pode encontrar leis que regem a causalidade da vontade, sem afetar a autonomia como condição de moralidade e de dignidade.

Demonstrado minimamente a relação entre dignidade e moralidade no desen-volvimento da Fundamentação, o trabalho avança na direção da antropologia kantiana, buscando verificar como a pessoa humana passa a ser considerada numa perspectiva de análise pragmática.

4. da transição da ética metafísica para a antropo-logia pragmática: o dever no homem e na huma-nidade

Encontra-se assente nos escritos dos comentadores que o sistema filosófico kantiano se constitui a partir da dicotomia entre noumêno (coisa em si) e fenômeno (aparição). Com isso, operam-se de uma única vez duas rupturas: [i] a ideia de conhecimento inato derivado de uma concepção cartesiana de mundo e [ii] a identidade entre o conceito e o correspondente empírico. Dessa forma se institui um conhecimento que se dá por representação, ou seja, há um signo para tratar da representação que tenho do mundo que se me apresenta, nas

9 Segundo Kant, em todo o conhecimento há uma relação dupla, considerando o objeto e o sujeito, distinção clássica do pensamento da modernidade. Do ponto de vista do objeto o conhecimento se relaciona com a representação, do ponto de vista do sujeito, com a consciência. Ocorre que a consciência é uma representação de que uma outra representação está em mim (eine Vorstellung, dass eine Andre Vorstellung in mir ist). Como a consciência é condição universal de todo o conhecimento, válido inferir que o conhecimento se dá num campo representacional. (KANT, 2003, p. 69).

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palavras do filósofo há a representação de que outra representação está em mim. De forma semelhante, embora para muitos comentadores não integre o grande sistema kantiano, a antropologia10 irá se filiar a esse processo dual, dado que Kant elabora seu conceito de pessoa humana, como já referido, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) e na Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático (1798).

Enquanto na Fundamentação Kant pretende estabelecer o fundamento da moralidade, afastando-se dos elementos acidentais, na Antropologia de um Ponto de Vista Pragmática, a experiência passa a desempenhar um papel importante, pois o filósofo parte da externalidade para chegar ao conhecimento interno do homem, tendo em ambas às obras a liberdade como condição necessária para as reflexões levadas a termo.

Na Antropologia Pragmática há certo estudo semiológico insipiente, pois enquanto moral aplicada dialoga com a fundamentação e atribui sentido a partir de um homem inserido no mundo, passando a pessoa humana a ser compreendida como fim em si mesma (FMC) e como um ser em evolução em face dos fenômenos e passando a se reconhecer como cidadão do mundo (AP).

Nesse ponto, vale registrar o interesse na Antropologia de Kant em de-monstrar a necessidade da moralidade na mundanidade, e não propriamente justificar o imperativo categórico desenvolvido na sua fundamentação, fican-do claro na leitura de LOUDEN quando afirma “The second part of ethics [practical anthropology] is not about deriving duties from the categorical imperative, but rather about making morality efficacious in human life”. (LOUDEN, 2000, p. 13)

10 Em verbete sobre Antropologia, encontra-se: “Exposição sistemática dos conhecimentos que se têm a respeito do homem. Nesse sentido geral, a Antropologia fez e faz parte da filosofia, mas, como específica e relativamente autônoma, só nasceu em tempos modernos. Kant distinguiu a Antropologia fisiológica, que seria aquilo que a natureza faz do homem, da Antropologia pragmática, que seria aquilo que o homem faz como ser livre, ou então o que pode e deve fazer de si mesmo (Antr., pref.). Essa distinção permaneceu, e hoje se fala em Antropologia física que considera o homem do ponto de vista biológico [...] e antropologia cultural, que considera o homem nas características que derivam das suas relações sociais.” (ABBAGNANO, 2012, p. 74).

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A eficácia de uma moralidade no seio da humanidade irá se dar a partir de princípios regulativos, que são em si mesmo pragmáticos11, podendo-se inferir que o comportamento do homem tende a respeitar certos limites em nome do progresso da própria humanidade, estando presente - como tendência ao longo da obra - um otimismo quando, mesmo com os percalços que a humanidade encontra no percurso da história, Kant projeta a responsabilidade das gerações na construção conjunta do edifício em que se constitui a humanidade.

Nessa direção, importante registrar que a antropologia de um ponto de vista pragmático ao trazer a preocupação do que o homem “faz ou pode e deve fazer de si mesmo” (aus sich selber macht, oder machen kann und sol) extrapola o âmbito individual, pensando na espécie humana como um todo, estando claramente ingressando na totalidade que atribuem sentido às ações humanas singulares.

No ponto, vale a citação de Reinhard Brand

O homem, cuja destinação se pergunta na Antropologie e em outros escritos relacionados a ela, não é o indivíduo singular, mas decididamente a espécie. Os animais alcançam nos exemplares individuais o fim da sua existência; os homens somente na humanidade em sua totalidade. (2012, p. 25)

Num dos textos relacionados à antropologia kantiana (A paz pérpétua), a preocupação de Kant também se evidencia numa perspectiva de totalidade, ou seja, trata o homem como cidadão do mundo e que, enquanto tal, deve se render e pode formular juízos a partir da experiência e das relações, sempre com o cuidado da advertência inerente a uma antropologia pragmática, ou seja, “[...] o que ela ensina está no princípio da universalidade empírica; ela não funda as estruturas e afirmações universais e também aprióricas [...]” (BRANDT, 2, p. 8).

Embora não seja possível criar um universal a partir da inserção do humano no mundo, sendo o mundo sensível um atrativo aos desejos e inclinações

11 A diferença entre pragmático e prático se aclara na diferença entre princípios constitutivos e princípios regulativos, sendo que os princípios constitutivos “têm a particularidade de não dizerem respeito aos fenômenos e à síntese da sua intuição empírica, mas simplesmente à existência e à relação de uns com os outros, com respeito a esta existência” (CRP, B221, p. 209), e os princípios regulativos “entendem dever submeter a regras a priori a existência dos fenômenos. Como esta não é susceptível de construção, esses princípios só poderão referir-se à relação de existência, e ser princípios simplesmente regulativos”. (CRP, B222, p. 210).

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humanos que, invariavelmente, não se harmonizam com o fundamento moral, de outro lado, é no exercício das humanidades que haverá a aplicação (ou não) dos princípios morais, em face da circulação das virtudes na vida em comunidade12.

Nessa linha, a antropologia passa a ter um papel na filosofia moral kantiana, pois é na vida em sociedade que as virtudes se objetivam e passam a gerar uma crença na objetividade do valor moral, não deixando ao abandono tudo o que é fruto da moralidade, nesse sentido, os próprios direitos humanos enquanto corolários da dignidade.

Retomando a questão da relação entre o nível fundacional e o da aplicação, entre a fundamentação metafísica e a antropologia pragmática, o próprio Kant permite a relação quando diz,

A lógica não pode ter parte empírica, isto é, uma parte em que as leis universais e necessárias do pensamento se assentariam em razões tomadas à experiência; pois, de outro modo, não seria lógica, isto é, um cânon para o entendimento ou a razão, que vale em todo o pensar e tem de ser demonstrado. Ao contrário, tanto a Filosofia natural, quanto a Filosofia moral podem ter cada qual a sua parte empírica [...] (KANT, 2009, p. 63)

Dessa forma, Kant assume a empiria com parte da ética enquanto campo de aplicação desta em prol do desenvolvimento da humanidade, inobstante a construção de uma teoria fundada a priori, resta certa a necessidade da ligação entre o racional e o empírico quando divide a ética em moral propriamente dita e noutra parte que designa como pratische Antropologie (KANT, 2009, p. 65).

Na filosofia kantiana o logos passa a ter um papel essencial, estendendo-se à filosofia prática (moral e direito), dado que uma metafísica dos costumes irá se purificar dos dados empíricos na dedução de um postulado racional (imperativo

12 Colho um exemplo próprio que une fundamento da moral e aplicação e pode ser sintetizado na seguinte passagem: Decido interromper o trabalho de produção do presente texto para realizar uma caminhada no parque (atividade física) e, com esta decisão, resta estabelecida a congruência entre a ação e o dever moral de preservação da vida (saúde). Assim, embora o fundamento da moral se encontre na razão, percebe-se que é na externalidade do mundo (campo da antropologia) que se efetiva a ação moral (campo da aplicação) e, na análise antropológica da ilustração, mesmo sendo uma ação individual, esta se reflete como exemplo e circula enquanto virtude com uma tendência de universalização.

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da moral ou princípio do direito), numa relação onde se vislumbra uma mesmidade entre racionalidade e moralidade (dito de outra forma: a ação que não tiver como móbil um dever aceito livremente por um ser racional e autônomo, embora circunscrito num universo sujeito a desejos e inclinações, não é uma ação racional e, portanto, não se constitui numa ação moral).

Embora o objetivo do artigo seja a investigação da dignidade no âmbito da moralidade na filosofia kantiana, importante trazer a crítica que em algum momento a teoria moral irá receber. LIMA VAZ (1995) analisa a situação da ética na cultura contemporânea realizando uma sucinta análise da sociedade ocidental nos últimos cinquenta anos, trazendo a formação das racionalidades éticas modernas e, ao pensar a ética contemporânea e seus problemas propõe uma solução através de um retorno aos princípios da ética clássica.

LIMA VAZ (1995, p. 70) chama a atenção para uma questão central desde os primeiros passos da história da ética: é a ética relativizada pelo ethos ou é o ethos universalizado pela ética? Na questão estão os pressupostos Sofistas e Socráticos, sendo a segunda parte que possibilitou na metafísica clássica a for-mulação de uma ciência do ethos, sendo Sócrates considerado o fundador de uma ciência moral e, após, no idealismo de Platão, a Ética se universaliza e anda pari passu com a metafísica e suas primeiras noções (o ser, o verdadeiro, o bom). O giro da modernidade, segundo o Autor, desloca a Ética do pólo metafísico para o pólo lógico e o sujeito passa a ser o legislador, identificando de imediato uma dificuldade insuperável na ética moderna: “a passagem do eu ao nós no exercício da vida ética, uma vez que, no seu existir concreto, o agir ético individual tem lugar necessariamente na realidade objetiva do ethos, ou seja, na vida ética de uma comunidade histórica.” (LIMA VAZ, 1995, p. 71).

Como o ethos é histórico, a ética moderna se torna descontextualizada e a comunidade ética enfraquece, passando-se a experimentar (chegando à con-temporaneidade) o predomínio do lógico e do operacional em detrimento do sentido, nas palavras do Autor houve “a ocultação do pólo metafísico da Razão” (LIMA VAZ, 1995, p. 78) o que acaba arrastando as racionalidades éticas para um niilismo dos valores. A solução encontrada por LIMA VAZ, citando Robert Spaemann quando este diz “Es gibt keine Ethik ohne Metaphysik” (Não há nenhuma ética sem metafísica), indica que a alternativa para o desconcerto

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ético do nosso tempo passa pelo reencontro da ética clássica seguindo a trilha platônico-aristotélica.

O que Lima Vaz aponta não é o que o trabalho defende, embora a crítica seja apropriada para inferir o que foi realizado a partir do projeto kantiano. Entende-se que um retorno a Kant não autoriza a dizer que houve “a ocultação do pólo metafísico da Razão”, pois ainda que se trate de uma ética deontológica, em Kant há uma valorização do humano a partir dos conceitos de liberdade, dignidade, autonomia, ao lado de uma consideração e respeito à pessoa humana no con-texto da cultura e de uma sociedade cosmopolita ainda não experimentado.

Nesse sentido, redimensionando a crítica de Lima Vaz sem diminuir a importância da reflexão, revisitar a filosofia kantiana e os déficits contemporâ-neos parecem uma tarefa inconclusa e que sempre pode trazer uma contribuição prática e pragmática ao filósofo moral e ao jurista interessado nas questões referentes aos direitos humanos enquanto direitos morais.

Em arremate, caberia uma ligeira passagem pela doutrina do Direito kantiana. Para Kant dever moral e dever jurídico não se diferenciam pela substância. Para a ação moral o homem age por dever e para o Direito conforme o dever e para ambos os casos o dever só é cumprido porque derivada da vontade como razão pura prática, sob o imperativo categórico da razão13.

Na busca do conceito de Direito, Kant afirma a impossibilidade de encontrá-lo pela via empírica, apenas com a observação do direito positivo. Para ele o grande erro dos juristas de até então foi a procura do conceito na manifestação do Direito, enquanto legislação positiva, quando a procura deveria ser feita nos princípios a priori da razão pura prática.

Em Kant são três os elementos que compõe o conceito de Direito:

“em primeiro lugar, este conceito diz respeito somente à relação externa e, certamente, prática de uma pessoa com outra, na medida em que suas ações, como fatos, possam influenciar-se reciprocamente; em segundo lugar, o conceito do Direito não

13 E esta assertiva que se faz é válida mesmo que o direito possua um princípio fundante universal e a moral um imperativo categórico, porque o direito natural racional de Kant quer a legislação externa em correlação com o princípio do direito.

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significa a relação do arbítrio como o desejo de outrem, portanto com a mera necessidade (Bedürfnis), como nas ações benéficas ou cruéis, mas tão só com o arbítrio do outro; em terceiro lugar, nesta relação recíproca do arbítrio, ao fim de que cada qual se propõe com o objeto que quer, mas apenas pergunta-se pela forma na relação do arbítrio de ambas as partes, na medida que se considera unicamente como livre e se, com isso, ação de um poder conciliar-se com a liberdade do outro segundo uma lei universal” (KANT, 1989, p. 232, tradução nossa)

Ora, mesmo que o fundamento a priori do direito e da moral se encontrem no âmbito da filosofia prática, ou seja, dependentes de uma postulação meta-física, a toda evidência o ethos necessita de relação, de um viver em comunidade, de um ponto de vista pragmático, sendo importante ao estudo do campo deontológico a contribuição dos estudos de antropologia que interceptam o homem enquanto humanidade, que perguntam pela singularidade humana que sempre, até mesmo numa perspectiva essencialmente lógica, é a unidade de uma totalidade. Na antropologia kantiana há esta preocupação com a hu-manidade, com a totalidade, sem perder de vista o homem que se abre ao espaço do “encontro” onde respeito, igualdade, moralidade e dignidade, afloram como valores éticos e jurídicos que permitem que se projete um horizonte favorável ao homem enquanto humanidade.

5. conclusões

A título de notas finais, entende-se que a Antropologia kantiana fecha o traçado a partir da reflexão sobre o lugar da aplicação da moralidade, onde homem e humanidade passam a ter uma correspondência enquanto campo de significação dos juízos morais.

Alguns resultados puderam ser alcançados e passam a ser descritos:

1º A questão da universalidade dos direitos humanos é uma pauta inacabada e, para contextualizar a pretensão de totalidade, no primeiro capítulo foi apresentada uma pequena amostragem sobre o debate contemporâneo a fim de demonstrar a atualidade da discussão que envolve o homem e a humanidade (fundamento da ação e a ação humana no mundo);

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2º A co-implicação entre a moralidade, humanidade e dignidade resta evidente quando Kant assume que a moralidade é a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmo (legislador no reino dos fins), em outras palavras, a moralidade e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas que têm dignidade;

3º Na Antropologia de Kant pode se encontrar a necessidade da moralidade na humanidade, como ocorrência no mundo, e não propriamente para justificar o imperativo categórico desenvolvido na fundamentação;

4º Percebe-se com a investigação Antropológica que a moralidade em Kant não se encontra num plano contrafactual, uma vez que há uma proposta metafísica que também é substancialista e que se desenvolve ao longo da Fundamentação e da Antropologia kantianas, dito de outra forma, embora existente um a priori fundante não há um apagamento do contexto onde a moralidade ingressa no mundo da vida.

Com tais considerações, pode-se responder afirmativamente a hipótese de que a construção do conceito de dignidade exige a confrontação do sujeito com a externalidade, levando o estudo da Antropologia a uma compreensão da singularidade humana e do conceito interacional homem-humanidade onde a moralidade efetivamente pode ser aplicada.

Por fim, embora ultrapasse os objetivos do presente trabalho, é possível in- ferir do estudo kantiano que o direito não se circunscreve a uma legislação externa, do tipo direito positivo, estando sujeito a um juízo de fundamentação racional e moral e, a análise antropológica do homem pode fornecer argumentos da ordem da “cultura” que indiquem a necessidade do dever jurídico dado pela externalidade que, como se disse, em termos de fundamentação, deve dialogar internamente com o dever moral e os conceitos engendrados no interior dessa mesma estrutura (liberdade, igualdade e dignidade)

6. referências

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FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p. 12-13.

SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma concepção intercultural dos Direitos Humanos. In: Sarmento, Daniel; Ikawa, Daniela; Piovesan, Flávia (coord.). Igualdades, diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 45.

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a metafísica no direito como antítese ao culturalismo relativsta: salvaguarda da

pessoa e da justiça à luz da filosofia clássica

Alessandro Severino Valler Zenni1

Resumo

O presente artigo visa considerar as bases metafísicas da pessoa e do direito na perspectiva clássica, sobretudo com o advento do cristianismo, como forma de combater o relativismo introjetado na cultura jurídica. O ser humano, na visão clássica, é potência que se transforma em ato, constante devir, um feixe de energias virtuosas que se põem, por liberdade, em hábitos, visando um fim bom, essa é a natureza das coisas. O direito, fundado na dignidade da pessoa humana, não pode preterir essa condição ontológica presente em cada um e todos os humanos, sob pena de relativizar e castrar o sentido de profundo alcance que o conceito de pessoa recruta. Como todo humano é projeto de personalidade, por questão de justiça, o direito e o Estado hão de estender, pelas normas postas, os valores implicados na natureza da condição humana, e decidir, na esfera concreta, por razão prática, devolvendo ao jurisprudente a solução do conflito, em detrimento do relativismo ético e da eficácia comprometida com o sistêmico.

Palavras-chave

Metafísica; Filosofia Clássica; Pessoa; Direito; Justiça.

Résumé

Cet article vise à examiner les fondements métaphysiques de la personne et la loi dans la perspective classique, surtout avec l’avènement du christianisme comme un moyen de lutter contre le relativisme introjecté dans la culture juridique. L’être humain, dans la vue classique, c’est que le pouvoir se transforme

1 Pós-doutor em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, professor do curso de Mestrado do Unicesumar.

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en acte, sans cesse devenir, un faisceau d’énergies vertueux qui se posent, pour la liberté, dans les habitudes, visant à une bonne fin, c’est la nature des choses. Le droit, fondé sur la dignité de la personne humaine ne peut pas omettre la présente ontologique dans chaque condition humaine, à défaut de relativiser et castrer le sens profond de la portée que la notion de recrues de la personne. Comme chaque personnalité humaine est de conception comme une question de justice, la loi et l’État sont d’étendre, mettre les normes, les valeurs implicites dans la nature de la condition humaine, et de décider sur la sphère de béton, pour des raisons pratiques, le retour à la solution jurisprudentielle le conflit au détriment du relativisme éthique et engagée à l’efficacité systémique.

Mots-clés

Métaphysique; Philosophie Éternelle; Personne; Droit; Justice.

1. introdução

A humanidade se apresenta contemporaneamente mergulhada em profundo nihilismo, geratriz de dramas coletivos que são interpretados como agruras da sociedade do risco. Contradições no plano econômico, político, religioso, social e tantos outros vão ganhando caris de conflitos e ao direito passa a recair a tarefa de, associado ao poder, possibilitar o funcionamento sistêmico diante de tamanhas complexidades.

O papel do direito, outrora comprometido com a justiça, atualmente, sob ideológica elevação da dignidade da pessoa humana, cinge-se à funcionalidade do sistema social, ainda que essa sociedade seja reconhecida como uma massa amorfa.

Se as possibilidades são multifárias, na sociedade do risco, a incumbência do poder é de selecionar certas condutas e permitir que o sistema comunicacional possa fluir a partir do jurídico, revitalizando-se, com a racionalidade atual, o positivismo neutral, que prevê a função social e a sanção no âmago na norma jurídica, e descarta todas as possibilidades de um ser tornar-se pessoa. Na esfera concreta, o procedimento subsuntivo tem como ponto de partida o apriorismo da norma como certeza dogmática, ou binômio funcional, e a renúncia do valor na

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motivação e intenção da ação. As funções são definidas pelo preceito e o que vêm a pelo é a adaptação do concreto ao formal do jurídico.

A proposta do artigo é de que os nominalismos consignados no instante coevo sejam exauridos pela ontologia da pessoa e, por consequência, que o direito renove seu compromisso com a distribuição da justiça, renunciando à missão funcionalista de fazer resiliências em nome da permanência do sistêmico, ainda que, para isso, sacrificando pessoas, malgrado por artifício de ideologias o jurídico incorpore a pessoa como fonte primeva.

Embora a hermenêutica hodierna detenha destacada finalidade de inter-pretar, compreender e significar as complexidades na relação sujeito e mundo circundante, ao abdicar da metafísica, preenche a linguagem de conteúdos os mais variáveis e flutuantes, ao sabor das exigências sistêmicas, nem que, para isso, tenha que renunciar e mesmo sacrificar valores que estão radicados no âmago do ser da pessoa e sem os quais se torna pálida e amorfa, não mais que uma expressão linguista de conteúdo cambiante.

No âmago da pessoa, uma metafísica reveste-lhe de direito natural que há de ser traduzido em norma posta. A hermenêutica comprometida com a condição humana há de ressurgir em substituição à tradução dos fins econômico-tecnológicos, e para que a pessoa brilhe como autonomia, responsabilidade e um feixe de relações espontâneas, à base de uma ordem socialmente justa.

Essa missão de decidir com justiça, reconhecendo pessoas nas relações in-tersubjetivas exige um método prudencial, que se compromete com a ética e submete a técnica, restituindo ao jus a arte em substituição à ciência e à pura lógica formal.

2. concepção de pessoa

Se a pessoa humana é o centro irradiador em torno do qual gravitam todos os demais valores da constelação axiológica2, indispensável que se proceda à averiguação do tegumento do conceito para se proceder à correta interpretação da fonte basilar do direito hodierno.

2 Miguel Reale. Lições Preliminares de Direito. 25ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2.001, p. 73.

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Com efeito, conceituar é permitir a fecundação da mente pela realidade, estando esta pressuposta no ato de produzir o conceito. O real do ser, por si, impede a acerba flutuação operada pelas ideologias3, a fortiori nos termos pessoa e justiça, cujas exigências sistêmicas as embotam e as cingem à função no contexto racional.4

Pessoa foi conceito desenvolvido nos albores do cristianismo, de sorte que prescindir da metafísica para procurar defini-la significa exaurir toda sua riqueza e compulsá-la no sítio da personalidade como capacidade funcional estabelecida pelo direito, algo notadamente ideológico.

Ser pessoa reluz como exigência da Trinitate5, questão altamente intrincada e que ganhou contornos de profusa teorização, gerando um Concílio específico, o de Nicéia, donde a investigação e as descobertas conduzem à infusão, no mesmo ser, de humanidade e divindade, refutando-se toda sorte de heresias, mormente o arianismo e monofisismo.6

Se as dificuldades lógicas de se conceber uma mesma substância formal do divino no ser do Cristo, humano, que com o Pai não se confunde, mas é portador do Deitas, no conceito de pessoa, registra a individualidade e a unidade, o mutá-vel e o absoluto, o histórico e o intemporal e anespacial.

E não é só, a fusão de divindade, que, a rigor, não contém substância, no sentido de hipóstase7, passa a reivindicar da teoria uma individuação da tríade

3 Em conclusão a interessante artigo sobre a teoria dos direitos humanos, Tércio Sampaio admite que o funcionalismo jurídico opera uma neutralização nos valores humanos, a que designa de axiologia ideológica, murchando definições ao sabor das exigências sistêmicas. Direito Constitucional. São Paulo: Manole, 2.006.

4 Em recente obra de envergadura Tércio Sampaio requesta a exigência moral de justiça para que o direito tenha sentido, destacando que ela se fará presente quando houver reconhecimento da significância da significância do outro nas relações. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. O Direito, Entre o Futuro e o Passado. São Paulo: Noeses, 2.014, p. 156.

5 Agostinho. De Trinitate, VII, 6.11.6 J. P. Moreland e William Lane Craig. Filosofia e Cosmovisão Cristã. Tradução Emirson

Justino e outros. 1º Ed., São Paulo: Vida Nova, 2.005, p. 309 e seguintes.7 Os gregos já ocupados da metafísica consorciavam à substância corpo e alma, como

hipostasia da humanidade, mas não chegaram a conceber a adjunção de toda humanidade e a divindade como hipóstase do homem. Somente após o cristianismo é que se conjugou à alma o transcender da espiritualidade à pessoa. Na alma reside transcendência, fundamento derradeiro da espiritualidade, denota-se mesmo a imortalidade do homem,

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Pai, Filho e Espírito, porquanto as três pessoas da mesma trindade, preenchem-se da divindade. Somente na apreensão da relação entre Pai e Filho, Espírito e Filho ou Pai e Espírito será possível reconhecer a trindade e as três pessoas.

Abrem-se, a partir de então, flancos altamente densos, no sentido de que a pessoa, além de conter o Imago Dei, também é um feixe de relações, de filiação, de irmanação, de causa amoris, conduzindo, a posteriori o tomismo a reconhecê-las como solidariedade8 e um novo conceito surge na humanidade, o de social, diferente do político e do comunitário até então sedimentados no mundo Greco-romano.

Inolvidável, ainda, que a individualidade da pessoa, para localizá-la na trin-dade e sua ampla gama de relações, permitirá conceber que não somente relações sociais, como, ainda, relacionamentos multifários, até com o Infinito, está presente na pessoa, sem embargo de que a individualidade haverá de ser recrutada na acepção do privado, algo que somente veio à colação, como proteção, no período moderno, embora germinado na conclamação à pessoalidade.

Portanto, em acepção bem diversa de persona, máscara utilizada no teatro Greco-romano, para possibilitar os papéis comunitários e seu desenvolvimento, relegando a hipóstase de quem dela se reveste, o cristianismo consubstancia a pessoa de tegumento, autonomia, responsabilidade, igualdade, relações e solidariedade.

Aqui já se faz de mister registrar o quanto a pós-modernidade enxuga o sentido de pessoa; o direito atual decompõe a sociedade em funções ou papéis sociais e trama-lhes as relações, inclusive as consequências previamente dirigidas esva-

como reconhecimento do esforço e progresso próprios da dinamização do “eu” personificado e imperecível. In Teilhard de Chardin. L’Ativation de L’Energie. Paris: Éditions du Seuil, 1.968, p. 231.

8 O Aquinate parte da solidariedade já na sociabilidade da alma ao corpo, destacando-lhe atributo essencial, e característica de sua natureza, e o corpo não deve ser concebido como mal em si, porquanto se a matéria fosse pérfida, haveria de ser um nada, e se é algo, na medida em que é, não é mal. A doutrina de Tomas de Aquino é otimista, porquanto professa que o universo é criado por pura bondade, cujas partes subsistentes refletem a perfeição infinita do Criador. Ora, o corpo não é prisão da alma, mas instrumento seu, colocado a seu serviço pela Inteligência Suprema e, justamente pelo corpo que a alma alcança perfeição. In Suma Teológica. Livro I. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1.998, 75, 7.

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ziando as pessoas de autonomia, responsabilidade e igualdade, reservando-lhes não mais que uniformidade, com o que, sacrifica, também, a individualidade.9

Enquanto na polis e na civitas o homem era implicitude dentro de uma cidade ou de uma família10, figurando como engrenagem diluída impessoalmente no Cosmo, o cristianismo o dota de uma característica especialíssima, pessoa humana por ser prole do Criador. Entrementes não se pode adjetivar a pessoa como puro ato de fé, ou revelação, senão como dado de uma filosofia comprovada pela razão.

2.1. a metafísica da pessoa – lei que busca fins

Em Etienne Gilson, há uma definição ímpar, lançada na idade média, por concepção de Boécio, anotando que a “pessoa é uma substância individual de natureza racional.”11

E reportando-se ao tomismo e à superação do realismo aristotélico, aponta à hierarquia dos valores, reconhecendo o valor supremo de Deus, tanto quanto o Estagirita, mas o transcende ao recorrer ao auxílio da revelação como fonte sobrenatural de apoio, sem, contudo, deixar de pontuar que a razão permite a comprovação do Criador12, restando ao ser humano um “clarão débil do raio divino.”13

9 Tércio Sampaio Ferraz Junior, comentando sobre a privacidade no mundo cibernético, faz interessante consideração, esclarecendo que a privacidade, no sentido moderno, inclusive como o direito a estar só, excluir os demais, entra em vertigem na sociedade de massa e comunicação. O direito à privacidade que se propunha distinguir na uniformização social, seja do mercado, seja do Leviatan, vem de encontro às proteções jurídicas do risco calculado e do engajamento. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Direito Constitucional. Liberdade de fumar, Privacidade, Estado, Direitos Humanos e outros temas. São Paulo: Manole, 2.007, p. 409.

10 R. Garaudy, Qu est-ce que la morale marxiste? Paris: Ed. Sociales, 1.963, p. 63.11 A Filosofia na Idade Média. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins e Fontes, p. 471.12 Há uma dupla condição na filosofia tomista, a distinção entre fé e razão, e o reconhecimento

de que filosofar é fruto da liz natural, enquanto a teologia baseia-se na revelação. A fé, como sobrenatural fenômeno, é insuscetível de compreensão, mas passível de aceitação. Se a primeira coisa que o homem conhece é o sensível, a primeira revelação é a existência de Deus, e o universo a Ele tende, como o início e o fim, trata-se de causa primeira e causa do existir humano, este ser que contém no seu ser o eterno devir. Etiene Gilson. A Filosofia na Idade Média. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins e Fontes, p. 658 e seguintes.

13 Etiene Gilson. A Filosofia na Idade Média. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins e Fontes, p. 667.

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De qualquer maneira, algo de sintomático pode ser pinçado e que se apresenta como proposta de “reconstrução” do homem, desgastado na modernidade.

Admite-se que a porta de entrada da filosofia, no tomismo, se faz pela me- tafísica, cujas questões fundamentais da existência, o que, e quem existe, respondem-se pelo realismo, apontando aos existentes na mundanidade, subs-tâncias compostas, de matéria e inteligibilidade, o que permite a cognição com a formação conceitual, na sua captação essencial, reproduzindo-se no mental de quem conhece a realidade do que se conhece14.

O ato criador é imaginado como produtor do ser criado e as criaturas rece-bem um movimento em um ser independente do Criador, e outro movimento, o primeiro movimento, que faz com que as criaturas voltem até o ponto de partida, aproximando-se o mais possível de sua fonte.

As criaturas inteligentes defluem de Deus e a Ele tendem.15 O princípio primeiro de todas as coisas é o Criador que transcende o universo por Ele criado, tratando-se do fim de todas as coisas, o Bem supremo.

Assim é que a operação dos seres naturais tende ao fim, e o atingimento desse fim não é obra do acaso, há uma regularidade intencional, uma inteligência primeira ordenadora da finalidade das coisas que é Deus, este Ser imóvel e perfei-to em ato puro16, que contém em Si, virtualmente, o ser de todas as criaturas, e passa a criar, por ato livre, já que o Criador não necessita criar, mas ao fazê-lo, participa na criação o seu Ser, o Sumo Bem, em finitude. Eis a base dos primeiros princípios da metafísica.

Nessa medida o fim corresponde sempre ao princípio e se se conhece o princípio das coisas, impossível seja ignorado o fim.17

14 Trata-se de uma relação de adequação entre o pensado e o objeto que se pensa. 15 Étienne Gilson. Saint Thomas d’Aquin (Lês moralistes chrètiens. Textes et commentaires).

Paris: J. Gabalda, 6ª ed., 1941, p. 33.16 Étienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:

Martins e Fontes, 2.001, p. 660/661.17 Prigogine, ao propor a teoria do caos, supõe que a reequilibração dos fenômenos, que se

faz por inteligência de todos os seres, seja o fim de todas as coisas. A compreensão, nessa perspectiva entra em desfalecimento, pois como poderia se partir do caos e se buscar, sempre, o equilíbrio? Sobre a teoria do caos, que fundamenta a sociedade do risco e todo o relativismo cultural, vale alusão à obra genuína do autor. Prigogine, Ilya. As leis do caos. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Ed. da Uniep, 2002.

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O ser humano, dotado de livre arbítrio, inteligência e vontade, imita o Criador, conquanto o tenha criado, não por uma inclinação natural, senão por inclina- ção voluntária e sob a égide dos princípios primeiros metafísicos.18

É a vontade que move o intelecto a certas coisas, e sempre haverá um objeto da voluntariedade, designado bem, ou fim. A intenção corresponde a uma vontade que move todas as faculdades até seu fim, como ato primeiro de tendência.19

Por outra parte as ações humanas concernem sempre ao particular e contingente, e passar do universal ao particular, corresponde a sair do imóvel e certo para tatear o variável e incerto.

A eleição é ato pelo qual uma parte deriva da razão ou intelecto, enquanto outra deriva da vontade. Para dotar o ato de forma de eleição, é necessário movimento da alma até o bem que elege, e a eleição constitui, em substância, ato de vontade.20 Todo movimento é voluntário, ainda que pareça vir do intelecto, e todo conhecimento é intelectual ainda que tenha origem no movimento da vontade.21

Os seres humanos não são pura substância, constituem-se, por assim dizer, também dos acidentes, e o ato concreto não é esquemático e teórico, constituído de razão e vontade, trata-se de um ato influenciado por disposições permanentes, que são os hábitos e as virtudes.22

O ser humano é ser discursivo, cuja vida deve lograr o fim, e essa duração em vida mostra um ser que faz esforços para atingir o objetivo ao invés de desaguar no nada. A alma humana, tal qual o seu corpo, possuem uma história, conservando o passado que é gozado na utilização de um presente perpétuo, sendo certo que a forma geral dessa fixação da experiência passada denomina-se hábito.

Um ser humano bem ou mal disposto passa a ser objeto de análise pelos seus hábitos, estes acidentes que lhe são algo de mais próximo da própria natureza

18 Étienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins e Fontes, 2.001, p. 674.

19 Tomas de Aquino. Suma Teológica. I. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1.998, 82, 4 e resposta.

20 Tomas de Aquino. Suma Teológica. I. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1.998, 83, 8 e resposta.

21 Etienne Gilson. El Tomismo. Vol. II. Buenos Aires: Ediciones Desclée, de Brouwer, p. 358.22 Etienne Gilson. El Tomismo. Vol. II. Buenos Aires: Ediciones Desclée, de Brouwer, p. 358.

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do ser.23 Todavia os hábitos são disposições para o bem ou mal, situando o indivíduo em relação ao seu fim, pondo-o conforme sua natureza, ou segundo uma conveniência, o que será designado de vício.24

As virtudes são hábitos que dispõem de maneira unívoca e durável ao cum-primento de boas ações, ou seja, indicativos de realização da natureza humana. Ora, se a excelência das coisas mede-se pelo grau de seu ser, o humano deve realizar operações incompletas e deficientes como ser incompleto que é, e o bem e o mal se combinam em suas operações em proporções variáveis.

A virtude moral é modalidade de virtude humana vertida à prática do ato benfazejo, supondo, pela própria essência do ato, em eleição, deliberação e juízo racional.

Virtudes intelectuais que não se reportam diretamente a ação podem pres-cindir de virtudes morais, entretanto a prudência jamais poderá ser posta à mar-gem, enquanto virtude que é. As quatro virtudes intelectuais são a inteligência, a ciência, a sabedoria e a prudência, sendo certo que as três primeiras, designam-se puramente intelectuais, enquanto a derradeira migra do intelectual ao moral.

Uma vez querido o fim, uma virtude intelectual deliberará e elegerá os meios conducentes ao mesmo fim, devendo existir necessariamente uma virtude intelectual que põe a razão em situação tal que possa determinar os meios, em vista dos fins, tratando-se da prudência, a reta razão no agir, virtude inexorável ao bom viver.25

As virtudes morais introduzem na vontade as mesmas perfeições introduzi- das pelas virtudes intelectuais no conhecimento, mas é na justiça que se assegura e se garante o valor moral, porquanto é na retidão de todas as operações que vão implicadas ideias do que se deve fazer e o que evitar.

Em síntese, a metafísica tomista aqui tomada de empréstimo, vai pulverizar no ser humano a imagem e semelhança do Valor Supremo, dotando-o de dignidade

23 Tomás de Aquino. Suma Teológica. Ia IIae. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1.998, 49, 2 e resposta.

24 Tomás de Aquino. Suma Teológica. Ia IIae. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1.998, 54, 3 e resposta.

25 Tomás de Aquino. Suma Teológica. Ia IIae. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1.998, 57, 5 e resposta.

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enquanto pessoa. Pessoa representará a amplificação de todas as virtudes inte-lectuais e morais, aspecto de expansão horizontal, sempre tendo como arrimo o fim último, a transcendência no sentido vertical, livre arbítrio e racionalidade dirigidas ao Criador.

Ademais, a participação querida do Criador em cada ser humano imperfeito é a possibilidade de que inclinações naturais das criaturas possam acessar o Sobrenatural, e cada singular imperfeito é parte, verso, singular, do Uno.26 A riqueza da singularidade metafísica em todo e cada um dos seres humanos gestará a isonomia em dignidade, porquanto a identidade de origem e de destino nos fará um no Criador.

Em um instante em que a hierarquia social fazia acepção entre seres huma-nos, decompondo a sociedade entre incluídos e excluídos, a filosofia tomista da pessoa, fundada na metafísica, tornava possível que todos os seres humanos, independente de grupo, casta ou estamento, reunissem atributos da Imagem e Semelhança do Supremo Ser. Atualmente o princípio da isonomia pulveriza uma uniformização de tratamento, longe do anseio de igualdade, há um prète à porter que já encapsula o sujeito de direito, eliminado-se a escolha e a responsabilidade.

Uma derradeira observação, o livre arbítrio, a vontade, enquanto centro emanador da liberdade, permite que se divida querer e poder, e que a liberdade seja associada ao querer, ainda que não se possa. Na antiguidade se concebia a liberdade como poder, exercício, ação regulamentada pelo direito, sem considerar o livre arbítrio, essa manifestação metafísica da liberdade. Em escorço, o escravo, a mulher e o estrangeiro, por exemplo, impedidos de exercício, eram privados de poder, mas passam conceber a liberdade no plano metafísico, como livre arbítrio27, registrando-se as primeiras ilações sobre liberdade como responsabilidade.

Comumente o projeto de humanização se cinge a detectar manifestações das ações humanas como o elemento de preponderância na construção das ciências postas a servi-lo cotidianamente.

26 Jacques Maritain. Sete Lições sobre o Ser. 3ª Ed., São Paulo: Edições Loyola, 2.005, p. 37.27 Tércio Sampaio Ferraz Junior. Estudos de Filosofia do Direito. 3º Ed., São Paulo: Atlas,

2.009, p. 83.

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O desconhecimento da metafísica de pessoa empece qualquer projeto de construção de uma sociedade justa, fraterna e solidária, como proposta idearia democrática, e a subjacência científica, antropológica e filosófica haverá de sedimentar o estudo a propósito do que, efetivamente, é o humano, e não de suas partes, seus fenômenos, sob pena de se artificializar pessoas.

Quando o homem passa a tomar consciência de que é pessoa e de toda a sua complexidade, nos seus atos internos e externos, suas conexões com o Cosmo, com o “si mesmo” de seu ser, e com o ser do outro, pode, apropriadamente, firmar laços com promessas surgidas já na sua criação, inobstante, malogradas ao longo da história.

O ponto de partida é a pessoa humana, suas peculiaridades, as primeiras leis de sua natureza, para, em segundo passo, estabelecer-se uma (re)construção de direito.

2.2. o transcender da pessoa – o dever ser como o pri-meiro princípio da ação

Se a modernidade buscou fulminar o metafísico, trabalhando com a ideali-zação subjetiva, ou o emprirismo racionalista, e o mergulho às relativizações, nem por isso a realidade pode passar despercebida pela humanidade. Isso é de sintomática importância para compreensão da pessoa, que, adjungindo corporeidade, intelecção e divindade, registra uma imortalidade28 tão óbvia e angustiante, que passa a ser deslocada para o momento da prova científica após o fenômeno da morte, enquanto que, em vida, portadora de igual essência, ressente-se da mortalidade, enxertando o sentido de permanência com a fugacidade de valores menos expressivos e dignos de imantação, sobretudo o útil.

Somente com a reabilitação da metafísica, a pessoa, cônscia de que é imortal e plenamente dignificada no Deitas, encontra sentido de permanência em leis que são genuinamente conformes à natureza humana, como, por exemplo, na esfera

28 O filósofo brasileiro Olavo de Carvalho reivindica como método de investigação de qualquer fenômeno envolvendo o humano o pressuposto da imortalidade, porque é real, e põe-se à margem, de maneira equivocada, de qualquer método cognitivo.

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da ética e do justo, e, por consequência, esmaece a angústia e o drama existenciais tão sintomáticos em tempos de tragédia cultural.

Como se assinalou outrora, todo ser é movimento e dinamicidade, pulsão e energia, um devir, tornar-se, potência que se transmuta em ato de ser, buscando perfeição29. A pessoa, que herda a sabedoria como princípio reitor de todas as outras ciências, também é ser que deve ser, um feixe de potencialidades que buscam a perfeição em ato.

Com efeito, a natureza limitada, presente no ser do homem, exige-lhe a colmatação, em posição de conformidade com os valores que o põem em sensação e consciência de imortalidade, permanência, no presente, e não para além da vida. O dinamismo é caris da condição humana em razão de sua natureza incompleta e contingente.30

Mas como criatura que é, e basta um exame das cinco vias da existência do Criador sugeridas pelo Aquinate31, a perfeição, que é uma delas, só compreendi-da em plenitude, se conjugada às outras vias, experimenta em vida, graus de perfeição, que a dão sentido de verdade, bondade e beleza, respectivamente, instigando-lhe o desenvolvimento de suas capacidades intelectuais, de sua volição e preferibilidade.

Se há na vereda da perfeição o grau nobilitante, a máxima expressão de ser, no Absolutamente perfeito, igualmente, no outro polo, registra-se o não ser pela nadificação, a inoculação de ser, e a liberdade que é aspecto essencial da pessoa, dota-lhe de potência e responsabilidade para fazer-se ou negar-se.

Ocorre que o Criador, prenhe de toda perfeição, ao criar, não o faz só pela volição e ou amor, mas requesta, no ato de criação, a sabedoria, que está presente em toda metafísica, seja no ato, seja em sua criação. Os primeiros princípios

29 Jacques Maritain. A Filosofia da Natureza. Tradução Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2.003, p. 69 e seguintes.

30 Jacques Maritain. Sete Lições sobre o Ser. Tradução Nicolás Nyimi Campanário. 3ª Ed., São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. 110 e seguintes.

31 Tomas de Aquino. O Ente e a Essência. 2ª ed. Trad. Carlos Arthur do Nascimento. Rio de Janeiro: Vozes, 2005. Em trabalho de fôlego, inclusive pontuando a superação do tomismo em relação à metafísica de Aristóteles, Battista Mondin. Quem é Deus? Elementos de Teologia Filosófica. 2ª. ed. Trad. José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2005.

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metafísicos, a fortiori da identidade, não contradição, ordenação estrutural, que contém em si a ideia de fim, pulverizam-se em níveis de proporção à natureza dos seres criados.

Ou seja, ser pessoa é ser entre uma infinitude de possibilidades, ser singular, sublimado com o Imago Dei e corporeidade, buscando a perfeição em seus atos, sempre vertido a um telus, e criado a partir de normas apropriadas ao próprio divino Criador, que não se dá normas, senão que as tem implícitas como condição ontológica de seu próprio Ser Supremo, entre as quais não querer interferir no livre arbítrio.

No plano da vontade, constatar-se-á, na intelectualidade tomista, que por trás da moralidade há uma Teodiceia, e toda ação humana sempre reivindica o Criador, porque o ente parte da Criatura; e o movimento reveste-se de circu-laridade, no plano metafísico, conquanto a procedência, exitus, torna à Origem, em reditus, marcando physis e telus do imanente ao transcendente.

O princípio Supremo está plasmado em toda criação, dos corpóreos aos incorpóreos, perpassando pelo humano, que se mostra síntese de corpo e alma, e o retorno humano se faz pela pessoa do Cristo, ao seu finalismo, Sobrenatural, embora, como movimento que é, inicie-se pelo propriamente humano.

Se o finalismo é o Divino, sobrenatural, e a capacidade humana é natural, pode se mostrar angustiante essa pavimentação ao transcendente, então pela só disposição ou virtude humana não pode projetar-se, existencialmente, ao Supremo, de maneira que o fim sobrenatural ao qual tende naturalmente o humano, alcança-se pela graça advinda do Filho.32 Isso revela sempre a figura decaída da humanidade, sem que, contudo, possa alterar sua situação de busca ao perfeito.

A restauração da humanidade, presente na sabedoria divina, com forte im-postação metafísica, é uma reclamação do Criador, e o ato viciado, presente na natureza do homem, traduz-se como forma de desordem na criatura, e a sabedoria do Pai a repara.

32 Essa chave fundamental da ética está presente nas Sentenças de Lombardo. Tomas de Aquino. Comentários às Sentenças de Pedro Lombardo, Livro II, distinção I, questão I. Trad. Tadeu M. Verza. Universidade Federal de Minas Gerais.

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Eis a primeira Lei tomista da revelação, da qual derivará a Lei da natureza ou da eticidade a espargir seus reflexos ao direito positivo e às decisões concretas de justiça. E, enfim, a ordem se sobrepõe ao caos, desmantelando a sociedade do risco e seus aspectos basilares.

3. as implicações entre o metafísico e o ético

Nos comentários à ética aristotélica o doutor evangélico destaca a ordem como peculiaridade da sabedoria33, e o faz pelas duas classificações sobre a ordem, laborando com ordenação entre partes e unidade, e a totalidade vertida ao fim, e no telus vislumbra-se o governante.

Toda moral está referida ao telus, ressaltando que há uma ordenação, ab initio entre a racionalidade e tudo o que ela pode inteligir, em vera relação quádrupla, apreendendo-se a ordem insita às coisas, incriadas pela razão, mas por ela revelada, apresentando-se no quadrante metafísico e das ciências da natureza, enquanto que uma segunda classe de ordenação existe, onde a razão cria pelas suas operações racionais, chamada de ordem lógica, a terceira classificação referida aos atos de vontade, racionalizados e ordenados, e aqui reside a ordem moral, arrematando com a ordem criada pela razão e sua realização, transcendendo o próprio ser humano, para indicar o que a razão produz ou ordem da téchne.34

Eis as partes de uma única realidade que vai se constituindo e se ordenando à perfeição humana porquanto apontando a um único fim.

Os atos de vontade contém-se no plano moral, uma ciência prática cujo objetivo está na ordenação das ações para os fins humanos. As atitudes voluntárias dos seres humanos, implicitamente, reivindicam os fins últimos de sua natureza, e tais ações são ordenadas para alcançar fins, notadamente prática.

Do ponto de vista formal ou específico da moral, o que importa é examinar o vetor entre a ação e os seus fins últimos, diferentemente do seu sentido material

33 Tomás de Aquino. Suma Teológica. Ia IIae. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1.998, 57, 5 e resposta.

34 Jacques Maritain. A Filosofia da Natureza. Tradução Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 69 e seguintes.

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que diz com os atos voluntários humanos, que aqui se afeiçoa à inteligibilidade, em sincretismo, tanto quanto a antropologia, psicologia e sociologia.35

Portanto, está nos fins humanos toda a peculiaridade objetiva da moral, sua estrutura formal, que a distingue doutras ciências ou modalidades de estudo das ações humanas. Ora, isso é de capital importância, conquanto sendo a moral orientada aos fins últimos do ser humano, difere da sociologia e ou antropologia que reputam dignos de análise os atos humanos. Por isso diz-se que a moral é uma ciência subalternada, reivindicando a antropologia para a avaliação dos atos humanos, mas peculiarizando-se por observar os fins de tais atos.36

Paulo Ferreira da Cunha informa que o direito natural está indissociavelmente implicado com a justiça, e notadamente em razão de conceber uma ordem de eticidade implantada na espécie humana, reconhecida desde Paulo, e bem investigada em Tomas de Aquino, onde as pessoas dela são imantadas, assim como o é a natureza e, basicamente, porque homem é ser da natureza, também se modela pela natureza das coisas, que se sobrepõe ao humano e ao seu querer.37

Examinar fatos é propriamente desconsiderar fins, empobrecendo a ação hu-mana, tratando de especulações e olvidando o caráter prático da moral, referido ao finalismo do ser do homem.

Se Deus vindica do homem ações que naturalmente o imantam, tal aspecto do movimento da humanidade passa despercebido, mas no plano moral esse caris é acentuado, tocando o plano metafísico, de sorte que toda eticidade pressupõe uma teodiceia, como já mencionado em outra parte do texto.

Na acepção de Aristóteles o fim postula a intenção no agir, de sorte que o Bem, como fim, é fio condutor de toda ação, portando a plenitude da realização existencial humana está no bem38, requestando num plano secundário a execução

35 Esmiuçando a moral, Jacques Maritain vai fazer uma distinção entre o sociológico, o antropológico e o ético, enfatizando que os fatos por si só, não revelam as ações morais dos seres humanos, e aqui remanesce o grande equívoco do empirismo e culturalismo historicistas que se aspiram realistas. In Neuf Leçons sur lês Notions Premières de la Philosophie Morale. Paris: Collection Dirigée Par, p. 143 e seguintes.

36 In Neuf Leçons sur lês Notions Premières de la Philosophie Morale. Paris: Collection Dirigée Par, p. 147.

37 Paulo Ferreira da Cunha. Princípios de Direito. Introdução à Filosofia e Metodologia Jurídicas. Porto: RÉS-Editora Ltda, p. 19

38 No bem autêntico, não no bem aparente. Essa distinção consta na Ética a Nicômacos.

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das ações segundo regras, cuja eudaimonia está na contemplação39, enquanto que em Tomas de Aquino estará na beatitude cristã, na plenitude de ser pessoa e na transcendência extramundana,40contando com a lei e com a graça do Cristo.

Portanto, a plenitude da perfeição humana há de ser restaurada, pelo querer divino, por isso assume a própria natureza humana fazendo-se Cristo, vindo como auxílio ao alcance daquilo que, naturalmente, desejamos como fim, mas que não atingimos naturalmente, em razão de sua transcendência e Sobrenaturalidade.

A perfeição é o fim, e eliminado o fim resta a nadificação, sendo certo que a sabedoria incompatibiliza-se com o nihilismo. Ou seja, a ordem se sobrepõe ao nada e o caos, e a suavidade do governo de qualquer ser reproduz um caminho em direção ao fim41.

A Imagem do Criador, presente na humanidade, corresponde à dotação de livre arbítrio e responsabilidade pelos próprios atos. A semelhança relaciona-se com a capacidade intelectual e racionalidade, e a junção de imagem e semelhança supõe livre arbítrio e controle racional, então o desenvolvimento existencial do ser humano há de buscar em ato o Imago Dei.42 A Lei e a graça são como princípios extrínsecos das ações humanas para atingimento de seus fins, a imanência e o transcendente.

E aqui remanesce, quiçá, o grande imbróglio no plano moral, porquanto a teoria dominicana que difundiu ser a criatura humana expressão de um projeto arquitetônico do Criador, regido por leis conformadoras de sua natureza, ruiu com o escólio franciscano, ao menos dos fraticceli, porquanto essa corrente passa a conceber o ato de criação como ato de pura vontade e amor, individual, concernente à cada criatura criada, ideia pulverizada com o nominalismo franciscano pela obra de Boaventura, Dans Scott e Guilherme de Occam.43

As implicações deste novel modus de verificação do ato de criação, descom-prometido com leis que adaptam a natureza humana ao seu status, sublimando o

39 Aristóteles. Metafísica. Tradução de Laconel Vallandro. Porto Alegre: Globo, Biblioteca dos Séculos, 1969;

40 Tomas de Aquino. Suma Teológica. I. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1.998.41 Tomas de Aquino. Comentários a Sentenças de Pedro Lombardo. Tomas de Aquino. 42 segunda parte da Summa Teologica toda a impostação antropológica da moral no tomismo43 Étienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:

Martins e Fontes, 2.001, p. 730 e seguintes.

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querer do Criador e a Sua capacidade de amar, importam na abdicação ao ético, heterogêneo, ou, ao menos, tornam a moral uma perspectiva monástica.

A questão relevante para o mundo jurídico passa, portanto, pelo ato de criação, os graus de perfeição e as leis da natureza no plano da moralidade, de sorte que o direito positivado, necessário para esculpir, em cultura e experiência, os laivos cognitivos de bem, deriva das leis da natureza, rigorosamente assen- tadas na metafísica.

O que é bom ao ser humano não se pode traduzir como algo agressivo e ou incompatível à sua natureza, de maneira que o imperativo primeiro está no querer o bem e evitar o mal, seguintemente preservar a vida, ainda o amor ao próximo, inclinação ao justo, honesto e não lesivo44, notabilizam qualquer ser que age nessa conformidade, há uma base moral objetiva que transcende, mesmo, o âmbito cultural de um povo, estando arraigada à natureza das coisas humanas.

Passa a fazer todo sentido o ensinamento do Aquinate de que a legislação posta há de descender da legislação da natureza humana, por derivação, sendo por ela determinada, mergulhando até o ato jurídico de decisão concreta45. Enfeixa-se, aqui, noções de primeiros princípios, que, se comprometidos, tornaria desfigurada a natureza do ser humano, e dos segundos princípios, mobilistas, admitem a dinamização na linha diretamente proporcional à experiência humana.

De qualquer maneira, o Aquinate é categórico ao admoestar leis arbitrárias e onerosas, que distoam das leis da natureza e, consequentemente, afrontam as leis eternas, não atingem o bem comum, deixando de ser obrigatórias porquanto injustas46.

Em síntese, a dimensão da moral da espécie humana encaixa-se em modelo consolidado no grau de proporção de sua perfeição, recordando-se de que a pes-soa, dotada da imortalidade e transcendência próprias de sua divindade imanen-te, há de buscar, para sua dignificação, o sentido do permanente em vida, mais do que a frugalidade que seduz as paixões e os instintos da corporeidade.

44 Jacques Maritain. In Neuf Leçons sur lês Notions Premières de la Philosophie Morale. Paris: Collection Dirigée Par, p. 160 e seguintes.

45 Tomas de Aquino. Tratado de Justiça. Tradução Fernando Couto. Porto: Rés-Editora Ltda., p. 62.

46 Tomas de Aquino. Suma Teológica. Parte II (primeira parte). Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1.998, p. 472.

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Demais disso, a imensidão de relações que a pessoa pode assumir, sobretudo em dimensão transcendente com o divino, consolida-o modelo de solidariedade e inclinação ao amor, e somente por artifício grotesco a cultura poderia reputar o ser do humano corrompido de egoísmo e competição, seguindo em prélios e refregas para subsistir à custa alheia. A beatitude que lhe dignifica não se atingi- ria com pugnações, astúcia e individualismo.

Os modelos sistêmicos atuais, inclusive na esfera do direito, sequestrado que foi pela sociografia, partem de falsas premissas, do caos, da desordem e do risco, adjudicando modelo hobesiano que ideologiza a definição de pessoa e a curva ao econômico-social.

4. a justiça como virtude humana e fundamento de validade do direito

Entre os clássicos a justiça corresponde à virtude, uma vontade constante e perpétua de se dar o devido segundo mérito e o direito é tratado na questão 57, do Livro II da II parte da Suma Teológica pelo Aquinate como exigência da coisa justa.

Em última ratio o direito é objeto da justiça, e reforça a concepção ao classifi-car o jus como arte de discernir o justo, de maneira que, pelo direito, o devido é dado a quem o tenha, por questão de mérito.

A natureza humana expõe potencialidades radicadas no âmago da vontade, que, uma vez experienciadas, transformadas em hábito, exercício prático, tornadas atos, confirmam-na e as aperfeiçoam.

Antes, porém, é fundamental advertir que o operador do direito, comprome-tido com a justiça, sobre ela não pode agir, salvo se, também, acesse as virtudes intelectuais, não só em face à ideia de justiça, que, entre gregos e romanos não se desenvolveu, cingida que ficou à vontade, mas, também, como ciência prática, especialmente à prudência, cujo tema é sintomático para o encontro com o justo, como se verificará adiante.

Um primeiro epílogo sobre a justiça se impõe. O ser humano, para quem o direito é estabelecido, está marcado por potências, sejam de natureza intelectual,

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sejam de natureza volitiva, cuja energia, colocada em ato, na experiência, vai aperfeiçoando a pessoa.

Se a justiça é virtude, na acepção clássica, trata-se de hábito operativo do intelecto, não se olvidando de que as potências se apresentam à alma na concepção do ser humano, ao passo que as virtudes, enquanto hábitos, têm o condão de aperfeiçoar as potências na experiência, facilitando esta perfeição em razão de inserção de inclinações desenvolvidas sobre as energias já chanceladas desde a concepção do ser humano.47

Essa dinâmica da vida da pessoa permite a escolha às inclinações por hábitos àquilo que já se apresenta em potência ao ser humano, ao passo que, pela condenação à liberdade48, a depravação destas potências naturalmente herdadas, por hábitos avessos, designados de vícios, corroem a fortuna metafísica humana, nadificando-a e comprometendo o seu ser no ato de existir.

As virtudes são noéticas, enquanto qualidades positivas que dinamizam as potências, tendo como sujeito, o próprio intelecto, disposto ao ato cognitivo, a fortiori quando evolui suas potências intelectivas, sejam as ciências, a técnica, a prudência, a sabedoria e a metafísica, englobando-se o intelecto teórico, prático ou produtivo.49

Também há virtudes morais, e aloca-se aqui a virtude da justiça, quiçá como a mais importante representante da eticidade.50

47 André Comte-Sponville. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins e Fontes, p. 71.

48 Sartre. Jean Paul. O Ser e o Nada. Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 10ª Ed., Petrópolis: Vozes, p. 460.

49 Aristóteles. Ética a Nicômacos. Tradução de Mario da Gama Kury. 4ª Ed., Brasília: Editora Unb, 2001.

50 Paralela à justiça, há a temperança implicada com a potência concupiscível (amor, ódio, desejo, aversão, dor e prazer), porquanto o temperante é moderado, age na justa medida, nos prazeres do tato ( comida, bebida e venéreas), e a coragem, que diz respeito as paixões irascíveis, contendo medo, audácia, esperança, desespero e raiva, sendo certo que a virtude da coragem sugere a fortaleza para suster os medos e moderar a ousadia, sempre diante dos riscos da morte. Dessa maneira, a justiça imprópria quer significar tornar o sujeito justificado, retificado, seja diante dos prazeres do tato, seja em relação aos medos e audácias em relação à morte. Portanto, no âmago de nosso ser, ou no exercício externo da ação, a justificação é concebida como o justo no sentido metafórico.

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De forma categórica, justiça é sempre uma virtude retificadora, reportada às ações humanas, externas, não propriamente psíquicas, praticadas em relação aos demais, como algo alterativo, que sempre requesta a presença do outro.

Há consenso de que a justiça sempre trata de atitudes humanas referidas ao alter, e aloca-se no cerne da vontade, ou seja, representa uma virtude moral da vontade; e todo ser humano que tem o hábito da justiça age em relação ao outro com equilíbrio, nem de menos, nem de mais, porque no excesso ao ego há prejuízo ao alter e fazendo demasiado ao alter há dano ao ego.

O Aquinate classificará a justiça em geral e particular, a primeira concebida no contexto da ordem social, quando um encadeamento de partes compõe o todo, donde os integrantes da sociedade estão ordenados, uns em relação aos outros, dentro de princípio de bem encadeado.51

Relativamente à ordem, há se recordar das categorias todo e parte, implicados com o social, absolutamente vinculados ao tegumento de justiça. A priori não se pode supor o todo como a somatória de partes, senão que, no plano metafísico, os elementos que constituem a sociedade encadernam partes e totalidade.52

Se a primeira classificação de justiça é a geral, cuja matéria inclina-se ao bem comum, a justiça é a categoria que regula as relações entre o todo comunitário, a totalidade no plano metafísico, e a parte com seus atos externos. Nessa perspectiva as ações da parte dirigidas ao todo da sociedade, o bem de uma pessoa, de um grupo ou de uma classe, enfim, o bem privado, dirigido ao comunitário, é tratado pela justiça geral.

Já, noutra classificação, vislumbra-se a justiça particular, regulando ações relativas a outrem, sempre singular, que será questão de justiça distributiva ou comutativa.

O bem se pretende atingir aqui é sempre o bem privado, e, assim, há um indivíduo, e se a ordem se estabelece entre duas partes privadas, em suas relações sinalagmáticas, compete à justiça comutativa regulamentar as ações exteriores de uma pessoa privada à outra.

51 Suma Teológica. II-II, q57, a252 Jacques Maritain. Sete Lições sobre o Ser. Tradução Nicolás Nyimi Campanário. 3ª Ed., São

Paulo: Edições Loyola, 1.996.

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Também o sujeito passivo desta justiça distributiva é sempre pessoa privada, e distribuir é dar o devido segundo o bem comum, e conforme o modelo político implantado, enquanto que o sujeito que pratica o ato é o comunitário, represen-tado pelo governante, tratando-se de relação do todo à parte. A distribuição como causa da dignidade acaba não discriminando um sujeito, senão o próprio mérito posto em causa à dignidade de certas pessoas, grupos, classes ou categorias.

4.1. a justiça na teoria dos valores

Já na moderna teoria axiológica, a justiça é tratada como valor, com densidade semelhante à desenvolvida pela ética clássica.

A apreciação é caris dos valores, sublinhando que somente no ser humano desperta a estimativa do ser das coisas, em uma atitude paralela à concepção e ou representação do ente pela intelecção. Nesse sentido o ser humano, ao reportar-se a algo, não somente o compreende por exercício racional, como, ainda, aprecia-o porque é dasein que não se mostra neutro em-vida,53e pugna pelo seu sentido.

Sintomático localizar o valor para perquirir o justo e suas características, ou seja, situá-lo no plano da realidade, submetido ao tempo e o espaço, estar-se-á emprestando valia à concepção relativa dos valores, da mesma forma que, reputá-lo espectro das ideias, pode desencadear uma formulação universal e atemporal dos valores.

A modernidade apresenta antítese ao mundo clássico e faz pressupor, em primeiro plano, a dúvida cartesiana, com a subjetivação do conhecimento, tratando o ser humano no plano da dualidade, dividindo-o em pensamento e realidade, agudizando-se com as acepções kantianas de que o fenômeno, os aci-dentais, podem ser dignos de ciência, tendo como ponto de partida os a priori da racionalidade, enquanto que a substância, o real, só se afirma dogmaticamente.54

Essa teorização redundou na primeira afirmação sobre os valores como de origem psicológica, confundindo a gênese dos valores com uma de suas

53 Martin Heidegger. Ser e Tempo. Parte I. tradução de Marcio de Sá Cavalcante. 10ª Ed., Petrópolis: Vozes, 2001.

54 Em Kant a afirmação dogmática da existência do Valor, da imortalidade da alma e da liberdade humana apresentam-se na Crítica à Razão Prática.

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características, a preferibilidade. Se do plano da apreciação, o ser humano pode sentir um agrado ou desagrado ao valor, em absoluto, significa que a psique o constitui.

Subsequentemente Lotze faz enfática afirmação sobre o aspecto objetivo dos valores, mas os aloca em terreno sui generis, salientando que os valores não são, propriamente, senão que valem. Em última ratio os valores não têm os atributos do real ou do ideal, portanto, não existem, mas valem, porque provocam na humanidade essa sensação da não indiferença dos objetos.55

Essa não indiferença que estaria classificada como qualidade dos seres já era estudada por Platão ao destacar, nos seres, potencialidades que se tornam atos no plano existencial, o que a metafísica clássica designará de perfeição.

Projetada a teoria dos valores na perspectiva clássica, reafirmada pela moderna axiologia, como qualidade inerente ao ser, no seio da humanidade, e recobrando a riqueza ontológica da pessoa, sua natureza, suas potencialidades, a convergência com atitudes que qualifiquem tais energias sublimarão o ser como dever ser.

Se no plano do ser do humano há sinderese na volição, verdade na cognição e perfeição na arte, como energias que exigem conformação em ato, a justiça é finalismo da condição de ser humano. Está localizada no plano da ética, e transformada em hábito, ratifica a potência imprimida à sua natureza.

O valor é não indiferença, trata-se de uma posição do ser, que não pode ser a não indiferença, a neutralidade, o nihilismo, mas uma atitude rumo à perfeição. Se pessoa é feixe de relações, inclusive com o infinito, a sua posição diante dos infindáveis objetos que a ela se apresentam (em) vida, marcam a conformidade com os valores e fins, um projeto à perfeição. Portanto os valores estão insculpidos objetivamente na natureza do ser não podendo ser reputados ideias criadas pelo

55 Garcia Morente é categórico ao refutar o ser do valor porque o integra ao ser do objeto, salientando ser impossível compreender a beleza dissociando-a do objeto belo, da mesma forma que, do sítio da idealidade, os valores, igualmente estão banidos, por não exprimirem suas caracteríticas ( de princípios e consequências, sobretudo). E numa forma peculiar de investigação, mesmo impugnando a existencialidade dos valores, passa a defendê-los como qualidade dos objetos reais ou ideias. Manuel Garcia. Fundamentos de Filosofia. Lições Preliminares. Tradução de Guilhermo de la Cruz Coronado. São Paulo: Editora Mestre Jou, 8ª Ed.

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engenho humano, tampouco desenvolvimento de uma historicidade opaca, malgrado o entendermos como tradução cultural e civilizatória.

Uma primeira face do valor diz com sua objetividade, há uma convocação objetiva de encarnação de valores, que está radicada em si mesma, independente dos sentimentos e preferibilidades humanas. O valor transcende o ser que o valora, tanto assim que o angustia e torna a vida plena de dramaticidade pela sua negação. Nessa transcendência há uma segunda peculiaridade do valor.

Confundir a existencialidade histórica com a ontologia axiológica significa negar um terceiro atributo do valor, que se infere de sua existência em si, independentemente de consciência humana56. Como a natureza da pessoa reivindica a sua perfeição, viver inconsciente desse acabamento não torna o valor uma dependência da consciência humana. Portanto, justiça não é uma criação que se dá ao sabor da história.

De mais a mais, a não indiferença que produz o valor em quem o valora estabelece um quarto caris, evidenciando que a realidade é valiosa, e julgada pela bipolaridade, trabalho realizado pela consciência pessoal no seu existir, uma atração ou repulsão quase irresistível aos fins da vida.

Essa apreciação imediata do ser que valora ao objeto valorado está embebida de intuição do existir para o devir, como que uma simpatia ao caminho que trilha-rá na vereda de seu acabamento e perfeição, tratando-se de uma reivindicação não tão lúcida sobre como se mover da potência ao dinamismo. Max Scheler afirmará que esta via se faz por uma afecção, uma intuição emocional.57

Se o desajustamento é causa de sofrimento, o a-justa-mento pavimenta o caminho à alegria, correspondendo ao itinerário do equilíbrio, da harmonia, na justa medida. Justo compõe à natureza das coisas.

56 O valor tem a imagem do absoluto, independente do tempo e do espaço, malgrado a humanidade descortiná-lo na historicidade, na experiência, portanto, a manifestação do valor é cultural, mas sua ontologia é de não extensão, transcendendo a história. É devir que preexiste à experiência e uma vez vivenciado incrementa o patrimônio humano.

57 Max Scheler. Visão Filosófica do Mundo. Tradução Regina Winberg. São Paulo: Perspectiva S.A, 1.986. Em Bergson, corifeu da intuição, há denotado trabalho em que procura salientar que a alegria de viver está na proporção direta da humanidade com o significado de uma vida valiosa. Destinar a energia vital às finalidades humanas é motivo de regozijo e alegria, ao passo que a tristeza deflui do equívoco na direção intelectual ao horror.

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Por fim, se a relação de conformidade marca o liame entre ser e valor, e a conspícua metafísica da pessoa designa-lhe, já em sua natureza, todas as possibilidades de perfeição, uma hierarquia é traçada na tábua de valores que se apresentam ao humano, e os mais nobilitantes são aqueles que dão à pessoa o sentido de seu aperfeiçoar, a perfeição de sua natureza, a ponte entre o finito de sua humanidade e o infinito de sua divindade.

Em celebre expressão Jacy de Souza Mendonça, discorrendo com largas passadas sobre a axiologia, conclama que no ser humano “o valor surge por um ato de liberdade. A razão descobre os fins e a vontade livre consente em realizá-los. É este consentimento da liberdade que vai dar ao homem bondade ou maldade, que vai gerar sua eminente dignidade como pessoa. O dever ser, paradoxalmente, consiste em que o homem seja o que ele é. Na realização do valor, a liberdade tem a tarefa de incorporar ao homem aquilo que ele tem, mas não frui. Esta é a encarnação do valor.”58

Se o pensamento clássico, sobretudo pelo gênio de Ulpiano destaca a justiça como virtude, uma constante e perpétua vontade de dar o devido a quem o tem, no Corpus Juris Civilis surge a afirmação de que o direito é a arte das coisas humanas e divinas, e a despeito de se pretender uma teoria jurídica, as peculiaridades inseridas no texto evidenciam um compromisso do jurisprudente com os fins da vida, o que, por si só, notabiliza a sabedoria dos romanos e o compromisso que transcendia o sistêmico e se implicava com o humano, adjungindo, sem hesitações, direito e filosofia.

Também nas Institutas já constavam os princípios sinderéticos da filosofia prática como exigência jurídica o não lesar, viver honestamente e dar o devido segundo mérito, imprimindo jusnaturalismo como tarefa do jurista no ato de concretizar o direito, e mesmo sem consciência do conceito de pessoa propõem um sentido finalista no jus.

Bem de ver que restringir o justo à vontade, como virtude, é empobrecê-la, porquanto no conceito de justiça há uma substancia formal de ser que é, dando-lhe ordem e sentido, algo que só pode ser captado pela racionalidade teórica. De

58 O Curso de Filosofia do Direito do Professor Armando Câmara. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1.998, p. 180.

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outra banda, comprometendo-se os clássicos com a justiça, como virtude, dão à razão uma finalidade prática, que também é pertinaz à mesma racionalidade.

Notadamente a intenção ao justo requesta uma definição da expressão, até para que a vontade seja canalizada em direção a certo vetor e atinge o fim bom. Elementar que a representação desse ideário de justiça se precipite à vontade de a praticar, do contrário seria uma vontade tateando às cegas.

Outrossim, nas capacidades cognitivas há uma primeira faculdade d´alma, perceptiva ou afetiva, que capta o valor e paralelamente, desejá-lo e, complementarmente, apreendê-lo como ideia.

De toda sorte, entender o justo requer uma compreensão humana, e somente com o cristianismo se pode admitir pessoalidade no seio da humanidade, razão pela qual rendemos encômios àqueles que, como Paulo Ferreira da Cunha, assinalam que se o direito é objetivo a partir da definição de justiça, como vontade de dar o devido a quem o tem, esse que o tem é uma pessoa, e sem contaminar o direito de excessivo moralismo, imprime-lhe humanismo.59

Pois bem, a justiça é o valor que valida o direito, mais do que mero fato existencial, o justo como ideia e virtude, é conformidade do ser com devir, faz parte dos fins humanos, que, na condição de pessoa, recruta humanidade e divindade.60

Nessa linha de raciocínio, parece indefectível o conceito de justiça esboçado por Jacy de Souza Mendonça, onde precisa que a justiça é “uma relação de conformidade, perceptível racionalmente, entre uma situação intersubjetiva, interpessoal humana e os fins da vida enquanto vida é convívio, enquanto o viver humano é conviver...e essa relação interpessoal com o bem comum.”61

Abdicar do justo no campo do direito significa sequestrar a seu fundamento de validade.

59 CUNHA, Paulo Ferreira da. Paulo Ferreira da. Filosofia do Direito. Coimbra: Edições Almedina, 2.006

60 Reginaldo Pizzorni disserta: “O homem, de fato, é naturalmente levado a subordinar a validade da lei à sua conformidade com o valor da justiça, aos fundamentais princípios de uma ordem interior a todos os seres e em seguida interior ao próprio homem.”

61 O Curso de Filosofia do Direito do Professor Armando Câmara. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1.998, p. 211/212.

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5. método jurisprudencial pleno

Captar o conceito de justiça é tarefa exaustiva, que requesta o conhecimento da teoria dos valores e consorciá-lo com a ciência ética desenvolvida pelos clássicos. Mas se a justiça, adiante de ideia, é práxis, classificada no âmbito da ciência prática, elementar que se atenha ao método de aplicação do justo, aqui sugerido de jurisprudencial pleno.

Nesse compasso a prudência, outrora referida pelos clássicos, entra em pauta na decisão sobre os preceitos de justiça, do contrário o justo não passará de uma teoria racional sem compromisso com a práxis e, portanto, imunizando o direito de seu conteúdo axiológico62.

Direito como ars inveniendi, tecnhé, cuja finalidade é decisão de justiça, não se limita a produção da eficácia, tampouco renuncia ao real metafísico fiando-se à linguagem e a hermenêutica semântica, submetida à neutralização axiológica por força da vontade do poder.

O jurista há de ser prudente. Já no Estagirita a prudência está localizada no plano das virtudes, uma das qualidades da razão, acidental, evidente, mas atribuída à racionalidade.

O hábito da prudência é benfazejo, porquanto aperfeiçoa a potência da racionalidade, frisando, a priori, que tem elo com a razão prática, propiciando-lhe o funcionamento. Vê-se que a ideia de prudência já se agrega à potência, com a própria constituição do ser.63

Nota-se que o intelecto postula finalidades funcionais, e se a sabedoria (verdade) é o objetivo da racionalidade teórica, cuja operação é contemplativa,

62 Ao denunciar os vulgarismos modernos no mundo jurídico, Alvaro D´Ors observa que o declínio da jurisprudentia pela escassez dos jurisprudentes e da autonomia do direito por ter-se tornado refém da sociologia e da economia, abriu ensejo ao direito racional de logicidade pura ou de pura facticidade. Ora, se o direito clássico não era ilhado, porquanto a sua criação dimanava das relações sociais e da natureza das coisas, um modo peculiar de vislumbrar os fenômenos ocorridos, com visão de jurista e não de sociólogo ou economista que se enrustem na dogmática jurídica atual e não se ocupam, verdadeiramente, das pessoas que se implicam, mas de uma massa social presa às estatísticas de grupo. In Escritos Varios Sobre El Derecho En Crisis. Cuadernos Del Instituto Juridico Español. Núm. 24. Roma-Madrid, 1.973, p. 31/33

63 André Comte-Sponville. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins e Fontes, 2.009, p. 37 e seguintes.

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o bem é o escopo da racionalidade prática, cuja operação é de decisão. Dessa maneira, a prudência64 pode ser analisada do plano teórico, no sentido de se apreender sua verdade, e a par dessa captação a ética exige que a prudência seja aplicada no seio da práxis.

A razão prática busca o domínio das paixões, do irascível e o desiderável, emanando preceitos às ações livres, fazendo descer a verdade contemplativa ao domínio da vontade.65

Hodiernamente, no mundo utilitário, prevalece a astúcia em substituição à prudência, conquanto se busque prevalentemente a eficácia, eleição de meios efetivos, sem preocupações com a moralidade destes mecanismos, ou seja, enquanto direito é meio, sua moralidade é prescindível, para manutenção de fins sistêmicos.

Não significa a prudência uma abdicação total da eficácia, no sentido de que haja uma renúncia à lesteza na opção pela ação prudencial, até porque a argúcia, diferentemente da astúcia, imbrica-se com a conjectura raciocinada e ponderada, ser solerte, desvelando o oculto das teses e dos acontecimentos que não se apresentam categórica e obviamente em certas circunstâncias, sem que isso possa romper com a celeridade, mas, de alguma forma, exigindo o compromisso com a labuta.66

O que merece registro, outrossim, é que a prudência persegue a moralidade dos meios, e por esse aspecto é parte da ética, ao passo que a astúcia, grande propriedade contemporânea, quadra-se no sítio dos vícios, por não considerar moralidade e perseguir, puramente, a eficácia dos meios.

O prudente requesta a intelecção profusa do problema colocado, atendendo às suas circunstâncias, além de ter experiência da sinderese com quem a prudência

64 Fundamental que haja teoria nas coisas práticas, porque ao se conhecer a verdade sobre o plano pratico, no mundo ético, tal teoria cognoscível, deve ser implementada no mundo ético.

65 Aristóteles, ao manifestar-se sobre a vontade, o sítio da ação, salienta que a ação do homem visa, sempre, o bem, distinguindo entre bem real e bem aparente, o primeiro autêntico, o segundo equivocado, porque não verdadeiramente bom. O real é o adequadamente verdadeiro, que independe da subjetivação de quem o conhece, a despeito das condições hermenêuticas no ato de compreender.

66 André Comte-Sponville. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins e Fontes, 2.009, p. 37 e seguintes.

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se vincula e se irmana. E não é só, a docilidade, a capacidade de ouvir e aprender com quem conhece, é outra propriedade da prudência, abrindo flancos à dialética clássica.

No juízo prudencial há um silogismo prático, cuja premissa maior está na lei positiva, nos princípios gerais da razão prática, a própria sinderese, e aqui contida a noção de justiça, como dar o devido segundo o mérito, mas a circunspecção do ponere causae como juízo da premissa menor é de elementar importância, tratando-se de uma situação particular, de cujo ajuste exsurgirá, do juízo prático, uma decisão e escolha, designada de sentença por Tomas de Aquino.

Seja para conhecer os princípios universais da lei natural, seja na cognição do real concreto da premissa menor, é fundamental o esforço e a labuta, porque reputado imprescindível inteligir a moralidade dos meios, renuncia-se à mera eficácia racional na consumação dos fins. Entra em cena a verdade no âmbito universal e no particular, pressupondo-se, na esfera da prudência, que sempre haja possibilidade de cognição do ser no seu mais profundo significado.

Somente o realismo clássico, nessa medida, pode contribuir com o método jurisprudencial pleno que atinge a justiça como finalidade. Qualquer caminho prudencial pressupõe o real, o metafísico, a captação que deságua em poiese. Renuncia-se à facilidade da produção pura pela racionallidade.

Assim o real da justiça está pressuposto na metodologia realista, algo que se torna eclipsado no mundo cartesiano e culmina com o historicismo antetético frente o idealismo subjetivo (que não pressupõe a verdade, mas tende a rebater a idealidade subjetivada). De qualquer modo o ser da justiça e da pessoa, histórico, porque dinâmico, potência que se torna ato, é transcendente à historicidade, porquanto os fins já estão marcados pela Causa Incausada, e a cultura vai sendo descoberta na experiência e não criação da inteligência humana.

Esse mundo real da justiça que independe da operação psíquica da justiça do agente, senão que reconhece o justo no fato, na coisa do direito, e que pode ser apreendido pelo jurista por haver conaturalidade com o essencial do jus, ainda que essa captação não seja em plenitude diante dos limites interpretativos do hermeneuta, gera uma representação do processo, com os desvios contingentes próprios do humano, resultado da captação.

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O ponto de partida não é o pensamento, a ideia, senão a realidade da justiça, no concreto, que passa pela apreensão, uma aptidão da alma, fazendo-se representar como noema, uma produção burilada, literalmente compreensão e decisão de justiça.67

Com efeito, a prudência submete o método a profundas transformações, não sendo pura dedução de regras pré-existentes, caindo por terra a lógica analítica e axiomática. Arremate-se, com Villey, que “esse sistema dedutivo de normas, esses tratados teóricos abstratos, este falso catecismo totalmente justo e bom para o ensinamento elementar, não mereceria o nome de direito, eis que cada nova solução pode escapar a seu empreendimento. Se se confundir direito com a ficção teórica erigida pelos professores, o direito perderia a sua essência; sua alma que é de proceder sem cessar por uma outra voz dedutiva”.68

Com Viehweg se pode afirmar que o direito é jurisprudência, prudência como virtude que requer conhecimento dos homens, não de forma dogmática, senão dialética, tópica, retórica, além de científica e artística.69

A afeição à justiça remete ao método jurisprudencial pleno, porquanto adjun-ge sensibilidade e racionalidade, intuição e prudência, experiência e pensamento, práxis e teoria, objetivando a construção da regra da situação concreta70. Essa orientação de plenitude nas faculdades cognitivas é que permite a solução justa do problema apresentado.

Recorrendo ao método de direito romano clássico, Eduardo Vera Cruz Pinto, designado de jurisprudencial pleno, amalgama, a “cultura jurídica, técnica in-terpretativa, sensibilidade à justiça, sentido de equidade, bom senso decisório, experiência aplicada, argúcia argumentativa e capacidade criativa.”71

67 Perelman, Chain. Lógica Jurídica. Tradução Vergínia K. Pum. São Paulo: Martins e Fontes, 2.000, p. 63.

68 Villey, Michel. Seize Essais de Philosophie du Droit. Paris: Dalloz, 1.969, p. 267.69 O pensamento tópico é essencialmente problemático e dialético, superador da visão apodítica.

Há uma predominância da invenção, uma ars inveniendi, que, sem descartar a lógica, precede-lhe. In Viehweg, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Uma Contribuição à Investigação dos Fundamentos Jurídico-Científicos. Tradução da 5ª edição alemã, revista e ampliada de Kelly Susane Alfen da Silva. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 2.008, p. 90/91.

70 Eduardo Vera-Cruz Pinto. Curso de Direito Romano. Volume I. Programa. Método. História. Fontes. Actores judiciários. 1ª Ed., Caiscais: Princípia Editora lda., 2.009, p. 110.

71 Eduardo Vera-Cruz Pinto. Curso de Direito Romano. Volume I. Programa. Método. História. Fontes. Actores judiciários. 1ª Ed., Caiscais: Princípia Editora lda., 2.009, p. 111.

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Se o dever ser está fixado no plano normativo, há um sentido ultralegal no direito que desafia o jurista a realizar justiça diante da lesão e na sua proporção, defenestrando o apriorismo do dever ser dogmatizado, recordando que sempre estarão envolvidas pessoas no conflito jurídico.

O conhecimento do direito haverá de ser perquiridor, retomar a experiência dos juristas predecessores e à bagagem pedagógica de que é prenhe o clássico direito. Isso tende a permitir a desconstrução do hermetismo próprio do direito político legalizado, capacitando o jurista a compreender a vida que flui pelo direito, desobstruindo-se dos vícios do poder que cooptou o direito para dirigir a sociedade72.

O recurso à autoridade em substituição à potestade é o prestígio do método jurisprudencial pleno, remontando às regras do jus sedimentadas cultural e consuetudinariamente, evidenciando de quem promana o direito e a quem não o pertence, ou seja, no equacionamento dos conflitos pela dialeticidade que não aniquila as diferenças, mas promove a solução compromissória, é o jurisprudente que labora a justiça, com autoridade que lhe é ínsita.

6. conclusões

Pessoa é conceito rico em metafísica, deflui de intenso debate filosófico e teológico e não pode ficar à mercê de uma axiologia ideológica protagonizada pelo culturalismo relativista do Século XXI, que, pelo viés hermenêutico, reduz-lhe ao mínimo existencial e a submete à eficácia sistêmica.

A metafísica apresenta uma legislação da natureza da pessoa que prende fato a causa por lei, e como há certa incompletude, ao menos um obscurantismo na cognição destas normas da natureza, tratando-se de evidentes indemonstáveis,

72 Eduardo Vera Cruz-Pinto ressalta que a descaracterização do direito tornou-lhe um instrumental do poder político, e o Estado passa a gozar o império de soberania sobrepondo-se à comunidade. Mesmo a função judiciária revela todo o funcionalismo sistêmico-político do direito atual, porquanto resseca a busca do justo e apõe o aplicador como mero administrador a aplicar o hipertrofiado conjunto de leis que tudo regula e tudo dispõe. Completa o mestre: “A jurisprudência criadora na perenidade da ars inveniendi reaproxima-o ( o Direito) das pessoas e dessacraliza o legislador-político e o juiz-funcionário.” Eduardo Vera-Cruz Pinto. Curso de Direito Romano. Volume I. Programa. Método. História. Fontes. Actores judiciários. 1ª Ed., Caiscais: Princípia Editora lda., 2.009, p. 114.

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que, à luz da razão humana, exigem o conhecimento sensível, fragmentário, tanto da natureza do homem, quanto da ordem espontânea dos grupos, onde a liberdade é pedra angular, o direito passa a ser uma adaptação às situações cambiáveis.

Eis a razão de se construir o direito positivo, complementar, a partir da natureza, como passo do justo rumo ao bem comum.73

Em última ratio a pessoa é o centro de toda a normatividade, aloca em si uma metafísica de abastança infinita, trata-se de ser ordenado ao fim, fraterno e aberto ao outro, movido pela Causa Incausada, passando de potência, contingência, a ato, perfeição possível, transcendente vertical e horizontalmente, busca o Criador e no percurso anseia o ético, o justo, o virtuoso, tudo isso por livre arbítrio, embora em uma espécie de liberdade determinada pelo Bem, que, negada, gera o nada, o embotamento, a estagnação.

Expansão de humano à pessoa, eis o brilho da dignidade enquanto fundamen-to de todo o direito. Cabe à norma jurídica, ao direito positivo, traduzir essa lei da natureza infundida no âmago do humano, e na ausência de legiferação, ao Estado juiz realizar essa condição humana e, por questão de justiça, reconhecer as dificuldades e percalços que grupos, classes, categorias ou pessoas enfrentam para, livremente, engajarem-se nesse processo de edificação, gerando-se a suplência indispensável na trajetória exortada por todo e qualquer ser humano na busca de seu personalismo.

Pessoa é plenitude metafísica que a Constituição infunde como centro de todo o Direito e Estado (política). A filosofia do realismo clássico é a doutrina de resgate que quebranta os relativismos valorativos, fixa os primeiros princípios sem os quais a pessoa e justiça desvanece, mas imprime dinamismo no direito ao reconhecer o potência no ser, seja da pessoa, seja da justiça, tornando o Direito mobilista e tradutor da natureza das cosias, sem, contudo, permitir-lhe pura relativização e nominalismos travestidos de justo e digno.

A virtude da justiça que relaciona pessoas requesta um direito que adjunge coisas humanas e divinas, a arte do bom e do équo, trabalho de Penélope, que

73 Michel Villey. Saint Thomas et L’Immobilisme. In Seize Essais de Philosophie du Droit. Paris: Dalloz, 1.969, p. 102/103.

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supõe prudência, restitui ao jus a ética suprimida no empirismo racionalista ou no idealismo subjetivista.

A prudência imanente ao método do jurista é garantia de que o mesmo não seja transformado em funcionário, nem esparja decisões de potestade, senão que o direito seja criado e interpretado por ato de autoridade.

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a recepção da hermenêutica filosófica na filosofia do direito brasileira

Paulo Sérgio Weyl Albuquerque Costa1

Ricardo Araujo Dib Taxi2

Resumo

O presente artigo pretende apresentar de que forma a corrente filosófica muito trabalhada no século XX sob o rótulo de hermenêutica filosófica foi recepcionada pela filosofia do direito no Brasil. Buscar-se-á mostrar primeiramente por quais razões tal recepção se deu a partir do pensamento de Hans-Georg Gadamer, e quais são as questões fundamentais postas pelo pensamento brasileiro cuja obra gadameriana parece dar um novo impulso investigador. Além de desvelar tal impulso, o trabalho buscará também mostrar os limites dessa recepção, os pontos em que a mesma prendeu-se a uma tradição positivista que, ao mesmo tempo em que busca, obstaculiza as possibilidades de uma visão hermenêutica do Direito. Essa tese será construída pondo em confronto a raiz aristotélica da hermenêutica e ânsia cientificista de uma teoria que ensine os juízes a decidir, o que vai de encontro a toda uma tradição amparada na ideia de prudência.

Palavras-chave

Hermenêutica filosófica; Teoria da decisão; Tradição.

Abstract

This paper aims to present how philosophical hermeneutics have been received and re-arranged within Brazilian philosophy of Law. Firstly the research

1 Coordenador do Programa de Pós Graduação em Direitos Humanos da Universidade federal do Pará, 2007/2011, Coordenador da Rede de Pesquisa PROCAD NF, UFPa, Unisinos e Unicap, Graduação em Direito pela UFPa (1988); Mestre em Direito pela PUC-RJ (1997) e doutor em Direito PUC-RJ (2004). Professor Adjunto da Universidade Federal do Pará, com interesse em filosofia do direito e crise do positivismo jurídico e jurisdição em direitos humanos. Ex Consultor Jurídico do Ministério do Trabalho e Emprego; Advogado. [email protected]

2 Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Pará, com foco acadêmico em hermenêutica e Filosofia do Direito. Professor De Introdução ao Estudo do Direito e Filosofia do Direito no Centro Universitário do Pará.

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will try to find out why the Brazilian reception of philosophical hermeneutics was concentrated on Gadamer`s work, that it, which fundamental questions made gadamerian work so close to Law here. Further, the attention will be directed to the limits of that approach, to the point where Brazilian philosophy of law, influenced by a long positivistic tradition, search and forbids at the same time the path to a hermeneutical view of Law. Such a thesis will be developed by confronting the Aristotelian vein of philosophical hermeneutics against the scientific aim of a theory able to teach judged how to decide cases, what clearly goes against a whole tradition sustained by the idea of prudence.

Key words

Philosophical hermeneutics; Theory of decision; Tradition.

1. introdução

Nas últimas décadas, a filosofia do direito no Brasil tem se voltado cada vez mais para a questão da hermenêutica, isto é, para os problemas concernentes ao difícil ato de transformar textos abstratos em normas concretas. O que outrora fora um tópico marginal na investigação jusfilosófica hoje ocupa um lugar central.

O impulso fundamental para a ampliação desse campo de estudos foi sem dúvida nenhuma a crescente crítica à forma como o positivismo jurídico tratou desse assunto. A noção de que os juristas ao interpretar estão criando sentidos discricionariamente e que isso tem simplesmente que ser aceito e a incerteza daí advinda admitida como um mal incontornável da práxis jurídica já não convence mais. Contrariamente a essa visão discricionarista, os juristas passaram a buscar por diversas formas uma resposta mais satisfatória para essa questão.

Nesse ponto é importante lembrar, por mais óbvio que seja, que a aceitação da inevitável discricionariedade no ato de interpretar é um corolário defendido pe- los positivistas no século XX, cujos nomes mais importantes são sem dúvida Herbert Hart e Hans Kelsen. Tal visão se diferencia bastante do chamado positivismo exegético, segundo o qual os juízes deviam aplicar os textos legais literalmente, sendo proibidos de interpretar. Embora muitos no Brasil ainda pensem nesse tipo de raciocínio quando falam em positivismo, tal tese já fora amplamente rechaçada pelos próprios positivistas.

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Em todo caso, sendo o positivismo exegético hoje visto como ingênuo no que toca à interpretação e os positivismos de Kelsen e Hart insatisfatórios por simplesmente aceitarem que a subjetividade dos julgadores permeia muitas vezes totalmente o significado das normas por eles aplicadas (embora isso seja mais aplicável a Kelsen do que a Hart), novas possibilidades passaram a ser buscadas, desde o pós-positivismo principiológico de Dworkin à argumentação jurídica alexyana e retórica perelmaniana.

Dentre as possíveis teorias capazes de resolver o “problema da discri-cionariedade”, a hermenêutica filosófica tem sido, ao menos no Brasil, uma das escolas mais discutidas, e mesmo seus críticos hoje estão de acordo com algumas de suas premissas fundamentais.

A hermenêutica filosófica, para fazer um brevíssimo resumo, é uma escola filosófica surgida no século XX sob o impulso filosófico da fenomenologia de Edmund Husserl e sobretudo de seu ulterior desenvolvimento realizado pelo filósofo alemão Martin Heidegger, cuja enorme influência se desdobrou em diversos filósofos contemporâneos, desde seu discípulo mais próximo Hans-Georg Gadamer, que será bastante revisitado neste trabalho, até filósofos como Paul Ricoeur, Jurgen Habermas, Karl Jaspers e muitos outros.

O caráter filosófico da hermenêutica é geralmente explicado por meio de uma analogia com a filosofia crítica kantiana. No mesmo sentido em que, face a filosofia pré-crítica, Kant afirmou a necessidade de, antes de estudar os objetos do conhecimento, voltar a reflexão àquele que pode conhecer, isto é, o sujeito e sua capacidade de conhecer por meio da razão, também a hermenêutica filosófica não pergunta como se deve interpretar, mas o que significa interpretar, investigando as condições de possibilidade de toda interpretação.

Mesmo não tendo aspirações doutrinais, ou talvez exatamente por não as ter, a hermenêutica filosófica foi capaz iluminar de maneira peculiar a facticidade da hermenêutica jurídica. Enquanto essa movia-se inteiramente impulsionada pela busca de uma interpretação que fosse fiel ao “espírito da lei” e que garantisse a segurança jurídica, a dimensão de atribuição de sentido que existe em toda interpretação ficou obscurecida. De igual maneira, a forma como através das interpretações individuais fala uma tradição fora também muito pouco levada em consideração.

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A partir do impulso dado pela hermenêutica filosófica, uma grande gama de questões histórico-culturais fora abordada, tendo a dimensão da linguagem como o fio condutor. É assim que, por exemplo, no Brasil tem sido muito corrente a percepção de que, em que pese a Constituição Federal ser bastante garantista e pautada em direitos fundamentais, o poder judiciário persiste dando a ela interpretações bastante autoritárias. Mais do que simplesmente um equívoco técnico, trata-se de um choque de horizontes, para usar o termo gadameriano.

Pode-se perceber então que a abordagem hermenêutica, ao menos em sentido filosófico, torna-se uma crítica cultural, que implica uma compreensão da tradição por meio da qual a linguagem de um povo ganha sentido. Trata-se de uma investigação holística, que envolve ao mesmo tempo que uma crítica linguística, uma crítica estética e histórica. É fácil deduzir que esse tipo de aproximação enriquece bastante a percepção do fenômeno jurídico. Contudo, na mesma medida em abre a percepção do jurista para ver o direito dentro do campo maior da linguagem e da tradição, desloca a iniciativa inicial que levou aos estudos hermenêuticos, que era efetivamente a contenda com o positivismo jurídico e a busca por algum tipo de teoria que dê uma resposta para a questão da arbitrariedade.

Nesse artigo, serão abordadas duas grandes questões concernentes à recep-ção da hermenêutica filosófica pela filosofia do direito brasileiro. Em primeiro lugar, será posto em questão o fato de que tal recepção tem se dado quase que exclusivamente a partir de Gadamer, como se as possibilidades da hermenêutica filosófica se reduzissem inteiramente à perspectiva gadameriana. Tal redução, como será defendido aqui, acaba limitando as possibilidades desse encontro entre filosofia do direito e hermenêutica, na medida em que a própria filosofia gadameriana tem vários pontos aporéticos, os quais não são equívocos do autor, mas uma condição de seu próprio pensamento, que não era nem queria ser totalizante.

A segunda questão abordada, que pode ser vista como uma especificidade da primeira, diz respeito às possibilidades e limites da recepção gadameriana pelo pensamento jurídico brasileiro. Como dito no começo, o impulso inicial para tal recepção fora desde sempre a questão do embate com o positivismo. Por tal razão, ou ao menos por influência desse contexto, a hermenêutica gadameriana acabou sendo incorporada no Brasil como uma teoria da decisão, isto é, como

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uma forma de dizer como se deve interpretar as leis para se estar de acordo com a Constituição.

Assim, muito embora a hermenêutica filosófica negue veementemente a questão do método, sua incorporação à filosofia do direito acabou guiada por uma discussão que parte inteiramente desse âmago.

Nesse introdução não se adiantarão hipóteses fechadas, até porque a presente pesquisa se pretende muito mais como um recolocar de problemas fundamentais do que como um texto assertivo. Em todo caso, o forte impulso anti-discricionarista que guia por exemplo Dworkin e toda uma corrente de pensadores que se consideram críticos ao positivismo jurídico, na medida em que acabam dizendo como se deve evitar esse problema, acabam buscando, de uma forma ou de outra, controlar o processo de interpretação judicial. Talvez a tradi-ção positivista continue, veladamente, ecoando aqui.

2. potencialidades e limites da hermenêutica gada-meriana relacionados à interpretação jurídica

Quando o assunto na filosofia do direito brasileira é a hermenêutica filosófica, a obra mais citada é sem dúvida Verdade e Método – traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica (GADAMER, 2013), considerada o trabalho de maturidade do filósofo alemão, no qual Gadamer finalmente condensa seu trabalho de várias décadas e tenta, a partir de várias percepções que possuem alguma ligação, construir uma tese central acerca da hermenêutica.

A obra de Gadamer possui um fio condutor claríssimo desde o princípio: trata-se de mostrar que os conceitos de conhecimento, verdade, interpretação foram amplamente dominados pela lógica das ciências naturais, que a partir da modernidade invadiram os demais campos do conhecimento humano e pretenderam impor-se como o único método capaz de gerar um conhecimento efetivamente seguro.

Tal influência se de tal maneira que as próprias ciências do espírito, quando buscaram legitimar-se epistemologicamente, acabaram fundamentando-se na mesma lógica das ciências naturais. Mesmo Wilhelm Dilthey, que é conhecido historicamente como o fundador de uma metodologia própria às ciências do

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espírito, acabou prendendo-se ao ideal de objetividade das ciências duras e assim não pôde levar adiante a sua profunda inspiração de que a hermenêutica deveria partir do mundo da vida.

Assim, Gadamer buscou em Verdade e Método liberar a hermenêutica das amarras dessa objetividade, mostrando que a compreensão correta não depende um método rígido, mas de uma certa sensibilidade do interprete em rever constantemente seus preconceitos, cuja garantia de acerto não pode ser remetida a critérios formais, mas deve ser auferida no próprio processo singular da compreensão. Não se diz a alguém à priori como se deve interpretar algo, pois tal pergunta, se é respondida, o é no próprio processo interpretativo.

Quando se trata da hermenêutica, a metodologia desenvolvida antes de Gada-mer exigia que o interprete se desfizesse de seus preconceitos para que pudesse apreender efetivamente a intenção do autor. Isso era importante sobretudo quando se tratava de um texto escrito em outra época, pois nesse caso exigia-se do interprete um afastamento não apenas de seus preconceitos mas de seu próprio contexto histórico, podendo assim apreender o contexto original no qual o texto fora escrito.

Esse tipo de metodologia, como se sabe, fora e ainda é amplamente popular no pensamento jurídico, uma vez, na hermenêutica jurídica, respeitar a “intenção do autor” significa buscar o espírito do legislador, garantindo assim, embora isso seja controverso, a democracia e a segurança jurídica, uma vez que será respeitada a autoridade dos textos legais. Não é por outra razão que o jurista Emilio Betti sempre considerou-se um rival de Gadamer e sempre considerou equivocado abandonar essa visão metódica e objetivista da interpretação.

Quando, contrariamente a tudo isso, Gadamer veio dizer que os preconceitos do interprete não são um obstáculo à compreensão, mas sua condição de possibilidade, um novo horizonte se abriu para a hermenêutica. Seguindo os passos de Heidegger, Gadamer afirmou que o interprete não controla a história e a tradição como se fossem ferramentas que podem ser descartadas a qualquer momento.

Embora não use os neologismos heideggerianos3, Gadamer vê o homem não como um sujeito que se relaciona com objetos, mas como alguém que está desde

3 É bastante conhecida a crítica heideggeriana feita a Gadamer por conta da recusa por parte deste último em utilizar a linguagem fenomenológica de Ser e Tempo. Heidegger acreditava que

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sempre lançado no mundo (ser-no-mundo), e sofre os efeitos da tradição mais do que os controla. A própria estrutura da compreensão é uma estrutura de um projeto de sentido que se joga perante o texto e pode ou não ser confirmado à medida em que a leitura prossegue. É apenas o malogro da compreensão, apenas a percepção de que o sentido anteriormente projetado não se coaduna com o novo sentido que possibilita a modificação da compreensão.

Esse projetar da compreensão, ademais, está sempre ligado à uma situação concreta. Em outras palavras, o interprete não tem como compreender uma lei, um salmo bíblico ou uma passagem de Hamlet abstratamente, mas o faz sempre a partir de um impulso dado pela sua situação histórica. Assim, a compreensão é sempre uma espécie de auto-compreensão. A sensação de que realmente se compreendeu algo acontece quando esse impulso situacional se reflete na leitura do texto como um todo. Ainda assim, contudo, trata-se de uma re-interpretação.

Isso pode ser verificado especialmente no que tange à interpretação dos textos legais mais fundamentais. Quando, por exemplo, em uma palestra sobre a dignidade da pessoa humana na Constituição Federal, o palestrante fala de maneira brilhante e impressiona fortemente a plateia, que termina sentindo-se renovada pela nova compreensão ali apreendida, a sensação que dá é a de que o palestrante efetivamente desvelou a essência da dignidade humana. No entanto, se a situação for vista atenciosamente, perceber-se-á que na verdade o palestrante fez uma atualização, uma tradução da dignidade para os ouvidos atuais, ou seja, falou de uma forma que fez um sentido completo para os que ouvem no presente.

O mesmo sentido pode ser visto também em uma sentença judicial. Muitas vezes quando os juristas estão convictos de que tal decisão judicial foi extremamente justa, foi uma excelente decisão, que efetivamente respeitou a lei ou o direito como um todo, isso se dá porque aquela decisão falou o que precisava ser dito naquele contexto. É exatamente essa relação entre uma situação na qual

a crítica à tradição metafísica ocidental exige a destruição do solo linguístico no qual aquela fora construída, recusando assim o próprio termo homem ou ser humano, substituindo-o pelo conhecido Dasein. Gadamer, por outro lado, embora concorde com Heidegger acerca dos preconceitos que vêm velados na tradição, não abdica da linguagem ordinária, da forma comum como as pessoas falam, mas busca desvelar e refletir inserido nessa própria linguagem. Heidegger não considerou Verdade e Método como uma continuação de Ser e Tempo sobretudo por essa recusa gadameriana em aderir ao caminho linguístico-fenomenológico.

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uma compreensão traduzida ou atualizada de algo parece não obstante fiel ao conteúdo que Gadamer entende como fusão de horizontes4.

Pois bem, na medida em que esse aporte teórico libera a hermenêutica jurídica das amarras objetivistas legadas pela tradição positivista, o conceito de boa interpretação passa a se relacionar com o seguimento a uma tradição e com a busca da chamada fusão de horizontes.

De fato, muito ainda poderia ser dito acerca das possíveis potencialidades abertas à filosofia do direito por meio da hermenêutica filosófica de Gadamer. Contudo, por questões metodológicas, serão expostos agora alguns limites desse projeto. Esses limites, para tornar a questão bastante enigmática, não estão em outros pontos além dos que até agora foram expostos, mas muitas vezes a mesma ideia que abre possibilidades fecha outras. A mesma via que permite uma renovação de um pensamento leva-o a uma aporia difícil de sair.

Em primeiro lugar, a contenda de Gadamer contra o método, por mais frutífera que seja na medida em que libera a hermenêutica das amarras que remontam a Descartes e que impediram por um longo tempo os juristas de terem uma consciência mais apurada do que faziam, foi contudo bastante excessiva. Por se afastar excessivamente do método, Gadamer acabou no fim da segunda parte de Verdade e Método dizendo que a compreensão simplesmente acontece. Não é um movimento pré-ordenado, mas praticamente o milagre de um diálogo raro mas possível entre o mundo do interprete e o mundo do texto, exemplificado pelo interprete que, após ler um poema dezenas ou centenas de vezes sem que aquilo pareça fazer sentido, subitamente percebe algo que estava ali desde o início e que lhe passará desapercebido.

Ora, é fácil perceber que essa visão, diga-se de passagem muito mais ligada a Schleiermacher do que Gadamer parece admitir, diz pouco para os juristas acerca de seu trabalho. Como dito na introdução, os juristas procuram teorias para saber como agir, e uma teoria que diz que o agir correto, que nesse caso é a compreensão efetiva, “simplesmente acontece”, não tem como responder minimamente àquele tipo de anseio.

4 É nesse sentido que Gadamer afirma que “ nós partimos do conhecimento de que também a compreensão que se exerce nas ciências do espírito é essencialmente histórica, isto é, que também nelas um texto só pode ser compreendido se em cada caso for compreendido de uma maneira diferente”. (GADAMER, 2013, p. 408).

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Como já foi muito afirmado, o anseio de Gadamer em recusar o método, que fez Lênio Streck afirmar que Verdade e Método poderia ser lido Verdade contra método (STRECK, XX), talvez tenha ido longe demais. A recusa do método more geométrico cartesiano não precisa necessariamente recair numa compreensão que simplesmente acontece. É justamente esse caminho intermediário que parece mais frutífero à hermenêutica jurídica. É importante ressaltar aqui que a própria hermenêutica filosófica em vários autores como Umberto Eco, Paul Ricoeur etc. não mantém essa “guerra declarada” ao método que ressoa ao longo de Verdade e Método.

No cerne dessa questão, como é fácil perceber, encontra-se a própria ques-tão fundamental da hermenêutica como uma teoria normativa ou como uma teoria apenas descritiva. Se no famosíssimo prefácio à 2ª edição Gadamer afirma taxativamente que seu objetivo não foi criar uma doutrina da compreensão, sua obra muitas vezes exibe pontos doutrinais.

Quando, por exemplo, Gadamer foi chamado por Habermas e por muitos outros de conservador na medida em que sua hermenêutica não tem nada de crítica e simplesmente aceita a autoridade da tradição, Gadamer se defendeu dizendo na obra O problema da consciência histórica (GADAMER, 2003) que a verdadeira questão do preconceito não é simplesmente reconhecer que toda compreensão é preconceituosa, mas possibilitar que o interprete perceba qual pré-compreensão está pautando veladamente a sua compreensão, para assim poder pô-la ao crivo da crítica.

Não só nesse como em diversos outros aspectos, é bastante pertinente supor que a hermenêutica gadameriana tem sim pressupostos normativos (para não dizer doutrinais). Porém, sua recusa em admitir essa questão dificulta sobremaneira a sua recepção no direito e confunde os juristas, que por ora referem-se à hermenêutica filosófica como puramente ontológica e por ora usam-na como uma doutrina. Seria fácil dizer simplesmente que os juristas não entenderam Gadamer, mas parece mais verdadeiro crer que esse é um ponto aporético na própria filosofia gadameriana. Talvez o próprio Gadamer seja muito mais debitário da tradição que remonta a Dilthey do que pareceu admitir.

Por fim, o conceito gadameriano de tradição é muito rico mas pouco dissecado pelo próprio autor. No Brasil, onde Gadamer tem sido usualmente

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lido em paralelo com Ronald Dworkin e sua ideia de uma história institucional, algumas questões ficam totalmente sem resposta, e veja-se que são questões que foram trabalhadas por Heidegger. E se, por exemplo, a tradição dos direitos fundamentais levar a uma aporia, a um beco sem saída? E se a própria tradição moral que tem sido tão utilizado quando se trata dos princípios jurídicos for uma tradição necessariamente teológica e que esteja fadada ao niilismo como consequência de suas insuficiências?

3. o eco positivista na interpretação brasileira de gadamer

Como já dito na introdução, a recepção de Gadamer pela filosofia do direi- to no Brasil se deu a partir do embate com a questão da discricionariedade positivista, muito em razão de que as questões postas por Kelsen e Hart nortearam o centro dos debates no século XX.

Contudo, a crítica ao positivismo feita no Brasil não se resume à questão da discricionariedade, mas ataca também a questão do juiz amarrado na lei, do jurista que não consegue perceber que sua tarefa trespassa os textos em busca de decisões moralmente justas, ou para usar a linguagem contemporânea, de decisões que materializem direitos fundamentais.

A crítica ao positivismo, portanto, em seu aspecto hermenêutico, se encontra em uma certa aporia. Por um lado, critica-se a figura do Juiz boca da lei, do juiz que no Brasil condena a 4 anos de prisão um ladrão de galinhas por crer que isso é o que lhe exige a democracia e a supremacia da lei. Por outro lado, contudo, o Juiz que não se prende a lei e sente-se livre para decidir conforme sua consciência cai na crítica da discricionariedade, passando uma imagem de que o direito será aquilo que esses indivíduos querem que seja, destruindo a imagem tradicional da segurança jurídica.

Pode-se imaginar, frente a esse contexto, porque Dworkin tem feito tanto sucesso e sido cada vez mais estudado no Brasil, na medida em que o autor norte-americano construiu sua teoria inteiramente voltada a dar uma resposta à questão da discricionariedade no Common Law, uma teoria que, em que pese suas incontáveis aporias, pretende permitir que os juízes busquem holisticamente a melhor resposta do ponto de vista moral e ao mesmo tempo nega que com

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isso esteja dando “discricionariedade em sentido forte” aos juízes (DWORKIN, 2002).

Em todo caso, uma vez que ida a Gadamer se deu frente a essa discussão, é compreensível que a hermenêutica filosófica tenha sido buscada desde o começo como uma resposta à questão da discricionariedade. Lênio Streck, por exemplo, que no Brasil é sem dúvida o principal estudioso a resgatar a hermenêutica filosófica como crítica ao positivismo, não hesita em afirmar, usando a terminologia gadameriana, que os juízes não podem julgar com sua própria consciência, mas devem buscar na tradição a construção de uma verdadeira teoria da decisão, que garanta a democracia (STRECK, 2009).

Desde então, a ideia de que a hermenêutica pode fornecer uma teoria da decisão tem sido exaustivamente repetida no Brasil, geralmente ligado tal teoria às ideias de preconceitos legítimos desvelados na tradição.

Essa ideia é a fonte crítica principal da presente pesquisa. Não se pode nem se quer negar que a hermenêutica filosófica efetivamente transformou a reflexão jusfilosófica no país. No sentido ontológico, a hermenêutica mostra que a ideia da discricionariedade se baseia numa concepção filosófica na qual o sujeito atribui individualmente sentido aos textos, como o relativismo moral do positivismo parecia sustentar. Essa posição, contudo, ignora que o sujeito está inserido em uma tradição e que a afirmação corrente de que em caso de duvidas interpretativas o Juiz decidirá discricionariamente não leva em conta que essa discricionariedade é guiada e permeada por preconceitos que não são individuais mas histórico-sociais.

É impossível continuar falando em relativismo e individualismo moral uma vez que se tenha aceitado as premissas da hermenêutica filosófica, sobretudo atentando para a herança heideggeriana que exclui inclusive o termo sujeito, preferindo ser-aí uma vez que tal expressão denota claramente que o sujeito já é desde sempre mundo. Ser-aí, vale ressaltar, não significa um sujeito colocado no mundo, como um livro em uma caixa, mas significa que o chamado sujeito já está desde sempre impregnado no mundo. A tradição filosófica moderna, centrada no sujeito, criou artificialmente essa figura autônoma, sustentando uma autonomia que nunca existiu de fato (HEIDEGGER, 2008).

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Para além disso, contudo, no momento em que a hermenêutica passa de filosófica para normativa, para a construção de uma teoria da decisão, ocorre uma séria distorção com relação ao pensamento gadameriano. A chave para com-preender essa distorção se encontra no capítulo de Verdade e Método chamado A atualidade hermenêutica de Aristóteles, no qual Gadamer situa a hermenêutica dentro da tradição ética, no que Aristóteles conhecia como phronesis.

Nesse capítulo, Gadamer lembra a conhecida distinção aristotélica entre a sabedoria, que pode ser ensinada posto que seu fim é sempre conhecido, bastando então calcular os meios adequados, e a prudência, que não se dá ao mesmo tipo de aprendizagem uma vez que nesse caso o próprio fim visado só é efetivamente descoberto quando se está aplicando os meios. Em termos hermenêuticos, pode-se dizer que a interpretação correta só se desvela no momento da aplicação, e ainda assim a cada vez de maneira diferente.

Gadamer chega a usar expressamente o exemplo do direito natural aristotélico para explicar que o justo natural não pode ser definido previamente, mas apenas no momento da ação. Não se trata de uma justiça que já é conhecida e precisa apenas ser materializada no caso concreto. Trata-se da questão de que na própria ação ética o agente precisará compreender o que é o justo, aquele justo. Não há nada aqui de alheamento das próprias compreensões, de suspensão dos preconceitos, mas sim um colocar-se adequadamente frente à questão.

Por fim, a prudência, virtude necessária nesse momento da ação concreta, não tem como ser ensinada ou teorizada, numa espécie de teoria da prudência. Esse é o ponto mais repetido por Gadamer em Verdade e Método II, quando publicou diversos artigos explicando e aprimorando sua obra magna. A hermenêutica, assim como a prudência e a retórica, parece mais uma questão de sensibilidade, de abertura dialogal e de compreensão da própria finitude compreensiva do que a aplicação de um método (GADAMER, 2002).

Por essa razão, sem negar os méritos da recuperação brasileira de Gadamer, é que defende-se aqui que a construção de uma teoria da decisão, aproximando Gadamer dessa interpretação instrumental de Dworkin como o incentivador da única resposta correta como algo simplesmente ali, porquanto busque responder de forma moral e corajosa às teses de Kelsen e Hart, acaba afastando Gadamer

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da tradição aristotélica cuja recuperação parece ter sido ao longo de toda sua vida uma das principais aspirações.

4. conclusões

A presente pesquisa termina com um ar de otimismo e de crença na pos-sibilidade de que a reflexão hermenêutica venha a reconstruir diversos aspectos da filosofia do direito no Brasil.

Como já dito, desde o começo o objetivo do trabalho era apontar a importân-cia e ao mesmo tempo algumas críticas à forma como a hermenêutica filosófica tem sido incorporada ao pensamento jurídico. Tinha-se como clara a ideia de que a hermenêutica efetivamente abriu potencialidades para o desenvolvimento da filosofia do direito, na medida em que alargou bastante um âmbito de analise antes bastante restrito pela estrutura positivista convencional de abordagem, que predeterminava o que poderia ou não ser discutido.

Foi dito, como é possível ler no resumo, que ao mesmo tempo em que a her- menêutica filosófica abre a visão dos juristas para o solo histórico, para a compreensão da tradição que faz parte do projeto de toda interpretação como atribuição de um sentido, a ânsia em construir uma doutrina da interpretação, uma espécie de teoria da decisão, vincula Gadamer a uma tradição que lhe é estranha e que retira da via aristotélica que é um ponto fundamental de sua filosofia.

Essa instrumentalização da hermenêutica filosófica sem dúvida se deve muito ainda à tentativa de responder à tese lançada à quase um século por Kelsen, qual seja, a ideia de que existe um ponto a partir do qual as normas não são determinadas e que os juristas precisam saber que sua atividade possui esse elemento intrínseco de arbitrariedade. Talvez a ânsia em negar qualquer possibilidade de discricionariedade e de dizer que os juízes devem suspender seus preconceitos etc. mostre como a filosofia do direito, embora se considere pós-positivista, ainda se move fundamentalmente a partir das perguntas que foram lançadas pelo positivismo. Talvez não tenha havido transição paradigmática, mas várias tentativas de crítica que contudo ainda se movimentam dentro do mesmo paradigma que pretendem criticar. Não seria a primeira vez.

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Contudo, se a questão for vista por uma perspectiva histórica, uma outra imagem parece se formar. Com efeito, seria utópico crer que uma tradição positivista tão forte, que por tanto tempo pareceu responder satisfatoriamente aos anseios da sociedade e aos anseios da academia, seria em uma ou duas décadas posta de lado e substituída por uma teoria já consolidada. Talvez os equívocos sejam uma parte necessária do processo de transição paradigmática.

Como disse certa vez Hegel ao tratar da revolução francesa, talvez o terror do tribunal revolucionário de 1792 não tenha sido uma prova de que a revolução fracassou e de que os conservadores tinham razão, mas talvez aquilo tenha sido uma etapa dialética necessária na passagem do absolutismo para a democracia pautada em direitos fundamentais. No mesmo sentido, antes que o anseio de ser ciência e de ser método deixe de ser a característica marcante do pensamento jurídico, as teorias que buscarem esse afastamento fatalmente incorporarão traços daquilo que pretendem negar. Talvez esse ranço inconfesso seja um traço fundamental da evolução de um pensamento.

Por fim, e para sair dessa especulação excessivamente abstrata, pode-se dizer que essa pesquisa buscou apontar os limites da recepção gadameriana no Brasil. Contudo, também lembrando Hegel, apontar os limites de algo de certa forma já é superá-lo. Quando se mostra até onde vai uma teoria, quando se consegue mostrar o seu limite, o ponto a partir do qual a teoria se perde em aporias insolúveis, se está ao mesmo tempo sinalizando a superação desses limites. Tal superação, contudo, é um trabalho posterior a ser realizado pela comunidade jurídica de maneira dialógica e paulatina, e uma breve pesquisa nunca teria tamanha pretensão.

Espera-se, contudo, ter esclarecido alguns pontos fundamentais da discussão, além ter mostrado ao menos uma linha recôndita da tradição que possibilitou e ao mesmo tempo limitou a leitura brasileira de Hans-Georg Gadamer.

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HABERMAS, Jürgen. Dialética e Hermenêutica. Trad. Álvaro Valls. – Porto Alegre: L&PM, 1987.

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NUNES, Benedito. Filosofia contemporânea. Belém: EDUFPA, 2004.

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a teoria do caos e sua incidência no direito

Roseli Borin1

Pietro Alarcón²

Resumo

O presente trabalho tem como elemento contributivo à Ciência Jurídica o caráter multidisciplinar da Teoria do Caos. Primeiro, por ter sido concebida por diversas áreas acadêmicas e por pesquisadores das mais variadas ciências terem depositado no seu desenvolvimento uma parcela significativa de aportes científicos; segundo pelo fato da Teoria do Caos ser tratada a partir de sistemas complexos, constituídos de forma não linear. Em razão desse caráter, a plasticidade da teoria permite adicionar novos complicadores ao sistema caótico, alguns dos quais foram inseridos nesta abordagem: estado de guerra, leis naturais e positivas. A origem das questões tratadas tem como pedra fundamental os conflitos humanos gerados a partir da Revolução Industrial e a consequente economia de massa, sempre considerando os preceitos caóticos sintetizados em que quanto mais variáveis, menos estabilidade, embora constante padrão.

Palavras-chave

Teoria dos caos; Linearidade; Fractais; Economia; Direito.

Abstract

The present work has as contributing elements to legal science, the multidisciplinary character of the Theory of Chaos; first of all for having been

1 Doutoranda em Sistema Constitucional de Garantias de Direitos – ITE; Mestre em Ciências Jurídicas – UNICESUMAR; Especialista em Direito do Estado com ênfase em Direito Constitucional – UEL; Especialista em Direito Civil – Sucessões, Família e Processo Civil – UNICESUMAR, Professora de Graduação e Pós- Graduação; Autora da obra “Identidade Genética e Exame de DNA”/Juruá. Advogada. Email: [email protected].

2 Professor Dr. Pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da PUC/SP e do Centro universitário ITE de Bauru/SP.

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designed by various academic areas worldwide and because of the researchers from various sciences have deposited in the development of this theory a significant portion of scientific contribution; second, because the Chaos Theory has been treated from complex systems, which are made up in a non-linear.For this character, the plasticity of the theory allows you to add new complexities to the chaotic system, as the ones inserted in this work: State of war, natural and positive laws, among others. The origin of the issues addressed has as cornerstone the human conflicts generated from the Industrial Revolution and the consequent mass economy, always considering the chaotic precepts that the more variables, the less stability, although default constant.

Key words

Chaos Theory; Linearity; Fractals; Economy; Law.

1. introdução

O presente estudo é uma análise, a partir da mitologia grega, da Teoria do Caos. Num primeiro momento o fito consiste em levantar alguns dos elementos que permitem aferir a origem das suas teses, bem como os motivos que levaram os cientistas a se debruçarem sobre as mesmas.

Nessa caminhada os sistemas não lineares serão abordados sob a perspectiva de Edward Norton Lorenz que demonstram a sensível necessidade de conhecimento das condições iniciais dos sistemas para determinação de seu padrão.

Por trata-se de um assunto de caráter multidisciplinar o estudo sobre a Teoria do Caos requer sejam vasculhadas diversas áreas do saber, dentre as quais, a História e a Filosofia. Certamente, será através desses estudos que tornar-se-á possível encontrar as condições iniciais que possibilitarão visualizar o impacto da tempestade que assola o Direito e a importância para a construção de institutos dentro das Ciências Jurídicas.

Em sede da Teoria do Caos abordar-se-á as revoluções, os importantíssimos fractais e os estudos populações de Robert May, indispensáveis ao vértice econômico do estudo.

No que tange a formação da sociedade humana, buscar-se-á por meio do iluminismo de Montesquieu entender o desenvolver das leis naturais e positivas,

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tendo como premissa maior a interferência de fatores naturais e humanos como fonte das leis.

Far-se-á um resgate histórico acerca das gerações de direitos sob a ótica de Paulo Bonavides a partir da perspectiva de Estado de Guerra, e logo verticalizar-se-á o estudo dos direitos de segunda geração através do principio da igualdade a fim de estabelecer um conjunto de critérios que conduzam a persuasão racional do aplicador do direito.

Por fim, tratar-se-á sob a perspectiva histórica das consequências da Revolu-ção Industrial na criação de bens de consumo de massa e seu impacto na seara jurídica.

No intuito de cumprir o intento proposto, utilizar-se-á a revisão bibliográfica, usando métodos comparativos e indutivos para chegar a uma verificação de modo geral sobre o assunto.

2. caos: mito, história e aplicações

A eterna batalha entre a ordem e a desordem, a harmonia e o caos instigaram o estudo cientifico com o objetivo de compreender e dar resposta às flutuações erráticas e irregulares encontradas na natureza e embora a ciência do Caos seja relativamente recente, é considerada a terceira grande revelação deste século nas ciências físicas.

Importa ressaltar que como a maioria das ciências, o Caos encontra larga referência nosdeuses pagãos. A herança passada pelos gregos antigos não poderia deixar de inspirar os estudiosos que nomearam a Teoria do Caos em referência a divindade primordial grega.

Assim,para entender a razão pela qual se optou por fazer alusão ao Caos há a necessidade se descrever o Mito Grego e a função que oCaosexerce no universo da Antiga Grécia. É o que faremos a seguir.

2.1. o mito do caos

Antes de explorar a nova ciência forjada com o auxilio da Teoria do Caos, vale a pena auscultar a razão dessa denominação. Trata-se de uma hipótese científica

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bem fundamentada na qual, todavia, o termo a ser destacado não seria “teoria”, mas sim “Caos”.

A razão que motiva a exata compreensão semântica do termose funda na seguinte questão: o que a Teoria do Caos se propõe a estudar? E na sua consequen-te e aparentemente simples resposta: o Caos.

Bem por isso importa sabera ideia inicial por traz do termo. É que somente dessa maneira poder-se-á explicar a motivaçãode estudiosos comoEdward Nor-ton Lorenz, James Gleick, Steve Smale.

Semelhantemente a muitas outras palavras disseminadas no Ocidente, a expressão “Caos” tem origem grega, originária do termo “cháos”,que designa a “confusão geral dos elementos, antes da formação do mundo” (MICHAELIS, s/p.), a desordem, o abismo.

Na teologia do antigo testamento, “A terra era sem forma e vazia, e as trevas cobriam o abismo”. (BUFFONI, 1998, s/p.). Na Mitologia grega, o caos era um vazio abissal, um estado não organizado, ou o nada, de onde todas as coisas surgiam.

A expressão “caos” era usada para fazer referênciaa um vasto abismo ou umgrande vazio, Por essa via, a ideia nuclear está na constatação de que qualquer mudança, por menor que seja no início de um evento, podem produzir consequências futuras de grande proporção.

Contudo, os Mitos Gregos sofrem variações de polis para polis, é dizer, não há um padrão único, não há uma vertente única, há versões dos mesmos mitos nas mais variadas cidades-estado gregas. Essa dificuldade obriga no momento a assumir uma opção.

Sem descartar outras possíveis, na nossa análise averiguaremos a origem do mito do Caos baseado na obra de Hesíodo, que tem como mérito relevante sistematizar, através de sua arte, os mitos de origem dos Deuses.

Nesse compasso e de acordo com a Teogonia2 de Hesíodo, o Caos precedeu a origem, não só do mundo, mas também dos deuses. Veja-se que Hesiodo

2 Teogenia: “é a compilação de uma série de narrativas orais que se reúnem sob o nome de Hesíodo e trata da genealogia e hierarquia dos deuses e heróis da mitologia grega”.

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menciona na sua obra quatro deuses principais: Gaia, Tártaro, Eros e o Caos. O caos seria “a indiferenciação, o nada caótico que depois ganha forma, mas é a origem de tudo”.(CABRAL, s/d.)

Assim, o filósofo grego descreve o surgimento e o existir dos Deuses: “Sim bem primeiro nasceu o Caos, depois também; Terra de amplo seio, de todos, sede irresvalável sempre,dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado, e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,e Eros” (HESÍODO, 1991, p. 111) e completa: “Eros:o mais belo entre os Deuses imortais,solta-membros dos Deuses todos e dos homens todosele doma no peito o espírito e a prudente vontade” (HESÍODO, 1991, p. 111).

É nesse trecho da obra de filósofo que emerge a primeira potestade (poder, força) cuja existência passa a ser conferida -o Caos; cria-se assim a primigênia força divina no Universo, a primeira fonte de poder a existir. E, a seguir, surgem, em perfeita ordem, Gaia, a Terra de amplo seio, o Tártaro e Eros.

Mas, o mito de construção do universo continua, pois as forças basilares não se estabelecem de maneira plena, ou seja, não há de se falar ainda em uma ordem. Note-se que, por derradeiro, deve se continuar a observação de tudo isso porque há, desde logo, intensa participação do Caos.

De todas as divindades trazidas à existência, o Caos, assim como a Terra, em um primeiro momento gera divindade a partir dele mesmo, dos seus próprios pedaços: são os casos de Êrebro (Escuridão) e Nix, (a Noite negra). Tem-se aí, segundo a visão de JaaTorrano (1991) uma das funções essenciais do Caos, gerar a partir da cisão dos elementos (MEDIAWIK, 1993, s/p.).

Para explicar melhor esta função Hesíodo faz uma análise semântica da pala-vra Caos, que segundo sua interpretação fornece a razão essencial do poder do Caos dentro do Universo mítico grego: “O nome kháosestá para o verbo khaíno ou sua variante khásko( = “abrir-se, entreabrir-se” e ainda: “abrir a boca, as fauces ou o bico”) assim como o nome Éros está para o verbo eráo ou sua variante éramai( = “amar, desejar apaixonadamente”)” (TORRANO, 1991, p. 43).

Destarte, o Caos em sua origem semântica é um princípio de cisão no Univer-so, ele se divide para gerar outras forças divinas, trata-se de uma força ligada às regras tenebrosas que assolam a humanidade e a existência universal.

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A prole do Caos era considerada tão monstruosa que Hesíodo a estudou como se estuda a árvore genealógica de uma família, ou seja, quem era filho de quem, no caso da divindade a cissiparidade reinava, primeiro com o próprio Caos, segundo através de sua filha Nix, e mais tarde por Ériscuja prole assim se fez: “Éris hedionda pariu Fadiga cheia de dor,Olvido, Fome e Dores cheias de lágrimas,Batalhas, Combates, Massacres e Homicídios,Litígios, Mentiras, Falas e Disputas,Desordem e Derrota conviventes uma da outra,e Juramento, que aos sobreterrâneos homensmuito arruína quando alguém adrede perjura”.(TORRANO, 1991, p. 43/47).

Em contra peso, as forças nascidas da união amorosade Érebro e Nix, in-fluenciada por Éros, geraram forças capazes de produzir a vida, como é o caso de Éter, o manto brilhoso que envolve o céu e Hemera, o dia, ambos capazes de possibilitar a existência da vida (TORRANO, 1991, p. 43/47).

Em suma, das premissas de Torrano se extrai: primeiro, que o Caos é um princípio polarizador do universo junto com Éros; segundo, o Caos é a gênese da cisão, ou seja, este é o mestre da reprodução por cissiparidade, da divisão, da separação; terceiro, o Caos é a base do toda a penúria existente no universo, pois toda a sua descendência da cissiparidade de Nix é uma das forças que limitam a vida; quarto, do Caos, também, por derradeiro, através da influência de Éros sobre Nix e Érebro, nascem os pilares para o surgimento da vida, Hemera, o dia, e Éter, o céu brilhante(TORRANO, 1991, p. 43/47).

O Caos cria uma ilusão de que tudo esta bagunçado, quando na realidade as regras estipuladas por seus descendentes organizam e catalogam o universo. São ordens ocultas e imateriais que agem por sutileza e imposição.

2.2. a história da teoria do caos

O estudo Mitológico do Caos forneceu uma análise e uma expectativa. Na análise a deidade primordial se comportava de modo muito peculiar, influenciando a tudo que existe no mundo material, seja através de sua extensa prole de deidades, também por seu poder régio de cisão; na expectativa o primordial faz compensar a razão pela qual a Teoria do Caos leva seu nome.

A razão pela qual se pode relacionar a deidade primordial do Caos (divindade; fonte de tudo que é divino) com a teoria que leva seu nome,remete a todo

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pesquisador a origem histórica da teoria e do conceito de Caos criado pela ciência da metade do século XX.

James Gleick, no best-seller“Chaos: making a new science”, menciona que durante o desenvolver da ciência muitos pesquisadores se depararam com o Caos, mas não sabiam como lidar com ele devido a limites de conhecimento de sua época. Daí o motivo do Caos ser assumido como objeto de análise criteriosa durante o fim da primeira metade do século XX e prosseguir até os dias atuais (GLEICK, 1988, in passim).

Sustentando tais dificuldades, James Gleick afirma que a ciência desenvolvi- da no século anterior ao século XX tinha como preceitos a separação e especiali-zação das ciências, tal fato gerou por si só a ignorância. Na sua visão, “Pelo tempo que o mundo possui físicos inquirindo sobre as leis da natureza, tem sofrido de especial ignorância sobre a desordem da atmosfera, a turbulência do mar, a flutuação populacional da vida selvagem, as oscilações do coração e do cérebro”. (GLEICK, 1988, p. 3. trad. livre)3.

O comportamento erradico da natureza durante o desenvolver da ciência do século XX ocasionou uma crise, isto é,a ciência contra a realidade das coisas, ou seja, uma distorção entre o apregoado pela ciência e a realidade dos fatos que a natureza impunha.

Mitchell Feigenbaum, pesquisador da Divisão T do Centro de Pesquisas de Los Alamos no Novo México, Estados Unidos, bem como pesquisadores de todas as divisões eram financiados pelo governo estadunidense e gozavam de liberdade intelectual. Em outra descrição, não eram atrelados aos métodos tradicionais da ciência clássica; e ainda a título deste financiamento recebiam avantajados salários.Denota-se que o objetivo indireto deste complexo, além de produção de armas e outras invenções, era o questionamento dos métodos científicos vigentes. Tal fato levou a produção de muitos trabalhos científicos pelos colegas de Mitchell Feigenbaum (GLEICK, 1998, p. 2).

3 “(...) For as long as the world has had physicists inquiring into de laws of nature, it has suffered a especial ignorance about disorder in the atmosphere, in the turbulent sea, in the fluctuations of wildlife populations, in the oscillations of the heart and the brain. The irregular side of nature, the discontinuous and erratic side – these have been puzzles to science, or worse, monstrosities”.

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Todavia, Feigenbaum trabalhava na fusão de partículas de laser, sem sucesso até aquele marco no tempo, pois em seu trabalho sempre se perguntava sobre o fator randômico da natureza

Simultaneamente, haviam no mundo científico outros grupos de pesquisa que estudavam os mesmos problemas relacionados ao Caos. Eram separados comumente pelos temas que estudavam. O problema é que por serem ciências opostas as conclusões careciam de conexidade, necessárias para chegar a objetivos maiores. Nota-se aqui que o clássico método do científico gerava uma dificuldade, uma barreira ao estudo dos problemas relacionados ao Caos.

As dificuldades de se estudar as problemáticas relacionadas ao Caos fizeram que um alto oficial da Marinha dos Estados Unidos juntasse sob sua supervisão uma esquipe multidisciplinarpara desvendar problemas sobre a os eventos aleatórios do universo que poderiam resultar em problemas.

Nasceram, assim, os primeiros teóricos do Caos. Suas missões eram explicar a periodicidade, a complexidade, o comportamento, o caráter randômico do Caos, visando colocar em “cheque” a ciência clássica e estabelecer uma ciência que explicasse o universo e não o tornasse mais complexo. A meta era facilitar o entendimento do universo para a humanidade.

Como é lógico supor, estes grupos não eram os únicos, muitos outros foram formados, isto ocorreu inclusive dentro de gigantes da tecnologia, como a IBM, que fez uso destes estudos para melhorar o desempenho de suas máquinas melhorando o seu processamento. O Caos estava em todo o lugar (GLEICK, 1988, p, 5).

Nota-se que nestas histórias há semelhanças, impossíveis de não serem notadas, com a divindade mitológica: primeiro tudo que advinha do Caos mitológico causava temor na humanidade clássica - a mesma situação ocorria com o Caos científico; a divindade está presente em tudo e a tudo influência através de sua prole - o Caos científico também possuía o primordial, padrões para a sua divisão, a ciência igualmente.

3. teoria do caos: não linearidade, efeito borboleta, revoluções e fractais

Fatores como a linearidade e não linearidade, o efeito borboleta, as revoluções e fractais são pontos nucleares no estudo da Teoria do Caos em razão de serem

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elementos contributivos no desenvolvimento e aplicação da teoria. Daí a im-portância de deter-se brevemente neles.

3.1. um universo não linear

Começaremos por uma ideia singela: o universo é composto por milhares de partículas subatômicas, que formam átomos, que formam estrelas, planetas, asteróides, nebulosas, entre outros fenômenos do cosmos. Todavia, cada uma destas pequeninas partículas desenvolve comportamentos próprios que acabam por interferir em muitos fatores, inclusive no tipo de átomo que vai se formar (LORENZ, 1993, p. 95).

Assim, há necessidade, para se formar um átomo, de múltiplas partículas, cada qual com suas regras de comportamento. O átomo deve ser composto de partículas que dentro do sistema criem uma certa estabilidade, do contrário não durará e se perderá no espaço.

A metáfora usada acima descreve, guardadas as devidas proporções, o que acontece em um universo não linear, ou seja, muitas regras atuando em um mesmo momento para criar um átomo estável, que mais tarde por intempéries pode se tornar instável.

Com esses fundamentos, por exemplo, Lorenz descreve a razão pela qual em uma previsão meteorológica não se deve utilizar somente uma única fonte de informação, mas sim um arcabouço destas, de modo a criar modelos de previsão mais precisos (1993, p. 95). O norueguês Vilhem Bjerknes, por sua vez, defendia que modelos de previsão do tempo mais adequados seriam confeccionados a partir da solução das mais variadas equações constantes para cada elemento envolvendo a questão meteorológica. O problema para isto foi que os pesquisadores ao invés de agruparem tudo o que atua para a criação de um sistema, preferiram se basear em elementos estanques, e isto gerou muitas imprecisões em seus sistemas meteorológicos. (apud LORENZ, in passim).

O primeiro a tentar, sem sucesso, a criar um modelo meteorológico, segundo Lorenz, foi Lewis Richardson, responsável durante o começo do século XX pelo sistema inglês de previsão do tempo. Seu sistema consistia na utilização de análises de correntes de arpara criar um modelo de previsão do tempo, e para isto usou

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equações primitivas que descreviam o fenômeno. O resultado foi um sistema que destoava da realidade, pois ao se calcular, como base no vento uma previsão meteorológica, quando as contas arbitravam que um fenômeno deveria acontecer em um determinado local, este no mundo fático não acontecia, ou acontecia, mas não com a magnitude e precisão esperada(1993, p. 96).

Em um segundo momento, de acordo com Edward Lorenz, foi à vez do sueco Carl-Gustav Rossby, que declarou ter o resultado para se possibilitar a previsão matemática da previsão do tempo através do estudo de áreas de pressão, para isto descreveu matematicamente sistemas de alta e baixa pressão. Seu sistema era brilhante, mas ainda assim, segundo Lorenz, insuficiente já que ao se efetuar contas que determinavam este sistema para tentar prever eventos, estes encontravam falhas, e como o de Richardson seu modelo era pouco preciso e quase ineficaz. (LORENZ, 1993, p. 98).

Com o passar do tempo e o implemento dos computadores nos sistemas de previsão meteorológicos, foi se alcançando com maior exatidão a tão desejada previsão do tempo, porém, os cálculos efetuados não passavam de tentativas frustradas, pois geravam pequenas ou grandes imprecisões. (LORENZ, 1993, p. 98/99).

As falhas científicas ao criar um modelo matemático de previsão do tempo não iriam durar muito, pois o European for Medium Range Weather Forecast, na cidade de Reading, Inglaterra, criaria do trabalho, em colaboração, de muitos cientistas da Europa durante a década de 1980, um modelo matemático bastante eficaz consistente em instalações meteorológicas em quadrantes específicos e com um espaçamento regular, de modo a não deixar sem cobertura eventos importantes para aferição das variáveis do tempo. Estas variáveis consistiam não somente em ventos e pressões, mas também da altitude, temperatura do solo, temperatura da água do mar entre outros cinco milhões de variáveis. Gerou-se, dessa maneira, um modelo matemático de previsão que se aproxima muito da realidade (LORENZ, 1993, p. 101)

Diante do exposto chega-se a premissa inicial de que o universo não funciona em uma única linha, mas sim em um conjunto de variáveis cada qual sendo diferentes linhas que atuam ao mesmo tempo sobre um sistema.

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3.2. a sensível dependência das condições iniciais: o efeito borboleta de lorenz

Modelos caóticos são constituídos de muitas variáveis, são não lineares e aparentam estar em um constate estado randômico, ou seja, o que em um momento era uma certeza, pode em outro se tornar algo impreciso e não muito aceito. Todavia por trás deste aparente estado randômico, existe uma ordem ocul-ta e que deve ser observada, pois o resultado do sistema pode não ser previsível, mas seus padrões são constantes.

Para entender padrões deve-se observar um fator bastante evidente: como se apresentava o sistema em suas condições iniciais. O fato se justifica ao analisar o estudo que Lorenz realizou em 1972, chamado o Efeito Borboleta, muito discutido ainda que não publicado na época.

Lorenz declarou que estava trabalhando em modelos climáticos matemáticos em computadores, consistentes em equações colocadas para funcionar através de três variáveis previamente programadas. Destas cada qual interferia de um modo em um gráfico específico. (LORENZ, 1993, p. 182).

Em certa ocasião, Lorenz programou acidentalmente o computador para rodar o programa com determinados valores aproximados, que ele retirava de um jornal local para tentar analisar o comportamento do tempo meteorológico. Logo da impressão do resultado notou ao ler novamente o jornal que os valores que colocou no computador estavam errados e repetiu o experimento com os valores adequados. (GLEICK, 1988, p.16). Ao comparar os dois resultados, no começou das duas simulações, a discrepância entre elas era mínima, os padrões se mantinham os mesmos. Na metade do gráfico já começava a surgir diferenciações. Já no fim deste ambos eram completamente diferentes, não havia nenhuma semelhança.

Lorenz observou assim que as condições iniciais de um evento estavam dife-rentes em frações, mas que a diferença gerou no final um produto completamente diferente do que a real. (GLEICK, 1988, p.16). Assim ele levantou a seguinte pergunta, que ficou marcada na história, e passou a ser sinônimo de Teoria do Caos: Pode o bater de asas de uma Borboleta no Brasil causar um tornado no Texas? (LORENZ, 1993, p. 181).

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A resposta, segundo o trabalho de Edward Lorenz, é que não há como precisar, pois não se sabe ao certo quantas borboletas existem no mundo e se seus bateres de asas em conjunto teriam o condão de gerar um tornado no Texas. (LORENZ, 1993, p. 16/17).

Outro fator a ser considerado, e que complementa o trabalho de Lorenz, consiste em uma crítica a quem cria modelos baseados em falsas premissas a partir de uma simulação utilizando uma máquina de fliperama com uma bola de metal. (LORENZ, 1993, p. 23/24).

Na simulação, propositalmente, para comprovar a ação do Caos às diferentes situações aplicáveis em um momento, ele forneceu valores de força e formas com as quais a bola iria reagir ao bater em cada contato até cair no poço final. Após isto ele repetiu o experimento com uma máquina real durante várias vezes e desenhou a trajetória da bola.

O resultado do feito foi que a bola nos primeiros momentos, antes de en-frentar os obstáculos, possuía comportamento semelhante, mas ao tocar os obstáculos o fazia de modo diferente, o que gerou uma diferença monstruosa no final. (LORENZ, 1993, p. 18/19).

Assim se comprova a sensível condição inicial de um fato. Mais ainda, que ao ser criado um modelo devem-se levar em consideração as mais diferentes variáveis que atuarão no sistema desde o seu início, que deve sempre ser preciso, pois a mínima condição inicial errada gera diferenças abissais ao fim.

3.3. a revolução e o pêndulo

O pêndulo é simples objeto amarrado a um fio preso a um ponto fixo, que por padrão se move para frente e para trás, ou da direita para esquerda, consti- tuindo em sua trajetória um arco.

A aparente simplicidade destes movimentos foi alvo de discussões mais do que constantes no meio acadêmico. O motivo, o fato de que em um pêndulo há mais variáveis a ele aplicáveis do que os clássicos cientistas supunham. (GLEICK, 1988, p. 40).

Todavia, essa complexidade também mostra, rotineiramente, a sua sim-plicidade. A de que por trás do movimento de ida e vinda há energia proveniente

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da gravidade, de movimentos empreendidos pelo homem e outras forças da natureza. Mesmo levando em consideração tudo isto o pêndulo foi muito importante no mundo para manutenção do horário mundial através dos relógios antigos.(GLEICK, 1988, p. 40).

Descrito pela ciência clássica, como fator de descrições complexas e incom-pletas e visto sobre o prisma de modelos ideais, o pêndulo tornou-se algo mistificado e incompleto. Posteriormente, analisado sobre a perspectiva do Caos ganha outra roupagem e nos revela ensinamentos importantes sobre revoluções.

Revoluções que vistas sobre a visão de um clássico seriam analisadas como algo sem padrões no qual impera a ausência de ordem, ou seja, uma completa balburdia que só teria fim com a imposição de uma nova ordem. Este pensamento além de preconceituoso também o é desprovido de profundidade.

Por ser fator completamente desprovido de uma análise de periodicidade temporal, devido à regra da multilinearidade, não há como prever seu resultado, mas há como prever o tempo que este durará.

3.4. as revoluções científicas

Será aqui, esboçada, em uma versão resumida, os estudos de Thomas S. Kuhn, numa abordagem a partir dos estudos de James Gleick para o qual uma revolução segue determinadas premissas que ditam o início do evento e seu final, mas tais premissas nunca determinam quanto tempo à perturbação permanecerá, só há uma regra que preceitua que ela irá acabar.

Revoluções em sua essência se iniciam com o surgimento de uma ideia, um problema, uma perturbação que não é resolvida pela forma tradicional de se pensar. Em outros termos, revoluções começam quando o modelo clássico não mais consegue suprir as necessidades surgidas. Posteriormente a esse fenômeno há uma tentativa do antigo modelo de se manter vigendo, ou seja, ele tenta impor a sua condição de grande premissa usando de todos os recursos dos quais dispõe. O conflito entre a perturbação nova, ou nova premissa, gera conflitos, muitas vezes não belicoso, como no meio acadêmico, mas levando a uma tentativa de descrédito do novo movimento. (GLEICK, 1988, p. 36-38).

Como o Caos pressupõe dinâmica, constante movimento, se há uma reação por parte do status quo também há uma reação por parte dos defensores do novo

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ideário, estes começam a se infiltrar dentro das estruturas de poder estabelecidas pelos clássicos e iniciam uma difusão em larga escala do novo ideário. (GLEICK, 1988, p. 38/39).

Com a difusão da nova premissa, que antes passavam a rechaçar, começa gradativamente uma convivência que leva a construção de uma nova estrutura, de uma nova premissa, ainda que não exista uma aceitação inicial.

Ao fim da revolução se alcança o modelo de paz anterior, mas com a incorporação das novas ideias, não temos como saber se a revolução foi positiva, trazendo mudanças ou reformando o ideário anterior, ou se foi negativa, ocorrendo à prevalência do modelo anterior. O fato que neste momento deve ser analisado é o ato pendular de se regressar ao mesmo ritmo. (GLEICK, 1988, p. 39).

Revoluções são fatos que acontecem dentro de um sistema quando são perturbados pela entrada de um novo sistema. As revoluções possuem um padrão em si que fornece uma noção de que uma revolução acontece e o seu destino é a volta a normalidade (GLEICK, 1988, p. 39).O entender do tempo que isto demanda para voltar a realidade é algo que também assombra pesquisadores em todo o mundo. Entender este retorno a estabilidade é importante para se sedimentar a própria estrutura.

Visando estabelecer este liame, James Gleick se lança no estudo dos pêndulos e bolas de Galileu, que ficou famoso por ser a ele atribuído o mito de jogar bolas do alto da Torre de Pisa para testar sua teoria. (GLEICK, 1988, p. 40).

Galileu passou a analisar o pêndulo de maneira diferenciada; percebeu que o objeto como fora projetado fazia existir fatores que perturbariam a sua regularidade e que tornavam impreciso um relógio.

Os fatores que à época de seus experimentos levariam a tais irregularidades na questão da imprevisão do pêndulo eram duas forças que atuavam contra; a primeira, o atrito que é a resistência que um meio faz a um movimento, e o segundo a ficção, a relação entre o pêndulo e o que o prende a estrutura de um relógio (GLEICK, 1988, p. 41).

A perturbação gerada por um pêndulo segundo as não linearidades descober-tas por Galileu seria o movimento para trás e para frente, enquanto seu estado estável seria estacionar, ou seja, ficar parado, pendurado.

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Nestes moldes, nota-se que,em um curto espaço de tempo, é possível deter-minar quando irá cessar o movimento de um pêndulo, o que Wagner Peixoto de Paiva chamou e Mudança com Resolução Fechada (PEIXOTO, 2001, P. 87).

Galileusó estudou o pêndulo a partir do exato momento em que este começa a balançar até o momento em que este para de agir, por força das relações adversas ao movimento.

Nesta etapa do estudo James Gleick propus a realização de um estudo sobre o pensamento de Steve Smale, matemático e topólogo incrédulo com relação ao Caos estudado por Lorenz, pois sempre achava que até mesmo este possuía um ponto de estabilidade e que tendia sempre a voltar a um equilíbrio. (GLEICK, 1988, p. 47).

Os estudos de Smale abrangiam, também, dimensões e sistemas de equações não lineares. No momento em que Smale concebe seu pensamento ao mundo moderno, matemáticos e físicos travaram uma batalha acadêmica. O entrave consistia no fato de que por via de regra os físicos expressam seu pensamento através de equações matemáticas, e os matemáticos fazem, por via de regra, a mesma coisa, daí o conflito.

Nesta disputa campal Steve Smale se deparava com o construído sobre a teo-ria de pacificação, sem, todavia, estudar o balanço.

Ao introduzir o balanço, O balanço, brinquedo infantil, Smale observa que este tem alguma coisa de peculiar com os pêndulos; primeiro, realiza o movimento para trás e para frente como qualquer pêndulo; segundo, como se tratava de um brinquedo, ao adicionar uma criança a equação, se coloca uma força que irá frequentemente perturbar a relação inicial até que esta canse.

Nota-se, aqui, que ao contrário de pêndulos comuns, se adicionam elementos de perturbação em quantidade superior àqueles normalmente empregados em pêndulo comum; primeiro, a regra da gravidade e as regras que restringem o movimento, e segundo a criança, que passará a ser a força motriz do sistema caótico.

No sistema em questão a criança exercerá uma perturbação constante ao sistema, impulsionando o balanço com sua própria energia até que esta cesse ou quando ela deixar de demonstrar interesse em ficar brincando no balanço.

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O sistema envolvendo o balanço tem como prever ou interpretar que num momento no tempo e espaço o sistema retornará ao equilíbrio seja com a perda de interesse pela criança ou por simples cansaço físico (GLEICK, 1988, p. 50).

Observe-se que as condições iniciais possuem não como um pêndulo co- mum, mais de uma variável – o pêndulo mais uma criança –. O descrito faz gerar, em sede de primeira análise, duas possibilidades do sistema pendular voltar ao padrão convencional. Assim não há uma exata precisão de quando o sistema voltará a se estabilizar, mas há como prever que este estabilizará.

Steve Smale, observando esse processo, criou um modelo denominado Ferradura de Smale, que consiste em pegar uma barra de metal e envergar até o limite. Neste momento se percebe a utilização de forças para envergar a barra e os pontos desta que antes continham entre si um espaço regular, ao fim podem se encontrar em outros lugares a exemplo da soma criança mais pêndulo (GLEICK, 1988, p. 51).

Aqui se se encontra, conforme sustenta, Wagner Peixoto de Paiva (2001, p. 87), a Mudança com Resolução Contida já exposta anteriormente.

Nos tópicos anteriores se analisou o tempo que uma revolução demora a cessar, seja com variáveis quantificáveis, ou com variáveis inconstantes. Todavia, neste tópico, a Teoria do Caos ganha uma nova roupagem, pois se analisará, aqui, a tempestade do planeta Júpiter que será estudada a partir das perspectivas que Ja-mes Gleickanalisou nos estudos de Philip Marcus, um astrônomo e matemático, que durante o seu trabalho na NationalAeronauticsand Space Administration, NASA, teve acesso a fotografias e imagens da sonda espacial Voyager2 da tempestade no planeta Júpiter.

Com o referido material, em mãos, o astrônomo se viu intrigado com uma questão, como uma tempestade como esta pode existir a tanto tempo e nunca cessar? Este questionamento parecia legítimo, em uma primeira perspectiva, se analisada as primeiras teorias aqui discutidas e trabalhadas, pois se trata de um sistema caótico que nunca voltou ao equilíbrio desde seu início (GLEICK, 1988, p. 54).

Realizado os estudos, Philip Marcus, tentou várias hipóteses de origem para esta famigerada tempestade, todas estas restaram frustradas. Foi então que ele

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tomou ciência do programa de computador que Lorenz havia criado e de como a sensível dependência das condições iniciais afetam o resultado final.

Assim ao contrário de todos os outros testes que Philip Marcushavia realizado, programou o computador com todas as características e elementos químicos conhecidos no planeta Júpiter e colocou o programa para funcionar (GLEICK, 1988, p. 55).

Após algum tempo rodando o programa Philip Marcus começou a criar um sistema de tempestade igual ao Joviano, e de acordo com os cálculos não lineares do sistema - a tempestade e tamanho eram a quantidade de fatores que interferiam para sua criação, criou em seu interior um sistema autossustentável e caótico, ou seja, uma eterna revolução, no qual não possui meios de saber se um dia a tempestade viria a cessar (GLEICK, 1988, p. 55).

Aqui se tem uma Mudança de Resolução Aberta, de acordo com Wagner Peixoto de Paiva (2001, p. 87), pois não se sabe se as condições únicas criadas por aquele sistema serão um dia cessadas ou não, só há de se saber se todas as condições afetam o todo.

3.5. o formato do caos: os fractais

Sabe-se que o caos é regido por forças como a dependência das condições iniciais, de um universo multilinear, e de uma constante revolução revestida de padrões que podem ou não gerar outros padrões.

No entanto, importa saber sobre os fractais, pois estes estão intimamente ligados a Teoria do Caos, não apenas por serem estruturas quebradas, complexas estranhas e belas que conferem uma certa ordem ao caos, mas também, por ter sido desenvolvidos e crescidos graças ao desenvolvimento da informática (CABRAL, s/d.).

O termo “fractal” foi concebido pelo matemático Benoit Mandelbrot4 em 1967. Originário do latim fractus e do verbo frangere (irregular, quebrar,

4 Benoit Mandelbrot era judeu lituano, que devido a complicações em seu país de origem, foi obrigado a se mudar para a França, terra onde morava seu tio. Lá estabeleceu residência e se formou na ÉcolePolytechnique em matemática. Foi obrigado a deixar a França pelos Estados

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fraturar), passou a caracterizar as formas irregulares e as novas geometrias descobertas por Mandelbrot, tanto na geologia quanto no mercado financeiro (UNIVERSODELUZ, s/d).

Benoit Mandelbrot era matemático contratado da IBM nos Estados Unidos e ao entrar em contato com dados da bolsa de valores, especialmente o mercado de algodão, com todos os valores, subidas de descidas, quebras e períodos de extrema valorização, transpôs para o computador tudo aquilo que constava nos arquivos das bolsas de valores dos estados unidos e criou um gráfico baseado nestes valores. (GLEICK, 1988, p.86)

A descoberta de Mandelbrot fez com que ele se remetesse aos estudos de geometria euclidinana França e posteriormente ao analisar os dados acaba por concretizar a idéia de que a natureza desenhauma forma simétrica.

O trabalho de Mandelbrot na IBM não o levou somente a ter contato com o já mencionado padrão, já que através das falhas de transmissão de informações entre computadores, ele vislumbrou outro padrão no qual que podia aplicar seus conhecimentos sobre a Sequencia de Cantor5.

Unidos, pouco depois, devido a invasão alemã a França durante a Segunda Guerra Mundial. Em solo americano passou um pouco de dificuldade, mas foi contratado como matemático da IBM, empresa especializada em produção de computadores para servidores e transmissão de informações.

5 “Engenheiros não possuíam esquadro para entender da descrição de Mandelbrot, mas matemáticos possuíam. Por efeito, Mandelbrot estava descrevendo uma construção abstrata conhecida como serie de Cantor, nomeada em homenagem ao matemático do século dezenove chamado Georg Cantor. Para se realizar uma serie de Cantor, a pessoa deve iniciar com um intervalo entre zero e um, representada por um segmento linear. Então a pessoa deve remover o terço central. Isto deve deixar dois segmentos, e a pessoa deve remover de cada segmento o terço central de cada um (de um nono para dois nonos e para sete nonos para oito nonos). Isto deixa quatro segmentos, e se remover o terço central de cada um – assim em diante até a infinidade. O que resta? Uma estranha “poeira” de pontos arrumados em grupos, indefinidamente espaçados na vastidão do infinito. Mandelbrot estava pensando nos erros de transmissão como series de Cantor dispersos no tempo” (Trad. Livre). “Engeneers had no framework for understanding Mandelbrot’s description, but mathematicians did. In effect, Mandelbrot was duplicating an abstract construction known as the Cantor set, after the nineteenth-century mathematician Georg Cantor. To make a Cantor set, you start with the interval of numbers from zero to one, represented by a line of segments, and you remove de middle third. That leaves two segments, and you remove the middle third of each (from one-ninth to two-ninths and from seven-ninths to eight-ninths). That leaves four segments, and you remove the middle third of each – and so to infinity. What remains? A strange “dust” of points, arranged in clusters, infinitely many yet infinitely sparse. Mandelbrot was thinking of transmission errors as a Cantor set arranged time”...

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Ao entrar em contato com mais esta experiência Benoit Mandelbrot, passou a aplicar a seqüência de Cantor com a simetria das formas geométricasrepetindo os mesmos padrões e se deparou com algo fascinante. Descobriu que a partir de formas geométricas se poderia alcançar formas presentes no cotidiano, quanto mais estas fossem aplicadas, mais definição em aparência se obteria (GLEICK, 1088, p. 97-99).

Assim foi criada uma teoria que consistia na divisão permanente através de regras repetitivas de coisas que se aplicadas revelariam em seu interior a mesma estrutura que no exterior6. Formas randômicas possuíam uma estrutura lógica que se repetiam indefinidas vezes com um mesmo padrão simétrico a medida com que se modificava a escala das coisas. Logo, Mandelbrot havia descoberto uma dimensão, a escala (GLEICK, 1988, p. 96).

A escala introduziu à ciênciauma nova forma de se pensar um universo em movimento e de se realizar confecção de mapas por computadores. (GLEICK, 1988, p. 116).

Destarte, o Caos passa a ser analisado sobre o conceito desenvolvido por Mandelbrot através de seus fractais, o conceito de escala, aumentar ou diminuir, ou simplesmente mudar a perspectiva das coisas, pode facilitar a localização de padrões e de condições iniciais, elementos necessários a teoria aqui em estudo.

4. do caos ao direito

O estudo da Teoria do Caos em alguns de seus aspectos é algo complexo além do que não há meios fáceis de transcrever um método de análise tão denso e tão estranho para o Direito: primeiro porque toda a construção inicial da Teoria do Caos não é baseada em consensos jurídicos e sim em convenções das ciências naturais, biológicas, humanas, e sociais; segundo porque a linguagem, em que os livros e doutrinas foram escritas dizem respeitos, muitas vezes a termos técnicos de cada seara, logo uma enorme barreira ao jurista se impõe.

6 Mandelbrot exemplificou utilizando o mapa da Inglaterra, que era constituído de baías e pensínsulas, selecionou uma parte do mapa e ampliou e se deparou novamente com novas baías e pensínsulas , e repetiu várias vezes este experimento até em sua menor unidade, também se deparou coma mesma estrutura.

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A despeito de tudo isso a Teoria do Caos permeia todo o Direito. O que ocorre é que o mundo jurídico não se dá conta de que vive em uma imensa tempestade jupteriana, onde só há possibilidade de análise desta tempestade se for aplicado o preceituado por Edward Lorenz, Philip Marcus, Benoit Mandelbrot.

Assim, importa, agora, de forma imperiosa construir um raciocínio que aproxima o Direito da Teoria do Caos, para tanto, sempre que possível deverá se aplicar o método caótico de raciocínio, afinal até o próprio James Gleick, em sua obra Chaos: Making a New Science usa um método partindo de autores que nem sonhavam com a existência do Caos quanto mais de sua teoria, mas que com seus esforços criaram pilares para o estudo do Caos.

Honrando o método de abordagem de James Gleick, os estudos de Montesquieu, no seu “Espírito das Leis”, justificam os Estados com base em seus tipos de governos; mostram a importância que fatos naturais exercem sobre as Leis Humanas; e a separação entre as Leis Humanas e as Leis Naturais. Logo começar do fim parece ser o meio mais viável para se entender tal fato (MONTESQUIEU, 2004, p. 45).

Montesquieu inicia seu trabalho no Livro I, Das Leis Gerais, conceituando a Lei, algo que permeará todo o seu trabalho e fornecendo variados tipos de Leis: “As leis (...) são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas; neste sentido todos os seres têm suas leis; a Divindade tem suas leis; o mundo material tem suas leis; as inteligências superiores ao homem têm suas leis; os animais têm suas leis; o homem tem suas leis” (MONTESQUIEU, 2004, p. 45).

Observa-se em Montesquieu que seu pensamento admite em um mesmo momento a aplicação de mais de uma lei ao mesmo tempo, pois, segundo suas palavras, cada ente aqui elencado possui o seu quadro geral de leis, de tal forma que estas incidem sobre o objeto como em um sistema não linear.

Ainda durante a sua explanação inicial ele nos preceitua a existência de um vínculo entre estas leis, este vínculo é Deus: “Deus entretém relação com o universo como criador e conservador; as leis segundo as quais ele o criou são aquelas segundo as quais ele o conserva”. E completa “Age de acordo com essas regras porque as conhece; ele as conhece porque as produziu, e as produziu porque elas se relacionam com sua sabedoria e seu poder”. (MONTESQUIEU, 2004, p. 45).

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Apesar de Montesquieu se manifestar completamente contra a auto gerência do universo, pois para ele Deus está presente em tudo e regula a tudo, ele admite que após as regras serem criadas, até mesmo Deus estaria vinculado a elas, de modo que as regras ganham vida própria, pois isto possibilita o surgimento de um padrão que possibilita a vida.

Assim sob essa perspectiva, Montesquieu divide as leis que o homem está su-jeito em duas: As Leis Naturais e as Leis Positivas, Leis Humanas. As Leis Naturais seriam assim definidas por ele: a primeira seria a Paz, pois o homem no seu estado primitivo não se enfrentaria outro homem em razão de a sobrevivência ser mais importante; a segunda seria a necessidade de provimento próprio, ou seja, o ser humano em razão de sua fragilidade e sua potencialidade de conhecer,seria levado basicamente pela necessidade de Buscar Alimentos; a terceira e ultima seria a necessidade de se juntar com outros da mesma espécie para garantir a sobrevivên-cia desta, em outros termos, o Sexo (MONTESQUIEU, 2004, p. 47-49).

Ainda seguindo o raciocínio iluminista, o homem depois de se juntar a outros objetivando a sobrevivência de sua espécie criaria comunidade que com o passar do tempo e o desenvolver destas levaria as diferentes comunidades a terem de desenvolver leis apartadas das leis naturais.

Surgem as Leis Positivas que segundo Montesquieu versariam sobre três matérias; o Direito das Gentes, leis que tinha como primazia o estabelecimento da paz entre os homens como regra, mas admitindo que em estado de guerra, cada nação deveria causar o menos de danos possíveis a outra; o Direito Político, este mencionava em síntese a relação do Estado para como seu povo, bem como pugnava que cada povo teria sua forma de governo que deveria ser respeitada; o Direito Civil, que seriam as leis que teriam por finalidade regular a relação entre as pessoas de um determinado Estado (MONTESQUIEU, 2004, p. 47-49).

Destarte, Montesquieu (2004, p. 49) admite que as Leis Positivas de um povo seriam influencia de diversos fatores. Ao aplicar a Teoria do Caos pode se deduzir que se constitui não linearidade, ou seja, assim como as leis do universo seriam concebidas com base em um esquema não linear, múltiplas regras, as Leis Positivas também seriam concebidas por sistemas não lineares o que desde já implicaria em modelos caóticos.

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5. do estado de guerra as dimensões dos direitos fundamentais

Montesquieu, em crítica ao pensamento de Hobbes, que indicava um constante estado de guerra que faria o povo entregar o poder a um soberano, preceitua que o estado de guerra seria assim gerado: “Cada sociedade particular passa a sentir a sua própria força, o que produz um estado de guerra entre as nações”.(MONTESQUIEU, 2004, p.49)E complementa “Os particulares, em cada sociedade, começam a sentir sua força: procuram atrair a seu favor as principais vantagens dessa sociedade, o que gera entre eles um estado de guerra” (MONTESQUIEU, 2004, p.49).

Montesquieu escreve sobre esse assunto em um momento em que as monarquias europeias viviam o seu auge e também o começo de suas decadências, pois o paradigma que dera poderes absolutos aos reis estava a ruir, principalmente pela sucessão de Luís XIV e ascensão de Luís XV. O primeiro um governante que usava de todo o seu poder para manter a situação como se estava e consolidou o poder do Estado, afinal ele era o Estado, já o segundo, seu filho, não era hábil na arte política, o que resultou em um período devastador para a monarquia francesa.

Do outro lado do canal estava à Inglaterra que vivia um período de eferves-cência econômica e política, a primeira capitaneada pela Revolução Industrial, e a segunda impulsionada por reformas drásticas no poder dos Reis7.

Os referidos eventos levaram, por convergência, a Revolução Francesa, tem-se aqui presente a afirmação de Montesquieu de que há um Estado de Guerra entre as pessoas pertencentes a um Estado. E deste surge os direitos políticos, classificados como a primeira geração dos Direitos Fundamentais, por Paulo Bonavides, que assim preceitua:“são os direitos de liberdade, os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo no Ocidente” (BONAVIDES, 2011, p. 563).

7 Como a Carta de Direitos, Bill ofRights, 1689, e o direito de petição,PetitionofRight, 1628, todos fundados na Magna Carta, The Great Charter, 1215.

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Os traumas da Revolução Industrial, a exploração da mão-de-obra, somados ao excesso de jornada de trabalho mais o Direito de Petição e as obras de Karl Marx, fizeram, não somente na Inglaterra, mas na Europa como um todo e mais tarde nos Estados Unidos serem forçados a reconhecer os direitos dos trabalhadores, surge, segundo Bonavides a segunda geração, que assim ele definiu: “São os direitos sociais, culturais e econômicos, bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado social, depois que germinavam por obra da ideologia e da reflexão antiliberal do século XX” (BONAVIDES, 2011, p. 564) e complementa “Nasceram abraçados no princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e esti-mula” (BONAVIDES, 2011, p. 564).

Da mesma forma com as quais os direitos de Primeira e Segunda Gerações foram concebidos no mundo real, estes foram utilizados para subjugar o homem durante a primeira metade do século XX, os conflitos sociais evoluíram para duas Guerras Mundiais, e culminaram em duas Bombas Nucleares, Hiroshima e Nagasaki, e na Declaração de Direitos do Homem, 1948, e também a criação de Organização das Nações Unidas.Neste contexto, num mundo dividido em pobres e ricos, surge os Direitos de Terceira8 Geração (BONAVIDES, 2011, p. 569).

Contudo, ainda seguindo lições de Montesquieu, o constante Estado de Guerra dos homens em sociedade acabaria de levar o homem moderno a Globalização, a existência de uma política mundial, economia global, a fragilidade dos Estados, o desenvolvimento tecnológico, e a pluralização das pessoas, levariam ao que Paulo Bonavides intitula como direitos de quarta geração, que assim são definidos

8 “Com efeito, um novo pólo jurídico de alforria do homem se acrescenta historicamente aos da liberdade e da igualdade. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termo de existencialidade concreta. Os publicistas e juristas já os enumeravam com familiaridade, assinalando-lhe o caráter fascinante de coroamento de uma evolução de trezentos anos na esteira da concretização dos direitos fundamentais. Emergiram eles da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade”.

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como: “o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo (BONAVIDES, 2011, p. 571)” sendo que “Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão máxima de universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência” (BONAVIDES, 2011, p. 571)

Os direitos de quarta geração são frutos de conflitos gerados a partir do pós Segunda Guerra, Guerra Fria e também como conseqüência dos Direitos de terceirageração e que ainda estão sendo esculpidos e a sua concretização dependerá de uma sociedade futura.

Há que se notar que previsões como as feitas por Paulo Bonavides em sede da Teoria do Caos são possíveis, pois todos os conflitos aqui descritos pela humanidade culminaram na criação de paradigmas que influenciaram as gerações seguintes, sem, contudo, destruir o que se criou e lutou.O que se tem neste sistema é uma construção de gerações e é assim que se deve ser visto os Direitos Fundamentais, não como fases estanques, mas sim como um todo em constate construção e em constantes revoluções.

6. a cisão na segunda geração de direitos

Realizou-se até aqui uma passagem histórica pelo desenvolver da humanidade baseado no conceito de Estado de Guerra, desenvolvido pelo iluminista Montesquieu. Todavia, há ainda que se entender outros fatores que interferem na criação do Direito, como um todo.

Feito um balanço detodo o exposto, tem-se inserções de mais regras não lineares dentro de um sistema, que ao seguir o pensar de Montesquieu, na sua origem já não era linear.

Assim, gera-se, por consequência uma revolução perpétua nos moldes do que descreveu Philip Marcus ao analisar tempestade de Júpiter sob as perspectivas do conceito desenvolvido por Benoit Mandelbrot, ou seja, a aplicação de fractais e sua dimensão se fazem necessários. Nesse ponto cinde-se em análise aos Direitos de Segunda Geração iniciando-se com a exploração do princípio da igualdade, pilar de sustentação do Direito

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6.1. o princípio da igualdade

Em se tratando de Teoria do Caos, os fractais dão noção precisa de como se proceder, ampliando ou reduzindo o foco pode-se analisar melhor as formas através de bases comuns. Todavia na idéia inicial de fractal, há a presunção de divisão.

Assim, em se tratando de princípio da igualdade, segundo Robert Alexy (2006, in passim), são quatro as classificações a serem consideradas no estudo do princípio da Igualdade: a) quanto a formalidade e substancialidade; b) quanto ao dever de tratamento igual e a obrigação de tratamento desigual;c) quanto a igualdade jurídica e igualdade fática; d) da igualdade em abstrato e da igualdade em concreto.

6.1.1. Formalidade e substancialidade

Importa entender, primeiramente, que sendo o estudo baseado sob a pers-pectiva aventada por Robert Alexy, é preciso considerar que ele vê a aplicação dos Direitos sob a ótica da Constituição Alemã e do Tribunal Constitucional Fe- deral Alemão, razão pela qual menciona o art. 3º, parágrafo 1º da Constituição Alemã, que naquele ordenamento tem positivado o principio da igualdade, dispondo de forma expressa sobre o Direito de Igualdade, da mesma forma que, o sistema brasileiro o fez, em seu texto constitucional, art. 5º, caput.

Diante desta consideração torna-se possível a aplicação das premissas apresentadas por Alexy ao direito brasileiro, primeiro porque há direito equiva-lente no Brasil; segundo porque o princípio da igualdade é de concepção oci-dental, portanto, aplicável ao Brasil.

Importa atentar que há uma cisão à formalidade do princípio e seu poder frente ao poder estatal, seja o poder da administração executiva, legislativo ou judiciária. Outra faceta que desta premissa formar é a obrigação de cumprimento da norma de igualdade por qualquer um que a opere, ressalvada as hipóteses em que o legislador ordinário pode dispor deste princípio.

A segunda fenda na verdade consiste em uma limitação substancial a vontade do legislador em dispor da igualdade, tendo em perspectiva, de acordo com Robert Alexy que seria incompatível “(...) com a vontade do constituinte, que em

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um primeiro momento havia expressamente previsto a vinculação do legislador ordinário ao enunciado de igualdade, tendo renunciado a essa vinculação expressa apenas porque ela seria supérflua em virtude do art. 1º, §3º da Constituição” (ALEXY, 2011, p. 395), e complementa o autor que por fim seria “incompatível com a idéia dos direitos fundamentais como expressão de desconfiança em relação ao legislador, o que inclui a submissão das leis por ele criadas a um controle em face dos direitos fundamentais, quando isto for racionalmente possível(...)” (ALEXY, 2011, p. 395).

Se no primeiro caso a limitação formal não se aplica ao legislador, em razão da forma, no segundo caso, em sua substância, em função desta ser direito fundamental, e este ser produto de conflitos da humanidade, se restringe o legislador em face desta substancia.

6.1.2. Entre o Dever de Tratamento Igual e de Tratamento Desigual

Como já mencionado no fractal anterior (formalidade e substancialidade), a igualdade apresenta limitações ao poder do legislador em dispor sobre normas envolvendo o princípio da igualdade, estas tangem a substancia do princípio.Todavia a substancia deste ainda acomoda em sim uma necessidade de se obser-var restrições e permissões ao legislador.

No tocante as permissões estão a do dever de tratamento igual na qual se define: “Não existe uma razão suficiente para a permissibilidade de uma diferenciação quando todas as razões que poderiam ser cogitadas são consideradas insuficientes” (ALEXY, 2011, p. 408/9), nesse caso, “não há como fundamentar a permissibilidade da diferenciação. Com isso, como já salientado diversas vezes, o enunciado geral de igualdade estabelece o ônus argumentativo para um tratamento desigual” (ALEXY, 2011, p. 408/9).

No tratamento igual se impõe sobre o jurista, o legislador e aos tribunais que irão julgar mediante o princípio da igualdade que haja um ônus argumentativo, ou seja, persuasão racional, pois a arbitragem de tais valorações levaria, por derradeiro ao colapso do sistema de princípios. Assim Robert Alexy dispõe que o enunciado da igualdade “é violado se não for possível encontrar fundamento razoável, que decorra da natureza das coisas, ou da razão objetivamente evidente

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para a diferenciação ou para o tratamento igual feitos pela lei; em resumo, se a disposição examinada tiver que ser classificada como arbitrária”.(ALEXY, 2011, p. 404).

Logo se para um tratamento igual há a necessidade que se haver um tratamento não arbitrário pautado na natureza das coisas ou razão objetiva, o dever de tratamento diferenciado não poderia ser diferente, pois “A assimetria entre a norma de tratamento igual e a norma de tratamento desigual tem como conseqüência a possibilidade de compreender o enunciado geral de igualdade como um princípio da igualdade” (ALEXY, 2011, p. 411), isto é, “que prima facie exige um tratamento igual e que permite um tratamento desigual apenas se isto for justificado por princípios contrapostos” (ALEXY, 2011, p. 411)”.

6.1.3. Princípio da Igualdade Jurídica e Fática

No terceiro fractal que se apresenta, é imperioso estudar o paradoxo entre o princípio da igualdade jurídica e o princípio da igualdade fática,sendo de acordo com “a compreensão relacionada a atos, os necessitados e os não-necessitados são tratados não de forma desigual, mas igual, já que a vantagem da assistência judiciária gratuita é recusada a ambos da mesma forma (ALEXY, 2011, p. 416), isto, é, pode-se dizer, na esteira de uma terminologia bastante difundida, que ambos foram tratados de forma juridicamente igual (ALEXY, 2011, p. 416).

Já o principio da igualdade fática justifica-se no entendimento contrário, pois “produz-se já no âmbito do enunciado da igualdade uma colisão fundamental: aquilo que segundo um princípio é um tratamento igual é segundo o outro um tratamento desigual, e vice-versa” (ALEXY, 2011, p. 417).

Tal paradoxo de igualdade ao se interpretar o Princípio da Igualdade se faz necessário, pois o primeiro princípio deste é responsável por conferir um tratamento regular e uniforme as pessoas, dando, com isso, a impressão de segurança jurídica a quem pratica, sendo que o segundo princípio é um princípio de enfrentamento, primeiro porque a realidade fática é uma realidade de conflito, portanto, é derivado da natureza das coisas. Essas impõem a colisão de princípios para que se produza uma igualdade fática (ALEXY, 2011, in passim).

O que se observa neste quadro é um conflito de sistemas que deve coexistir, uma não linearidade, o princípio da igualdade, que gera dentro do próprio

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princípio um furação, que em seu olho é estável e seguro, mas quando em seu vértice é conflituoso e tempestuoso.

6.1.4. A Igualdade Concreta e Abstrata

O principio da igualdade foi estudado até o presente momento sob três perspectivas fractuais, sempre sob a ótica conceitual de Robert Alexy (2011, p. 429-432) que divide o conceitoem igualdadeabstrata e igualdade concreta, sendo que a primeira é subdividida em duas: Direitos da Igualdade prima facie Abstratos e Direitos de Igualdade Definitivos Abstratos e a segunda derivada dos Direitos de Igualdade Definitivo Concretos.

Os direitos de igualdade definitivos abstratos se dividem no“direito de ser tratado igualmente, se não houver razão suficiente para a permissibilidade de tratamento desigual: e o direito de ser tratado desigualmente, se houver uma razão suficiente para o dever de tratamento desigual (ALEXY, 2011, p. 429).

O entendimento é enquadra em deveres de tratamento igual e desigual.

A segunda face do princípio da igualdadetambém representa uma ótica abs- trata na qual tem-se os direitos da igualdade prima facieabstratos os quais se dividem em dois tipos: sendo que o primeiro corresponde ao princípio da igualdade jurídica; o segundo da igualdade fática; “O direito prima facie à igualda-de jurídica pode ser formulado como um direito prima facie à não realização de um tratamento desigual; o direito prima facie à igualdade fática, por seu turno, é um direito prima facie a uma ação positiva do Estado” (ALEXY, 2011, p. 432).

Em se tratando do Direito de Igualdade Definitivo Concreto, Roberto Alexy (2011, p. 432) subdivide em três partes: a primeira com relação ao status negativo, que consiste em uma pessoa ter um direito negado em desrespeito ao princípio da igualdade; a segunda com relação ao status positivo, que tange no desrespeito ao princípio na não inclusão de uma pessoa em algo que esta possui direito; e por afim o terceiro caso, o status ativo, diz respeito ao desrespeito ao direito de uma pessoa participar na formação de opinião do Estado.

Dos fatores acima relacionados, conclui-se que “aquele que é afetado pelo desrespeito ao enunciado da igualdade apenas pode ter um direito de igualdade concreto e definitivo é uma consequência do fato de a violação do direito de

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igualdade definitivo abstrato frequentemente pode ser afastada de formas muitos distintas. (ALEXY, 2011, p. 432).

Do entendimento exposto extrai-se que esta faceta constitui a primeira face do prisma da igualdade – formalidade e substancialidade. Aqui o Estado é obrigado a realizar um dever de status negativo, ou seja, ele não pode violar a substância do direito de igualdade, mas pode realizar um dever de status positivo, estender a todos os substancialmente iguais os mesmos direitos.

Sobretudo, não há como se negar que os direitos de segunda geração “(...) nasceram abraçados ao princípio da igualdade,do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula” (BONAVIDES, 1993, p. 517), assim sendo, não seria possível deixar de tratar do fator econômico, sob a perspectiva do Caos,que influencia, significativamente o direito e compõem o rol dos direitos fundamentais de segunda geração.

6.2. economia, direito e caos

A segunda geração de direitos de Paulo Bonavides (2011, in passim)se sedimenta nos direitos sociais, coletivos e econômicos, visto que no momento histórico que se originou estava pautada em primeiro pela revolução industrial, a produção de massa e o fordismo.

A era da produção de massa criada por necessidade econômica também gerou a necessidade de se estudar os eventos econômicos sobre um prisma caótico, ou seja, sobre o prisma da Teoria do Caos. Tal estudo a nível acadêmico se faz necessário, pois um dos pontos estudados constantemente pela economia é o ser humano.

Como se não bastasse à produção de massa interferir drasticamente no Caos, ainda adiciona mais um núcleo de preocupação ao direito, pois a regra econômica gera demandas e prejuízos, pois os acontecimentos de ordem econômica, mais cedo ou mais tarde, invadem a seara jurídica, seja pelo aumento da demanda no judiciário, seja pela necessidade de assessoria jurídica. Fato é que o direito não permanece impune diante dos fatores econômicos.

A análise aqui proposta, em um primeiro momento visa o balançar da corda sobre a Teoria do Caos que fornece um padrão, primeiro de crescimento de demandas que se assemelha ao do desenvolvimento de espécies vivas, e como

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o ser humano é uma espécie, tal padrão tende a se repetir; segundo a análise de como a economia impacta diretamente no direito.

É possível observar que apesar da era da computação, informação e processamento de dados estar apenas começando, os economistas se viam na mesma situação que colegas de outras ciências ou estudo do crescimento de demandas e para isto se voltaram para o trabalho de biólogos.

O trabalho de biólogos que serviu de supor para os trabalhos de fractais de Benoit Mandelbrot foi o trabalho desenvolvido por Robert May, que era um físico, que mais tarde se especializou em comportamentos de seres vivos e seus padrões de multiplicação.

Ao desenvolver seu trabalho Roberty May se deparou o índice de progressão de uma determinada espécie, qual seria seu padrão de crescimento. Primeiro eles se debruçaram sobre a forma Malthusiana, que pregava um crescimento de ordem aritmética para os alimentos e geométrico para as populações de serem vivos. Este raciocínio se demonstrou simplista e impreciso, primeiro, pois não havia dados sobre o quando uma espécie se reproduz durante a vida e nem as intempéries que esta sofre e sua condição de obtenção de alimento(GEICK, 1988, in passim).

Assim esta lógica foi abandonada, mas apesar disto biólogos de todo o mundo ainda partiam de uma premissa caótica, deve haver um padrão. Para isto Robert May se propôs a encontrar este padrão através do uso de primitivos computadores e máquinas processadoras de informação em cartões perfurados. Ao entrar em contato com o trabalho de Edward Norton Lorenz, Robert May se utilizou do mesmo sistema, toda vez que adentrava com dados no computador, ele imprimia e os colocava em gráficos que representava populações diferentes. Num primeiro momento uma população chegava ao ápice e cindia em duas em um formato de Y, assim em diante até que “Estas bifurcações vêm rápido e mais rápido – 4, 8, 16, 32 … - e de repente interrompem. Após um determinado ponto, o ponto, o “ponto de acumulação”, a periodicidade pavimenta caminho para o caos, flutuações que nunca se estabilizam” GEICK, 1988, p.72/73, trad. livre)9

9 “These bifurcations would come faster and faster – 4, 8, 16, 32 ... – and suddenly break off. Beyond a certain point, the point, the “point of accumulation,” periodicity give way to chaos, fluctuations that never settle down at all”.

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Aplicado critérios econômicos ao resultado do trabalho de Robert May, chega-se à conclusão que se em um ambiente controlado e simulado já há a existência de revoluções, imagine no mercado econômico de consumo, onde pelos mais diversos fatores a demanda somente aumenta. É verdade que para isto se aplica os critérios de Robert May somados ao de Benoit Mandelbrot, Edward Norton Lorenz, Steve Smale, Galileu, Philip Marcus e outros postuladores do caos.

7. da demanda do direito

Estudado o surgimento de demandas através do crescimento das populações, imperiosa é a constatação de que a “A Revolução Industrial potencializou enormemente esta tendência a padronização ao desenvolver tecnologias que proporcionam a produção repetitiva de bens” (RODRIGUES, 2006, p. 30), tratou-se de “um momento histórico que em várias circunstâncias de natureza política, científica, religiosa etc., confluíram em processo ainda hoje em expansão, como é o da urbanização, por exemplo, e o do capitalismo” (RODRIGUES, 2006, p. 30).

Uma vez mais o Estado de Guerra gerado pela Revolução Industrial é mencionado, só que desta vez em um âmbito produtivo, ou seja, a revolução que padronizou também os bens de consumo também fez eclodiros Direitos Fundamentais de Segunda Geração (BONAVIDES, 2011, in passim).

O principal fruto da Revolução Industrial, não foi só a padronização da produção de bens, mas também, “uma outra variável, que é economia de escala. Nesta, o ganho do empreendedor se constrói no conjunto de operações. (...) Só o conjunto das operações, tanto mais atraente quanto mais amplo, é que estabelece a lógica da atratividade da exploração daquele seguimento de produto ou serviço. (RODRIGUES, 2006, p. 31)

Nota-se, o segundo grande legado da revolução, se o primeiro consistia na produção em escala de bens o segundo não poderia estar dissociado, pois se atrela a um conceito de economia de escala, que significa uma demanda e uma demanda é regida por princípios caóticos aqui descritos.

A economia de escala evoluiu seu propósito, ao invés de apenas propiciar uma logística financeira para a produção e consumo de produtos e serviços,

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alcançou o sistema financeiro, ou seja, o cenário foi completado, com “(...) o aquecimento da economia, a expansão do crédito para enormes contingentes de população antes praticamente a margem do consumo e a globalização, empurrando a indústria como um todo para processos de produção em escala. (RODRIGUES, 2006, p. 34).

Assim até agora o impacto causado por tal modelo de produção industrial não alcançava o cenário jurídico, mas em razão destas escalas produtivas e da economia ser regida por isto não demorou até o problema entrar na seara jurídica.

O primeiro passo ocorreu “(...) A partir da década de oitenta do século passado, a advocacia, até então eminentemente artesanal, formada por conjuntos de profissionais liberais associados, passa a incorporar grandes estruturas profissionais”, ou seja, “verdadeiros exércitos de funcionários envolvidos em atividades repetitivas na produção de serviço” (RODRIGUES, 2006, p. 33).

Na sequência, veio o judiciário despreparado, pelo qual a demanda era resolvida de modo quase artesanal, de forma que o judiciário passa a sofrer o impacto originado do problema que tem origem na produção dos bens de massa. As instituições que chefiam esta produção de massa se aproveitam desta fraqueza das instituições jurídicas para levar demandas até o último nível de jurisdição visado lucrar com isto no mercado de capitais que paga melhor os juros do dinheiro investido (RODRIGUES, 2006, p. 34-36).

Importa frisar que “O tipo de repetição que há nestes casos nem é o da identidade de causas no sentido de repetir-se em juízo um modelo padrão”, é mais sutil, “ de empréstimo massificado, por exemplo. É uma mais sutil, porque pode haver alguma variedade de situações fáticas” (RODRIGUES, 2006, p. 36/37).

O resultado disto é um sistema de produção de demandas que tem como fonte uma mesma origem e um estrago de proporções gigantescas - a coletivização do direito “pelo impacto de massa de que são capazes, envolvem uma parcela significativa dos integrantes de uma comunidade” (DINAMARCO, 2010, p. 227).

8. conclusões

O desenvolvimento do presente trabalho perpassou a construção mitológica acerca do Caos, sedimentando as idéias de que o Caos não é uma força

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necessariamente ruim como os gregos, em sua fé, presumiam, mas sim, que se tratava do guardião dos mistérios que atormentavam a humanidade desde a sua formação.

O Caos se revela numa divindade ordenadora que pulveriza o seu poder por meio de sua descendência por cissiparidade, iniciada por Nix, depois por Éris e embora as divindades oriundas o Caos fossem, em sua maioria, atributos negativos, estas eram necessárias para manutenção da vida e seu desenvolver.

Na historia da Teoria do Caos restou revelado que a mitologia foi utilizada não somente para nomear a teoria, mas sim, como um dos princípios norteadores de toda a cisão.

Constitui-se pilar central da Teoria do caos, a mutidisciplinariedade, pois foram diversos ramos das ciências que juntos possibilitaram o surgimento de uma nova ciência, menos centrada em si e mais aberta a conceitos de outras áreas do saber.

O impulso dado na história contribuiu diretamente para a construção de dois conceitos basilares da Teoria do Caos por Larenz, a anão linearidade do universo e o efeito borboleta. Tudo realizado por um sistema de equações que ficaria famoso e seria utilizado em todos os experimentos par se comprovar a autuação do Caos nas mais diversas searas do saber humano.

Lorenz influenciou Smale que ao notar padrões nos pêndulos passa a estudar a simples teoria pendular de Galileu que institui uma previsibilidade ao retorno das condições iniciais, posteriormente evoluindo para sistemas elétricos, no qual encontra um sistema pendular que possui um determinável tempo para retornar ao ponto inicial. O estudo de Steve Smale é completado por Philip Marcus que por meio da utilização do programa de equações realiza a descoberta de outra regra do Caos – se um sistema possui inúmeras variáveis, este criará suas próprias regras e se sustentará.

Da descoberta dessa premissa do Caos, passou-se a refletir sobre o Direito, pois o direito é um sistema complexo que se auto gera e cria sua suas próprias regras estando baseado em primeiro momento na natureza e depois nas leis positivas.

No desenvolver da pesquisa os estudos foram conduzidos a descobertas de Benoir Mandelbrot dos padrões na economia por meio da simetria com as quais

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os preços do algodão oscilação. Esses estudos levaram aos fractais, propriedade que a natureza possui de replicar formas geométricas seguindo um padrão básico.

A descoberta dos fractais consistia em gerar quantidades de sólidos provocando sua divisão através de regras de sequencia de cantor e realizando aproximações por meio impossibilidade de se continuar, criasse a dimensão fractal e esta faz inúmeras contribuições a empresas de superfícies.

No que se refere ao direito natural e positivado, os ensinamentos de Mon-tesquieu deixa um postulado equivalente ao de Lorenz, ao afirmar que as leis são condições que se alteram constantemente, de onde se presume que o direito é um sistema de normas não lineares, no qual todas as normas incidem sobre um mesmo momento.

Montesquieu define o Estado de Guerra como um momento em que os homens em sociedade com base em sua força tentam se impor sobre os outros, o que conduz as gerações de direitos a serem observadas como pilares do complexo sistema jurídico ao qual pode-se adicionar mais regras não lineares.

Sobretudo conclui-se que o Caos como método multidisciplinar e não linear constitui não somente fonte de analise da crise de sistemas complexos, mas também, uma forma de se buscar solução através da determinação das condições iniciais para melhor decidir.

9. referências

ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte, 5 ed. Suhrkamp Verlag. 2006. Traduzido por SILVA, Virgílio Afonso, 2ª ed.. São Paulo Editora Malheiros. 2011.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 26ª ed.. São Paulo: Malheiros Editores, 2011.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1993.

CABRAL, João Francisco P. Teogonia e a origem dos deuses gregos. Dispo-nível em: http://www.brasilescola.com/mitologia/teogonia-origem-dos-deuses-gregos.htm - Acesso em: 15/06/2014.

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DINAMARCO, Candido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moder- no. Tomo I, 6a ed. São Paulo:Malheiros, 2010.

GLEICK, James. CHAOS: making a new Science. New York/, New York:, United States of America. Penguin Books USA Inc. 1988.

HESIODO, século VIII a VII, Trad. deJaaTorrano in: TORRANO, Jaa. TEOGONIA: A Origem dos Deuses. São Paulo. Biblioteca Pólen – Iluminuras. 1991.

LORENZ, Edward Norton. The Essence of Chaos. Seattle, Washington, United States of America.TheUniversityof Washington Press. 1993.

MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat. De l’espiritdeslois. 1748. Trad. por BINI, Edson Do Espírito das Leis, 1ª ed.. São Paulo: Edipro, 2004.

PAIVA. Wagner Peixoto de. A Teoria do Caos e as Organizações. In: Caderno de Pesquisas em Administração, , v 8. n. 2, abril/junho. São Paulo, 2001.

RODRIGUES, Ruy Zoch. Ações Repetitivas: casos de antecipação de tutela sem o requisito de urgência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

TORRANO, Jaa. TEOGONIA: A Origem dos Deuses. São Paulo. Biblioteca Pólen – Iluminuras. 1991.

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deliberação e racionalidade prática: uma reflexão a partir da teoria da lei

natural de tomás de aquino

Júlio Aguiar de Oliveira1

Bárbara Alencar Ferreira Lessa2

Resumo

No ensaio Intractable Moral Disagreements, Alasdair MacIntyre, refletindo sobre a questão dos direitos humanos naturais, sustenta que somente será possível investigar, no contexto de uma comunidade ampliada de investigadores, os princípios morais válidos para toda a humanidade, se houver, de saída, uma vinculação das partes em desacordo teorético radical a um conjunto de regras de racionalidade prática. Para MacIntyre, essas regras morais, que são condição para a existência do debate, são idênticas aos preceitos da lei natural descritos por Tomás de Aquino. Nesse contexto, o trabalho objetiva analisar o sentido que MacIntyre confere à deliberação, num diálogo com Tomás de Aquino, enquanto elemento fundamental da racionalidade prática. Assim, o trabalho partirá da tese proposta por MacIntyre para analisar, no âmbito mais amplo da teoria da ação humana de Tomás de Aquino, o conceito de deliberação (consilium) e sua relação com a racionalidade prática. Dessa forma, por meio da elaboração de Tomás de Aquino da racionalidade prática e deliberação, MacIntyre acredita ser possível minimizar os conflitos que geram os desacordos morais que vivenciamos na busca pelos bens humanos que constituem a base para os direitos humanos naturais.

Palavras-chave

Direito humanos naturais; Deliberação; Racionalidade prática; Lei natural; Tomás de Aquino.

1 Bacharel em Direito pela UFMG. Mestre em Filosofia do Direito pela UFMG. Doutor em Filosofia do Direito pela UFMG. Estágio pós-doutoral, como bolsista da CAPES, na Christian-Albrechts-Universität zu Kiel. Professor Associado I da Universidade Federal de Ouro Preto. Professor Adjunto da PUC Minas nos cursos de graduação em Direito e no Programa de Pós-Graduação em Direito.

2 Bacharela em Direito pela UFOP. Mestra em Direito pela PUC Minas. Doutoranda em Direito pela PUC Minas.

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Abstract

In the essay Intractable Moral Disagreements, Alasdair MacIntyre, reflecting on natural human rights, argues that we can only investigate moral principles valid for all mankind if the parties in radical theoretical disagreement are bound to a set of rules of practical reasoning. For MacIntyre, these moral rules, which are a condition for the existence of the debate, are identical to the precepts of natural law described by Thomas Aquinas. In this context, the paper aims to analyze the sense that MacIntyre attributes to deliberation, in dialogue with Thomas Aquinas, as a key element of practical reasoning. Thus, from the thesis proposed by MacIntyre, the work will analyze, in the context of the theory of human action of Thomas Aquinas, the concept of deliberation (consilium) and its relation to practical reasoning. Thus, through the Aquinas’s elaboration of practical rationality and deliberation, MacIntyre believes that it is possible to minimize the conflicts that produce the moral disagreements that we experience in the pursuit of human goods that are the basis for the natural human rights.

Key words

Human natural rights; Deliberation; Practical rationality; Natural law; Tho-mas Aquinas.

1. introdução

Na obra Intractable Disputes About the Natural Law: Alasdair MacIntyre and Critics, filósofos, juristas e teólogos refletem sobre a questão dos direitos humanos naturais tomando como referência comum o ensaio Intractable Moral Disagreements, de Alasdair MacIntyre. Nesse ensaio, referência básica compartilhada de toda a obra, MacIntyre sustenta que somente será possível investigar, no contexto de uma comunidade ampliada de investigadores, os princípios morais válidos para toda a humanidade, se houver, de saída, uma vinculação das partes em desacordo teorético radical a um conjunto de regras de racionalidade prática. Para MacIntyre, essas regras morais, que são condição para a existência do debate, são idênticas aos preceitos da lei natural descritos por Tomás de Aquino.

A partir dessa afirmação, MacIntyre (2009) procura – na sequência do seu ensaio – demonstrar que a tradição filosófica aristotélico-tomista é racionalmente

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superior às outras tradições filosóficas, o que, se por um lado não significa ser possível tornar essa superioridade universalmente reconhecida, por outro, significa assumir que a defesa da perspectiva aristotélico-tomista é a única capaz de identificar as falhas do debate moral moderno e contemporâneo.

A avaliação da tese da superioridade da tradição filosófica aristotélico-tomista, embora relevante, não nos interessa aqui. Interessa-nos, neste artigo, analisar especificamente o sentido que MacIntyre confere à deliberação, num diálogo com Tomás de Aquino, enquanto elemento fundamental da racionalidade prática. Dessa forma, o trabalho partirá da tese proposta por MacIntyre a fim de analisar, no âmbito da teoria de Santo Tomás de Aquino, o conceito de deliberação (consilium) e sua relação com a racionalidade prática inerente aos princípios da lei natural.

2. deliberação e racionalidade prática em santo to-más de aquino: a tese de alasdair macintyre

MacIntyre, no ensaio Intractable Moral Disagreements (2009), afirma que vi-vemos em permanente desacordo em relação aos princípios morais que orientam nossas vidas. Questões morais, relacionadas com temas como justiça social, guerra e paz, aborto e contracepção, pena de morte, são objetos de debates intermináveis diante de permanentes desacordos morais e políticos.

Segundo MacIntyre, tais desacordos morais decorrem de disputas que têm origem em conflitos filosóficos. Tomistas, kantianos e utilitaristas, de acordo com MacIntyre, pressupõem, cada um, a sua própria concepção do que seria o bem último do homem, isto é, qual seria a natureza da felicidade. Esse conflito gera um desacordo permanente sobre quais princípios devem guiar a vida humana:

O problema filosófico é aquele que surge para qualquer filósofo que sustenta que, se os princípios e regras que governam a vida moral pretendem ter autoridade, então devem ser justificáveis por argumentação racional. Então não são apenas tomistas e outros pensadores católicos, mas também, por exemplo, kantianos e utilitaristas. Todos estes grupos estão em conflito entre si.  (...) Cada grupo em conflito reclama a autoridade da razão e continua

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não convencido dos argumentos elaborados pelos oponentes e críticos (MACINTYRE, 2009, p. 2, tradução nossa3).

Dessa forma, MacIntyre acredita que os desacordos morais ocorrem devido às discordâncias em relação ao fim último da vida humana. Isto é, a causa desses desacordos se encontra nas falhas da racionalidade prática de uma comunidade em busca de um acordo sobre o bem humano supremo, a felicidade. Na medida em que se mostra capaz de detectar essas falhas, a teoria tomista, para MacIntyre, é capaz de minimizar esses conflitos. A teoria tomista da lei natural fornece as regras de racionalidade prática que devem orientar a investigação prática da comunidade.

Neste ponto, o conceito de deliberação, presente nas teorias de Aristóteles e Tomás de Aquino, assume um papel fundamental. Na Suma Teológica, Tomás de Aquino descreve o consilium (Suma Teológica, Ia-IIae, q. 14). A palavra consilium pode ser traduzida como conselho ou deliberação e consiste na inquirição necessária para emitir um juízo relativo ao que se deve escolher fazer. Logo, consilium refere-se aos meios e não aos fins das ações:

Nas coisas práticas, o fim tem a razão de princípio, porque as razões das coisas que são para o fim tomam-se do fim. Não se questiona o princípio, mas é necessário supor princípios em toda investigação. Sendo a deliberação uma questão, não há deliberação do fim, mas somente do que é para o fim. – Todavia acontece que o que é fim com respeito a algumas coisas pode estar ordenado para outro fim, como também o que é princípio de uma demonstração pode ser a conclusão de outra. E assim, aquilo que é aceito como fim de uma investigação, pode ser aceito como o que é para o fim de outra. E desse modo será objeto de deliberação.

(Suma Teológica, Ia-IIae, q. 14, 2).

A deliberação (consilium), segundo Aquino e Aristóteles, é, essencialmente, uma atividade coletiva. MacIntyre (2009) enfatiza essa característica afirmando que, sem a participação do outro, especialmente daqueles com os quais estamos

3 The philosophical problem is one arising for any philosopher who insists that, if the principles and rules that govern the moral life are to have authority, then they must be justifiable by rational argument. So it is not only with Thomists and other Catholic thinkers, but also with, for example, Kantians and utilitarians. And all these parties are at odds with each other. […] Each contending party claims the authority of reason and each remains unconvinced by the arguments mounted by their opponents and critics.

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em desacordo, não é possível haver deliberação. Precisamos avaliar nossos próprios julgamentos a partir do ponto de vista do outro. Isso porque, para MacIntyre (2009), existe sempre a possibilidade de erros em nossas escolhas em virtude da relação entre bens e desejos. É através da avaliação dos outros que identificamos se estamos julgando de acordo com os bens humanos necessários, nossos fins naturais, ou, ao contrário, se estamos sendo levados por inclinações motivadas por meros desejos de poder, dinheiro ou honra.

Em nossa vida, somos constantemente confrontados com a questão sobre qual é o bem supremo a ser perseguido em nossas ações. Na perspectiva da teoria tomista, todos os seres humanos buscam um mesmo e único bem supremo, a beatitudo. Porém, como MacIntyre (2009) observa, é comum discordarmos sobre qual é este bem supremo, de acordo com nossos diferentes modos de viver e crenças. Assim, como foi dito, ele conclui que os desacordos morais derivam justamente dessas discordâncias sobre a natureza do bem humano fundamental. O desacordo moral que é essencialmente prático pressupõe também uma dimensão teórica, isto é, uma análise do conceito de beatitudo.

Contudo, MacIntyre (2009) argumenta que uma investigação racional não será sempre capaz de resolver este desacordo moral. É preciso reconhecer que, para Santo Tomás de Aquino, a filosofia, por sua própria natureza, implica em um desacordo contínuo, devido à natureza falível da razão humana (Suma Teológica, IIa-IIae, q. 2, 4). Além disso, cada parte irá, no debate, pressupor sua própria noção do que acredita ser este fim humano primário. Porém, isso não quer dizer que uma deliberação sobre as questões práticas da vida humana seja inútil. Uma investigação orientada por princípios racionais é fundamental para verificar se nossa concepção do que é este bem humano supremo é racionalmente justificável.

Para MacIntyre (2009), somente no contexto de uma deliberação comparti-lhada com os outros membros de uma comunidade, em que são apresentadas as noções rivais do que é o bem humano supremo, é possível encontrar as causas dos nossos desacordos.

O desacordo moral tem, assim, uma função positiva na vida moral, nos estimulando a refletir sobre as fontes de nossos desacordos práticos imediatos, identificando as premissas imediatas das quais os desacordos derivam, e, se necessário, o encadeamento de razões

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que nos levam a argumentar, a partir destas premissas particulares, sobre esta situação particular (...). Assim, desacordos teóricos sobre a natureza do fim da vida humana emergem de desacordos práticos no contexto da deliberação compartilhada (MACINTYRE, 2009, 18-19, tradução nossa4).

É nesse sentido que a deliberação prática pressupõe uma investigação teórica. Quando, no curso da deliberação, encontramos os desacordos práticos sobre o que seria a beatitudo e sobre o que fazer em uma situação particular, precisamos recorrer a questões teóricas sobre a natureza do bem humano supremo. Portanto, é necessário obedecer a critérios e regras racionais para proceder a uma investigação que objetiva alcançar o bem da verdade.

A verdade, para Tomás de Aquino, é adequatio rei et intellectus (adequação entre coisa e intelecto). Na Suma Teológica, Aquino descreve a verdade como “uma certa relação de igualdade entre o intelecto, ou o sinal, e a coisa inteligida e significada, ou ainda, entre uma determinada coisa e sua regra, ou modelo” (IIa-IIae, q. 109, 1). Anthony Lisska traz um exemplo esclarecedor sobre a concepção de verdade de Santo Tomás de Aquino:

Na razão especulativa ou teórica, Aquino sugere que a mente é medida pela coisa. Na razão prática ou produtiva, a coisa é medida pela mente. Então, quando o químico entende a fórmula do ácido clorídrico (HCl), a mente, como sugere Aquino, é medida pela estrutura de ‘HCl’ no mundo exterior. Por outro lado, quando uma pessoa está exercitando um ofício – cerâmica, por exemplo – a coisa é medida pela ideia ou modelo na mente da pessoa que realiza o ofício – neste caso, o ceramista. A adequatio ocorre, portanto, tanto na razão especulativa como na prática. Porém, o que funciona como a medida ou o padrão os diferencia. No primeiro, é a coisa; no último, é a ideia ou exemplar (LISSKA, 1996, p. 94, tradução nossa5).

4 Moral disagreement therefore has a positive function in the moral life, that of stimulating us to reflect upon the sources of our immediate practical disagreements, by identifying the immediate premises from which those disagreements derive, and, if necessary, the further chain of reasoning that led us to argue from these particular premises about this particular situation. […] So theoretical disagreements about the nature of the end of human life emerge from immediate practical disagreements in the context of shared deliberation.

5 In theoretical or speculative reason, Aquinas suggests that the mind is measured by the thing. In practical or productive reason, the thing is measured by the mind. Hence, when the chemist

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Quando não são observados esses princípios racionais, MacIntyre (2009) afirma que as soluções serão baseadas em padrões que, embora legitimados socialmente, não são racionais, como a autoridade ou algum tipo de contrato social implícito ou explícito. Assim, os indivíduos terão chegado a um acordo sobre uma mera divisão de custos e benefícios, tentando maximizar suas próprias vantagens. Neste caso, o poder, e não a razão, é que determinará a decisão do grupo (MACINTYRE, 2009, p. 19-20).

Para evitar essa situação de evidente prejuízo à comunidade, a racionalidade prática exige que os participantes de uma deliberação investigativa se atenham a uma primeira regra racional:

A razão prática requer de nós, quando encontramos desacordos sistemáticos e aparentemente irresolúveis em relação a nosso próprio ponto de vista, que nós não assumamos que estejamos certos, que nossas afirmações estejam bem fundamentadas e que nossa descrição de natureza humana seja a verdadeira. Não temos, inicialmente, nenhuma base para esse julgamento. (...) Precisamos recorrer à investigação do que é a verdade nestas questões, na companhia daqueles que sustentam posições contrárias (MACINTYRE, 2009, p. 20, tradução nossa6).

Assumindo essa posição inicial de imparcialidade ao se envolver em uma deliberação, MacIntyre (2009) afirma que surgem para os participantes do debate duas verdades sobre o bem humano supremo: em primeiro lugar, que “nenhuma descrição do bem humano pode ser adequada se não é justificada e sustentada por uma investigação contínua que leve a verdade como seu fim e bem”; e, em segundo lugar, que o “bem da verdade deve ser uma parte constitutiva do bem humano” (2009, p. 20).

understands the formula for hydrochloric acid (HCl), the mind, so Aquinas suggests, is measured by the structure of of ‘HCl’ in the external world. On the other hand, when a person is exercising a craft – pottery, for example – the thing is measured by the idea or model in the mind of the person undertaking the craft – in this case, the potter. The adequatio holds, therefore, in both speculative and practical reason. However, what holds as the standard or measure differs. In the former, it is in the thing; in the latter, it is in the mind as idea or exemplar.

6 Practical reason requires of us, when we do encounter systematic and apparently irresolvable disagreement with our own point of view, that we do not assume that we are in the right, that it is our claims that are well grounded and our account of human nature that is true. We have initially no grounds for so judging. […] We need, therefore, to resort to enquiry as to what the truth about these matters is, in company with those others who hold opposing views.

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Dessa forma, a verdade aparece como critério fundamental para a continui- dade de uma investigação racional sobre as escolhas e julgamentos das ações huma- nas. MacIntyre (2009) argumenta, assim, que uma deliberação comprometida com a verdade, no sentido tomista do termo, exige que seus participantes se eduquem de forma a não projetar sobre o objeto da discussão suas próprias preferên- cias, medos, esperanças e outros tipos de sentimentos antecedentes ao debate.

Nesse sentido, MacIntyre (2009) elenca três condições para se alcançar este nível de afastamento e de comprometimento com a verdade. Em primeiro lugar, a verdade deve encontrar seu lugar na deliberação de modo a ser um bem absoluto, não podendo ser superado por outros bens. Em segundo lugar, deve haver um acordo entre as partes sobre as regras e virtudes sem as quais a decisão sobre o bem humano fundamental deixa de ser racional. Ele afirma, então, que “devemos ter certeza de que a prática daquelas regras e virtudes que reconhecemos em nossas vidas é coerente com a prática das regras e virtudes da investigação” (MACINTYRE, 2009, p. 22, tradução nossa7). Em outras palavras, os participantes devem ter consistência em relação às regras e aos bens envolvidos na investigação, assumindo-os tais regras e bens em suas próprias vidas. Em último lugar, os participantes do debate devem se distanciar dos interesses materiais e psicológicos expressos em inclinações e preconceitos nutridos por desejos de prazer, dinheiro ou poder. Tais desejos distorcem nossa visão e nossos julgamentos, podendo comprometer a racionalidade da deliberação. Devemos, assim, evitar que nosso pensamento dê expressão aos nossos preconceitos para nos afastar de uma retórica criada para convencer não pela razão, mas pelas paixões.

Mas como alcançar esse nível de desprendimento? MacIntyre argumenta que, para isso, as partes precisam estar subordinadas a determinadas “normas que proporcionam a cada participante a melhor oportunidade para considerar a tese e os argumentos rivais de forma impessoal e imparcial” (2009, p. 22, tradução nossa). Dessa forma, ele relaciona regras que formam as pré-condições para a investigação racional.

A primeira das regras é o “comprometimento mútuo aos preceitos que nos proíbem de pôr gratuitamente em perigo a vida, liberdade ou propriedade de

7 […] we will have to make sure that the practice of those other rules and virtues which we acknowledge in our lives is consistent with the practice of the rules and virtues of enquiry.

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cada um” (MACINTYRE, 2009, p. 23, tradução nossa8). As partes não terão condições de considerar os argumentos dos outros de forma imparcial se houver razões para sentirem receio de um perigo ou uma ameaça de perigo a eles. Por isso, estaremos sempre vinculados a regras que proíbem infligir qualquer mal à vida ou ao corpo de inocentes, bem como à propriedade alheia legítima.

A segunda pré-condição à deliberação implica que os participantes devem estar seguros de que podem esperar que o outro fale apenas a verdade. Não há espaço, no debate, para afirmações enganosas.

O terceiro e último princípio é a atribuição de autoridade a um grupo ou a um indivíduo para que este faça o necessário para a segurança da comunidade, protegendo-a de ameaças internas e externas. Isso permite que a investigação seja realizada numa comunidade por um longo período de tempo.

Neste ponto se encontra uma questão essencial para a proposta de MacIntyre. O conteúdo das pré-condições para a investigação coletiva racional corresponde aos preceitos da lei natural de Santo Tomás de Aquino, isto é, “os preceitos cuja conformidade é exigida como pré-condições para a investigação racional são os preceitos da lei natural” (MACINTYRE, 2009, p. 24, tradução nossa9).

A lei natural descrita por Tomás de Aquino é compreendida como a partici-pação da lei eterna na criatura racional. A lei eterna, por sua vez, é um conjunto de arquétipos, análogo ao mundo das Idéias, que são encontrados como as idéias divinas na mente de Deus (LISSKA, 1996, p. 92). As inclinações naturais do ser humano resultam da impressão (impressione) da lei eterna na natureza humana e orientam o ser humano a participar da divina providência: “(...) a alma racional é a própria forma do homem, é inerente a qualquer homem a inclinação natural a que aja segundo a razão. E isso é agir segundo a virtude” (Suma Teológica, Ia IIae, q. 94, a. 3).

Os preceitos da lei natural são, portanto, “os primeiros princípios das obras humanas” (Suma Teológica, Ia IIae, q. 94, a. 1), isto é, um conjunto de preceitos morais fundamentais que orienta o agir e a vida humanas. O preceito primário

8 […] mutual commitment to precepts that forbid us to endanger gratuitously each other’s life, liberty, or property.

9 The precepts conformity to which is required as the precondition for practical enquiry are the precepts of the natural law.

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e fundamental é: “o bem deve ser feito e procurado, e o mal, evitado” (Suma Teológica, Ia IIae, q. 94, a. 2). O bem é, assim, o fim buscado pela ação humana orientada pela razão prática. Dessa forma, o que nos faz distinguir o bem e o mal nada mais é do que a impressão da luz divina nos seres humanos, ou seja, a lei natural. Os princípios primários que derivam deste preceito fundamental são conhecidos por todos os seres humanos. Os demais preceitos naturais, porém, variam conforme as circunstâncias específicas nas quais se encontra o homem.

Em relação aos princípios primários da lei natural, existem, segundo Aquino, bens básicos que os seres humanos devem perseguir. Tais bens são de três ordens, conforme diferentes aspectos da natureza humana. Em primeiro lugar, os bens que derivam de nossa natureza física, que compartilhamos com todos os seres vivos, são os bens da preservação da nossa vida e saúde, afastando-nos dos perigos e ameaças à vida humana. Em segundo lugar, os bens que compartilhamos com outros animais, que resultam de nossa natureza animal, são o bem da sexualidade e o bem do cuidado com os filhos. Em terceiro lugar, os bens que derivam de nossa natureza racional são os bens do conhecimento da natureza e de Deus e os bens exigidos pela vida em sociedade (Suma Teológica, Ia IIae, q. 94, a. 2).

Nesse sentido, MacIntyre (2009) identifica características comuns entre os dois conjuntos de normas (as pré-condições para a deliberação racional e os preceitos da lei natural tomista): ambos são universais, não admitem exceção e são um e o mesmo para todas as pessoas. Além disso, são formados por preceitos indemonstráveis, isto é, não podem ser conclusões de afirmações factuais ou teóricas antecedentes. A adesão a sua autoridade é implícita, pressuposta, e descoberta apenas ao se engajar em uma deliberação. Por conseguinte, toda deliberação sobre questões morais deve pressupor, antes de tudo, esses princípios.

Uma deliberação não orientada por tais preceitos morais é racionalmente falha, o que pode não apenas perpetuar os desacordos iniciais, como também gerar novos desacordos. As falhas podem ocorrer em cada estagio da deliberação. Podemos, por exemplo, iniciar o debate considerando que já estamos com a razão sobre nossas concepções e argumentos. Ou então, podemos desconsiderar a dimensão social do debate considerando que os recursos que cada indivíduo apresenta são suficientes. Pode-se errar também violando qualquer uma das pré-condições da investigação racional.

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Estas falhas na racionalidade da deliberação terão um resultado danoso:

Na medida em que as relações sociais entre aqueles que discordam não são governadas pelas normas da razão, elas estarão abertas aos apelos do prazer, dinheiro e poder. E destes, é o poder que irá decidir os resultados dos conflitos sociais, enquanto dinheiro e prazer agirão, frequentemente, como agentes ou máscaras do poder (MACINTYRE, 2009, p. 25-26, tradução nossa10).

MacIntyre (2009) observa que as falhas e incoerências dos debates moderno e contemporâneo entre os adeptos das diversas perspectivas no campo da filosofia moral só podem ser diagnosticadas por meio da teoria tomista. Os diferentes oponentes dos debates, adeptos de diferentes teorias morais – kantianos, utilitarista, tomistas e católicos – apóiam-se em premissas rivais e defendem princípios racionais próprios, não reconhecendo os fundamentos dos seus adver-sários no debate.

Em vista desse quadro, MacIntyre faz a seguinte pergunta: como é possível que filósofos morais tenham como base de suas teses a razão, considerada universal e, mesmo assim, não consigam convencer seus rivais, gerando assim um conflito irresolúvel? Como uma tentativa de resolver este impasse, ele sustenta que “a ques-tão prática urgente será aquela que investiga nossa mais efetiva possibilidade de encontrar um fundamento comum com, pelo menos, alguns destes interlocutores com quem estamos em contínuo e irremediável desacordo” (MACINTYRE, 2009, p. 4, tradução nossa11). Este fundamento comum é fornecido pela teoria moral de Santo Tomás de Aquino, mais especificamente, pelos princípios da lei natural. Nesse sentido, a teoria de Aquino pode contribuir para explicitar as falhas e incoerências das teorias rivais – utilitaristas e kantianas, que se encontram em um desacordo moral incontornável. Adotando as regras da deliberação prática da teoria tomista, é possível diminuir o nível de desacordo presente nos debates morais sobre os direitos humanos e os bens humanos envolvidos.

10 For insofar as the social relationships between those who disagree are not governed by the norms of reason, they will be open to the solicitations of pleasure, money, and power. And of these it is power that will decide the outcomes of social conflicts, although money and pleasure will often act as the agents of power or the masks of power.

11 The urgent practical question will have become that of how we may effectively find common ground with at least some of those with whom we are in continuing and irremediable disagreement.

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3. deliberação (consilium) e racionalidade prática na teoria da ação humana de tomás de aquino

Para compreender melhor o conceito de deliberação, central para a tese de MacIntyre (2009), é necessário estudá-lo no contexto da teoria da ação humana de Santo Tomás de Aquino. A descrição tomista do consilium envolve a análise da estrutura moral da ação humana e do conhecimento da beatitudo, o fim último de todas as ações do homem.

Para Tomás de Aquino, a ação própria do homem é a ação racional. Essa ação tem uma estrutura complexa, na qual estão presentes o elemento cognitivo e o elemento volitivo. Ralph McInerny afirma que “ações humanas são atos conscientes de vontade, ações voluntárias” e que as ações morais humanas, na teoria de Aquino envolvem tanto conhecimento como vontade (McINERNY, 1997, p. 60, tradução nossa12). Na teoria tomista, intelecto e vontade estão intrinsecamente conectadas na ação concreta, que envolve a racionalidade prática. Portanto, conforme Brian Davies, “não há nenhum ato de inteligência prática que não seja também de vontade, e vice-versa” (DAVIES, 2002, p. 18, tradução nossa13).

A vontade envolve o que Aquino chama de habitus. O termo habitus pode ser mais adequadamente traduzido como disposição, pois o sentido moderno e usual da palavra “hábito” não corresponde ao sentido dado por Tomás de Aquino ao termo (DAVIES, 2002, p. 16). Para Tomás de Aquino, seguindo Aristóteles, temos disposições habituais para agir de determinada maneira. Uma vida humana, como afirma McInerny (1997, p. 91), é uma história e, conforme agimos de certos modos, tendemos, cada vez mais, a agir de forma semelhante no futuro. Como explica Davies:

[...] Aquino considera os desejos refletidos nas ações humanas particulares como derivadas do que somos (ou do que nos tornamos), consideradas não apenas como fazendo isso ou aquilo, mas como sendo humanos de um certo tipo – pessoas que acham desejável agir de certas maneiras, pessoas com preferências,

12 Human actions are conscious willing actions, voluntary actions.13 There is no act of practical intelligence which is not also one of will, and vice-versa.

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gostos e desgostos particulares. Sua conclusão é a de que ações concretas refletem nossos caráteres ou personalidades. Ele acredita que existem padrões de ação para os quais nós tendemos como indivíduos, e que nossas tendências podem ser afetadas ou influenciadas por nosso passado ou pelas escolhas que fazemos. Nós não agimos em vácuo histórico. Nós agimos com base em disposições (DAVIES, 2002, p. 15, tradução nossa14).

Dessa forma, ter uma disposição (habitus), é estar disposto a agir de determinada maneira. Logo, tais disposições habituais correspondem às virtudes e aos vícios: as virtudes são disposições para agir bem e os vícios disposições para agir mal. Uma ação humana, portanto, pode ser boa ou má. Para ser boa, uma ação deve “proceder da razão correta e de uma vontade orientada para o bem” (McINERNY, 1997, p. 95, tradução nossa15). Como esclarece McInerny, “há, para bem ou para mal, uma previsibilidade em nossas vidas, uma estabilidade de escolha, uma disposição arraigada para agir de uma maneira em vez de outra” (McINERNY, 1997, p. 91, tradução nossa16).

A deliberação é, portanto, a reflexão racional para agir de acordo com nossa vontade, guiada pelas disposições habituais do agente. O processo racional de deliberação, no qual se busca a maneira de alcançar o bem desejado – e não o bem em si –, inicia com o desejo por algo que o agente considera como bom. A forma de alcançar esse bem é determinada pela deliberação, por meio da razão prática. Antes de escolher o que fazer, e de agir de fato, o agente, em vista de alternativas, considera a melhor forma de buscar o bem desejado. Como foi dito, MacIntyre (2009, p. 17) observa que o objeto da deliberação não é o fim a ser alcançado. Brian Davies explica que nós já deliberamos à luz de um desejo (uma

14 (...) Aquinas views the wants reflected in particular human action as deriving from what we are (or what we have become), considered not just as doing this or that bus as being people of a certain kind – people Who find it desirable to action in certain ways, people with particular tastes, likes, and dislikes. His conclusion is that concrete actions reflect our characters or settled personalities. He thinks that there are patterns of action to which we tend as individuals, and that our tendencies can be affected or influenced by our past and by the choices we make. We do not act in a historical vacuum. We act on the basis of dispositions.

15 [...] in order to be good, they must proceed from correct reason and from a will that is oriented to the good.

16 There is, for better or for worse, a predictability in our lives, a stability of choice, ingrained disposition to act in one way rather than another.

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vontade orientada para o bem). Assim, “a deliberação pressupõe metas, fins, ou intenções. [...] E alguns caminhos podem ser melhores do que outros para alcançar o que queremos” (DAVIES’, 2002, p. 15, tradução nossa17). É este o objeto da deliberação (consilium), os meios para alcançar nossos fins.

Portanto, o agir humano concreto envolve a deliberação (consilium) e tem como resultado a escolha (electio). Ambas resultam de disposições (habitus) que devem orientar nossa vontade para o bem, conforme a educação moral que cada um recebeu em suas experiências de vida. Está claro, assim, que a ação humana, para ser boa, envolve educação para as virtudes. São as virtudes que formam nosso juízo em direção ao bem e possibilitam o agir bem instintivamente (DAVIES, 2002).

Sobre a deliberação (consilium) e a escolha, ou eleição (electio), Tomás de Aquino afirma:

[...] a eleição segue o juízo da razão nas coisas práticas. Entretanto, nelas encontra-se muita incerteza, porque as ações referem-se aos singulares contingentes, os quais devido à variação são incertos. A razão não profere juízo sobre coisas dúbias e incertas, sem prévia investigação. Por isso, é necessária a investigação da razão antes do julgamento do que se vai eleger. Esta investigação chama-se deliberação” (ST, Ia, IIae, q. 14, a. 1).

Porém, Davies destaca que a deliberação não implica que o agente deve formular um complicado raciocínio a cada ação. Seu objetivo é demonstrar que, mesmo que não nos demos conta desse processo racional, ele existe e pode ser explicitado de forma lógica. A primeira premissa desse processo lógico deve ser o conhecimento do bem supremo da vida humana, a beatitudo.

Para Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, a tarefa de conhecer o fim último da vida humana, pertence à racionalidade prática e não à teórica:

(...) raciocinamos teoricamente na direção desse fim último e sobre esse fim último que é a arché da pesquisa e do raciocínio práticos, mas, a partir dessa arché, é através do raciocínio prático

17 […] deliberation presupposes goals, ends, or intentions. […] And some courses of action can be better at getting us what we want than others.

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que somos conduzidos a conclusões práticas quanto a como agir (MACINTYRE, 1991, p. 211).

Dessa forma, a racionalidade prática, que condiciona nossos atos, requer que o homem aja sempre em conformidade com o conhecimento do bem humano supremo. Se, por um lado, no agir humano, o habitus nos permite desejar o que é bom, atuando na nossa vontade livre, por outro, a inteligência nos permite agir mediante o conhecimento da beatitudo. É nesse sentido que a investigação sobre os princípios morais em uma comunidade envolve uma investigação teórica, sobre a natureza da felicidade. Segundo MacIntyre, na obra Whose Justice? Which Rationality?18 (1988), a natureza do fim último dos seres humanos, na ação humana particular, “fornece a primeira premissa de todo raciocínio prático completamente racional” (MACINTYRE, 1991, p. 210). MacIntyre continua:

A deliberação que determina o meio a ser escolhido para algum fim e que termina em electio é sempre, se for completamente racional, dirigida para esse fim, apenas à medida que é também um outro meio o fim último dos seres humanos, o único fim que não pode ser também meio e, portanto, não é submetido à escolha (ST Ia-IIae, 13,3) (MACINTYRE, 1991, 208).

Dessa forma, a deliberação determina os meios e a vontade “aceita os meios e determina um ato que completa a ação, implementando a escolha através desse ato de determinação” (MACINTYRE, 1991, 208). A escolha (electio) é descrita por Santo Tomás, seguindo o conceito aristotélico proaíresis, como “a conclusão do agente quanto ao que é bom que se faça agora, como um meio imediato para o fim para o qual, através da deliberação, está considerando os meios a adotar” (MACINTYRE, 1991, p. 207). A escolha é, nesse sentido, o desejo racional, isto é, um ato da vontade “disciplinado e dirigido para o hábito moral reto” (MACINTYRE, 1991, p. 207).

MacIntyre, no ensaio Intractable Moral Disagreements (2009), enfatiza o caráter público da deliberação:

Não é suficientemente destacado que a deliberação é, por sua natureza, uma atividade social, que as questões deliberativas

18 Neste trabalho é utilizada como referência a edição brasileira de 1991 intitulada Justiça de Quem? Qual racionalidade?.

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centrais não são como “O que eu devo fazer aqui e agora?” e “como eu devo viver?”, mas como “O que nós devemos fazer aqui e agora?” e “Como nós devemos viver?” (MACINTYRE, 2009, p. 15, tradução nossa19).

Isso não significa que a deliberação não envolva a ação particular de cada agente. O que MacIntyre quer destacar é o fato de que as decisões individuais refletem a maneira como nos relacionamos com os outros:

Claro que eu sempre tenho que decidir por mim mesmo como agir, mas, quando meus relacionamentos com outros estão em ordem, minhas conclusões sobre a melhor forma de agir para mim frequentemente serão uma de um conjunto de decisões, por outros e por mim mesmo, que dão expressão a um pensamento comum ao qual chegamos juntos em nossas deliberações compartilhadas (MACINTYRE, 2009, p. 15, tradução nossa20).

Tomás de Aquino, assim como Aristóteles, reconhece que a deliberação é uma atividade coletiva. Na Suma Teológica, Aquino compara consilium com considium (corte), no qual “muitos se sentam para conferir juntos alguma coisa” (Suma Teológica, Ia IIa, q. 14, a. 3). E, assim:

Deve-se ter em conta que nas coisas particulares contingentes para se conhecer algo certo é preciso considerar muitas circunstâncias ou condições, que um só homem não pode facilmente considerar, o que muitos com mais certeza percebem, pois o que um considera, ao outro pode não ocorrer (Suma Teológica, Ia IIa, q. 14, a. 3).

Para MacIntyre (2009, p. 16), essa característica atribuída por Tomás de Aqui-no à deliberação é particularmente importante na reflexão prática, porque, pelo ponto de vista do outro, podemos distinguir com mais clareza os bens genuínos da vida humana e meros objetos de desejo. Como foi dito, ao fazermos escolhas,

19 Is insufficiently remarked that deliberation is by its very nature a social activity, that the central deliberative questions are not of the form “What should I do?” and “How should I live?” but of the forma “What should we do here and now?” and “How should we live?”.

20 Of course I always have to decide for myself how to act, but, when my relationships with others are in good order, my conclusions as to how it is best for me to act will often be one of a set of decisions, by others as well as by myself, which give expression to a common mind that we arrived at together in our shared deliberations.

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podemos errar em relação aos nossos desejos. Pode ser que o que desejamos não seja um bem humano genuíno, um fim natural. McInerny (1997, p. 37) afirma que estes bens genuínos são aqueles que verdadeiramente nos completam, que se adéquam ao que ele chama de “formalidade da bondade”, ou ratio boni. Os bens que cumprem essa formalidade são aqueles cujos objetos de desejo preenchem os requisitos formais sobre os quais são desejados, isto é, serem capazes de nos aperfeiçoar e nos completar. Em outras palavras, os bens verdadeiramente necessários para nossa vida são aqueles que devem, objetivamente, ser desejados, pois contribuem, em algum nível, para alcançarmos o bem supremo do homem, a beatitudo.

Porém, em nossas vidas, podemos desejar bens que derivam de meros desejos de poder, dinheiro ou honra. MacIntyre (2009) sustenta que por meio do ponto de vista do outro, com o qual compartilhamos as reflexões práticas deliberativas, somos capazes de perceber com mais clareza se e quando estamos sendo levados por falsos juízos.

MacIntyre (2009) conclui, então, que os desacordos morais que presencia-mos nos debates contemporâneos sobre quais devem ser os princípios morais orientadores de nossas ações, resultam de falhas da racionalidade prática no curso dessa deliberação pública. Portanto, a investigação deve ser guiada por regras de racionalidade prática. Tais regras, como já foi dito, correspondem aos preceitos da lei natural tomista.

4. conclusões

Na deliberação sobre quais são os princípios morais comuns a toda a humanidade, que constituem a base para os direitos humanos, a teoria aristotélico-tomista pode fornecer, segundo a tese de Alasdair MacIntyre, critérios racionais para a realização de um debate racional dentro de uma comunidade. Essa deliberação, que pressupõe uma investigação prática e teórica, deve ser comprometida com o bem da verdade, no sentido que Aquino atribuiu ao termo. Nesse sentido, para MacIntyre, a teoria da lei natural de Santo Tomás de Aquino constitui a base racional para a reflexão prática sobre os desacordos em relação a nossas escolhas e ações em determinadas situações da vida cotidiana.

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Se as condições de racionalidade do debate forem violadas, desejos de poder, dinheiro ou prazer prevalecem sobre a razão, resultando em decisões arbitrárias e prejudicando a vida em comunidade. Nesse sentido, segundo MacIntyre, a ética tomista é capaz de explicitar as falhas e incoerências dos desacordos morais, resultan-tes da violação dos preceitos morais que informam a deliberação racional. E, assim, torna possível a diminuição do nível de desacordo envolvido nos debates morais.

Neste trabalho, foi discutido, a partir da tese de MacIntyre sobre os desacordos morais em relação ao bem supremo da vida humana, o sentido específico do termo consilium na teoria de Santo Tomás de Aquino e seu papel na estrutura da ação humana guiada pela racionalidade prática. Nesse sentido, a deliberação (consilium), na teoria tomista, seguindo a elaboração de Aristóteles, consiste na reflexão racional que visa, diante de alternativas, qual o melhor caminho para alcançar os bens humanos necessários à completa realização do homem. Assim, parte-se do conhecimento do fim último do homem, fornecido pela racionalidade prática no curso das experiências de nossas vidas.

Dessa forma, o homem deve agir visando os bens humanos que constituem, em difentes níveis, a beatitudo. A vontade humana livre dá o passo inicial para a ação. É a vontade que, dirigida para o bem orientado pela razão correta e educada para as virtudes, deve conduzir o agente em busca desses fins genuínos da vida humana. A partir disso, o homem delibera sobre os meios necessários para alcançar esses bens, e, por fim, faz uma escolha (electio), momento em que está pronto para agir concretamente.

MacIntyre destaca ainda que essa investigação racional, na perspectiva aristotélico-tomista, é, por sua própria natureza, uma atividade social. Por meio do ponto de vista dos outros participantes de uma comunidade, em especial daqueles com os quais estamos em conflitos morais permanentes, podemos identificar os erros que eventualmente podemos cometer na determinação dos bens a seguir. Portanto, a deliberação em conjunto com os membros da comunidade deve seguir regras de racionalidade prática que correspondem aos princípios morais da lei natural tomista. Assim, por meio da descrição de Tomás de Aquino da racionalidade prática, das ações humanas e da deliberação, MacIntyre acredita ser possível minimizar os conflitos que geram os desacordos morais que vivenciamos na busca pelos bens humanos que constituem a base para os direitos humanos naturais.

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direito de resistência e desobediência civil

Sergio Pereira Braga1

Ruy Cardozo de Mello Tucunduva Sobrinho2

Resumo

O direito de resistência e a desobediência civil são institutos correlatos de há muito presentes nos ordenamentos jurídicos. Seu estudo longe de enfadonho está cada vez mais presente na sociedade contemporânea que clama por ampliação da participação popular nas decisões do Estado, justificando assim a importância de trabalhos a respeito. Se a democracia direta, por exemplo, tratada como única fonte legislativa, citada durante todo o século XX apenas enquanto apanhado histórico, no século XXI mercê da tecnologia, ganhou outros contornos... Por óbvio que outras formas de participação do cidadão também deverão ter novos olhares lançados. O presente trabalho pretende trazer a baila aspectos da evolução do antigo direito de resistência se seu desenvolvimento o tornou desobediência civil e qual sua aplicabilidade nos dias de hoje. Será que na sociedade atual é possível desobedecer; mais que isto, é desejável? São perguntas que por método bibliográfico dedutivo se pretende responder.

Palavras-chave

Direito de resistência; Desobediência civil; Participação popular.

Abstract

The right of resistance and civil disobedience are related institutes have long been present in the legal system. Their study is far from bothersome is increasingly present in contemporary society that calls for expansion of popular participation in the decisions of the State, thus justifying the importance of their study. If direct democracy, for example, treated as a single legislative source, quoted throughout the XX century just as historic summary in the XXI century, mercy of technology,

1 Doutorando (PUC-SP-BR).2 Doutor (UNINOVE-SP-BR).

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gained other contours... For obvious that other forms of citizen participation should also be launched new perspective. The present work aims to bring to the fore aspects of the evolution of the ancient right of resistance, development to civil disobedience and its applicability today. In the current society is possible to disobey; more than that, is it wanted? Are questions for bibliographic deductive method if you want to reply.

Key words

Right of resistance; Civil disobedience; Popular participation.

1. introdução

A Desobediência Civil, comum e erroneamente vista como ato de desacato à ordem estabelecida, ao contrário do que pode parecer à primeira vista não é algo trazido pelos teóricos do direito contemporâneo, a origem desta maneira de protesto político oriunda de uma injustiça perpetrada pelo governo, que como é sabido só existe em função da sociedade, remonta a tempo muito anterior, no entanto em sua origem se tratava de um direito de resistência. O conceito atual foi sedimentado por Henry David Thoreau, abolicionista destacado na sociedade estadunidense do século XIX, e efetivamente utilizado por festejados líderes que pacificamente se opuseram a regimes por eles vistos como opressores e, portanto, indignos de obediência, entretanto para perfeita compreensão do tema se faz necessária alguma digressão histórica.

Neste artigo a partir do direito de resistência, procuraremos verificar se a desobediência civil é o correspondente contemporâneo àquele instituto ou se é uma de suas espécies, a partir de método bibliográfico dedutivo verificar se a aplicabilidade da resistência é adequada, ou até mesmo desejável.

2. direito de resistência, antecedentes e desenvol-vimento

No entendimento de Paupério3 o direito de resistência encontra suas manifestações na Antiguidade; o Código de Hamurabi, por exemplo, cerda de

3 Cf. PAUPÉRIO, Arthur Machado. Teoria Democrática da Resistência. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

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dois mil anos antes de cristo, já previa a rebelião contra aquele governante que não respeitasse os mandamentos e as leis, bem demonstrando que de há muito há fundamento para a ideia John Raws da sociedade enquanto um sistema de cooperação entre seres livres e iguais (PAUPÉRIO, 1997).

Conforme nos ensina Celso Lafer, foi Santo Tomás de Aquino, baseado no direito natural, o primeiro grande teórico do direito de resistência. Segundo Lafer4, a teoria Tomista potencializa um direito de resistência quando contempla uma reação, um direito de revolução contra um regime tirano que ultrapasse o terreno da reciprocidade existente entre governantes e governados e que desequilibre esta relação (LAFER, 1998, p.188).

Para Maria Garcia5, algumas análises da obra de Santo Tomás de Aquino, entendem que ele reconhecia o direito de resistência partindo pressuposto de que o levante contra o tirano não chegava a constituir sedição, mas a resistência ou a repressão da sedição (GARCIA, Maria, 1994, p. 140).

A partir da segunda metade do século XVI, a questão do direito de resistência ao poder político voltou a ocupar um lugar de destaque no debate público. Após um período de concessões aos ideais dos reformadores por parte da realeza francesa, a década de 1540 foi marcada pelo início de duras perseguições.

As perseguições encontraram, inicialmente, pouca resistência. Elas foram respondidas com preces e resignações, conforme as orientações mais ortodoxas dos primeiros lideres reformadores. No entanto, com o aumento das perseguições em vários lugares da Europa, inclusive na França, alguns teólogos luteranos começam a reconhecer a possibilidade de rebelião.

Um dos argumentos mais difundidos destes teólogos fundamentava-se num princípio de direito privado, segundo o qual, em certas circunstâncias, era legítimo repelir com violência força injusta. Assim, defendiam eles se o governante procedesse injustamente pela força, contrariando a vontade divina e causando um dano irreparável, ele perdia a condição de magistrado supremo e passava a ser um cidadão comum, podendo ser castigado.

4 Cf. LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.188.

5 Cf. GARCIA, Maria. Desobediência Civil, direito fundamental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994, p. 140.

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Calvino6 também passou a admitir a desobediência às ordens iníquas das autoridades. Sua defesa do direito de resistência sustentava-se no argumento de que o poder político está necessariamente condicionado aos objetivos estabele-cidos pela vontade divina (CALVINO, 1995, p.126).

Se um governante desrespeitasse as condições impostas por Deus ao exercício de seu poder, ele passava a ser um usurpador e os magistrados inferiores podiam resistir aos seus comandos, desde que fosse de maneira coletiva e estivesse previsto no ordenamento jurídico da comunidade política.

A importância de Locke7 na construção do Instituto da resistência ganha enorme relevo se somada ao fato de ter sido um dos principais mentores da estrutura estatal burguesa, sempre enfatizando a propriedade e da qual derivar a própria liberdade, valores que somados são os máximos a serem opostos contra o Estado (apud BOBBIO, 1998, p.239-246).

Para Locke, no momento da passagem da sociedade civil os indivíduos alienaram uma parcela de sua liberdade a um poder centralizado, que teria a função de garantir um tranquilo uso da propriedade privada.

A razão pela qual as pessoas abandonam a liberdade natural e se refugiam na sociedade civil consiste em compartilhar com todas as outras pessoas o desejo de se unirem para manter um estado de segurança, que conserve o direito natural de propriedade que possuem. Assim, o consentimento dá legitimidade ao governo e gera um grau de reciprocidade entre este e o povo, surgindo daí um contrato. Os indivíduos tem seu poder limitado na esfera individual, no entanto a sociedade mercê da delegação dos indivíduos e do seu aspecto coletivo, tem intacto o poder e a capacidade de se insurgir contra injustiças.

Se o governante não cumpre a função estabelecida pelo contrato social, os indivíduos estão livres da obrigação de obedecer às leis, podendo se opor a medidas governamentais.

6 Cf. CALVINO, J. Instituição da Religião cristã, IV, 20. In Sobre a autoridade secular. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p.126.

7 Cf. BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Trad. Sergio Bath. 2ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1998, p.239-246.

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O reconhecimento do direito de resistência se tornou um excelente mecanismo diante de condutas opressivas. Todavia, sua possibilidade de atuação era precária, pois exigia como principal requisito a expressão da vontade da maioria.

Assim o contrato social firmado por todos os indivíduos pertencentes á determinada sociedade em determinado momento histórico tem o condão de determinar que existe, ainda que de forma tácita, a aderência de todos em relação às regras sociais que devem ser cumpridas, estas, no entanto, deverão ser justas ou – minimamente – ter o ideal de justiça impregnado, sob pena de não se mostrarem obrigatórias aos indivíduos.

O direito de divergir é intrínseco aos seres humanos, mas o direito de resistên- cia é mais que isto, ele vai ao âmago de determinada regra, verifica sua aplicabili-dade em função do atendimento das regras de conduta moral da sociedade, cláusulas que em verdade estão a estampar a justeza e não apenas o direito posto.

Como anota Maria Garcia8, o direito de resistência apresentava-se como um “instrumento político” para o aperfeiçoamento do Estado, uma vez que não havia ruptura completa das instituições, mas tão somente a formação de novo poder legislativo ou, em outros termos, em Locke, o direito de resistência que, pela primeira vez assuam a forma de um requisito de cidadania, representava o método excepcional de modificações políticas, quando os processos institucionais se mostravam insuficientes (GARCIA, Maria, 1994, p. 143).

Maria Helena Diniz9, por sua vez, trata o direito de resistência como uma forma diversificada de manifestação contra o abuso de poder que exerce opressão irremediável, seguindo os ensinamentos de Maria Garcia estabelece que: “no sentido amplo, reconhece aos cidadãos, em certas condições, a recusa à obediência: a oposição à normas injustas, resistência à opressão e à revolução” (DINIZ, 1989, p.87 e ss).

Eis, portanto, o tripé do direito de resistência, cujas espécies de seu gênero são: oposição à normas injustas; resistência à opressão e possibilidade de revolução.

8 Cf. GARCIA, Maria. Desobediência Civil, direito fundamental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994, p. 143.

9 Cf. DINIZ, Maria Helena. Norma Constitucional e seus efeitos. São Paulo: Editora Saraiva, 1989, p.87 e ss.

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3. desobediência civil

No final do século XIX e início do XX, houve uma reformulação do direito de resistência, cujo principal destaque foi a evolução para a categoria de desobediência civil, tendo em Henry David Thoreau, poeta e pensador abolicionista estadunidense, seu maior teórico.

Segundo Thoreau, por meio da desobediência civil a minoria, quando oprimida, tem a possibilidade de enfrentar o governo na busca de melhores con-dições. Segundo ele, o critério da maioria, no qual assenta a democracia, deve ser refutado em razão de não necessariamente identificar com o senso de justiça. O motivo pelo qual à maioria é permitido governar está justamente na força física.

Para Thoreau10:

A razão prática por que se permite que uma maioria governe, e continue a fazê-lo por um longo tempo, quando o poder finalmente se coloca nas mãos do povo, não é de que esta maioria esteja provavelmente certa, nem a de que isto pareça mais justo para a minoria, mas sim a de que a maioria é fisicamente mais forte. (THOREAU, 1999, p.8)

O pensamento de Thoreau acabou por influenciar aquele que seria o principal responsável pela independência da Índia e um fervoroso defensor da desobediência civil: Mohandas Karamachad Gandhi, em verdade o ensaio a respeito da desobediência civil foi leituras recomendada a Gandhi por um dos principais escritores russos do século XIX, Leon Tolstoi, admirador de Thoreau.

A proposta adotada por Gandhi, diferentemente de Thoreau, previa a deso-bediência civil como uma ação coletiva, que ganha relevo e tende ao sucesso se realizada por um número expressivo de pessoas. Para ele somente a não violência, ahimsa, poderia ser uma política profícua na conquista das mudanças necessárias em um mundo moldado sob a cultura da pouca tolerância e arbítrio11 (LAFER, 1998, p.200).

10 Cf. THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Trad. Sergio Karam. Porto Alegre: L&PM, 1999, p.8

11 Cf. LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.200.

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Um outro representante da desobediência civil foi o pastor americano Martin Luther King e que se valeu das técnicas de não violência em favor da luta pelos direitos da população negra dos Estados Unidos nas décadas de 50 e 60, época de intensa segregação racial em hospitais, escolas e restaurantes.

Para King, o terreno do judiciário, exclusivamente, se fazia insuficiente. Era necessária a construção de uma organização civil. Encontrou em Thoreau e Gandhi a chave para montar um movimento de resistência não violenta. Ele considerava a que a desobediência civil realizada em massa corresponde ao mais alto nível de protesto não violento.

Portanto, com Thoreau, Gandhi e Luther King, os três grandes nomes da desobediência, que o direito de resistência evolui para a desobediência civil. O primeiro destacava a desobediência civil como mecanismo mais eficaz aos indivíduos e às minorias. Os dois últimos depositavam na maioria e na ação coletiva a sua utilização. Todos, porém, concordavam que deveria ser não violenta, uma arma de transformação social de base não arbitrária.

Assim, temos que a desobediência civil apresenta-se com as seguintes carac-terísticas: a) é uma forma particularizada de resistência e qualifica-se na ação pública, simbólica e ético normativa; b) manifesta-se de forma coletiva e pela ação não violenta; c) quer demonstrar a injustiça da lei ou do ato governamental mediante ações de grupos de pressão junto aos órgãos de decisão do Estado; d) visa à reforma jurídica e política do Estando, não sendo mais do que uma contribuição ao sistema político ou uma proposta para o aperfeiçoamento jurídico.

Propõe apenas a negação de uma parte da ordem jurídica, ao pedir a reforma ou a revogação de um ato oficial mediante ações de mobilização pública dos grupos de pressão junto aos órgãos de decisão do Estado.

No âmbito constitucional brasileiro, a desobediência civil decorre da cláusula constitucional aberta, que admite outros direitos e garantias, e dos princípios do regime adotado, conforme se vê do artigo 5º, §2º da Constituição Federal, e liga-se aos princípios da proporcionalidade e da solidariedade, que permitem protestos contra atos que violem esses princípios de ordem pública. Assim, está presente na Constituição Brasileira, de forma implícita um direito de resistir à opressão que decorre da maneira como se constitui o poder.

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Portanto, e a guisa de conclusão, desobedecer ou resistir a uma lei injusta é não mais reconhecer o próprio poder de vinculação. Mas é também reconstruir o próprio poder das instituições quando acusa seus vícios e injustiças, de forma que para se manterem vivas e legitimadas terão que proceder pela inclusão dos valores publicamente discutidos.

Assim, colocar em dúvida a constitucionalidade de uma lei, pela desobediên-cia civil, é incitar um debate, é começar a discussão em torno de valores que devem estar presentes para a consideração desta constitucionalidade.

Nos dizeres de Hannah Arendt, a desobediência civil aparece quando um número significativo de cidadãos se convence de que os canais normais para mudanças já não funcionam, e que as queixas não serão ouvidas nem terão qualquer efeito, ou então, pelo contrário, o governo está em vias de efetuar mudanças e se envolve e persiste em modos de agir cuja legalidade e constitucionalidade estão expostas a graves dúvidas.

Ela não se apresenta como um mecanismo de ruptura, mas antes, como um instrumento alternativo do exercício da cidadania, elemento essencial para a participação e conservação da sociedade democrática.

É uma forma de cidadania ativa, que veicula a capacidade de desobedecer às leis e às práticas injustas, que se justifica com maior razão, no momento em que as instituições criadas pela modernidade se mostraram ineficazes para desempenhar um controle sobre o poder arbitrário e sobre as leis injustas.

Neste sentido a desobediência mais que uma forma de protesto, é intrínseca à cidadania, o poder que pertence ao povo não é dele despojado mas sim delegado e pode ser por ele utilizado a qualquer tempo se as circunstâncias assim exigirem. Trata-se de direito individual decorrente do direito de liberdade, que é exercitável em uma sociedade cujos ideais de justiça estejam sendo desrespeitados.

O direito de resistência, entretanto, não é positivado na maior parte das constituições ocidentais que – ao revés – tendem a reprimir os movimentos contrários à atuação do Estado, sendo exceções o ordenamento jurídico alemão e o português, que consagram tal direito de maneira expressa.

No mais das vezes, a resistência/desobediência é fundamentada de maneira oblíqua no direito de liberdade, quando as necessidades dos cidadãos não são

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atendidas à contento e a gerência do Estado não é feita com base nos princípios mais elementares, ficando comprometida a sua legitimidade para impor normas de conduta aos jurisdicionados.

De se notar que duas serão as características fundamentais da desobediência civil, bem delimitadas por Hanna Harent: a busca pelo bem-comum e a ausência de violência. A contestação realizada deverá observar tais elementos sob pena de sua ilegitimidade.

A ampliação da ideia de utilização da obediência civil como mecanismo válido de pressão é encampada por pensadores do século XX e XXI, mormente quando visualizada no “repensar” do Estado.

Seja pela visão de Norberto Bobbio a partir do qual se vislumbra a desobediên-cia civil como forma de tornar pública a injustiça do Estado de maneira imediada, trazendo outros mecanismos de pressão ao debate o que leva diretamente à finalidade mediata que é a alteração legislativa a ser levada a efeito pelo Poder Legislativo. A sociedade tem assim um mecanismo não violento de demonstrar sua insatisfação e que mercê da sua forma de utilização possui a vantagem prática de, ainda que seja uma transgressão do ponto de vista técnico, vir a receber por parte do Poder Público uma tolerância que não seria possível em outras violações ao ordenamento jurídico.

Em verdade o Norberto Bobbio traz a desobediência civil como um bem ao ordenamento jurídico uma vez que na sua visão a desobediência “comum” tem o claro intuito de desintegrar o ordenamento e sua coibição é desejada, ao passo que a desobediência civil busca um aperfeiçoamento da legislação, sua adequação à realidade da sociedade, sendo ato evidentemente inovador em sentido positivo de sorte que sua existência é desejada e não deverá ser repudiada.

Na fundamentação de seus pensamentos, Bobbio traz o direito natural enquanto fonte moral capaz de limitar a lei imposta pela autoridade política; tal autoridade, outrossim, e derivada do Estado que só existe em função do indivíduo que possui direitos originários e inalienáveis, que foram dispostos no contrato social, justamente permitindo seu exercício; e, por fim, a inegável premissa de que todo e qualquer movimento que impeça o abuso de poder deve ser utilizado para que os fins da justiça, da paz e da liberdade sejam realizados, mormente frente ao Estado que exerce tão significativa parcela do Poder.

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No Brasil são bem vistas pelos doutrinadores as formas de participação popu-lar direta que consigam demonstrar a injustiça da lei sendo a visão de Hanna Arent e as ponderações de Norberto Bobbio citadas por autores como Celso Lafer, Walter Ceneviva e Maria Garcia.

4. conclusões

A desobediência civil é espécie do gênero direito de resistência e mercê do desenvolvimento deste instituto ao longo do tempo, na contemporaneidade ganha contorno relevante e papel transformador na sociedade.

Trata-se de instrumento de pressão legítimo que permitirá aos governados conseguir manifestar suas opiniões aos governantes que editarem legislação que esteja em descompasso com os anseios da sociedade, seja em seus princípios morais ou até mesmo de direito.

Desde que utilizada de maneira pacífica e em busca de valores que visem o bem-comum, é instrumento indissociável ao efetivo exercício de cidadania devendo ser utilizado pela sociedade como mecanismo de pressão lícito, fun-damentado por via oblíqua na liberdade que vem encampada na maior parte das constituições ocidentais.

Sua utilização mais que tolerada pelos governos em função de “desgaste político” que a repressão a manifestações pacíficas podem gerar, deveria ser respeitada e estimulada vez se tratar de manifestação legítima dos verdadeiros detentores do poder que é apenas delegado ao Estado pela sociedade.

A repercussão que a publicidade de tal indignação social gera possui não apenas efeito transformador como também pedagógico a Estados cujos governos distanciam suas políticas das necessidades dos governados; e bem demonstram a politização da sociedade em fazer uso de mecanismos efetivos de controle do Poder.

Desta feita a utilização da desobediência civil mais que possível, é desejável na sociedade contemporânea.

5. referências

ARENT, Hanna. Crises da República. São Paulo: ed. Perspectiva, 1973.

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BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Trad. Sergio Bath. 2ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1998.

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Di-cionário de Política. Brasília: ed. Universidade de Brasília, 1992.

CALVINO, J. Instituição da Religião cristã, IV, 20. In Sobre a autoridade secular. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

DINIZ, Maria Helena. Norma Constitucional e seus efeitos. São Paulo: Editora Saraiva, 1989.

GARCIA, Maria. Desobediência Civil, direito fundamental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994.

LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

PAUPÉRIO, Arthur Machado. Teoria Democrática da Resistência. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Trad. Sergio Karam. Porto Alegre: L&PM, 1999.

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direito e fenomenologia em hegel

Josemar Sidinei Soares1

Tarcísio Vilton Meneghetti2

Resumo

Prevalece atualmente na perspectiva jurídica certo relativismo que parte do sujeito, sem preocupação de verificação se as normas são coerentes com a realidade. Neste caso as norma são emitidas porque estabelecidas consensualmente por determinada sociedade, partido político, grupos de interesse, etc. O positivismo jurídico tentou extrair toda a conotação moral do Direito. Analisando o mundo concreto, contudo, observa-se que todo discurso jurídico que defende a criação, alteração ou revogação de qualquer norma parte de uma pressuposição que aquele caminho seria mais justo. Este modo de entender o Direito resulta dos percursos percorridos pela racionalidade moderna instrumental e que deságua na pós-modernida, pautada sobre o fenômeno, e que descarta a existência da essência, ou ao menos afirma a impossibilidade da razão humana acessá-la. O Direito desvinculado da busca pela essência, do nôumeon, da realidade em si, parece um direito limitado a explorar os fenômenos, em toda a sua carga temporária, mutável e fragmentária. O presente trabalho constitui-se parte de uma pesquisa mais ampla que busca estimular investigações jurídicas e filosóficas acerca da fenomenologia e de como é possível transcendê-la no acesso ao mundo-da-vida, em linguagem husserliana. Este primeiro artigo apresenta reflexões a partir do método fenomenológico de Hegel. O método utilizado foi o dedutivo.

Palavras-chave

Fenomenologia; Crise do Direito; Hegel.

1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Professor nos cursos de graduação e pós-graduação em Direito na UNIVALI.

2 Doutorando em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Professor no curso de graduação em Direito da UNIVALI.

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Abstract

Currently prevails in the legal perspective a certain relativism that part of the subject, without the concern of checking whether the laws are consistent with the reality. In this case the laws are issued because they were established consensually by a particular society, political parties, interest groups, etc. The legal positivism tried to extract all the moral connotation of the Law. Analyzing the real world, however, it’s observed that every legal discourse that defends the creation, amendment or repeal of any law parts of an assumption that the path would be fairer. This way of understanding the Law results of the paths traversed by modern instrumental rationality and that flows in post-modernity based on the phenomenon, and that dismisses the existence of the essence, or at least confirms the inability of human reason to access it. The unbound search for the essence of noumeon, of the reality itself, seems like a Law limited to explore the phenomena, in all its temporary, changeable and fragmentary load. This work constitutes part of a broader research that seeks to encourage legal and philosophical studies on the phenomenology and how you can transcend it to access the world-of-life, in Husserl’s language. This first article presents reflections from Hegel’s phenomenological method . The method used was deductive.

Key words

Phenomenology; Law Crisis; Hegel.

1. introdução

Paolo Grossi3 comenta que talvez a principal crise vivenciada pelo direito contemporâneo seja aquela da incredulidade e desconfiança das pessoas em geral em relação ao mundo do direito, que não veem o Direito como sinônimo de Justiça, mas meramente uma força opressora, externa, a qual precisam obedecer, do contrário surge a multa, o cárcere, a perda de direitos. O ordenamento jurídico é tão-somente imposição vertical vindo de plano superior, e não mais uma força viva que emana da própria sociedade, como defendia Santi Romano.

3 GROSSI, P. Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2007.

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Ainda assim, causa estupor a percepção de que muitos juristas se surpreendem com tal afirmação, pois pode-se dizer que a mesma era previsível há muito tempo, desde o triunfo kelseniano da ciência pura do direito, do esvaziamento de todo conteúdo moral e do rompimento entre Direito e persecução da Justiça. Com isso não se está a dizer que antes de Kelsen4 o Direito realizava a Justiça, mas que a partir daí a ideia de Justiça se tornou, aparentemente, não importante para o mundo jurídico. É digno de nota que a obra que celebra o Direito como ciência que estuda um objeto abstrato e vazio, a norma jurídica desvinculada da realidade concreta, foi publicada em 1934, e apenas três anos depois Edmund Husserl5 revelaria a profunda crise das ciências europeias, demonstrando, entre outros argumentos, a falência do fisicalismo objetivista moderno. Em outras palavras, a ciência jurídica imita as ciências naturais no momento em que estas passam a questionarem a si próprias, visto que Husserl era matemático, além de filósofo, e a própria física daquele período, representada por célebres figuras como Einstein e Heisenberg, já colocara a física moderna em xeque.

O presente trabalho, que visa auxiliar a iniciativa de repensar o Direito e seus paradigmas, vincula-se à pesquisa fenomenológica aberta por Edmund Husserl, mas que possui raízes ainda mais antigas, como se verá no decorrer do texto, que utiliza a filosofia hegeliana. Husserl criticou as ciências modernas por ter abandonado a investigação transcendental, das causas primeiras, do mundo-da-vida (Lebenswelt), passando a se limitar como pesquisa material e dos fenômenos. A mesma abordagem é possível ser aplicada ao Direito. Disso surgem problemáticas complexas: existe a realidade em si? É possível acessá-la? É possível ao jurista? O presente trabalho não esgota, evidentemente, a pesquisa, mas busca iniciá-la e estimular o seu desenvolvimento.

2. da crise do direito contemporâneo

O Direito enquanto abstração, enquanto pura ciência da norma posta, evidentemente possui méritos e ainda pode oferecer contribuições valiosas, visto

4 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.5 HUSSERL, Edmund. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental:

Uma Introdução à Filosofia Fenomenológica. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

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que a abstração para além dos exemplos concretos e limitados permite análise mais criteriosa e complexa dos próprios fundamentos da norma jurídica. Basta dizer que, mesmo antes de Kelsen, método semelhante já havia sido utilizado por grandes juristas como Savigny, e inclusive antes pela Escola dos Glosadores6. Do ponto de vista intelectual a abstração é indispensável para um estudo rigoroso, pois pauta-se na universalidade, em contraposição ao caso concreto, que ora é válido, ora não. O direito casuístico, como por exemplo, o da Common Law, exige revisão permanente de suas decisões, enquanto um Direito abstrato permite aplicações universais, já que a inteligência normativa poderia compreender cada caso concreto em suas especificidades.

Talvez sabendo disso Hegel7 tenha posto o Direito Abstrato como um dos momentos de sua Eticidade na Filosofia do Direito. Mas o próprio filósofo utilizou o termo abstrato para demonstrar que o direito vazio é incapaz de ordenar a sociedade, pois fatalmente colidiria com a moralidade subjetiva, aquela presente em cada indivíduo. Quando ocorre o conflito entre a obediência à norma estabelecida e os próprios valores morais a tendência é que o sujeito decida-se (conscientemente ou não) pela segunda opção. E o que comprova tal argumento é a realidade concreta, pois do contrário a ocorrência de ações criminosas não seria tão alarmante, já que os indivíduos optariam por seguir a norma e não seus instintos e valores. A mesma ideia aplica-se a qualquer área do Direito, do problema da corrupção no Poder Público à sonegação de impostos por empresá-rios. A percepção concreta é que para o cidadão a norma é mera abstração, que deve ser obedecida quando possível, e quando não possível ou não desejável, pode ser burlada. Retorna aqui o argumento de alguns sofistas da Grécia Antiga, como Hípias e Antifonte8, os quais afirmavam que a lei da polis não possuía qualquer conteúdo de verdade ou moral, e que seu cumprimento era apenas precaução a si mesmo, isto é, cumpre-se a lei para não dar margens a agressões externas. Poder-se-

6 Para aprofundamentos ver a obra de Antonio Hespanha. HESPANHA, Antonio. Cultura Jurídica Europeia: Síntese de um milênio. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2005.

7 HEGEL, G. W. F. Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrecht und Staatswissenschaft im Grundrisse. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1982 (Werke in zwanzig Bänden 7) [mit Hegels eigenhändigen Notizen und den mündlichen Zusätzen], auf der Grundlage der Werke von 1832-1845 neu edierte Ausgabe Redaktion Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel.

8 REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga, Vol I. São Paulo: Loyola, 1993.

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ia ainda adentrar a outro sintoma preocupante do direito contemporâneo, aquele do direito se tornar moeda, instrumento para angariar vantagens financeiras, representada principalmente na chamada indústria do dano moral. Se o direito não realiza e não pretende realizar a Justiça, se o direito não se preocupa com a realidade do cidadão, o cidadão logo começa a aprender a jogar com o direito, a ver nele uma forma de obter suas próprias vantagens.

Eis o impasse: de um lado há juristas que seguem a afirmar que o Direito pode ser instrumento de ordenação ou transformação social, de outro a própria sociedade que parece não crer nesta possibilidade.

Entretanto, tomar a premissa de que o direito contemporâneo sequer visa a Justiça é facilmente refutada com uma análise menos superficial, pois dizer “não visamos a Justiça; Direito e Justiça são dimensões separadas” não significa, necessariamente, que na prática a ideia de Justiça não esteja presente, ainda que subterrânea aos debates jurídicos.

A simples defesa de alteração de uma lei, de criação ou negação de uma lei, da criação de novos direitos, de respeito a regras constitucionais e direitos humanos, já pressupõe, ainda que invisível, um senso de justiça. A própria argumentação marxista de transformação da sociedade pressupõe um senso de justiça, pois para afirmar que a atualidade não está correta e precisa ser modificada, é indispensável que se tenha uma noção (se verdadeira ou não aqui não importa) do que seria uma melhor ou pior sociedade.9 Ou seja, retirada completamente a noção de justiça qualquer debate jurídico seria absolutamente inviável, pois não haveria como argumentar sobre ponto algum, já que se não há qualquer senso de Justiça não há como defender sequer que as leis atuais sejam boas ou não.

Alguns podem levantar o argumento de que o critério que define o correto e o incorreto no mundo jurídico atual é a democracia, isto é, as regras conscientemente e plenamente convencionadas por determinada sociedade, em geral consolidadas em formato de de uma Constituição com direitos fundamentais. Não seria então

9 Michel Miaille, seguindo a tradição marxista, argumenta que qualquer introdução ao direito, mesmo aquela aparentemente desvinculada a qualquer ideologia, por si só já reproduziria o sistema vigente, que por sua vez é permeado de determinada ideologia predominante. MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. Lisboa: Estampa, 2005.

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uma questão de discutir Justiça, mas de aplicar aquilo que o povo celebrou democraticamente.

Tal tese também não se sustenta, pois a democracia não é fundamento em si mesma. A aceitação das regras democráticas ocorre porque a maioria das pessoas concorda que o sistema democrático é mais justo, porque basearia, a princípio, as regras naquilo que o povo, ou a maioria, decidiria, e não em uma minoria (oligarquia) ou unidade (tirania).10 Ou seja, a Constituição não funda a si mesma, mas é fundada por um senso de justiça que triunfou em um espaço e tempo.

É necessário repetir que o que se está a demonstrar não é que todas estas opiniões sejam necessariamente verdadeiras, mas de que é impossível qualquer debate ou formulação jurídica sem ao menos uma noção subterrânea de Justiça, seja qual for.

Mesmo Kelsen não afirmou que Direito e Moral sejam dimensões possíveis de serem totalmente desvinculadas, mas que o Direito não poderia se pautar em uma base moral única, pois isto tornaria a Ciência Jurídica dependente ou mesmo submissa à Teologia, à Filosofia ou mesmo à Ciência Política. A desvinculação seria mais um argumento tendo em vista a autonomia da Ciência Jurídica. Toda norma, por ser posta de modo concreto, por pessoas reais em lugares e tempos reais (e não uma abstração vazia), reproduz a vontade de seu emissor, e que por sua vez está sempre carregada de valores.

Tal positivismo já não vigora, seja por razões históricas – foi incapaz de impedir governos totalitaristas, por exemplo – seja por razões intelectuais, tendo em vista os argumentos provenientes de uma série de correntes jusfilosóficas, sobretudo aquela chamada neopositivista, ou neoconstitucionalista, que engloba autores continentais como Robert Alexy11 e outros de países adeptos da Common Law, como Ronald Dworkin12. Além deles há uma multiplicidade de autores, todos com argumentos próprios e muitas vezes divergentes, mas que concordam em premissas básicas, entre elas a necessidade da retomada da ligação entre Direito e Moral como elemento indispensável da Ciência Jurídica,

10 Para aprofundamentos verificar a teoria aristotélica do governo da polis. ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

11 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2011.12 DWORKIN, Ronald. Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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não de uma moral absoluta, mas daquela estabelecida constitucionalmente como direitos fundamentais. Nesse sentido o direito à dignidade da pessoa humana, à liberdade, à igualdade, ao trabalho, à moradia, ao lazer, entre outros, seriam não apenas objetivos vazios, mas regras concretas que deveriam incidir sobre todo o ordenamento jurídico.

Entretanto tais valores celebrados, por serem aqueles convencionados cons- titucionalmente, revelam mais uma positivação dos valores do que uma moralização do direito. Não é que o direito tenha se voltado à Moral e à Justiça, mas que os valores morais (e não todos eles, apenas aqueles convencionados) tenham sido transformados em regras jurídicas. O neoconstitucionalismo discute a Moral limitada àquilo que foi estabelecida por uma Constituição, e não a Moral e a Justiça em si mesmas, enquanto categorias de análise e debate.

Por outro lado há a corrente garantista, que defende a positivação, pois isto seria corresponderia a uma garantia ao cidadão contra o abuso de poderes por parte do Estado e dos poderes vigentes. Ou seja, de uma forma ou de outra todos discutem os problemas jurídicos dentro da mesma lógica sistemática. De um lado a população descrente no Direito, de outro juristas que buscam realizar objetivos como efetivação de direitos fundamentais, construção de canais democráticos, proteção a minorias, e tantos outros tópicos, mas sempre dentro da mesma lógica, aquela originada de um positivismo que já entrara em crise no início do século passado. Será mesmo possível contatar a realidade partindo apenas de revisões do sistema, sendo o próprio sistema, aparentemente, desvinculado da realidade concreta?

O que se pretende aqui não é denunciar a falência total do positivismo jurídico, nem defender sua abolição, mas apenas continuar a trilha aberta pela fenomenologia, a investigação do fundamento, isto é, do ponto de partida de toda norma jurídica, que tal como nas demais ciências, necessitaria ser o mundo-da-vida. Entretanto, como abrir a estrada para o mundo-da-vida é ainda problemática longe de ser resolvida.

3. elucidações preliminares do direito enquanto fe-nômeno

O fato de a Justiça ou a Moral serem condições básicas para qualquer discurso jurídico não significa que qualquer noção de Justiça ou de Moral seja verdadeira.

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Da mesma forma a pretensão de verdade é uma condição básica para o discurso científico ou filosófico, o que não faz todo discurso ser verdadeiro.

Talvez uma das principais quebras de paradigmas representadas pela racionalidade moderna seja o deslocamento do critério do ser (ontologia) para o conhecer (gnoseologia/epistemologia). Se antes o ser enquanto dado primordial da realidade era aceito como condição primária para todo discurso filosófico e científico, a partir da filosofia moderna (e aqui pode-se situar Descartes como principal fundamentador) o sujeito cognoscente tornou-se o ponto de partida. Descartes13, ao colocar em xeque a realidade, em busca de um fundamento verdadeiro e sólido que pudesse servir de base para todo o conhecimento consequente encontrou no cogito ergo sum tal pressuposto. O cogito, dessa forma, seria a base da racionalidade moderna, uma racionalidade não pautada na realidade, no ser, mas no pensar, na própria atividade intelectual.

Daí se abre o relativismo que passa a pautar as questões morais, jurídicas, políticas e mesmo epistemológicas não mais tanto numa pesquisa rígida da realidade, mas na vontade subjetiva. No plano jurídico-político moderno as normas são válidas porque postas pela sociedade e não por terem sido extraídas da realidade, como pretendiam as correntes jusnaturalistas (desde os debates jurídicos e políticos da Grécia Antiga). Com isto não se pretende afirmar que as correntes jusnaturalistas representavam um direito conforme a realidade, mas que suas posições intelectuais tentavam alcançar tal dimensão.

O relativismo pós-moderno assemelha-se a crítica husserliana a Hume, o filósofo que apontara a falha e limitação do método indutivo, o que o levou a esboçar profundo ceticismo. Desde sua aurora a ciência moderna convive com críticas ácidas à sua metodologia. O problema de Hume14, aponta Husserl15, é que perceber a falha do método indutivo não deveria conduzi-lo ao ceticismo, mas a uma pesquisa ainda mais profunda acerca dos fundamentos da atividade científica. Hume adotou a posição cômoda, aquela do ceticismo, não muito diferente dos sofistas tão atacados por Sócrates, Platão e Aristóteles. Ora, o fato de

13 DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Nova Cultural, 1999.14 HUME, David. Investigação acerca do Entendimento Humano. Lisboa: Edições 70,

1998.15 Ver a segunda parte da obra de Husserl já citada.

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a metodologia concebida pelo homem ser falha não significa que o conhecimento em si seja impossível. Entretato, tal ceticismo tornou-se a tônica da pesquisa científica, o que pode ser sintetizado nas correntes da Filosofia da Ciência do século XX, a começar por Popper16, que condena a ciência a mera tentativa de verossimilhança. É científico aquilo que é refutável, ou seja, a ciência convive, necessariamente, com a sua falha e limitação.

O entendimento da ciência como limitada e incapaz de acessar a realidade, portanto apenas uma eterna busca, já que ou a verdade não existe ou, se existe, é inacessível à racionalidade humana, resulta diretamente das concepções modernas acerca do mundo como fenomenologia. Para utilizar linguagem kantiana17 há o fenômeno, aquilo que se manifesta, que aparece a mim, e o nôumenon (a coisa-em-si). O pesquisador acessaria apenas o fenômeno.

A distinção entre fenômeno e realidade (ou nôumenon), não é criação moderna, e suas raízes podem ser encontradas facilmente na filosofia grega. Já em Parmênides encontra-se a famosa dupla via da verdade e da falsidade, do ser e das aparências. Há o mundo da realidade, do ser, da eternidade imóvel, que por sua vez pode ser acessada a partir do logos, e o mundo das opiniões, das coisas fenomênicas, mutáveis, passageiras. A filosofia de Parmênides influenciaria bastante Platão (que chegaria a considerar Parmênides ‘venerando e temível’ no Teeteto18), na sua célebre separação entre mundo das ideias/formas e o mundo das aparências, e Aristóteles, que via o mundo sensível como possibilidade de ser abstraído rumo a realidade suprassensível.

Aqui pode-se identificar claramente duas abordagens muito distintas: aquela que defende a existência da realidade e da verdade e busca encontrar ferramentas intelectuais que permitam ao homem acessá-la, e aquela que vê o mundo apenas como fenômeno, como aparência, e mesmo que haja o nôumenon, ele é inacessível. A ciência moderna, e por consequência a ciência jurídica contemporânea, em geral vincula-se à segunda proposta, embora esta mesma seja dependente da primeira, como assinalaria Husserl.

16 POPPER, Karl. Lógica da pesquisa científica. São Paulo: Abril Cultural, 1980.17 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Abril Cultural, 2005.18 PLATÃO. Teeteto. Tradução Carlos Alberto Nunes. Belém: Universidade Federal do Pará,

2001.

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Husserl fala do mundo pré-científico, aquele que é anterior e mais vasto ao mundo científico. A ciência não cria o mundo, a ciência só pode existir porque existe o mundo, ou, para utilizar asserção mais precisa, o mundo-da-vida (Lebenswelt). O ser é anterior ao pensar, por isso todo pensar, seja ele correto ou não, depende do absoluto do ser, o mundo-da-vida.

Ninguém parece discordar que a racionalidade moderna trouxe avanços consideráveis e grandes descobertas. O aprofundamento do mundo material a partir da ciência, possibilitando descobertas tanto astronômicas como microscópicas, para utilizar os extremos, certamente deve-se ao mérito tremendo da racionalidade instrumental, em geral indutiva. Repita-se, não se trata de refutar o positivismo jurídico, muito menos aquele científico, mas tentar redirecioná-lo à pesquisa das causas, do mundo-da-vida, da coisa-em-si kantiana.

Tais investigações transcendentais iniciaram no mundo moderno. O grande marco inicial é a filosofia a partir de Kant, que submete a razão a uma análise transcendental. Kant, entretanto, concluiu que o nôumenon é inacessível. Hegel seria, talvez, o primeiro grande intelectual a tentar vislumbrar uma possibilidade de transcender o fenômeno. Esta abordagem encontra-se na sua Fenomenologia do Espírito, objeto de pesquisa de agora em diante neste trabalho.

Relembra-se que esta pesquisa é ampla e exigirá o estudo de diversos autores. O que se pretende demonstrar é a tentativa moderna desde o final do século XVIII de transcender o mundo sensível e acessar a realidade transcendente, não mais ancorada numa argumentação teológica, como ocorria o mundo medieval, mas na própria capacidade intelectual do ser humano. Os trabalhos seguintes prosseguiriam além de Hegel, chegando a Husserl, o grande formulador da filosofia da fenomenologia transcendental. A opção de partir de Hegel, e não diretamente de Husserl, é pelo fato de que se compreende que nos intelectuais anteriores, e que influenciaram a abordagem husserliana, é possível captar intuições precisas de como realizar o movimento de transcender os fenômenos.

A existência da realidade em si, como verdade, exigiria, por sua vez, a refundação da pesquisa jurídica, já que não lhe seria permitida a fuga do estudo ontológico.

Em síntese, mesmo as correntes relativistas precisam pressupor que existe uma verdade, do contrário elas mesmo se auto-anulam. A questão a se pautar, portanto,

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é: esta verdade é acessível? De que forma? A pesquisa atual e futura não espera responder completamente estas perguntas, mas estimular novos pesquisadores a percorrerem o mesmo caminho.

4. fenomenologia em g. w. f. hegel

A abordagem hegeliana aqui será limitada à obra Fenomenologia do Espírito, a fonte mais substancial do entendimento do filósofo sobre fenômeno e essência. É certo que a parte mais sólida de sua filosofia jurídica se encontra na obra Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, mas não se pretende aqui adentrar a abordagem das instituições jurídicas em Hegel, mas o seu método fenomenológico, que é anterior e inclui o mundo do direito, pois retomando a exposição da Enciclopédia das Ciências Filosóficas é necessário lembrar que em Hegel toda figura suspendida (Aufhebung) não desaparece ou é eliminada, mas mantém-se oculta e desperta em momentos posteriores. É o caso da dimensão fenomenológica do Desejo (Begierde), elemento decisivo no conceito de vontade natural na Filosofia do Direito. As citações são da edição alemã referenciada ao final do trabalho, enquanto as traduções para língua portuguesa são creditadas a Paulo Meneses, também referenciado.

A Fenomenologia do Espírito (Phänomenologie des Geistes), ou Filosofia do Espírito, é o início da manifestação do Saber Absoluto (Das absolute Wissen), que seria o ápice da Sabedoria em ótica hegeliana. A Fenomenologia não é o próprio Saber Absoluto, mas o início do caminho, e neste percorrer surge como essência a própria totalidade do movimento da consciência.19 Kojève explica que a Fenomenologia possui por princípio o estudo do real e do concreto, da verdadeira natureza das coisas e dos fenômenos. Para ele, portanto, “o método filosófico só pode ser uma contemplação passiva do real e sua descrição pura (rein) e simples.

19 “O que, para Kant, são intuições, formas puras que nos permitem perceber os objetos que nos são assim dados, torna-se para Hegel o resultado da atividade mesma da consciência que se defronta com os objetos, porém se defronta com os objetos em formas de ostensividade, de indicação. Isto fará com que Hegel possa vir a formular uma gênese de categorias resultantes das formas da consciência e, logo, da autoconsciência. [...] o que significa dizer que a coisa mesma nasce e se desenvolve neste percurso, tornando-se objeto de conhecimento”. ROSENFIELD, Denis. A metafísica e o absoluto. In: ROSENFIELD, Denis (coord.). Hegel, a moralidade e a religião. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. p. 175.

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O saber absoluto é uma inação aparente”.20 O que difere a Fenomenologia das teorias anteriores é que Hegel não procura somente analisar o objeto, antes aspira adentrá-lo, de forma que o próprio movimento do conhecer já se torne o saber. Hegel chama de fenomenologia porque o Espírito não surge inicialmente em sua verdadeira manifestação, mas como um saber do sujeito, um saber do saber da consciência. Contudo, isto se desenvolve através de um processo, de um caminho da experiência, mas não como uma experiência apenas teorética, mas que também se efetiva na prática, ou seja, “a crítica da experiência estende-se à experiência ética, jurídica, religiosa, não mais se limitando à experiência teorética”21. Hegel não se limita ao estudo do objeto, mas também do sujeito, que somente passará a contemplar efetivamente o objeto, quando contemplar-se efetivamente, o que exige um processo de formação (Bildung). Nesse sentido, a própria consciência torna-se objeto de si mesma. O percurso da consciência é ao mesmo tempo um percurso da consciência conhecendo o objeto como a si mesma, o trabalho da consciência, que conhece o objeto, e da consciência de si, que busca a verdade da certeza de si mesma. Supera-se a distinção entre sujeito e objeto, Hegel apresenta o caminho da experiência indo direto à Coisa, e por isso sua fenomenologia difere de qualquer teoria anterior.22

Ao descrever o longo caminho do movimento da consciência de si, (Selbstbewußtsein) Hegel pretende revelar a verdade (Warheit) sobre si mesma. Tal fato ocorre porque somente a filosofia apreende a Coisa (Sache) em sua aparência inata e essencial (Wesentliche), ou seja, tem em vista seus atributos universais. Com essa idéia Hegel busca ensinar como encontrar o real em cada fenômeno (Erscheinung), isto é, sua essência, o que, segundo ele, somente se perfaz com a consecução da mediatizaçao do saber, ou em outras palavras, do saber dialético, que para ele representa a verdadeira natureza de todas as coisas.23

20 KOJÈVÈ, Alexander. Introdução à leitura de Hegel. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Editora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2002. p. 36.

21 HYPPOLITE, Jean. Gênese e Estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel. 19 ed. São Paulo: Discurso Editorial, 1999. p. 24.

22 HYPPOLITE, Jean. Gênese e Estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel. p. 26.23 Kojève utiliza-se dos § 81 e § 274 da Enciclopédia para sustentar sua idéia de que dialética

em três tempos (tese, antítese, síntese) não é um método, mas a própria natureza, a verdadeira natureza das coisas, e não uma arte exterior as coisas. Em suma, a realidade concreta seria em si dialética.

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Burzio inclusive chega a mencionar a dialética como a vida interna do método hegeliano.24

Pensar o movimento dialético passa antes por entender sua plena estruturação, fundamentado principalmente nos conceitos de reflexão, mediação e negatividade.

Aliás, a substância viva é o ser, que na verdade é o sujeito, ou, o que significa o mesmo, que é na verdade efetivo, mas só na medida em que é o movimento do pôr-se a si mesmo, ou a mediação consigo mesmo do tornar-se outro. Como sujeito, é a negatividade pura e simples, e justamente por isso é o fracionamento do simples ou a duplicação oponente, que é de novo a negação dessa diversidade indiferente e de seu oposto. Só essa desigualdade reinstaurando-se, ou só a reflexão em si mesmo no seu ser Outro, é que são o verdadeiro; e não uma unidade originaria enquanto tal, ou uma unidade imediata enquanto tal. O verdadeiro é o vir a ser de si mesmo, o círculo que pressupõe seu fim como sua meta, que o tem como princípio, e que só é efetivo mediante sua atualização e seu fim.25

A consciência, portanto, enquanto estiver agindo nesse movimento de negações e mediações, estará na verdade negando e mediatizando a si mesma. Ela se põe a si mesma, se nega, caindo na exterioridade vazia, nesse ser Outro. A volta a si, a reflexão para si mesma ocorrerá também por meio desse ser Outro. Este

24 “Esta dialética é a vida interna do conceito, o método do espírito, mas também o método da sua ciência, em virtude do fato que ciência do absoluto significa seja ciência que versa sobre o absoluto, seja ciência que o absoluto tem de si mesmo. Compreende-se, então, porque Hegel fala da experiência da negatividade ou de violência que a consciência deve percorrer no superar as suas opiniões e certezas relativas; a consciência é toda interna a esse movimento dialético do espírito e também se quisesse não poderia subtrair-se, porque aquilo constitui a sua essência”. BURZIO, Piero. Lettura della Fenomenologia dello Spirito di Hegel. Torino: UTET Libreria, 1996. p. 19.

25 “Die lebendige Substanz ist ferner das Sein, welches in Wahrheit Subjekt, oder was dasselbe heißt, welches in Wahrheit wirklich ist, nur insofern sie die Bewegung des sich selbst Setzens, oder die Vermittlung des sich anders Werdens mit sich selbst ist. Sie ist als Subjekt die reine einfache Negativität, ebendadurch die Entzweiung des Einfachen, oder die entgegensetzende Verdopplung, welche wieder die Negation dieser gleichgültigen Verschedenheit und ihres Gegensatzes ist : nur diese sich wiederherstellende Gleichheit oder die Reflexion im Anderssein in sich selbst – nicht eine ursprüngliche Einheit als soche, oder unmittelbare als sochem ist das Wahre. Es ist das Werden seiner selbst, der Kreis, der sein Ende als seinen Zweck voraussetzt und zum Anfange hat, und nur durch die Ausführung und sein Ende wirklich ist”. FE, Prefácio, HW 3, p. 23.

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vir-a-ser26 é a própria procura do Eu por sua essência, uma busca pela igualdade-consigo-mesmo, o que somente pode ocorrer com uma negação de si mesmo. O vir-a-ser é a reflexão que faz do verdadeiro um resultado27, por revelar em seu fim a simplicidade do verdadeiro, que em suma, é também a simplicidade do ser. O sujeito exterioriza a si mesmo28 e se põe como objeto, como um ser separado, um ser-Outro, porém, ao suspender este Outro retorna a si mesmo com a ciência da verdade, porque executou o caminho racional do conhecimento, elevou-se da imediatez natural para uma imediaticidade mediatizada. O imediato nunca é conforme ao Espírito, que somente se revela no trabalho de desvelar a verdade.

Essa mediatização dialética da consciência em si mesma persiste fun-damentalmente pela presença do Si, apresentado por Hegel como a inquietude que projeta a consciência de volta a si mesma, o retorno efetivo a si em sua igualdade (Gleichheit) e simplicidade. O Si é a força motriz que lança a consciência para fora e depois devolve a si. Ou ainda, retira a consciência de sua imediatez Em Si, exteriorizando-a em um Para Si, e, por fim, a remete novamente ao início completando a dialética, conduzindo a consciência ao estágio espiritual elevado que Hegel denomina como em-si-e-para-si. Esse movimento é a própria essência da consciência, o movimento pelo qual a consciência vem a si mesma, uma

26 Nas Lições sobre a Filosofia da História Hegel já declarara que o seu vir-a-ser é influência heracliteana em sua filosofia, um devir como totalidade, onde os opostos negam-se gerando uma infinitização do ser. Saintillan reservou um trabalho somente no intuito de relacionar Hegel a esta raiz grega em Heráclito. “[...] a mudança, que opõe o contrário em sua mútua transformação, é ao mesmo tempo a que une, e que, portanto, o conflito em que se desdobra, que realiza em sua totalidade. Ele é, ao mesmo tempo, a diferença de um pela separação dos contrários [...] Tal Será o sentido das metamorfoses do Fogo heracliano, sobre aquelas Hegel projeta sua própria concepção da dialética [...]”. SAINTILLAN, Daniel. Hegel et Héraclite ou le Logos qui n’a pas de contraire. In: D’HONDT, Jacques. Hegel et la pensée grecque.Paris: Presses Universitaires de France, 1974. p. 41.

27 FE, Prefácio, HW 3, p. 24.28 Sobre o vir-a-ser, e as determinações da reflexão da consciência, em suas negações e retornos a

si mesma, é interessante acrescentar os comentários de Jarczyk. “As determinações de reflexão ou essencialidades, como vimos, representada e expressa em seus profundos escritos, ou seja, de negação ou de determinação, os momentos que antecedem o retorno infinito em si da essência – e esta precisamente em que a essência parece ela mesma nos ditos momentos, se bem que a reflexão tem em sua escritura característica é determinação da diferença, aquela torna-se complexa em diversidade logo em oposição, enfim, como identidade da identidade e da diferença, a reflexão determinante tem para determinação própria a contradição a qual o complemento é o fundamento”. JARCZYK,Gwendoline. Au confluent de la mort: l’universel et le singulier dans la philosophie de Hegel. Paris: Elipses Edition, 2002. p. 94.

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reflexão dentro de si. É uma unidade que se move e se medeia, e nesse movimento conjunto, medeia a si mesmo, carregando consigo uma igualdade.

Porém, esse ser-em-si-e-para-si é, primeiro, para nós ou em-si: é a substância espiritual. E deve ser isso também para si mesmo, deve ser o saber do espiritual e o saber de si como espírito. Quer dizer: deve ser para si como objeto, mas ao mesmo tempo, imediatamente, como objeto suprassumido e refletido em si. Somente para nós ele é-para-si, enquanto seu conteúdo espiritual é produzido por ele mesmo. Porém, enquanto é para si também para si mesmo, então é esse autoproduzir-se, o puro conceito; é também para ele o elemento objetivo, no qual tem seu ser-aí e desse modo é, para si mesmo, objeto refletido em si no seu ser aí.29

O objeto, a consciência de si, efetiva-se através deste autoproduzir-se constan-te, das seguidas negações e reflexões de si mesma. Isto exige inclusive uma saída de si mesma, para retornar a si. O ato de sair de si é essencial, porque proporciona o momento em que a consciência pode observar a si mesma como um ser-Outro, um ser-aí (Dasein) oposto a si. Somente observando-se como um Outro é possível negar a si mesma e retornar a si, como ser-para-si. O conceito projeta-se sempre como atualização da consciência de si sobre si mesma. De fato, outras figuras surgirão no percurso, como outros viventes, outras consciências de si, contudo, o trabalho principal é sempre da consciência de si sobre ela própria. O processo reflexivo e dialético de autoproduzir-se é, fundamentalmente, individual. Mesmo existindo o Eu e o Outro, o movimento é particular de cada Si.

Trata-se, sobretudo, de um processo circular, infinito (unendliche), onde todo fim torna-se um novo começo. Hegel apresenta esse sistema como o único válido para se fazer ciência.30

29 “Dies Anundfürsichsein aber ist es erst für uns oder an sich, es ist die geistige Substanz. Es musß dies auch für sich selbst, - muß das Wissen von den Geistigen und das Wissen von sich als dem Geiste sein, d. h., es muß sich als Gegenstand sein, aber eben so unmitteibar als aufgehobener, in sich reflektierter Gegenstand. Er ist für sich nur für, insofern sein geistiger Inhalt durch in selbst ereugt ist; insofern er aber auch für sich ist, so ist dieses Selbsterzeugen, der reine Begriff, ihm zugleich das gegnständliche Element, worin er sein Dasein hat; und er ist auf diese Weise in seinem Dasein für sich selbst in sich reflektierter Gegenstand”. FE, Prefácio, HW 3, p. 28-29.

30 “Der Geist, der sich so entwickelt als Geist weiß, ist die Wissenschaft. Sie ist seine Wirklichkeit und das Reich, das er sich in seinem eigenen Elemente erbaut”. FE, Prefácio, HW 3, p. 29

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O caminho que segue a consciência é a história pormenorizada de sua formação. O caminho da dúvida é o caminho efetivamente real que segue a consciência, seu itinerário próprio, e não aquele do filósofo que toma a resolução de duvidar. Em face dessa resolução por meio da qual a consciência se purifica de uma só vez de todos os seus prejuízos – e em particular daquele, fundamental, da existência de coisas fora de nós, independentes do conhecimento -, a Fenomenologia é uma história concreta da consciência, sua saída da caverna e sua ascensão à ciência.31

A dialética hegeliana da consciência na Fenomenologia surge, dessa forma, como a manifestação do indivíduo em seu percurso de auto-conhecimento, contudo, não somente isso, mas sim um auto-conhecimento que permite se fazer ciência, isto é, um conhecer a si mesmo que propicia o conhecimento do mundo como um todo, “o puro reconhecer-se-a-si-mesmo no absoluto ser-outro, esse éter como tal, é o fundamento e o solo da ciência, ou do saber em sua universalidade”.32 Seria possível traçar paralelos entre fundamento do autoconhecimento como solo para a ciência e a pesquisa do Eu transcendental efetivada para Husserl, o que pode ser objeto de futuras pesquisas.

A filosofia tem de ser cientifica. A ciência ou filosofia é necessária e completa; não uma especulação individual. O sistema tem de ser circular; só então ele é necessário e completo. A circularidade é o critério da verdade (absoluta) da filosofia. É de fato o único critério (imanente) possível da verdade no monismo idealista (e talvez em geral). Já foi demonstrado que uma filosofia implica a totalidade do pensável (isto é, que é absolutamente verdadeira) quando se demonstrou que não é possível ultrapassar, sem voltar ao ponto de partida, o ponto de vista ao qual chega necessariamente o desenvolvimento lógico do sistema (que alias, pode começar onde quiser).33

Não obstante, a ciência inicialmente surgirá distante da consciência como uma figura completamente determinada e separada, somente Em-Si. A consciência,

31 HYPPOLITE, Jean. Gênese da Fenomenologia do Espírito de Hegel. p. 28-9.32 “Das reine Selbsterkennen im Absoluten Anderssein, dieser Äther als socher, ist der Grund

und Boden der Wissenschaft oder das Wissen im Allgemeinen”. FE, Prefácio, HW 3, p. 29.33 KOJÈVE, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. p. 38.

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mergulhada em sua certeza de si própria num primeiro momento não verá motivos para afastar de si mesma e ir a direção da ciência, esse objeto longínquo. Serão, portanto, dois seres inversos, de forma que a consciência, como certa de si própria em possuir a verdade terá sua figura como a efetividade, enquanto do lado oposto, verá a ciência somente como uma figura incerta e inefetiva, ou seja, sem qualquer traço de realidade. Isso ocorre porque, nesse momento, o individuo ainda não é aquele a qual nos aludimos anteriormente, mas somente um ser simplório e inculto, uma consciência sensível, ainda sem as noções da realidade do mundo, das ciências, ou, mais precisamente, da filosofia.

A Fenomenologia hegeliana seria o movimento fluído perene do vir-a-ser, algo que lembra inclusive a filosofia de Heráclito. Os fenômenos são constante movimento, e a cada novo momento observa-se a suspensão, negação, do dado anterior. Tal dado não é, contudo, eliminado, mas conservado e incluído no novo dado, o que permite seu ressurgimento em outro momento. A partir do movimento contínuo de suspendimentos seria possível vislumbrar a essência, a própria realidade, que se encontraria por trás dos fenômenos superficiais e relativos. É dessa forma que pode-se aplicar a fenomenologia à Filosofia do Direito de Hegel, pois naquela obra a essência do Direito, qual seja, a Ideia de Liberdade realizada no mundo dado como Eticidade, também seria revelada a partir de uma série de suspendimentos das várias figuras e instituições, como o Direito Abstrato, a Moralidade, a Família, etc.

Na exposição da Fenomenologia Hegel apresenta uma tripartição constituída pela seção da Consciência, da Consciência de si e da Razão. A seção da Consciên-cia é aquela que analisa o movimento epistemológico da ciência moderna, até Kant e sua impossibilidade de acessar o nôumenon. O impasse é resolvido na Consciência de si, que se dá conta que ela mesma está imersa no mesmo mundo onde se localizam todos os objetos, e que portanto, o conhecer a si mesmo permitira o conhecer o Outro. Enquanto a Consciência é teórica a Consciência de si seria prática, atora no mundo. A Razão efetua a síntese de ambas, permitindo a racionalidade que entende e elabora o mundo.

Pode-se dizer que numa abordagem hegeliana o Direito surge como feno-menologia porque é emanado pelos costumes e valores reconhecidos por determinada sociedade. As normas e instituições jurídicas não são regras absolu-

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tas, mas resultados do percurso histórico. O movimento de negação das regras e instituições, entretanto, permitira visualizar a Ideia que as faz movimentar, ou seja, a própria lógica jurídica que subsistiria subterraneamente ao movimento concreto do Direito.

Observa-se agora abordagem conferida na obra Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito.

Hegel inicia a exposição da Eticidade no § 142:

A eticidade é a ideia da liberdade, enquanto Bem vivente, que tem na autoconsciência seu saber, seu querer, e pelo agir dessa, sua efetividade, assim como essa tem, no ser ético, seu fundamento sendo em si e para si e seu fim motor, - [a eticidade é] o conceito da liberdade que se tornou mundo presente e natureza da autoconsciência.34

Por autoconsciência entende-se aqui a mesma figura da consciência de si, já indicada na Fenomenologia do Espírito. Somente por meio da consciência de si é possível elevar um projeto social como a eticidade.

Muitas interpretações foram feitas da Filosofia do Direito de Hegel, da liberal ao comunismo, do enaltecimento do indivíduo ao absolutismo estatal. A etici-dade, conforme exposto no conceito do § 142, não se baseia nesta fragmentação.

A eticidade resultada do saber e do querer da consciência de si, depois de superar diversos momentos, a se iniciar pela dialética do reconhecimento. A eticidade é o conceito da liberdade que se tornou mundo presente e natureza da consciência de si, isto é, a própria ideia de Liberdade realizada, de que de tal forma se tornou uma segunda natureza da consciência de si.

O ser ético, dessa forma, não é externo e coercitivo à consciência, mas seu próprio conteúdo, de tal forma que as instituições e leis que derivarem daquela comunidade e Estado não são opressoras contra seus membros, mas a manifestação da vontade dos indivíduos.

34 “Die Sittlichkeit ist die Idee der Freiheit, als das lebendige Gute, das in dem Selbstbewußtsein sein Wissen, [und] Wollen, und durch dessen Handeln[,] seine Wirklichkeit, [hat] sowie dieses an dem sittlichen Sein seine an und für sich seiende Grundlage und [seinen] bewegenden Zweck hat, - der zur vorhandenen Welt und zur Natur des Selbstbewußtseins gewordene Begriff der Freiheit”. FD, A eticidade, § 142, HW 7, p. 292.

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Isto não significa que Hegel autoriza considerar qualquer Estado como livre e manifestação da eticidade. A eticidade é um processo espiritual e histórico, e que nasce apenas de uma série de dialéticas fenomenológicas e históricas efetuadas pelo indivíduo e pela humanidade, de tal forma que para Hegel seria possível somente na modernidade35.

O mundo ético é harmônico e dialético, onde uma série de interesses (família, sociedade civil, Estado, indivíduo, etc.) coexistem, às vezes de modo conflituoso, mas sem jamais ameaçar a existência do ser ético, ou da eticidade em si.

A eticidade seria aquele momento de convivência social onde os indivíduos sabem ser membros efetivos de uma totalidade maior, seja ela o Estado ou a comunidade em geral, e respeita a Constituição e as normas emanadas pelo Poder Público não por atitude de obrigação mas por vontade livre.

Por outro lado, a substância ética, suas leis e suas potências, não passam, para o sujeito, como algo de estranho, mas, tem o testemunho de constituir em si mesma sua própria essência, onde tem o seu sentimento e nele vive como um elemento não diferente de si. Trata-se de uma relação imediata, que é mais idêntica que na fé e na confiança.36

Entretanto, mais importante que o respeito em si às instituições e normas, que parecem ser mais efeito que causa, é o processo de reconhecimento mútuo, já realizado pelas consciências de si. O indivíduo não agride o outro e as instituições porque reconhece o outro e as instituições como ele próprio, pois todos são membros de uma totalidade orgânica, logo agredir o outro é agredir a si mesmo. Objetivamente falando o homicídio não é o ato de matar apenas um indivíduo, mas a própria ideia de humanidade, e o representante eleito que se aproveita de seu cargo para praticar atos ligados à corrupção não está apenas enriquecendo ilicitamente, mas agredindo o ser ético do Estado. Entretanto, tais preocupações e discernimentos não perpassam a consciência do sujeito que pratica tais atos.

35 Embora possua relação, a eticidade da Filosofia do Direito não é a mesma eticidade da Fenomenologia do Espírito, que se refere ao mundo grego. O vínculo entre ambos é a Harmonia, imediata no mundo grego e mediatizada na modernidade. Cf. TESE SOARES

36 “Anderseits sind sie dem Subjekte nicht ein Fremdes, sondern es gibt das Zeugnis des Geistes von ihnen als von seinen eigenen Wesen, in welchen es sein Selbstgefühl hat und darin als seinem vo sich ununterschiedenen Elemente lebt, - ein Verhältnis, das unmittelbar noch identischer als selbst Glaube und Zutrauen ist. FD, A eticidade, § 147, HW 7, p. 295.

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Não se reputa aqui que o sujeito precisa saber discernir as ideias de reconhecimento e ser ético. Na verdade, se tal ideia estivesse enraizada em seu ser, de modo inconsciente ele se negaria a praticar tais atos. O problema não é a inconsciência da dialética do reconhecimento, mas a sua falência ou até inexistência nos dias atuais.

O problema é existencial e, portanto, anterior à esfera jurídica, política e social, anterior inclusive à esfera ética/moral.

Na dialética do reconhecimento hegeliana a consciência precisa sair de si e reconhecer o outro como a si mesmo. Como já salientado, Hegel substituiu o amor pela luta/conflito, portanto não se trata de exigir das pessoas o amor, o sentimento genuíno pela humanidade, como queria Fromm, e como foi tão salientada na filosofia cristã, mas apenas um sentimento de respeito mútuo pelo outro, de reconhecimento de seu valor e humanidade, de entender que o outro é igual a ele mesmo, então ambos membros de um mesmo projeto social maior. Amor seria uma etapa ainda mais evoluída desse processo.

O que se coloca em questão é se uma consciência que não reconhece o outro pode reconhecer a si mesma. Como afirmava Hegel, reconhecimento é necessariamente mútuo. Ser pessoa implica em ser reconhecido por outros como pessoa, da mesma forma que ser proprietário de um bem implica em reconhecer o outro também como proprietário de um bem. Não há real dicotomia entre direitos e deveres. Exercer o direito responsabiliza o sujeito no dever de respeitar o direito alheio.

A sociabilidade parece fato natural ou ao menos indispensável ao ser humano. Para os gregos era um dado evidente, formulado na famosa sentença aristotélica de que um indivíduo que vive isolado só poderia ser um deus ou uma besta. É da condição humana buscar o outro. O ser humano não apenas vive, mas convive. A crise contemporânea de convivência, explicada parcialmente pelo excesso de egoísmo (narcisista) põe em debate uma crise ainda mais profunda, que acomete a própria natureza humana.

Husserl já salientara a Crise nas Ciências Europeias na década de 30 do século passado, demonstrando como as pesquisas haviam perdido o mundo-da-vida, isto é, aquela realidade primeira que constitui o próprio mundo. O ser humano

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parecia perdido labirinticamente nos fenômenos. O método fenomenológico busca transcender as aparências e atingir a essência. O sujeito quando analisa o objeto não o encontra em sua real identidade, mas revestido com diversas fenomenologias. Para isso é necessário cultivar uma intencionalidade de consciência conforme ao mundo-da-vida. É nessa linha que se entende a crise atual. A crise de valores é fenomenologia da crise existencial mais profunda e que se refere à falência humana em sua condição de alteridade, de dialética do reconhecimento.

Entretanto, é necessário salientar que o próprio sistema ético hegeliano, a eticidade de sua Filosofia do Direito, embora contenha a Fenomenologia confor-me a exposição da obra Fenomenologia do Espírito, parece surgir da abstração idealista, herdeira do racionalismo kantiano, e não de auto-análise investigativa. Deste modo tal fenomenologia pouco se distancia de um projeto intelectual com fins jurídicos e políticos, isto é, mais um programa intelectual do que uma análise da realidade em si mesma, conforme se arguirá nas considerações finais.

5. conclusões

A abordagem fenomenológica hegeliana apresenta méritos fundamentais. Pri-meiramente surge como uma das tentativas modernas mais ambiciosas de superar o modelo dualista fenômeno/nôumenon. A intuição hegeliana de que o acesso à essência, a transcendência dos fenômenos se faz não apenas intelectualmente, mas existencialmente, como ação concreta e realizadora no mundo dado, possibilitaria abertura de novos horizontes para a filosofia, influencinado de sobremaneira o marxismo e sua crítica à ciência como ideologia. O Direito é, para Hegel, um dos grandes trunfos da humanidade que toma posse e reconhece para si o mundo dado, refletindo-o à sua vontade. As regras jurídicas aperfeiçam a natureza, tal como as instituições políticas. Ou seja, o próprio esforço de acreditar no salto do fenômeno para a essência, reconhecendo o fenômeno enquanto transitoriedade e mutabilidade, logo relativismo, mas ao mesmo tempo como parte integrante do mundo dado e da essência, representou horizonte novo para o mundo filosófico. Aliás, não parece ser coincidência o fato do método fenomenológico florescer sobretudo entre intelectuais germânicos, que possuem uma longa tradição na modernidade de tentativa de superação do mundo fenomênico. Tradição que não remonta apenas até Kant, mas inclui também o movimento do romantismo.

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Entretanto, algumas limitações precisam ser evidenciadas na abordagem hegeliana. O fato de Hegel situar as esferas jurídicas e políticas dentro de seu sistema lógico, como momentos precisos que sucedem o espírito subjetivo da Fenomenologia e antecedem o Espírito Absoluto, indica que a fenomenologia jurídica é, em si própria uma consequência direta da essência do mundo. Deste modo as regras jurídicas e as instituições não seria mero acaso do progresso histórico, mas a própria razão no mundo e na história, um movimento necessário do desvelar do Espírito. Tal prerrogativa, a princípio, não parece conter problemas, pois é inclusive compatível com a antiga visão do homem como animal social, como animal político, em que a polis era não uma realidade artificial, mas a consequência direta do espírito expansivo humano. Ou seja, ver o Direito como fenomenologia necessária não é um problema. A questão estaria na identificação de instituições específicas como Família, Estado e inclusive seus modos detalhados de funcionamento, como fenomenologias obrigatórias. Analisando a relatividade das sociedades humanas no espaço e no tempo observa-se incrível variedade de experiências jurídicas, o que provoca a reflexão de que as regras e instituições específicas não sejam absolutas ou necessária, mas apenas a existência de regras e instituições. Mesmo este segundo ponto poderia ser objeto de debates.

O problema maior da abordagem hegeliana, contudo, parece ser a centraliza-ção do discurso no movimento em si, o que torna a reflexão filosófica sempre posterior, sempre um voo noturno da coruja de Minerva, de modo que a essência poderia ser alcançada somente no próprio percurso histórico. Este método resulta em limitação evidente, pois depende sempre dos resultados concretos e só depois surge o discurso filosófico. Desse modo torna-se difícil, por exemplo, projetar políticas jurídicas, que visualizam efeitos futuros.

Na seção da Consciência de si Hegel dedica longo espaço ao trabalho da consciência individual em conhecer a si mesma, superando a finitude de seus desejos, medos, reconhecimentos. Esta seção, sobretudo aquela imortalizada como a dialética entre senhor e servo, parecem importantíssimas para o desenvolvimento fenomenológico, pois atestam a exigência do sujeito investigar a si mesmo antes de conhecer o objeto externo. Superar a finitude das percepções pessoais é já o início o processo de efetivação das epochés, que Husserl defenderia como método de astrair os fenômenos rumo ao Eu transcendental, que emana diretamente

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do mundo-da-vida. Carece na abordagem fenomenológica hegeliana, contudo, método preciso e rígido, de como cada consciência pode colocar a si mesma em epoché e superar suas fenomenologias, seus acidentes, numa visão aristotélica. De certa forma a abordagem hegeliana parecia ainda muito conexa à tradição do romantismo e do idealismo, que vê no Espírito uma presença absoluta no mundo. O discurso é transcendental, mas em nenhum momento justifica a si mesmo, fundamenta a si mesmo. Em nenhum momento Hegel parece ter feito em si mesmo a epoché ou superação das finitudes, que seria o exercício husserliano.

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entre a realidade e a fantasia: uma crítica foucaultiana e uma análise freudiana ao discurso moderno de

legitimação da ordem jurídica

Julio Cesar Pompeu1

Ricardo Gueiros Bernardes Dias2

Resumo

O presente artigo aborda alguns pontos comumente reproduzidos nos discur-sos iniciais dos livros de teoria do Direito e o contratualismo moderno ressaltando suas conseqüências autoritárias em relação à negação do indivíduo como agente frente o Estado, notadamente sob a ótica da análise realizada por Michel Foucault e Sigmund Freud. O contratualismo moderno parece criar uma contradição entre indivíduo e sociedade. Nesse sentido, a psicanálise mostra-se como esperança da reaproximação entre os dois conceitos. Faz-se uma análise da ideia do Direito como estando num vazio de fundamentação, uma abstração, onde encontramos “sujeitos” igualmente fictícios. Busca-se, portanto, desvincular o Direito da ideia de soberania moderna como pressuposto de um Direito concreto.

Palavras-chave

Legitimação; Contratualismo; Fantasia; Justiça; Psicanálise.

Abstract

This article discusses some points commonly played in the speeches of the theory of law books and modern contractualism emphasizing its authoritarian

1 Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Mestre e Graduado em Direito pela PUC/RJ. Professor Professor da gradução em Direito e do programa de pós-gradução em Direito e do Mestrado Profissional em Gestão Pública da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

2 Doutor em Direito pela UGF/University of California (San Francisco), Mestre em Direito pela UGF/UERJ. Graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Professor da gradução e do programa de pós-gradução em Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Visiting Researcher da Univeristy of California.

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consequences relating to the denial of the individual as agent facing the state, especially from the perspective of analysis by Michel Foucault and Sigmund Freud. The modern contractualism seems to create a contradiction between individual and society. In this sense, psychoanalysis shows up as hope of rapprochement between the two concepts. We make an analysis of the idea of law as being in a lack of reasoning, an abstraction, where we find “subject” also fictitious. We intend, therefore, unlink the idea of modern sovereignty and Law as a precondition of a real law.

Key words

Legitimation; Contractualism; Fantasy; Justice; Psychoanalysis.

1. introdução

Este ensaio pretende, num primeiro momento, esclarecer alguns pontos comumente reproduzidos nos discursos iniciais dos livros de teoria do Direito e o contratualismo moderno ressaltando suas conseqüências autoritárias em relação à negação do indivíduo como agente frente o Estado. Tal análise será feita com base na obra de Michel Foucault. A constatação inicial é de que, se o contratualismo moderno parece criar uma contradição entre indivíduo e sociedade, a psicanálise mostra-se como esperança da reaproximação entre os dois conceitos, não só pelo fato de parecer um absurdo em si pretender conceber uma sociedade sem indivíduos e vice-versa, mas pela necessidade de compreensão da individualidade e dos processos sociais de subjetivação numa cultura de mercado cuja valorização do individualismo e do consumo desenfreado se dá em prol da desconsideração dos excluídos da cadeia de consumo como humanos.

2. onde está a sociedade, está o direto?

Tradicionalmente, a lição inicial sobre o que é o Direito começa com a frase: “onde está a sociedade está o Direito” ou vice-versa: “onde está o Direito está a sociedade, ou ainda em latim: “ubi societas ibi jus”. De tais assertivas conclui-se que: 1, o Direito é algo que ocorre na sociedade e, 2, não há sociedade sem Direito. A título de exemplo, cita-se a história de Robson Crusoé, náufrago que, sozinho em uma ilha, por não estar em sociedade, não conviviria também com o Direito,

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até o dia da chegada de Sexta-Feira, doravante seu companheiro, momento a partir do qual o Direito naturalmente surgiria, tendo em vista a necessidade de regulamentação das atividades destes dois indivíduos nessa sociedade de apenas dois homens.

Analisemos tal discurso: as afirmações das relações entre sociedade e direito não demonstram uma relação existente entre essas duas categorias, apenas afirmam a existência de uma relação qualquer, cuja prova da existência de tal relação seria a constatação mesma da inexistência de sociedade sem direito ou, mais precisamente, sem regras, uma vez que a ideia de Direito inerente a tal afirmação corresponde à regulação social através de normas. Tal argumento é falacioso. Trata-se de ma “petição de princípio” que, segundo Copi (1978), ocorre quando se adota como premissa a conclusão que o pesquisador almeja demonstrar. Note-se que afirmar que um argumento seja falacioso não significa afirmar que suas proposições sejam falsas, mas apenas que de tal argumento não é possível concluir absolutamente nada de necessariamente verdadeiro.

Considerando a estrutura falaciosa do modo como geralmente se apresenta a relação entre direito e sociedade, o problema em afirmar “onde está a sociedade está o Direito” não está no que é afirmado, mas no que não é dito, no que essa afirmação oculta. Pode ser totalmente verdadeiro que não exista sociedade sem direito ou direito fora de uma sociedade (muito provavelmente o é), mas e daí? Isso é apenas uma constatação que, uma vez satisfeito o jurista apenas com a constatação de tal fato, a relação entre sociedade e Direito torna-se algo a não ser pensado. Aceita como constatação, o jurista pode dar continuidade a seus estudos sem pensar jamais em tal relação. Pode desenvolver sua ciência de forma dogmática, ignorando completamente inúmeras relações sociais, apenas aplicando normas conforme a orientação doutrinária e o já realizado anteriormente pelos tribunais. Quando as normas e fatos sociais entram em conflito, vemos que a norma mostra-se mais como um complicador das relações sociais do que como instrumento de pacificação da sociedade. Pior para a sociedade. A norma será aplicada porque o jurista não percebe o papel do direito (e por conseguinte o seu próprio papel) na dinâmica do conflito. Vê apenas a norma, só entende a norma, considerada como a expressão de um direito que independe da compreensão dos sujeitos com relação a quem a norma será aplicada. É o que denominamos de

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exaltação ou “endeusamento” normativo. A sociedade é mera premissa à existência da norma, não mais premissa de sua interpretação.

Em relação à ideia de indivíduo, ocorre algo ainda pior, uma ocultação potencialmente ainda mais danosa. A explicação exemplarmente utilizada a partir da história de Robson Crusoé traz em seu bojo dois equívocos, o primeiro de que existe indivíduo sem sociedade, o segundo é a naturalização do fenômeno jurídico. Vejamos:

A citação de Crusoé parece ser esclarecedora por representar um exemplo consagrado na literatura universal a tal ponto que sua citação dispensaria maiores esclarecimentos fáticos, mas, se é tão correta assim a ideia de que não há direito sem a existência do outro, sem a existência da sociedade, por que o exemplo recorrente parte da literatura e não de alguma experiência ou observação no mundo sensível? A resposta é simples: porque não existe tal experiência senão na literatura ficcional, ou seja, não se trata de um fato e sim de uma hipótese, como toda ficção. O fato de ser uma hipótese não significa que seja necessariamente falso, apesar de ficcional o exemplo, em certa medida, trata-se de literatura realista.

Ou seja, se tal infortúnio realmente acontecesse seria possível que as coisas ocorressem da forma como ocorreram na narrativa, não é uma história verdadeira, mas é crível, daí sua força como proposição verdadeira. Como no exemplo anterior, o problema não reside no conteúdo da proposição e sim na forma falaciosa de seu desenvolvimento, ou seja, a partir da hipótese de inexistência de regras de convivência, conclui-se que o Direito igualmente inexiste. A falácia neste caso seria a falsa causa. Segundo Copi (1978, p. 83) “o erro de tomar como causa de um efeito algo que não é sua causa real”.

O argumento, no caso, é incorreto porque trata como causa do direito e da sociedade o simples fato de unirem-se duas ou mais pessoas. Da hipótese aventada, a única conclusão que seria cabível é a de que o Direito, entendido este como instrumento de regulamentação de atividades interindividuais, só existe quando existe mais de um indivíduo, ou seja, o óbvio ululante, como diria Nelson Rodrigues.

O real problema, mais uma vez, é o que não é dito, ou seja: não existe indivíduo sem sociedade (daí não serem encontrados exemplos senão na

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literatura ficcional). Quando nos referimos à ideia de indivíduo e sociedade, ou, numa linguagem mais familiar ao meio jurídico, às esferas pública e privada, nos referimos a distintos pontos de vista axiológicos de seres humanos, ou seja, posso observar, analisar e julgar o homem basicamente sob duas perspectivas distintas: individualmente ou coletivamente. O exemplo afasta as duas categorias, indivíduo e sociedade, ou público e privado, como se fossem apenas etapas que se sucedam cronologicamente e não perspectivas, formas de consideração distintas do homem, tomado em seu aspecto individual e coletivo. Somos todos, ao mesmo tempo (e não em tempos sucessivos) indivíduo e cidadão. Até mesmo a história de Crusoé denota tal fato, em trecho nunca lembrado em livros de Direito, quando ao ver-se náufrago e sozinho em uma ilha, a primeira coisa que nosso herói tratou de fazer foi um calendário, o que permitiu dar ao novo amigo o nome de Sexta-Feira, pois sabia em que dia da semana estava. Por qual motivo um náufrago precisaria de calendário? Que diferença faz se é sexta-feira ou domingo se não há nenhum evento social a cumprir? A resposta é simples, o calendário para o personagem não é uma questão de utilidade, mas de identificação como ente social, uma identificação de si para si mesmo. Ora, todos nós somos produto de nossas respectivas culturas, culturas essas que são construídas socialmente. A lapidar e muitas vezes mal citada afirmação de Aristóteles: “O homem é um animal político”, refere-se à ideia de que o homem, mesmo considerado de forma individual, diferencia-se dos outros animais por ser marcado pela polis de forma essencial, ou seja, o conceito aristotélico de homem não é uma questão biológica, mas política, na medida em que o homem é, em si, simultaneamente, um produtor e produto da polis.

3. contratualismo e racionalidade

Tal discurso da diferenciação é reforçado quando da formulação da ideia de Direito a partir da fundamentação jusnaturalista moderna apresentada no modelo hobbesiano de Estado (BOBBIO; BOVERO, 1996). Tal modelo, de inspiração iluminista (ROUANNET, 1993), parte da hipótese de que a sociedade e os governos não são uma produção divina e sim humana; assim sendo, é necessário que haja um momento lógico em que exista o homem e, no entanto, não exista sociedade e, tampouco Estado, uma vez que o criador antecede à criatura no tempo. Tal situação, hipotética ou histórica, dependendo do autor, denomina-

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se “estado de natureza”. A teoria moderna do direito representará o indivíduo, freqüentemente, associado ao homem do estado de natureza, representando-o, assim, não como uma perspectiva do homem propriamente, mas como um estágio histórico ou circunstância onde o homem aproxima-se mais do animal “selvagem” ou “incivilizado”, cujas ações são pautadas mais pelos instintos e desejos do que pela razão universal.

O passo seguinte seria a saída do homem de seu estado de natureza cons-truindo, assim, a sociedade civil, sendo que tal passo, denominado “contrato social”, não seria uma atitude pautada pelos instintos, mas pela razão universal. Tal contrato seria caracterizado por dois estágios: um pacto de sociedade, que constituiria uma sociedade em si, e um pacto de sujeição, responsável pela constituição do governo. Algumas conclusões se antecipam: em primeiro lugar (1) há uma representação de indivíduo na Teoria do Direito a partir de sua concepção racional-social em oposição a uma representação individual dessocializada associada à irracionalidade. (2) A ideia de que a sociedade seria a negação, em si, do indivíduo natural, ou, dito de outra forma, há no modelo jusnaturalista moderno uma representação de estado em oposição ao indivíduo.

Analisemos tais conclusões que marcarão a moderna Teoria do Direito:

(1) A criação do Estado como negação do “estado de natureza” intermediado por um contrato social fruto da razão universal e em oposição à associação do homem do estado de natureza à irracionalidade, em primeiro lugar, não constitui uma ideia de esfera pública como perspectiva de compreensão e julgamento das ações humanas em contraponto a uma perspectiva privada. Não há nessa oposição “estado de natureza x sociedade civil” uma esfera propriamente privada, há apenas uma esfera pública marcada pelo homem civilizado e racionalmente socializado e obediente. O argumento contratualista moderno não explica ou relaciona propriamente indivíduo e sociedade, mas cria um discurso legitimador do homem como membro social e súdito em contraposição a uma “desumanização” do homem associado à irracionalidade. Assim, o jurista encontra um campo discursivo-argumentativo para classificar os indivíduos em indivíduos socialmente considerados e indivíduos socialmente desconsiderados e, não sem motivo, associá-los, respectivamente, a rótulos sociais de racionalidade ou irracionalidade, respectivamente.

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Um exemplo de tais rótulos de irracionalidade ou racionalidade do indivíduo pode ser constatado no estudo etnográfico de Teresa Pires do Rio Caldeira, produzido a partir dos discursos que pautam o senso comum brasileiro acerca da violência:

A ideia de que os pobres não sabem consumir adequadamente, que desperdiçam recursos e que têm uma ‘mentalidade esbanjadora’ é muito difundida entre as classes média e alta. Isso é obviamente negado pela realidade de qualquer periferia urbana no Brasil, onde os trabalhadores pobres construíram e decoraram suas casas por conta própria, e urbanizaram seus bairros sem nenhum tipo de financiamento. Entretanto, aqueles que se consideram em melhor situação freqüentemente negam aos pobres as características e comportamentos associados a capitalismo e modernidade, como racionalidade, conhecimento, capacidade de poupar, de planejar e de aproveitar ao máximo os recursos. (CALDEIRA, 2000, p. 71)

É apenas um exemplo, mas que denuncia a forma pela qual, discursivamente, reproduzimos toda uma série de exercícios de poder nos valendo de nossas “posições” sociais privilegiadas, tais posições simbolicamente são construídas a partir da deslegitimação do outro como ente racional e, portanto, excluído do pacto social racionalmente construído. O exemplo refere-se a pobres das favelas de São Paulo, mas poderia ocorrer o mesmo mecanismo discursivo deslegitimador em relação aos negros, mulheres, criminosos etc. Em suma, a ideia contida na argumentação jusnaturalista de fundamentação do Estado serve de base para a produção e reprodução de um discurso de exclusão social, apesar dos autores modernos citarem a igualdade como princípio fundamental, ainda assim, tal igualdade, na prática jurídica contemporânea, é na melhor das hipóteses apenas um ideal a ser alcançado.

Não queremos com isso afirmar que a desigualdade seja uma conseqüência do discurso jurídico, mas apenas que o discurso da teoria moderna do Direito deixa brechas para que um sistema de diferenciação social funcione “impunemente”, sendo até mesmo possível concretizar a partir da lei uma série de desigualdades sociais, apesar do reconhecimento simultâneo da igualdade como princípio. É possível afirmar que o problema está no fato da igualdade fundamental entre os homens ser uma declaração apenas formal, carecendo de atitudes políticas que a concretize, correto; mas o problema disso é que a teoria moderna do Direito,

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assustadoramente, em nada pode contribuir para tal concretização pelo fato do indivíduo não ser concebido sempre como um indivíduo social, mas como indivíduo social ou anti-social na medida de sua racionalidade. A razão que se reconhece no outro é a medida simbólica da sua inclusão na sociedade, o que deixa o indivíduo extremamente vulnerável diante dos discursos de “desracionalização”.

(2) Há um aspecto muito curioso no fato da esfera pública no discurso legitimador do Estado e do Direito modernos ser baseado num notório instrumento de Direito privado: o contrato. Tal leitura permite desdobramentos interpretativos que acabam por permitir uma anulação dos indivíduos frente ao Estado e, portanto, frente a sua forma de expressão jurídica, a lei. Kant defendia a ideia de liberdade individual como fundamento do humano, de maneira que, moralmente, não haveria a possibilidade de, legitimamente, um homem impor qualquer tipo de conduta a quem quer que seja, salvo a ele mesmo. Dito de outra forma, ninguém poderia obrigar ninguém a nada. Nesse contexto, a única possibilidade de se criar e justificar a ideia da lei como expressão do direito oponível a todos seria a partir da instituição prévia de uma renúncia contratual da liberdade de cada um em prol da liberdade de todos, tal liberdade de todos tornar-se-ía um fator moral pelo fato de ter sido produzida por um ato de auto-outorga racional. Essa relação vontade-razão-moral colocaria o indivíduo numa situação muito curiosa em relação à sua liberdade de ação. Sabemos que a liberdade absoluta sofre uma série de impossibilidades. No contexto kantiano, o indivíduo teria como expressão da liberdade a ação em conformidade com a lei moral que nos outorgamos a nós mesmos. Ou seja, se a liberdade absoluta é uma impossibilidade, seríamos menos escravos do sistema normativo e, portanto, mais livres, se a norma fosse a expressão de nossa vontade.

Na prática, nada garante que, uma vez eleito determinado grupo para o exercício do poder estatal, toda e qualquer lei criada por tal grupo corresponda, em sua essência e princípios, aos desejos de cada um dos súditos, de tal forma que esses súditos seriam escravos apenas de sua própria vontade e não da vontade do governante eleito. É possível afirmar que a auto-outorga poderia ser entendida apenas como um pacto de submissão. De tal forma que a vontade que relaciona lei e moral diria respeito apenas à outorga de poder e não ao conteúdo das normas. Em outras palavras, o súdito teria liberdade para ser súdito, podendo apenas escolher de quem será súdito, mas, uma vez realizada a escolha, impor-

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se-ía como obrigação moral a obediência a qualquer lei vinda dessa autoridade, independente de seu conteúdo. O perigo não está no pensamento kantiano em si, mas na possibilidade de produção de um discurso de legitimação no qual a moral-racional não é associável à lei, mas ao governo, seja lá que governo for. Se lembrarmos que os nazistas foram eleitos na Alemanha em 1929, seria possível concluir a partir de um modelo de legitimação onde a lei é afastada da moral, que o nazismo não só era legítimo como a obediência a todas as leis vindas do governo de Hitler seria um dever moral do cidadão, mesmo a obediência às que possibilitavam a “solução final”.

A moralização do estado legislador, construída na teoria do Direito do século XIX e que se mantém, bem ou mal, intacta nos livros de introdução ao Estudo do Direito até hoje, permitem uma sutil anulação do indivíduo na medida em que o anula como um ser capaz de exercício de sua liberdade a partir de um imperativo moral oponível ao estado. Isto é, não há espaço nas relações de direito público3 para uma ação afirmativa do indivíduo a partir de imperativos morais contra a lei, lhe cabe apenas a obediência. Daí uma leitura do direito que permite aos seus opera- dores apenas um julgar de adequação de condutas dos indivíduos à lei estatal, ou seja, há a obediência ou a desobediência à lei, mas não um juízo quanto à adequa-ção da lei em si. Uma atitude acrítica dos julgadores em relação à lei4, portanto. Formamos operadores do direito que julgam conforme a lei, não lhes cabendo julgar a lei, se lei e fatos sociais não coincidem, se lei e indivíduos socialmente consideráveis não coincidem, pior para os fatos, pior para os indivíduos.

4. uma crítica foucaultiana

Nosso discurso jurídico está estruturado sob a premissa de que o direito é algo que emana de centro, notadamente num discurso filosófico-jurídico baseado

3 Ao me referir ao Direito Público, o faço no sentido de associar tal expressão a tipos específicos de relações e não aos chamados ramos do Direito, como tradicionalmente tal expressão é relacionada. Acredito que existam não propriamente um direito público e um direito privado, mas sim relações de direito público e relações de direito privado, um conceito dinâmico de relações e não estático e pré determinado como ocorre ao associar tal expressão a determinado conjunto de normas, códigos e doutrinas.

4 Mesmo quando estamos diante, por exemplo, do controle de constitucionalidade que, em tese, seria um julgamento da lei, vemos que o fenômeno permanece. É que, no caso, o parâmetro “moral” é também a própria lei, qual seja, a Constituição. É o fenômeno, sobre o qual dissemos acima, do “endeusamento” da norma.

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na ideia de soberania à qual Foucault (1992) classificava, em primeiro lugar, como um discurso que vai do sujeito ao sujeito. Que anuncia, num primeiro passo, um sujeito entendido como um “indivíduo dotado por natureza de direitos e capacidades” (FOUCAULT, 1992, p. 51) e que deverá por fim subjugar-se dentro de uma relação de poder, trata-se, portanto, de um ciclo que vai do sujeito ao sujeito, de uma afirmação de subjetividade como premissa de um sistema de anulação da subjetividade individual.

Em segundo lugar, Foucault aponta o fato de a teoria da soberania basear-se na ideia de que sua origem dever-se a uma interação de poderes, que não são poderes a rigor do termo e sim possibilidades ou potências de indivíduos, de forças com capacidade interagente num dado sistema e que podem, num dado momento, interagir ou tornar-se poder no sentido propriamente político do termo. Dessa multiplicidade de potências, a teoria da soberania extrai uma unidade de poder, entendido como um determinado quadro de tensão entre potências destacado no tempo como forma única, ou um certo quadro político congelado no tempo, entendido este, a partir de então, como o tempo da fundação da estrutura de poder. A esta unidade de poder a teoria da soberania emprestou os mais diversos nomes: Monarca, Estado, Governo, etc. pouco importando seu nome, esta unidade é premissa fundamental de funcionamento da teoria da soberania, ou, nas palavras de Foucault:

A multiplicidade dos poderes, entendidos como poderes políticos, pode ser estabelecida e pode funcionar, somente a partir desta unidade estabelecida e fundada pela teoria da soberania. (FOUCAULT, 1992, p. 52)

Em terceiro lugar, a teoria da soberania procura mostrar como o poder pode ser exercido não tanto a partir das leis, mas de uma legitimidade fundamental que funciona como pressuposto de validade para todas as demais leis. Foucault não o faz, porém é quase inevitável a comparação com a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, onde as normas estão hierarquizadas e o pressuposto de validade de uma norma é outra norma que lhe é superior e tal hierarquização terminaria somente no topo do ordenamento jurídico com a chamada norma ou lei fundamental. Tal teoria vale não só como instrumental analítico do ordenamento jurídico tal qual se apresenta na doutrina, mas como exemplo perfeito da terceira característica atribuída por Foucault ao discurso filosófico-jurídico da soberania.

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A teoria da soberania, em resumo, baseia-se em três ciclos, um que vai do sujeito ao sujeito, outro que vai da multiplicidade à unicidade de poderes5 e outro que vai da pluralidade legal à legitimidade da lei. E é sobre estes pilares (sujeito, unicidade do poder e lei) que a teoria é construída e desenvolve-se ou que o discurso filosófico-jurídico estrutura-se e desenvolve-se como dispositivo de poder, alijando da esfera do Direito ou dessa interação política as reais formas de poder, o seu verdadeiro jogo. A partir do momento em que cria seus cortes unificadores, de sujeitos, poderes, potências e legitimidades, exclui uma série de outros sujeitos, poderes, potências e legitimidades, e, o que é ainda pior, mascara para os operadores do Direito, neste momento intérpretes de uma relação polí-tica, a real interação das forças de uma concreta relação de poder, criando dois mundos, uma clivagem entre o mundo do discurso filosófico jurídico e o mundo das reais relações de poder, ou o mundo dos autos e o mundo da vida6.

5. uma análise freudiana

Os três pilares do discurso jurídico-filosófico apontados por Foucault: sujeito, unidade do poder e lei, podem ser comparados e analisados com e apartir de duas formulações freudianas: a figura paterna como centro inconsciente dos processos de socialização e os processos regressivos das massas que implicam em unidade afetiva e violência, denominado por Freud como narcisismo das pequenas diferenças. Em primeiro lugar é preciso esclarecer que, para Freud, conforme formulado em Psicologia das Massas e análise do eu (FREUD, 2013a), não há incompatibilidades entre as formulações de sua teoria psicanalítica individual e os comportamentos sociais, ou, mais precisamente, sendo a psicanálise estruturada a partir de processos de cognição do inconsciente, o fato desse inconsciente ser individual ou coletivo não tem importância conceitual. Tal posicionamento de Freud, aliás, significa uma inequívoca ruptura com os discursos modernos nos quais a socialização do homem requer uma “morte” do indivíduo, uma descontinuidade entre o indivíduo singularmente considerado e socialmente

5 Ou multiplicidade de poderes e potências como observado anteriormente.6 A frase é referência a expressão cediça nos corredores da justiça: “o que não está nos autos

não está no mundo” utilizada para uma clivagem epistêmica sobre o que poderá constituir-se validamente como argumento em uma demanda e o que será previamente desconsiderado como tal.

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considerado, ao analisar os processos de socialização em harmonia com sua formulação do inconsciente e dos comportamentos individuais, Freud permite o reencontro do indivíduo consigo mesmo nas Ciências Sociais.

Em segundo lugar, é preciso esclarecer do que se trata o inconsciente, figura central na obra freudiana. Até Freud, o homem é caracterizado como um ser dividido entre dois atributos: razão e paixão, sendo esta associada à animalidade e aquela à civilidade e humanidade, ambas são excludentes e contraditórias sendo, porém, ambas passíveis de serem compreendidas pelo homem, na medida em que tanto nossa razão quanto nossas paixões podem ser convertidas em um saber consciente (é possível sabermos do que gostamos e queremos com a mesma clareza ou dificuldades com que sabemos e formulamos nossas ideias), em sendo nossas paixões algo ruim (animal), devemos contê-las com nossa razão. O homem civilizado é, antes de mais nada, um homem do autocontrole. É possível, para muitos pensadores, que nossas razões dominem nossas paixões, sendo que, para outros, como David Hume, as razões apenas tornam sociáveis nossas paixões.

De uma forma ou de outra, o fato é que há uma consciência declarada do homem sobre si mesmo. Ao formular a ideia do inconsciente, porém, Freud anuncia a presença de um saber que não se sabe, de uma instância que atua em nós sem que dela tenhamos consciência ou controle, algo que deve ser desvelado para ser conhecido.

O inconsciente, a princípio, foi formulado por Freud em seus Estudos sobre a Histeria como o resultado da repressão de desejos proibidos, um corpo estranho fruto de um trauma, tal formulação, porém, foi desenvolvida no sentido de considera-lo como um sistema constitutivo do aparelho psíquico.

Segundo Plastino, após a Interpretação dos Sonhos, “Freud pensará o inconsciente como um ‘mundo subterrâneo’, um ‘mundo novo’ cuja descoberta e exploração lhe valerão ‘longos anos de solidão honrada, mas penosa’.” (PLASTINO, 1993). Em sendo constitutivo do aparelho psíquico, será no inconsciente que causas de comportamentos humanos serão detectados e compreendidos. Como saber que não se sabe, a linguagem do inconsciente é o discurso do não discurso, que em termos metodológicos é revelado pela psicanálise através da livre associação. A ideia básica é que o inconsciente estrutura-se como linguagem simbólica, cuja ordem não respeita nenhuma preordenação ou lógica substancial, mas associação

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de ideias. Note-se que, nesse sentido, o inconsciente não é uma instância psíquica caótica, mas organizada e, portanto, reconhecível em sua organização, porém, não obedece o inconsciente a uma ordem universal e comum, mas uma ordem singular. Tal ordem manifesta-se, enquanto estrutura psíquica, na determinação de nossas condutas e raciocínios, sendo, porém, não percebido conscientemente.

Em Totem e Tabu (FREUD, 2013b), descreverá como o inconsciente pode ser associado ao processo civilizador a partir da repetição7 do complexo de Édipo. Na leitura freudiana, toda criança recém-nascida é um perverso polimorfo, ou seja, em sendo a perversão uma forma de prazer de natureza sexual diversa do prazer sexual erogeneizado (que se manifesta privilegiadamente a partir dos órgão sexuais), em não tendo a criança completado seu processo biológico de erogeneização (concentração da excitação corporal-sexual nas zonas erógenas), todo toque corporal que recebe gera um prazer de natureza sexual. Dominada pelo princípio de prazer, deseja a criança realizar eternamente esse prazer. Durante a vida uterina, a criança tem a satisfação plena de seus desejos, é simbolicamente o paraíso perdido por ocasião do nascimento. Após o parto, uma primeira castração sofre a criança ao não ter seus prazeres e necessidades satisfeitas imediatamente. Esse trauma fará do indivíduo um eterno órfão do paraíso perdido, um aventureiro em busca do paraíso perdido, sendo o primeiro encontro de satisfação nesse novo mundo de inevitáveis castrações o seio materno. Nesse sentido será desenvolvido um prazer de natureza sexual pela mãe, frustrado, posteriormente, pela percepção da figura paterna, de tal forma que a criança desejará a morte do pai.

No plano mítico, para aliviar o peso da consciência da responsabilidade e da dor do remorso pelo ato cometido, os irmãos, além de se obrigarem a solidificar os vínculos entre si, reduzindo a rivalidade, converteram em lei a vontade paterna. Nesse sentido, a análise Foucaultiana denuncia a presença de um pai mítico evidente nos discursos de fundamentação do pensamento jurídico moderno, uma vontade paterna manifesta na forma da razão e da interdição dos desejos, uma sociedade, enfim, de ordem e repressão, semelhante às sociedades ocidentais do século XIX, porém bastante diferente das nossas sociedades da era do mercado

7 Uma das características do inconsciente é não possuir uma temporalidade, ou seja, um trauma ou pulsão inconsciente não fica restrita ao contexto temporal de sua ocorrência, mas retorna em qualquer tempo no comportamento do indivíduo graças a associação simbólica de ideias, daí a repetição.

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atual. Nesse sentido, talvez a ideia freudiana do narcisismo das pequenas diferenças possa ser, de alguma forma, esclarecedor.

Na década de 20, Viena estava assolada pelo ideal nazi-fascista, um discurso consistente na pregação de orgulho e negador das diferenças, nesse contexto, Freud aprofunda suas preocupações políticas, inicialmente em sua Psicologia das massas e análise do Eu (FREUD, 2013a). Neste texto, Freud acentuará o inconsciente como dimensão da cultura através da análise das relações do eu e da massa com o outro, destacando que, como o eu, a massa tem dois objetivos: regular as tensões internas e dominar as forças da natureza, controlando as excitações. Nesse sentido, as relações humanas na massa são marcadas pela economia entre a necessidade de proximidade em relação ao outro e a repulsa desse mesmo outro em função de suas diferenças, cada vez mais evidentes quanto maior for a proximidade.

A percepção racional da necessidade de união (tese contratualista) não seria suficiente para justificar a coesão humana na massa e as suas reações organizadas e violentas, foi preciso que o grupo forjasse sua própria identidade a partir de seu outro, o estrangeiro, diferenciando-se e defendendo-se dessa alteridade, eliminando as diferenças internas, fabricando unidade fictícia com a necessidade de perpetuar sua dominação real.

Tal dispositivo de unidade só é possível se atrelado à figura do pai morto, de tal maneira que o sacrifício extremo exigido das subjetividades em prol da unidade simbólica, do ideal de comportamento e cidadão, é recompensado pela convicção de se fazer filho do pai, pertencente à família dos adoradores do pai morto cuja palavra é lei. Freud, nesse sentido, descreve o nazismo.

Quanto ao termo narcisismo das pequenas diferenças, Freud cunhou para designar o fenômeno grupal de amor entre si e ódio ao outro, narcisismo no sentido de que o gozo é obtido pelo indivíduo em relação a si mesmo e pequenas diferenças em função da percepção de que a satanização do outro é construída mais a partir de pequenas diferenças do que em função das diferenças essenciais. Tal análise é compatível com a formulação foucaultiana dos processos de des-subjetivação contido no discurso que vai do sujeito ao sujeito, na media em que apenas se é sujeito para ser súdito, para obedecer à voz normalizante do pai.

Considerando-se o tempo presente, no qual reina no ocidente uma cultura de mercado na qual a singularidade e o desejo são ressaltados como virtudes, na

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medida em que consumo em escala industrial requer desejo em escala industrial, podemos afirmar que, em relação às análises freudianas, nossa sociedade tem o aspecto narcísico exacerbado e, simultaneamente, enfraquecida a figura paterna.

Se a lei do pai significa a interdição dos prazeres, a castração, a sociedade de consumo dispensa o remorso pela morte do pai em favor da declaração dos prazeres sem limites, o que implica, de certa forma, num narcisismo das pequenas diferenças em relação aos próximos excluídos das relações de consumo e elevados à categoria de perigosos, da alteridade que precisa ser eliminada não em favor de uma unidade de subjetividades, mas em favor da ilusão do gozo ilimitado.

Substituímos uma sociedade totalitária em sua castração por uma sociedade totalitária em seu convite à ilusão do gozo ilimitado, onde a subjetividade padrão muda na mesma medida em que novos objetos de desejo são criados, uma subjetividade mutante cuja adesão exige consumo constante. Nesse sentido, percebe-se que os discursos estruturantes do Direito, conforme denunciados na análise foucaultiana, uma vez submetidos à crítica freudiana, mostram-se absolutamente despreparado para a compreensão e posicionamento consciente e ético diante dos desafios do mundo contemporâneo.

6. conclusões

O Direito, portanto, ligado à ideia de legitimidade moderna necessariamente deságua num vazio de fundamentação, não muito diferente do vazio que significa a norma fundamental de Kelsen, uma abstração, onde encontramos “sujeitos” igualmente fictícios, uma vez que sua subjetividade serve tão somente para fundamentar a anulação de sua vontade como sujeito em favor de uma abstração, ou de uma ilusão do gozo ilimitado. Daí a necessidade de desvincular o Direito da ideia de soberania moderna como pressuposto de um Direito concreto, cuja fundamentação, estudo e teorias que fundamentam sua aplicabilidade aproximem-se das concretas relações sociais. Ao invés das premissas fundamentais ou “naturais” de um Direito originário, dado por um discurso filosófico-jurídico, o estudo concentra-se no interagir dessas premissas, desses dispositivos de poder, em suas direções, intensidades, choques, nuances, trocas. Trata-se, portanto, do estudo de um movimento, da construção de subjetividades e dos jogos afetivos e inconscientes neles implicados, e não da busca de objetos ou valores perdidos

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nas garras da natureza ou em vontades metafísicas de duvidosa ontologia (como a vontade do legislador ou a vontade da norma), esperando para serem desvelados.

As questões do discurso do século XIX e seu anacronismo são evidentes e justificáveis por um raciocínio simples: o século XIX é marcado pela ideia de Estado como unidade, para que tal ideal pudesse ser concretizado, isso implica em unidade de língua, cultura, valores, identidades, enfim, negação de toda e qualquer alteridade social. Se esse foi o tom dos discursos do século XIX, hoje, tal negação da alteridade soa como opressão e autoritarismo. Como conseqüência, o Direito apresenta-se como mecanismo de respostas autoritárias por parte do Estado-governo às demandas sociais crescentes e cada vez mais explosivas de nossa sociedade de terceiro mundo. Na prática, isso significa políticas de encarceramento da miséria no lugar de qualquer outra prática positiva de distribuição de renda ou justiça social.

Entre os indivíduos fundadores da soberania e os indivíduos súditos da soberania há um “vácuo” sem coletividades, sem comunidades, sem sociedade, algo não pensável pelas matrizes do discurso jurídico. Isso é inegavelmente angustiante para qualquer um que se lance ao estudo ou à prática do Direito, um trabalho de sísifo no qual um discurso moderno8 do direito, cada vez mais intensificado, não consegue mostrar-se capaz de construir as belezas prometidas pela mesma modernidade que o inspira. Afirmamos a lei como paz social e quanto mais a aplicamos, mais a dita paz social parece nos escapar por entre os dedos; quanto mais punimos e asseveramos as penas, mais os crimes são cometidos e com cada vez menos receio de qualquer punição etc. Como bem observou Bauman (2003), fomos lançados num mundo ainda inexplorado de modernidade sem modernismo, ou seja, num mundo de estruturas e paixões tipicamente moder-nas, porém sem certeza alguma quanto a qualquer ideal a ser construído.

Não devemos mais pensar o Direito sem a construção de uma clara ideia de sociedade, indivíduo e estado, não mais nas acepções modernas de soberania, mas de acordo com as atuais demandas de um mundo capitalista globalizado onde as noções de território e comunidade parecem desfazer-se ao vento - como afirmara Marx e Engels o capitalismo tem o poder de acabar com qualquer solidez

8 Contratualista e iluminista.

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– pois precisamos de um direito que possa cumprir a sua missão de afirmação da justiça com apelo não à mera imposição de ordem (qualquer ordem), mas pela composição de conflitos de forma consciente das razões e afetos constitutivos dos conflitos.

7. referências

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federalismo e governabilidade: da proclamação da república

ao estado novo

Martônio Mont’Alverne Barreto Lima1

Marcelo Dias Ponte2

Resumo

O estudo do federalismo no Brasil requer previamente uma análise das ideias acerca dessa temática ainda no império para que se possa ter uma visão contextualizada do momento histórico e político em que o mesmo surgiu. Apesar de ser uma das federações mais antigas do mundo, nosso país sempre viveu períodos de instabilidade democrática, tendo somente nas últimas décadas do século XX, conseguido uma maior solidez política e constitucional, com instrumentos caracterizados de um estado de direito democrático. Entretanto, o final da monarquia e o advento da república provocou concomitantemente a adoção do regime federativo, baseada no modelo norte-americano. Traça-se aqui, uma análise da instauração da federação no ordenamento constitucional pátrio até o advento do período conhecido como “Estado Novo”, época em que a ditadura de Vargas praticamente extinguiu o federalismo no Brasil. A presente pesquisa foi realizada por meio de estudo bibliográfico. Analisa-se portanto, as duas Primeiras constituições, de 1891 e de 1934, juntamente com as condições de governabilidade, permitindo que se possa analisar os motivos históricos e políticos que impediram do desenvolvimento pleno do federalismo e de suas mudanças sofridas com o cenário político da época.

Palavras-chave

Federalismo; Governabilidade; República.

1 Professor Doutor da Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Procurador do Município de Fortaleza.

2 Doutorando pelo Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Professor do Curso de Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza – UNIFOR.

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Abstract

The study of federalism in Brazil previously requires an analysis of the ideas on this theme further in the empire so you can have a contextualized view of the historical and political moment in which it arose. Despite being one of the oldest federations in the world, our country has always lived periods of democratic instability, and only in the last decades of the twentieth century achieved greater political and constitutional soundness, with featured instruments of a democratic rule of law. The end of the monarchy and the advent of the republic. However, concomitantly caused the adoption of the federal system, based on the American model. Is traced here, an analysis of the establishment of the federation in parental constitutional order until the advent of the period known as “New State”, a time when the Vargas dictatorship virtually extinguished federalism in Brazil. This study is aimed on a bibliographic research. It analyzes thus the two Early Constitutions of 1891 and 1934, along with the conditions of governance, allowing one to analyze the historical and political reasons that prevented the full development of federalism and its changes experienced with the political landscape of time

Key words

Federalism; Governance; Republic.

1. introdução

A história brasileira pode ser dividida em dois grandes períodos: o monárquico ou imperial e o republicano. Neste último, podemos analisar a adoção do regime federativo que provocou significativas mudanças no processo de descentralização político e administrativa do país. É forçoso reconhecer que a adoção dessa estrutura em nosso país, não alcançou adesão coletiva, face às divergências de ideias, geralmente atreladas a interesses políticos partidários.

Assim, através de um estudo baseado em bibliografia condizente com a temática, traçamos primeiramente, uma breve análise das ideias de federalismo durante o império, mais especificamente nas últimas décadas pretéritas à queda da monarquia, período em que as ideias federalistas atingiram seu ápice, juntamente com o Manifesto Republicano em 1870.

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A Proclamação da República em 1889 veio com o objetivo de combater a centralização política que havia no império. Vale lembrar que a proposta inicial de manter a unidade e integridade territorial para que se evitasse a fragmentação do território como ocorreu nos demais países da América espanhola, foi mantido, de modo que em quase sete décadas de monarquia, tivemos somente o Ato Adicional de 1834 como momento político em que houve uma maior descentralização do poder para as províncias existentes.

A formação do governo provisório, com a consequente Constituição em 1891 tornou o Brasil merecedor de um regime federativo dualista, espelhado no modelo norte-americano. As antigas províncias foram transformadas em estados, e estes passaram a ter constitucionalmente autonomia, inclusive com adoção de legislação estadual própria, representatividade política com independência dos poderes. Contudo, a política dos governadores surgida logo após o advento da república fez com que o jogo de interesses políticos, impedisse que se pudesse governar as províncias com a autonomia que era desejada.

Acrescente-se a isso, ao fato das oligarquias locais que, por meio de jogos políticos e troca de favores, tornavam os representantes dos estados meros mandatários do poder executivo central. O período conhecido por “República Velha” findou em 1930, com o golpe de estado derivado da insatisfação da política do Café com Leite, quebrando a hegemonia política e econômica dos estados de São Paulo e Minas Gerais cedendo lugar para a ascensão de Getúlio Vargas, representante do Rio Grande do Sul.

Nesse período, o mundo sofria os prejuízos causados pela quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929, bem como as consequências de um período pós guerra mundial que provocou o sentimento de solidariedade na Europa, além do surgimento do bloco tido como ‘comunista’, surgindo assim, o estado social que veio a se contrapor ao estado liberal

Nessa perspectiva, as políticas de Roosevelt nos Estados Unidos para conter a crise com a atuação da União nas matérias de competências dos Estados, mas com o propósito de resolver os problemas econômicos em prol do bem comum deu origem a uma nova fase do federalismo. Este federalismo de cooperação foi modelo adotado pela Constituição de 1934, cujo texto e propostas, não alcançaram os fins almejados. Motivos também de ordem política fizeram com que essa constituição

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tivesse vida curta, e o federalismo brasileiro fosse praticamente extinto no período chamado Estado Novo, com a ditadura de Vargas e a promulgação de uma constituição em 1937.

2. considerações históricas sobre o federalismo no império

A análise da implantação do federalismo no Brasil requer antes de tudo, uma verificação do contexto histórico e político da época em que a República foi proclamada, bem como uma síntese das ideias federalistas que permeavam durante o império, principalmente nas três últimas décadas que marcaram o declínio e o fim do regime monárquico.

Um dos momentos mais importantes que merece ser destacado foi o Manifesto Republicano em 1870, que dentre os pleitos ali apresentados, estava implementação da federação nos mesmos moldes da existente nos Estados Unidos da América. Porém, a crise que se instalava na época, com a crise no setor açucareiro e a crescente produção cafeeira, deslocou o polo do poderio econômico para São Paulo provocando instabilidade em todo o país, agravada pela abolição da escravatura que, paulatinamente chegava com as leis que a antecederam a Lei Áurea promulgada em 1888.

A conjuntura brasileira à época era pautada numa forte concentração do po-der político nas mãos do imperador, cujo controle se alastrava para as províncias. Entretanto, na medida em que o poder econômico começou a se dissociar do poder político, fez com que o ideal republicano aflorasse cada vez mais. Assim, no dizer de BERCOVICI (2004, p.29): “A solução para as novas aspirações e conflitos surgidos com as transformações econômicas e sócias da segunda metade do século XIX parecia estar no federalismo. A centralização passou a ser vista como um entrave ao desenvolvimento do país.”

Inúmeros foram os pensadores à época que defendiam a instauração do federalismo no Brasil. Alguns deles como Paulino José Soares de Sousa, mais conhecido como Visconde do Uruguai, apesar de simpático à causa federativa ainda na primeira metade do século XIX. Contudo, na condição de político da ala conservadora, acreditava não estar nosso país preparado para mudanças tão

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bruscas, referindo-se ao Ato Adicional de 1834, que provocou uma considerável descentralização política e administrativa em nosso país. Já outros que o sucederam, como Tavares Bastos (1996, p.37) fez uma crítica comparativa entre a centralização e a descentralização política e administrativa do governo, ou seja, sobre os ideais de federação ao dizer:

Quão oppostos aos tristes efeitos da centralisação os magníficos resultados da federação! Uma quebranta, outra excita o espírito dos povos. Uma extingue o sentimento da responsabilidade nos indivíduos, e esmaga o poder sob a carga de uma responsabilidade universal; a outra contém o governo no seu papel, e dos habitantes de um paiz faz cidadão verdadeiros. Uma é incompatível com instituições livres; a outra só pode florescer com liberdade.3

Outro jurista destacado na mesma seara foi Assis Brasil, que em sua obra História da República Riograndense, foi citado no livro sobre suas ideias políticas, elaborado por BROSSARD (1989, p.581), com o seguinte trecho:

É convicção minha, fortalecida cada vez mais pelo estudo e pela meditação, que as revoluções mais importantes, que abalaram outrora o País, e cujo ideal ainda não foi satisfeito, tiveram como causa principal a necessidade do estabelecimento do sistema racional da federação, que também pode se chamar – sistema de liberdade, porque a liberdade é a ordem de acordo com as prescrições da natureza.

Além destes, outros juristas chegavam a sobrepor a causa federativa à causa republicana, acreditando que a primeira, mesmo com a manutenção do regime monárquico era necessária. Foi o caso de Rui Barbosa destacado por como dissera VIANA (2004, p.96): “O próprio Rui não se declara francamente republicano, embora, como dissera Nabuco, “no fundo” ele fosse republicano. Rui sobrepondo a tudo a ideia federativa mantinha-se indiferente à instituição monárquica, usando a fórmula sugestiva: Federação com ou sem Coroa.”

3 Aureliano Cândido de Tavares Bastos, jurista alagoano que viveu entre 1839 a 1875. A obra da qual fazemos a presente citação é um Fac-símile do texto escrito pelo autor à época e que por tal motivo preferimos transcrevê-lo do modo original, sem os ajustes ortográficos da língua portuguesa atual.

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Por derradeiro, citamos um trecho de uma carta escrita pelos liberais a Joaquim Nabuco acerca do advento da república e da questão federativa citada por GOUVÊA (1989, p.361) que assim inicia: “Começam a frutificar os esforços que empregastes na sagrada causa da pátria. A federação, essa ideia salvadora por que combateis, vai realizar-se agora ainda que sob o domínio de instituições mais livres por impulso do Partido Republicano que acaba de levantar-se em todo o país, fortalecido pela opinião nacional”.

Verifica-se assim, que o pensamento político nas últimas décadas antecedentes à Proclamação da República delineava-se no combate à centralização estatal que impossibilitava para alguns, o crescimento econômico das províncias que ainda eram controladas pela coroa, por meio de pessoas de confiança do imperador que exerciam os cargos de Presidentes de Províncias, que detinham poder sobre a guarda nacional, nomeavam autoridades policiais além de fazer perseguições aos opositores.

Há de ressaltar que na época, não havia certa periodicidade no exercício do cargo de Presidente provincial de maneira que a elevada rotatividade culminava por ser extremamente prejudicial para a administração local. Daí, portanto a conjuntura da época pode ser bem definida nas palavras de SILVEIRA (1978, p.59) que assim se manifestou:

Nas discussões sobre o federalismo no Brasil, os clamores contra a centralização escondiam verdadeiramente clamores contra um Estado que açambarcava todas as esferas – econômica, social, política, administrativa – da vida nacional, contrariando determinados interesses dos setores mais dinâmicos da sociedade, desejosos de se expandir. A estes convinha um Estado menos absorvente. República mais federação foi a fórmula encontrada para atender às finalidades propostas. Como formalizar esse binômio?

A solução encontrada foi atrelar à causa republicana que ganhava corpo, atrelada à adoção do regime federativo. E assim, espelhando-se no modelo estadunidense surgiu o federalismo no Brasil, paralelamente com o advento da república, por meio do Decreto No 1, de 15 de novembro de 1889, consolidada posteriormente através da Constituição de 1891.

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3. federalismo e governabilidade na constituição de 1891

Nos projetos que a antecederam, além da constituição americana, houve inspiração dos textos das constituições da Argentina e da Suíça. Nesta fase de elaboração, que contou com colaboração de Rui Barbosa, muitas discussões permeavam em relação aos poderes. No que se refere ao judiciário, por exemplo, Deodoro manifestava-se favorável a uma magistratura una. Nos demais, chegou a propor que o executivo, por meio do Presidente da República, pudesse dissolver o congresso. A proposta do então Marechal, não se adequava aos propósitos da república que se pretendia instaurar, uma vez que a independência e separação dos poderes teorizada por Montesquieu, e que servira de inspiração para a formação do Estado norte-americano, não se configuraria.

Observe-se, porém, que caso suas ideias não fossem de logo rechaçadas, de nada teria adiantado as mudanças políticas e administrativas, uma vez que o controle do poder permaneceria nas mãos do chefe do executivo. Além disso, a proposta apresentada de Deodoro se distanciam, e muito, dos preceitos de uma república federal presidencialista.

Cumpre dizer ainda, que não havia no país, o sentimento de unidade. Dizia-se que havia um país sem que houvesse, contudo, o sentimento de nação. É forçoso reconhecer que em alguns aspectos como a língua e religião, de certo modo seria demonstrativos de unidade. Porém, a chamada “identidade nacional”, era algo que faltava, face às desigualdades sociais e econômicas já existentes na época. Segundo CARVALHO (2003, p.32):

A busca de uma identidade coletiva para o país, de uma base para a construção da nação, seria tarefa que iria perseguir a geração intelectual da Primeira República (1889-1930). Tratava-se, na realidade, de uma busca das bases para a redefinição da República, para o estabelecimento de um governo republicano que não fosse uma caricatura de si mesmo. Porque foi geral o desencanto com a obra de 1889. Os propagandistas e os principais participantes do movimento republicano rapidamente perceberam que não se tratava da república dos seus sonhos.

No texto da Constituição de 1891, a principais mudanças no tocante à temática ora em estudo, referem-se à transformação das províncias em estados-

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membros, adotando-se assim, uma federação sob o modelo dualista. Os estados passariam a ter suas próprias constituições, e leis, desde que houvesse respeito aos princípios da Constituição Federal sob pena de sofrerem intervenção da União.

Entretanto, ao mesmo tempo em que o legislador emprestava relevo aos estados membros conferindo-lhes posição de destaque no texto constitucional, tal importância não passava de mera ilusão, uma vez que o artigo 5º do mesmo diploma disciplinava que caberia a eles prover às suas próprias expensas, as necessidades de seu governo a administração, o que na prática tornava inviável essa condição de autossuficiência para a grande maioria daqueles entes federados, uma vez que a grande maioria deles foi explorada não somente durante o império, mas ainda nos três séculos que o antecederam, na condição de colônia lusa. Desse modo, acresça-se ainda, as intempéries em algumas partes do nosso território, como as secas na região nordeste que agravaram mais ainda a situação.

Aliás, não havia qualquer previsão de cooperação da União em relação aos estados, com exceção da prestação de socorro, nos casos de calamidade pública, onde ai, poderia se incluir as intempéries mencionadas. Contudo, BERCOVICI (2004, P.31) destaca que:

Em 1897, o Governo Federal regulamentaria o artigo 5º de forma minuciosa, especificando os casos em que os Estados poderiam receber auxílio da União, além de determinar que, junto com a solicitação formal do pedido, a ajuda federal dependeria de comprovação documentada de que os recursos disponíveis do Estado solicitante foram totalmente exauridos sem êxito para debelar a calamidade que o atingiu.

Desse modo, observa-se que os estados-membros, principalmente aos da região nordeste, foram os que de certo modo receberam ajuda governamental, concretizada apenas no governo de Epitácio Pessoa, praticamente duas décadas depois. Essa pode ser considerada a primeira medida intergovernamental entre a União e os Estados-membros. Porém, praticamente todos eles sofreram intervenções por parte dos governos, com exceção dos economicamente mais poderosos.

Nesse contexto, a Constituição de 1891 permitia o controle dos tributos sobre importações aos estados e, por tal motivo, São Paulo e Minas Gerais, maiores

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responsáveis pela produção e exportação cafeeira tornaram-se politicamente dominantes, face à sua autossuficiência financeira. Nesse sentido, FAORO (2012, p.646) se pronunciou ao dizer que:

O sistema previsto para entregar o poder político aos Estados, poderia levar a alianças interestaduais, com a anulação do presidente da República, convertido em agente, representante de tais blocos. Na verdade, subjacente ao império presidencial, vibra essa realidade, articulada pelos dois grandes Estados, São Paulo e Minas Gerais, com os desafios de outras contestações, discretamente coordenadas pela terceira força, logo assumida pelo Rio Grande do Sul. O aparelho fiscal e financeiro, concentrado na União, permitia sufocar essa reação, dada a permanente penúria dos Estados para proverem às suas necessidades.

Nesse período, em decorrência do maior polo eleitoral estar concentrado nos estados de Minas Gerais e de São Paulo, detentores do poder econômico, tem início a chamada política café com leite, com a alternância da chefia do executivo federal por alternância dos dois estados anteriormente citados.

Também há de se destacar, que nas primeiras décadas do século XX, vivenciou-se o período das oligarquias locais, onde famílias que representavam as elites economicamente dominantes de cada porção do território, geralmente formada por grandes proprietários de terras iniciariam um jogo político de troca de favores e que atrelados à corrupção no sistema eleitoral, desconfigurou o sistema representativo, impedindo que outros grupos políticos locais chegassem ao poder.

Vale dizer também que no âmbito dos municípios, a situação era ainda pior. Estes não dispunham de condições para realizar quaisquer políticas desenvolvimentistas em prol do povo, sendo estes dependentes dos governos estaduais. Foi também nos primeiros anos da República, que se desenvolveu a chamada “Política dos Governadores”, em que o executivo federal apoiava sem restrições os representantes estaduais em troca de favores. Esta prática ocorria nos estados que possuíam maior peso na sua base eleitoral e que demonstrassem elevado grau na unidade política.

Sobre o assunto, LASSANCE (2013, p.67) se pronunciou ao dizer que: “Os critérios essenciais eram: a representatividade incontestável de suas lideranças a

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hegemonia sobre as forças políticas de seus municípios, a coesão partidária e a disciplina congressual.” Portanto, chega-se facilmente à conclusão que em face da dependência existente entre os entes governamentais, as verbas concedidas aos municípios somente eram liberadas àqueles que politicamente se encontravam em harmonia com os interesses dos representantes estaduais.

Nessa perspectiva, observa-se que o modelo de federalismo dual inserido pelo legislador na primeira constituição republicana não obteve, na prática a autonomia almejada pelos ideários da federação no final do império.

Conforme salienta Valeriano Costa (2004, p.175): o federalismo funcionava, na prática, como potencializador das oligarquias estaduais, que limitavam bas-tante o papel do governo federal como agente do desenvolvimento econômico e social do país. Por isso, a maior parte da elite modernizadora tinha uma visão negativa do federalismo.

Desse modo, distanciava-se cada vez mais o federalismo legal, do federalismo real, passando este a ser mal visto uma vez que as intervenções federais aliadas ao clientelismo e troca de favores entre os estados e a união, se sobrepuseram durante as três primeiras décadas da era republicana.

Em 1926, houve uma considerável reforma constitucional que retirou os poderes conferidos aos estados uma vez que a intervenção federal nestes últimos passou a ser mais regra do que exceção, colocando em xeque a estrutura federativa que é a autonomia dos entes que a compõem. Nesse sentido HORTA, (1990, p. 75) diz que:

A Reforma Constitucional de 1926, explicitando os princípios constitucionais (Constituição de 1891, com as Emendas de 1926 artigo 6º-II, letras a até l) tornou o desrespeito aos mesmos casos de intervenção federal nos Estados, deferindo ao Congresso Nacional a competência privativa para decretar a intervenção. Preferiu a solução política, como técnica de controle, e escolheu, para corrigir a inconstitucionalidade praticada no Estado, o meio drástico da intervenção federal.

Anos depois, a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, rompe com a hegemonia de São Paulo e Minas Gerais na República do Café com Leite. Em suma, o Estado

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brasileiro vivenciou desde a instauração da República uma falsa federação. Não havia governabilidade, bem como não foi respeitada a autonomia dos estados.

Aliado a isso, o sistema eleitoral ilusório em decorrência das eleições a bico de pena, foram fatores determinantes para que se chegasse à conclusão do insucesso do sistema político-administrativo trazido pela república.

Nesse sentido, o desfecho de BONAVIDES (1996, p.397) sobre o assunto é claro, quando se manifesta da seguinte forma: “Quanto ao federalismo da Primeira República, mesmo institucionalizado, não se apartou do combate pela domesticidade do poder Executivo, acoimado, então, de ingerências perturbadoras e ruinosas, ao invadir a órbita de autonomia dos Estados”.

A chamada República Velha chegava ao seu fim, com o golpe de estado que depôs o Presidente Washington Luís e impediu a posse de Júlio prestes, presidente eleito, que fora exilado. Vargas que, de início assumiria o governo provisório, permaneceu até 1945. Entretanto, em 1934 surge uma nova ordem constitucional, também sob a forma federativa, mas que trouxe inovações, uma vez que é implantado o federalismo de cooperação em seu texto constitucional.

4. federalismo e governabilidade na constituição de 1934

A segunda década do século XX foi marcada pela história mundial, pela segunda grande guerra, que ocorreu de 1914 a 1918. O chamado Estado liberal começava a dar espaço para o chamado Estado social. Essa nova concepção de Estado, em que este deixa de ser um mero agente produtor de normas, passando a atuar nas esferas política e administrativa também. Essa atuação aconteceria concomitantemente com a liberdade individual. Assim, na Alemanha, por exemplo, surge a Constituição em 1919, (Constituição de Weimar). Esse texto legal, que adotou o federalismo como sistema organizacional, previa a atuação cooperada entre os entes da federação em algumas matérias, modelo que repercutiu em algumas nações, alcançando maior notabilidade nos Estados Unidos da América.

A crise de 1929 ocasionada pela queda da Bolsa de Nova Iorque causou repercussão em todo o mundo principalmente no setor econômico, fazendo

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com que houvesse a necessidade de um estado forte o suficiente para conter as mazelas deixadas por meio da atuação dos governos nas unidades locais. Nos Estados Unidos, Roosevelt, com a política do New Deal, que permitia exatamente a atuação governamental da União sobre os Estados visando objetivos comuns. Segundo SCHWARTZ, (1984, p31), “o New Deal envolveu um grau de controle governamental da parte de Washington muito maior do que outro tentado antes no sistema americano.”

À época, Roosevelt adotou medidas como a Lei Nacional de Recuperação Industrial, e a criação da TVA - Tenessee Valley Authority, uma espécie de agência federal cuja finalidade era promover a construção de linhas de transmissão de energia, represas, a fabricação de fertilizantes, dentre outros projetos. Além da TVA, outras agências foram criadas durante seu governo, cujo propósito, na visão de Roosevelt tinha com objetivo o desenvolvimento social e econômico.

Ao escrever sobre a biografia do citado chefe de estado americano, FIGUEIREDO (1974, p.79) mencionou o posicionamento de Franklin Roosevelt quando a criação da TVA, ao dizer; “Deveria ser um experimento em reconstrução social; a melhoria do ser humano em sua totalidade, nos campos físico, social e econômico, esta é a finalidade última”. Daí percebe-se que, desde sua origem, o objetivo do federalismo cooperativo ainda nos Estados Unidos ainda possui seus propósitos inalterados, se levarmos em consideração a sua existência no ordenamento jurídico constitucional brasileiro.

Concomitantemente, o Brasil estava às vésperas de uma nova ordem constitucional que veio a ser promulgada em 1934. Antes de entrar em vigor, vale destacar o anteprojeto dessa constituição que foi alvo de inúmeros debates e discussões. Isso porque as pretensões de elaboração do texto constitucional divergiam, além do fato, da realidade do país, carente de recursos para satisfação de suas necessidades em algumas regiões. Segundo BERCOVICI (2003, p.61): “O Estado brasileiro constituído após a Revolução de 1930, é, portanto, um Estado estruturalmente heterogêneo e contraditório. É um estado Social sem nunca ter conseguido instaurar uma sociedade de bem-estar: moderno e avançado em determinados setores da economia, mas tradicional e repressor em boa parte das questões sociais”.

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De um lado, os liberais pregavam uma maior autonomia para os estados membros. Contudo, buscava-se por outro lado evitar o chamado ultrafederalismo, que encontrava em políticos como Campos Salles, uma soberania para os estados. Mas, uma vez promulgada a Constituição em 1934, pode-se mencionar como características o federalismo cooperativo, baseado no espírito de solidariedade que deve existir entre os entes integrantes da federação. Destaca-se aqui o art. 9º, em que: “É facultado a União e aos Estados celebrar acordos para a melhor coordenação e desenvolvimento dos respectivos serviços e, especialmente, para a uniformização de leis, regras ou práticas, arrecadação de impostos, prevenção e repressão da criminalidade e permuta de informações”. E, logo em seguida, o art. 10 enumera uma série de incisos que atribui competência concorrente entre a União e os Estados, a saber:

Art. 10. Compete concorrentemente à União e aos Estados:

I - velar na guarda da constituição e das leis;

II- cuidar da saúde e da assistência pública;

III- proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico, podendo impedir a evasão de obras de arte;

IV- promover a colonização;

V- fiscalizar a aplicação das leis sociais;

VI- difundir a instrução pública em todos os seus graus;

VII- criar outros impostos, além dos que lhe são atribuídos privativamente.

Parágrafo único. A arrecadação dos impostos a que se refere o n° VII será feita pelos Estados, que entregarão, dentro do primeiro trimestre do exercício seguinte, trinta por cento à União e vinte por cento aos municípios de onde tenham provindo. Se o estado faltar ao pagamento das cotas devidas à União ou aos Municípios, o lançamento e a arrecadação passarão a ser feitos pelo Governo Federal, que atribuirá nesse caso, trinta por cento ao Estado e vinte por cento aos Municípios.

Assim, do ponto de vista legal o Brasil, adotou as tendências político -constitucionais de conformidade como eram as tendências nos Estados Unidos e na Europa e aprovou uma Constituição com viés social, baseada não só na cooperação, mas na solidariedade, como se pode observar no artigo 140 que prevê

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a organização do serviço nacional de combate às endemias do país e no artigo 177 que, já nas disposições gerias traça um plano sistemático e permanente para o problema das secas, principalmente no tocante às obras e aplicação de recursos para combatê-las. Nas palavras de RAMOS (2000, p.52):

O federalismo cooperativo brasileiro manifestou-se através do estabelecimento de órgãos estaduais de desenvolvimento formados por Estados e Regiões Metropolitanas formadas por Municípios, nos Estados-Membros; pela repartição tributária de impostos federais e de impostos estaduais beneficiando Estados e Municípios, mediante atribuições de percentuais da arrecadação dos impostos que se tornaram objeto da repartição.

Mas, diante dos conflitos ocorridos nos anos subsequentes à sua vigência era voltado para a questão da maior centralização do governo federal sobre o estadual. A luta entre os integralistas e os comunistas da época permitiu uma coesão das camadas dominantes, que acabaram por prestar apoio a Vargas, inaugurando um novo período que foi chamado de “Estado Novo”. Inaugurava-se assim, uma nova era na história do Brasil. E nesse período de centralização, que deu origem a Constituição de 1937 outorgada, praticamente extirpou a estrutura federativa no Brasil, face às intervenções nos estados, cabendo ao governo federal nomear os Prefeitos municipais.

5. conclusões

Diante da análise da temática estudada, percebe-se que as ideias para se implantar o regime de federação no Brasil foi um ideário cujas ideias se discutiam ainda no império, principalmente nas três ultimas décadas posteriores ao advento da proclamação do República. Entretanto, apesar das divergências existentes sobre a manutenção da monarquia ou a mudança para o regime republicano, havia quase que um consenso para que houvesse uma descentralização politica e administrativa. Assim, o federalismo seria a solução vista por muitos juristas da época para que houvesse uma essa desconcentração do poder, a exemplo do modelo de estrutura estadunidense.

Com o advento da república em 1889, o estado brasileiro preparava-se para absorver uma constituição que atendesse aos anseios principalmente dos que

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defendiam a causa republicana. Entretanto, fatores de ordem política e econômica fizeram que na pratica, nossa sistema federativo fosse muito aquém do dos anseios esperados.

E, dentre esses fatores, podemos citar a politica dos governadores, bem como a existências das oligarquias nos estados que impediram que houvesse a governabilidade esperada nem por parte do executivo federal, bem como do executivo dos estados.

As trocas de favores políticos, os interesses políticos e econômicos de alguns estados com maior representatividade no cenário nacional, também foram fatores que impediu uma maior coesão em termos de unidade, impedindo que o sentimento de nação preponderasse em nosso território. Exemplo disso, foi a chamada politica do Café com Leite, em que havia uma alternância de poder executivo federal entre representante dos dois estados mais importantes economicamente à época, São Paulo e Minas Gerais.

A reforma constitucional de 1926 ,assim como a quebra dessa hegemonia e a chegada de Getúlio Vargas ao poder representou uma ruptura na conjuntura Brasileira através de um verdadeiro golpe de estado , no ano de 1930.

Anos depois, com inspiração na Constituição alemã de Weimar e nas práticas de Roosevelt nos Estados Unidos, promulgou-se uma constituição em 1934 cuja estrutura politico e administrativa baseava-se na solidariedade entre os entes da federação, iniciando-se assim o federalismo cooperativo no Brasil. Entretanto, essa proposta foi praticamente castrada pela própria politica de Getúlio Vargas que, três anos mais tarde, outorgou uma nova constituição, onde o federalismo foi praticamente banido do texto constitucional.

Por tais razões, conclui-se que o federalismo no Brasil, apesar de ser uma estrutura centenária, esta, desde o seu início sofreu problemas no que se refere à sua efetivação em decorrência das dificuldades politicas e econômicas que impediram que houvesse um exercício pleno dos representantes dos poderes locais e em nível federal, interferindo diretamente na dinâmica federativa no que se refere a desconcentração do poder, impedindo que as premissas básicas do sistema, unidade e diversidade, existissem na prática.

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formação do mestre: nietzsche e direito contemporâneo

Marisa Forghieri1

Resumo

Os programas de Pós-Graduação Stricto Sensu têm o estágio de docência como exercício fundamental na formação dos mestres. Para além de saberes específicos da pesquisa desenvolvida em sua área de conhecimento, o mestre deverá aprimorar seu estilo e sua criatividade como professor e autor. A criação da disciplina “Estágio de Docência” no Programa de Pós-Graduação em Direito Empresarial da Faculdade de Direito Milton Campos tem por objetivos favorecer a performance profissional do professor, bem como aprimorar seu estilo, seu senso crítico e incrementar a produção intelectual qualificada. O horizonte hermenêutico nietzschiano é oferecido como fundamento para as reflexões críticas e a busca do autoconhecimento. Para além de fundamentos teóricos, também são desenvolvidos exercícios de percepção; a imersão em atividades artísticas e culturais propicia uma nova perspectiva para a produção de saberes. A presente investigação é parte de uma pesquisa maior, Pós-Doutorado em andamento na Universidade de São Paulo.

Palavras-chave

Formação de Mestres; Nietzsche; Direito Contemporâneo.

Abstract

Post-graduate programs have teaching assistantship as a crucial discipline in the formation of new professors. In addition to specific knowledge of the research

1 Psicóloga clínica e gestora, com Pós-Doutorado em andamento na Universidade de São Paulo/IPUSP. Pesquisadora dos processos de autoconhecimento e performance profissional à luz do pensamento nietzschiano; Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP, Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela USP, Professora Titular da Universidade Paulista e Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito Empresarial da Faculdade de Direito Milton Campos. A autora agradece o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG.

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conducted in their area of expertise, the new master will enhance his/her style and his/her creativity as a professor and as an author. The creation of the discipline “Teaching Internship” in the Graduate Program in Business Law, Milton Campos Law School aims to foster professor professional performance as well as enhance style, critical thinking and increase qualified intellectual production. The Nietzschean hermeneutical horizon is offered as a basis for critical reflection and the search for self-know ledge. Beyond theoretical foundations, awareness exercises are also developed; immersion in artistic and cultural activities provides a new perspective to the production of legal knowledge. This research is part of a larger Postdoctoral research at the University of São Paulo (USP).

Key words

Professor Training; Nietzsche; Contemporary law.

1. a formação do mestre

A formação de um mestre, pa r a além do conjunto de conhecimentos e habilidades específicos de sua área, envolve a criação de um pesquisador – alguém capaz de produzir novos saberes, de enfrentar, também, o desafio de devassar o futuro; ou seja, a partir daquilo que se conhece, pressentir as tendências que, de alguma forma, constituirão os saberes de amanhã. Para tal, o conhecimento formal e a racionalidade são insuficientes – é necessário, também, mergulhar no universo da percepção e da intuição.

Intuir, entretanto, não si g nifica negar aquilo que se sabe. Ao contrário, a intuição permite interrogar a consciência científica para ampliá-la. Nesse sentido, a formação do mestre pode incluir exercícios de percepção. A arte deve se tornar meio e anzol de um novo tipo de conhecimento: o que não renega, condena ou divide, mas proclama um sagrado sim à vida. Como pensava Nietzsche (1885: 45), “para o jogo da criação é preciso dizer um sagrado sim”. Ou seja, assim como o mestre de artes marciais , ou o mestre de cerimônias do Hip Hop, o mestre acadêmico deve ser capaz de promover a criação de novos saberes. E “criar para si a liberdade de novas criações”. (NIETZSCHE, 1885, p. 44)

Ao mestre acadêmico cabe i m ergir no mundo da arte e da cultura com a mesma sede de saber que dedica às ciências, por assim dizer.

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A arte afirma a vida em seu conjunto e essa intensificação vital é capaz de es-tabelecer um novo instrumento de investigação, ao lado de outros instrumentos.

2. do caminho da pesquisa

Meu interesse e minhas investigações sobre o pensamento nietzscheano e o autoconhecimento tiveram início em 1990, como supervisora de uma oficina de criatividade oferecida no último ano de um curso de graduação em Psicologia2. Sobre essa prática se fundaram minha Dissertação de Mestrado3 e minha Tese de Doutorado4.

Em 2007, como gestora de uma universidade incorporada por uma rede internacional de educação superior5, realizei uma reestruturação dos cursos de pós-graduação lato sensu, incluindo os programas da área de negócios (MBA). A partir de minha experiência como gestora, professora e pesquisadora, bem como das reflexões empreendidas com alunos e colegas de profissão, compreendi a necessidade de criar uma disciplina que explorasse o autoconhecimento como instrumento estratégico no desenvolvimento da performance profissional.

Em 2008 a disciplina foi criada6 e eu passei a ministrá-la em um curso de especialização na área de negócios7. Para além dos autores que reafirmam a importância do autoconhecimento na performance profissional, a disciplina foi fundada a partir das idéias de Nietzsche, que oferece a experiência estética como caminho genuíno para o conhecimento de si. Devemos, portanto, “estar preparados para a arte em geral pelo único verdadeiro caminho: a prática”. (NIETZSCHE, 1878, p. 173)

Em 2013 fui convidada a fazer parte do corpo docente de um Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu na área de Direito8, em Minas Gerais.

2 Oficina de Criatividade, Curso de Formação de Psicólogos da Universidade Paulista.3 Criatividade e Psicologia em Oficina. 1995. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Instituto

de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.4 Nietzsche e criação: divino devir. 2003. Tese (Doutorado em Psicologia), Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 5 Diretora de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade Anhembi Morumbi,

LaureateInternationalUniversities.6 Autoconhecimento e performance profissional.7 MBA em Recursos Humanos. 8 Programa de Mestrado em Direito Empresarial da Faculdade de Direito Milton Campos,

Nova Lima, MG.

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A disciplina que atualmente ministro, “Estágio de Docência”, é obrigatória em todos os programas recomendados pela CAPES, o que denota a importância dada à formação do professor pesquisador, nas mais diversas áreas do conhecimento.

Refletir sobre a função e o sentido de tal disciplina me levou a pensar que, para além do desenvolvimento rigoroso do tema eleito para sua pesquisa, o mestre deverá estar atento a si mesmo - ao aprimoramento de seu estilo e ao desenvolvimento de sua performance.

A disciplina “Estágio de Docência” se configura como um campo de experiência e reflexão sobre o autoconhecimento e a formação do mestre, tendo como fundamento o pensamento nietzschiano e como instrumentos os recursos expressivos (artísticos). O trabalho em cada aula é engendrado por um tema que se deseja pesquisar, a partir de diferentes linguagens. A resultante da experiência é analisada à luz do significado que adquire para o autor e para o grupo. Aliadas às aulas estão previstas diversas atividades culturais que incluem cinema, teatro, espetáculos de música e dança, além de exposições de artes plásticas.

Os recursos artísticos adotados buscam explorar as possibilidades de autoconhecimento a partir de uma linguagem metafórica. Compreender a linguagem artística e seus produtos como metáforas significa observar as semelhanças subentendidas entre o sentido próprio e o sentido figurado em arte; os sentidos são alterados a partir do observador, que reage à obra. A obra se constitui como livre representação estética, que pode adquirir diferentes sentidos a partir de diversos universos pessoais, distintos desejos, suspiros e vazios.

A disciplina é um convite para que se pesquise e experimente o conhecimento de si como devir, observando e questionando limites. Cada aluno, ao engendrar sua obra, pode estabelecer ecos e sentidos para os demais. A diferenciação ocorre a partir de diferentes misturas - de materiais, cores, posturas e impressões. As misturas também engenham conflitos, que se estabelecem como possibilidade de devassar novas compreensões.

Nesta investigação busco compreender os sentidos do processo de auto-conhecimento para cada um dos meus alunos, mestrandos. Tal pesquisa tem por objetivo aprofundar a reflexão sobre como o conhecimento de si e a imersão no mundo da cultura são relevantes para a performance profissional do professor pesquisador de direito contemporâneo.

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A investigação se desenvolve com movimentos de mão dupla: a partir da análise das atividades à luz do pensamento nietzschiano, bem como a partir dos engenhos criados, produtos que oferecem compreensões estéticas e pré-reflexivas sobre o fenômeno.

Desses movimentos busco um saber que se constitui, também, a partir do devir. O pensamento nietzschiano fornecerá a base teórica para que se possa interpretar os trabalhos realizados pelos alunos e refletir sobre o saber engendrado pelo devir.

3. nietzsche, criação e autoconhecimento

Andei por uma floresta, ao longo de uma água corrente até onde começava a gotejar dos rochedos, até onde escorria sobre os seixos e, pouco a pouco, o vale se estreitava, inofensivamente,para formar um arco de passagem. E a luz do meio-dia brincava silenciosa no escuro. (HÖLDERLlN, 1792, p. 68)

Muitos pensadores, de diferentes épocas, origens e formações dedicaram-se a pesquisar e interpretar o pensamento nietzschiano.

Esse interesse, que desafia o tempo, é renovado pela força que emana do conjunto da obra- denso, poético, abissal. Como uma obra de arte, interroga o expectador, inquietando-o.

Não é possível unificar as interpretações dos diversos e numerosos pesquisa-dores da obra de Nietzsche. E, nesse sentido, cabe acrescentar interpretações que se fundem no terreno da arte e possam produzir, por assim dizer, livres representações a partir de universos pessoais.

O pensamento nietzschiano está para além dos limites da razão, se entrelaça às vivências. Sua filosofia também é expressão de vivências genuínas e pessoais, envolvendo a experiência estética como forma de redenção e êxtase.

O caminho para se aproximar do pensamento nietzschiano perpassa o que somos, o que deixaremos de ser, o que seremos. O incerto que suspira em nós - o devir.

A racionalidade, como frio instrumento técnico, não é capaz de nomear a intensidade do que sentimos. Como pensava Nietzsche (1885, p.51), “há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria”.

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Nietzsche expõe a fragilidade da razão para apreender os fenômenos artís-ticos. A aparente necessidade de compreender tendências opostas como expres-sões de bem e mal, certo e errado deve, na experiência estética, ser suprimida pela possibilidade de alternância dos sentidos - os pólos se chocam e se sustentam, simultaneamente.

A arte trágica (NIETZSCHE, p. 1871) representa o conflito entre Apolo e Dionísio - expressa resistência ao sofrimento a partir da intensificação da vida.

É, também, no jogo entre o apolíneo e o dionisíaco que se encontra renovada justificativa para a atualidade do pensamento nietzschiano. O herói enfrenta o destino e conquista a liberdade de transgredir seus próprios limites. A intensificação da vida em condições extremas descarta os juízos que condenam ou renegam; proclama um sim à vida, em sua crua integridade.

A luta entre Apolo e Dionísio, que dá origem à arte trágica, também suprime a unilateralidade. A arte afirma a vida em seu conjunto e o fundo dionisíaco do mundo permite que o fenômeno da arte seja colocado no centro - a partir dele torna-se possível decifrar o mundo.

Nietzsche desafia o círculo da ciência (1871, p. 115) fazendo-o se abrir às seduções do acaso. Ele nos mostra que não há pensamento, filosofia ou ciência que escape de seu próprio autor, neles se encontram enxertados “não apenas a confissão espiritual, mas suas sutis memórias, tanto se assim desejou seu autor quanto se não se apercebeu disso” (1886, p. 21).

“O ser próprio procura também com os olhos dos sentidos, escuta também com os ouvidos do espírito”. (NIETZSCHE, 1885, p. 51)

A história monumental deve restituir os cumes do devir e, segundo Foucault, fazer aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam (1979, p. 37). Ele afirma que a história deve interrogar-se, interrogando a consciência científica - questionando as opiniões pré-concebidas acerca de tudo o que há de inquietante na pesquisa e de perigoso na descoberta.

Giacoia observa que a obra nietzschiana costuma ser dividida, na literatura secundária, em três fases, informando os limites de uma categorização dessa ordem. Tal periodização pode ter fins didáticos, mas Giacoia (2000, p. 15) observa que o próprio Nietzsche reconhece em sua obra “um centro comum de preocupação”.

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Com a mesma necessidade com que uma árvore dá seus frutos, crescem em nós os nossos pensamentos, nossos valores, nossos sins, e nãos e quandos e ses – aparentados e referidos todos eles e testemunhas de uma única vontade, de uma única saúde, de um único terreno, de um único sol. (NIETZSCHE, 1912, p.77)

Sol que se consome em fogo. A obra nietzschiana pode ser apreendida como um todo, sem, no entanto, pretender-se unificada.

Em “A origem da tragédia” (1871), Nietzsche expõe a fragilidade da ciência para apreender os fenômenos artísticos. Apolo e Dioniso podem ser compreendidos, para além da Mitologia, como forças polares que delimitam nossos conflitos e vazios. Apolo é luz que não vive sem as sombras de Dioniso.

A arte é capaz de proporcionar experiências dionisíacas, sem que se seja aniquilado por elas - possibilitando embriaguês sem perda da lucidez. O dionisíaco nietzschiano implica o apolíneo por ser, necessariamente, artístico. As relações que se estabelecem no interior de cada homem a partir do jogo estabelecido entre a pulsão dionisíaca e a apolínea também são descritas por Vattimo. Ele afirma que dionisíaco e apolíneo não definem apenas uma teoria da civilização e da cultura, mas também uma teoria da arte (1985, p. 18). A arte trágica representa o conflito entre Apoio e Dioniso; expressa resistência ao sofrimento a partir de uma intensificação da vida.

Nietzsche abre caminho para uma relação renovada com a classicidade, o que comporta uma “radical atitude crítica nos confrontos com o presente” (VATTIMO, 1985, p. 20). A transformadora noção de interpretação proposta por Nietzsche já aparece em “A origem da tragédia”; a partir do jogo estabelecido entre o apolíneo e o dionisíaco pode-se compreender a atualidade do pensamento nietzschiano.

A busca pelo aprofundamento da compreensão da ideia de retorno de uma cultura trágica a partir de outros textos nietzschianos – Sobre a Verdade e a Mentira em Sentido Extramoral e Considerações Intempestivas – também é proposta por Vattimo. Ele observa que os referidos escritos podem fornecer alguma indicação posterior - sem, todavia, apresentarem soluções definitivas para o problema (1985, p. 23).

A palavra Dioniso significa mais para Nietzsche, de acordo com interpretação de Müller-Lauter. Para ele a experiência dionisíaca deve permitir respirar na “mais

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monstruosa paixão e altitude” (1999, p.26). Um tal exercício requer uma saúde peculiar, que para além de perigosas escaladas, possibilite a aventura de percorrer os limites da alma. A experiência dionisíaca propõe a intensificação da vida em condições extremas.

A saúde pertence a quem tem sede na alma de percorrer com sua vida todo o horizonte dos valores e de quanto foi desejado até hoje, quem tem sede de circum-navegar as costas deste ideal “mediterrâneo”. (NIETZSCHE, 1882, p. 280)

A inesgotabilidade do fundo dionisíaco do mundo (FINK, 1983, p. 20) permite que o fenômeno da arte seja colocado no centro, a partir dele se torna possível decifrar o mundo. Não se trata mais de instaurar um juízo que divide, condena, renega, mas de proclamar um sim à vida.

A arte afirma a vida em seu conjunto. A luta entre Apoio e Dioniso, que dá origem à arte trágica, suprime a unilateralidade. Dois princípios antagônicos não dão lugar à reconciliação. A tensão que sustenta Apoio e Dioniso como forças polares justifica a existência e a magnitude de ambos. Tal tensão desafia o circulo da ciência (NIETZSCHE, 187, p. 115), fazendo-o abrir-se ao acaso, ao pensamento paradoxal, que percorre dois sentidos ao mesmo tempo.

O desejo de ultrapassar o próprio destino, enfrentando-o, leva os heróis trágicos a transgredirem os limites da existência, desafiando os valores estabelecidos. No pensamento nietzschiano os valores estabelecidos surgiram em algum momento, em algum lugar; novos valores podem ser estabelecidos a qualquer momento, em qualquer lugar. A realidade, eternamente mutante, só pode ser compreendida a partir do devir. E o devir desfaz o conjunto de normas, métodos e sistemas, lança o homem no vazio, obrigando-o a compreender a existência como experiência.

“O que há de grande no homem é ser ponte, e não meta. O que pode amar-se no homem, é ser uma transição e um ocaso.” (NIETZSCHE, 1885, p. 31)

A justificada necessidade de lançar a existência na correnteza turva e incerta do devir contrapõe-se à necessidade apolínea de luz e segurança suprema. Os contrastes mais perfeitos produzem a existência mais fecunda. A luta entre Apoio e Dioniso intensifica-se, desaguando em transmutação, criação. No pensamento

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nietzschiano o fenômeno da criação é considerado a partir de uma perspectiva nômade, a serviço da liberdade. As tramas de permanência do mundo, dos con-ceitos, das idéias, rasgam-se a partir das máximas que apresentam a transitoriedade de todos os fenômenos. O devir é proposto como imagem fundamental da criação. Destruição e criação se apresentam de forma justaposta, estabelecendo contornos e vazios. Para criar é necessário, por assim dizer, também morrer. Morte ampla, metafórica e parcial; a morte de nossas próprias cascas e seivas.

“Cada instante devora o precedente, cada nascimento é a morte de incontáveis seres, gerar, viver e morrer são uma unidade.” (NIETZSCHE, 1872, p. 45)

As três metamorfoses, anunciadas por Zaratustra em seu primeiro discurso (1885, p. 43), propõem infinitas mortes e renascimentos de aspectos e essências; observa-se o crescimento irregular, a intensificação da vida. As três metamorfoses também sugerem uma saga, através da qual só é possível libertar-se a partir de ações. Em cada etapa se observa aspectos decisivos para uma compreensão da existência criadora.

Como o espírito se torna camelo e o camelo, leão e o leão, por fim, criança. (...) “O que há de pesado?”, pergunta o espírito de suportação; e ajoelha como um camelo, e quer ficar bem carregado.

“O que há de pesado, ó heróis”, pergunta o espírito de suportação, “para que eu o tome sobre mim e minha força se alegre?”(...)

pesadíssimos fardos toma sobre si próprio o espírito de suportação; e tal como o camelo, que marcha carregado para o deserto, marcha ele para o seu próprio deserto.

Mas, no mais ermo dos desertos, dá-se a segunda metamorfose: ali o espírito torna-se leão, quer conquistar, como presa, a sua liberdade e ser senhor em seu próprio deserto. (...)

Qual o grande dragão, ao qual o espírito não quer mais chamar senhor nem deus?

“Tu deves” chama-se o grande dragão. Mas o espírito do leão diz: “eu quero”. (...)

Criar novos valores - isso também o leão ainda não pode fazer;

mas criar para si a liberdade de novas criações - isso a pujança do leão pode fazer. (...)

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Mas dizei, que poderá ainda fazer uma criança, que nem sequer pôde o leão? (...)

Inocência é a criança, e esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um movimento inicial, um sagrado dizer “sim”. Sim, meus irmãos, para o jogo da criação é preciso dizer um sagrado “sim”; o espírito, agora, quer a sua vontade, aquele que está perdido para o mundo conquista o seu mundo. (NIETZSCHE, 1885, p. 44)

A riqueza metafórica com que os movimentos são descritos permitem aproximações com a própria existência e incluem a possibilidade de observar em si tais transformações e tremores de terras. O espírito de suportação, para além de pesadíssimas cargas, carrega os fardos de um tipo de moral que requer o cumprimento de deveres. Mas a marcha para o próprio deserto, uma tal solitude parece engenhar o espaço necessário à transformação. O deserto como metáfora de vazio e de desterro pode ser capaz de inspirar uma salutar confrontação consigo mesmo. Pode inspirar, ainda, vontade de potência, dominação; o desejo de ser senhor em seu próprio deserto, enfim. Quando ocorre a segunda metamorfose observa-se a necessidade do estabelecimento de uma luta para a conquista da liberdade. Uma luta que requer força selvagem. Tal força, que não carrega fardos, é livre para se impor como vontade; para estender seus domínios. Criar para si a liberdade de novas criações talvez seja um exercício necessário e uma luta diária. Nesse sentido, as metamorfoses se realizariam com possibilidades quase infinitas de reincidências. Mas tais fenômenos não seriam propriamente repetições, pois encontrariam no homem outro campo de experiência, profundamente alterado pelas metamorfoses anteriores. A ideia de eterno retorno aqui, é compreendida apenas como possibilidade transitória, a partir de observação de Nietzsche.

“(...) o mecanismo tem que valer para nós como hipótese imperfeita e apenas provisória” (NIETZSCHE, 1884, p. 117).

A hipótese de que existem ciclos a serem percorridos durante a existência não cristaliza os estados de passagem, tampouco estabelece compreensões definitivas sobre o fenômeno. As noções de inocência e esquecimento propostas pela terceira metamorfose são importantes para que as transformações também possam ser compreendidas em seu conjunto. Conjunto que traz como elemento um novo

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começo, um sim e um não - um jogo de criação e morte. Na conquista do próprio mundo afirma-se a vontade. Ela é o elemento através do qual a existência pode fluir.

A relação fluida entre percepção e racionalidade revela-se como linguagem da própria vida. O discurso de Zaratustra pode ser entendido como argumento racional e obra poética; requer a compreensão da vida como fenômeno estético.

A existência considerada como fenômeno estético sempre nos parece suportável e através da arte nos são dados o olho e a mão e, antes de mais nada, a boa consciência para poder criar, com nossos recursos, tal fenômeno. (NIETZSCHE, 188, p. 120)

Na confrontação entre o homem científico e o homem artístico proposta por Nietzsche, o homem artístico é o tipo superior em comparação com o lógico e o cientista. Para o homem artístico o questionamento e a destruição dos velhos limites impostos pela dureza dos conceitos pode ser uma resposta criadora da intuição. Nesse sentido, a criança como metáfora de inocência e esquecimento nega um certo tipo de tradição do conhecimento, que se constrói apenas a partir de uma criteriosa memorização e ordenação de saberes. Nietzsche considera que para ser artista, também “é necessário esquecer, ignorar!” (1882, p. 14). Para além do esquecimento, ele observa que é possível experimentar uma segunda inocência, que torna o homem mais infantil e, ao mesmo tempo mais refinado. O esquecimento como hábito elegante é capaz de inaugurar novas impressões, compreensões. Ao mesmo tempo, tal hábito enfurece os eruditos, que passam a ser entendidos como perspectivas, e podem até ser ignorados.

As três metamorfoses representam a modificação do homem a partir da morte de Deus, isto é, a transformação de sua alienação em uma liberdade criadora. Tal fenômeno põe em evidência o caráter lúdico e arriscado da existência, bem como problematiza todos os sistemas de interpretação do mundo que se fundam na metafísica.

A intensa transformação existencial proposta no primeiro discurso de Zaratustra é princípio fundamental de todos os outros discursos. Antes da morte de Deus, a natureza criadora do homem encontrava-se adormecida, prisioneira nas malhas de divinas certezas. Mas a morte de Deus não é uma enunciação

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metafísica da não existência de Deus; tem de ser tomada à letra como o anúncio de um acontecimento. Anunciar um acontecimento não significa, entretanto, demonstrar alguma coisa. Mas a simples anunciação é capaz de provocar outros acontecimentos. A anunciação da morte de Deus possibilita que se instaure uma profunda suspeita - de que não se pode mais considerar “uma verdade sem seus véus” (NIETZSCHE, 1882, p. 15). Há que se abrir espaço para as diversas e controversas interpretações da existência - espaço para a criação de novos sentidos.

Kaufmann (1974) considera que Nietzsche, como um profeta, anuncia a morte de Deus em Zaratustra. Tal anunciação pode ter origem em seu pressentimento de um desastre universal.

Apesar de alguns autores considerarem como principal premissa da filosofia de Nietzsche o ateísmo, Kaufmann observa que essa interpretação também pode ser considerada problemática. A anunciação da morte de Deus é uma tentativa para um diagnóstico da civilização contemporânea e não uma especulação filosófica de uma realidade última (1974, p. 100). Já Brusotti (2000, p. 25) observa que Nietzsche diferencia o Cristianismo que arruína a saúde, dirigido pelo ressentimento, e o Budismo que, “ao contrário, ele considera como uma forma de higiene racional” (2000, p. 25).

O ressentimento, que é em sumo grau prejudicial ao doente, está-lhe contra-indicado: infelizmente é sua inclinação mais natural. O conceito é de Buda, fisiologista profundo. Libertar a alma do ressentimento é o primeiro passo para a cura. (NIETZSCHE, 1885, p. 99).

Não existe uma casa ancestral para onde o homem pode retornar, o que existe é só o percurso – e o início de uma cultura pós-metafísica.

Como Heráclito (509 a.C.), Nietzsche procurou e investigou a si mesmo, de forma obstinada e incansável. E, encontrando inspiração em Nietzsche, buscamos o saber que nos ensinará a ser: o conhecimento de si.

4. horizonte hermenêutico e direito contemporâ-neo

A hermenêutica, “arte de explicar e meditar com base em um esforço interpreta-tivo”, sugere que o que é dito e vem ao nosso encontro no interior da tradição, não

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é imediatamente compreensível. Para Gadamer (2012) o modelo fundamental do método compreensivo é o diálogo, quando este envolve uma troca entre parceiros que buscam concordância sobre algum assunto. Entretanto, esse diálogo só pode ser considerado um método de conhecimento compreensivo entre os homens se nenhum dos parceiros tiver controle sobre esse jogo de comunicação, que deveria ser determinado pelo tema em questão.

Para Nietzsche tal possibilidade não existe; ou seja, não é possível estabelecer uma comunicação entre os homens onde nenhum dos parceiros tenha, mesmo que em alguns momentos, controle sobre esse diálogo. A condição humana também se traduz por vontade de poder. E “todo poder, em cada instante, extrai sua derradeira conseqüência”. (NIETZSCHE, 1886, p. 18)

A hermenêutica como método interpretativo do conhecimento deve envolver, também, um estudo sobre as paixões humanas - sobre a irracionalidade de nossos desejos, que se entrelaçam e se enroscam às nossas mais interessantes e elevadas interpretações. O autoconhecimento, portanto, deve ser exercício fundamental e diário para edificar qualquer interpretação.

As interpretações no direito contemporâneo não podem escapar das distintas identidades de seus autores - envolvem pensamento crítico e emancipatório. As questões relativas ao sentido de uma interpretação e aos valores a ela atri-buídos necessitam de contínua análise para que se compreenda, para além da interpretação, aquilo que seu autor procurou afirmar como vontade de potência – o conhecimento ou o desconhecimento de si mesmo.

“É necessária muita força para poder viver e para esquecer, na medida em que viver e ser injusto são uma coisa só. (NIETZSCHE, 1873, p. 30)“

É nesse horizonte hermenêutico que Nietzsche articula sua hipótese global de interpretação da existência, fundada no conceito de vontade de poder, sob o signo da certeza de que não há texto, apenas interpretação.

O horizonte hermenêutico deve ser crítico e libertador, para além de um tipo impessoal de vontade de poder, para além dos dogmas de uma moral que se pretende universal.

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5. conclusões

A formação de mestres em direito contemporâneo não deve excluir o exercício de investigar os fundamentos pessoais e intransferíveis sobre os quais se edificam as interpretações profissionais.

A disciplina de estudos necessária para a proposição e justificação do tema de pesquisa deverá se aliar a uma outra prática sistemática: a investigação de si mesmo. A história pessoal poderá ser compreendida e investigada como matriz original para o surgimento, desenvolvimento e lastro da pesquisa acadêmica.

A compreensão e desenvolvimento do tema de pesquisa a partir dessa perspectiva, nietzschiana, permitem que o trabalho engenhado se articule de forma original com a identidade do pesquisador e mestre. A afirmação de si também está refletida na apresentação e justificação da pesquisa.

O estabelecimento de novos paradigmas para o surgimento de produção intelectual qualificada permite que se compreenda a formação do mestre de maneira mais ampla, valorizando os exercícios de percepção, a experiência artística e a imersão no mundo da cultura, para além da necessária erudição em direito contemporâneo.

Não há interpretação que escape daquilo que somos, ou ainda, “daquilo que no fundo de nós, não podemos ensinar”. (NIETZSCHE, 1886, p. 172)

A educação deve mostrar, como propõe Morin (2000), que não há co-nhecimento que não esteja, em algum grau, ameaçado pelo erro e pela ilusão. O conhecimento não é um espelho das coisas do mundo externo. O desenvolvimento da inteligência é inseparável do mundo da afetividade, isto é, da curiosidade, da paixão, que por sua vez, são a mola da pesquisa filosófica ou científica.

A educação do mestre deve libertá-lo do compromisso com certo tipo de tradição do conhecimento, aquele que se pretende neutro, imperecível e imparcial - separado da identidade e da história do autor.

“Desejamos que ele seja suficientemente formado para pensar em sua formação de modo restrito e até desdenhoso. (NIETZSCHE, 1872, p. 35)”

Assim falou Nietzsche.

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impactos da metáfora mecanicista da modernidade na teoria do ordenamento

jurídico na visão do positivismo jurídico

Alvaro de Azevedo Gonzaga1

Leonam Baesso da Silva Liziero2

Resumo

O artigo descreve algumas relações entre a concepção artificial do Estado na modernidade e a explicação do ordenamento jurídico sob o prisma do positivismo, com ênfase na teoria do ordenamento jurídico de Norberto Bobbio. Inicialmente é abordada a questão de como a modernidade rompeu com os paradigmas antigos e medievais de direito com o surgimento do Estado, um produto da criação racional humana. O Estado enquanto uma máquina é resultado da visão mecanicista de Thomas Hobbes, para o qual a exclusão de fontes estranhas ao direito do Estado era uma condição para a manutenção do poder soberano. A produção do direito seria dependente da autoridade pública. Nesse aspecto, o positivismo jurídico do Século XX, ao tratar de diversos aspectos do direito, aborda a teoria do ordenamento como um sistema de normas com algum vínculo entre elas. No caso do normativismo de Kelsen, formariam um sistema dinâmico de normas postas, vinculados pela hierarquia das autoridades as criaram, formando um ordenamento que deve ser uno, coerente e completo.

1 Pós-Doutorados na Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa e na Universidade de Coimbra. Doutor, mestre e graduado em Direito pela PUC-SP. Graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo USP. Professor concursado da Faculdade de Direito da PUC-SP, tanto na Graduação como no Pós-Graduação Strictu Sensu (Mestrado e Doutorado). Membro do Instituto Euro-Americano de Derecho Constitucional, na Condição de Membro Internacional. Ex-presidente do Instituto de Pesquisa, Formação e Difusão em Políticas Públicas e Sociais. Coordenador, autor e coautor de inúmeras obras e artigos publicados pelas principais editoras do país. Advogado. [email protected]

2 Doutorando e Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professor da Universidade Cândido Mendes – UCAM. Ex-bolsista do programa Bolsa Nota 10 da Faperj. Advogado. E-mail: [email protected].

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Palavras-chave

Ordenamento Jurídico; Modernidade; Juspositivismo.

Abstract

The paper describes some relationships between the artificial idea of the Modern State and the explanation of the Legal Order from the perspective of positivism , with emphasis on the Theory of Legal Order of Norberto Bobbio. Initially is discussed the matter of how modernity broke with the ancient and medieval paradigms of law with the emergence of the State , a product of rational human making. The State seen as a machine is the result of the mechanistic view of Thomas Hobbes, for which the exclusion of the foreign States sources was a condition for the maintenance of sovereign power . The production of the law would be dependent on public authority. In this respect, the legal positivism of the twentieth century, when dealing with many aspects of law, discusses the theory of the Legal Order as a system of norms with some bond between them. In the case of Kelsen’s normativism, would form a dynamic system of norms put, bound by hierarchy of creator authorities, forming a system which should be one, coherent and complete.

Key words

Legal Order; Modernity; Legal Positivism.

1. introdução

A modernidade inaugurou um novo mundo, construído sobre o antigo mo-delo do ser, inicialmente imanente e em momento posterior transcendente. Com as inovações modernas, o Estado-Leviatã hobbesiano emerge das profundezas oceânicas da racionalidade e surge como um constructo dotado de força e forma, sob a vontade do qual toda sociedade deve se conduzir. Este Estado, por suas características inerentes deste momento histórico não tão bem definido, se diferencia de todas as outras formas de organização políticas pretéritas e se torna modelo no qual todas as outras organizações políticas tenderão a se adaptar posteriormente.

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Inegável é a recepção da teoria Hobbesiana na construção do delineamento do Estado moderno, seja pela semelhança, seja pela oposição da proposta. A exemplo, a concepção de muitos teóricos do Direito que consideram que o monopólio de produção normativa por um núcleo de poder político estatal. Essa perspectiva apresenta todo um sistema de regramentos para a redução das possibilidades e dessa forma tornar sua comunicação com o ambiente menos perene, e com isso, o sistema do direito produz normas que visam evitar uma anarquia probabilística.

Nesse diapasão, a função da norma pode ser entendida como a redução das expectativas comportamentais dos homens. Essa redução possibilita uma consolidação sistêmica, ao mesmo tempo em que fortalece a inclusão funcional do comportamento.

Isso posto, e sem querer incorrer em nenhuma espécie de sincretismo me-todológico temporal, faremos uma aproximação das bases teóricas da Constru- ção de Estado Hobbesianas os ensinamentos acerca da construção teórica das normas, na perspectiva jurídica disposta por Bobbio em sua Teoria Geral do Direito.

2. modernidade: o estado como artifício em hobbes

O Estado moderno, modelo paradigmático que somente repensado a partir da segunda metade Século XX, estrutura suas bases em três básicos elementos para a sua clássica teoria geral: um agrupamento humano, denominado de povo, à sujeição de uma soberana ordem positiva e política, em um determinado espaço físico. A ideia de Estado moderno, embora com suas teorias de legitimação política – entre as quais o contratualismo é o de maior destaque – rompe com o pluralismo jurídico do medievo e se torna o vértice do qual emana todos os poderes políticos e normativos. Por outro lado, o poder econômico na modernidade ganha uma autossuficiência e é parcialmente separado do poder político.

Conforme Jacques Chevallier desenvolve em sua obra, “O Estado Pós-mo-derno”, o Estado moderno apresenta características que o diferenciam de outras formas de organização políticas anteriores.3 Apesar de contrários entendimentos,

3 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Trad. de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009,p. 24

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trabalha-se aqui que o Estado é um modelo de organização política típica da modernidade europeia.

Inicialmente, o Estado é um agrupamento humano com elementos que permitam uma identificação em comum, uma nação. Ainda que diferentes em seu significado, as categorias de nação e de Estado são relacionadas, pois o Estado de certa maneira dá a forma a este grupo de pessoas.4 Este grupo habita um determinado espaço físico, o território, que em suas dimensões terrestres, marítimas e no Século XX, também aéreas, define o alcance da validade de cada ordem jurídica estatal.5

Se diferenciando das formas políticas anteriores, o Estado é caracterizado por ser uma abstração, uma figura de artificialidade, que destoa da integração com o cosmos dos antigos. O Estado concentra a identificação social da nação e se torna a referência simbólica.6 O Estado passa a deter o poder de forma perma- nente, independentemente da pessoa do governante; embora existisse uma identificação entre o Estado e o monarca, este sempre teria uma vida finita, enquanto o Estado se perpetuaria no tempo. Na teoria política, a imprescindibili- dade da perpetuação do Estado se observa em Maquiavel e Bodin anterior- mente a Hobbes.7

Com o Estado uma pessoa pública, a sociedade civil passa a se identificar como a esfera de interesses privados. Há uma separação entre o que é relativo a todos e o que é de cada um. Com isso, há uma transformação em relação à política medieval baseada em relações de cunho privatista. O Estado, a coisa pública, torna-se um assunto da politica, enquanto a esfera privada deve ser do interesse de cada um dentro da sociedade. Ainda que somente depois no liberalismo essa

4 “A pretensão de caracterizar o Estado moderno como Estado nacional baseou-se na relativa estabilidade obtida pela Europa no século XIX, com as fronteiras bem delimitadas e a nítida predominância de certas características nacionais em cada Estado. Daí a afirmação do princípio das nacionalidades, segundo a qual cada Nação deveria constituir um Estado.” (DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado 29 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.135).

5 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado, p.90. 6 “Simbolicamente, o Estado constitui mais que nunca um ponto de referência, indispensável

para que os indivíduos possam se situar no tempo e no espaço [...] O Estado aparece como o guardião e o garante da perenidade de um conjunto de tradições e de valores em torno dos quais cada um pode se reconhecer e identificar” (CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. p. 62.)

7 CHATELET, François. História das Ideias Políticas. Rio de janeiro: Zahar, 1985, p. 51

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separação fosse se acentuar, na emergência do Estado já havia sinais da concessão de certos direitos aos súditos para a manutenção do poder interno.

Outro ponto essencial que diferencia o Estado das demais organizações políticas é a concentração do poder de criação jurídica. Esta é uma característica interessantíssima: por meio do monopólio da força, o Estado a exerce por meio das formas jurídicas, ainda que em um primeiro momento no Estado absolutista, não estivesse submetido a ela em suas relações com a sociedade. O monopólio do direito estabelece que apenas o que for produzido pelo Estado é legitimo como direito; o que não for produzido pelo Estado ou de acordo com a vontade do Estado não pode ser considerado como jurídico, ao mesmo tempo, a concentra-ção do exercício da força na autoridade publica, retira quase que totalmente dos indivíduos a possiblidade de se autotutelar no caso de uma ofensa aos seus direitos: com isso, tanto a criação do direito pela atividade legiferante quanto sua execução necessitam da atuação estatal.

Por fim, o Estado moderno apresenta-se como um aparelho burocrático. A estruturação do Estado em órgãos e departamentos que executam suas funções refletem a modernidade na política: uma tentativa de organização baseada em hierarquia, visando a efetiva funcionalização do exercício do poder, por meio de funcionários remunerados. Inicialmente, os primeiros burocratas eram nobres a serviço do rei francês, que apesar da baixa remuneração, os compensava com certos privilégios. Nos Século XVII, era permitida a venda e compra de cargos da-queles que os detinham, chegando a ser compreendido como uma propriedade privada, com exceção dos cargos mais altos que tinham a indicação direta do rei. O exercício de um cargo público era uma forma de se tornar poderoso e conse-guir mais privilégios. Os cargos obedeciam a uma hierarquia e eram distribuídos em um critério funcional, como uma extensão mitigada do poder soberano.8 O Estado deveria funcionar perfeitamente de forma análoga a uma máquina.

A metáfora mecanicista na teoria do Estado emerge no pensamento de Hobbes.9 O Estado como máquina é um reflexo da realidade vivida a partir do Século XVII e aumentada no século seguinte. Como isso provoca um giro

8 CREVELD, Martin van. Ascensão e declínio do Estado. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 186.

9 DOUZINAS, Costas. O Fim dos Direitos Humanos. Trad. Luiza Araújo. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p.87.

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paradigmático nas noções de Estado, território ou mesmo de direito? Com a artificialidade do mundo moderno. O mundo pré-moderno era um mundo ontologicamente fora do sujeito.

Há na filosofia grega antiga a ideia de verdade no mundo que pode ser encontrada na perfeita conjugação entre a physis e o a ordem na polis. De acordo com Billier, “o pensamento grego, se dúvida como todo pensamento jurídico, é amplamente dominado pelo problema da relação a se pensar entre o direito positivo e a ideia de uma justiça perfeita”.10 A referência de construção de uma verdade que legitima um poder político na vida da polis. Na Idade Medieval, o ponto de referencia se desloca para a figura de Deus. A legitimação filosófica do direito encontra respaldo na teologia, que apontam para uma razão divina (Thomas de Aquino) ou do arbítrio divino (Ockham)

A construção do sistema tomista permite visualizar a ideia de legitimação de uma organização política. O direito positivo, aqui considerado o direito emitido pelo príncipe ou autoridade equivalente que seja a fonte administrativa e legislativa, tem sua validade enquanto não entrar em contradição com o direito natural. O direito natural nessa perspectiva tomista é a palavra do Criador reve-lada aos homens por meio do evangelho que por sua vez tinham seus intérpretes revelados – o clero. A verdade não revelada é a Lei eterna, ao mesmo tempo lei e cosmos, que se origina da razão divina.

A respeito da filosofia tomista, leciona Billier que “no grande modelo tomista, a razão é central, e sempre o leva sobre a vontade. Ou ainda: razão e vontade são apenas um, à imagem da Razão divina que não saberia querer contra sua Vontade.”11

Na modernidade do homem se torna o centro. Por trás desta mera afirma- ção, encontra-se o sentido primal da ontologia moderna: do indivíduo tudo se cria, ele é o intérprete do mundo e por ele tudo é tido e construído. A razão torna-se um paradigma de se pensar a realidade e consequentemente o Estado, que tem uma emergência em Maquiavel – a estabilidade da política e a “razão de Estado”,

10 BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. Trad. Maurício de Andrade. Barueri: Manole, 2005, p.35

11 BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. Trad. Maurício de Andrade. Barueri: Manole, 2005, p.127.

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uma visão de unidade do poder absolutista em Bodin, que se completa com a máquina perfeita hobbesiana. O pensamento de Hobbes rompe com o paradigma pré-moderno e inaugura na filosofia jurídica e política a forma mecânica de se pensar o Estado e o Direito.12

O constructo do indivíduo da leitura moderna é muito bem trabalhado por Hobbes. Apesar da solução absolutista mais tarde elaborada, a finalidade de toda a construção teórica é a salvaguarda do homem. O homem é sujeito de direitos naturais por causa de sua condição de ser homem, diferente de anteriores pensamentos como uma ordem do cosmo ou uma figura divina que lhe concedia direitos. Tal condição coloca todos os homens em igualdade neste estágio natural inicial hipotético, o estado de natureza.13 Nas palavras do autor:

A natureza deu a cada um direito a tudo; isso quer dizer que, num estado puramente natural, ou seja, antes que os homens se comprometessem por meio de convenções ou obrigações, era lícito cada um fazer o que quisesse, e contra quem julgasse cabível, e portanto possuir, usar e desfrutar tudo o que quisesse ou pudesse obter.14

Hobbes cria a hipótese do estado de natureza para explicar as razões que le- vam ao surgimento do Estado e que reforçam o argumento sobre sua legitimi-dade.15 Nesta teórica situação, Hobbes define dois conceitos essenciais que se

12 GOYARD-FABRE, Simone. Os Princípios Filosóficos do Direito Político Moderno. Trad.Irene Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 153.

13 “Se examinarmos os homens já adultos, e considerarmos como é frágil a moldura de nosso corpo humano (que, perecendo, faz também perecer toda a nossa força, vigor e mesmo sabedoria), e como é fácil até o mais fraco dos homens matar o mais forte, não há razão para que qualquer homem, confiando em sua própria força, deva se conceber feito por natureza superior a outrem. São iguais aqueles que podem fazer as coisas maiores (a saber: matar) podem fazer coisas iguais. Portanto, todos os homens são naturalmente iguais entre si; a desigualdade que hoje constatamos encontra sua origem na lei civil”. (HOBBES, Thomas. Do Cidadão. Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 29)

14 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 32.

15 “So the state of nature is the background, not just to his construction of the state, but also to his construction of the natural law in terms of which the state is justified. The law of nature is meant to apply in the state of nature; that is why they are both called ‘natural’ (that is, not civil, artificial).” (HARRISON, Ross. Hobbes, Locke and Confusion’s Masterpiece: Na Examination of Seventeenth Century Political Philosophy. New York: Cambridge University Press, 2002, p. 71

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completam na forja do constructo estatal: a lei natural e o direito natural, am- bos inerentes naturalmente ao homem por sua condição de homem.

Conceitua Hobbes a lei natural em Do Cidadão como “o ditame da reta razão no tocante àquelas coisas que, na medida de nossas capacidades, devemos fazer, ou omitir, a fim de assegurar a conservação da vida e das partes de nosso corpo”.16 Em Leviatã é definida por “um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem de fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder contribuir para melhor para preservá-la”17 Observa-se um sentido limitador da ideia da lei: a razão limita a ação humana tendente a prejudica-lo, ou seja, a atentar contra sua própria preservação. A lei natural sempre levará o homem à sua preservação.

O homem do estado de natureza hobbesiano é um sujeito de todos os direitos, concedidos por sua própria natureza humana, porque na sua toada animalesca, pode conseguir tudo o que conseguir conservar.18 Nesse estado de natureza, conforme a descrição da antropologia hobbesiana de Bernhardt, “o direito se reduz ao fato e é nisto que é natural, no campo insuperável das necessidades e das ações e realizações. Este fato é sempre o fato de um indivíduo, para o qual, contrariamente à percepção de Aristóteles, não existe a menor sociabilidade natural”.19 O homem como máquina é a base da “metafísica física” de Hobbes. Assim, “Hobbes transforma a cosmologia em uma antropologia e transfere o modo hierárquico do universo para os desejos humanos. Morte, a negação da natureza, é o mais natural de todos os fatos”.20

A ciência moderna era antagônica à percepção do mundo antigo e do medieval. O florescimento da razão permitiu conceber uma visão de alcance sem

16 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 38.

17 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p 79.18 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 78. 19 BERNHARDT, Jean. Hobbes. In: CHÂTELET, François. História da Filosofia: Ideias,

Doutrinas. Vol. 3: A Filosofia do Mundo Novo. Trad. Jorge Pontual. Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p;128.

20 DOUZINAS, Costas. O Fim dos Direitos Humanos. Trad. Luiza Araújo. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p.88.

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limites para o progresso da ciência.21 Dessa forma, o que está no mundo pode ser conhecido pela razão humana e explicado por meio da ciência. Hobbes nesse contexto, em sua antropologia desenvolvida no Leviatã, considera o homem como um ser totalmente físico. Significa dizer que toda sua essência é material e, portanto, passível de ser analisada e compreendida pela razão.22 Hobbes não aprofunda a ideia da consciência, considerando como tais apenas os que po- diam ser estudados e explicados cientificamente.

Nesse sentido, seu pessimismo antropológico permite a elaboração de uma hipótese em que sem o pode político reinaria a completa anarquia, pois o homem em seu estado natural teria direito de tudo o que é físico e que pudesse conservar pela sua força. Como a destruição da matéria representada pelo fenômeno da mortandade é o maior dos males, ainda que irracionalmente agissem, suas razões os levariam à celebração do Pacto de submissão. Tal como o homem, o pacto gera um ente abstrato, o Estado. Por sua vez, o Estado encontra sua legitimidade na proteção da vida do homem, ainda que para isso precise se necessário não conceber outros direitos correspondentes no estado de natureza. Segundo Hobbes, o Estado é “uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira como considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum.”23

O caráter abstrato do Estado concentra toda a identidade do grupo humano, servindo de referência simbólica de continuidade: O Estado, como o guardião da coisa pública, do interesse comum, da coesão ordeira de uma atomizada socie-dade, precisa se perpetuar no tempo para a garantia da estabilidade.24 Da mesma

21 “É precisamente em face dessa situação de conflito que vai se situar o trabalho filosófico do Século XVII. O discurso filosófico deve renovar-se: nos seus objetivos, nos seus objetos, no seu método. Ele deve integrar-se a nova imagem do mundo e do homem que , doravante, vai consolidar-se. Uma nova realidade cultural está presente: a ciência física que se exprime matematicamente, com a qual se deve contar, à qual se pode recorrer e que talvez também convenha conter suas ambições.” (CHÂTELET, François. Introdução Geral. In: CHÂTELET, François. História da Filosofia: Ideias, Doutrinas. Vol. 3: A Filosofia do Mundo Novo. 2 ed. Rio de Janeiro, 1981, p. 15.

22 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 388. 23 HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 170, p. 106.24 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Trad. de Marçal Justen Filho. Belo

Horizonte: Fórum, 2009,p. 25

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forma, a criação do direito, o instrumento ali de linguagem do poder, necessitava apresentar certa estabilidade em relação à sua perpetuidade para proporcionar a segurança jurídica que o poder publico precisava para a manutenção de ordem e que o poder privado – ali da emergente burguesia – reclamava para diminuir os riscos nas relações de mercado.

Temos em Hobbes uma fagulha do positivismo jurídico. Toda a lei emanada pelo Estado é uma lei válida e justa, pois, dentro de seus ilimitados poderes, o Estado não comete injustiça e sua validade deriva do pacto de submissão, independentemente do seu conteúdo, ainda que haja uma teleologia naturalista de se evitar a guerra na sociedade civil. Hobbes chama tais poderes de direitos da soberania por instituição. Entre os diversos poderes, um em especial é o de emitir as leis. O Estado detém o monopólio da produção jurídica e de sua aplicação, ou seja, da legítima violência. Segundo Hobbes, “o legislador é aquele que faz a lei. E só o Estado prescreve e ordenam a observância daquelas regras a que chamamos de leis, portanto o Estado é o único legislador.”25 Ainda que não haja aqui uma equivalência de conceitos – como em Kelsen no Século XX –, somente é direito o que fosse produzido pelo Estado e a violência somente por direito pode ser usada pelo Estado na aplicação das leis.

A partir de Hobbes, muitas outras teorias explicam o Estado, mas todas elas mantêm duas ideias centrais: 1) direitos naturais inerentes à condição humana; 2) monopólio da produção jurídica pelo Estado. O Liberalismo posteriormente aprimorará e transformará as ideias hobbesianas, mas essas dois pontos conti-nuam, ainda que adaptados a outras teorias. Dessas transformações posteriores, a fonte emissora do direito na atividade estatal é modificada no rompimento do paradigma da soberania moderna.

Sobre esse ponto, comenta Douzinas:

Todos os elementos da modernidade política e jurídica estão presentes no Leviatã: o indivíduo anterior à sociedade; os direitos naturais e posteriormente os direitos humanos baseados no reconhecimento do desejo da lei; o Soberano convencional, criado

25 HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 170, p. 162.

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à imagem do individuo livre, cujo direito estabelece o direito individual; o positivismo jurídico e a centralidade da vontade e do contrato. Acima de tudo, encontramos em Hobbes o vínculo interno entre desejo, violência e lei.26

Do soberano absolutista, o liberalismo transfere para a Constituição moderna a condição de validade do direito e dos atos do Estado. Esse fenômeno pode ser considerado como o constitucionalismo, que “proporciona garantias sólidas para o individuo, ao limitar explicitamente o governo; ele também proporciona procedimentos que estipulam como funções do governo devem ser executadas”.27 Ainda que o detentor da soberania seja outro dependendo do país, há a exigên- cia liberal de controle do poder político pelo direito, controle esse pela sub-missão do Poder soberano à uma norma e pela divisão do Poder soberano em funções (ou poderes), seja no modelo bipartido de Locke ou na tripartição de Montesquieu e em “O Federalista”.

O direito neste contexto deve ser emitido por uma autoridade funcional, mas com respeito à Constituição – ou uma lei fundamental se for o caso –, que por sua vez se destaca do grau de importância das outras normas porque é conforme ela que todas as leis e atos públicos devem ser feitos. Disso resulta também noção de que a atividade do Estado deve se pautar dentro da legalidade. A normatividade constitucional e a separação do Poder soberano completam uma concepção de Estado de Direito moderno, que ainda com muitas variantes.

Na modernidade, a positividade do direito é dependente da autoridade pú-blica funcionalmente competente para sua criação e aplicação. Só a autoridade, representando o Estado, pode exercer o poder soberano de criação do direito de acordo com as regras do direito. Apesar de ainda concebido como um objeto que pudesse ser cognoscível cientificamente, o direito moderno após o fenômeno constitucionalista provoca a ruptura do paradigma da soberania e apresenta características de sua autorreprodução, ou seja, seu caráter autopoiético como denomina Luhmann.

26 DOUZINAS, Costas. O Fim dos Direitos Humanos. Trad. Luiza Araújo. São Leopoldo: Unisinos, 2009,p. 92.

27 MACRIDIS, Roy C. Ideologias Políticas Contemporâneas. Brasília: Editora UnB, 1982, p. 50

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3. herança da modernidade: o estado complexo e o ordenamento jurídico sistêmico

No campo jurídico, a modernidade tornou a vida humana mais complexa no mundo fenomênico, exigindo assim uma organização minimamente sistema-tizada mais completa no que tange as relações jurídicas. O Estado, como vértice de referência, também ampliou seu alcance com a maior criação normativa para acom-panhar os anseios sociais que necessitam ser regulados. Além disso, o progresso da tecnologia na modernidade, colocando a ciência como paradigma de verdade, e a descoberta e colonização do Novo Mundo a partir do Século XVI, ampliam os horizontes e as possiblidades tanto ações dos homens como da perspectiva de Estado face ao mundo novo que se delineia, uma vez que o indivíduo lia o mundo e construía a realidade se pautando nas possibilidades de suas ações, agora com esse novo horizonte, a noção se mundo se forma pela percepção humana, sendo enriquecida não apenas no campo geográfico e histórico, como também no campo filosófico, cujo ápice se opera com o pensamento kantiano com sua “revolução copernicana do conhecimento”, ao despertar do sono dogmático em seus debates com Hume. Com isso, a ontologia sai do mundo e transfere-se ao su-jeito, consolidando o reino do indivíduo como um paradigma da modernidade.28

A vida moderna pretendia delimitar o conhecimento e facilitar a compre-ensão por meio da ciência. Luhmann ao contrário argumenta que a tecnocracia trouxe um exponencial quase incontrolável de possiblidades, o que dificulta o ato de conhecer.29 A modernidade destruiu a referência do sentido semântico,

28 Imanuel Kant desperta do sono dogmático graças a David Hume, no século XVIII, aquele em sua fase pré-critica da filosofia, e este em sua constante maneira cética de encarar as coisas. Hume, considerado “o mais engenhoso de todos os céticos”, fez com que Kant despertasse de seu sono dogmático. Lebrun (1993), sobre Kant, registrou um questionamento hipotético que Hume poderia ter feito a Kant: “Toda mudança necessita de uma causa?” ¬[...] eu não sei, desde sempre, que uma bola de bilhar que se acha em movimento deve ter recebido um impulso? . Para Hume, a proposta não é essa. O que ele realmente propõe é: “O problema é que não é essa a questão: o que lhe pergunto é se a simples noção de “movimento da bola” envolve já a de ‘impulso’, e se, por mero raciocínio, antes de qualquer experiência, você poderia descobrir está contido naquela”. (LEBRUN, Gérard. Sobre Kant. Editora Iluminuras Org. Rubens Rodrigues Torres Filho - Trad. José Oscar Almeida Moraes e Maria Regina Avelar Coelho da Rocha e Rubens Rodrigues Torres Filho, p. 9.)

29 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo Procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1980, p. 39.

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provocando uma desordem de significados, já que a subjetividade levou cada vez mais à perda formação de uma experiência independente e atomizada.

Para a teoria dos sistemas, por exemplo, o mundo é o problema dos sistemas, cuja complexidade leva à necessidade do estabelecimento de resoluções de conflitos entre sistemas no quanto a suas transformações no tempo. Por sua vez a contingência aponta diferentes caminhos que as expectativas poderiam prever, levando à necessidade de se assumir riscos frente aos desapontamentos. 30

A ideia de sistema é um dos grandes problemas que envolvem o estudo dos fundamentos de direito. O direito trabalha com a ideia de sistema, seja envolvendo ele próprio, seja envolvendo outros sistemas, integrando-se ou isolando-se. Para isso, é preciso que sejam feitas algumas considerações acerca do termo sistema.

O termo sistema surge no século XVII, com a música, ligado à teoria da har-monia, em seu estudo combinatório de tons. Embora não haja a elaboração de uma teoria dos sistemas na música, é nela que se começa a usar o termo. Embora Savigny, em sua bibliografia, faça algumas considerações históricas nas quais vislumbra a existência dos sistemas, a exemplo da organização da polis romana, não é possível as aceitar, uma vez que o termo sistema não existia na época – como já dissemos.

No direito, o sistema começa a ser visto a partir do século XVI ou XVII, e, consistentemente, no século XIX. Para compreendermos o surgimento do termo sistema, seja na música, seja no direito, ou em qualquer outra ciência, é necessário remontarmos a alguns elementos históricos.

A antiguidade grega não tinha, em sua organização, um sistema propriamente dito. Os sofistas não possuíam, em suas argumentações, regras gerais ou um método organizado, a fim de justificar seu pensamento. Não muito diferentes, os pré-socráticos e os socráticos, em suas argumentações, não tinham um argumento sistemático e organizado – Platão, em sua fase média, na obra A República, utiliza argumentos dialéticos em sua retórica que visam justificar sua teoria sobre a justiça, mas, em momento algum, seus argumentos são postos de maneira a se extrair regras gerais e seguras. Aristóteles, em sua Tópica, como assevera Viehweg,

30 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo Procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1980p. 40.

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apresenta uma técnica de pensar por problemas, desenvolvida pela retórica (Theodor Viehweg, Tópica e Jurisprudência, p. 17). A maior crítica sistêmica a esse modo de pensar consiste em não existirem bases seguras de atuação, pois existe a possibilidade de oferecer sempre uma nova categoria e uma nova solução em cada caso, extraindo-se dessa critica que o difícil é oferecer uma solução a um determinado caso com o menor número de opções possíveis.

Em Roma não tivemos sistema também. As concatenações proposicionais não tinham rigor à luz do que se pensou a respeito de sistema. Entendiam os romanos que um rigor de organização criaria uma rigidez perigosa para eles.

A Idade Média , ao contrário de ser a “Idade das Trevas” como muitos dizem, no que tange ao pensamento filosófico, é muito importante no que concerne à teoria dos sistemas, uma vez que oferece novos elementos, como será visto.31 Nessa época, começa-se a criar opções, nasce a dogmaticidade, ou seja, não se usará para a análise de qualquer questão apenas a retórica, mas se partirá de pontos de estudos. Aqui, começa a ser elaborada a exegese bíblica, apresentada de forma diferente dos antigos; uma argumentação nova, que busca a concordância, discutindo o dogma e visando pensar os textos de maneira ordenada. É importante dizer que partir de dogmas introduz um topos (lugar comum) para a análise; isso garante, ao menos, uma segurança e o início de uma ordenação do pensamento a fim de se chegar aos dogmas. O exemplo que citamos de dogmaticidade consistiria em argumentar a inserção de um inciso no artigo 5º da Constituição Federal Brasileira, que, a juízo de alguns, não teria supedâneo para constar nesse rol de Direitos e Garantias Fundamentais. Ocorre, entretanto, que mudamos o modo de ver a questão, apresentando-se o inciso sob um ponto de vista que abriga o referido inciso no capítulo constitucional em comento, e, com isso, o dogma que ora acreditamos seria prestigiado. Mesmo com esse inicio de organização, não podemos falar em sistema, primeiro porque o termo não havia surgido, segundo porque, ao encontrar ambiguidades, não se buscava mais um estudo analítico, mas sim dialético, que não obedece a uma ordem metódica.

Na idade Moderna, podemos destacar dois pontos importantes para nossa análise: o primeiro é o elemento racional, que ganha força nessa época, e o

31 Destaca-se nesse contexto a Suma Teológica de Thomas de Aquino. Embora tal obra tenha um início de organização sistêmica, não pode ser considerada como tal, uma vez que surge no medievo e por não existir o termo sistema como já dissemos.

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segundo é o início do aparecimento do termo sistema. O uso pela primeira vez com propósito concreto veio com a Teoria da harmonia na música – essa teoria (dos sistemas) se espalha em várias ciências. No direito, tem início a consolidação das leis em algumas regiões europeias, e, posteriormente, são criadas ordenações que iniciam a organização do direito, criando uma base para essa nova percepção sistemática que surge nesse momento.

É o pensador Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646 —1716) quem começa a pensar sobre o método jurídico, ao escrever uma dissertação em 1667 que versava sobre “um novo método para aprender e ensinar a jurisprudência”. Nessa obra em comento, Leibniz traz a ideia de algoritmo, que consiste em uma sequência finita de instruções bem definidas e não ambíguas, cada uma das quais podendo ser executada num período de tempo finito e com uma quantidade de esforço finita. Nesse momento, o pensamento filosófico moderno começa a partir de raciocínios condicionais a exemplo da desvinculação do direito natural da vontade divina em Grotius32, Jean Jacques Rousseau, com seus raciocínios hipotéticos condicionais33, e Thomas Hobbes, com a proposta de Estado de Natureza Beligerante, em seu Leviatã34, entre outros. No direito, vemos também um esforço em pensá-lo como produto de uma abstração, que visa reconstruí-lo racionalmente e universalmente até chegar ao seu real, sendo assim, temos, a partir de então, um direito produto da razão – tal direito ficou conhecido como jusnaturalismo racional ou jusracionalismo.

No direito, Samuel Pufendorf (1632 - 1694) desenvolve seu pensamento captando um pouco do que dispuseram alguns pensadores de sua época, para apresentar sua teoria geral do direito. Pufendorf pensa o direito de uma maneira geral e começa a propô-lo como sistemático35. Cria uma ética social apartada

32 A dicotomia entre direito natural e direito divino como ordens emitidas de fontes diversas é um pressuposto tomado por Grotius para dar sentido à racionalização imutável e absoluta do direito natural. Conforme o jurista holandês, no início de seu “Direito da Guerra e da Paz”, “o direito natural nos é ditado pela razão que nos leva a conhecer que uma ação, dependendo se é ou não conforme à natureza racional, é afetada ou não pela deformidade moral ou por e necessidade moral e que, em decorrência, Deus, o autor da natureza, a proíbe ou a ou a ordena”. (GROTIUS, Hugo. O Direito da Guerra e da Paz. Ijuí: Unijuí, 2007,p. 81).

33 ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a Origem da Desigualdade. p. 24334 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 78. 35 “In respect to their authors laws can be divided into divine and human,the divine being again

divisible, on the score of promulgation, into natural, or general, and positive, or special.12

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de uma ética religiosa, buscando a pedra angular para fundamentar seu sistema. Propõe uma resposta que equaliza seu sistema com o pensamento de Hugo Grotius e Tomás Hobbes, acreditando na conjugação de dois elementos – na sociabilidade do homem (socialitas), segundo Grotius, e na beligerância deste (imbecillitas), segundo Hobbes; ou seja, para Pufendorf, sua pedra angular baseia-se no seguinte: O homem é um ser humano sociável, mas imbecil, e deste modo, entende que é a imbecilidade (beligerância) que provoca a sociabilidade no Estado de Natureza humano. Encontram-se diversos problemas e críticas nessa teoria exposta por Pufendof, como ser este pensador analítico e aberto, e apresentar um direito mutável e imutável, ou, ainda, o direito não poder ser fundamentado por uma revolução fruto de rebeldia (imbecillitas) ou carregada de um projeto fundamental (socialitas). Entretanto, o importante é destacar que Pufendorf apresentou a primeira Teoria Geral do Direito até então.

No campo do direito se verifica que a sistematicidade envolve o estudo do ordenamento jurídico. Portanto as ideias de sistema e de ordenamento não se confundem. Todavia, como recorda Bobbio36, o termo no idioma inglês para ordenamento é system, o que pode gerar alguma confusão ao estudante, uma vez que todo sistema de normas é um ordenamento, mas nem todo ordenamento é um sistema.

Com isso, a estrutura do direito moderno é compreendida com base na ideia de sistema dentro de um ordenamento. Bobbio identifica três caracteres que são atribuídos a ela: a unidade, a coerência e a completude.37

3.1. unidade do ordenamento jurídico

A unidade trata do problema do ordenamento jurídico como um sistema único, que precisa ser composto em graus de hierarquia normativa. Os ordena-

Every human law is civil. Now as to the subject-matter, some things manifestly harmonize with the very conditions of human nature as such, and flow from it; and some arise from the free choice alone of the legislator, as harmonizing especially with a definite status of men. Of these two classes the former are called natural, the latter positive.” (PUFENDORF, Samuel. Two Books of the Elements of Universal Jurisprudence. Trad. William Oldfather. Indianapolis: Liberty Fund, 2009, 243.)

36 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 198.

37 Idem.

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mentos jurídicos modernos são complexos: significa dizer que as normas têm diversas fontes. De acordo com Bobbio, “a complexidade de um ordenamento jurídico deriva, pois, das fontes das quais afluem regras de conduta; em última ana- lise, do fato de que essas regras tem diferentes proveniências e passam a existir (ou seja, adquirem validade) partindo dos pontos mais distantes.”38 Neste caso, um órgão do poder Estatal, o único legitimo a produzir o direito, pode delegar a outros entes o poder de criação jurídica, em razão da impossibilidade física que isso demandaria. Ou ainda, receber normas anteriormente existentes de outros ordenamentos.

Se as ações do Estado são muitas, e precisa operar dentro da legalidade, então é necessário que a Administração Pública tenha certo poder regulamentar, ainda que deva ser sempre derivado e subordinado às leis emanadas pelo poder legislativo. Ordenamentos muito primitivos trabalhariam com o modelo envolvendo legislador e sujeitos, mas os complexos necessitam de uma cadeia muito maior entre essas duas figuras. Portanto, cada ação do Estado deve ser pautada numa lei, mas ao mesmo tempo, cria normas regulamentares, hierarquicamente inferiores a essa lei, pois a execução das atividades estatais não pode ficar dependente de leis que apenas ditem os preceitos gerais: o detalhamento é dado pelo poder regulamentar de cada órgão responsável pelo cumprimento de determinada ação dentro desta função. Ainda sim, em uma cadeia hierárquica, todas essas normas devem fazer parte de um mesmo ordenamento.

Também a complexidade do ordenamento jurídica se dá pela integração realizada entre as fontes do direito que não são produzidas diretamente pela ação do legislador, mas que integram o ordenamento. No caso do direito positivo, Bobbio exemplifica como o costume.39 O costume, sem entrar em grandes detalhes, é considerado uma fonte do direito, pois é a geração espontânea de atos dotados de obrigatoriedade, ainda que seu sentido deva ser subalterno ao da lei. A ascensão da lei a uma categoria de fonte do direito dentro de um ordenamento jurídico acima do costume é uma consequência da modernidade jurídica, cuja unificação legal foi necessária para a consolidação das leis dentro do emergente

38 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, 190. 39 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, 190.

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Estado moderno. A subordinação do costume à lei já era presente em teorias que procuravam legitimar o Estado absolutista, como as de Jean Bodin e no já citado Thomas Hobbes.

Dentro ainda dessa ideia de unidade, o direito positivo moderno foi construído buscando uma legitimação em direitos naturais, principalmente no que se refere ao racionalismo. Nesse caso, o direito positivo teria uma finalidade – a preser-vação desses direitos naturais – e formaria com esse direito natural um sistema. A unidade que o direito explicado pelo jusnaturalismo é uma unidade material. A ordem jurídica seria formada por uma unidade de normas, concatenadas em uma relação lógica, da inferior para a superior, da mais específica para uma mais geral. A relação entre essas normas é uma relação de cunho material, porque sua condição de validade depende de uma justificativa no conteúdo de uma norma superior. O direito explicado por correntes jusnaturalistas, a moral, a ética, a religião etc., são exemplos de ordenamentos cuja unidade é substancial. A esses ordenamentos, Kelsen nomeou como ordenamentos estáticos. Segundo o autor, as normas de um ordenamento estático são consideradas como válidas “por força de seu conteúdo: porque a sua validade pode ser reconduzida a uma norma a cujo conteúdo pode ser subsumido o conteúdo das normas que formam o ordenamento, como o particular ao geral”.40

A unidade de um ordenamento também pode ser de caráter formal, no qual as normas se relacionam numa hierarquia em razão da forma como são postas. Explica Billier que “o dever-ser das normas jurídicas no sistema de Kelsen é dotado de significação objetiva de um ato de direito,[...]. Essa significação é puramente formal, porque é relativa exclusivamente ao modo de criação das normas jurídicas”.41 Nesse caso, independentemente do conteúdo, as normas são postas por uma autoridade maior que, delega a menores o poder de criação normativa.

O que definirá realmente a posição da norma dentro de um ordenamento não é o quão geral a norma for e sim a autoridade que criou a norma, em uma cadeia lógica que remete à autoridade que instituiu direta ou indiretamente,

40 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.218

41 BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. Trad. Maurício de Andrade. Barueri: Manole, 2005, p. 208.

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toda a ordem. Kelsen designou esse tipo de ordenamento como dinâmico.42 O direito, segundo o autor, é um ordenamento do tipo dinâmico. Em sua definição de validade de uma ordem jurídica, Kelsen explica:

Uma ordem jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu conteúdo pode ser deduzido pela via de um raciocínio lógico de uma norma fundamental pressuposta, mas por uma forma determinada – em última análise, por uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta. Por isso, e somente por isso, pertence ela à ordem jurídica cujas normas são criadas de conformidade com esta norma fundamental. Por isso, todo e qualquer conteúdo pode ser Direito.43

E qual seria a explicação epistemológica para a unidade do ordenamento? A hipótese da norma fundamental. A norma fundamental fundamenta um ordenamento por completo, ao mesmo tempo em que fecha o sistema normativo. De acordo com a explicação de Bobbio, “todo ordenamento tem uma norma fun-damental. É essa norma fundamental que dá unidade a todas as outras normas.[...] A norma fundamental é o termo unificador das normas que compõem um ordenamento jurídico”44. No caso de ordenamentos estáticos, a norma fundamental seria aquela que abrangesse o conteúdo mais geral possível, o maior dos deveres ou a principal finalidade, que vincula todo o conteúdo. De acordo com a lição de Morrison, “as normas jurídicas recebem sua validade de normas mais elevadas e gerais até que se chega a um ponto em que nos detemos: nesse ponto nos deparamos com o que Kelsen chama de norma básica ou Grundnorm, que confere validade a toda a ordem jurídica.”45

Em autores como Immanuel Kant, que projeta uma fundamentação da mo-ral, o direito tem uma finalidade maior que é a de realizar a coexistência entre os arbítrios, ou seja, o de assegurar a liberdade individual de cada um, que por sua vez é derivada do agir de acordo com o imperativo categórico. Alexy classifica

42 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.219

43 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.221.

44 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 200-201. 45 MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito: Dos Gregos ao Pós-Modernismo. São Paulo:

Martins Fontes 2012, p. 397.

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essa hipótese kantiana como “norma fundamental normativa”.46 Para o autor, o imperativo categórico kantiano é “uma norma que precede as leis positivas e que fundamenta não apenas a autorização do legislador para promulga-las, mas também, por conseguinte, sua validade. [...] Trata-se, portanto, de uma fun-damentação jusracional ou jusnatural da validade do direito positivo”47

3.2. coerência do ordenamento jurídico

O ordenamento jurídico além de ser uno, deve ser coerente. Este é um ponto também de crucial importância no estudo do ordenamento jurídico sob o prisma do positivismo jurídico. Ao se estabelecer uma característica de unidade, o ordenamento é formado por uma relação hierárquica entre as diversas normas, que vão se vinculando na menos geral para a mais geral, de acordo com o procedimento de criação e a autoridade que a criou. Portanto, uma lei infraconstitucional não é meramente assim designada por ser mais específica que a Constituição, mas também porque seu procedimento de criação e a auto- ridade são diferentes. Nesse caso, as leis são criadas sempre dentro de um procedimento estabelecido constitucionalmente, ou ainda, de acordo com a forma que a Constituição estabelecer.

Para ser uno e logo ter todas as suas normas vinculadas sob uma norma fundamental, essas normas não podem estar em contradição umas com as outras. Essa contradição é rejeitada pelo positivismo jurídico. Então, a coerência depende da negação da possibilidade de validade de duas normas contraditó- rias, incompatíveis entre si. Em outras palavras, um ordenamento jurídico deve ser coerente e para isso deve eliminar as antinomias.

Segundo Tércio Sampaio Ferraz Junior, uma antinomia jurídica é “a oposi- ção que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emana-das de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo”.48

46 ALEXY, Robert. Conceito e Validade do Direito. Trad. Gercélia Mendes. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p.139.

47 ALEXY, Robert. Conceito e Validade do Direito. trad. Gercélia Mendes. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p 139

48 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão e Dominação. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 212.

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Bobbio explica uma forma interessante de se reconhecer a existência de uma antinomia.49 Se há uma norma que disponha de uma obrigação de realizar uma ação a, cujo símbolo pode ser dado por Oa, então as formas contrárias a ela podem ser de três tipos: - Oa (uma não-obrigação de realizar a como uma permissão de não realizar a); O-a (uma obrigação de não realizar a como a proibição de realizar a); -O-a (uma não-obrigação de não realizar a como a permissão de realizar de realizar a).

Para a eliminação as antinomias do ordenamento jurídico, existem os três critérios tradicionalmente estudados: o critério hierárquico, o critério de especialidade e o critério cronológico.

O critério hierárquico determina que uma norma de grau superior prevalece sobre aquela de grau inferior. Nesse caso, uma norma para ser superior não é apenas mais genérica, mas sim porque foi estabelecida por uma autoridade superior.

O critério de especialidade diz que as normas que tratam de determinada matéria em especial devem prevalecer quando em conflito com aquela que trata de uma forma mais geral.

O critério cronológico determina que as normas mais recentes devem prevalecer sobre as anteriores.

Todavia, esses três critérios não são capazes de resolver o problema da solução de antinomias, o que gerou o estabelecimento de metacritérios para sanar tais contradições, como o conflito entre critérios, em que haverá casos nos quais existem dois critérios para sanar a antinomia, mas que levam a resultados diferentes.50

Um conflito entre os critérios hierárquico e cronológico acontece quando há uma norma superior e mais antiga em conflito com uma norma inferior mais recente. Geralmente a doutrina reconhece a prevalência do critério hierárquico. Até mesmo porque, ainda que uma norma seja mais recente no ordenamento

49 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 203.

50 BOBBIO, Norberto. BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 252.

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jurídico e que em um primeiro momento prevaleceria sobre a mais antiga em caso de contradição, seria ilógico desconsiderar a hierarquia normativa, da qual depende a unidade do sistema. Nesse caso, uma sentença pode ser mais recente que uma lei, mas hierarquicamente a lei é superior, ainda que mais antiga. Uma sentença e uma lei podem até ser mais recentes que a Constituição do Estado, mas seria incongruente que em contradição elas prevalecessem, além de se colocar em risco a estrutura do ordenamento.

Entre o critério de especialidade e o cronológico deve prevalecer o de especialidade. Desta forma, nos casos em que houver um conflito entre uma norma especial anterior e uma norma geral mais nova, deve ainda prevalecer a que trata do assunto de forma mais específica.

Por fim, entre o critério hierárquico e o de especialidade, a solução não é tão imediata, dependendo muito da experiência concreta. Neste caso, há um conflito entre dois critérios mais fortes que o critério cronológico. Nesse caso, como leciona Bobbio, “pode-se recorrer ao critério fraco, o cronológico, como critério subsidiário para estabelecer a prevalência de um ou outro dos critérios fortes”.51 Todavia o autor reconhece que

Teoricamente, deveria prevalecer o critério hierárquico: caso se admitisse o principio e que um lei ordinária possa derrogar os princípios constitucionais, que são normas generalíssima, os princípios fundamentais de um ordenamento jurídico estariam destinados a ser rapidamente esvaziados de todo o conteúdo.52

Nessa segunda característica do ordenamento percebe-se que ele sempre tende a eliminar a norma contraditória. A ideia de um sistema fechado e de excelente funcionamento é latente no pensamento moderno. Assim como uma máquina que deve ter um bom funcionamento, o Estado (aqui como no sentido de ordenamento) não pode permitir duas normas contraditórias que atrapalham a sistematicidade.

51 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 206.

52 BOBBIO, Norberto. BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 253.

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3.3. completude do ordenamento jurídico

O tema da completude do ordenamento é demasiadamente extenso, então será abordado apenas de forma breve o que se relaciona com o tema do presente trabalho. O ordenamento jurídico, como uma ordem dinâmica, precisa também negar as chamadas “lacunas” do direito. Uma lacuna é uma incompletude dentro da ordem jurídica e contraria a ideia de totalidade que o direito moderno necessita.

Isso significa que sempre que se houver o caso de aparente ausência de normas para a aplicação em um caso, deve-se usar alguma norma do ordenamento para isso para isso53, como na atividade de um juiz, ao emitir uma sentença. Apenas um ordenamento jurídico uno e coerente pode ser também completo, ao mesmo tempo em que a completude possibilita que o direito seja estável e firme, como a ideia maquiavélica de Estado. Dizer que o direito é completo também corresponde à ideia de monopólio de criação e do uso da força pela máquina estatal. A este respeito, leciona Ferraz Junior sobre o problema das lacunas:

Ela é, portanto, fruto da Era Moderna, da centralização e do monopólio da violência nas mãos do Estado e, consequentemente, do domínio sistemático da produção das normas, bem como da onipresença do legislador em relação a todos os comportamentos socialmente possíveis.[...] Com a palavra incompletude, negamos a palavra completude, aquilo que é “completo”, qualidade do que está acabado, concluído, mais propriamente: acabado de fazer.54

As lacunas então oferecem um problema ao ordenamento jurídico no to- cante à sua completude. O dogma da completude é um dos pontos mais importante na concepção positivista do direito.55 Se um ordenamento jurídico não é completo, significa que há uma concorrência de produção jurídica dentro dele, ou ainda que ele não seja suficiente para a regulamentação da vida social. Para modernidade jurídica esse é uma questão grave. Ao dizer que há lacunas no ordenamento, a resposta dada por um juiz a um caso concreto necessitaria do uso de outras fontes do direito que não seriam a emanadas pelo Estado.

53 BOBBIO, Norberto. BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 259.

54 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão e Dominação. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 219.

55 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, 263.

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Em Hobbes, base teórica moderna seria impossível que houvesse outra fonte do direito que não o Estado. Se o Estado era uma pessoa artificial que concentrava todos os direitos da soberania, inconcebível seria que houvesse outra fonte do direito que não fosse por ele emanada. Ainda que não diretamente, sempre seria necessário que o juiz, ao aplicar a lei, encontrasse sua motivação no ordenamento.56

Kelsen, ao encarar esse problema em sua teoria jurídica, nega a existência de tais lacunas, dizendo que não passam apenas de uma ficção prática:

A ordem jurídica não pode ter quaisquer lacunas. Se o juiz está autorizado a decidir uma disputa como legislador no caso de a ordem jurídica não conter nenhuma norma geral obrigando o réu à conduta reclamada pelo queixoso ele não preenche uma lacuna do Direito efetivamente válido, mas acrescenta ao Direito efetivamente válido uma norma individual à qual não corresponde nenhuma norma geral. O Direito efetivamente válido poderia ser aplicado ao caso concreto pela rejeição da lacuna. O juiz, contudo, está autorizado a modificar o Direito para um caso concreto, ele tem o poder de obrigar juridicamente um individuo que antes estava livre.57

Nesse caso, o juiz, que é um criador de normas concretas, as sentenças, ao verificar que não há uma resposta satisfatória dentro do ordenamento para o caso em questão, acaba criando uma. A decisão jurídica do juiz, seu ato de vontade ao produzir a sentença, é uma escolha política entre todas aquelas possibilidades de dar uma resposta ao conflito.

Por sua vez, a chamada norma geral exclusiva, tem o condão de resolver esse problema da completude, ao determinar que toda norma tem uma segunda norma implicitamente, que permite que a primeira exclua todos os atos particulares por ela não previstos. Essa teoria da norma geral exclusiva, conforme ensina Bobbio, foi desenvolvida por Zieltmann e posteriormente por Donati. Conforme ele explica, de acordo com essa teoria, “nunca pode existir , para além das normas particulares, um espaço jurídico vazio, mas para além das normas, pode existir

56 HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 170. 57 KELSEN, Hans Teoria Geral do Direito e do Estado. trad. Luís Carlos Borges. São Paulo:

Martins Fontes, 2006, p. 213

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toda uma esfera de ações reguladas pelas normas gerais exclusivas”58. Neste caso, a aplicação de uma norma que proíba uma determinada conduta, por exemplo, se estenderia a casos mais específicos não previstos, como a permissão de uma conduta contrária à proibida.

Verifica-se que a ideia de um ordenamento jurídico caracterizado por sua unidade, coerência e completude é uma ideia herdada da modernidade jurídica, na qual haveria a necessidade do monopólio da produção do direito apenas pelo Estado. Essa visão racionalista do mundo moderno, no qual a negação de qualquer outra explicação para os fenômenos naturais que não fossem aqueles possíveis de serem conhecidos pela razão, teve repercussão na formação jurídica.

Para o direito moderno, ele próprio se produziria e reproduziria, chegando ao que Luhmann define por autopoiese59. Explica Goyard-Fabre que “um sis-tema autopoiético é um conjunto de processos cuja unidade dinâmica interna, comparável a ‘um programa que se autoprograma’, é tal que estamos diante da autogeração do dito sistema.”60 Com a modernidade e o consequente aumento da complexidade social, o campo do direito necessitou de novos limites funcionais para conseguir se adequar à realidade e ao mesmo tempo manter os mecanismos necessários para sua atividade autopoiética.

4. conclusões

A configuração do ordenamento jurídico se coaduna com a idealização do Estado na modernidade, como uma estrutura funcional baseada numa hierarquia, que pudesse ser um ao mesmo tempo um local de resolução de conflitos, produção jurídica e simbolicamente representar a coesão social.

A relação entre a estrutura jurídica e a artificialidade característica do Estado Moderno resulta, dentre tantos outros motivos, no positivismo jurídico como uma possiblidade de compreender o fenômeno jurídico. Apesar de ter surgido

58 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, 275. 59 LUHMANN, Niklas. Law as a Social System. New York: Oxford University Press, 2004, p.

82. 60 GOYARD-FABRE, Simone. Os Princípios Filosóficos do Direito Político Moderno. Trad.Irene

Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.222.

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com maior força teórica no Século XX, a abordagem positivista é inerente à modernidade do Estado, cuja uma das primeiras teorias é certamente a elaborada por Thomas Hobbes, em especial, para o direito, em sua clássica obra: Do Cidadão; em que o pensador em comento delineia o modo fechado que deve o jurista agir em suas decisões a fim de garantir a unidade jurídica e a soberania do Leviatã.

Esse modelo decisório muito se relaciona com a escola que nasce anos depois denominada positivismo jurídico, que possui uma abordagem avalorativa do direito, aplicando um método para sua identificação. Como vimos, busca estudar o direito em relação a outros aspectos tais como a definição do direito, suas fontes e sua interpretação e questões da norma e do ordenamento jurídico, que compreende o conjunto e normas jurídicas vigentes que se relacionam entre si, formando um sistema.

O ordenamento jurídico sob o ponto de vista do positivismo – especialmente do normativismo – se manifesta como a totalidade do Estado. O Estado é o ordenamento jurídico, a ordem mais ampla dentro da qual se encontram todas as normas, vinculadas a ela por uma ideia de autoridade baseadas em relações de validade uma com as outras, da menos geral para a mais geral, da menor auto-ridade para a maior autoridade. Analisando após o constitucionalismo, pode-se dizer que toda a autoridade de produção normativa deriva da Constituição, que por sua vez é posta por uma autoridade que é recebida de uma norma pressuposta.

Nesse sentido, o direito torna-se um sistema unitário de normas que possi-bilita a exclusão de todas as outras normas que não são jurídicas. A unidade é um pressuposto para a hierarquia, pois a fonte de produção jurídica deve ter apenas uma origem. Também, o ordenamento deve ser coerente ao ter mecanismos de eliminação de antinomias, os chamados critérios de resolução. Uma antinomia representa um empecilho à aplicabilidade das normas e mais que isso, admitir uma antinomia é contrariar a segurança jurídica que o direito deve ter.

Ordenamento também deve oferecer a ideia de completude, ou seja, ser su-ficiente para a resolução de qualquer conflito na aplicação ao caso concreto. Este sentido também traz à tona a necessidade de monopólio da produção jurídica do Estado moderno, uma vez que o direito deveria ser completo o suficiente para dar respostas a todos os casos. Naquilo que não fosse possível encontrar uma resposta nas leis, havia a procura dentro daquilo que as leis permitissem. A lei,

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como principal fonte do direito do Estado, proporciona o sentido de legalidade, que exclui da obrigatoriedade de conduta aquilo que a norma não prevê. A ideia de lacunas no direito não deve ser admitida, porque sempre que não houver uma resposta imediata para a solução de um caso concreto, os aplicadores, tal qual o juiz, devem buscar no ordenamento um critério para uma solução não prevista e assim criam uma nova norma, colmatando o que poderia ser considerada como um espaço vazio na ordem normativa.

Com isso, o ordenamento jurídico é uma representação moderna, uma idea-lização da modernidade que pode ser identificada pelo método positivista como um conjunto de normas cuja juridicidade provém de outra norma que permite serem identificadas como tais e formarem um sistema, e verificamos muitos desses elementos desenvolvidos por essa escola no pensamento desenvolvido no Século XVI por Thomas Hobbes.

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irracional ou hiper-racional? a ponderação de princípios entre o

ceticismo e o otimismo ingênuo

Fernando Leal1

Resumo

A ponderação de princípios é comumente criticada em função de um suposto déficit intrínseco de racionalidade. Neste trabalho, explora-se a possibilidade de uma inversão nos eixos das críticas. Nessa linha, argumenta-se que os principais pontos problemáticos da ponderação e do instrumental metodológico desenvol-vido pela teoria dos princípios para conduzir as valorações empregadas nos processos de solução de colisões de princípios – notadamente os esforços de Robert Alexy nesse sentido – não estão relacionados à afirmação da irracionalidade necessária da ponderação, mas nas pretensões hiper-racionalistas por trás dos métodos que pretendem orientá-la. Nesse sentido, defende-se, por um lado, a plausibilidade dessas críticas a partir de elementos da própria teoria dos princípios de Alexy e, ao final, sugere-se uma possível leitura para o papel que o arsenal metodológico desenvolvido pela teoria pode ter no processo de justificação de decisões jurídicas.

Palavras-chave

Ponderação; Racionalidade; Decisão Jurídica; Incerteza e Particularismo.

Abstract

Balancing of colliding principles is usually contested due to its asserted intrinsic deficit of rationality. The core claim of this paper is the possibility of a complete inversion in the axis of the criticisms against balancing. I argue that the most problematic issues concerning balancing and the methodological toolkit deve-loped by the principles theory to guide it – notably the efforts of Robert Alexy to

1 Professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito pela Christian-Albrechts-Universität zu Kiel. Doutor e Mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: [email protected]

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that effect – are not related to an insurmountable irrationality of balancing, but rather to the hyper-rationalist ambitions behind the methods that aim to conduct it. In this sense, I claim, on the one hand, that this objection is plausible on the basis of elements of the principles theory itself and I suggest, on the other hand, a different perspective to assert the role that the methodological arsenal developed by Robert Alexy could play in concrete decision-making processes.

Key words

Balancing; Rationality; Legal decision-making; Uncertainty and Particularism.

1. introdução

Uma das perguntas que sempre deve ser respondida por defensores da Teoria dos Princípios2 diz respeito à racionalidade da ponderação. Tal tema revela-se, na verdade, como o trabalho de Sísifo da teoria, já que, assim como se desenvolvem as críticas à concepção de princípios como mandamentos de otimização para a construção de um modelo adequado de direitos fundamentais (Alexy 2008, 575), é possível levantar objeções acerca da racionalidade da ponderação em níveis completamente opostos. Isso quer dizer que é possível criticar o trabalho com princípios jurídicos nos limites das possibilidades conceituais e metodológicas permitidas pelo modelo de Alexy tanto como uma ilusão hiper-racionalista como por sofrer de um suposto déficit de racionalidade. Por esses motivos, o desafio permanente que se apresenta à teoria dos princípios é o de se colocar em uma posição de equilíbrio entre concepções diametralmente diferentes tanto sobre o papel dos direitos fundamentais e do tribunal constitucional em um Estado democrático de direito como sobre as potencialidades da aplicação da ponderação de princípios como técnica de justificação racional de decisões jurídicas.

No caso dos direitos fundamentais, as críticas oscilam entre a afirmação, de um lado, de que o modelo de princípios de Alexy retira a força necessária dos

2 Este trabalho parte do pressuposto de que não há apenas uma versão da teoria dos princípios, o que é fundamental para o desenvolvimento das ideias nele contidas. Em todos os casos, contudo, o texto elege a teoria dos princípios de Robert Alexy como referencial para críticas e apresentações de possíveis leituras, as quais, de fato, nem sempre são fiéis aos seus pressupostos.

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direitos fundamentais para que eles possam fazer frente a argumentos de finali- dade coletiva e a tese, de outro lado, de que a compreensão dos direitos fundamen-tais como princípios – e, assim, como mandamentos a serem otimizados – conduz a um perigoso excesso, com sérios impactos institucionais, desses direitos na ordem jurídica. Tal excesso seria o produto de uma combinação perversa entre onipresença e suficiência dos direitos fundamentais para a definição de cursos de ação (Alexy 2008, 575 e ss.).

No plano da racionalidade da ponderação, normalmente as críticas se dirigem à afirmação de um suposto déficit. Habermas, provavelmente quem formulou de maneira mais profunda e complexa essa objeção, na medida em que conecta os problemas da racionalidade da ponderação com a concepção de direitos fundamentais como princípios, refere-se aos resultados dos processos de tomada de decisão com base em princípios jurídicos como “arbitrários ou irrefletidos” (Habermas 1994, 316). Seu argumento é o de que à ponderação faltariam mecanismos racionais capazes de conduzir as construções das relações de preferência que deveriam ser estabelecidas em cada caso concreto para que essa “técnica” pudesse ser considerada controlável. A crítica, no fundo, sustenta-se sobre os perigos relacionados à possibilidade de prevalência de argumentos funcionalistas sobre argumentos normativos na tomada de decisão jurídica (Habermas 1994, 316), autorizada pela teoria dos princípios no momento em que ela reconhece uma correspondência estrutural entre normas, expressões de juízos cuja validade se extrai da universalidade e da imparcialidade, e valores, representações do que é melhor em determinado tempo, lugar e para certos indivíduos (Alexy 2006, 125ss.). Sem a possibilidade de demarcar claramente os limites entre os planos axiológico e deontológico, os processos jurídicos decisó-rios se tornariam permanentemente permeáveis a considerações teleológicas (típicas do primeiro plano), orientadas na busca por resultados que só poderiam ser justificados “agora” e “para algum grupo”. Da impossibilidade, assumida por Habermas, de existência de parâmetros capazes de controlar objetivamente análises funcionalistas ou do tipo custo-benefício, decorreria a desqualificação definitiva da ponderação de princípios como mecanismo capaz de garantir resultados racionais. (Schuartz 2005, 182).

Habermas, porém, não é o único a expor uma suposta irracionalidade da ponderação de princípios. Na mesma linha, Schlink ataca a racionalidade da

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ponderação ao caracterizá-la como essencialmente subjetiva e decisionista (Schlink 2009, 460). Leisner, por sua vez, descreve a ponderação como uma “varinha mágica” capaz de produzir pseudoconsensos (Leisner 1997, 638).

Críticas desse tipo não são desconhecidas no Brasil. Ao contrário, elas vêm se tornando cada vez mais recorrentes. O ministro Eros Grau, no julgamento da ADPF 101, já afirmou que “(...) a ponderação entre princípios é operada discricionariamente, à margem da interpretação/aplicação do direito, e conduz à incerteza jurídica”.3 Em linha próxima, mas sem afirmar uma intrínseca irracionalidade da ponderação, reconhece Humberto Ávila que “o paradigma da ponderação conduz a um subjetivismo” (Ávila 2009, 9). Carlos Ari Sundfeld, criticando mais a práxis do direito público brasileiro do que formulando uma crítica teórica profunda sobre a ponderação, denuncia a falta de previsibilidade e as incertezas relacionadas ao amplo recurso a princípios como fundamentos de decisão entre nós por meio de expressões como “ambiente de geleia geral”, sobretudo relacionada ao uso de princípios vagos para a tomada de decisão (Sundfeld 2009, 60), modismo (Sundfeld 2009, 67), “arma de espertos e preguiçosos” (Sundfeld 2009, 70) e porta de entrada para se “julgar nas nuvens” (Sundfeld 2009, 79). Na mesma linha denuncia Marcelo Neves uma tendência à superestima, à trivialização e ao uso inconsistente no tratamento dos princípios constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (Neves 2013).

Esse recorrentemente afirmado déficit de racionalidade normativa da pon-deração (Schuartz 2005, 185) – seja ele estrutural, seja ele decorrente do uso real que se faz do discurso dos princípios – conduz a objeções metodológicas, dogmáticas e institucionais à Teoria dos Princípios. Por um lado argumentam os críticos que a operação fundamental para a solução de conflitos entre princípios (i) desenvolve-se meramente com base nas convicções pessoais do tomador de decisão e (ii) que a Teoria dos Princípios é incapaz de fornecer ferramentas dogmáticas suficientes para lidar com tal inevitável subjetivismo. A Teoria dos princípios não disponibilizaria, com outras palavras, parâmetros de decisão capazes de manter os níveis de incerteza do sistema jurídico minimamente suportáveis. A ideia fundamental de otimização, que orientaria a ponderação de princípios, seria apenas uma imagem desprovida de qualquer racionalidade

3 ADPF 101, fls. 209, grifos no original.

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e praticidade. No limite, ela não seria útil nem para descrever corretamente a estrutura do raciocínio jurídico nem para orientar normativamente a aplicação do direito (Klement 2008).

No plano institucional, o uso frequente da ponderação implicaria uma proeminência exagerada do Judiciário, especialmente do tribunal constitucional. Essa onipotência dos tribunais comprometeria as margens de conformação do Legislador, já que todas as suas avaliações estariam sujeitas à revisão constante do tribunal constitucional por meio de uma técnica de decisão desprovida de pa-râmetros. Ademais – ainda no plano institucional – essa possibilidade de revisão das decisões legislativas amparada na ponderação levaria à constitucionalização de todos os conflitos jurídicos, já que “cada resposta deveria ser identificada como a otimização de princípios em colisão” (Poscher 2003, 82). Fala-se, assim, que a Teoria dos Princípios implica não só decisionismo e eliminação das margens de conformação do legislador, como também uma sobreconstitucionalização do direito. Por todos esses fundamentos haveria razões suficientes para se rejeitar a ponderação e os seus corolários. No máximo deveria ela permanecer como ultissima ratio “e deveria se limitar às correções periféricas” (Leisner 1997, 639).

Como antecipado, esse conjunto de objeções expressa as razões pelas quais a ponderação é criticada como técnica de aplicação do direito, especialmente dos direitos fundamentais. O que há de comum nessas críticas é a referência constante a uma suposta subjetividade e a uma suposta irracionalidade do balanceamento de princípios.4 Sua incapacidade de oferecer parâmetros suficientes para impedir o arbítrio dos juízes condenaria a ponderação, no máximo, a um papel residual na metodologia jurídica. Mas seriam esses argumentos necessariamente corretos? Não se deixaria realmente a ponderação racionalmente fundamentar? Em que sentido se poderia falar em racionalidade no direito? Estaria o problema da ponderação realmente em sua sub-racionalidade? Ao contrário do que os mais céticos em relação à ponderação responderiam, creio ser possível justificar por que o arsenal metodológico oferecido por Robert Alexy é capaz de, no mínimo, problematizar o real alcance da objeção de irracionalidade direcionada à Teoria dos Princípios.

4 Assim também Silva 2011, 364. No trabalho, o autor faz referência ainda a críticas formuladas contra a ponderação de princípios por Friedrich Müller e Böckenförde, além de Habermas.

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As respostas dadas por Robert Alexy e sua escola, entretanto, não evitariam que novas críticas pudessem ser dirigidas à ponderação e aos autores que a defendem. Neste trabalho será acentuada a possibilidade de uma completa inversão no eixo das críticas: talvez o maior problema da ponderação não se encontre em sua sub-racionalidade, mas justamente nas suas supostas pretensões de sobrerracionalidade. Este é um novo flanco de críticas pouco explorado, sobretudo no Brasil, que merece especial atenção. Isso porque as discussões em torno da racionalidade de um método de decisão não podem ser resumidas a um binômio do tipo racional/não racional, sob pena de essa simplificação levar a distorções a respeito das potencialidades do próprio método sob consideração. Esse é um ponto crucial para que, no caso específico da aplicação de princípios, a defesa da racionalidade da ponderação, em um sentido ainda a ser apresentado, não sirva como incentivo para a consideração frequente dessas normas e o empreendimento permanente de ponderações para a tomada de decisões jurídicas. O reconhecimento da racionalidade da ponderação não deve, com outras palavras, tornar-se pretexto para a sua afirmação como critério geral de aplicação do direito, uma vez reconhecida a normatividade dos princípios. Evitar problemas desse tipo requer, portanto, não apenas que se rechace a objeção da sub-racionalidade, mas também que se discuta o que a ponderação de princípios pode oferecer para a justificação racional de decisões.

Visando, assim, a lidar com os dois tipos de críticas que podem ser dirigidas à teoria dos princípios, este trabalho se estrutura em duas partes. Na primeira será apresentada e enfrentada a crítica da sub-racionalidade; na segunda, o foco recairá sobre os possíveis problemas de hiper-racionalidade das ferramentas metodológicas desenvolvidas pela teoria para orientar a ponderação. Na parte final, tentar-se-á justificar a validade dos esforços metodológicos de autores como Alexy para a determinação da estrutura da ponderação, ainda que as objeções de hiper-racionalidade possam ser consideradas, em alguma medida, plausíveis.

2. enfrentando a crítica da sub-racionalidade

Contra a afirmação da sub-racionalidade da ponderação podem ser levanta- das duas ordens de problemas. Em curtas palavras, pode-se dizer que esses problemas podem ser resumidos em uma confusão e uma falácia.

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Por um lado parece que os críticos da ponderação negligenciam importantes diferenças conceituais entre racionalidade, objetividade e certeza (Schauer 2012, 308), ou, pelo menos, pressupõem níveis ambiciosos de objetividade para que se possa atribuir adequadamente o epíteto “racional” a qualquer método de interpretação e aplicação do direito. Apesar da real dificuldade em se caracterizar essas três ideias, seria suficiente dizer que o fato de a ponderação não levar eventualmente a graus elevados de certeza e objetividade não significa que ela seja tout court irracional. A objeção seria correta se, no domínio da ponderação, por um lado “certeza” significasse que ela qua procedimento conduziria sempre a um resultado exato, enquanto que, por outro lado, a afirmação de “objetividade metodológica” implicasse que ela – a ponderação – pudesse, no plano epistêmico, permitir que o tomador de decisão fosse capaz de identificar, a partir da aplicação de um roteiro completamente estruturado e independentemen-te das suas crenças, enunciados verdadeiros e falsos e, dessa forma, conduzi-lo sempre a juízos de valor imparciais e corretos. Os equívocos, no entanto, estão relacionados às associações não necessárias entre “certeza”/“única resposta correta” e “objetividade”/“ausência de subjetividade do aplicador”. Os segundos termos desses pares poderiam, ainda, ser apresentados, respectivamente, como ausência de variabilidade dos resultados a que aplicadores do método poderiam chegar e plena previsibilidade/ausência de indeterminação (Schauer 2012, 311). Ambos os sentidos para “racionalidade” são intrinsecamente problemáticos quando erguem a pretensão de ser referenciais para o manejo de métodos de decisão em contextos decisórios reais, repletos de limites que afetam as capacidades epistêmicas de tomadores de decisão de carne e osso.

A teoria dos princípios, porém, ao contrário do que as críticas parecem enfatizar, pressupõe e investe em sentidos de “certeza” e “objetividade” mais débeis, na medida em que a ponderação é caracterizada como um modelo (procedimental) de fundamentação a ser aplicado nos limites de discursos não ideais de justificação (Alexy 2006, 144). De acordo com tal modelo, os graus de certeza e objetividade esperados de uma decisão jurídica se restringem à possibilidade de fundamentação de “enunciados que definem preferências condicionadas entre valores ou princípios” (Alexy 2006, 144), consideradas as limitações a que se submetem discursos reais de justificação. A racionalidade desse

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procedimento é, na teoria dos princípios, garantida pela lei de sopesamento5, pela fórmula do peso6, pela lei de colisão (para fins de orientação da solução de casos futuros em que os mesmos princípios estejam em colisão em circunstâncias semelhantes nas propriedades relevantes7) e, residualmente, pelos ditames de uma teoria procedimental da argumentação jurídica, as quais orientam a ponderação de princípios por meio de regras e ônus de argumentação (Alexy 2009, 151-166). De fato, esse quarteto está longe de garantir que os resultados da ponderação sejam dotados de objetividade verificável ou certeza matemática. Alexy reconhece que “a ponderação não é um procedimento que em cada caso conduz irrefutavelmente a um único resultado” (Alexy 2009, 143). Ainda, então, que elementos de lógica formal ou fórmulas aritméticas sejam utilizadas por Ale-xy e pelos discípulos da doutrina da ponderação, elas são simples representações simplificadas de procedimentos argumentativos complexos, que mais levantam a pretensão de orientar do que de determinar o conteúdo de juízos normativos singulares. A previsibilidade da ponderação está, assim, estritamente vinculada à fixação dos ônus de argumentação a serem superados para a justificação dos

5 A lei de sopesamento (Abwägungsgesetz) é o centro da relação colocada pela proporcionalidade em sentido estrito, momento no qual, de fato, ocorre a ponderação, já que as dimensões da adequação e da necessidade do dever de proporcionalidade pretendem aferir o grau de realização dos princípios jurídicos envolvidos relativamente às possibilidades fáticas. De acordo com a referida lei “quanto maior o grau de não realização ou restrição de um princípio, maior deve ser a importância de realização do outro”. Cf. Alexy 2010, 772.

6 A fórmula do peso (Gewichtsformel) é a expressão de um esquema de justificação que ergue a pretensão de estruturar a argumentação em torno da orientação sugerida pela lei de sopesamento. A fórmula é composta por três frações que pretendem medir (i) o grau de restrição dos princípios em colisão (Ii/Ij), (ii) a relação entre os pesos abstratos dos princípios envolvidos (Gi/Gj) e (iii) a confiabilidade das premissas empíricas sobre o que a não implementação da medida sob consideração implica para a realização e não realização dos princípios imbricados (Si/Sj). Cf. Alexy 201, 790. Esses fatores são avaliados por meio de uma escala triádica, de acordo com a qual os graus leve, médio e grave podem ser atribuídos a cada parte da fração. A expressão reduzida da fórmula, sendo Gi,j o peso concreto de um princípio Pi relativamente a um princípio Pj, é:

Gi,j = Ii . Gi . Si

Ij . Gj . Sj

7 De acordo com a lei de colisão, o resultado de uma colisão de princípios é uma regra de preferência condicionada entre essas normas. A referida lei prescreve que “as condições, sob as quais um princípio prevalece sobre os outros, cria a hipótese de incidência de uma regra, que enuncia a consequência jurídica dos princípios precedentes”. Cf. Alexy 2006, 84.

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resultados de colisões principiológicas. Os roteiros argumentativos relacionados, sobretudo, à proporcionalidade e à fórmula do peso, como indica Schauer, não deixam o tomador de decisão livre “não apenas para decidir quais são os fatores relevantes, mas também para decidir qual peso cada um desses fatores deve ter” (Schauer 2012, 311).

Além disso, pelo fato de a teoria dos princípios não trabalhar com algum conceito metafísico de “verdade”, mas com a noção mais débil de “crença jus-tificada”, não seria correto afirmar que o controle da legitimidade das decisões é fruto da verificabilidade do resultado das valorações do juiz, mas tão somente da correção da argumentação desenvolvida para fundamentar o seu ponto de vista8. E, nesse aspecto, a racionalidade da ponderação está estritamente vinculada à possibilidade de controle intersubjetivo dos seus resultados (da Silva 2011, 638).

É fato, porém, que os mecanismos disponibilizados pela teoria dos princí-pios para promover algum grau de certeza e objetividade para a ponderação são criticáveis. Leisner, por exemplo, denomina certas expressões usadas por essas fórmulas como palavras vagas ou guarda-chuva (Leisner 1997, 638). Até mesmo Sieckmann, um dos defensores da ponderação, reconhece que “os problemas da ponderação são caracterizados por ela não oferecer qualquer critério prévio definido para a decisão, ou seja, nenhum critério que seja sufi- ciente para determinar cognitivamente os resultados da ponderação” (Sieckmann 2009, 32). Mas isso não significa que se possa afirmar que a pon- deração ou a proporcionalidade em sentido estrito sejam procedimentos absolutamente livres ou sem limites. Mesmo críticos da ponderação, como Jestaedt, reconhecem ser a destinação dos ônus de argumentação na decisão com princípios um dos pontos fortes da teoria dos princípios (Jestaedt 2007, 259). Tanto a lei de colisão, como a lei de sopesamento e a fórmula do peso pretendem orientar o caminho argumentativo que deve ser pavimentado pelo juiz em suas decisões. Isso significa que a racionalidade da ponderação não emerge do resultado – ao contrário, um dos problemas da ponderação está na sua potencialidade para sustentar alternativas incompatíveis (Sieckmann 2009,

8 Aqui é possível falar-se em uma objetividade discursiva em oposição a uma objetividade metafísica. V. Marmor 2011. Na teoria dos princípios, a ideia de objetividade semântica desempenha um papel fundamental. (Cf. Sieckmann 2009, 32).

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33) – mas do procedimento de fundamentação das decisões9. É, portanto, desse procedimento de fundamentação estruturado que se extrai a racionalidade da ponderação.

Reconhecido, assim, que a ponderação não é um procedimento irracional (Hwang 2008, 311)10, pergunta-se até que ponto a sua racionalidade seria suficiente para garantir decisões jurídicas aceitáveis em um Estado democrático de Direito vis-à-vis outros candidatos. Isso nos conduz ao segundo tipo de problema relacionado à afirmação de um déficit de racionalidade da ponderação. Tal problema poderia ser resumido em uma questão de comparação. Dado o fato de que à vista de soluções ideais todos os modelos de decisão jurídica garantem respostas subótimas em ambientes decisórios reais, é preciso saber se o roteiro metodológico fornecido pela ponderação é equivalente em termos de racionalidade ao dos outros métodos de interpretação e aplicação do direito disponíveis para a tomada de decisão em casos difíceis. E, nesse caso, não parece defensável que os ônus de argumentação vinculados à lei de colisão, lei de sopesamento e fórmula do peso sejam menos objetivos do que as sugestões de outros candidatos, como a “interpretação sistemática”, a aplicação desparametrizada de pressupostos da hermenêutica filosófica no direito ou modelos de justificação como os propostos por coerentistas e pragmatistas (Schauer 2012, 309). Assim a afirmação da irracionalidade da ponderação não pode se seguir de uma “falácia comparativa”. Essa falácia ocorre quando diferentes objetos, embora comparados teoricamente com base no mesmo critério, são avaliados diferentemente porque o sentido do padrão de comparação é alterado quando ele é aplicado a cada um dos objetos a serem valorados. Isso significa que critérios como “racionalidade”, “objetividade” e “certeza” também devem ser usados com o mesmo sentido quando se compara a ponderação com outros modelos de aplicação do direito11. O ponto quase trivial que se pretende defender com isso é que escancarar os limites da ponderação para levar a respostas únicas e corretas ou para controlar completamente as

9 No âmbito da teoria do discurso isso significa: “Nicht der Konsens, sondern die Durchführung der Prozedur gemäβ den Diskursregeln ist das eigentliche Richtigkeitskriterium der Diskurstheorie” (Alexy 1995, 120). Cf. também Hwang 2008, 616.

10 V. também Schauer 2009, 311: “Alexy’s argument that balancing is not irrational, therefore, is substantially correct”.

11 Nesse sentido defende, por exemplo, Schauer a concepção de que, quando Habermas se refere à ponderação como arbitrária, ele quer dizer “sem limitações“ (unconstrained). Schauer 2009, 310.

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influências da subjetividade de tomadores de decisão não leva necessariamente à maior racionalidade de alternativas teóricas ou metodológicas oferecidas como redentoras, mas que, no geral, são tão ou mais problemáticas para o alcance dos níveis aceitáveis de variabilidade e previsibilidade por elas mesmas denunciadas nas críticas formuladas contra a ponderação de princípios.

3. a crítica da sobrerracionalidade

Se a ponderação não é menos racional do que diversos outros métodos de decisão jurídica e, em si, não necessariamente incerta, indeterminada e imprevisível, nada obsta, porém, que novos problemas possam ser apontados sobre a sua utilidade efetiva para orientar as valorações levadas adiante nas tentativas de fixação de ordens de preferência entre princípios. Assim, a nova questão que se coloca é a de saber se as tentativas de racionalizar a ponderação por meio de fórmulas e regras de argumentação não criariam incentivos para que os seus defensores a considerassem como claramente mais racional do que outros candidatos. Esses incentivos revelariam que as pretensões de objetividade das ferramentas metodológicas oferecidas pela teoria vão além das pretensões modestas anteriormente apresentadas. Nesse sentido, a formalização de roteiros de argumentação, antes de garantir níveis de previsibilidade e controle da subjetividade suficientes para rechaçar qualquer alegação de irracionalidade da ponderação, teria como alvo o alcance de níveis elevados de racionalidade. Nessa hipótese, o perigo não estaria na impotência da ponderação, mas na crença em sua onipotência para lidar com problemas jurídicos concretos. Em outras palavras, o risco que se denuncia é o de que o desenvolvimento de critérios cada vez mais sofisticados voltados para reforçar a determinação da ponderação poderia gerar um paradoxo na teoria dos princípios. Por um lado, a ponderação de princípios, se manejada adequadamente, seria tão racional, que sua aplicação seria inevitável, porquanto desejável, para explicar e orientar racionalmente a solução de qualquer problema jurídico. Por outro lado, porém, como a ponderação se desenvolve sob condições reais, seria também inevitável conjecturar que o uso permanente da ponderação traria mais incerteza para o sistema jurídico, já que o seu “manejo adequado”, ou não seria possível de fato, ou não seria compatível com certas pro-priedades importantes que diferenciam o direito de outros domínios normati-

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vos, como a importância de se levar a sério regras e precedentes apenas por razões autoritativas. Em resumo, quanto mais se investiria na formalização das condições de argumentação adequada da ponderação, maiores seriam os incentivos para a sua aplicação, e mais indeterminação poderia ser gerada, já que as propostas metodológicas não seriam capazes de constranger completamente o processo decisório. Podemos chamar essa relação de o “paradoxo da determinação” na teoria dos princípios.

A defesa da visão de que as objeções de sobrerracionalidade têm o maior po- tencial para atingir o alvo quando direcionadas à teoria dos princípios e à ponderação está relacionada a três pontos. O primeiro deles diz respeito a uma possível inconsistência existente entre as verdadeiras motivações subjacentes ao comportamento de tomadores de decisão em certos ambientes e as pretensões normativas da teoria, que pode ser instrumentalizada para atingir finalidades opostas às visadas por ela. O segundo ponto, está relacionado à afirmação de similaridades estruturais entre a subsunção e a ponderação, ainda que elas não sejam idênticas. O terceiro, finalmente, diz respeito aos pressupostos de opera-cionalização adequada da proporcionalidade, sobretudo da fórmula do peso.

No primeiro caso, a explicação do paradoxo decorre de uma possível in- consistência entre uma perspectiva descritivo-explicativa a respeito das predisposições de tomadores de decisão para usarem desparametrizada e estrategicamente a ponderação e uma perspectiva normativa que parte daquele diagnóstico – ou, no mínimo, leva-o a sério – e assume que o investimento em mecanismos de racionalidade é capaz de impedir a aplicação estratégica do método ou, pelo menos, incentivar a sua manipulação adequada. O paradoxo, neste contexto, decorre da tentativa de orientar juízes e outros participantes do processo de tomada de decisão jurídica a não fazer o que, desde o início, reconhece-se que provavelmente vão fazer. Com outras palavras, a busca inces-sante pela determinação da ponderação em um ambiente em que, assume-se, decisões tendem a ser tomadas com base em fatores bastante diferentes da busca por correção, pode trazer efeitos perversos para as próprias pretensões de controle da incerteza por trás da sofisticação do método.12 Argumento desse tipo parece

12 Esse é estruturalmente o mesmo tipo de argumento por trás da alegação de Eric Posner e Adrian Vermeule de uma “esquizofrenia metodológica” vinculada ao uso de estudos de ciência

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estar por trás do diagnóstico feito por Marcelo Neves ao se referir à recepção da teoria dos princípios no país. Para o autor, “a retórica principialista servia ao afastamento de regras claras e ‘completas’, para encobrir decisões orientadas à satisfação de interesses particularistas. Assim, tanto advogados idealistas quanto os astutamente estratégicos souberam utilizar-se exitosamente da pompa dos prin-cípios e da ponderação, cuja trivialização emprestava a qualquer tese, mesmo as mais absurdas, um tom de respeitabilidade” (Neves 2013, 1162). Se o argumento é plausível, o que se nota é que o discurso dos princípios e da ponderação, mesmo que teoricamente consistentes, pode ter caído como uma luva para a realização de interesses específicos diferentes daqueles por trás da empreitada teórica de Alexy e outros. A consistência dessa visão, porém, depende fundamentalmente da confiabilidade de modelos explicativos sobre o comportamento judicial e de outros atores em determinados arranjos institucionais, já que a inconsistência alegada pressupõe que a busca por determinação da ponderação pretende lidar com o problema do seu uso irracional desconsiderando as reais intenções de tomadores de decisão quando se servem frequentemente da ponderação.

No segundo ponto, o perigo a ser denunciado é o do esvaziamento do papel desempenhado pelas regras no raciocínio jurídico. O fundamento para essa visão estaria na possibilidade de transição permanente entre o uso da subsunção e da ponderação para justificar, com níveis próximos de racionalidade, juízos normativos singulares. Aqui, ao contrário do primeiro argumento em favor de uma compreensão sobrerracional da teoria, o problema apontado não decorre de uma compreensão inadequada das condições de operacionalização do método ou do uso estratégico da ponderação, mas de uma possível inconsistência interna do próprio edifício teórico. Neste momento, o risco denunciado é o de que a afirmação de uma aproximação estrutural entre subsunção e ponderação permiti-

política sobre o comportamento judicial para o oferecimento de respostas para problemas derivados de ações auto-interessadas que pressupõem que juízes não agirão dessa forma. A tentativa de adotar, ao mesmo tempo, duas perspectivas simultaneamente diferentes – e tensionantes – sobre o comportamento judicial, uma externa e outra interna, é caracterizada por Posner e Vermeule como uma “falácia do dentro ou fora”. O argumento dos autores, por sua vez, é inspirado na visão de um “paradoxo da determinação”, criado para problematizar as pretensões normativas de economistas que sugerem medidas pressupondo que agentes políticos são “bonecos” predispostos a ouvi-los. Cf. Posner e Vermeule 2013 e O’Flaherty e Bhagwati, 1997.

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ria que tomadores de decisão ignorassem os limites textuais dentro dos quais aquela se opera, o que deixaria nas mãos dos próprios tomadores de decisão uma tarefa que deveria ser fundamentalmente desempenhada pelas regras incidentes no caso concreto, qual seja, a de seleção das características relevantes do problema para a atribuição da resposta jurídica apropriada (Schauer 2012, 312).

No terceiro e último caso, o problema é eminentemente epistêmico. Neste nível, o que se questiona é a possibilidade efetiva de tomadores de decisão obte- rem e processarem os dados necessários para a maior realização possível de princípios em colisão relativamente às possibilidades jurídicas nos termos exigidos pela proporcionalidade e pela fórmula do peso (Schuartz 2005, 218ss). Aqui, mais uma vez, o problema levantado diz respeito mais a aspectos da própria empreita-da teórica de Alexy do que a dificuldades decorrentes de um uso inadequado ou estratégico da ponderação.

Neste trabalho, gostaria de enfrentar as duas últimas objeções, que se re-velam cruciais para que se possa determinar se o uso constante da ponderação de princípios sustentado sobre a pretensão de busca – e alcance – de níveis mais elevados de objetividade é, de fato, um problema interno da teoria, ou simplesmente o produto de uma compreensão errada ou ingênua dos seus enunciados por tomadores de decisão de contextos de recepção e aplicação dos mecanismos metodológicos desenvolvidos para orientar a ponderação.

3.1. dissolução da textualidade e particularismo

Os riscos de uma suposta super-racionalidade atrelada aos instrumentos for-necidos por Robert Alexy para orientar a construção de relações concretas de preferência entre princípios foram especialmente apontados por Schauer. O ponto de partida para a crítica se localiza na afirmação de que a fórmula do peso é, para a solução de colisões entre princípios, um esquema análogo ao que a subsunção representa para a aplicação de regras. A proximidade esquemática entre subsunção e ponderação se deixaria justificar do fato de que é possível identificar em ambos estruturas formais sobre um conjunto de premissas a partir das quais seria possível garantir a inferência de um resultado jurídico (Alexy 2003, 448).

É certo, por um lado, que Alexy não equipara as duas formas de argumentação. A relação entre a aceitabilidade dos resultados é diferente nos casos de aplicação

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da ponderação e da subsunção. O esquema da subsunção trabalha de acordo com as regras da lógica; o esquema da ponderação, por sua vez, com as regras da aritmética (Alexy 2003, 448). O que isso significa? No caso da subsunção, que a força das conclusões é retirada da sua compatibilidade interna com as premissas das quais o raciocínio parte. No caso da ponderação, que a aceitabilidade dos seus resultados decorre da força atrelada aos juízos de valor subjacentes a cada uma das variáveis da fórmula do peso, o mecanismo mais sofisticado fornecido pela teoria para orientar o processo de justificação no nível da proporcionalidade em sentido estrito, na medida em que são esses juízos de valor as bases para a atribuição dos “números” correspondentes às valorações realizadas pelo tomador de decisão em cada fração da fórmula. Mas essa, por outro lado, embora relevante, não é para Alexy uma diferença a ser superestimada. (Alexy 2003, 448).

Para Schauer, no entanto, é exatamente na tentativa de demarcar as diferenças entre subsunção e ponderação sem enfatizar a importância dos traços distintivos de cada uma delas para diferenciar dois esquemas racionais de decisão que se localiza o problema da tese de Alexy. Para Schauer, assumir estreitas conexões, sobretudo em termos de garantia de resultados racionais, entre a ponderação e a subsunção tende a colocar de lado uma questão central para a decisão jurídica: até que ponto o material jurídico impõe limites aos juízos de valor potencialmente variáveis de tomadores de decisão? (Schauer 2012, 312). A diluição das fronteiras entre ponderação e subsunção sustentada sobre a proximidade formal dos seus respectivos esquemas de orientação de decisões e a crença, ainda que indireta, de que essa aproximação é capaz de garantir níveis similares de racionalidade para os resultados derivados da operacionalização adequada de cada um dos esquemas (e é neste ponto em que se faz presente as pretensões de sobrerracionalidade da teoria) tende a ignorar uma característica central do direito, que, de alguma for-ma, também está no centro da distinção entre regras e outros padrões decisórios, como princípios: a vinculação à textualidade (Schauer 2012, 312).

No fundo, Schauer aponta para os riscos de uma particularização endêmica dos processos jurídicos de tomada de decisão. A possibilidade de aplicação do direito por subsunção depende do quão se pode levar a sério o texto do material jurídico preexistente ao momento da tomada de decisão como limite para que um determinado caso receba uma resposta do direito. Isso porque o texto, por si

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só, limitaria as possibilidades de escolha do tomador de decisão ao incluir uma seleção prévia dos elementos considerados importantes para que determinada consequência seja descarregada. O artigo 328 do Código de Processo Penal, por exemplo, estatui que “o réu afiançado não poderá, sob pena de quebramento da fiança, mudar de residência, sem prévia permissão da autoridade processante, ou ausentar-se por mais de 8 (oito) dias de sua residência, sem comunicar àquela autoridade o lugar onde será encontrado”. Se o texto (e, para fins de argumentação, somente ele) é – e pode ser considerado – um limite para a tomada de decisão a respeito de quebramento da fiança, as condições consideradas relevantes para a emissão de um juízo a respeito do tema se resumem à aferição (i) de mudança de residência do réu, (ii) sem prévia autorização da autoridade processante ou (iii) de ausência do réu de sua residência, (iv) por mais de 8 dias, (v) sem comunicar o lugar onde será encontrado (vi) àquela autoridade. Presente algum desses conjuntos de circunstâncias, já é possível, em regra, admitir-se o quebramento da fiança. Como se nota, essas são as propriedades relevantes de qualquer caso singular consideradas previamente pelo direito como suficientes para a tomada de decisão. Outros aspectos potencialmente relevantes de um determinado caso são, pelo texto, previamente excluídos.

A ponderação de princípios, ao contrário do exposto, não encontra limites na seletividade prévia das referências textuais imediatas das normas imbricadas. Liberdade de imprensa, Estado de direito, moralidade e dignidade humana são exemplos de rótulos incapazes, sem prévio trabalho dogmático e/ou definição de sentido por ato de autoridades oficiais do direito, de limitar, por si sós, o processo decisório. Em oposição à estrutura das regras, a concepção de princípios como mandamentos de otimização exige a consideração de todos os fatores relevantes do problema, já que, em casos de colisão – exatamente quando a ponderação é exigida –, o grau de realização de cada princípio envolvido depende das circunstâncias fáticas e jurídicas (Alexy 2006, 76).13 Nesse sentido, a ponderação pode ser definida como um modelo holista de justificação em casos de colisões de

13 Posteriormente Alexy, em razão de críticas levantadas por Aarnio e Sieckman, passou a carcaterizar os princípios como “comandos para serem otimizados“. Os mandamentos de otimização correspondem, na verdade, a mandamentos definitivos, ou seja, eles possuem uma estrutura de regra e se localizam em um metanível. Os princípios são, por isso, os objetos da ponderação, não os comandos que determinam a otimização. Cf. Alexy 2000.

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princípios (Klement 2008, 762s., Poscher 2003, 77ss., Jestaedt 2007, 267ss.). E se a associação entre o modo de aplicação de princípios jurídicos e holismo faz sentido, então parece realmente que Schauer tem um ponto quando alerta para a possível perda da textualidade do direito quando se vincula à ponderação de prin-cípios alguma pretensão de sobrerracionalidade (no caso, a sobrerracionalidade como produto da afirmação de uma proximidade estrutural entre ponderação e subsunção). Este argumento, parece-me, pode ser aprofundado como uma crítica interna à teoria.

A caracterização da ponderação como holista resulta do fato de que a pro-porcionalidade em sentido estrito requer a consideração de todos os elementos normativos relativos ao caso que sejam relevantes para a decisão da colisão (Sieckmann 2009, 29), ao pressupor – este seria o cerne do problema que se apresenta – que as orientações das razões fundadas sobre princípios podem variar em razão das circunstâncias. De forma mais clara: a teoria dos princípios se sustentaria sobre a crença de que uma razão em um caso pode ser uma razão oposta em outro cenário (Dancy 2008a, 73). Esse é o ponto central para que se diga que esse tipo de holismo pode ser caracterizado como um tipo de particularismo (Dancy 2008b, 130-156). A liberdade de imprensa pode ser, em um caso 1, o valor que está sendo promovido às custas de outros direitos fundamentais restringidos (a privacidade, por exemplo), enquanto que, em um caso 2, com circunstâncias diferentes, ela pode ser o valor restringido em relação a outras finalidades constitucionais que, na hipótese, estão sendo promovidas. São as circunstâncias do caso, portanto, que definem se um determinado princípio pode ser considerado promovido ou restringido. Nas palavras de Pozzolo “é o con- texto da ação que faz a diferença prática e explica a diversa valoração atribuída às propriedades relevantes objeto de julgamento” (Pozzolo 206, 109). Nos limites da teoria, é, então, da justificação dos resultados sob determinadas circunstâncias que decorre a validade das normas definitivas que resultam do procedimento de balanceamento. Por sua vez, a legitimidade dos resultados da ponderação, como visto, decorre de sua racionalidade (Alexy 2003, 771), que – já vimos – depende das contribuições de uma teoria da argumentação jurídica e de instrumentos metodológicos que definem a sua estrutura.

O holismo típico do processo de tomada de decisão com base em princípios jurídicos não seria, porém, um problema, se a teoria dos princípios também não

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levantasse pretensões explicativas sustentadas sobre o conceito de princípio a respeito da estrutura das regras e do sistema jurídico. Com efeito, a ponderação como procedimento argumentativo expande-se por toda a estrutura do sistema jurídico, na medida em que todos os seus elementos normativos podem ser reconstruídos como resultados de interações entre princípios. Dessa forma, a validade e a consequente força vinculante de todas as normas definitivas do sistema jurídico deixar-se-ia justificar por meio da possibilidade de recondução à ponderação que lhes são subjacentes (Sieckmann 2009, 16). No âmbito da teoria dos princípios, o sistema jurídico deixaria, por conseguinte, de ser concebido como uma ordem escalonada fundada prioritariamente pela ideia de autoridade para se tornar uma ordem racional (Sieckmann 2009, 27s.), que se expressaria por meio de uma grande rede composta por normas passíveis de ponderação e de resultados de ponderações. Nessa estrutura do sistema jurídico, a força das decisões definitivas, que possuem a natureza de regra, não se basearia na autonomia do seu enunciado em relação às suas respectivas justificações subjacentes, ou seja, na sua força qua regra, mas em uma truncada interação entre princípios. Por um lado, a legitimidade das regras poderia ser explicada nos termos de uma ponderação entre princípios materiais, enquanto, por outro, a sua força normativa seria justificada por meio de princípios formais, “que estatuem a vinculação ao resultado de procedimentos anteriores” (Sieckmann 1990, 147). Em resumo, tanto a estrutura como a racionalidade de todas as normas definitivas do sistema seriam, nos termos da teoria, explicadas a partir da referência ao resultado da consideração de diversos elementos envolvidos em uma ponderação.14

A conjugação da centralidade do conceito de princípio para explicar a natu-reza e funcionamento das normas jurídicas com o holismo e a minimização das diferenças estruturais entre subsunção e ponderação traz relevantes consequências para a aplicação do direito. Como antecipado, a doutrina da ponderação pressu-põe um particularismo de princípios. Esse não é conceitualmente um problema, já que os princípios são definidos como comandos para serem otimizados à luz de circunstâncias específicas. Ao que parece, no entanto, essa concepção poderia implicar também um particularismo de regras, no sentido apresentado pelo próprio

14 Esse é, aliás, um fundamento capaz de contribuir para a dissolução da existência de uma distinção do tipo estrutural entre regras e princípios.

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Schauer (Schauer 1991, 136-137, 192)15, ao incentivar julgamentos equitativos orientados na consideração dos princípios que suportam as regras e outros que possam estar presentes no caso. O processo de tomada de decisão jurídica se tornaria, assim, refém da variação do sentido das razões morais incorporadas no sistema jurídico por meio dos princípios, que não poderiam deixar de ser consideradas em qualquer processo de justificação (Pozzolo 2006, 110). A meu ver, aí se localiza, nos termos da própria teoria, a base para a crítica de Schauer.

Tal qual esboçado, a tese central do particularismo pode ser resumida na crença na polaridade ou ubiquidade das razões (Dancy 2008b, 131 e Hooker 2008, 6). A roupagem que uma dada razão possui depende, com outras palavras, fundamentalmente do contexto em que ela emerge. Dessa forma, como uma mesma razão pode funcionar em diferentes circunstâncias como argumento pró ou contra certa conclusão, a tomada de decisões práticas não se deixaria orientar por regras gerais ou princípios universais, mas sempre pela análise minuciosa de todos os elementos de cada caso. Na verdade, o particularismo nega a im-portância que princípios universais possam ter na orientação de ações, já que, por se fundamentarem na “acontextualidade” das razões, eles tendem a incorporar permanentemente novas exceções, que alteram no mesmo ritmo a formulação dos seus predicados. No particularismo, regras e princípios gerais não constran-gem, por isso, o raciocínio prático porque não são capazes de desempenhar qualquer papel constitutivo. Ao contrário, eventual convergência entre aquilo que uma regra geral ou princípio universal prescreve e o resultado de um juízo particularista é meramente contingente e é sempre explicada em termos particularistas. Mesmo a aceitação de razões invariáveis torna-se, assim, uma questão epistemológica (Dancy 2008b, 137): se a polaridade de algumas razões é cons- tante é por conta do seu conteúdo particular verificado em um caso específico.

Definir, portanto, princípios como mandamentos de otimização significaria simplesmente reconhecer sua capacidade de sustentar razões ubíquas em diferentes circunstâncias. Isso é suficiente para justificar um particularismo de princípios nos seguintes termos: todas as vezes em que se constatar a incidência de princípios em colisão, deve-se considerar todas as circunstâncias para a

15 O caso parece estar mais próximo de um particularismo sensível a regras, nos termos do autor.

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tomada de decisão16. Isso, contudo, não difere do que prescreve a teoria. A questão espinhosa é saber se esse mesmo raciocínio se aplica para a tomada de decisão diante da incidência de regras.

A defesa mais forte que se pode fazer dessa tese parece-me recorrer ao citado paradoxo da determinação17. De acordo com esse paradoxo, o desenvolvimento de mecanismos destinados ao aumento de racionalidade da ponderação visa, em primeiro lugar, ao correspondente aumento de sua determinação. Essa determinação pretende atuar tanto nos planos explicativo como normativo dos processos de compreensão e aplicação do direito. Assim, por um lado, tanto a lei de colisão, como a lei de sopesamento e a fórmula do peso visam a esclarecer como comandos definitivos do sistema jurídico (que detêm a estrutura de regras) são justificados nos termos de uma ponderação. Por outro, aqueles três elementos também erigem a pretensão de servir de norte para o tomador de decisão, ao definirem os seus ônus de argumentação com o máximo de objetividade possível. Especificamente em relação à fórmula de ponderação, ressalte-se novamente que ela “representa um esquema que funciona de acordo com as regras da aritmética” (Alexy 2003, 448), o que a tornaria para a ponderação o que as regras da lógica seriam para a subsunção (Alexy 2003, 448), caracterizada como “a primeira racionalidade da ciência do direito” (Schlink 2009, 5).

Nessas bases, ao investir na racionalidade da ponderação como mecanismo de tomada de decisão jurídica e tentar explicar toda a estrutura do sistema jurídico e de suas normas definitivas a partir de ponderações, o modelo de princípios de Alexy criaria incentivos para um particularismo global do raciocínio jurídico. Dessa maneira, a sobrerracionalização da ponderação e o papel de protagonista que ela desempenharia na estrutura do sistema jurídico, contribuiriam para o

16 Essa afirmação é especialmente adequada para países como Alemanha e Israel, nos quais cmumente a aplicação da máxima da proporcionalidade atinge o último nível. V. a respeito Stone-Sweet e Mathews 2008.

17 Há naturalmente outras possibilidades de justificar o uso frequente da proporcionalidade e da ponderação, o que implica análises particularistas. Segundo Stone-Sweet/Mathews, por exemplo, ,,[j]udges could develop and maintain strong deference doctrines, assuring that “judicial” authority to supervise “political” authority – when it comes to balancing situations – would be exercised only at the margins, rather than systematically. In our view, traditional reasonableness postures are defensible, but not from the standpoint of modern constitutionalism” (Id. p. 64. Grifo acrescido). Conformações institucionais podem ser também determinantes para fomentar um ativismo judicial. V. Hirschl 2004.

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escamoteamento das suas limitações e para a deterioração do lado formal do di-reito (Schauer 2012, 315ss). No coração do problema está, como já dito, a tese problemática de que subsunção e ponderação são esquemas formais capazes de garantir a satisfação em níveis próximos das expectativas de racionalidade dos participantes do discurso jurídico e, sobretudo, os efeitos de uma tal crença para o raciocínio judicial. O principal desses efeitos é algum tipo de ingenuidade sobre os potenciais da ponderação na solução de casos concretos. Este é um outro tipo de problema relacionado à objeção de super-racionalidade.18

Mas quais são os limites para o desenvolvimento de ponderações? Se a pro- porcionalidade permite, de fato, que análises casuísticas possam ser feitas da melhor forma possível, o que impede o tomador de decisão de entender a teoria dos princípios e seus mecanismos de racionalidade como incentivos para empreender julgamentos sob a consideração de todas as circunstâncias em casos específicos? Aharon Barak, juiz da Suprema Corte de Israel e conhecido entusiasta da Verhältnismäßigkeitsgrundsatz, já foi chamado, por exemplo, de “déspota esclarecido” (Posner 2007, 53-55)19 por sua postura extremamente ativista baseada na ponderação. Ao contrário das críticas tradicionalmente dirigidas à ponderação, o risco aqui – ainda que não o exclua – não está na afirmação da sua suposta irracionalidade20, mas na crença excessivamente otimista de que os

18 Um exemplo dessa visão pode ser retirado das palavras de Beatty: ”Proportionality allows casuistry to operate at its best. (…) Because proportionality refuses to accord either rights or number any special status, it can claim an objectivity and integrity no other model of judicial review can match. It avoids the subjectivity and indeterminacy that plagues interpretation and cost/benefit calculations alike. (…) The way pragmatists think about the legal principles judges use to decide cases fits proportionality like a glove. (…) Pragmatists too believe all judgements are contextual and contingent an relative to the particular circumstances in which they are made (…). Proportionality makes pragmatism the best it can possibly be. Proportionality permits pragmatic judges to attain a level of objectivity and impartiality beyond anything they have achieved so far”. Beatty 2004, 170, 171, 183, 184 e 187. Outros exemplos: “Impartially applied, proportionality permits disputes about the limits of legitime lawmaking to be settled on the basis of reason and rational argument (Id. p.169)”. “On a proportionality model, the day-to-day practice of judicial review has nothing to do with interpretative puzzles. (…) It is, as Habermas emphasizes, a process of rule or norm application pure and simple. It is all and only about proportionality (Id. p. 170).

19 Contra cf. Medina 2007. 20 Pozzolo é um exemplo de quem acusa a ponderação de princípios de particularista, mas

a partir da sua suposta irracionalidade. Com as suas palavras: “[c]omo me parece claro, o debate sobre o juízo de ponderação, ou melhor, sobre o modo de resolver o conflito entre

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instrumentos fornecidos pela teoria dos princípios pode torná-la suficientemen-te racional a ponto de legitimar análises particularistas sem maiores dificuldades. Na ausência de maiores limites, porém, a consequência do empreendimento de análises equitativas pretensamente seguras, porquanto pretensamente racionais, seria o aumento de indeterminação no sistema jurídico, já que todo o processo de aplicação do direito passaria a depender de juízos “all things considered”, o que significa mais variáveis no processo decisório e maiores exigências de processamento de informações.

Para o modelo de regras desenvolvido pela teoria, as consequências desse raciocínio seriam perversas. Se as regras são caracterizadas como resultados de ponderações de princípios e sua força vinculante decorre também de um princípio (independentemente de sua natureza formal, já que, por definição, princípios são normas ponderáveis), bastaria, então, reconhecer a potencial polaridade das razões para que o tomador de decisão tivesse sempre que voltar à ponderação original para saber se os princípios que sustentam a regra aplicável em um caso desempenham, nas circunstâncias atuais, o mesmo papel de outrora. Caso contrário, terá o juiz que justificar a derrotabilidade da regra, o que também é realizado e explicado pela teoria nos termos de uma nova ponderação (Hwang 2008, 94ss). Por conseguinte, seria suficiente que o tomador de decisão tivesse qualquer dúvida a respeito da aplicabilidade de uma regra em um dado caso para que uma ponderação não limitada pela presença de uma regra no caso fosse iniciada. Não fazê-lo seria contradizer as bases do modelo de princípios. Por esse motivo, parecem corretas as críticas que afirmam o caráter prima facie das razões sustentadas por regras e a perda da vinculação ao texto no modelo de princípios (Klement 2008, 759), mesmo quando uma nova ponderação não é realizada.

3.2. os pressupostos epistêmicos da fórmula do peso e as suas condições reais de operacionalização

Se a primeira base para se especular sobre possíveis pretensões hiper-racionalistas subjacentes ao instrumental metodológico desenvolvido por Alexy

princípios constitucionais, deriva do fato de que parece não ser possível oferecer uma solução racionalmente fundada e controlável”. V. Pozzolo 2006, 114.

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para estruturar a ponderação se localiza no reconhecimento de uma proximidade estrutural entre subsunção e ponderação em um modelo teórico que relaciona a aplicação de princípios com particularismo, a segunda dessas bases está relacionada às prováveis exigências epistêmicas elevadas vinculadas aos sofisticados métodos de decisão fornecidos pela teoria. Esse é o centro de uma proposta de “tomada de consciência” (Schuartz 2005, 220) a respeito das potencialidades do trabalho desenvolvido por Alexy articulada por Schuartz.

Nesta dimensão da crítica, o problema da ponderação se localizaria na pres- suposição de que a realização de princípios em colisão relativamente às possibilidades jurídicas exige uma série de informações de difícil obtenção e o respectivo processamento desses dados (Schuartz 2005, 218ss.). O referencial da própria teoria usado como ponto de partida para a formulação da crítica é o conceito de princípios como mandamentos de otimização, ideia-chave em torno da qual são desenvolvidas as estruturas de argumentação racional. De acordo com a definição, mais uma vez, princípios são normas cuja realização em concreto se dá na maior medida possível de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas. E é na referência ao “máximo possível”, corretamente apresentado como um “misto de princípio regulador e variável de restrição em problemas de maximização do tipo trade-off” (Schuartz 2005, 190), que se localiza o perigo de oferecimento de regras de argumentação excessivamente exigentes destinadas a orientar a práxis de aplicação de princípios em colisão.

A fórmula do peso pode ser compreendida como a tentativa mais sofisticada de fixação de um roteiro argumentativo para a justificação dos resultados de ponderações. Ela ergue ao mesmo tempo as pretensões de ser o produto da reconstrução racional da prática do tribunal constitucional federal alemão e um referencial normativo para o desenvolvimento dessa prática e para a avaliação dos seus produtos. Como referência a uma práxis que se quer compreender, organizar e estruturar racionalmente para que ela mesma, reconstruída, possa servir de base para a condução de processos decisórios, sua importância como instrumento metodológico é retirada exatamente da possibilidade real de elaboração de juízos passíveis de universalização – ou pelo menos com pretensão de validade intersubjetiva, como é o caso da teoria – sobre as suas variáveis, ou seja, sobre (i) a intensidade da intervenção em cada um dos princípios envolvidos no caso, (ii)

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a relação de peso abstrato entre os mesmos e (iii) a confiabilidade das premissas empíricas que sustentam a realização de um princípio e a não-realização do outro (Alexy 2010, 790). E é em um suposto descompasso entre o “possível” vislumbrado pela teoria e o “possível” efetivo que se localiza o problema da racionalidade da ponderação, desta vez apresentado em um sentido completamente diverso daquele mais comumente relacionado ao discurso dos princípios.

O ataque quase óbvio a uma empreitada desse tipo, que se sustenta sobre a figura de um “ponto de ótimo” a ser perseguido, é o de vincular as ambições de racionalidade da teoria com a existência e a possibilidade efetiva de alcance de uma única resposta correta. Hiper-racionalidade, neste ponto, não significa mais do que confiar no potencial epistêmico do método e dos seus manipuladores para o alcance de níveis ideais de certeza e objetividade. As expressões “ótimo” e “maior medida possível” não seriam, assim, apenas metáforas na teoria, mas fontes para a criação, nos seus destinatários, de expectativas realizáveis sobre o funcionamento adequado da ponderação, que são reforçadas a cada nova tentativa de Alexy e de seus seguidores de criar ou refinar modelos de tomada de decisão em casos concretos que envolvam princípios em colisão (Schuartz 2005, 196). Esse parece ser realmente o caso quando Alexy afirma que um discurso ideal21 é uma ideia regulativa na qual devem se orientar discursos reais. Ao representar os “objetivos ou o ponto final” destes, aquele exige a maior aproximação possível entre os dois para que se satisfaçam níveis desejáveis de correção (Alexy 2009, 157). Uma única resposta correta parece ser, dessa forma, um objetivo a perseguir. E, se este é o caso, não é estranha a conclusão de que o desenvolvimento de mecanismos normativos de argumentação, ainda que inspirados na reconstrução racional das operações implícitas vinculadas às valorações empreendidas por participantes de processos decisórios reais, visem ao alcance metodologicamente orientado das melhores respostas possíveis.

Esta, porém, não é uma objeção nova. E, como visto, sustentável. Alexy se refere à utilidade prática da orientação em discursos ideais como o “problema

21 Um discurso ideal é definido pela busca de uma resposta para uma questão prática “sob as condições de tempo ilimitado, participação ilimitada e completa ausência de coerção na direção da produção de completa clareza linguístico-conceitual, completa informação empírica, completa capacidade e disposição para a troca de papéis e completa imparcialidade”. V. Alexy 2009, 157.

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do conhecimento”. Como as condições ideais de deliberação que permitiriam o alcance das melhores respostas possíveis não são, por definição, realizáveis, torna-se naturalmente questionável até que ponto faz sentido orientar-se em algum tipo de ideal. A resposta de Alexy parte da possibilidade de uma aproximação efetiva entre discursos reais e ideais. Mas essa aproximação está longe de significar a aceitação (i) da existência de um único resultado para cada problema prático, mesmo no âmbito de discursos ideais, e (ii) da possibilidade de alcance desses resultados. Como admite o próprio Alexy, “[a] conexão do discurso ideal com o real é capaz de eliminar a indefinição de resultados apenas de modo altamente limitado” (Alexy 2009, 158). Alexy reconhece a possibilidade teórica de que questões práticas possam admitir um conjunto não unitário de soluções igualmente corretas. É possível, como também afirma Schuartz, haver soluções melhores do que outras, sem que, para tanto, seja preciso pressupor a existência de uma resposta melhor do que qualquer outra. Não há, nesse ponto, qualquer contradição, seja no nível semântico, seja no nível pragmático, entre chamar uma decisão de incorreta e, simultaneamente, afirmar que não existe a decisão correta (Schuartz 2005, 197). O que Schuartz neste aspecto parece apresentar como fundamentos para a crítica converge, na verdade, com pressupostos da teoria. Esse ponto de vista é claramente defendido por Alexy quando ele diferencia resultados discursivamente impossíveis (como a escravidão), de resultados discursivamente necessários (os direitos humanos, por exemplo) e de resultados discursivamente possíveis (Alexy 2009, 158). Nesses últimos casos, caracterizados pela existência de desacordos racionais, não há violação de regras discursivas, o que exclui a possibilidade de afirmação de não serem ambos os resultados, ainda que reciprocamente excludentes, aceitáveis do ponto de vista das condições in-ternas de racionalidade pressupostas pelo modelo. A afirmação de que discursos ideais possuem uma utilidade limitada para resolver problemas de indefinição de resultados se justifica, assim, apenas na medida em que a aproximação entre ideal e real é especialmente útil para justificar resultados necessários e, sobretudo, excluir os discursivamente impossíveis. Mas mesmo essa utilidade marginal não seria capaz de excluir qualquer investimento em ideais regulativos. Além disso, ela não submete julgamentos sobre a importância de mecanismos como a fórmula do peso à possibilidade de alcance permanente de respostas ideais.

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O problema da única resposta correta, ainda que possa ser teoricamente aprofundado, não me parece, assim, um fator decisivo para o desenvolvimento de uma crítica de hiper-racionalidade da ponderação e dos instrumentos metodológicos desenvolvidos por Alexy que pretendem orientá-la. O tipo de objeção epistêmica que parece ter o potencial para atingir o alvo quando dire-cionada à teoria dos princípios diz respeito, portanto, não ao conhecimento dos resultados que possam servir de parâmetro para o controle crítico de ponderações, mas à dificuldade de acesso e processamento dos dados pressupostos pela teoria para a realização de uma ponderação adequada, entendida como a resultante da aplicação efetiva das variáveis da fórmula do peso. Isso porque, se a objeção é correta, sem esses dados, ao contrário do que a teoria promete, a sofisticação metodológica alcançada por Alexy, em vez de reduzir a incerteza relacionada a qualquer processo de realização de princípios relativamente às possibilidades jurídicas, tem o potencial para aumentá-la descontroladamente.

Essa potencialidade de elevação dos níveis de incerteza não decorreria, neste caso, de uma compreensão inadequada da teoria em ambientes de aplicação, mas seria uma consequência das pretensões reconstrutivas da fórmula do peso, que pretende modelar fidedigna e racionalmente a práxis ponderativa tal qual ela se desenvolve (Schuartz 2005, 219). Como já dito, a fórmula do peso é subs-tancialmente uma tentativa de identificar e estruturar os espaços de valoração no âmbito dos quais a ponderação de princípios é levada adiante nas salas do tribunal constitucional, que, ao final, pretende (re)conduzir processos reais de justificação ao permitir a extração de conclusões a partir de certas premissas. Ela se inspira na realidade que observa e reconstrói para, retornando a ela, tentar reorientá-la por meio de um esquema de decisão. Essa condensação ao mesmo tempo sintetizadora e ordenadora da práxis, porém, tende a se tornar um problema quando os esforços de reconstrução aspiram a representar tão detalhadamente o processo decisório que dificultam ou inviabilizam a reorientação dessa mesma práxis nos termos do próprio modelo, que se torna excessivamente exigente para os seus aplicadores. A meu ver, esse potencial caráter excessivamente exigente do modelo pode decorrer tanto da determinação cada vez mais minuciosa das trilhas argumentativas pelas quais o tomador de decisão deve passar, o que tende a levar o aumento das variáveis a serem consideradas em processos reais de justificação, como, independentemente dessa granulação da argumentação, das

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capacidades para a obtenção e processamento de informações pressupostas para a operacionalização adequada do modelo. Para Schuartz, o risco a se considerar está, sobretudo, nesse segundo nível, na medida em que parece haver uma confiança excessiva pressuposta pela teoria “na nossa capacidade de obtenção e na qualidade das premissas requeridas e continuamente utilizadas” no processo de passagem das premissas colocadas pelo modelo para as conclusões (Schuartz 2005, 219).

O alerta para os limites epistêmicos que afetam tomadores reais de decisão, sejam eles intrinsecamente vinculados à condição humana, sejam eles impostos pelo próprio direito ou pelo arranjo institucional dentro do qual as competências desses agentes são exercidas, não chega a ser uma novidade (Leal 2013). Ao contrário, levar a sério as habilidades e limites cognitivos de tomadores de decisão são, para alguns, preocupações pragmáticas a serem necessariamente consideradas em qualquer modelo normativo de decisão jurídica que precisa ser operacionalizado por pessoas de carne e osso (Sunstein & Vermeule 2003 e Posner 2003). A força da crítica de Schuartz, porém, não se extrai apenas de exigências pragmáticas externas ao modelo de ponderação, mas da articulação, sustentada por uma crítica filosófica mais profunda, de uma objeção interna à relação entre o seu processo de construção e a sua efetiva operacionalização. Nesse nível da crítica, o paradoxo da determinação é um resultado quase que esperado da tentativa de submeter, ao menos em alguma medida, as condições de correção prática de decisões dentro do direito a condições de racionalidade epistêmica, ou, como coloca o próprio Schuartz, de relacionar “justiça” com “verdade” (Schuartz 2005, 221). A tensão entre esses dois objetivos que parecem nortear a construção da fórmula do peso é evidente, sobretudo, quando a variável sobre a confiabilidade das premissas empíricas que suportam a realização e não-realização dos princípios colidentes está em jogo.

Se a dificuldade de operacionalização das duas primeiras variáveis – respec-tivamente sobre o grau de interferência entre os princípios e a relação de peso abstrato entre os dois – já parece evidente, o manejo adequado da terceira tende a aumentar perigosamente os níveis de incerteza de processos decisórios reais, na medida em que a solução de uma questão jurídica pode exigir conhecimentos extrajurídicos, cuja validade ou confiabilidade estão sujeitas aos critérios fixados pela ciência para a atribuição de predicados como “seguro”, “plausível/defensável” ou “não evidentemente falso”, exatamente os parâmetros de valoração sugeridos

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pela fórmula para a manipulação da fração (Si/Sj) (Alexy 2010, 789). A questão complexa de fundo, aparentemente não resolvida pela teoria, diz respeito à com-posição adequada das relações, inevitáveis, mas necessariamente problemáticas, entre direito e ciência. De fato, como indica Schuartz, “o significado de expressões como verdade, certeza, plausibilidade, etc. quando empregadas para referências a premissas utilizadas em inferências jurídicas não é igual ao significado dos mesmos termos quando empregados para referências a premissas utilizadas em inferências científicas, e os critérios de correção de inferências de um desses tipos não servem como critérios de correção de inferências do outro tipo” (Schuartz 2005, 224). Essa constatação impõe o desenvolvimento de mecanismos propriamente jurídicos capazes de permitir uma transição minimamente controlável entre os discursos jurídico e científico, sob pena de o direito ser inundado pelas incertezas típicas da construção e evolução do conhecimento científico. Quando isso não é feito, o que parece ser o cerne do pedido de “tomada de consciência” sugerido pelo autor, coloca-se não apenas a utilidade do direito como mecanismo de estabilização de expectativas normativas em xeque, como o tomador de decisão na desconfortável posição de um pretenso conhecedor e mediador – quase sempre como um árbitro despreparado – de disputas não apenas jurídicas, mas também científicas. O problema estrutural entre direito e ciência se une, aqui, ao problema das capacidades epistêmicas de “juristas” quando são chamados a lidar com questões enfrentadas por “cientistas”.

A decisão Cannabis do Tribunal Constitucional Federal Alemão22 e as discus-sões recentes no Brasil sobre o uso de amianto23 exemplificam como conhecimen- tos não jurídicos podem ser decisivos para a tomada de decisão. Afinal, a identificação do grau de restrição do direito à saúde nos casos depende do modo como a comunidade científica se posiciona a respeito do assunto. E essa visão é crucial para que o tribunal constitucional possa determinar se medidas que venham a proibir o consumo de maconha ou o uso de certas fibras de amianto para a construção de caixas d’água são constitucionais ou inconstitucionais.24 Mas será

22 BVerfGE 90, 145.23 ADI 3.937/SP.24 No caso do amianto, a busca por algum tipo de legitimidade epistêmica da decisão levou o

STF a convocar uma audiência pública para ouvir especialistas sobre a matéria. A audiência foi realizada em 24 e 31 de agosto de 2012.

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que a fórmula do peso espera realmente que um juiz seja capaz de conhecer e, em caso de visões diferentes dentro da própria ciência, valorar as premissas empíricas relacionadas à promoção e restrição de cada princípio em jogo? Se é este o caso, a necessidade de obtenção e processamento adequado de dados como o grau de prejuízo para a saúde relacionado ao consumo de maconha ou a possibilidade efetiva de uso de fibras de amianto causarem câncer, revelaria como o problema da fórmula estaria localizado exatamente na dificuldade efetiva de emissão de juízos confiáveis a respeito desses e outros temas. Ampliando o alcance do argumento para abranger também as dificuldades de operacionalização das outras variáveis da fórmula – ainda que elas não lidem com incertezas relacionadas ao conhecimento ou prova de fatos –, o que se tem no final do dia é: em vez de as variáveis da fórmula contribuírem para aumentar a racionalidade de ponderações, elas apenas escancarariam, de forma organizada, mas desorientada, as valorações realizadas por tomadores de decisão quando ponderam. O abismo entre as promessas teóricas por trás da fórmula e os ganhos efetivos vinculados à sua aplicação por pessoas com limitadas capacidades epistêmicas é que permitiriam entendê-la como um delírio racionalista. Como tal, a ponderação orientada pela fórmula do peso passaria apenas uma pseudo-impressão de racionalidade, e o seu uso frequente sustentado sobre uma miopia a respeito dos seus verdadeiros potenciais só traria mais in-certeza para a tomada de decisão jurídica, especialmente quando aos problemas epistêmicos da fórmula se unissem os problemas da perda de textualidade.

4. a teoria das boas perguntas

Tanto a crítica da erosão da textualidade do direito como a objeção relativa ao caráter excessivamente exigente da ponderação evidenciam problemas que parecem bem mais críveis do que a afirmação de uma plena irracionalidade dos métodos propostos pela teoria dos princípios para conduzir processos decisórios reais que envolvem princípios colidentes. O investimento constante em regras de argumentação, sobretudo aqueles que partem de esforços de reconstrução racional de esquemas de decisão difusamente assentados sobre uma determinada práxis, antes de diluir o exercício da autoridade do direito em arbítrio, contribui para a estabilização no longo prazo dessa mesma práxis ao permitir que processos decisórios complexos se guiem por roteiros previamente existentes, ainda que eles

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não levem a resultados unívocos. É o trabalho em torno de campos de argumentação predeterminados que possibilita (i) a explicitação dos espaços relevantes de argumentação implicitamente reconhecidos no âmbito da própria práxis que se reconstrói, (ii) a identificação dos titulares dos deveres de argumentação e de prova e das soluções para os casos em que os respectivos ônus não são superados, (iii) a organização das expectativas normativas dos participantes de processos decisórios em torno do roteiro a ser observado na solução de casos difíceis e (iv) aprendizado institucional por meio de ganhos de qualidade discursiva (Schuartz 2005, 186). Isso acontece exatamente quando Alexy oferece uma estrutura específica para o desenvolvimento da ponderação – a fórmula do peso –, na medida em que ela fixa quais são os espaços argumentativos relevantes que devem ser ocupados por juí- zes, advogados e observadores críticos da prática do tribunal na solução de casos que envolvem princípios em colisão. A aposta da teoria se dá, sobretudo, na crença de que, quando todos aceitam, internalizam e esperam a observância de determinado roteiro, é possível estabilizar o processo decisório e permitir que ele se aperfeiçoe ao longo do tempo, seja pela inclusão de novos roteiros argumentativos, seja pela melhoria do processo de justificação dentro dos roteiros já existentes. É por esses motivos que a ponderação de princípios, desde que devidamente estruturada e que essa estrutura seja observada, não é necessariamente um procedimento irracional de tomada de decisão em casos difíceis.

Os problemas da hiper-racionalização do processo decisório, porém, conti-nuam abertos. A hipótese de que a ponderação e o instrumental metodológico a ela vinculado pelo trabalho de Alexy, por um lado, conduzem a um particularismo de regras traz graves consequências para a dimensão de autoridade do direito e para as pretensões dogmáticas da teoria dos princípios. A possibilidade de o modelo de justificação vinculado à ponderação de princípios não ser operacionalizável na prática, por outro lado, impede que a incerteza atrelada à solução de casos difíceis no direito seja controlada ou reduzida. Ambas as críticas, porém, não levam dire-tamente ao descarte da ponderação e desqualificam os esforços metodológicos destinados à definição dos esquemas argumentativos relevantes, por mais complexos que possam ser, para a justificação racional de decisões. Eles sugerem, a meu ver, ajustes no edifício teórico geral de Alexy e esforços complementares voltados a tornar possível o desenvolvimento de cadeias argumentativas confiáveis pelos participantes do discurso jurídico.

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No caso das críticas de Schauer, o que se pretende evidenciar é uma dissonância entre algumas bases fundamentais sobre o conceito de direito do projeto teórico alexyano, anunciado como uma tentativa de institucionalização da razão (Alexy 1999), a teoria dos princípios e o modelo decisório desenvolvido para orientar processos decisórios reais. As peças que precisam ainda se encaixar e, em alguns casos, precisam ser lapidadas são (i) a afirmação da prioridade prima facie da dimensão autoritativa do direito sobre a dimensão ideal (Alexy 2009, 159s), que sustenta a inadmissibilidade de desvios frequentes do material jurídico autorita-tivo e leva a sério as referências textuais como limites à tomada de decisão, (ii) a estrutura dos princípios formais, que garantiriam a força das regras na teoria dos princípios25, e (iii) o papel dos princípios formais na construção de um modelo de regras não transparente. A articulação adequada entre esses elementos parece-me fundamental para que seja possível, à luz da teoria dos princípios, demarcar as diferenças estruturais entre ponderação e subsunção a partir da própria distinção entre os ônus de argumentação envolvidos no trabalho de tomada de decisão com princípios e regras, sobretudo nos casos de derrotabilidade de regras.

No caso dos riscos apontados por Schuartz, alerta-se especialmente para a importância do desenvolvimento de regras de regulação da prova no processo ju- dicial por meio da construção de standards de prova e de mecanismos de distribuição de ônus da prova (Schuartz 2009, 7). Essas regras jurídicas complementares poderiam atuar exatamente no espaço deixado pela fração (Si/Sj) da fórmula do peso para impedir que os limites do tomador de decisão para conhecer e arbitrar debates científicos redundassem em aumento descontrolado dos níveis de incerteza e de erro nas fronteiras do direito. Novos parâmetros capazes de atuar dentro do espaço argumentativo indicado pela referida fração possibilitariam que juízes desempenhassem adequadamente o papel de gatekeepers que permitem uma transição estável de conhecimentos científicos para o processo decisório sem desconsiderar as condições de racionalidade do próprio direito (Schuartz 2009, 34). Não se trata, é certo, de, por meio da criação dessas regras de

25 Tais normas são definidas em razão de sua independência de conteúdos materiais. Sua função é “fundamentar a vinculação de decisões específicas independentemente da sua correção interna”. Cf. Sieckmann 1990, 137. Segundo Alexy “cada princípio formal é (...) o fundamento para inúmeras margens de conformação que o tribunal constitucional federal reconhece ao legislador”. V. Alexy 2006, 120.

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regulação de fatos, dificultar a entrada de argumentos científicos no direito ou de tratar o testemunho de expertos com desconfiança.26 Ao contrário, o investimento em regras de coordenação do uso de argumentos científicos pretende apenas fixar ex ante condições gerais de confiabilidade de afirmações de especialistas para que elas possam contribuir, sem o aumento na solução de cada caso dos custos de decisão e de erro, para a justificação de juízos normativos. Esse parece ser um esforço necessário para que a metáfora da ponderação continue sendo apenas um referencial argumentativo para a proteção de direitos fundamentais “in a relatively standardized, easy-to-use form” (Stone-Sweet 2008, 11).

Como anteriormente dito, a racionalidade da ponderação decorre substancialmente da identificação dos caminhos pelos quais participantes de processos de tomada de decisão jurídica devem passar. O foco do desenvolvimento dos métodos de decisão não está, dessa forma, diretamente centrado nos resul-tados da ponderação, mas nas perguntas que devem ser feitas e em torno das quais deve girar o processo decisório para que os resultados possam ser considerados admissíveis. Assim, a proporcionalidade e a fórmula do peso são convites ao desenvolvimento das melhores respostas possíveis, entendidas aqui como o produto da satisfação de um dever de justificação, para questões previamente definidas. Estas, e não aquelas, são as protagonistas do modelo procedimental de justificação de decisões sugerido por Alexy. Sob essa perspectiva, as críticas de sobrerracionalidade só mostram que, em alguns casos, as boas perguntas não precisam ser respondidas para que se chegue a boas respostas. E que, em outros tantos, novas perguntas ainda precisam ser feitas para que as boas respostas possam ser encontradas.

5. referências

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26 Sobre os problemas relacionados ao tratamento diferenciado entre o testemunho de especialistas e de não-expertos nos tribunais, sobretudo os decorrentes da tentativa de, ao aumentar os níveis de exigência de confiabilidade dos testemunhos de expertos, impedir a entrada de junk science em processos decisórios, cf. Schauer & Spellman 2013.

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justiça intergeracional e a sociedade do século xxi: direito, ética e moral em uma

escala hiperdilatada de tempo

Dempsey Pereira Ramos Júnior1

Edson Damas da Silveira2

Resumo

A norma do artigo 225 da atual Constituição Federal brasileira inaugura um tipo de relação jurídica inédita no ordenamento pátrio. A geração presente é o sujeito devedor de uma obrigação cujos efeitos se projetam ao longo de uma escala hiperdilatada de tempo, jamais vivida na experiência jurídica dos povos da Terra. Por sua vez, as futuras gerações são alçadas à posição de sujeito de direito em uma relação jurídica intergeracional. Os problemas observados nesta temática referem-se ao conteúdo do conceito e à extensão dos direitos referentes a este novo sujeito de direito: as futuras gerações. Não existe no Brasil nem no exterior um conceito jurídico de futuras gerações. Como delimitar seus direitos e como decidir causas ambientais, quando os diferentes sujeitos são gerações de pessoas que podem estar separadas, umas das outras, por décadas, séculos ou até milênios? O presente artigo contextualiza essa temática a partir dos avanços científicos da sociedade do século XXI e sua repercussão no campo do direito, da ética e da moral. O uso da energia nuclear e os vôos espaciais impactam a vida das presentes e das futuras gerações de uma tal forma que, hoje, a sociedade global precisa lidar com problemas éticos e morais absolutamente novos, definitivamente inéditos, que sequer eram sonhados ao tempo de Platão e Kant. Noções clássicas de justiça como igualdade, imparcialidade e reciprocidade mudam completamente de sentido

1 Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal), Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), professor no curso de Graduação em Direito da UEA, Manaus, AM - Brasil, e-mail: [email protected]

2 Procurador de Justiça, Mestre e Doutor em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Pós-Doutor pela Universidade de Coimbra (Portugal), professor em cursos de Graduação, Especialização e no Mestrado em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), AM - Brasil, e-mail: [email protected]

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em um contexto intergeracional. Com base nas legislações portuguesa, alemã, norte-americana e espanhola, o artigo procura aclarar essas questões, abordando-se ainda a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Ponderar valores em um contexto intergeracional é uma tarefa melhor desempenhada quando o juiz ambiental conjuga, de modo adequado, os denominados capitais geracionais com o bem-estar geracional.

Palavras-chave

Filosofia do direito; Justiça intergeracional; Capitais geracionais; Bem-estar geracional; Futuras gerações.

Abstract

The article 225 of the current brazilian Federal Constitution brings a new type of legal relation into the Brazil’s Law. Present generation is the debit subject of an obligation whose effects go along an hiperextended scale of time, never lived before in the law experience of Earth’s people. By their turn, future generations have became subject of rights into a intergenerational law relation. Problems exist related to contents of concept and length of future generations’ rights. There is not nether in Brazil or overseas any concept about future generations. How to delimit their rights and how to decide their environmental claims, when different subjects of those legal process are generations set apart one from anothers by decades, centuries and millenniums? The present article puts this theme in context since cientific progress of Twenty First century society, analyzing its repercussion in the fields of law, ethics and morality. The nuclear energy utilization and space flights impact life of present and future generations in a such way that, today, global society needs to deal with ethical and moral problems absolutely news, definitively unprecedented, problems that were not even dreamed at the age of Platão and Kant. Classic notions of justice as equality, impartiality and mutuality change your sense entirely when analyzed into a intergenerational context. Based upon portuguese, german, north american and spanish Law, this article intends to clear those questions, by analyzing the brazilian Federal Supreme Court jurisprudence. To ponder values in an intergenerational context is a task better developed by an environmental judge when he conjugates, appropriately, the entitled generational capitals and generational well-being.

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Key words

Philosophy of Law; Intergenerational justice; Generational capitals; Gene-rational well-being; Future generations.

1. introdução

O presente artigo é fruto de pesquisa realizada acerca do elemento temporal do direito. Especificamente, é analisado de que forma o ordenamento jurídico brasileiro lida com os novos sujeitos de direito – as futuras gerações – que o artigo 225 da Constituição Federal introduziu na praxe jurídica a partir de 1988. Como método, esta pesquisa utiliza a revisão bibliográfica, a revisão de artigos, bem como a análise de decisões do Supremo Tribunal Federal brasileiro, decisões tomadas entre 1988 a 2014. É examinada também a Declaração sobre Responsabilidades das Gerações Presentes para as Futuras Gerações (UNESCO 1997). A partir de reflexões filosóficas sobre o tema, o artigo aborda a dimensão jurídica da questão e, ao longo do seu texto, vai apresentando o conceito jurídico de futuras gerações, o limite de seus direitos, o modo como suas lides vêm sendo decididas no Brasil e uma rápida, porém necessária, distinção acerca de conceitos que possuem utilidade prática para a decisão de causas intergeracionais: capitais geracionais e bem-estar geracional.

O objetivo da pesquisa é mostrar a hipercomplexidade e as múltiplas variáveis sociais, políticas, econômicas e demográficas com que um juiz ambiental precisa lidar ao decidir causas ambientais intergeracionais. Como resultado desta pesquisa, conclui-se que no Brasil o Supremo Tribunal Federal vem adotando uma posição mista, segundo a qual os capitais geracionais devem ser preservados, como base essencial e fundamental para se garantir o bem-estar geracional dos vindouros integrantes da humanidade. Porém, o princípio da primazia dos interesses futu-ros e o princípio da proporcionalidade devem ser temperados.

2. uma reflexão filosófica sobre as tragédias socio-econômicas

Desde a Grécia antiga que a noção de justiça vem ocupando o centro de um intenso debate filosófico. Apesar disso, conceitos sistemáticos e teorias de

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justiça abrangendo relações existentes entre gerações não contemporâneas de pessoas, somente começaram a aparecer nas últimas décadas do século XX. Este atraso pode ser explicado pelo fato de que o impacto das ações humanas e o âmbito de suas intervenções no planeta aumentaram significativamente apenas a partir do final do século XX. Foi especialmente a partir desse período que a tecnologia moderna deu ao homem o poder de arruinar o destino da humanidade e dos ecossistemas naturais, de modo irreversível. A escala de tempo se dilatou prolongando-se os efeitos das ações do homem, indefinidamente, rumo a um futuro distante. Hoje, as dimensões temporal e espacial da atividade humana ampliaram-se de tal forma que pessoas e regiões inteiras do planeta estão sob o risco de ser atingidas negativamente em escala global (TREMMEL, 2010, p. 28). No tempo de Platão e Kant:

as pessoas não tinham os mesmos problemas com relação ao meio ambiente, previdência social e contas nacionais como nós temos hoje. Portanto, não havia nenhuma necessidade objetiva de se construir teorias sobre a justiça que fossem ilimitadas no tempo e no espaço. De acordo com Hans Jonas, o novo território que o homem conquistou com a alta tecnologia é ainda uma terra de ninguém, quanto aos aspectos de uma teoria ética, a qual permanece como nos tempos de Newton (TREMMEL, 2010, p. 28).

Exemplos como o acidente da usina nuclear de Chernobyl, ocorrido em 26 de abril de 1986 na Ucrânia (então parte da extinta União Soviética), ilustram bem a questão acima colocada. Toda a Europa foi atingida por uma nuvem de iodo e césio radioativos. Dentre os elementos que vazaram do reator, considerando que o césio-137 possui uma meia-vida longa (30 anos), são registrados até hoje vestígios de sua presença em vários pontos do solo europeu e em alimentos agrícolas produzidos na região (IAEA, 2006, p. 10).

Decorridos exatos 25 (vinte e cinco) anos, ou seja, um quarto de século, até hoje o acidente de Chernobyl produz efeitos danosos para a saúde das populações atingidas, para o meio ambiente e para a socioeconomia das regiões afetadas. Um relatório da Agência Internacional de Energia Atômica, produzido em 2005, apontou que até aquela data 600 mil pessoas receberam elevadas doses de radioatividade, ou como vítimas do acidente, ou como trabalhadores de resgate. Embora muitas daquelas pessoas tenham recebido altas doses de radioatividade,

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sua grande maioria, além da população residente nas chamadas “áreas con-taminadas” da Bielorússia, da Rússia e da Ucrânia (cerca de 5 milhões de ha-bitantes) receberam doses relativamente baixas, semelhantes à radiação natural que existe em qualquer lugar do planeta. Porém, cerca de 4 mil crianças nascidas nos primeiros meses após o acidente em 1986, receberam altas doses de radiação através da ingestão do leite de suas próprias mães ou de animais contaminados. Todas as crianças desse grupo desenvolveram câncer na glândula tireóide, conforme diagnósticos feitos até 2002 (IAEA, 2006, p. 7).

Utilizando-se de um método estatístico, baseado em dados do bombardeio atômico de Hiroshima e Nagasaki (1945), um grupo de peritos internacionais apontou no citado relatório que em torno de 4 mil pessoas morrerão nas próximas décadas, vítimas do acidente de Chernobyl, sendo que 15 portadores de câncer na tireóide já morreram até 2002, dentre o grupo de crianças e adolescentes que foram expostos à nuvem radioativa em 1986. Além disso, há dados sobre os coortes (pessoas pertencentes a grupos etários) que foram expostos à radiação na época do acidente. Dentre os 61 mil trabalhadores russos (de várias idades) que participaram das operações de resgate, evacuação e descontaminação da região, estima-se que 5% das mortes ocorridas neste grupo, entre 1991-1998, sejam atribuídas à exposição radioativa. Porém, segundo reconhece a própria Agência Internacional de Energia Atômica, tais dados carecem de confirmação mediante estudos mais precisos envolvendo a reconstrução individual das doses recebidas por cada pessoa (IAEA, 2006, p. 16). Efeitos na saúde psicológica foram registrados, como estresse pós-traumático devido à rápida realocação de populações e rompimentos de contatos sociais, o que gerou depressão e ansiedade. Tais grupos, ao invés de construírem uma auto-imagem positiva de “sobreviventes”, acabaram desenvolvendo um sentimento de invalidez fatalista e uma auto-imagem de doentes, desamparados e necessitados que precisariam de ajuda alheia para o futuro de suas vidas (IAEA, 2006, p. 21).

Quanto aos impactos ambientais, Chernobyl deixou como herança uma área de 200 mil quilômetros quadrados da Europa contaminada com isótopos de plutônio e amerício-241, elementos que, por terem uma meia-vida muito longa, irão permanecer no meio ambiente por um período aproximado de centenas de milhares de anos (IAEA, 2006, p. 22). Em meados da década de 1990, os níveis de césio-137 presente nos produtos agrícolas, provenientes de áreas

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altamente afetadas, ainda exigiam medidas de mitigação ambiental. Devido a sua razoavelmente longa meia-vida (30 anos), o césio-137 continuará nas próximas décadas sendo o principal fator de contaminação do leite, da carne e dos alimentos vegetais devido à bioacumulação (IAEA, 2006, p. 24-25). Apesar dos níveis de césio-137 serem atualmente baixos em peixes e águas onde há fluxo hídrico; em lagos fechados, porém, a água e os peixes permanecerão contaminados por várias décadas. Dentre as medidas de mitigação dos danos ambientais, incluíram-se rejeitar o leite e a carne das regiões contaminadas. Não obstante a aplicação de tais medidas, anomalias genéticas continuavam sendo observadas até 2005 em plantas e animais (IAEA, 2006, p. 29).

Dentre os impactos socioeconômicos de Chernobyl, citam-se as perdas calculadas pela Bielorússia ao longo de trinta anos, número que atinge 200 bi-lhões de dólares. Uma grande sobrecarga nos orçamentos nacionais dos países atingidos pode ser citada também como, por exemplo, os gastos da Ucrânia com benefícios e programas relacionados ao acidente, que em 2005 atingiam 5-7% do orçamento anual. Na Bielorússia, esse percentual atingiu 22% em 1991. Estes gastos excessivos criaram uma sobrecarga fiscal insustentável para a Bielorússia e Ucrânia. Um total de 784.320 hectares de terras agricultáveis foram retiradas de serviço na Bielorússia, na Ucrânia e na Rússia. Além disso, o estigma Chernobyl fez com que consumidores rejeitassem produtos da região, levando a economia local a uma falência generalizada. Da época do acidente até 2005, cerca de 330 mil pessoas foram removidas da região. Por ter sido uma experiência traumática, a grande maioria dos reassentados sentiu-se injustiçada, mesmo após ser indeniza-da, desejando retornar às suas antigas vilas (IAEA, 2006, p. 34-36).

Na Alemanha, por sua vez, até 2005 todas as usinas nucleares tinham pro-duzido um total de 118 toneladas de plutônio-239, como substância residual de suas atividades (lixo radioativo). Considerando que a meia-vida deste elemento radioativo é de 24.110 anos, estima-se que apenas um grama dessa substância apresenta potencial para permanecer no ambiente, lançando radiação, por até 310.608 anos. E um grama de plutônio é bastante danoso ao ser humano (TREMMEL, 2009, p. 2). Vê-se que a perspectiva temporal é hiperdilatada nas questões comumente tratadas pelo direito ambiental.

Diante desta realidade, surgem questões que são ao mesmo tempo jurídicas e filosóficas. No modelo tradicional de direito, as questões jurídicas são pensadas

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em termos de intrageracionalidade, isto é, as relações jurídicas reguladas nas mais diversas legislações, não só do Brasil, mas nos principais países do mundo, seguem uma lógica intratemporal (justiça dentro de uma geração). Os problemas, em torno dos quais são elaboradas as diversas disposições normativas do direito clássico e tradicional, são problemas que ocorrem entre pessoas individualmente consideradas ou, quando mais complexos, entre grupos e coletividades difusas. Porém, todas essas pessoas são presentes, atuais e contemporâneas, coexistindo em um mesmo plano temporal, embora às vezes separados e distantes espa-cialmente, como nos casos do direito internacional.

Antes de prosseguir esse tema, será feita uma distinção necessária de termos para o presente estudo: “justiça” intergeracional é uma expressão elaborada por Tremmel (2009, p. 8 e 22) e que será tratada como sinônima da expressão “equidade” intergeracional, concebida por Weiss (1991, p. 23-24; 1992, cap. 12), possuindo ambas um conteúdo ético filosófico. Ambas são expressões que se opõem à ideia de justiça “intrageracional”. Por sua vez, “direito” intergeracio-nal será considerado nesse estudo o conjunto de normas e princípios técnico-jurídicos, que buscam aplicar de forma vinculada, coercitiva e com o maior grau de objetividade possível, os valores éticos tratados pela filosofia da justiça intergeracional. É um tipo de direito que regula relações jurídicas travadas entre gerações distintas de pessoas, que podem ser contemporâneas ou não. De certa forma direito e justiça acabam se entrecruzando e se misturando, pois um dos marcos teóricos adotados nesse estudo é o pós-positivismo, corrente conceituada por Barroso da seguinte maneira:

O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios, sua incorporação, explícita, pelos textos constitucionais e o reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre o Direito e a Ética. (BARROSO, 2009, p. 351-352)

Percebe-se, portanto, que justiça intergeracional é um conceito distinto de justiça intrageracional, sendo que ambas as expressões diferem também da noção

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de direito intergeracional. Justiça intergeracional é uma expressão sinônima de equidade intergeracional. Apesar de justiça intergeracional e justiça intrageracional serem expressões de significado distinto, ambas estão contidas dentro de uma noção mais ampla que é a de “sustentabilidade”.

Neste sentido, sustentabilidade é um conceito que trata da justiça intergeracional da mesma forma como trata a justiça intrageracional no nível normativo. As principais demandas no campo da justiça intergeracional referem-se a problemas ecológicos e financeiros, produzindo nas palavras de Tremmel a “sustentabilidade ecológica” e a “sustentabilidade financeira” (2009, p.8). Por sua vez, as demandas por justiça intrageracional, ainda no campo da sustentabili-dade, referem-se comumente aos casos de direito internacional (ajustes nas condições de vida entre países do norte e do sul), justiça entre ricos e pobres dentro de um mesmo país, e justiça entre homens e mulheres. Neste sentido, a justiça geracional genericamente considerada (intra ou inter) não lida exclusiva ou eminentemente com os temas referentes a justiça social, justiça de gêneros ou justiça internacional. Apenas faz uma conexão entre essas áreas e o seu foco principal, este o núcleo essencial da justiça geracional, que são as relações jurídi-cas entre distintas gerações (por isso, a justiça geracional é eminentemente inter). Assim, o foco da justiça intergeracional é a sustentabilidade ecológica e financeira, enquanto que a sustentabilidade social, composta por justiça internacional, justiça social e justiça de gêneros, fica relegada ao campo da justiça intrageracional.

Outra distinção necessária refere-se às expressões intertemporal e in-tratemporal, que podem qualificar os substantivos justiça e direito. Nesse caso, justiça intratemporal ou direito intratemporal referem-se às relações jurídicas havidas entre pessoas vivas hoje, mesmo que pertençam a distintas gerações. Intratemporal, portanto, significa dentro de um mesmo tempo, de uma mesma época, uma ideia de contemporaneidade. Considerando que duas gerações, uma presente e outra imediatamente futura, podem coexistir em uma mesma época, tem-se que a justiça ou o direito entre elas será intergeracional, porém intratemporal. O termo intertemporal, por sua vez, designa as relações jurídicas havidas entre pessoas vivas e pessoas ainda não-nascidas. No caso de duas gerações distintas, uma presente e outra distantemente futura, existentes em épocas diferentes, tem-se que a justiça ou o direito entre elas será intergeracional

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e intertemporal. Intertemporal significa não-contemporâneo. Nessa linha de raciocínio, uma relação jurídica intrageracional será sempre intratemporal. Porém, uma relação jurídica intergeracional, poderá ser tanto intratemporal como intertemporal, dependendo apenas se as gerações envolvidas são contemporâneas ou não. O mais importante a ser destacado aqui é que o foco da justiça e do direito intergeracional aponta eminentemente para as relações intertemporais, tendo em vista os contextos de longuíssimos prazos típicos do direito ambiental.

Na época de Platão e Kant, as considerações éticas da filosofia não incluíam análises acerca de contextos dilatados de tempo. E para que sejam criadas soluções jurídicas em torno das questões acima apontadas, o direito necessariamente pre-cisará lançar mão de um fundamento ético intergeracional. Isto significa que é necessário adotar uma “ética do futuro”, termo que foi concebido por Bindé em 1997. De acordo com a “ética do futuro”, vínculos e compromissos são assumidos pelas gerações presentes em favor das futuras gerações, proporcionando a formação de laços de solidariedade entre gerações, uma ética do futuro. Segundo este autor:

Nossa relação com o tempo tem enormes consequências econômicas, sociais, políticas e ecológicas. Em todo o mundo, os cidadãos de hoje estão reivindicando direitos em relação aos cidadãos de amanhã, ameaçando seu bem-estar e às vezes suas vidas, e nós estamos começando a perceber que estamos comprometendo o exercício, pelas futuras gerações, dos seus direitos humanos. Sem uma atenção apropriada, as futuras gerações estão correndo perigo de tornarem-se prisioneiras de mudanças incontroláveis como crescimento populacional, degradação do meio ambiente global, crescimento das desigualdades entre o Norte e o Sul, e dentro das sociedades, violência social, apartheid urbano, ameaças à democracia e controle da máfia. (BINDÉ, 2000, resumo)

A partir do século XX, a humanidade ampliou exponencialmente o seu poder de afetar e impactar o meio ambiente, inclusive no nível planetário; valendo lembrar que, não obstante os riscos do campo nuclear que ameaçam a biosfera do planeta, existe uma outra área da ação humana que causa degradação ambiental em regiões externas ao planeta - os vôos espaciais. Estima-se que 385 toneladas de lixo espacial, formado por objetos maiores que 5 centímetros, desprendidos dos vários artefatos espaciais lançados pelo homem, fragmentaram-se na órbita terrestre até 1999 e que, atualmente, exista uma massa total de 5.500 toneladas

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de lixo de todos os tamanhos orbitando a Terra, sendo que as peças menores que 1 centímetro ultrapassam dezenas de milhões de unidades (DAY & MAKIE, 2008; NASA, 2009; UNO, 1999, p. 32). Ou seja, até mesmo fora do planeta Terra, na região onde a vida não é possível tal qual a conhecemos, o ambiente espaço-planetário também já está degradado. Tudo isso traz à tona questões absolutamente novas, definitivamente inéditas, e que estavam fora das discussões éticas e morais da filosofia na antiguidade.

No que tange a uma filosofia do direito ambiental, em específico, este ramo jurídico trabalha com uma escala ampliada de tempo que pode ir desde algumas décadas até séculos e milênios, conforme já foi assinalado por Sachs. A ecologização do pensamento força uma expansão do horizonte de tempo. Enquanto os economistas estão habituados a raciocinar em termos de anos, no máximo em décadas, “a escala de tempo da ecologia se amplia para séculos e milênios.” (SACHS, 2002, p. 49). As gerações presentes encontram-se em uma época crucial da história da humanidade. Pela primeira vez uma geração tem o poder de determinar o destino de uma geração inteira posterior (ao nível global). Portanto, no caso do direito ambiental brasileiro, quando este elabora no seu universo normativo os mais variados critérios de uso e preservação dos recursos ambientais, faz em última análise uma opção ética – uma ética do futuro.

É importante discernir, porém, que a ética tradicional, além de estar limitada aos contemporâneos, está baseada em uma ideia egoística de reciprocidade, como, por exemplo, uma relação jurídica em que duas pessoas integram os pólos opostos do liame. Ambas irão fazer concessões e limitações recíprocas, com o objetivo mútuo de alcançarem, cada uma, seus interesses pessoais, particulares e individuais. Esse elemento estrutural da ética clássica, que é a reciprocidade, está presente de uma forma tão arraigada nas construções jurídicas que, até mesmo no campo dos direitos difusos, é possível vislumbrar um traço de egoísmo em tais relações. Por exemplo, quando uma coletividade indeterminada de pessoas impõe a si própria uma restrição de uso, referente a um determinado bem ambiental, para que, através desta restrição, todos os membros da referida coletividade possam auferir uma vantagem coletiva, até nesse caso há um traço de reciprocidade egoística. Pois a restrição coletivamente imposta visa a atender os interesses, embora difusos, da mesma coletividade de pessoas. Seria uma espécie de egoísmo coletivo. E os membros da coletividade, nesse exemplo, se por acaso

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constatarem que as restrições não estão sendo observadas, poderão exigir, no seu próprio interesse, que sejam cumpridas, tamanha é a presença do elemento egoístico nas relações jurídicas havidas entre contemporâneos.

Mas isso não ocorre nos contextos intergeracionais. Enquanto que no exemplo acima, onde uma coletividade contemporânea de pessoas se auto-impõe restrições em favor de si mesma (egoísmo coletivo), no caso das relações jurídicas in-tergeracionais, isto é, quando as obrigações e as restrições são impostas às gerações presentes em favor das gerações futuras, não haverá como os beneficiários desse tipo de relação exigirem o cumprimento de tais obrigações. Em outras palavras, as futuras gerações dificilmente conseguirão ajuizar algum tipo de processo capaz de fazer cumprir, pelas gerações presentes, suas obrigações geracionais, exceto depois que for desenvolvida tecnologia de viagem pelo espaço-tempo, quando cidadãos do futuro poderão deslocar-se até o tempo presente e cobrar – pessoal e diretamente – das gerações presentes suas obrigações inadimplidas (RAMOS JR., 2009 e 2010). Hawking sustenta ser possível o deslocamento de um corpo através do tempo. Embora não exista tecnologia hoje, para fazer esse tipo de viagem, “é apenas uma questão de engenharia: sabemos que pode ser feito.” (2005, p. 110). Em suas próprias palavras, o autor afirma que as pontes de Einstein-Rosen não são invenções da ficção científica, mas são estruturas que podem funcionar como alças ou atalhos ligando duas regiões do espaço-tempo3:

Para fazer isto, ou para dobrar o espaço-tempo de qualquer outra maneira de forma a permitir viagens no tempo, você tem de mostrar que precisa de uma região do espaço-tempo com curvatura negativa, como a superfície de uma sela. [...] Portanto, o que é necessário para dobrar o espaço-tempo é matéria com densidade de energia negativa. [...] Consequentemente, temos motivo para acreditar que o espaço-tempo possa ser dobrado e que possa ser curvado da maneira necessária para permitir viagens no tempo. (HAWKING, 2005, p. 115-116).

3 Para o leitor interessado em maiores informações, cf. GREENE, Brian. O tecido do cosmo: o espaço, o tempo e a textura da realidade. Tradução José Viegas Filho. São Paulo: Companhia das Letras, 2005; KAKU, Michio. Hiperespaço: uma odisséia científica através de universos paralelos, empenamentos do tempo e a décima dimensão. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

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Percebe-se, portanto, que as obrigações assumidas hoje em favor das gerações vindouras são extremamente gratuitas e benéficas, pois inexiste qualquer con-traprestação por parte das gerações futuras de oferecer reciprocidade em benefício de algum interesse (individual ou coletivo) das gerações presentes.

Utilizando-se de uma visão estritamente civilista, as obrigações assumidas pelas gerações presentes, em favor da futuras gerações poderiam ser comparadas, grosso modo, àquilo que se conhece como obrigação sem responsabilidade, onde, por exemplo, nas dívidas prescritas o credor não tem como coagir o devedor a lhe pagar o que deve. São casos em que existe o vínculo obrigacional, mas não a responsabilidade (KELSEN, 1995, p. 57; FIUZA, 2000, p. 161). Entretanto, não é exatamente isso que ocorre nas obrigações intergeracionais, pois mesmo sem a presença física das futuras gerações, credoras do direito ambiental, o vínculo jurídico existe juntamente com a responsabilidade pelo seu adimplemento pelas gerações presentes, devedoras desse direito. Aliás, segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça brasileiro, a obrigação intergeracional de reparar danos ambientais é imprescritível – Recurso Especial n. 1.120.117-AC, julgado em 10 de novembro de 2009. Por tudo isso, a noção de justiça intergeracional rompe um dos paradigmas da teoria clássica da ética – a reciprocidade –, valendo notar que esse tipo de justiça entre gerações:

provavelmente irá se tornar um dos grandes temas da filosofia no futuro. [...] No médio prazo, a questão da justiça entre as presentes e as futuras gerações pode se tornar tão importante na filosofia quanto as questões de justiça social, isto é, justiça entre os pobres e os ricos. (TREMMEL, 2009, p. 5-6.)

Dentre outras questões tratadas pela filosofia do direito, podem ser elencados os debates sobre a imparcialidade e a igualdade, considerados dois outros pa-radigmas que marcaram as teorias da ética e da justiça desde a antiguidade clássica. Segundo Tremmel, para os contextos intrageracionais, três concepções principais de justiça foram estabelecidas pela filosofia do direito: 1) justiça como imparcialidade, 2) justiça como tratamento igual de situações iguais e tratamento desigual de situações desiguais, e 3) justiça como reciprocidade (2010, p. 29). Como aplicar estes conceitos clássicos às relações jurídicas entre gerações?

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Baseando-se nas noções de “véu da ignorância” e de “posição original”, ela-boradas por John Rawls em 1971, quando publicou sua obra - Uma Teoria da Justiça -, em que abordou o problema da justiça entre gerações (RAWLS, 1971 apud TREMMEL, 2009, p. 159), fez-se um experimento mental onde representantes de todas as gerações da humanidade – passadas, presentes e futuras –, reunir-se-iam por trás do véu na posição original e, sem saber a quais gerações eles pertenceriam após a retirada do véu, deveriam debater e discutir quais princípios de justiça seriam aplicados para equilibrar as relações entre gerações. Apesar do véu da ignorância, os participantes teriam conhecimentos básicos sobre sociedade, evolução, política e direito, não seriam totalmente ignorantes no sentido estrito da palavra. Cada participante em particular conhece o curso da história, não em detalhes, mas genericamente até o ponto de sua existência. Em tal circunstância, é possível supor que as gerações mais recentes são melhores do que as mais antigas, por causa da denominada “taxa de crescimento autônoma” do seu bem-estar. Segundo Tremmel (2009, p. 181), essa suposição é verdadeira pelo menos a partir do surgimento da espécie humana até os dias atuais, pois cada nova geração recebe da anterior os avanços tecnológicos, as invenções, inovações e progressos que foram, paulatinamente, sendo conquistados século após século. Neste contexto, é possível supor que justiça no sentido de imparcialidade significaria, para os participantes da imaginária “posição original”, estabelecer responsabilidades através de medidas preventivas, que iriam desde evitar guerras até colapsos ecológicos, sociais ou tecnológicos. Eles poderiam estabelecer obrigações, não no sentido de sacrifício, mas de limitação razoável do direito de usar uma determinada herança geracional. Porém, como visto acima, as gerações mais novas, principalmente as futuras gerações, sempre irão se beneficiar de todo o esforço empreendido pelas gerações passadas, herdando dessa forma o capital geracional que pertenceu aos antecessores. As gerações mais novas, portanto, estarão em uma posição de vantagem perante as passadas. Neste sentido, considerando o significado clássico da palavra imparcialidade (baseado em ausência de poder de barganha, onde uma parte decide o destino de outra sem ter nada a ganhar ou perder com isso), que é aquele aplicado aos contextos intrageracionais, pode-se dizer que não existe imparcialidade nas relações intergeracionais. Em outras palavras, membros de uma geração passada, reunidos com os de uma geração futura, sem saber a qual das gerações ambos pertencem,

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iriam beneficiar sobremaneira a geração futura, na medida em que se eles forem membros desta geração irão querer o máximo de benefício para si próprios, algo desigual e parcial em uma visão clássica.

Mas, no contexto intergeracional, o que se vê nas declarações internacionais e na jurisprudência brasileira é justamente uma preponderância dos interesses futuros, pois é razoável, justo e igualitário beneficiar o futuro já que é nele que a humanidade se perpetuará.

Por sua vez, a igualdade absoluta no sentido clássico (repartir um bem entre duas pessoas em quantidades iguais), aplicada a uma hipótese intergeracional, só seria alcançada se os participantes da experiência, por trás do véu da ignorância, ordenassem a cada geração que queimasse todas suas livrarias e destruísse completamente suas inovações antes de sua morte, para compensar a diferença de nível evolutivo entre duas gerações. Mas nesse caso, o progresso se tornaria impossível em todas as eras e tempos históricos. Todas as gerações da humanidade estariam condenadas a vegetar no mais baixo nível da evolução da espécie, como, por exemplo, o Australopthecus Afarensis, o Homo Habilis ou o Homo Erectus.

Diante deste quadro, Tremmel conclui seu estudo propondo que a aplicação da justiça da igualdade aos contextos intergeracionais só seria possível utilizando-se o esquema teórico do tratamento desigual de situações desiguais. Todos os conceitos possíveis de justiça intergeracional devem incluir, de modo adaptado, ambas as noções clássicas de justiça: igualdade de oportunidades e igualdade distributiva. Exemplificando, onde houver puramente justiça distributiva, a máxima da igualdade de tratamento será válida. Isto significa que se um determinado bem tiver que ser distribuído entre duas gerações A e B, é justo que cada geração receba a metade do bem (igualdade). Porém, Tremmel questiona se isso não seria um paradoxo? Como poderia a geração posterior ter um nível mais elevado de vida, do que a anterior, se tiver recebido apenas a metade do bem que foi usado por sua predecessora? Este paradoxo é resolvido pelos fatores autônomos de progresso (TREMMEL, 2009, p. 218).

Significa dizer que cada geração possui, de forma autônoma, seus próprios fatores de desenvolvimento, muitas vezes não possuídos pela geração anterior. A posição inicial da geração posterior é sempre melhor que sua antecessora, deste modo a geração posterior será capaz de atingir um nível mais elevado de

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bem-estar, utilizando-se apenas da sua metade recebida da geração anterior. Nas palavras de Tremmel:

Os membros da geração atual A não precisam dar mais do que eles receberam para os membros da próxima geração B, mas se derem tanto quanto receberam irão suprir seus descendentes com a possibilidade de satisfazer suas próprias necessidades em um nível mais amplo que A. Assim eu denomino o meu conceito de “justiça intergeracional como capacitar o progresso”. Significa fazer progresso possível em favor das futuras gerações. A geração presente deverá prevenir tudo que possa perturbar ou até mesmo reverter a tendência histórica que tem existido desde os tempos mais antigos e que tem aperfeiçoado o IDH até agora. (TREMMEL, 2009, p. 218)

Como meta axiológica, este conceito de justiça intergeracional refere-se a “necessidades” (ao invés de desejos, interesses, preferências, aspirações, etc.) e enfatiza “oportunidades” (ao invés de distribuições). Tremmel prefere usar o termo geração no singular, e não gerações no plural. Sua base de raciocínio en-volve apenas duas gerações em comparação: geração A anterior comparada com a geração B posterior. Se fosse usar o termo gerações no plural, acabaria tendo que comparar a geração A (seus capitais e suas necessidades) com infinitas gerações posteriores B, C, D, E, etc. Neste caso a soma infinita do conjunto de bem-estar, acumulado ao longo de incontáveis gerações, levaria a um exorbitante nível de necessidades futuras a serem respeitadas e garantidas, de tal modo que o sacrifício da geração presente acabaria se tornando demasiadamente grande, insuportável e inviável. Segundo Tremmel, este problema é resolvido utilizando-se apenas duas gerações em comparação (2009, p. 218).

Outro aspecto importante da teoria é que Tremmel prefere tomar por base o “membro médio de uma geração” ao invés de basear-se em “uma geração” globalmente considerada. Existem implicações diferentes ao serem utilizados conceitos de justiça intergeracional que façam referência à geração como uma “entidade” ou que façam referência à geração considerando os seus “membros” individuais. Referido autor usa o seguinte exemplo:

Vamos imaginar que a geração A atual, formada por apenas vinte indivíduos, queira compartilhar de forma justa cem unidades de

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um recurso não-renovável com a única geração B posterior. Se nós nos referirmos à geração B como uma entidade, parece ser justo na ótica de A que apenas cinquenta unidades sejam usadas e outras cinquenta sejam economizadas em favor de B. Porém, devido ao crescimento populacional, a geração B possui na verdade trinta indivíduos (fato conhecido por A através de prognósticos estatísticos). Portanto, a geração atual A – se a formulação de justiça geracional refere-se a membros das futuras gerações – deverá economizar não apenas cinquenta, mas sessenta unidades do recurso, e ser capaz de consumir as quarenta unidades que restaram livres para si, a fim de alcançar a mesma taxa per capita de consumo possível, semelhante à mesma taxa dos indivíduos futuros. (TREMMEL, 2009, p. 219)

Um último aspecto tratado por Tremmel, refere-se à possibilidade de se pensar reciprocidade entre gerações, não no sentido clássico e egoístico do contratua-lismo, onde duas partes opostas fazem concessões e limitações recíprocas em função de seus próprios interesses. Este autor propõe uma reciprocidade de forma indireta:

Se toda “próxima geração” receber e transmitir sua herança adiante no sentido de reciprocidade indireta, isso criará uma cadeia contínua de obrigações que em última análise afetará todas as futuras gerações. (TREMMEL, 2009, p. 218)

Comparando-se o trabalho teórico de Tremmel (2009) com o de Weiss (1991; 1992), pode-se dizer que aquele representa uma evolução das noções construídas em torno da expressão equidade intergeracional, por essa autora. Enquanto Tremmel aprofunda questões não tratadas por Weiss, como, por exemplo, a distinção entre bem-estar e capitais geracionais; esta autora afirma, no plural e sem delimitar a extensão da relação intergeracional, que “todas” as gerações estão inerentemente ligadas umas às outras, passadas e futuras, no uso do patrimônio comum da Terra (1991, p. 22-23). Para construir sua teoria, Weiss utiliza-se da ideia de uma comunidade humana, constituída por uma parceria entre todas as gerações, não só entre os que estão vivos, mas “entre os que estão vivos, os que estão mortos e os que ainda estão para nascer. [...] O objetivo dessa sociedade humana é proteger a saúde e o bem-estar de todas as gerações” (1991, p. 23, grifo nosso).

Um ponto de especial importância, com fundo filosófico, mas também de caráter técnico, que surge do cotejo entre a teoria da “equidade” intergeracional de

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Weiss e a teoria da “justiça” intergeracional de Tremmel, refere-se aos direitos das futuras gerações. Sobre esse ponto técnico surgem as seguintes questões: pessoas futuras podem ter direitos? Se sim, elas têm ou terão direitos? Se já têm direitos, como isso é possível se ainda não nasceram nem foram concebidas? Quais são esses direitos? Elas têm direitos ou necessidades? Para esses questionamentos, Weiss afirma categoricamente que “os direitos das futuras gerações estão ligados às obrigações da geração presente” (WEISS 1991, p. 27, grifo nosso), sinalizando que pessoas que sequer foram concebidas já possuem direitos, muito embora não faça qualquer aprofundamento filosófico, epistemológico ou jurídico para demonstrar como chegou a essa conclusão.

Por isso, na teoria de Weiss, tais questões permanecem parcialmente sem respostas. Tremmel, por outro lado, apesar de tecer algumas considerações um pouco mais extensas que Weiss, distinguindo direitos morais de direitos legais, também deixa algumas perguntas sem respostas alegando que seria algo sem sentido discutir se “são” direitos (presente) ou se “serão” direitos (futuro) ou, ainda, “necessidades” ao invés de direitos. Segundo sua ótica, este debate seria resolvido da seguinte maneira:

Eu não iria tão longe quanto Mulgan ao afirmar: “a linguagem dos direitos é problemática, embora não seja impossível aplicá-la às futuras gerações”. Mas eu concordo que conversar sobre direitos constitui algumas vezes uma maneira enganosa de discutir justiça intergeracional. Existem concepções bastante convincentes de justiça intergeracional baseadas em direitos, mas elas não são necessariamente as mais apropriadas. Nenhum esforço tem sido feito para estruturar teorias de justiça intergeracional em outros termos, por exemplo a linguagem baseada em necessidades. Ademais, questões de justiça já eram discutidas antes dos direitos serem inventados (ou descobertos). Existem questões de justiça intergeracional mais importantes do que a questão de saber se as pessoas futuras terão “direitos”. Imagine um casal recém-casado discutindo se deve parar de usar contraceptivos a fim de ter um bebê e a esposa diz: “uma vez que o bebê tiver nascido lembre-se de não vir para casa tão tarde do trabalho. Nosso bebê tem um direito de passar o tempo com você”. Vale a pena discutir se ela disse ou não disse “necessidade” ao invés de “direito” (ou “terá” ao invés de “tem”)? Na minha opinião, faria mais sentido discutir quanto do seu tempo e de outros recursos o pai poderia dispensar ao seu

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filho. O mesmo aplica-se à justiça intergeracional. (TREMMEL, 2009, p. 69, grifo nosso)

Há uma clara oposição entre Tremmel e Weiss no que tange à condição jurí-dica das futuras gerações e se estas são titulares ou não de direitos. Talvez seja possível compreender a crítica que Tremmel faz à linguagem do direito, taxando-a de enganosa, pelo fato de sua formação acadêmica situar-se inteiramente nos campos da filosofia, sociologia, economia e ciência política, conforme biografia contida ao final de seu artigo, publicado na Revista de Justiça Intergeracional (2010, p. 30). Por sua vez, Weiss é jurista e professora de direito, por isso ela não hesita em afirmar categoricamente que as futuras gerações têm direitos (usando o tempo verbal no presente) e que:

Os direitos estão sempre associados com obrigações. São direitos de cada geração a receber o planeta em condição não pior do que recebido pela geração anterior, são direitos de herdar uma diversidade comparável em bases de recursos naturais e culturais, e direitos de ter acesso equitativo aos usos e benefícios do legado. Tais direitos representam, em última instância, uma proteção moral de interesses, os quais devem ser transformados em direitos e obrigações de natureza jurídica. [...] Direitos intergeracionais de herança necessária, sejam das gerações imediatamente posteriores ou das gerações mais distantes. [...] Direitos planetários intergeracionais podem ser considerados como direitos de grupo, em distinção aos direitos individuais, no sentido de que as gerações são titulares desses direitos como grupos em relação a outras gerações passadas, presentes e futuras. (WEISS, 1991, p. 26-27, grifo nosso)

Neste ponto, é preciso responder à seguinte questão: como podem as gerações futuras, especialmente as mais distantes – as não nascidas, terem direitos se não foram nem mesmo concebidas no útero materno, tal qual o nascituro? Quando o ordenamento jurídico brasileiro reconhece direitos ao nascituro é porque, ao menos, ele já foi concebido e já está no centro de um processo biológico de formação física. Isso não corre com as gerações futuras mais distantes, aquelas que irão sofrer impactos do lixo nuclear, cujos efeitos projetam-se daqui até 310.608 anos adiante.

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3. quem são as futuras gerações?

Weiss não responde de modo preciso, nem aponta marcos temporais. O melhor ponto até onde ela consegue chegar, acerca desta temática, é quando ela afirma que:

A aplicação desses direitos intergeracionais é apropriadamente alcançada por um guardião ou representante das futuras gerações como um grupo, não de indivíduos futuros, cujas necessidades são indeterminadas. Embora o titular do direito possa não ter a capacidade de apresentar queixas e, portanto, depende da decisão de um representante para fazer isso, essa inabilidade não afeta a existência do direito ou da obrigação associada a ele. (WEISS, 1991, p. 30, grifo nosso)

Mais uma vez Weiss, tentando resolver a questão, intrinsecamente paradoxal, utiliza-se da noção de “grupo”. As futuras gerações seriam um grupo, segundo ela. Mas do ponto de vista fático, esse grupo ainda não nasceu, ainda não existe, sequer foi concebido embrionariamente. Mesmo que esse grupo tenha um guardião para representar seus direitos e seus interesses, como é que tais direitos e interesses podem ser tratados juridicamente se o próprio grupo titular não foi ainda sequer concebido? O paradoxo permanece sem solução e Weiss parece não ter resolvido-o. Tampouco Tremmel, que prefere esquivar-se da questão:

A teoria da justiça geracional elaborada nesse estudo é baseada no bem-estar, e não em direitos das futuras gerações. Portanto, a questão se indivíduos futuros em potencial podem ter direitos, e se sim, quais, não é um desafio importante para tal teoria. (TREMMEL, 2009, p. 221)

No Brasil, Patrick de Araújo Ayala apresenta na parte introdutória de seu arti- go, publicado em 2010, o problema de se saber qual é a condição jurídica das futu- ras gerações. Chega a afirmar que as futuras gerações podem ser “reconhecidas como sujeitos que possuem interesses”; porém, em outro trecho, diz contra-ditoriamente que o problema “não é o de saber quem são as futuras gerações, mas, sim, o de como formar as decisões sobre seus interesses” (AYALA, 2010, p. 322, 336, 340). Portanto, no Brasil, o paradoxo temporal do direito ambiental permanece sem respostas. Nada é falado sobre como é possível admitir direitos

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para pessoas não-nascidas, nem concebidas. Sobre o conceito de futuras gerações, este não existe nem no Brasil nem no exterior.

A autora portuguesa Marisa dos Reis, ao enfrentar este tema, sugere tratar as futuras gerações de forma análoga ao tratamento que hoje já é dispensado pelo direito à figura do nascituro. Embora seu estudo esteja baseado no direito português, há certa semelhança com o direito brasileiro em virtude da origem histórica comum de ambos os direitos. Segundo essa autora, o problema filosófico e técnico da impossibilidade de se reconhecer personalidade jurídica às pessoas não-nascidas, ou ao menos concebidas (dependendo do país), tudo isso pode ser abordado de uma forma nova e criativa. Reis cita alguns Estados da federação norte americana, nos quais a personalidade jurídica dos fetos é reconhecida; como, por exemplo, Dakota do Norte, Maryland, Montana, Carolina do Sul e Alabama (REIS, 2010, p. 43). Sobre a questão dos nascituros, Ferraz Jr. afirma que até antes de nascer os indivíduos já estão dentro do direito: “por presunção dogmática, estamos desde que nascemos (e até antes: direitos do nascituro) dentro do direito” (2009, p. 43).

Reis esclarece que o artigo 2033, do Código Civil português, reconhece o direito sucessório através de testamento aos não-nascidos, mesmo aqueles que nem foram concebidos ainda, mas que por presunção legal serão descendentes do testador, após sua concepção biológica. Já a lei civil alemã, em sua seção 1923, estabelece que uma pessoa que ainda não está viva no momento da transmissão da herança, mas já concebida, presume-se já nascida antes da transmissão da herança. A seção 2101 da lei alemã trata da indicação de herdeiro não concebido. Neste caso, o testador pode apontar alguém que ainda será concebido, para ser seu herdeiro. Outro exemplo, citado por Reis, é o artigo 412-1 do Código Civil da Catalunya, segundo o qual são reconhecidos direitos hereditários às crianças nascidas após a morte de um de seus pais, mesmo se concebidas através de fertilização assistida. Referida autora esclarece que é o princípio da dignidade humana que se encontra por trás de casos como esses de proteção jurídica post mortem (direitos após a morte). Cita como exemplo o Código Penal português, que em seu artigo 185 estabelece punição contra ofensas praticadas à memória de pessoas mortas, mas coloca um limite temporal de 50 anos a título de prescrição (REIS, 2010, p. 43). Ou seja, a duração da proteção jurídica é de meio século.

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Resumidamente, a tese de Reis consiste em associar o princípio da dignidade humana ao princípio da isonomia, na sua forma “tratar igualmente situações iguais”. Deste modo, se as várias legislações elencadas protegem a memória de uma pessoa já morta – sem personalidade jurídica portanto, então é lógico e razoável que sejam protegidas as expectativas de quem ainda não nasceu. Com esse raciocínio, Reis propõe a chamada proteção jurídica ante natalem de pessoas não-nascidas (direitos antes do nascimento). Trata-se de uma presunção jurídica de nascimento antecipado. A tutela dos direitos ante natalem poderia ser atribuída às mesmas pessoas já encarregadas de cuidar dos direitos post mortem, como, por exemplo, os membros da própria família. Essa abordagem, segundo Reis, resolveria o dilema referente à condição jurídica dos indivíduos futuros, mas não de gerações inteiras nas quais é impossível identificar seus membros. Qual seria a família a assumir a tutela dos direitos de uma geração inteira futura? Diante disso, seria mais plausível pensar os direitos ante natalem como direitos difusos e coletivos, que não se referem a um indivíduo específico e determinado, mas são direitos baseados na solidariedade em favor de um grupo de pessoas. Neste sentido, Reis cita os exemplos de Portugal e Brasil, onde o Ministério Público é competente para intervir judicialmente na defesa desses interesses (REIS, 2010, p. 43).

Porém, sem o estabelecimento de limites e princípios jurídicos, surgirá um problema aqui: se as gerações futuras presumem-se já nascidas, quantas gerações irão compor essa enorme coletividade planetária geracional do futuro? Supondo-se que a resposta seja “todas” gerações futuras, deduz-se que a geração presente encontra-se em contato com um universo quase infinito de indivíduos. Nesta relação jurídica intergeracional, qual a quantidade de encargos, restrições e auto-limitações a geração presente precisará adotar para satisfazer os direitos e interesses das futuras gerações, em um contexto de relações elevadas quase ao infinito? Sobre essa questão específica, Weiss afirma que “não há nenhuma base teórica para limitar tais direitos às gerações imediatamente posteriores” (1991, p. 27). Tremmel, por sua vez, sugere limitar a relação jurídica intergeracional a apenas duas gerações próximas (2009, p. 218). Reis, não aborda de forma direta essa questão, mas deduz-se dos exemplos que ela usou, um muito sutil apontamento na direção do prazo fixo de 50 anos.

Para saber qual é o limite dos seus direitos, é necessário antes definir o conceito jurídico de futuras gerações, tarefa realizada a seguir com base na análise social,

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histórica, antropológica, biológica e econômica do termo “geração”. Em 1993, o termo “curso da vida” surgiu como paradigma emergente e, em seguida, vários estudos foram elaborados sobre as vidas humanas e suas trajetórias de longo prazo, classificadas conforme a idade, como, por exemplo, etapas vividas durante a carreira profissional, durante a evolução dos estados de vida familiar de uma pessoa, e ainda transições de curto prazo variando desde o término da idade escolar até a aposentadoria (ELDER JR., 1994, p. 4).

Ao longo do referido período, trabalhos teóricos começaram a surgir como, por exemplo, a noção de um mundo macro social estratificado em “grupos etários” ou “coortes etários”, conceito defendido na sociologia de Riley, Johnson e Foner em 1972 (ELDER JR., 1994, p. 5), e que define as gerações como grupos de pessoas posicionadas em coortes de nascimentos, quer dizer, uma geração é formada por todas as pessoas nascidas em determinada data – coorte etário. Posteriormente, o conceito de gerações evoluiu para a ideia de “classes etárias” representadas por estágios de maturação biológica de seus membros (crianças, adolescentes, adultos jovens, adultos de meia-idade e idosos). Este modelo de estratificação social etária é análogo à ideia de classes sociais, e foi defendido na antropologia de Fortes em 1984 (DOMINGUES, 2002, p. 73).

Dentre todos os trabalhos teóricos que foram paulatinamente aparecendo na literatura especializada, destaca-se o conceito de gerações construído em 1928 por Mannheim que, nas palavras de Domingues, é a mais “completa tentativa sociológica de dar conta do tema, embora as contribuições posteriores na antropologia sejam particularmente significativas” (DOMINGUES, 2002, p. 69). Para referido autor, as gerações são um tipo de coletividade muito proximamente articulada aos processos históricos de mudança social, significando uma explicação alternativa ao modelo de classes sociais do materialismo histórico. Nesse sentido, gerações se apresentam como a “não simultaneidade do simultâneo”, quer dizer, cada “ponto do tempo” é um “espaço de tempo” que se organiza “polifonicamente” (MANNHEIM, 1928, p. 517-518 apud DOMINGUES, 2002, p. 69-70; grifo nosso).

Traduzindo essas expressões, gerações não são simultâneas porque cada grupo geracional tem seu próprio tempo, suas próprias expectativas, seus próprios valores, sua própria visão de mundo, seu próprio destino, como, por exemplo, as

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crianças cuja principal preocupação é brincar e cujo destino é tornarem-se adul- tas; os adolescentes cuja principal tarefa cotidiana é estudar e cujo principal des-tino é ingressarem no mercado de trabalho; os adultos cuja tarefa cotidiana é trabalhar e cujo destino é aposentarem-se; etc. Porém, referidos grupos geracionais podem ser simultâneos ao coexistirem em uma mesma época, como, por exemplo, em uma mesma mesa de refeição podem estar sentados o avô, o filho adulto, o neto jovem e eventualmente o bisneto criança.

Referindo-se à tradução feita por Domingues da expressão “não simultanei- dade do simultâneo”, Weller entende que seria melhor dizer “não contem-poraneidade dos contemporâneos”, significando isso que diferentes grupos etários vivenciam tempos interiores diferentes em um mesmo período cronológico (WELLER, 2010, p. 209). Na teoria de Mannheim, as gerações são apresentadas como processos dinâmicos e interativos, que acontecem nos “locais geracionais”, de modo que uma sociedade marcada por mudanças geracionais teria as seguintes características: 1) a constante irrupção de novos portadores de cultura; 2) a saída constante dos antigos portadores de cultura; 3) a limitação temporal da participação de uma conexão geracional no processo histórico; 4) o caráter contínuo das mudanças geracionais (1928, p. 530 apud WELLER, 2010, p. 211).

Outro fator que também exerce grande influência sobre a definição do termo geração são os processos de desencaixe e reencaixe capitalistas. Isso significa dizer que, na sociedade pós-moderna capitalista, os indivíduos são considerados membros da geração A, B ou C de acordo com o papel político e econômico que exercem. Domingues destaca que dois fenômenos etários têm chamado bastante a atenção dos pesquisadores na contemporaneidade: a juventude e a terceira idade. Porém, a idade adulta madura, considerada a fase biologicamente reprodutiva e economicamente produtiva, tem recebido pouca atenção apesar de ser a etapa mais longa do ciclo de vida individual. Referido autor questiona: porque isso? E responde explicando o porquê do foco na juventude e na terceira idade:

A que se deve isso? Uma hipótese interessante é que são essas exatamente as faixas em que a entrada no mercado de trabalho ainda não se realizou ou então que o êxito dele já teve lugar. (DOMINGUES, 2002, p. 86, grifo nosso)

Portanto, a entrada, a permanência e a saída do mercado de trabalho são as fases da vida econômica e política que vem exercendo a mais alta influência

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no conceito de gerações: É possível dizer que as gerações ativas – política e economicamente –, são as que mais aptidão possuem para decidir e praticar atos que irão influenciar decisivamente as vidas das futuras gerações. Neste sentido, para distinguir o que é uma geração passada, presente e futura, basta identificar no Texto Constitucional brasileiro os marcos temporais a partir dos quais a vida política e econômica inicia-se e, de lado oposto, quando termina tal atividade.

Seguindo este raciocínio, o processo biológico da vida começa com a con-cepção e a implantação uterina do embrião humano, porém o processo capitalista da produção econômica só começa a partir do trabalho humano. Esse trabalho é, todavia, proibido para os menores de 14 anos, sendo que dos 14 aos 16 anos permite-se o trabalho na condição de aprendiz e, dos 16 até os 18 anos incompletos é permitido o trabalho que não seja noturno, perigoso ou insalubre, conforme o disposto no artigo 7º, inciso XXXIII e no artigo 227, § 3º, inciso I da Constituição Federal brasileira. Significa dizer que só a partir dos 18 anos completos, qualquer tipo de trabalho é permitido para todos os indivíduos. Logo, a vida econômica plena só é possível a partir dos 18 anos completos de idade. Esta é, portanto, a fronteira temporal que separa uma geração futura (que ainda não entrou no mercado de trabalho) da geração presente (aquela que já está plenamente inserida nele).

Em extremo oposto, a fronteira final que demarca os limites da geração presente, pode ser encontrada no momento em que a vida política e a vida econômica tornam-se facultativas. Tem-se como data final da vida econômica o momento em que, no serviço público, um trabalhador atinge a idade limite de 70 anos de idade, conforme o artigo 40, § 1º, inciso II da Constituição Fe-deral. Neste momento, o indivíduo é obrigatoriamente aposentado e desligado da Administração Pública, muito embora ele possa facultativamente continuar trabalhando no setor privado. A aposentadoria compulsória aplica-se também aos magistrados brasileiros e a todos os membros do Ministério Público, confor-me o artigo 93, inciso VI e o artigo 129, § 4º da Constituição Federal. Aos 70 anos de idade, o alistamento eleitoral e o voto tornam-se facultativos, conforme o artigo 14, § 1º, inciso II, ‘b’ da Constituição Federal. Portanto, a marca dos 70 anos de idade sinaliza o momento em que a vida política e a vida econômica de um indivíduo tornam-se facultativas, podendo então esta data ser considerada a fronteira final que delimita a geração presente. Quem possuir mais de 70 anos de

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idade passa a fazer parte das gerações passadas (mais velhas); quem possuir menos de 18 anos de idade e os que ainda não nasceram nem foram concebidos integram as gerações futuras (mais novas).

4. o conteúdo e o limite do direito das futuras ge-rações

Aqui será identificado o núcleo essencial do direito ambiental intergeracio-nal. O tema envolve a técnica judicial da ponderação de valores. A título ilus-trativo, um interessante caso que foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro, tratou da tensão entre direitos fundamentais no conflito denominado a problemática da Raposa Serra do Sol. Esse processo refere-se à Petição 3.388 - Ação Popular, ajuizada em 20 de maio de 2005. O julgamento do Supremo Tribunal Federal foi concluído, por maioria, em 19 de março de 2009. No mérito, a Corte Constitucional precisava conciliar três direitos fundamentais em tensão: o Parque Nacional do Monte Roraima, sobreposto na Terra Indígena Raposa Serra do Sol que, por sua vez, localiza-se dentro da faixa de fronteira da Amazônia brasileira. Este foi um caso de tripla afetação instituída pelo Estado Nacional para se evitar o completo esvaziamento da tutela ao meio ambiente na região, daquela terra indígena e da defesa nacional. Nesses tipos de casos, é imperativo “a relativização dos respectivos bens jurídicos até o limite da preservação do núcleo essencial de cada direito fundamental confrontado” (SILVEIRA, 2010, p. 19, 113).

No caso concreto da Raposa Serra do Sol, o método de ponderação de direitos fundamentais colidentes foi baseado nos princípios constitucionais. O reconhecimento dos direitos indígenas não foi absoluto, pois 19 (dezenove) restrições foram impostas pelo Supremo Tribunal Federal, dentre as quais a possibilidade das Forças Armadas e da Polícia Federal atuarem livremente na área demarcada, sem a menor necessidade de consulta às comunidades indígenas (SILVEIRA, 2010, p. 128-129). A Constituição Federal foi a norma central que serviu de referência para esse processo hermenêutico. Percebeu-se que, para ponderar direitos fundamentais em tensão, é necessário aclarar o núcleo essen- cial de cada direito colidente, pois, dentro desse núcleo, existe um espaço intocável pelo legislador e pelo intérprete.

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No caso da ponderação de direitos intergeracionais, a complexidade é maior porque o espectro de variáveis a ser considerado possui magnitude sobremaneira ampliada. Só é possível falar em direito entre gerações se o sistema jurídico assim dispuser. Nesse sentido, deixando de lado as análises filosóficas que especulam se as futuras gerações possuem “necessidades”, “interesses” ou “possibilidades de progresso”, o fato concreto é que no Brasil, segundo o artigo 225 da Constituição Federal, as futuras gerações possuem o “direito” intergeracional de receber como herança o meio ambiente preservado e defendido. Assim, embora o universo das questões tratadas pela teoria da “justiça” intergeracional ultrapasse a temática ambiental, o fato concreto é que apenas o meio ambiente integra o conteúdo do “direito” assegurado às futuras gerações (aspas porque só o direito é coercitivo e imperativo).

A respeito do núcleo essencial do direito ambiental, em contextos in-tergeracionais, a análise da Declaração sobre Responsabilidades das Gerações Presentes para as Futuras Gerações (UNESCO 1997), mostra que a humanidade é uma espécie de sociedade planetária formada por gerações que se ligam umas às outras por vínculos de solidariedade. As referências que a Declaração faz à perpetuação da espécie humana, no seu artigo terceiro, associando essa tarefa ao dever de salvaguardar as necessidades e os interesses das futuras gerações, tudo isso traz para o direito intergeracional dois instrumentos hermenêuticos muito importantes e que, neste estudo, serão identificados como: 1) princípio da primazia dos interesses futuros e 2) princípio da dignidade geracional. Ambos têm como escopo a garantia do bem-estar das futuras gerações, entendido o “bem-estar geracional” como um conjunto de necessidades e interesses que, ao serem atendidos, proporciona às futuras gerações felicidade, satisfação, prazer, utilidades, qualidade de vida (ideia existencial). Esta ideia de bem-estar geracional distingue-se, entretanto, da expressão “capitais geracionais”, cujo significado liga-se mais à noção de herança ou legado patrimonial físico transmitido entre gerações, um patrimônio comum a ser compartilhado pela espécie humana (ideia patrimonial).

Confrontando-se a mencionada Declaração da UNESCO de 1997, com o art. 225 da Constituição Federal brasileira de 1988, é possível discernir o núcleo essencial do direito ambiental de dois sujeitos: a) futuras gerações: a perpetua-

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ção da espécie humana é o núcleo essencial do seu direito ao meio ambiente; b) gerações presentes: a garantia da sadia qualidade de vida é o núcleo essencial do seu direito ao meio ambiente. Em ambas as hipóteses, o meio ambiente é a base física a partir da qual ambos os núcleos se realizam (RAMOS JR., 2012, p. 352 e 389).

A tensão de direitos no plano intergeracional ocorre quando duas gerações, ligadas mutuamente pelo vínculo jurídico do art. 225 da Constituição Federal brasileira, precisam satisfazer suas necessidades de modo que uma não prejudique a possibilidade da outra. Assim, uma hipotética cesta é passada de geração em geração contendo um capital, no sentido mais amplo da palavra. Esse capital significa a totalidade de elementos, especialmente físicos, mas também os elementos imateriais (intangíveis) como, por exemplo, a tecnologia, a cultura, as relações sociais e as instituições políticas, que vão sendo transmitidos sucessivamente.

Dentre os vários capitais geracionais, distinguem-se: 1) capital natural com todos os recursos naturais que o Homem pode usar ou desfrutar, renováveis e não-renováveis, como o ar, a água, a terra, os minerais, a biodiversidade, a camada de ozônio, os fundos oceânicos, etc. Na categoria de 2) capital artificial incluem-se todos os valores elaborados pelo Homem, bens e serviços comercializáveis como instalações técnicas, métodos de produção, bens de consumo, serviços de consultoria, patrimônio financeiro. Alguns desses bens acabam integrando o chamado 3) capital real, formado pelos bens de consumo e pelos bens de produção, como é o caso da infraestrutura e das construções. Conhecido como 4) capital financeiro, esse é formado especificamente pelas contas nacionais, em seu sentido contábil, o conjunto de ativos e passivos que são anualmente cambiados entre os países. Outro tipo é o 5) capital social, formado pela qualidade e pela quantidade de contatos sociais. Por sua vez, o 6) capital humano é constituído pelo conhecimento e pelas habilidades pessoais de cada indivíduo. Semelhante a este último é o 7) capital conhecimento, a totalidade de informações não diretamente incorporadas em uma pessoa, mas em bancos de dados, bibliotecas, arquivos científicos. Finalmente, o 8) capital cultural engloba instituições como o sistema econômico, o sistema político e o sistema jurídico (TREMMEL, 2009, p. 71-72).

Colocada a questão desta maneira, admitindo que a soma do valor total desses diversos capitais permite a um juiz comparar e diagnosticar qual geração

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possui mais bens do que a outra; surgem as primeiras dificuldades desse tipo de abordagem baseada em capitais. Por exemplo, o duplo aspecto – herança/legado – dos capitais. Como herança, um capital financeiro, para ser transmitido ou para ser medido e comparado entre gerações, deve estar com seu valor consolidado. Significa que os débitos devem ser deduzidos do ativo. Mas esta consolidação contábil é impossível de ser feita no caso de um capital cultural ou político. Quanto custa a Constituição Federal brasileira? Não a base física dela, nem o papel, nem a impressão. Mas o seu conteúdo imaterial (intangível), seu significado institucional, político, jurídico, histórico e social. Qual é o preço dessa Constituição e quanto ela poderia valer se, ao invés de democrático, o Brasil fosse um regime político ditatorial?

A hipotética cesta de capitais, transmitida de uma geração para outra, pode originar outro problema que faz da abordagem baseada apenas em capitais um método inadequado. Os economistas alinhados à teoria econômica da “sus-tentabilidade fraca” defendem que a transmissão intergeracional de capitais é justa quando sua quantidade total é maior ou igual à da cesta utilizada pela geração anterior, independente da composição da cesta. Assim, a diminuição do capital natural seria justificável e aceitável se fosse compensada pelo crescimento de ou-tros tipos de capitais dentro da cesta (TREMMEL, 2009, p. 75). Neste caso, a depleção total da camada de ozônio ou o desaparecimento de animais em extinção e, até mesmo, o fim da biodiversidade poderiam ser aceitos como algo sustentável se, em seu lugar, muitos investimentos em capital real aumentassem o valor contábil total da cesta de capitais. Neste sentido, a Floresta Amazônica poderia ser totalmente substituída pela construção de pontes, estradas e cidades no seu interior, pois isso poderia manter ou aumentar o valor contábil (formal) da cesta como um todo. Porém, ao se analisar este mesmo exemplo em termos reais (não-formal), sabe-se que o capital natural é insubstituível quando se fala das funções ecológicas e dos serviços ambientais que este capital presta à humanidade como, por exemplo, a absorção de carbono da atmosfera, a refrigeração atmosférica das áreas urbanas próximas a uma grande floresta, a regulação do ciclo hídrico, etc.

Portanto, a completa substituição do capital natural por outros tipos de capitais é extremamente danosa para a vida humana, um verdadeiro ato de suicídio coletivo, razão pela qual existe outra teoria econômica, denominada “sustentabilidade forte”, que defende a manutenção do capital natural sempre

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na mesma quantidade, não importando o quanto os outros tipos de capitais cresçam dentro da cesta (2009, p. 79). Por outro lado, problemas como estes não se verificam na abordagem baseada no bem-estar geracional.

Há dois métodos para mensurar o bem-estar geracional: o objetivo e o subjetivo. O primeiro tem como base indicadores objetivos das condições de vida de uma dada população; o segundo baseia-se na percepção individual da própria população investigada sendo, por isso, de difícil aferição. Ao se investigar os estados de “felicidade”, de “qualidade de vida” e de tantos outros sinônimos para “bem-estar”, alguns indicadores objetivos começaram a ser desenvolvidos por volta dos anos 1960, inicialmente sob a forma contábil como, por exemplo, o produto interno bruto (PIB). Posteriormente, estes indicadores começaram a incluir dados obtidos da observação de circunstâncias de vida estritamente objetivas, através do monitoramento feito no campo das ciências sociais, econômicas e na medicina (TREMMEL, 2009, p. 119). Quando o critério bem-estar significa “necessidades” básicas humanas, é mais fácil ponderar valores, pois necessidades básicas são algo objetivo, uma condição inerente do ser humano. Mesmo que a forma de satisfazê-las varie conforme a cultura, a época e o lugar; as necessidades básicas, em si mesmas, são universais. Muito provavelmente, assim como os membros de gerações passadas, os indivíduos das futuras gerações também irão necessitar de ar para respirar, alimento para comer e água para beber (TREMMEL, 2009, p. 109).

Dentre os vários indicadores de bem-estar geracional, o índice de desen-volvimento humano (IDH) é o mais objetivo dentre todos. Apresentado pela ONU, em 1990, o IDH é baseado na ideia de que o desenvolvimento não deve ser medido exclusivamente por critérios econômicos, mas deve considerar uma ampla possibilidade de escolhas e de criação de um ambiente de vida que permita a uma pessoa viver uma vida longa, saudável e produtiva. Dois terços dos componentes do IDH são de elementos não-econômicos, mas se não possuísse componentes materiais seria impossível medir se a pobreza de uma região aumentou ou diminuiu. Assim, o índice é composto pela expectativa de vida; pelo nível de conhecimento, a partir da educação básica, secundária e terciária; e por um padrão descente de vida, medido pelo PIB per capta. A conjugação desses três componentes permite examinar a evolução do índice, em termos globais, desde 1975, pois apenas a partir dessa época alguns dados tornaram-se disponíveis. A

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conclusão é que o IDH mundial apresenta uma tendência crescente ao longo do tempo (TREMMEL, 2009, p. 135-139).

Entretanto, uma análise mais recuada da variação do bem-estar da humani-dade, em termos de séculos e milênios, só é possível através dos dados do PIB, porque nenhum outro dado, dentre os demais componentes do IDH, encontra-se disponível para períodos tão longos. A tabela abaixo mostra como o produto interno bruto per capta variou desde o nascimento de Cristo até o ano 2003, em cada região específica do planeta e em termos globais:

tabela de variação do produto interno bruto per capta de regiões específicas e de todo o planeta desde o nascimento de cristo até o ano de 2003

Fonte: GOKLANY, 2007, p. 42 apud TREMMEL, 2009, p. 140.

Perceba o leitor que até por volta de 1700, todas as regiões do planeta tinham um PIB semelhante, ou seja, não havia uma discrepância muito grande entre ricos e pobres. Porém, a partir de 1820, os valores por região começaram a apresentar grande disparidade, o que se intensificou por volta de 2001, quando vêem-se Japão, Estados Unidos da América e Europa ocidental com valores anuais de PIB per capta acima dos 17 mil dólares, e África com irrisórios 1,4 mil dólares anuais. Segundo Altvater, há uma coincidência de dados na tabela acima. Analisando-se o PIB global, seus números deram um salto gigantesco a partir de 1820, saindo de 667 dólares e chegando até 6 mil dólares em 2001. Os períodos coincidem com a introdução do carvão (1700) e do petróleo (1859) na economia mundial. Até a Revolução Industrial, a taxa de crescimento do PIB era algo em torno de 0,22% anuais, mas após 1820 essa taxa decuplicou para 2,21%. Esse salto no crescimento do PIB mundial produziu, como efeito colateral, um aumento brutal da diferença

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de riqueza entre as regiões do globo. A desigualdade mundial é um dos legados negativos da revolução fóssil que, além de aumentar a emissão de gases estufa e de provocar o aquecimento global, contribuiu para alargar o fosso que separa os ricos dos pobres, tornando insustentável o crescimento global, tanto do ponto de vista ecológico, quanto econômico (ALTVATER, 2010, p. 149-152).

Apesar desses dados, Tremmel analisa a mesma tabela como um indicador de que o bem-estar geracional aumentou ao longo dos séculos, desde a época de Cristo até o ano 2003, pelo simples fato da riqueza mundial ser maior hoje do que há 2 mil anos. Referido autor argumenta que quando a riqueza cresce a pobreza diminui, e que em todos os séculos contidos na tabela verifica-se um aumento do PIB per capta (2009, p. 140-142). Sua leitura é parcial, insistindo em dizer que a evolução do PIB mundial permite comparar gerações e concluir que o bem-estar geracional cresceu com o tempo. A única hipótese possível de dizer que o bem-estar cresceu no globo refere-se às necessidades básicas. Neste quesito, o número de pessoas vivendo na pobreza absoluta, isto é, com um dólar por dia ou 365 dólares por ano, realmente vem diminuindo, assim como o percentual dessas pes-soas se comparadas à população global, desde 1980 até 2001 (GOKLANY, 2007, p. 59 apud TREMMEL, 2009, p. 141).

Sintonizado com todas essas variáveis, o Supremo Tribunal Federal vem enfrentando o tema com muita técnica. A primeira vez que as futuras gerações apareceram em uma decisão desta Corte foi em 2006, no bojo da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3540-DF, proposta pelo Procurador-Geral da República em face do texto da Lei federal n. 4.771, de 15 de setembro de 1965 (Código Florestal). Na ementa do acórdão, a proteção do meio ambiente aparece como medida imperiosa que “representa a garantia de que não se instaurarão, no seio da coletividade, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade, que a todos se impõe, na proteção desse bem essencial”. Em seu voto, o Ministro Relator Celso de Mello esclareceu que a questão envolvia antagonismo entre princípios e valores constitucionais e exteriorizava, em suas palavras, a “delicadíssima questão pertinente ao tema da colisão de direitos”; que para impedir o esvaziamento do núcleo essencial do direito ambiental, o meio ambiente é considerado o valor “cuja situação de maior vulnerabilidade reclama proteção mais intensa”.

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Em 09 de abril de 2008, outra decisão do Supremo Tribunal foi prolatada, sendo esta a segunda vez que as futuras gerações apareceram na sua jurisprudên-cia. Trata-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3378-DF, proposta pela Confederação Nacional da Indústria contra o artigo 36 e seus §§ 1º, 2º, 3º da Lei federal n. 9.985, de 18 de julho de 2000 (Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza - SNUC). Basicamente o Tribunal precisava decidir o tamanho da compensação ambiental a ser imposta contra empreendimentos econômicos: se baseada em um percentual fixo ou proporcional ao tamanho do impacto causado pelos empreendimentos. Prevaleceu o voto do Ministro Menezes Direito, segundo o qual a compensação deve ficar vinculada ao critério da proporcionalidade, atentando-se para a amplitude e a efetiva ocorrência de significativos impactos ambientais.

Em 29 de maio de 2008, foi julgada a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3510-DF, proposta pelo Procurador-Geral da República contra o artigo 5º da Lei federal n. 11.105, de 24 de março de 2005 (Lei de Biossegurança), cujo acórdão foi publicado apenas em 28 de maio de 2010. No voto da Ministra Cármen Lúcia, faz-se referência à ampliação do conceito de dignidade humana para uma dimensão intergeracional, na qual a dignidade garantida pela Constituição, à pessoa humana, passa a ser a da própria espécie humana, significando isso, nas palavras da Ministra, que o direito à vida teve o seu núcleo essencial ampliado.

Em 24 de junho de 2009, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fun- damental n. 101-DF, proposta pelo Presidente da República em razão de atos normativos proibitivos da importação de pneus usados, ficou decidido e consolidado na ementa do acórdão que a atividade econômica deve ser acompanhada da garantia paralela e superior de respeito à saúde da população, observadas as necessidades das futuras gerações. Finalmente, em 20 de março de 2012, foi julgado o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 417408-RJ e, em 1º de abril de 2014, foi julgado o Agravo Regimental no Re-curso Extraordinário n. 658171-RJ. Em ambos os casos decidiu-se, de modo semelhante, que o Judiciário pode determinar à Administração Pública medidas assecuratórias do direito ao meio ambiente, para as futuras gerações, sem que isso caracterize violação da separação de poderes.

Importante também citar a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça brasileiro, que de igual modo inclina-se em favor do princípio da proporcionali-

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dade, como critério delimitador dos direitos das futuras gerações. No Recurso Especial n. 904.324-RS, julgado em 05 de maio de 2009, aquela Corte estabele-ceu que até mesmo os danos marginais devem ser reparados; o que significa dizer que o período de tempo, no qual a sociedade fica privada do seu meio ambiente saudável e preservado, também deve entrar no cálculo das indenizações a serem pagas em decorrência de danos ambientais.

5. conclusões

O limite do direito ambiental das futuras gerações é proporcional aos danos que, porventura, forem provocados aos seus interesses. Porém, em se tratando de contextos intergeracionais, onde a dimensão tempo possui magnitude sobremaneira dilatada, deve-se trabalhar com uma proporcionalidade limitada, pois danos ambientais facilmente projetam seus efeitos ao longo de milhares de anos. Ponderar os direitos da geração presente, em cotejo com os direitos das futuras gerações, é uma técnica judicial que deve buscar a manutenção do núcleo essencial do direito ambiental de ambas as partes: a) geração presente – sadia qualidade de vida; b) futuras gerações – perpetuação da espécie humana. Tomando-se como exemplo os impactos socioeconômicos do acidente nuclear de Chernobyl, cujas perdas estimadas alcançaram cerca de 200 bilhões de dóla- res em 30 anos e cujos impactos ambientais estender-se-ão ao longo de 310.608 anos futuro adiante, se tais danos ocorressem hoje no Brasil, pergunta-se: por quanto tempo a geração presente deveria reparar danos de tal magnitude e qual o valor financeiro deveria ser gasto para tanto?

Pois bem, admitindo-se a proporcionalidade pura como único critério a ser aplicado, em um contexto intergeracional, ter-se-ia mediante simples cálculo aritmético o seguinte valor indenizatório a ser, cumulativamente, adicionado à sentença, além das demais obrigações:

a) valor das perdas econômicas já computadas desde a data da ocorrência do acidente: US$ 200 bilhões (duzentos bilhões de dólares);

b) extensão dos danos marginais, isto é, período de tempo no qual o meio ambiente, atingido pela radioatividade, perde sua função ecológica e durante o qual as futuras gerações ficam privadas da sadia qualidade de vida: 310.608 anos;

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c) Observação: o “bem-estar” geracional é composto por vários itens que integram uma hipotética cesta de “capitais”. Supondo-se que dentro dessa cesta, apenas o valor do capital real contribui para o bem-estar geracional, tomar-se-á como base de cálculo só as perdas econômicas já computadas após o acidente (capital real destruído). Assim, o valor ‘a’ será a base para estimar-se o valor total dos prejuízos ao bem-estar gera-cional em toda a extensão de tempo alcançada pelos efeitos do desastre.

d) Então, ‘a’ x ‘b’ significa: US$ 200 bilhões x 310.608 = 200 x 109 x 310.608 = US$ 62.121.600 x 109 (sessenta e dois quatrilhões, cento e vinte e um trilhões, seiscentos bilhões de dólares).

Para que o leitor tenha a exata noção do que significa e qual é o alcance da quantia de US$ 62 quatrilhões, basta perceber que o valor total do produto inter-no bruto mundial (PIB) em 2009, foi calculado em torno de US$ 72,3 trilhões (WORLD BANK, 2011, p. 4). Dividindo-se o hipotético valor da indenização calculada na letra ‘c’ acima, pelo valor total do PIB mundial de 2009, chega-se ao número 859. Isso significa que, ao ser aplicado o princípio da proporcionalidade, sem qualquer temperança, em contextos intergeracionais, a sobrecarga total a ser assumida pela geração presente em favor das futuras gerações pode chegar, em números redondos, a quase 860 anos de produção mundial do PIB, em valores de 2009. É como se 860 anos da riqueza mundial, produzida em 2009, tivessem que ser canalizados integralmente para satisfazer os interesses das futuras gera- ções, descendentes da população diretamente vitimada, localizada na específica área de 200 mil quilômetros quadrados da América do Sul, atingida pelo hipotético acidente nuclear. O restante do planeta Terra deveria ir à “falência” para cumprir uma obrigação de tal magnitude.

Embora a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal brasileiro e a exegese da Declaração sobre Responsabilidades das Gerações Presentes para as Futuras Gerações (UNESCO 1997), apontem ambas para a existência do princípio da primazia dos interesses futuros; é preciso reconhecer que a hipercomplexidade do cenário proposto, a hiperdilatação do tempo e os números acima transformam em um absurdo mortal o ato de priorizar, de modo absoluto, os direitos de apenas uma das partes: as futuras gerações. Os números obtidos no cálculo acima demonstram que o vínculo jurídico, de solidariedade entre as gerações, deve ser

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pensado com temperança. Contrariando Weiss, pode-se dizer que existe sim base teórica, e robusta o suficiente, para limitar os direitos das futuras gerações. Ao se admitir que o artigo 225 da Constituição Federal estabelece um vínculo jurídico amplo que liga – diretamente – a geração presente a todas as quase infinitas futuras gerações; o resultado prático dessa exegese é que a obrigação de preservar o meio ambiente representa uma sobrecarga insuportável e materialmente impossível de ser cumprida, provocando muito mais riscos de extinção da espécie humana do que propriamente a sua perpetuação.

Assim, propõe-se uma exegese do artigo 225 da Constituição Federal no sentido de estabelecer-se uma cadeia de vínculos jurídicos “diretos” apenas entre duas gerações imediatamente próximas, com a obrigação da geração presente A de preservar o meio ambiente para a futura geração B; a mesma obrigação da geração B em relação à geração C; e assim sucessivamente até uma distância espaçotemporal próxima ao infinito. Em cada época da história humana, cada geração poderá decidir como, e se deve, continuar o cumprimento de seus deve-res rumo à geração seguinte. Conforme foi visto, os chamados fatores autônomos de progresso representam uma característica natural e intrínseca ao processo evolutivo das gerações. A condenação de uma geração, hoje, a reparar danos no futuro, pode, em dado momento, perder seu sentido se as futuras gerações desenvolverem tecnologias capazes de purificar o seu meio ambiente. Além disso, todas as gerações possuem dignidade geracional. A perpetuação da humani- dade não pode aniquilar a qualidade de vida das gerações atuais.

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o direito justo em são tomás e em jürgen habermas

Lino Rampazzo1

José Marcos Miné Vanzella2

Resumo

Este artigo pretende identificar certa filiação crítica do pensamento habermasiano à tradição do pensamento tomasiano, através da aderência aos elementos fundamentais do direito justo. No primeiro momento analisa o pensamento filosófico tomasiano no que diz respeito aos conceitos de Direito e de Justiça, em duas questões da Suma Teológica a partir de uma visão geral desta obra. São estudados três artigos da Suma sobre o Direito; e três artigos sobre a Justiça. Com referência ao primeiro tema, apresenta-se uma definição de Direito, estritamente ligado à Justiça. Em seguida passa-se à distinção entre direito natural e direito positivo; e, por fim, à distinção entre direito natural e direito das gentes. Quanto ao segundo tema, apresenta-se a definição de Justiça como um hábito pelo qual, com vontade constante e perpétua, atribui-se a cada um o que lhe pertence. Os outros dois artigos questionam se a justiça é sempre relativa a outrem e se o ato de justiça consiste em dar a cada um o que lhe é devido. No segundo momento apresenta o pensamento de Habermas sobre o Direito situado a partir do horizonte descentralizado da razão comunicativa e da teoria do agir comunicativo. A dignidade da pessoa como fonte moral dos direitos humanos e fundamentais. A reconstrução da legitimidade entre facticidade e validade, Di-reito e democracia. O Estado de Direito e o vínculo entre poder administrativo e poder comunicativo. O Direito justo e sua operação racionalmente adequada. Mostra-se a aderência de Habermas aos temas postos por São Tomás, sua atualização crítica e tradução.

1 Doutor em Teologia pela Pontificia Università Lateranense (Roma). Professor e Pesquisador no Programa de Mestrado em Direito do Centro Unisal – U.E. de Lorena (SP). E-mail: [email protected]

2 Doutor em Filosofia pela Universidade Gama Filho (Rio de Janeiro). Professor e Pesquisador no Programa de Mestrado em Direito do Centro Unisal – U.E. de Lorena (SP). E-Mail: [email protected]

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Palavras-chave

SãoTomás; Habermas; Direito; Justiça; Razão.

Riassunto

Questo articolo artigo pretende identificare una certa filiazione critica del pensiero di Habermas con la tradizione del pensiero di San Tommaso, attraverso l’aderenza agli elementi fondamentali del diritto giusto. Nel primo momento analizza il pensiero filosofico di San Tommaso rispetto ai concetti di Diritto e di Giustizia, in due questioni della Somma Teologica, a partire da una visione generale di quest’opera. Si studiano tre articoli della Somma che trattano del Diritto; e tre articoli che trattano della Giustizia. Quanto al primo tema, si presenta una definizione di Diritto, intimamente legato alla Giustizia. In seguito si passa alla distinzione tra diritto naturale e diritto positivo; e, infine, alla distinzione tra diritto naturale e diritto delle genti. Quanto al secondo tema, si presenta la definizione di Giustizia come un abito attraverso il quale, con volontà costante e perpetua, si dà a ciascuno cio che è suo. Gli altri due articoli discutono se la giustizia è sempre relativa a un altro e se l’atto di giustizia consiste nel dare a ciascuno ciò che gli è dovuto. Nel secondo momento presenta il pensiero di Habermas sul Diritto, a partire dall’orizzonte decentrato della ragione comunicativa e della teoria dell’agire comunicativo. La dignità della persona come fonte morale dei diritti umani e fondamentali. La ricostruzione della legittimità tra fatticità e validità, Diritto e democrazia. Lo Stato di Diritto e il vincolo tra il potere amministrativo e il potere comunicativo. Il Diritto giusto e la sua operazione razionalmente adeguata. Si mostra l’aderenza di Habermas ai temi posti da San Tommaso, come pure la sua attualizzazione critica e la sua traduzione.

Parole-chiave:

San Tommaso; Habermas Diritto; Giustizia; Ragione.

1. introdução

O presente artigo parte da questão se é possível identificar uma filiação crítica do pensamento habermasiano à tradição do pensamento tomasiano, quanto aos

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elementos fundamentais do direito justo. Trata-se de verificar alguns elementos essenciais da filosofia do direito de São Tomás e se são traduzidos e reconfigurados na proposta de Habermas, uma vez que o alemão, sendo agnóstico, herdeiro da tradição iluminista, da escola de Frankfurt e pós-metafísico, não é diretamente vinculado à tradição do pensamento tomista. Com o esclarecimento dos pontos em comum, o artigo tem por objetivo estabelecer uma ampla base de unidade e filiação que favoreça o encontro e o diálogo. Neste sentido ele se divide em dois momentos.

No primeiro momento este artigo procura responder a questão: como o direito se conecta com a justiça no pensamento tomasiano? Para tanto analisa o pensamento filosófico tomasiano no que diz respeito aos conceitos de Direito e de Justiça, em duas questões da Suma Teológica a partir de uma visão geral desta obra. São estudados três artigos da Suma sobre o Direito; e três artigos sobre a Justiça. Com referência ao primeiro tema, apresenta-se uma definição de Direito, estritamente ligado à Justiça. Em seguida passa-se à distinção entre direito natural e direito positivo; e, por fim, à distinção entre direito natural e direito das gentes. Quanto ao segundo tema, depois de apresentar uma definição de Justiça, questiona-se se a justiça é sempre relativa a outrem e se o ato de justiça consiste em dar a cada um o que lhe é devido. Pretende-se, assim, a partir de um autor clássico, analisar o tema da Justiça que marcou toda a reflexão etico-jurídica da civilização ocidental e se tornou um tema emblemático, inclusive no campo do Direito.

No segundo momento pergunta-se: como o pensamento de Habermas sobre o Direito situa-se a partir do horizonte descentralizado da razão comunicativa e da teoria do agir comunicativo? A dignidade da pessoa, herdeira do direito natural e da tradição cristã é também para o autor alemão fonte moral dos direitos humanos e fundamentais? Como esses princípios se configuram na reconstrução da legitimidade entre facticidade e validade, Direito e democracia? Questiona-se: como no Estado de Direito pode-se víncular o poder administrativo e o poder comunicativo? Por fim pergunta-se: como o Direito justo depende de operação racionalmente adequada? Com a resposta a essas questões procuraremos mostrar a aderência de Habermas aos temas postos por São Tomás, e sua tradução critica para o contexto atual, mais pluralista e complexo.

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2. direito e justiça na suma teológica de são tomás

Pergunta-se qual é o conceito de Direito e de Justiça apresentado, respec-tivamente, nas questões 57 e 60 da segunda parte da Segunda Parte da Suma Teológica de São Tomás, com o objetivo de analisar uma temática que marcou toda a reflexão etico-jurídica da civilização ocidental e continua, até os dias atuais, uma significativa referência, inclusive no campo do Direito.

2.1. a colocação dos temas do direito e da justiça na suma teológica

A reflexão sobre o Direito e a Justiça na Suma Teológica está colocada dentro do tema mais amplo das virtudes. São Tomás estuda primeiro as virtudes teologais: fé, esperança e caridade; e, depois, as cardeais: prudência, justiça, fortaleza e temperança. Mas, para uma melhor compreensão destas questões, é importante considerar todo o esquema da Suma.

A Suma Teológica é articulada em três Partes. A Primeira Parte (questões 1-119), dogmática, sobre Deus em si mesmo, sobre o mistério da Trindade e sobre a atividade criadora de Deus (anjos, seres corpóreos, homem). Na Segunda Parte, moral, São Tomás considera o homem, impelido pela Graça, na sua aspiração de conhecer e amar a Deus para ser feliz no tempo e na eternidade. Esta Parte, por sua vez, está subdividida em mais duas partes: a primeira parte da Segunda (prima secundae I-II: questões 1-114),) e a segunda parte da Segunda (secunda secundae II-II: questões 1-189).

Primeiro (I-II), ele apresenta os princípios teológicos do agir moral, estudan-do como, na liberdade de escolha humana para praticar o bem, integram-se a razão, a vontade e as paixões, às quais se acrescenta a força que dá a Graça de Deus, bem como a ajuda que é oferecida também pela lei moral. Analisam-se, aí, especificamente os seguintes temas: o fim último, os atos humanos, as paixões, as virtudes, os vícios e os pecados; a lei, a graça.

Sobre este fundamento, São Tomás delineia a fisionomia do homem que vive segundo o Espírito e que se torna, assim, um ícone de Deus (II-II). Aqui, ele estuda as três virtudes teologais - fé, esperança e caridade -, seguidas do agudo exame de mais de cinquenta virtudes morais, organizadas em torno das quatro

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virtudes cardeais - prudência, justiça, temperança e fortaleza. Termina, então, com a reflexão sobre as diferentes vocações na Igreja.

Na terceira Parte da Suma (questões 1-90), novamente dogmática, Santo Tomás estuda o Mistério de Cristo por meio do qual pode-se alcançar novamente a Deus Pai. Nesta seção, escreve páginas sobre o Mistério da Encarnação e da Paixão de Jesus e sobre os sete sacramentos (TORREL, 2003).

Devido à sua morte prematura, São Tomás não completou a Suma. Ele tinha chegado a falar do sacramento da penitência (I parte).

A última parte, chamada de Suplemento (questões 1-99), foi redigida pelo seu amigo e secretário, Frei Reginaldo de Piperno; e analisa os seguintes temas, a partir dos sacramentos não estudados anteriormente: a penitência (II parte), a unção dos enfermos, a ordem, o matrimônio; e, em seguida, o juízo particular e universal, a ressurreição dos mortos e as realidades futuras.

Para a redação do Suplemento, Frei Reginaldo extraiu suas ideias da obra anterior de São Tomás, O Comentário ao livro das Sentenças, escrito entre 1252 e 1256, quase vinte anos antes da Suma, quando seu pensamento não tinha ainda chegado à plena maturidade (TOMMASO, 1996).

Todo esse esquema reflete a visão filosofica de São Tomás, especialmente aquela que se refere às relações entre razão e fé, natureza e graça.

A visão das relações entre razão e fé possui como base algumas convicções filosóficas e teológicas. Antes de tudo, o realismo gnosiológico; ou, em outros termos, a profunda confiança na radical racionalidade do único horizonte do ser, que não pode dar origem a ordens contrastantes de verdades. Em segundo lugar, a convicção de que a razão humana, também se sustentada no ser por parte de Deus, seja originariamente fornecida de tudo aquilo que lhe é necessário para agir conforme sua natureza. Em terceiro lugar, a tese de que a graça de Deus não anula, mas supõe e aperfeiçoa a natureza humana. A ordem da fé, que corresponde à “graça”, não anula, pois, a ordem da razão, que corresponde à “natureza”, mas a aperfeiçoa.

O conhecimento filosófico pode, pois, completar-se no conhecimento teológico sem, com isso, precisar renunciar ao seu específico campo; e, da mesma

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forma, a teologia pode servir-se da filosofia, sem desvirtuar-se (PERONE; FERRETTI, CIANCIO, 1975).

Neste sentido, entende-se a escolha dos temas da Suma Teológica: Deus, Homem e Cristo. E especificamente, quando trata do homem, analisa também aquelas virtudes, as cardeais, que anteriormente tinham sido estudadas pela filosofia grega, e que são objeto específico do saber racional.

Com referência ao espaço reservado ao estudo das virtudes cardeais, perce-be-se que ele dedica 10 questões para tratar da prudência (questões 47-56), 66 questões relativas à justiça (questões 57-122), 18 questões sobre a fortaleza (questões 123-140) e, por fim 30 questões sobre a temperança (questões 141-170). Pode-se verificar, para entender a importância que ele dá à reflexão sobre a justiça, também a quantidade de questões que tratam das virtudes teologais: 16 questões sobre a fé (questões 1-16), 5 sobre a esperança (questões 17-22) e 24 sobre a caridade (questões 23-46).

Em suma ele fala mais sobre a justiça do que sobre as outras três virtudes cardeais, que somam 58 questões.

Aplicando tudo isso ao nosso estudo, a reflexão filosófica de São Tomás acaba apresentando-se como o exemplo um possível diálogo, com base em argumentos racionais, sobre os sempre debatidos temas do Direito e da Justiça, como pode-se verificar, a seguir.

2.2. a relação entre o direito e a justiça

A questão do Direito está inserida na temática mais ampla da Justiça; ou, em outros termos, o Direito é considerado como que uma expressão da Justiça. De fato, a questão 57, Sobre o Direito, começa, desde seu primero artigo, a discutir “se o Direito é objeto da Justiça”.

Na resposta à questão, São Tomás compara a justiça às outras virtudes. Estas “aperfeiçoam o homem só no referente a si próprio”, enquanto que a Justiça “ordena nossos atos que dizem respeito a outrem”. Por isso, “consideramos justa uma ação nossa, quando corresponde, segundo uma certa igualdade, a uma ação de outro; assim, a paga da recompensa devida por um serviço prestado”.

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Ele continua, depois, comparando a Justiça às outras virtudes, no que diz respeito ao ato virtuoso. A retidão, nas outras virtudes, leva em conta o modo como o ato é praticado pelo agente. Mas a retidão, na Justiça, diz respeito ao ato em si, independentemente do modo como o agente o pratica. É este ato que nós chamamos de “justo”. Conclui, pois, afirmando “e este certamente é o Direito”. Neste sentido, “o Direito é objeto da Justiça”.

Na resposta às objeções, São Tomás esclarece que os termos podem ter vá-rios significados. Assim a palavra “medicina”, indica, primeiro, o remédio dado a um enfermo; e, em seguida, passou a significar a arte de curar. Da mesma forma, a palavra Ius (=Direito) “foi empregada primeiramente para indicar a coisa justa mesmo”; depois foi aplicada para indicar a arte pela qual conhecemos o justo; ulteriormente para significar o lugar onde se aplica o Direito: neste sentido, afirmamos que alguém tem que comparecer “perante a Justiça”. Por fim, chama-se Direito “o que é aplicado por quem tem o dever de fazer a Justiça, embora seja iníquo o que decidiu”.

A afirmação de Santo Tomás fica mais clara se for considerada a língua latina na qual ele escreve, nestes termos, lendo o título do artigo: “Utrum ius sit objectum iustitiae” (Grifo nosso), a saber, “Se o Direito é objeto da Justiça”. Vê-se, pois, que ius (Direito) e iustitia (Justiça), começam com as mesmas letras.

Pode-se, neste sentido, considerar a procedência mais remota do termo ius: trata-se da raiz sânscrita yu, que continha a ideia de vínculo, obrigação; ou da raiz yoh, de onde provêm os termos latinos iurare e iuramentum: quer dizer, jurar e juramento, fórmula religiosa que tem valor de lei, com a ideia de sagrado, pois procede da divindade. No fundo, ius não vem de iustum, nem de iustitia, mas o contrário (CAMELLO, 2002, p. 239).

Ele continua distinguindo, na resposta à segunda objeção, mostrando como se realiza a Justiça. Primeiro como “ideia da obra justa que a razão determina”, à semelhança do plano de um artista; depois, quando esta é redigida por escrito, quer dizer, quando se torna lei. Consequentemente, a lei “propriamente falan- do não é o Direito mesmo, mas uma certa razão do Direito”.

Aqui ele faz uma ligação entre a virtude da Prudência e a da Justiça, pois esta ideia da obra justa que a razão determina “é como que a regra da prudência.”

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Na resposta à terceira objeção, ele continua distinguindo entre iustitia e fas. Como o primeiro termo “implica a igualdade”, propriamente falando não podemos falar de “Justiça” no relacionamento com Deus, mas de fas, que poderia ser traduzido com “Expressão da vontade divina”, ou “Direito divino” (FARIA, 1962, p. 389), ou “Norma divina” (MOTA, 2011). Seu contrário é nefas e nefastus, qualquer violação da lei divina, o ímpio, o ilícito (CAMELLO, 2002, p. 241).

Em suma, a Justiça é aquela virtude que regula as relações com os outros, à diferença das outras virtudes. Por isso, o ato em si, independentemente da intenção do agente tem que ser justo, ou “Direito”: consequentemente, o Direito é objeto da Justiça.

Entende-se, pois, que o Direito, por um lado, está subordinado à Justiça; e, por outro, é distinto dela ao ponto que poderia até ser expressão de algo de “iníquo”.

É no tratado da justiça que se encontra o estudo de Santo Tomás sobre o direito e não no tratado das leis, tanto que

o erro da maioria dos neotomistas é ir buscar a doutrina do direito de Santo Tomás nesta parte da Suma denominada tratado das leis (I- IIae, q. 95). As ‘leis’ são as ‘regras’ das ações humanas, elas governam a conduta humana, o conjunto da moralidade. (VILLEY, 2003, p. 120).

O fato dele discutir a teoria do direito fora do tratado das leis evita a interpretação de que o direito (ius) significa tão somente a lei (lex).

2.3. como se divide o direito?

Em seguida, a questão 57 apresenta mais três assuntos sobre o Direito: se está dividido em Direito natural e positivo (art. II); se o Direito das gentes é o mesmo que o Direito natural (art. III) e se o Direito do senhor e o paterno devem ser especialmente distinguidos (art. IV). A análise, a seguir, limita-se, porém, apenas aos artigos II e III, por serem os específicos temas de interesse mais relevante nas atuais discussões sobre o Direito.

Quanto à divisão entre direito natural e positivo, ele, na resposta ao questionamento, afirma que “o direito ou o justo implica uma obra adequada a outra por algum modo de igualdade”. E, em seguida, distingue dois modos desta

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adequação: ou “pela natureza mesma da coisa: por exemplo, quando alguém dá tanto para receber tanto. E este se chama direito natural”. O outro modo se dá “em virtude de uma convenção ou de comum acordo” que, por sua vez pode ser uma “convenção particular, quando pessoas privadas firmam entre si um pacto”; ou “por convenção pública”, ou porque “todo o povo consente que uma coisa seja tida como adequada e proporcionada a outra”; ou quando o príncipe, que governa o povo e o representa, assim o ordena. “E este se chama direito positivo”.

Na resposta às objeções, São Tomás esclarece que, se é verdade que “o natural a um ente de natureza imutável há de ser necessariamente tal, sempre e em toda parte”, no caso do homem, sua natureza é mutável (Natura autem hominis est mutabilis). Daí “o natural ao homem pode, às vezes, falhar”. Apresenta, em seguida, o seguinte princípio natural: “a igualdade natural exige que ao depositante lhe seja restituído o depósito”. Mas, se “um furioso ou um inimigo do estado exigisse as armas que depositou”, neste caso concreto, devido à má vontade do homem, “o depósito não se deve restituir”.

A necessidade de distinguir o direito natural do positivo, nasce do fato que este último pode “determinar o justo” em coisas que por si mesmas são “indife-rentes”: mas, conforme as palavras de Aristóteles, “uma vez estabelecido, deve permanecer no que é.”

Para entender quais são as “coisas por si mesmas indiferentes”, pode-se recor- rer ao seguinte exemplo, da nossa cultura atual. Os ingleses andam em suas estradas colocando-se à sua esquerda, enquanto os brasileiros se devem pôr normalmente à direita para não cometerem um crime jurídico. O andar à direita ou à esquerda são em si indiferentes, mas, desde que foram escolhidos por lei, o andar na contramão desorganiza o bom entrosamento social e portanto passa a ser uma desobediência juridicamente culpável e, enquanto perigosa, moral- mente condenável (MARTÍNEZ, 1995, p. 413).

O texto da Suma afirma, em seguida, que o que em si mesmo repugna ao di-reito natural não pode a vontade humana torná-lo justo: mas, às vezes, acontece que se estabeleçam “leis iníquas”.

Ele compara, depois, o direito positivo humano com o direito positivo divino. Este último também abrange o “justo natural, cuja justiça escapa aos homens”;

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mas também o que é justo por instituição divina. Dessa maneira, a lei divina “ordena certas coisas por serem boas, proíbe certas por serem más”; e, ao mesmo tempo, há no direito divino também um direito apenas positivo, que ordena e proíbe.

Percebe-se, pois, atrás destas considerações, a antropologia tomasiana: para ele, a graça de Deus não anula, mas supõe e aperfeiçoa a natureza humana. Neste sentido, o direito divino positivo aponta para o “justo natural” que nem sempre é percebido pelos homens. De fato, pouco antes ele afirmava que “o natural ao homem pode, às vezes, falhar”.

Em suma, aqui também Santo Tomás distingue: o direito natural e o direito positivo. O direito natural recebe este nome “pela natureza mesma da coisa”. O positivo, por sua vez, pode ser ou direito positivo humano, ou direito positivo divino.

O direito positivo humano pode ocorrer “por convenção particular”, ou “por convenção pública”, ou por determinação do príncipe: e deveria determinar o justo em coisas que por si mesmas não repugnam à justiça natural. Neste sentido, abrange também coisas por si mesmas indiferentes. Não deveria, porém, estabelecer “leis iniquas”. Por isso, o direito natural tem que ser como que a regra para o direito positivo.

O direito positivo divino, por fim, refere-se seja ao “justo natural”, seja ao justo “por instituição divina”.

Neste segundo artigo, também, pode-se ressaltar a identificação do “direito” (ius) com o justo (iustum), seja no direito positivo humano, como no divino. No fundo o direito se justifica apenas enquanto aplicação da Justiça.

Entre as várias considerações a serem feitas, a respeito desta distinção entre direito natural e direito positivo, pode ser apontada a questão sobre a imutabilidade ou a mutabilidade do direito natural, pois uma leitura mais pontual do pensamento tomasiano conduz à percepção de que é possível admitir tanto o direito natural imutável, quanto o mutável. De fato, analisando de perto a natureza humana, São Tomás percebeu que o natural, no homem, pode falhar. Apesar disso, admite-se o justo natural, manifesto no direito natural na medida em que cabe ao próprio homem operar racionalmente de modo adequado, pela mesma natureza da coisa.

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Quanto à relação entre direito natural e direito positivo, no pensamento tomasiano o direito positivo é derivado do direito natural, ou seja, o justo natural é parâmetro para o justo positivo. No convívio social os seres humanos necessitam de regras convencionais para assegurar a ordem no espaço coletivo. O direito natural, por si só, é insuficiente, pois prescinde de regras complemen- tares que tornem concreto o que existe na natureza. No entanto, o direito posi-tivo precisa adequar-se ao direito natural. No caso contrário, se o direito positivo estiver baseado na perversão da reta razão, iria corporificar-se em um conjunto de regras a serviço apenas de alguns. Neste sentido São Tomás afirma: “O que em si mesmo repugna ao direito natural não pode a vontade humana torná-lo justo.” (AQUINO, 1980, p. 2482).

Quanto à divisão entre o Direito das gentes e o Direito natural (art. III), Santo Tomás afirma que “direito ou o justo natural é o que, por natureza, é adequado ou proporcionado a outra coisa”. Mas esta “adequação” pode acontecer de “maneira absoluta”, ou como algo que é apenas uma “consequência resultante desta natureza”. Para explicar esta distinção, ele apresenta alguns exemplos: no primeiro caso, o macho, por natureza mesmo, é proporcionado à fêmea; e o pai ao filho. No segundo caso há o exemplo do direito de propriedade. De fato, “considerando um campo, absolutamente não descobrimos uma razão para que seja propriedade de um, antes que de outro”. Isso se justifica, porém, se se considerar a oportunidade de cultivá-lo, ou o seu uso pacífico.

O direito natural, por sua vez, se encontra também nos animais; mas o “direito das gentes” é próprio apenas dos “homens entre si”. E isso nasce do fato que é próprio da razão humana “comparar uma coisa com a que dela resulta”.

Neste sentido, o direito das gentes acaba sendo uma aplicação do direito natural através da “razão humana”. Isso aconteceu, como ele mesmo exemplifica, no caso da escravidão, que, absolutamente falando, não nasce do direito natural, mas apenas do direito das gentes.

Por fim, ele especifica que a razão natural dita o direito das gentes procurando a “equidade de maneira imediata”, sem que haja a necessidade de reunir todas as gentes para um pacto comum. Esta “reunião para um pacto comum” acontece no direito positivo, que, por isso, se distingue do direito das gentes.

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Em suma, o direito das gentes não é nem direito natural, nem direito positivo. Seria direito natural, se fosse adequado “de maneira absoluta”, à natureza: mas esta adequação acontece apenas como “consequência resultante desta natureza”, devido à atividade da razão humana que aplica o direito natural, tendo em vista o princípio da equidade. E seria direito positivo, se houvesse uma “reunião para um pacto comum”; mas isso não acontece, pois o direito das gentes aplica o princípio da equidade só “de maneira imediata”.

Mais uma vez é interessante ressaltar a identificação entre o direito e a justiça que ele faz no início da resposta à questão, nos termos acima indicados: “direito, ou justo natural”.

2.4. o que é a justiça

O tema da “Justiça” se encontra na questão 58, cujo título é: De Iustitia, Sobre a Justiça. E se apresenta dividida em doze artigos: 1º o que é a justiça; 2º se a justiça é sempre relativa a outrem; 3º se a justiça é uma virtude; 4º se está na vontade como no sujeito; 5º se é uma virtude geral; 6º se a justiça geral é essencialmente a mesma que qualquer outra virtude; 7º se há uma justiça particular; 8º se a justiça particular tem matéria própria; 9º se é relativa às paixões ou só às ações; 10º se o meio termo da justiça é o meio termo real; 11º se o ato de justiça consiste em dar a cada um o que lhe é devido; 12º se a justiça é a principal entre as outras virtudes morais.

Optou-se, seja pela necessária limitação de um artigo, seja pela escolha de temas considerados mais relevantes, para analisar o primeiro, o segundo e o décimo primeiro artigo da questão 58.

O problema levantado no primeiro artigo é logo especificado nestes termos: Se foi convenientemente definida pelo jurisperitos a justiça como a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que lhe pertence.

A definição citada é trazida do primeiro livro do Digesto.

São Tomás responde que tal definição é apropriada se for entendida devidamente. E raciocina da maneira seguinte: toda virtude é um hábito, do qual provêm os atos bons. Por isso a virtude vai ser definida por um ato bom, conforme o específico de cada virtude. Mas o específico da justiça diz respeito aos atos relativos a outrem. Neste sentido diz-se corretamente que a justiça consiste em

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dar a cada um o que lhe pertence. Mas, para que o ato seja virtuoso, é necessário que seja voluntário, estável e firme. A esse respeito, ele cita Aristóteles, para quem o ato de virtude exige três condições: que o sujeito o pratique da maneira consciente, com livre escolha para um fim devido; e de maneira constante. Mas a primeira destas condições está incluída na segunda, pois, sempre segundo Aristóteles, o que fazemos por ignorância é involuntário. Por isso, para definir a justiça, primeiro enuncia-se a vontade. Em seguida, a constância e a perpetuidade designam a estabilidade de tal ato. Conclui aceitando esta definição de justiça no sentido que o hábito é especificado pelo ato. Retoma, pois a mesma definição, colocando antes o termo hábito. Aliás, ele diz que a forma devida de tal definição seria a seguinte: a justiça é um hábito pelo qual, com vontade constante e perpétua, atribuímos a cada um o que lhe pertence.

Na resposta às objeções ele especifica que está falando não de uma vontade qualquer, mas de uma vontade reta, pois a justiça é um hábito pelo qual agimos e queremos com retidão.

Em seguida, quanto à perpetuidade, ele especifica que não é suficiente praticar a justiça por algum tempo, pois até pessoas injustas de vez em quando praticam atos justos. Não basta querermos observar a justiça por algum tempo [...] é preciso que tenhamos a vontade perpétua de observar sempre a justiça.

Percebe-se claramente a referência à concepção de virtude, que se encontra em Aristóteles, citado cinco vezes neste artigo.

Logo em seguida explica os adjetivos perpétua e constante. O primeiro se refere ao propósito perpétuo de observar a justiça. E o segundo ao firme perseverar em tal propósito.

Distingue, depois, a justiça praticada pelo juiz daquela praticada pelos sú-ditos; no primeiro caso, mandando e dirigindo; e no segundo, a modo de execução.

Por fim, para responder à afirmação de Santo Agostinho, para quem a justiça é o amor que só serve a Deus, ele explica que o amor de Deus inclui o do próximo; e, neste caso, dando a cada um o que lhe devemos.

Em suma, a justiça se define como hábito de uma vontade reta, perpétua e constante com o objetivo de dar a cada um o que lhe pertence.

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Para a questão levantada no segundo artigo, Se a justiça é sempre relativa a outrem, São Tomás responde afirmando, mais uma vez (q. 57, art. 1º), que o ter- mo “justiça” implica “igualdade”: o que diz respeito a um “outro”, pois “nada é igual a si mesmo”. E como é próprio da justiça “retificar os atos humanos”, é necessário que a relação com outrem se refira àqueles que podem agir diversamente. Mas os atos humanos pertencem ao ser humano “total” e não “às partes”. Neste sentido, quando se diz que “as mãos ferem”, entendemos que é “o homem” quem fere, através das mãos.

Não propriamente, pois, mas apenas “por semelhança” se admite que no mesmo homem existam agentes diversos: por exemplo, a razão, o irascível e o concupiscível. Neste sentido apenas metaforicamente pode-se afirmar que existe justiça, no mesmo homem, quando a razão governa o irascível e o concupiscível; ou quando a fé, justifica o “ímpio”, no sentido de pôr na ordem devida as “partes da alma”.

Numa das objeções deste artigo, colocava-se em dúvida a afirmação da justiça se referir a outrem, diante do fato que a justiça de Deus é eterna, e, por isso, “nada há de coeterno com Deus”. São Tomás, a esse respeito, distingue entre a justiça de Deus, “fundada numa vontade e num propósito eternos” e seu “efeito” na justiça humana. Nesta última, pois, se encontra a justiça “relativa a outrem”.

Esta justiça humana tem, pois, como um dos seus elementos essenciais a alteridade: o “outro eu” (GILES, 1983, p. 3). Cuida de uma relação entre seres humanos no convívio coletivo na medida em que o tratamento das “questões ligadas à justiça social temporal requer uma competência especializada e natureza profana.” (VILLEY, 2003, p. 122). Foi nessa perspectiva de alteridade humana, como componente imprescindível da justiça terrena, que São Tomás, neste mesmo artigo, citou a seguinte afirmação de Cícero: “A justiça é aquela razão pela qual se mantém a sociedade dos homens entre si e também a comunidade da vida.” (Apud AQUINO, 1080, p. 2488). Desse modo, é indispensável uma “justiça profana”, da qual já falava a antiguidade clássica, que precisa ser renovada e que foi acolhida por Santo Tomás de Aquino (VILLEY, 2003, p. 118).

Por fim ele compara a justiça com as “outras” virtudes morais. Todas as virtudes precisam “retificar as paixões”, mas com uma diferença: nas “outras” retifica-se

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apenas o agente; e na justiça precisa retificar também “outrem”, a saber “aquele a quem se refere”.

Em suma, a justiça humana, efeito da justiça divina, no sentido próprio, retifica os atos humanos na relação da pessoa com “outrem”; e, no sentido metafórico, põe “ordem” nas várias “partes da alma” de uma pessoa. Isso significa que, enquanto as outras virtudes procuram uma “retificação” apenas no sujeito que age, a justiça procura esta “retificação” também em “outrem”.

Quanto à questão levantada no décimo primeiro artigo, se o ato de justiça consiste em dar a cada um o que lhe é devido, São Tomás esclarece que a matéria da justiça é a ação exterior enquanto esta tem relação com outra pessoa. A justiça, pois, regula esta relação. O “nosso”, pois, é “o que nos é devido por uma igualdade proporcional”.

Em duas objeções deste artigo, citam-se respectivamente Santo Agostinho e Cícero, para os quais as atitudes de “socorrer os miseráveis” e de “beneficiência”, são consideradas como manifestações da justiça. Mas na misericória e na beneficiência, esta última chamada também de “liberalidade”, nós damos aos outros “o que nos pertence e não o que lhes pertence”.

A esse respeito, São Tomás responde dizendo que à justiça, enquanto virtude cardeal, estão anexas certas virtudes secundárias, como, entre outras, a misericórdia e a liberalidade. Consequentemente estas virtudes são atribuídas à justiça “por uma certa redução”.

Na terceira objeção afirmava-se que pertence à justiça não somente “distri-buir as coisas de modo devido”, mas também coibir os atos injuriosos, tais como o homicídio, o adultério etc. Mas parece que a expressão “dar a cada um o seu” se refira apenas à distribuição das coisas.

Na resposta, Santo Tomás escreve que a justiça “principalmente e mais comumente” recai sobre as trocas voluntárias das coisas. Eis porque esta virtude é definida com a expressão “dar a cada um o que lhe pertence”.

Ao reforçar essa noção fundamental de assegurar a cada um o que lhe cabe, Santo Tomás firmava mais um componente essencial à justiça: o devido (debitum). É o devido a outrem que importa nas ações justas: trata-se de um

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“devido” exigente e estrito. É aquilo que, modernamente, tem-se denominado “atributividade” (TELLES JÚNIOR, 1965, p. 367-368).

Ocorre que a pluralidade de pessoas e o devido não são suficientes para carac-terizar a relação de justiça. Torna-se, pois, necessário o componente da igualdade. De fato, na justiça não se trata de estabelecer “identidade”, ou “semelhança”, mas equivalência, vale dizer, igualdade (RECASÉNS SICHES, 1936, p. 280). Neste artigo, pois, Santo Tomás fala de “igualdade proporcional”. (AQUINO, 1980, p. 2499).

Esse devido por justiça, portanto, é um antídoto para concessões favoritistas ou privilégios especiais atribuídos a alguns em detrimento de outros.

Em suma, a justiça regula a relação entre pessoas, que se manifesta na ação exterior: e esta ação exterior com muita frequência diz respeito às trocas voluntárias das coisas. Neste sentido próprio e específico, a justiça consiste em “dar a cada um o que lhe pertence”. Mas a justiça é uma virtude cardeal, à qual estão anexas certas virtudes secundárias, como a misericórdia e a liberalidade. Por isso também estas virtudes, “por redução” podem ser incluídas na justiça.

Enfin, a virtude da justiça integrou o rol das chamadas virtudes éticas da “pragmatéia” aristotélica, ocupando posição de destaque no referido sistema, mas também marcou toda a reflexão ético-jurídica da civilização ocidental (VAZ, 1999, p. 124). E não foi por outra razão que Santo Tomás de Aquino incluiu a justiça entre as chamadas virtudes cardeais, as quais estabelecem as necessárias e significativas articulações das ações virtuosas.

O tema da justiça tornou-se tão emblemático, no mundo ocidental, que ela acabou focalizada como sendo, historicamente, a referência nuclear para as reflexões desenvolvidas a respeito da alteridade, que caracteriza as relações pessoais.

Desse modo, tem-se afirmado que a questão da justiça, no mundo ocidental, conduziu a se pensar em uma forma de razão holística e harmonizadora, que se constituiu em uma instância que “enquanto sentido unificador do universo moral de cada um, individualmente, e de todos, coletivamente, parece conferir ao direito, ao poder e à liberdade um significado existencial, uma razão de existir.” (FERRAZ JÚNIOR, 2003, p. 13).

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3. o direito justo e a operação racional adequada em direito e democracia

Exposto o pensamento de São Tomás, quanto à questão do direito justo, apre- sentaremos nesta segunda parte o pensamento de Habermas, para mostrar a grande linha de continuidade que une os dois autores a partir dos seus temas fundamentais, apesar da enorme distância no tempo e do primeiro situar-se como reli- gioso-metafísico e o segundo dentro de um horizonte agnóstico pós-metafísico. É de se notar também os avanços na compreensão procedimental do Direito justo.

Apresentaremos o pensamento de Habermas sobre o Direito a partir dos seguintes temas: a teoria do agir comunicativo e o horizonte descentralizado da razão comunicativa; a dignidade da pessoa como fonte moral dos direitos humanos e fundamentais; a reconstrução da legitimidade entre facticidade e validade, Direito e democracia; a reconstrução da legitimidade entre facticidade e validade, Direito e democracia; Estado de Direito, poder administrativo e poder comunicativo; o Direito justo e sua operação racionalmente adequada.

3.1. a teoria do agir comunicativo e o horizonte des-centralizado da razão comunicativa

A abordagem da questão do Direto justo de São Tomás desembocou na operação racionalmente adequada como fundamento do Direito positivo justo. Para abordar a questão no pensamento de Habermas, inicia-se, com uma breve notificação de sua concepção de razão comunicativa, a qual visa à ampliação da razão rompendo as fronteiras do iluminismo estrito. Em suas próprias palavras ele afirma:

[…] tomamos uma decisão prévia em favor de outro conceito de racionalidade, filiada a noções mais antigas do logos. Esse conceito de racionalidade comunicativa traz consigo conotações que, no fundo, retrocedem à experiência central da força espontaneamente unitiva e geradora de consenso própria à fala argumentativa, em que diversos participantes superam suas concepções inicialmente subjetivas para então, graças à concordância de convicções racio-nalmente motivadas, assegurar-se ao mesmo tempo da unidade do mundo objetivo e da intersubjetividade de seu contexto vital. (HABERMAS, 2012a, p. 35-36).

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Desse modo o autor alemão pode expressar os vários médiuns discursivos que manifestam e ampliam a racionalidade distinguindo suas, convicções, formas de exteriorizações problemáticas e pretensões de validade. Assim afirma como expressões da razão comunicativa: o discurso teórico, o discurso prático, a crítica estética, a crítica terapêutica; e por fim o discurso explicativo (2012a, p. 57). Chama a atenção que um médium reflexivo subsiste não apenas para o campo cognitivo-instrumental e para o campo moral-prático, mas também para a crítica estética, a crítica terapêutica e para o discurso explicativo. Segundo o autor alemão, uma pessoa é muito mais racional “quando ela é capaz de assumir uma postura reflexiva diante dos próprios padrões valorativos que interpretam as carências elementares”. (2012a, p. 52). A autenticidade torna plausível a razão pela qual os argumentos estéticos são menos coercitivos do que os teóricos. O exemplo da terapia também é bastante significativo, pois denominamos racional, o comportamento de uma pessoa que esteja disposta a se libertar das ilusões de seu autoengano. Desse modo, o objetivo da psicanálise é remover as amnésias, dissolvendo-as, assim, os produtos enigmáticos da vida psíquica, a continuidade do estado mórbido é eliminada (1982, p. 247). Quem alcança a própria cura atinge um maior grau de racionalidade no seu agir e falar. Ao passo que quem usa dogmaticamente seus próprios meios simbólicos de expressão comporta-se de modo irracional. “O discurso explicativo, ao contrário, é a forma de argumentação em que a compreensibilidade ou a regularidade de expressões simbólicas deixa de ser suposta ou resguardada de maneira ingênua”. (2012a, p. 56). A partir desse conjunto Habermas afirma: “entendemos racionalidade como uma disposição de sujeitos capazes de falar e agir. Ela se exterioriza nos modos de comportamento para os quais, a cada caso, subsistem boas razões”. (2012a, p. 56). Com a forma dos enunciados modifica-se também o sentido da validade.

A desvalorização das figuras de pensamento tradicionais não foi produzida arbitrariamente, mas é fruto de aprendizado. Por isso: “É próprio ao esclarecimen-to a irreversibilidade de processos de aprendizado, pois discernimentos não podem ser esquecidos a bel-prazer, mas só reprimidos ou corrigidos por discer-nimentos melhores.” (HABERMAS, 2002, p. 122). Por outro lado, isso não isenta o iluminismo de seus próprios preconceitos, especialmente quanto ao potencial de esclarecimento e justificação das religiões. Isso implica o aumento de complexidade do novo logos deixando claro suas posições de crítica à parcialidade

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cognitiva instrumental da racionalidade moderna e a disponibilidade para apren- der com outras culturas (2012a, p. 143). Apresenta-se assim de forma des-centrada e não se deixa levar pela “[…] noção fantasiosa de que a diferenciação e autonomização de um mundo objetivo signifique, de maneira geral, a desvinculação do mundo social e do mundo subjetivo em relação ao campo do entendimento racionalmente motivado”. (2012a, p. 143-144). Também não crê ser possível, a partir do conceito da compreensão de mundo descentrada e da racionalidade procedimental, alcançarmos “ao mesmo tempo o ideal de uma forma de vida que se torne perfeitamente racional”. (2012a, p. 144). Em artigo escrito para a revista “Direito & Paz” concluímos com a seguinte passagem uma apresentação bem mais detalhada do assunto:

Ao final desta abordagem, fica claro o sentido da ampliação da razão proposto por Habermas, ele vincula-se ao antigo logos e afirma a descentralização das imagens de mundo, tanto tradi-cionais como modernas, chega-se por fim a um conceito ampliado de razão comunicativa, entendida como exteriorização-teórica-prática-estética-terapêutica-explicativa de pessoas capazes de falar, agir e aprender. Porém, este conceito ainda é abstrato. Pois seu exercício precisa ser contextualizado em seu pano de fundo, o mundo da vida. (VANZELLA; RAMPAZZO, 2013, p. 420).

Não temos condições neste trabalho, como no artigo citado, de explorar a complexa compreensão de mundo da vida de Habermas. Ela se apresenta como um equivalente hermenêutico de horizonte de sentido e ação, que permite re-colocar questões mais abrangentes abordadas pela metafísica. Porém, o itinerário até aqui exposto possibilita a clareza quanto ao sentido de ampliação da razão e descentralização das imagens de mundo, o que reabilita a retomada do diálogo crítico com a tradição.

Neste sentido, cumpre apenas lembrar que o mundo da vida constitui-se a partir dos seguintes campos formais: a personalidade, a sociedade e a cultura. Eles se distinguem formalmente, mas estão entrelaçados. Internamente ao mundo da vida, mas com lógica própria de desenvolvimento temos também os sistemas econômicos e políticos. A colocação da questão da justiça apresenta-se no entrelaçamento destes campos que também exigem a distinção entre agir comunicativo, orientado para o entendimento racionalmente motivado, e o agir

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estratégico orientado para fins fixados independentemente do entendimento racionalmente motivado.

3.2. a dignidade da pessoa como fonte moral dos di-reitos humanos e fundamentais

Para compreender o complexo conceito de justiça que orienta a concepção de direito de Habermas, distinto, mas em conexão com a moral entende-se ser importante começar com sua compreensão da dignidade da pessoa humana. Habermas cita a Declaração Universal dos Diretos humanos onde se lê: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” confirma a “fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana” cita em seguida a lei fundamental da república federal da Alemanha onde está escrito: “a dignidade do ser humano é inviolável” e menciona como este princípio foi entendido quando em 2006 o Tribunal constitucional Federal considerou inconstitucional “a lei de Segurança Aérea”, nas palavras do autor:

Quando suas vidas são colocadas unilateralmente à disposição do Estado, nega-se aos passageiros a bordo do avião o valor que é devido aos seres humanos em vista de seu próprio bem. […] O respeito à dignidade humana de cada pessoa proíbe o Estado de dispor de qualquer individuo apenas como meio para outro fim, mesmo se for para salvar a vida de muitas outras pessoas. (2012a, p. 9).

Fica claro que o tribunal constitucional alemão eleva o princípio da dignidade humana de cada pessoa acima de qualquer interesse. Trata-se de um direito “inviolável e indisponível”. Por outro lado, os direitos humanos surgiram pri-meiro a partir da oposição à arbitrariedade, opressão e humilhação. “O apelo aos direitos humanos alimenta-se da indignação dos humilhados pela violação de sua dignidade humana”. (HABERMAS, 2012a, p. 11). Nesta perspectiva para Habermas a dignidade humana é: “a fonte moral da qual os direitos fundamentais extraem seu conteúdo”. (2012a, p. 11) Seu sentido se atualiza a luz dos desafios históricos. No texto que segue mostra-se o sentido moral do princípio da dignidade humana e sua conexão com o direito:

[...] a dignidade humana forma algo como o portal por meio do qual o conteúdo igualitário-universalista da moral é importado

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ao direito. A ideia da dignidade humana é a dobradiça conceitual que conecta a moral do respeito igual por cada um com o direito positivo e com a legislação democrática de tal modo que, na sua cooperação sob circunstâncias históricas favoráveis, pôde emergir uma ordem política fundada nos direitos humanos, quando falam de direitos “inatos” ou “inalienáveis” […] [direitos naturais, inalienáveis e sagrados], ainda revelam suas origens a partir de doutrinas religiosas e metafísicas. (2012a, p. 17-18).

O princípio da dignidade humana fundamenta a associação de pessoas livres e iguais, assume um papel importante, no mundo moderno. Como mostrou o então cardeal Ratzinger, após o cisma do cristianismo o direito comum se baseia na natureza e na razão humana (2005, p. 78). O princípio da dignidade humana tem lugar de destaque. Direitos naturais, inalienáveis e sagrados, revelam suas origens a partir das doutrinas religiosas e metafísicas. Porém num Estado neutro do ponto de vista das concepções de mudo esses predicados revelam o modo cognitivo de um conteúdo moral transcendente desses direitos, capaz de ser aceito universalmente (HABERMAS, 2012a, p. 18). Mais dois passos foram importantes neste processo: a afirmação do valor do indivíduo nas relações horizontais entre seres humanos e o valor absoluto da pessoa. A dignidade infinita de cada pessoa consiste na pretensão de que todos os outros respeitem essa esfera da vontade livre como sendo inviolável (2012a, p. 25). A simetria deste respeito fundamenta um princípio moral de justiça. Habermas enuncia o princípio moral nos seguintes termos: “o princípio moral resulta de uma especificação do princípio geral do discurso para normas de ação que só podem ser justificadas sob o ponto de vista da consideração simétrica dos interesses”. (1997a, p. 143). No entanto, não é defensor de uma simples tradução e secularização desses princípios, ele entende que para ser justo o lado secular deve se manter sensível para a força de articulação das linguagens religiosas (2012b, p.16). Do exposto, verifica-se que no pensamento de Habermas a dignidade da pessoa apresenta-se como fon- te moral dos direitos humanos e fundamentais. O conceito moral de justiça é por si abstrato e transcende o direito, mas, ele também depende do direito para sua determinação, como se verificou em São Tomás. Porém aqui se explicita melhor porque o direito não deriva apenas da moral.

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3.3. a reconstrução da legitimidade entre facticidade e validade, direito e democracia

Habermas entende que só no âmbito da tensão entre facticidade e validade é que a questão da legitimidade de direitos pode ser adequadamente pensada. Em seu livro trata de justificar o direito, diferenciando-o da lei e da justiça, mas construindo uma arquitetônica que os relaciona. Só após a explicitação do agir comunicativo pode-se refletir adequadamente sobre os juízos pragmáticos funcionais, éticos e morais que são constitutivos do médium do direito. Segundo o autor: “princípios normativistas correm o risco de perder o contato com a realidade social, e princípios objetivistas, deixam fora de foco qualquer aspecto normativo, […].” (1997a, p. 23) Se guardadas as devidas reservas das abordagens desmascaradoras do capital e do poder, pode-se manter a partir da teoria do agir comunicativo a suposição: “Direito associação de membros livres e iguais, cuja coesão resulta simultaneamente da ameaça de sanções externas e da suposição de um acordo racional motivado”. (1997a, p. 25) Neste sentido a abordagem do di-reito passa a ser dupla, podendo referir-se tanto a facticidade, quanto a pretensão de reconhecimento normativo (1997a, p. 51) Porém, para Habermas, “considera-da em sentido amplo, como um mundo da vida estruturado simbolicamente, a sociedade se forma e se reproduz apenas através do agir comunicativo”. (1990, p. 97) A questão da legitimidade do direito deve ser abordada a partir do enfoque comunicativo, sem que esse perca o contato com a perspectiva objetivista. Nestes termos, segundo nosso autor, a pessoa que age comunicativamente “se situa no nível de expectativas obrigatórias de comportamento em relação às quais se supõe um acordo racionalmente motivado entre parceiros jurídicos”. (1997a, p. 52). Segundo nosso autor: “O mundo como síntese de possíveis fatos só se constitui para uma comunidade de interpretação cujos membros se entendem entre si sobre algo no mundo, no interior de um mundo da vida compartilhado intersubjetivamente”. (1997a, p. 31). Neste sentido, o entendimento, precede e é condição de qualquer agir estratégico. Porém, os falantes podem dizer sim ou não na comunicação, contudo: os pressupostos comunicativos […] têm de ser admitidos factualmente por todos os participantes todas as vezes que desejarem entrar numa argumentação, com pretensões de verdade ou validade (1997a, p. 34). Habermas demostra essa tese no capítulo III de sua “Teoria do Agir comunicativo” (2012a, p.473). Segundo nosso autor, o acordo obtido

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comunicativamente é medido pelo reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade criticáveis, neste sentido:

Essas tomadas de posição são indicativas de que o consenso é precário e guarda sempre em si a possibilidade do dissenso. Entretanto: “A motivação oracional para o acordo que se apoia sobre o “poder dizer não”, tem certamente a vantagem de uma estabilização não-violenta de expectativas de comportamento”. (1997a, p. 40).

A questão que agora se coloca a partir de Habermas é a seguinte: como é pos-sível surgir ordem social, legítima, a partir de processos de formação de consenso ameaçados por uma tensão entre facticidade e validade? Neste sentido ele nos dá uma importante indicação: “Quando, porém, um ator deseja entender-se com outros atores sobre condições a serem preenchidas em comum para que tenha sucesso em suas ações, a regra amarra a sua ‘vontade livre’ através de uma pretensão de validade deontológica”. (1997a, p. 51). Neste sentido a permissão para a coerção jurídica é deduzida de uma expectativa de legitimidade vinda da vontade livre. Porém, essa compreensão pode ser desmentida através de fatos sociais externos que interferem no sistema jurídico. Habermas não se esquece que: “Sociedades modernas são integradas não somente através de valores, normas e processos de entendimento, mas também sistemicamente, através de mercados e do poder administrativo”. (1997a, p. 61) Por esse motivo: “Com muita frequência o direito confere a aparência de legitimidade ao poder ilegíti-mo”. (1997a, p. 62). Entretanto esse juízo ético de um poder ilegítimo só pode ser coerentemente alcançado numa abordagem que tendo objetividade não descarte seu teor normativo. Um poder só pode ser considerado ilegítimo, se confrontado com uma pretensão de legitimidade. Apoiando-se em Habermas, Rainer Forst também afirma que o Direito se distingue de todos os meios sociais por estar ligado às três fontes de integração social: solidariedade social, dinheiro e poder. Para ele:

Assim, o direito é uma espécie de meio geral que abrange todas as bases do sistema e da sociedade, transformando a comunicação do mundo da vida e a formação de vontade social em uma linguagem capaz de ser compreendida em sistemas diferenciados. (2009, p.181).

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O Direito é visto não apenas em sua ligação com o poder e o dinheiro, mas em sua tripla conexão que também envolve a solidariedade social. Neste sentido pode-se entender como o Direito moderno estrutura-se a partir de um sistema de normas positivas e impositivas que pretendem garantir a liberdade e estão associa-das a uma pretensão de legitimidade e não apenas a dominação (1997b, p. 307). Portanto, facticidade e validade ficam entrelaçadas nesta abordagem normativa do direito. É importante entender que, por articular interesses econômicos, poder, auto-compreensão ética e moral, o Direito moderno é em parte funcional e em parte comunicativo. Se por um lado a abordagem objetivista e sistêmica não é suficiente, por outro lado a abordagem ético-moral também não o é.

Na compreensão habermasiana o nexo interno com o agir comunicativo, supera a concorrência entre direitos humanos e soberania do povo, ambos são fundamentais para legitimar o direito. Por isso: “A legitimidade do direito deve ser compatível com os princípios morais da justiça e da solidariedade universal, bem como com os princípios éticos de uma conduta de vida auto-responsável”. (1997a, 132-133). O ponto de partida é a constituição da autonomia do cidadão, na qual o ethos passa pelo crivo de fundamentações pós-tradicionais. “Através do médium de leis gerais e abstratas, a vontade unificada dos cidadãos está ligada a um processo de legislação democrática que exclui per se todos os interesses não-universalizáveis”. (1997a, p.135-136). Habermas esclarece, então, o nexo interno entre a soberania do povo e direitos humanos que não reside simplesmente na autonomia política, mas em seu conteúdo normativo. Neste sentido a decisão da maioria tem que ser compatível com os princípios morais e éticos (1997a, p.137). Também se esclarece o sentido da cooriginalidade da autonomia privada e pública, o qual ensina “serem os destinatários simultaneamente os autores de seus direitos”. (1997a, p.139). A autonomia privada e pública, bem como seus limites, é definida no mesmo processo do exercício autônomo da autonomia política, visto que os direitos privados são intersubjetivos, constituídos no médium do próprio direito. O princípio da democracia, que não pode se opor aos direitos humanos, tem que preservar cada um dos parceiros do direito. O modo de fazê-lo é garantindo para cada um os mesmos direitos fundamentais. Habermas exprime o princípio da democracia na seguinte forma: “Que somente podem pretender validade legítima as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito, num processo jurídico de normalização discursiva”.

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(1997a, p.145). Nesta perspectiva liberdades publicas e privadas não se opõem, pois a liberação do arbítrio dos atores orientados pelo sucesso, na obrigação do agir orientado pelo entendimento, constitui apenas o verso da medalha da coordenação da ação por intermédio de leis (1997a, p.155). São os próprios civis que decidem como devem ser os direitos. Os direitos políticos fundamentais têm que institucionalizar o uso público das liberdades comunicativas na forma de direitos subjetivos, públicos e privados.

Colocamos em foco a partir de Habermas o nexo interno entre Direito e de- mocracia, na preservação dos direitos humanos e na cooriginalidade entre liberdades públicas e privadas. Assim apresentamos uma nova compreensão de validade, que procura fundamentar ao mesmo tempo uma legitimidade crítica da ordem política e a necessidade de sua reforma, levando em conta seus condicionamentos objetivistas.

3.4. estado de direito, poder administrativo e poder comunicativo

Uma vez que se compreende o sentido da conexão interna entre direitos humanos e democracia, autonomia pública e privada, no horizonte dialético entre facticidade e validade, cumpre esclarecer a conexão entre Estado de direito, poder administrativo e poder comunicativo. Iniciamos, pois pela compreensão da necessidade do Estado de direito segundo Habermas:

O Estado é necessário como poder de organização, de sanção e de execução, porque os direitos (individuais, políticos e sociais) têm que ser implantados, porque a comunidade de direitos necessita de uma jurisdição organizada e de uma força para estabilizar a identidade e porque a formação da vontade política cria programas que tem que ser implementados. (1997a, p. 171).

Pode-se verificar que o papel do Estado aponta para um conjunto de prestações de serviços à população. Em nosso contexto a soberania do povo não se identifica com o poder administrativo, antes “se retira para os círculos de comunicação de foros e corporações, de certa forma destituídos de sujeito. Somente nesta forma anônima o poder comunicativamente diluído pode ligar o poder administrativo do aparelho estatal à vontade dos cidadãos”. (1997a, p. 173). Porém essa ligação

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é intermitente. Situado perante uma esfera pública mais ampla e independente, o poder administrativo pode distanciar-se dela. Contudo para Habermas a produção de um direito legítimo implica a mobilização das liberdades comunicativas dos cidadãos. Se o poder da administração do Estado, constituído conforme o direito, não estiver apoiado num poder comunicativo normatizador, a fonte da justiça, da qual o direito extrai sua legitimidade, secará (1997a, p.186). Isso significa que os condicionamentos sistêmicos, da lógica do poder e do dinheiro podem produzir a dominação. Porém, Habermas entende que o fenômeno “básico do poder é o potencial de uma vontade comum formada numa comunicação não coagida”. (1997a, p. 187). Quando a opinião pública se manifesta com veemência e as manifestações tomam as ruas, elas podem orientar, mas não substituir as ações do Estado fazendo frente aos condicionamentos sistêmicos do poder e do dinheiro.

O direito ultrapassa as fronteiras dos discursos de justiça e inclui problemas de auto-entendimento e de compensação de interesses. A prática de entendimento distingue-se da prática de negociação: “Enquanto um acordo racionalmente motivado se apoia em argumentos que convencem da mesma maneira todos os partidos, um compromisso pode ser aceito por diferentes partidos por razões diferentes”. (1997a, p. 207). Porém é preciso supor que os programas negociados e obtidos discursivamente podem ser justificados moralmente.

O direito constitui o poder político e vice-versa. Isso cria entre ambos um nexo que abre e perpetua a possibilidade latente de uma instrumentalização do direito para o emprego estratégico do poder. […] No entanto essas relações de troca alimentam-se de uma normalização legítima do direito, a qual, conforme vimos, tem parentesco com a formação do poder comunicativo. (1997a, 211-212).

Apesar do reconhecimento dos condicionamentos da lógica do poder e da economia, não se pode esquecer que o direito também é fruto do entendimento racionalmente motivado. Habermas lembra os tipos de jogos de linguagem que estão na base do direito: “Em negociações […] pode formar-se uma vontade geral agregada; em discursos hermenêuticos de auto-entendimento, uma vontade geral autêntica; em discursos morais de fundamentação uma vontade geral autônoma”. (1997a, p. 225). Entretanto esses processos genéticos do direito exigem ainda que “os discursos conduzidos representativamente sejam porosos e sensíveis aos

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estímulos, temas e contribuições informais e argumentos fornecidos por uma esfera pública pluralista”. (1997a, p. 227). Essa relação de porosidade à esfera pública é importante fonte de legitimidade do direito, pois nela manifesta-se a soberania do povo. Deste modo o poder administrativo conecta-se com o poder comunicativo, tanto pelos discursos internos de negociações, auto-entendimento e morais, como pelas manifestações externas da opinião publica e da vontade.

Por fim, mostrou-se as conexões entre Estado de direito, poder administrativo e poder comunicativo, apresentando que o poder administrativo é necessário e não pode ser substituído; e que o Estado não se legitima em permanente oposição à esfera pública. Desse modo afirma-se uma compreensão de cidadania crítica e poder administrativo poroso à esfera pública.

3.5. o direito justo e sua operação racionalmente ade-quada

Uma vez que se compreendem os fundamentos de validade do sistema dos direitos e do Estado de direito, em sua limitação humana entre facticidade e validade, pode-se passar para a execução da justiça humana na própria jurisdição. Tendo claro que a justiça não se identifica com a letra da lei, segundo Habermas: “a hermenêutica resolve o problema da racionalidade da jurisprudência através da inserção contextualista da razão no contexto histórico da tradição”. (1997a, p. 248). Para ele “o conteúdo moral de direitos fundamentais e de princípios do Estado de direito se explica pelo fato de que os conteúdos das normas fundamentais do direito e da moral, às quais subjaz o mesmo princípio do discurso, se cruzam”. (1997a, p. 257). Direito não se reduz a moral, mas para manter sua validade não pode deixar de se relacionar com ela. Como foi visto, o princípio da dignidade humana, abre ao direito a porta para a introdução de princípios morais que tornam-se direitos fundamentais. Acompanhando Dworkin, Habermas entende que “os direitos indisponíveis manifestam um sentido deontológico, porque eles formam um peso maior do que os bens coletivos e determinações de objetivos políticos”. (1997a, p. 265). Habermas entende que para Dworkin, a interpretação do direito teria que ser feita por um juiz Hércules, o qual deveria reconstruir todo o direito, a partir dos seus princípios para aplicar o direito justo, que está para além da simples letra da lei. Por sua vez Habermas critica Dworkin por se deixar

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prender no paradigma mentalista e articula uma interpretação procedimental do discurso jurídico. Habermas entende que se “ancore as exigências ideias feitas à teoria do direito no ideal político de uma “sociedade aberta dos interpretes da constituição”, ao invés de apoiá-las no ideal da personalidade de um juiz”. (1997a, p. 278). Não é competência exclusiva do juiz a interpretação da lei conforme a compreensão da totalidade do sistema jurídico e seu nexo com os princípios fundamentais e a justiça. Além das várias instâncias de recursos por que passam os processos terminando com decisões colegiadas, compete a todo que vive a constituição fazer sua interpretação. Não basta o acesso lógico semântico. Por isso Habermas afirma:

[…] pode haver um ‘mais’ de direito em relação aos estatutos positivos do poder do Estado, que tem a sua fonte na ordem jurídica constitucional como uma totalidade de sentido e que pode servir de corretivo para a lei escrita é tarefa da jurisdição encontra-lo e realiza-lo em suas decisões. (1997a, p. 304).

Para ele é esse teor cognitivo que legitima o tribunal constitucional. Como as leis particulares, mesmo votadas por maiorias parlamentares em processos democráticos, podem ser injustas, elas precisam passar por um controle de constitucionalidade. Esse controle faz com que o judiciário possa impedir que leis arbitrárias sejam implementadas.

Ele também distingue normas e valores nos seguintes termos:

Portanto, normas e valores distinguem-se, em primeiro lugar, através de suas respectivas referencias ao agir obrigatório ou teleológico; em segundo lugar, através da codificação binária ou gradual de sua pretensão de validade; em terceiro lugar, através de sua obrigatoriedade absoluta ou relativa e, em quarto lugar, através dos critérios aos quais o conjunto de sistemas de normas ou de valores deve satisfazer. (1997a, p. 317).

Não se trata, portanto, de valores concorrentes, mas de proteger o sistema de direitos que possibilita a autonomia privada e pública dos cidadãos, portanto sua dignidade e que pode ser decidido em um código binário.

Para ser legitimo, o direito de uma comunidade jurídica concreta, normatizado politicamente, tem que estar, ao menos: em sintonia

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com princípios morais que pretendem validade geral, ultrapassando a própria comunidade jurídica. […] Porém tal formação de compromisso não se realiza nas formas de um discurso racional que neutraliza o poder ou exclui o agir estratégico. (1997a p. 351).

Como visto esses princípios morais que pretendem validade geral, são aqueles derivados do princípio da dignidade da pessoa humana que procedem da natu-reza humana e passam ao direito, como direitos fundamentais. Tem-se então o vinculo da legitimidade no nexo interno entre democracia e direitos humanos. Desvela-se a relação de pertença à tradição ocidental, nas palavras de Ratzinger: “Como último elemento do direito natural que, em seu anseio profundo pretendia ser, pelo menos na Idade Moderna um direito racional, permaneceram os direitos humanos”. (2005, p. 81). Se o direito natural dissolveu-se ou não é uma questão a discutir, mas que seus princípios fundamentais foram incorporados às constituições democráticas ocidentais com diferentes interpretações é fato que Habermas descreve. Fica também nítido que sua concepção procedimental tem uma relação de filiação crítica a essa tradição, que desemboca na operação racionalmente adequada como fundamento do direito positivo justo. O qual possui nexo interno com a democracia, os direitos humanos, as liberdades sub-jetivas e públicas, o Estado, o agir comunicativo em conjunto e a jurisdição com sua necessidade e limites.

4. conclusões

Na primeira parte deste trabalho abordou-se o pensamento de São Tomas de Aquino sobre a questão do direito e da justiça. Verificou-se que a questão da justiça, que concerne ao direito, situa-se a partir da abordagem teológico-metafisica da Suma Teológica, na parte da moral que trata das relações entre o os homens. Na segunda parte verificou-se que Habermas possui uma compreensão ampliada da razão entendida a partir do logos, que implica a multiplicidade de suas vozes, uma descentração das imagens de mundo e a reabilitação das tradi-ções inclusive religiosas como elemento do amplo diálogo crítico.

Afirma-se, a partir de São Tomas, que a Justiça é aquela virtude que regula as relações com os outros, à diferença das outras virtudes. Por isso, o ato em si, independentemente da intenção do agente tem que ser justo, ou “Direito”:

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consequentemente, o Direito é objeto da Justiça. Verificou-se, a partir de Habermas, que a principal fonte moral do direito é o princípio da dignidade humana. Tal princípio fundamenta a sociedade como cooperação de pessoas li-vres e iguais e o princípio moral de reciprocidade.

Verificou-se, na exposição de São Tomás, que as aplicações da Justiça acabam recebendo o nome de “Direito”, mas com significados diferentes: assim temos a ciência do Direito, o Tribunal, a decisão do Tribunal e a lei escrita. O Direito, por um lado, está subordinado à Justiça; e, por outro, é distinto dela ao ponto que poderia até ser expressão de algo de “iníquo”. No pensamento de Habermas, o Direito é abordado a partir da facticidade e validade, apresentando sua dimensão de conexão com a legitimidade, justiça e validade por um lado e por outro lado mostrando também os condicionamentos econômicos e políticos, que podem levar o direito a justificar a dominação, portanto como em São Tomas pode ser expressão de “iniquo”. A ciência do direito, o tribunal, a decisão do tribunal e a lei são também abordadas por Habermas, a partir constatação de suas limitações ligadas à facticidade e orientação para a validade.

O fato de São Tomás discutir a teoria do direito fora do tratado das leis evita a interpretação de que o direito (ius) significa tão somente a lei (lex). São Tomas afirma a intrínseca relação entre ética e direito, pois este é considerado como objeto da justiça; e o desfazimento do recorrente equívoco de muitos, até hoje, em confundir direito e lei. Na parte do pensamento de Habermas referente ao direito justo e à operação racional adequada, fica claro que o autor alemão também não identifica deito justo com a lei, mas que implica uma ampla comunidade de interpretação e a reconstrução do sentido ético-moral por parte dos intérpretes da constituição.

No pensamento de São Tomás o direito positivo humano pode ocorrer “por convenção particular”, ou “por convenção pública”, ou por determinação do príncipe e deveria determinar o justo em coisas que por si mesmas não repugnam à justiça natural. Não deveria, porém, estabelecer “leis iniquas”. Já no pensamento de Habermas vimos que o Direito para ser justo, embora ligado a determinações sistêmicas e a condicionamentos econômicos e políticos, precisa estar em conexão com a moral, mas também com a democracia. Pois a democracia é condição da pre- servação da dignidade humana e dos direitos humanos e fundamentais de cada cidadão.

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No pensamento de São Tomás, também pode-se ressaltar a identificação do “direito” (ius) com o justo (iustum), seja no direito positivo humano, como no divino. No fundo o direito se justifica apenas enquanto aplicação da Justiça. Santo Tomás percebeu que o natural, no homem, pode falhar. Apesar disso, admite-se o justo natural, manifesto no direito natural na medida em que cabe ao próprio homem operar racionalmente de modo adequado. Neste sentido a operação racionalmente adequada apresenta-se tanto em São Tomás como em Habermas como o fundamento do direito positivo justo.

Do exposto podemos concluir que Habermas, embora agnóstico e pós-me-tafísico, possui uma profunda e ampla aderência aos elementos fundamentais do Direito expostos por São Tomás. O vínculo e diferença com a justiça, sua rela-ção com a aplicação da justiça, sua distinção em relação com a lei, a justificação do direito positivo e o entendimento de que a justiça como fundamento do direito justo depende da operação racionalmente adequada.

5. referências

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o revisionismo de ronald dworkin e a crise dos postulados clássicos do

juspositivismo

Francisco Carlos Duarte1

Resumo

O presente trabalho aborda, sob a perspectiva de uma teoria crítica, com-prometida com os interesses populares, a transição entre o modelo juspositivista clássico de direito e o pós-positivismo. Discute a inserção da força normativa dos princípios, a partir do filósofo do Direito Ronald Dworkin, como meio de correção das falhas no modelo de regras do juspositivismo. A partir destes elementos, será desenvolvida também, uma reflexão sobre a contradição das premissas da neutralidade, completude e segurança jurídica com sua factibili-dade, notadamente, com cotejo com a crise cada vez mais evidente no sistema jurí-dico brasileiro. Em linha conclusiva, o artigo pretende evidenciar que a crise no sistema brasileiro vem desde a origem do positivismo jurídico, não sendo passível de soluções dentro dos limites deste próprio sistema, de modo que na conjuntura atual, os espaços de fomento desta crise devem, tão somente, ser ocupados para avançar na conquista de direitos para o povo.

Palavras-chave

Jus positivismo; Força normativa dos princípios; Ideologia jurídica; Crise.

Resumen

En este trabajo se analiza, desde la perspectiva de una teoría crítica, comprome-tida con los intereses del pueblo, la transición entre el modelo juspositivista

1 Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina e pela Universitá di Lecce – Itália, com Pós-doutorado pela Universidade de Lisboa – Portugal, pela Universitá di Lecce – Itália; Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professor titular nos cursos de graduação, pós graduação, mestrado e doutorado em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Advogado e Procurador do Estado do Paraná.

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clásico de derecho y el post-positivismo. Trata sobre la integración de la fuerza normativa de los principios, de del filósofo del derecho Ronald Dworkin, como un medio para corregir las fallas en el modelo de reglas del juspositivismo. A partir de estos elementos se desarrollarán también una reflexión sobre la contradicción de los supuestos de neutralidad, integridad y seguridad jurídica en su factibilidad, especialmente en comparación con la crisis cada vez más evidente en el sistema jurídico brasileño. En línea concluyente, el artículo pretende poner en evidencia que la crisis en el sistema brasileño viene desde origen del positivismo jurídico, no sujeto a soluciones dentro de los límites de este sistema en sí mismo, por lo que en la situación actual, los espacios de fomento de esta crisis debe, tan solo, ser ocupados para avanzar en el logro de los derechos del pueblo.

Palabras clave

Juspositivismo; Fuerza normativa de los principios; Ideología jurídica; Crisis.

1. introdução

O positivismo jurídico clássico, tomando Hans Kelsen como seu expoente, fundou-se em três ideias centrais: completude, neutralidade e segurança jurídica. A contradição entre estes postulados passou a ser evidenciada nos século XX pela ressonância das críticas de diversos teóricos do Direito, dentre os quais, neste artigo, optou-se por Ronald Dworkin.

Deste debate, ocorreu a superação do sistema juspositivista clássico, pelo que se denominou pós-positivismo, originando também novas práticas jurídicas, inseridas no espaço do neoconstitucionalismo. Entretanto, o juspositivismo sai de cena, mas deixa como legado a sua crise, ainda não resolvida.

Neste trabalho pretende-se refletir sobre esta crise, criada pelo juspositivis-mo e não superada pelo pós-positivismo. Considera-se importante debruçar-se sobre tal tarefa, pois a polêmica acerca do tema constitui debate cada vez mais recorrente no cenário, especialmente, jurisdicional do Brasil. Crê-se então, que uma reflexão crítica acerca das origens e elementos de intensificação desta crise seja possível a partir de uma breve análise sobre a conjuntura de superação do positivismo clássico.

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Para cumprir esta empreitada, optou-se pela pesquisa bibliográfica tomando como marco teórico o filósofo do Direito e Professor Ronald Dworkin, dia-logando suas ideias com outros autores e realidades brasileiras. Também se adotará a perspectiva crítica do Direito, enquanto sistema inapto à concretização dos direitos do povo e é sob esta perspectiva que serão lançadas as breves críticas pessoais ao sistema oficial de Direito.

2. crise e superação do juspositivismo

O positivismo jurídico clássico, assim como idealizado por Hans Kelsen, funda-se em três postulados elementares: a completude do ordenamento jurídi-co; a neutralidade e a segurança jurídica do sistema (KELSEN, 1984). Estas fo-ram as premissas bem articuladas na teoria kelseniana que a fizeram difundir-se pelo mundo ocidental. Entretanto, no século XX, as premissas positivistas e o seu rigor científico passaram a ser duramente rechaçados pelos reclames sociais e pela própria comunidade teórica. A lógica automática, irrefletida e mecânica da teoria pura já não convencia mais como modelo ideal de infalibilidade:

Dia após dia, através do uso da força, mandamos pessoas para a prisão, tiramos dinheiro delas, ou as levamos a fazer coisas que não desejam fazer, e, para justificar tudo isso, dizemos que essas pessoas infringiram a lei, deixaram de cumprir suas obrigações jurídicas ou interferiram nos direitos jurídicos de outras pessoas. (DWORIN, 2002, p. 24)

Diante de questionamentos neste sentido, o positivismo confrontou-se com a urgência em reconsiderar suas diretrizes sob pena de não mais permanecer como sistema jurídico vigente. Com alguma elegância, o sistema acabou absorvendo as críticas trazidas ao debate pela doutrina progressiva e transformando-a nos novos alicerces de um positivismo repaginado, adaptado aos avanços sociais, mas sem perder seu caráter ideológico2.

2 O positivismo queria ser objetivo e assumir caráter de ciência, mas acabou sendo ideologia. Foi uma ambição que custou caro à humanidade, na avaliação de BARROSO: “O Direito reduzia-se ao conjunto de normas em vigor, considerava-se um sistema perfeito e, como todo dogma, não precisava de qualquer justificação além da própria existência. Com o tempo, o positivismo sujeitou-se à crítica crescente e severa, vinda de diversas procedências, até sofrer

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O espaço mais propício para este debate e desenvolvimento da crise era justamente o da hermenêutica. Assim, nota-se no positivismo que o papel do magistrado era um problema delicado: para o positivismo clássico, competia ao juiz tão somente aplicar o texto da lei. Interpretar, para aplicar da melhor maneira, mas somente aplicar: o juiz não criava direitos através de suas sentenças, mas tão somente descobria o que estava “escondido sob a norma”. Entretanto, o debate jurídico foi se mostrando cada vez mais complexo. Mesmo com os direitos sociais e humanos não conseguindo acessar aos espaços judiciais da justiça positivista (muito menos os demais espaços estatais) o incompleto campo de produção de conflitos que era abarcado pelo sistema judicial positivista3 conseguiu causar perplexidade, pois constantemente os litígios apresentados aos magistrados não tinham a prometida fórmula pré fixada e escondida entre as normas.

Após tantas “Escolas” que buscaram fundamentar a Hermenêu-tica Jurídica; após a crise na crença em uma racionalidade que podia conhecer tudo e, com o crescente aumento de complexidade e descentramento da sociedade, muitos vêem a possibilidade da interpretação (ou mais especificamente, de uma interpretação correta, segura) como algo impossível, ou, ao menos, improvável. (BAHIA, 2003)

Havia uma crise instalada no interior do positivismo, que o sistema conseguiu criar sozinho pela contradição de seus próprios postulados de completude, segurança e neutralidade: postulados incompatíveis com a natureza humana, razão e causa de ser do Direito e incompatíveis com a natureza dos “operadores jurídicos”, que nunca foram nem serão máquinas.

Complicando ainda mais as contradições internas do positivismo, surgiu um novo ator nesta crise: o oprimido, o pobre, o marginalizado. Este, seja denominado como for, veio então intensificar a crise, pois aprendeu a se insurgir neste sistema, através das associações comunitárias, dos sindicatos e dos diversos movimentos sociais:

dramática derrota histórica. A troca do ideal racionalista de justiça pela ambição positivista de certeza jurídica custou caro à humanidade.” (BARROSO, 2001, p. 18)

3 Fala-se aqui dos direitos patrimoniais e das elites, para os quais o sistema judiciário sempre se mostrou mais eficaz e seguro.

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Já no final do século XIX a profunda desigualdade econômica e social entre as pessoas gerada por uma exploração sem precedentes na história, provocou reações. Pululavam revoltas de operários, os sindicatos lutavam por reconhecimento de condições mínimas de trabalho (não se esqueça que os sindicatos, durante longo tempo, foram até proibidos e tiveram de existir na ilegalidade). No meio rural, camponeses eram expulsos de suas fazendas e eram obrigados a procurar trabalho nas cidades, que cresciam sem infra-estrutura, o que agravava os problemas.

Ao mesmo tempo, as idéias de Karl Marx e Engels se difundiam e logo começariam a se reunir as “Internacionais Socialistas”. Mais tarde, o sucesso da Revolução Russa (1917) gerou o temor em outros países de que em seu território ocorressem revoluções como aquela.

Diante de tais pressões, os Estados Liberais foram obrigados a ceder, editando leis que, e.g., diminuíam a jornada de trabalho (ao menos para mulheres e crianças), que permitiam o funcionamento de sindicatos (BAHIA, 2003)

Acerca da crise, Saint-Simon apud Abbagnano (2007, p. 259) situa o progresso da história em sucessões de períodos orgânicos e períodos de crise. As épocas orgânicas, dentre as quais considera a Idade Média, têm seu desenvolvimento tranquilo, fundado em crenças firmes e bem estabelecidas. Neste sentido, a crença positivista é de que a modernidade toda se desenvolve na crise por ainda não ter consolidado sua organização acerca de um princípio único. Para as diversas opiniões, há um consenso: a modernidade se desenvolveu na crise. Alguns, en-tretanto, creem que o caminho para o qual a modernidade ruma é o comunismo.

o ideal de uma época orgânica, em que não haja incerteza nem luta, é, por sua vez, um mito consolador que serve de escape para as gerações que perderam o sentido de segurança, visto que nenhuma época chamada orgânica, nem mesmo a Idade Média, foi isenta de conflitos políticos e sociais insolúveis, de lutas ideológicas, de antagonismos filosóficos e religiosos, a testemunharem a fundamental incerteza ou ambigüidade dos valores da época. Quando, de resto, o diagnóstico da crise é acompanhado pelo anúncio de uma época orgânica qualquer, essa noção revela claramente seu caráter de mito pragmático, ideológico ou político. (ABBAGNANO, 2007, p. 259, sem grifo no original)

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Então a transição entre as formas de Estado que a modernidade experimentou, inaugurou também algumas mudanças dentro da teoria positivista. Neste sentido, ocorreu o fenômeno descrito por Boaventura de Sousa SANTOS (1997, p. 93), ou seja, a subsunção das energias emancipatórias em energias regulatórias. Ou seja: os diversos autores que se debruçaram sobre a revisão da teoria positivista, ainda que motivados pelo genuíno compromisso com os oprimidos e explorados, acabaram por construir uma teoria que foi absorvida pela mesma lógica que operou o positivismo clássico.

As insuficiências da modernidade logo se revelaram. A emergência do proletariado e novos aportes teóricos tiveram um efeito intrusi-vo sobre o modelo de homem e de conhecimento concebidos na modernidade. O juspositivismo conhece sua derrocada definitiva com a derrubada nos regimes nazi-fascistas ao final da 2ª Guerra Mundial e o pós-positivismo desenvolve-se como concepção alternativa à ciência jurídica. (ASSIS, 2006)

Um dos autores de maior contribuição para reforma dos preceitos positivistas foi Ronald Dworkin. Inserido na lógica de estudos jurídicos típica dos Estados Unidos da América, a qual se desenvolve não pelo estudo dos dispositivos jurídicos (a escola da exegese é muito mais forte na cultura acadêmica brasileira, por exemplo), mas principalmente pelo estudo dos casos judiciais. Esta metodologia pode levar ao despertar precoce, em relação às outras escolas, com relação aos problemas destacados na crise interna do positivismo, ou seja: a insuficiência das regras para solução de conflitos. E, desta consciência de Dworkin, surge a construção da força normativa dos princípios, teoria endossada entre diversos teóricos pós positivistas, como John Rawls, Robert Alexy, entre outros.

A contribuição de Ronald Dworkin abriu caminho para o surgimento de racionalidades alternativas no campo do positivismo, que, ao abrir mão de sua rigidez para manter-se vigente, permitiu a coexistência de profundas divergências teóricas no mesmo sistema, originando o chamado pós-positivismo, ou neo constitucionalismo. Destaca-se, todavia, que a coexistência destas divergências teóricas dentro do positivismo se fez possível graças, não somente ao trabalho dos autores supracitados, mas ao fato de seus espaços de inserção estarem vinculados mais ao formalismo jurídico que à efetivação real dos direitos dos grupos de exclusão social.

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3. revisionismo de ronald dworkin e a força nor-mativa dos princípios

O ensinamento do direito, na metade do século, era dividido em “teoria analítica do direito” e “teoria do direito ética”. Esta, se dedicava ao que devia ser o direito e aquela, analisava os conceitos, tentando fixar seu significado4. Os conceitos sobre os quais se funda a teoria jurídica (infração, posse, propriedade etc.) são difíceis de precisar e um problema desta teoria, era o fato de que diversos juristas empregavam estes conceitos sem compreender seu significado (DWORKIN, 2002, p. 4-5).

Os juristas são treinados para analisar leis escritas e decisões judiciais de modo que extraem uma doutrina jurídica dessas fontes oficiais. Eles são treinados para analisar situações factuais complexas com o objetivo de resumir, de forma precisa, os fatos essenciais. E são treinados para pensar em termos táticos, para conceber leis e instituições jurídicas que produzirão mudanças sociais específicas, anteriormente decididas. A abordagem pro-fissional da teoria do direito tentou reformular as questões relativas à doutrina legal de tal maneira que uma ou mais dessas qualificações pudesse ser empregada. Essa abordagem produziu apenas a ilusão de progresso e deixou intocadas as questões de princípio, genuinamente importantes, que existem no direito. (DWORKIN, 2002, p. 4)

Neste sentido, o autor critica a incapacidade, ou dificuldade, em precisar o sentido dos termos jurídicos, especialmente “obrigações jurídicas” e “direitos jurídicos”. Frisa-se novamente, a escola tradicional (bem como a contemporânea) do positivismo não prepara para compreender estes conceitos, prepara simplesmente para aplicar. Esta prática prejudica a expansão da teoria crítica

4 Na Inglaterra os manuais fixavam o significado dos conceitos, extraindo os elementos de significação das decisões judiciais e das leis, buscando uma significação jurídica e nunca relacionando esta significação às múltiplas outras propostas pelos juízos leigos (DOWRKIN, 2002, p. 5). Por outro lado, as decisões judiciais e os legisladores, empregam os termos apoiando-se nos significados determinados pela produção doutrinária, criando assim, mais uma justificação tautológica no direito. O maior esforço (e possivelmente maior problema) do positivismo, talvez seja tentar abstrair de sua ciência as interferências e determinantes sociais e humanas, tentando efetivar a impossível tarefa de transformar-se em ciência objetiva e não ideológica.

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dentro do direito, mesmo porque, “Antes que possamos decidir que nossos conceitos de direito e obrigação jurídica são mitos, necessitamos decidir o que são” (DWORKIN, 2002, p. 25).

A investigação do autor se desenvolve e oferece uma proposta de solução utilizando para tanto a matéria-prima que o positivismo oferece. Então DWORKIN (2002, p. 36), argumenta “que o positivismo é um modelo de e para um sistema de regras e que sua noção central de um único teste fundamental para o direito nos força a ignorar os papeis importantes desempenhados pelos padrões que não são regras”. O sistema de regras não é suficiente para solucionar os “casos difíceis”:

Nos termos de sua própria tese, o positivismo não chega a enfrentar estes casos difíceis e enigmáticos que nos levam à procura de teorias do direito. Quando lemos esses casos, o positivista nos remete a uma teoria do poder discricionário que não leva a lugar nenhum e nada nos diz. Sua representação do direito como um sistema de regras tem exercido um domínio tenaz sobre nossa imaginação, talvez graças a sua simplicidade. Se nos livrarmos desse modelo de regras, poderemos ser capazes de construir um modelo mais fiel à complexidade e sofisticação de nossas próprias práticas. (DWORKIN, 2002, p. 71-72)

Para além do modelo de regras, Dworkin propõe os princípios como uma categoria normativa que seria menos rigorosa, porém mais ampla, e destaca a importância dos princípios no direito, mas destaca também que, na metodologia do positivismo, os princípios não podem ser, como o são as regras, submetidos à regra de reconhecimento. Não há como saber quais princípios devem ser levados em consideração nos casos difíceis. E são justamente estes problemas que estão além das propostas formuladas pelo positivismo (DWORKIN, 2002, p. 71).

Bem, se o positivismo, em seus próprios termos, não pode formular uma teoria eficaz acerca dos princípios, tal tarefa fatalmente vai recair sobre o examinador destes casos, ou seja: os juízes. Se não há solução determinada previamente, não é possível determinar previamente o conteúdo da decisão judicial. Com isto, “Os juristas não precisam de provas para mostrar que os juízes divergem e que suas decisões com frequência refletem sua formação e seu temperamento.” (DWORKIN, 2002, p. 10)

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A discrepância entre as decisões judiciais viria então, das divergências dos intérpretes acerca da “natureza e núcleo dos princípios jurídicos fundamentais” (DWORKIN, 2002, p. 10). Então o problema dos princípios foi um problema que o positivismo não conseguiu contornar, nem deixar para trás com nenhum método proposto dentro de seus limites, pois sempre surgia novamente em momentos posteriores. E isto fortalece e campo de discricionariedade judicial.

Sobre a discricionariedade judicial, DWORKIN (2002, p. 54) destaca que al-guns teóricos “argumentam que os juízes sempre possuem poder discricionário, mesmo quando o que está em pauta é uma regra clara, pois juízes são, em última análise, os árbitros definitivos da lei”. Os positivistas, por outro lado, não definem assim o papel dos juízes. Para os positivistas, os juízes não têm poder discricionário quando a regra é clara e somente às vezes formam seu próprio juízo para aplicar padrões jurídicos. Isto ocorre quando o conteúdo da regra é menos rigoroso ou delimitável. Por isto, “algumas vezes, os juízes devem examinar demoradamente pontos específicos do direito e que os juízes igualmente inteligentes e bem treinados frequentemente estarão em desacordo” (DWORKIN, 2002, p. 55).

Neste sentido, a teoria de Dworkin parece ter triunfado, pois cada vez mais se fortalece na doutrina jurídica a posição de que a atividade interpretativa nunca cessa, nem mesmo em normas bastante claras. Veja-se: “a zona de clareza existente na lei enfraquece a atividade do intérprete, mas não o condena a uma acrítica interpretação literal” (BARROSO, 2009, p. 110).

Sem decidir exatamente qual é o papel do juiz dentro do direito (interpretar e aplicar a lei, ou também criar direitos), o positivismo lidou com esta questão de maneira negligente, pois sem saber definir este papel, optou por formular teorias superficiais sobre as duas questões que se relacionam – princípios jurídicos e função judicial – e que não foram enfrentadas pela ciência jurídica, mas continuaram batendo à porta do direito. Desta negligência do positivismo em enfrentar a questão dos princípios, decorre o seguinte problema:

Dois juízes decidirão um caso controverso de tal tipo de maneiras diferentes porque defendem visões diferentes quanto aos direitos morais de fundo dos cidadãos. [...] Cada juiz que decide esta questão de princípio faz o que faz, não porque todas as possibilidades sejam excluídas pelo que já está na legislação, mas porque acredita que o seu princípio está correto, ou pelo menos, mais próximo de

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ser o correto do que os outros princípios também não excluídos. (DWORKIN, 2000, p. 16)

Então, ao não enfrentar este inevitável problema, fica aberto um espaço de imprecisão, onde o juiz acaba muitas vezes “criando” 5 o direito e não “o en-contrando”. Este problema é criticado pelo autor, que entende que isto prejudica a segurança que a democracia deveria oferecer.

Democracia significa (se é que significa alguma coisa) que a escolha de valores políticos substantivos deve ser feita pelos representantes do povo, e não por juízes não eleitos. Assim, a revisão judicial não deve basear-se em opiniões dos juízes [...] uma teoria bem fundamentada da revisão judicial – a única compatível com a democracia – condena todas, e condena qualquer outra decisão que se apóie expressa ou implicitamente na idéia de devido processo legal substantivo6. (DWORKIN, 2000, p. 80)

Estes casos, onde a atuação dos juízes avança para outras esferas, adentrando muitas vezes em competências legislativas ou executivas, se soluciona um proble- ma (o da exclusão social, eventual e isoladamente, ou de outro tipo de conflito situado na zona de imprecisão ou lacuna jurídica), acaba por criar outro: o judiciário ao extrapolar suas atribuições, põe em risco a construção do Estado Democrático de Direito, com sua divisão em poderes que se controlam, fiscalizam e tolhem abusos recíprocos. O ativismo judicial fortalece sobremaneira o judiciário e, não há como saber onde isto vai parar...

Sobre este problema, Dworkin oferece uma construção hermenêutica que investiga o papel dos princípios jurídicos e outros aspectos referentes a eles. Crê que, um modelo que os aceite como normas, institucionalizando-os, tira da margem do sistema positivo esta forma de influência e pode possibilitar o controle

5 O agravamento desta questão é que quando o juiz cria um direito, ele o faz e o aplica retroativamente. Legisla ex post facto, (DWORKIN, 2002, p. 70-71)

6 através do princípio do devido processo legal substantivo, os juízes estão autorizados a perscrutar a razoabilidade do conteúdo dos atos legislativos e executivos cerceadores de Direitos Fundamentais, com esteio na construção judicial destes Direitos. O princípio, então, permite aos juízes que, ao debruçarem-se sobre a questão da constitucionalidade de um ato normativo deste tipo, ultrapassem o mero exame da compatibilidade formal e literal do ato com a Constituição, para averiguar, ainda, a razoabilidade da medida constritora. (MARTEL, 2004, p. 94)

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da mesma. Formula então uma teoria dos princípios, onde dentro da categoria “norma”, inclui as regras e os princípios. Destaca ainda as questões políticas como incidentes sobre o conteúdo das decisões judiciais.

A partir desta teoria, nas três categorias: regras, princípios e políticas, a política seria um padrão que estabelece um objetivo, como a melhoria econômica, social etc. e o princípio, um padrão a ser observado, pois constitui uma exigência de justiça ou equidade ou moralidade7. Finalmente a regra: estas “são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão.” (DWORKIN, 2002, p. 39).

A diferença entre as categorias regra e princípio é que quando duas regras entram em conflito, uma é inválida8. No caso de princípios, quando entram em conflito, cada um cede um pouco, de acordo com a decisão mais adequada ao caso, levando-se em conta “a força relativa de cada um”:

Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou da importância. Quando os princípios se intercruzam [...] aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata, e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais importante que outra freqüentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa dimensão é uma parte integrante do conceito de um princípio, de modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é (DWORKIN, 2002. p.42-43).

O princípio pode então sobreviver intacto aos conflitos que venha a enfrentar, o que não é o caso da regra, pois as regras ditam um resultado e quando desta regra surge um resultado contrário, a regra é modificada ou abandonada. O princípio por sua vez, inclina para um resultado e quando não aplicados, nem assim deixa de ter

7 “os princípios constitucionais, explícitos e implícitos, desempenham um papel fundamental como reflexos normativos dos valores constitucionais” (CADEMARTORI, 2001, p. 80.)

8 No caso do Brasil, eis os critérios para decidir sobre normas conflitantes, conforme lição de Barroso (fundamentos teóricos e filosóficos...) “Para solucionar essas hipóteses de conflito de leis, o ordenamento jurídico se serve de três critérios tradicionais: o da hierarquia – pelo qual a lei superior prevalece sobre a inferior –, o cronológico – onde a lei posterior prevalece sobre a anterior – e o da especialização – em que a lei específica prevalece sobre a lei geral.” p. 22.

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seu valor. Claro que eventualmente, de acordo com o entendimento do intérprete, os princípios podem ditar um resultado. (DWORKIN, 2002, p. 57). Além disto, os princípios assumem força hierárquica superior à das regras9 a partir da construção de Dworkin. Então, em nome de um princípio, ou para favorecer algum princí- pio, uma regra pode ser mudada (DWORKIN, 2002, p. 59-60). Entretanto,

não é qualquer principio que pode ser invocado para justificar a mudança; caso contrário, nenhuma regra estaria a salvo. É preciso que existam alguns princípios com importância e outros sem importância e é preciso que existam alguns princípios mais importantes que os outros. Este critério não pode depender das preferências pessoais do juiz [...] um juiz que se propõe a modificar uma doutrina existente deve levar em conta alguns padrões importantes que se opõe ao abandono da doutrina estabelecida; esse padrões são na sua maior parte princípios. Esses padrões incluem a doutrina da “supremacia do Poder Legislativo”, um conjunto de princípios que exige que os tribunais mostrem uma deferência limitada pelos atos do Poder Legislativo (DWORKIN, 2002, p. 60)

Com esta construção teórica, o autor pretende fixar alguns critérios para que a força normativa dos princípios seja acolhida no método positivista de aplicação das normas. Minimiza, ao propor estes critérios, o impacto de sua revisão à teoria. Ao mesmo tempo, esta reforma vem ao socorro de um sistema que já agonizava. Foi a tábua de salvação do positivismo, ao menos temporariamente. A evolução deste sistema, que aponta de maneira cada vez mais contundente sua crise, ainda é um tema imprevisível, pois está condicionado tanto ao êxito das correntes conservadoras, quando às correntes de insurgência e à inclinação teórica que venha a produzir maior influência no campo normativo.

Do reconhecimento dos princípios dentre as normas jurídicas, o positivismo pôde absorver em sua circunscrição algumas das diversas demandas sociais10.

9 “violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais” (MELLO apud BARROSO, 2009. p. 157)

10 Segundo BARROSO (2001), autor com importante contribuição à hermenêutica pátria e partidário do garantismo jurídico, as possibilidades interpretativas vêm da: a)

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Então, sob a perspectiva de que o Estado Democrático de Direito poderia atender aos diferentes anseios sociais, e os movimentos passaram a pleitear seus direitos não mais fora do sistema, mas sim, dentro e nos limites que o sistema oferece.

Então quando a Constituição brasileira – por exemplo – diz que a saúde é um direito de todas as pessoas, as pessoas, sabendo que têm este direito, melhor se con-formam em esperar nas intermináveis filas SUS. Muitas destas pessoas morrem, aguardando na fila do sistema que não é eficaz de fato. Se fosse eficaz, não se discutiria tanto atualmente a questão da judicialização da saúde. Inclusive, desta judicialização da saúde, demandas idênticas ou similares resultam em toda sorte de decisão, dependendo do juiz, do advogado, do Promotor... e estas situações são sintoma, para ficar neste exemplo, de que o positivismo modernizou-se, mas não conseguiu livrar a si mesmo do fantasma da insegurança jurídica.

Retomando a linha de raciocínio proposta, pretende-se destacar que, com a reforma acima ilustrada através da doutrina de Dworkin, o positivismo passou a tutelar (melhor seria dizer: controlar) outras demandas sociais, aproximando-se mais da efetivação da completude, até incluindo de maneira mais humana os direitos sonegados11, mas ampliando o campo de subjetivismo do direito, evidenciando cada vez mais que o direito não é igual para todos. E quando se diz que não é igual, não se refere aqui ao princípio da equidade que prevê aquilo que Dworkin chama de “discriminação compensatória” (DWORKIN, 2002, p. 343-369), ou seja, as medidas que o Estado adota para equacionar as forças desiguais, elevando as forças do vulnerável, mas ao fato de que vulneráveis podem ou não ter suas condições equacionadas, de acordo com a motivação política do julgador de sua lide.

Diante desta nova lógica de funcionamento do sistema oficial de Direito, criou-se no campo estatal um espaço de emancipação. A questão da emancipação pode ser tomada nos seguintes termos: “Enquanto a emancipação permite amenizar a violência estrutural sem transcender o sistema da totalidade, a liber-tação propicia ir além, fundando-se um momento ético crítico para uma nova

discricionariedade atribuída pela norma ao interprete; b) pluralidade de significados da palavra; ou c) da existência de normas contrapostas.

11 Incluindo, mas de maneira relativa, em decisões específicas. Cada uma delas celebrada como um “oásis no deserto”.

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factibilidade, com novas instituições e normatividades” (PAZELLO e MOTTA, 2008, sem grifo no original).

Reconhecendo o mérito destes esforços e a importância de incentivar a utilização criativa12 do direito dentro do positivismo, não se pode perder de vista, que o uso alternativo do direito não resolve o problema da exclusão social.

4. conclusões

Esta rápida passagem por uma parte da história do positivismo e por uma parte da história de sua superação, permite compreender um pouco melhor a atual conjuntura do Direito no Brasil.

Atualmente causa perplexidade a crescente sensação de insegurança jurídica no campo judiciário. Muitos falam em “loteria judicial” e a doutrina jurídica pátria tem se esforçado para contornar este tipo de desconforto.

As súmulas vinculantes, inseridas no texto constitucional através da Emenda Constitucional nº 45, do ano de 2004, são um exemplo destes esforços. Trata-se de tentar resgatar o postulado da segurança jurídica afirmado por Kelsen como modelo possível para um sistema nascido da realidade humana e operado por homens. Ocorre que nem mesmo a vinculação da decisão de juízes a um órgão superior (o Supremo Tribunal de Justiça) é instrumento hábil para a recuperação desta segurança e por uma simples razão: a segurança jurídica não existe.

O mérito do Ronald Dworkin reside na percepção da falibilidade deste sistema e em propor um modelo alternativo ao rigoroso sistema de regras. Este modelo alternativo por sua vez, somente evidenciou a crise e as divergências que permaneciam ocultas pelos postulados da imparcialidade e neutralidade.

Tal como o sistema se mostra atualmente, todas as classes se mostram in-satisfeitas: as elites mostram-se insatisfeitas porque (algumas vezes) os interesses populares (interesses antagônicos) acabam por lograr êxito nas disputas judiciais. Notadamente isto ocorre na Justiça do Trabalho, que é duramente criticada pela classe patronal.

12 Afinal, “é da criatividade dos advogados, de sua luta constante, que, muitas vezes (apesar das derrotas iniciais), o direito se concretiza mais democraticamente” (CARVALHO, 1998, p. 11)

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Por outro lado, as classes populares reclamam por não obterem, no sistema oficial de Direito, atendimento às suas demandas. As soluções oferecidas pelo Estado, ou não atendem adequadamente aos anseios populares, ou simplesmente os negam.

Apesar destes estreitos limites, notadamente a subsunção das lutas populares a um sistema que pode conformá-las sem de fato atendê-las, instaurou-se dentro do sistema oficial, um espaço de resistência. Uma possibilidade de emancipação. Uma forma de amenizar o sofrimento humano, de distribuir justiça.

Este espaço, defende-se, deve ser explorado na defesa de todos os direitos populares, historicamente negligenciados. Seja no âmbito judicial, administrativo ou político. A crise do juspositivismo, se não serviu para destituí-lo do status de sistema oficial de direitos, que ao menos sirva para inserir na pauta deste sistema, a voz do povo.

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os desafios políticos e jurídicos da salubridade pública em tempos de seca no

ceará (1870-1890)

Daniel Camurça Correia1

Resumo

Busca-se com este artigo analisar os mecanismos de poder institucionaliza-dos pela Presidência da Província do Ceará, assim como pela Câmara Municipal da Cidade de Fortaleza, durante a seca de 1877, com a intenção de minimizar a fome e as doenças. Por meio da utilização de registros cartoriais de época, problematizam-se discursos normativos, os quais intentam garantir a manuten-ção da salubridade pública na capital cearense. Porém, ao indagar os artigos de jornais e livros de crônicas e memórias da Fortaleza antiga percebe-se que muito destes discursos disciplinadores não chegavam de fato a serem implementados, gerando grande calamidade entre a população. Milhares de pessoas, do campo e da cidade, morreram de varíola e o governo local, bem como a Corte imperial, pouco conseguiram fazer para diminuir esta mazela. O problema central desta pesquisa gira em torno das atribuições políticas e jurídicas feitas na época, para saber em que medida o poder público deve pesar a necessidade de um trabalho contínuo junto à limpeza urbana, evitando o sanitarismo social.

Palavras-chave

Século XIX; Seca; Salubridade Pública; Leis.

Abstract

Search with this article analyze the mechanisms of power institutionalized by the Presidency of the Province of Ceará, as well by the City Council of the City of Fortaleza, during the drought of 1877, with the intention of minimize hunger

1 Graduado em História (UFC). Mestre em História (PUC/SP). Doutor em História Social (PUC/SP). Líder do Grupo de Pesquisa em Filosofia do Direito – CNPq (UNIFOR/CE). Professor das disciplinas de Filosofia do Direito e Hermenêutica Jurídica (UNIFOR/CE).

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and diseases. By the use of cartorial records of the period, are problematized normative discourses, that purposed to ensure the maintenance of public salubrity in Fortaleza. However, when inquired the newspapers articles and the books about chronicles and memories of ancient Fortaleza is perceived that many of these disciplinary speeches weren’t in fact implemented, causing a great calamity among the population. Thousands of people, from the countryside and the city, died of smallpox and the local government, as well as the Imperial Court, were able to do just so little to reduce this disease. The main question of this research revolves around the political and legal assignments made at that period, to know in what measure the public power should weigh about the need of a continued work with the urban sanitation, avoiding the social sanitarism.

Key words

Nineteenth century; Drought; Public salubrity; Laws.

1. introdução

Hoje, assim como no passado, a salubridade pública é preocupação constan-te. A história da civilização perpassa pela ordem jurídica, política, econômica e social, mas, a preocupação com os dejetos tem afetado os agrupamentos humanos dos tempos mais antigos até o século XXI, o que significa dizer que a história da civilização também perpassa pela questão da higiene (CORBIN, 1987, 41).

Na alvorada das liberdades individuais, em meio à construção da nação nos diferentes Estados civilizados o século XIX surge como um tempo de reflexão da ordem política e normativa. Era preciso educar a população urbana frente ao novo desafio. Os habitantes deveriam aprender a conviver e trabalhar juntos em nome do bem comum: a nação. Os saberes jurídicos tiveram papel importante na medida em que propuseram novas posturas diante das necessidades sociais vigentes.

Mas do que organizar vida, trabalho, economia e educação formal foi necessá-rio organizar o corpo, tanto vivo quanto morto. Afinal de contas, a multidão também propiciava um universo de doenças. Era papel do poder público exigir dos habitantes da cidade, assim como do próprio governo, medidas que auxilias-

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sem no cuidado com o espaço público. Isto não foi diferente no Brasil, muito menos na província cearense.

Fortaleza era sede política e jurídica da província do Ceará, mas a partir da segunda metade do século XIX também apresentava sólida estrutura cultural e econômica, o que significa dizer que aumentou seu número de habitantes, e, consequentemente, de problemas urbanos (PONTES, 1993, 28).

Para este artigo busca-se analisar o universo da seca, tão recorrente no atual nordeste brasileiro, assim como as consequências naturais, políticas e jurídicas decorrentes desta variação climática. O objetivo do texto é rastrear e discutir as pretensas medidas adotadas pela elite política, jurídica e intelectual da capital cearense para tentar minimizar os efeitos da seca e, da mesma forma, relacioná-las com a implementação destas exigências normativas, que nem sempre se tornavam prática recorrente.

A tônica da discussão gira em torno das condições e interesses dos órgãos competentes em avaliar, definir e aplicar as normas necessárias no cuidado para com a população local. Para tal, o problema desta pesquisa gira em torno dos seguintes aspectos: Se o poder público tinha regulamentado a vida na cidade para manutenção da salubridade pública, por que as normas não se tornaram práticas recorrentes? Se a Presidência da Província não recebia verbas da Corte imperial para os socorros públicos o que poderia fazer para minimizar os danos gerados pela seca? Se a seca fazia parte do calendário climático da região, por que as elites locais não se organizaram antecipadamente? Se a varíola se tornava uma epidemia em tempos de seca, não era vital, então, a construção de um instituto vacinogênico?

Para reflexão dos questionamentos apresentados foi elaborada uma metodo-logia de pesquisa que evidenciasse os problemas inerentes à seca, durante o governo do Presidente da Província do Ceará na segunda metade do século XIX. Em primeiro lugar, foi realizado arrolamento de dados de fontes primárias: Atas da Câmara Municipal da Cidade de Fortaleza; Ata de Correspondência da Câma-ra Municipal da Cidade de Fortaleza; Ata de Correspondência da Presidência da Província do Ceará. Em segundo, arrolamento de fontes secundárias: Artigos publicados pelo Jornal Cearense; Mensagem apresentada à Assembleia Legislativa da Ceará. Em terceiro, Foram analisados livros de memória e crônica, tais como

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Fortaleza descalça, de Otacílio de Azevedo; Memórias de Gustavo Barroso, de Gustavo Barroso; Fortaleza velha, de João Nogueira; além de A Fome e Varíola de Vacinação do Ceará, ambos de Rodolpho Theophilo. Por fim, em quarto lugar, foi feito levantamento e discussão bibliográfico.

2. a salubridade pública e a imprensa

Em 14 de fevereiro de 1871 o jornal Cearense editou o artigo intitulado A limpeza da cidade, o qual chamava a atenção do Presidente da Câmara Municipal da Cidade de Fortaleza, Tenente-Coronel Francisco Coelho da Fonseca, pelo fato de encontrar várias ruas sujas2. Os republicanos invocaram o Presidente da Câ-mara no intuito de reafirmar suas obrigações para com a sociedade fortalezense.

As ruas acusadas de não serem limpas por duas semanas eram: da Horta (atual Rua Senado Alencar), Amélia (Rua Senador Pompeu) e da Mizericordia (Rua João Moreira), que se encontravam dentro da circunscrição urbana. Ou seja, que tinham grande concentração de pessoas, com intenso trânsito de carroças e cavalos. O caso da Rua da Mizericordia era o mais problemático pelo fato dela cortar a Rua Formosa (Rua Liberato Barroso), entre a Santa Casa de Misericórdia e o Passeio Público, local de grande entrada e saída de pessoas, por causa do antigo porto da cidade.

Nas últimas décadas do século XIX se acirravam as discussões entre republicanos e monarquistas. O jornal Cearense foi um instrumento de forte crítica contra a monarquia imperial brasileira. Questionar a assepsia das ruas significava questionar a situação. O poder público, na figura do Presidente da Câmara, apesar das normas vigentes, encontrava bastante dificuldade em transformar a lei em prática. Existia um número considerável de ruas, porém, pouca mão de obra. A população, em primeiro lugar, não se via obrigada a manter as ruas limpas – principalmente pelo fato de não existir na capital cearense sistema de esgoto. Em segundo, a sujeira não desaparecia com a limpeza. Era comum as ruas amanhecerem sujas novamente.

Mas, o que chama atenção na documentação é que “quando acontece por ali passar a carroça da limpeza esse serviço é feito por dous meninos e tão mal

2 (Biblioteca Pública Menezes Pimentel – setor de microfilmagem) A limpeza da cidade, Cearense, n° 21, Domingo, 19 de fevereiro de 1871, p – 3.

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feito q’no dia immediato parece não terem sido limpas”, de acordo com o artigo. Isso significa dizer que o maior problema referente à limpeza pública era sua gestão. A limpeza era mal organizada. O poder local contratava crianças para realizarem este trabalho, assim, poderiam pagar salários menores, por outro lado, as consequências eram severas, pois o trabalho não poderia ser realizado a contento, gerando, por fim, uma multiplicação da sujeira.

Quando a Câmara Municipal contratava adultos para o trabalho, estes, por sua vez, eram realizados pelos filhos. Adultos e crianças dividiam os serviços. A população acreditava que esta decisão era mais rentável, pois realizariam o trabalho mais rápido, podendo assumir outros serviços rapidamente.

Muitas vezes a embriaguez do pai o proibia de trabalhar, deixando a responsabilidade para os filhos. O que significa dizer que não era raro o pai explorar seus próprios filhos na lida diária. O interessante é que a notícia enfati-zava o fato de que as crianças eram incompetentes para realizarem o trabalho. Na época, de modo geral, não era questionada a exploração que as crianças sofriam diariamente, mas o fato do governo local permitir que crianças executassem um trabalho mal elaborado.

À medida que se avança na leitura sobre o referido artigo surge a oportuni- dade de averiguar as formas pelas quais era organizada e sistematizada a limpeza pública dentro da capital cearense. O artigo liberal continua suas críticas afirmando que o poder público tinha um contrato junto aos trabalhadores. Em troca dos salários os limpadores deveriam manter as coxias limpas de areias, mas, além de terem muita terra, ainda estavam cheias de capim. As coxias eram os espaços que separavam as calçadas das ruas, o vão que deveria permitir o livre acesso das águas e da sujeira para a praia. A água não escoava facilmente por causa da geografia da capital3, mas por causa da grande quantidade de sujeira acumulada.

Existia – ou pelo menos deveria existir – um contrato entre a Câmara Municipal e os contratados que ali trabalhavam. Este contrato determinava deveres e obrigações que ambas as partes deveriam cumprir4. O redator do Cearense afirma

3 A cidade de Fortaleza encontra-se no nível do mar.4 Infelizmente não foi possível encontrar os termos dos contratos entre trabalhadores e a

Câmara Municipal da Cidade da Fortaleza.

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que os contractantes5 não estavam cumprindo suas obrigações, pois declara que “ao lado da Sé e da Santa Caza o monturo [de lixo] é tanto que por ali não se pode passar por causa do mau cheiro que exala e mesmo assim o contractante ali deposita todo o lixo das ruas”6. Ou seja, a situação era pior, ao invés dos garotos limparem, eles, na verdade, jogavam ainda mais lixo.

Na segunda metade do século XIX, na maioria das capitais do império brasi-leiro não existia um local apropriado para deitar o lixo da cidade. Aproveitando a ausência dos poderes públicos os limpadores de ruas lançavam o lixo em qualquer lugar. Era sabido por estes trabalhadores que o poder instituído não fiscalizava o trabalho realizado na cidade, abrindo precedente para que toda e qualquer irregularidade ganhasse vida. Se o lixo se acumulava entre os prédios da Igreja da Sé e a Santa Casa de Misericórdia, significa dizer que o lixo estava no centro, entre as principais ruas, não muito distante da sede do poder administrativo, facilmen-te visível aos olhos e aos narizes dos transeuntes.

Como foi dito anteriormente, estes locais eram de grande trânsito de pessoas, seria muito difícil cruzar a cidade sem passar pela Santa Casa. Aos domingos, dirigir-se a Sé era praticamente uma obrigação para a maioria dos moradores e visitantes europeus, em sua maioria católica. Para os redatores do Cearense era impossível frequentar estes locais pelo mau cheiro e o perigo de contaminação por alguma enfermidade através dos miasmas7 que poderiam vir dos corpos ali enterrados.

Se o trabalho da limpeza estava sendo mal organizado era de responsabilidade dos fiscais da Intendência averiguar o motivo. Entretanto, mais uma vez percebe-se algo interessante na fala do redator: “O fiscal encarregado desse serviço não tem tempo para isso, por que mal pode com suas [obrigações], ocaziões esta que merece compaixão”8.

5 O artigo identifica como contractante os trabalhadores, no caso, as crianças.6 (BPMP – setor de microfilmagem) A limpeza da cidade, Cearense, n° 21, Domingo, 19 de

fevereiro de 1871, p – 3.7 Segundo a ciência da época, acreditava-se que as doenças eram fruto do mau cheiro. Foi nesse

período que se se associou a noção de doença com sujeira, antes inexistente.8 (BPMP – setor de microfilmagem) A limpeza da cidade, Cearense, n° 21, Domingo, 19 de

fevereiro de 1871, p – 3.

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O redator estava justificando o fato do fiscal não poder manter o controle sobre os trabalhadores da Câmara. Na verdade, para o escritor, o trabalho do fiscal deveria ser motivo de “compaixão”. O discurso protecionista se deu na medida em que o redator não direcionava suas críticas aos trabalhadores, mas necessariamente para o poder local instituído. Para a elite política e intelectual da época problemas que envolvessem os populares era caso de polícia, então, não existiam motivos para envolver os fiscais no debate público.

No artigo É com a Camara municipal, publicado em 28 de abril de 1872, o redator do jornal Cearense, explica que em outros tempos existiam na cidade os arrematantes, responsáveis pela limpeza das ruas na primeira metade do século XIX, mas que no início dos anos de 1872 parecia não ser mais importante para a cidade. Pois, a “Camara porém já entendeu que este tal emprego era couza inutil, por quanto as ruas se acham no mais immundo estado e as coxias tão entupidas de lixo que não dão mais escoamento as aguas”9.

Ao comparar os dois artigos citados fica claro que a cidade vivia no mais com-pleto abandono. Mais de um ano se passou e nada foi feito em prol da limpeza pública10. Para o redator, os encarregados da limpeza eram coisas do passado, quando os representantes do poder demonstravam interesse na assepsia da cidade.

Ainda neste documento é possível compreender que para os impressos cearen-ses era impossível frequentar os espaços de lazer. “O que porém salta mais aos olhos é a rampa do passeio publico que deita para o mar, não se pode supportar o passeio ali aos domingos, por que é essa rampa o lugar de despejo e immundicies que exhalam o mais nauseabundo cheiro”11.

A rampa da Santa Casa, rumo ao porto, era motivo de crítica por parte dos cidadãos fortalezenses. Era com dificuldades que frequentavam os espaços públicos (como o Passeio Público) pelo fato de emanar miasma o tempo todo e por toda a cidade. Pior ainda é o fato de que este local fétido se encontrava

9 (BPMP – setor de microfilmagem) Noticiário, É com a Camara Municipal Cearense, n° 34, Domingo, 28 de abril de 1872, p – 02.

10 (BPMP – setor de microfilmagem) Noticiário, É com a Camara Municipal Cearense, n° 34, Domingo, 28 de abril de 1872, p – 02.

11 (BPMP – setor de microfilmagem) Noticiário, É com a Camara Municipal Cearense, n° 34, Domingo, 28 de abril de 1872, p – 02.

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próximo a uma Santa Casa de Misericórdia, local que deveria simbolizar a saúde e a limpeza.

Porém, é interessante perceber que o problema não era apenas a não limpeza do local, mas a transformação de um lugar de passagem em um depósito de lixo. Conversão esta que não era autorizada pela Câmara Municipal. Pior. Era exatamente nesta rampa que as pessoas chegavam à capital cearense de navio. Ou seja, ao chegar à cidade, a primeira coisa que o visitante se deparava era com o lixo espalhado pela subida da rampa, infestando o ar com sua fedentina.

A preocupação com os miasmas, neste período, era uma constante. Diziam os redatores do Cearense que “se essas exalações são prejudiciaes a saude publica desta capital, muito mais particularmente o são para os miseraveis doentes da Santa Caza, que delles recebem as primeiras camadas [de mau cheiro]”12.

Ou seja, viver, morar e chegar a Fortaleza era um desafio. A Câmara, assim como a Intendência, não cumpria seus papeis no cuidado diário da salubridade pública. Ficava muito a cargo da população o cuidado para com ruas e praças. Isso significa dizer que o poder público não era presente. Não se fazia presente. A população, no cuidado do corpo, para o bem da saúde privada não poderia contar com seus governantes. O discurso sanitário era cada vez mais difundido, mas não gerava resultados concretos para a população.

Para entender a forma como a população se relacionava com os mecanismos de poder instituídos para limpeza e desinfecção observa-se o caso a seguir: Joana Maria do Espirito Santo anunciava no Cearense que prestava serviço de ama de leite. Vivia em sua casa, atrás da Cadeia Pública13. Morar nas proximidades da cadeia não era uma decisão aleatória: em primeiro lugar, significava dizer que ela estava no centro da cidade, na região mais movimentada, podendo assim traba-lhar em qualquer casa das famílias tradicionais. Em segundo, as amas de leite, para trabalharem, precisavam de uma autorização médica e policial, atestando sua saúde física para o cumprimento da boa amamentação, garantindo que essas

12 (BPMP – setor de microfilmagem) Noticiário, É com a Camara Municipal Cearense, n° 34, Domingo, 28 de abril de 1872, p – 02.

13 (BPMP – setor de microfilmagem) Annuncios, Ama de leite, Cearense, n° 85, Sexta-feira, 27 de setembro de 1872, p – 04.

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mulheres, geralmente negras, escravas e/ou ex-escravas não transmitissem doenças para o espaço reservado do lar (LARA, 1998, 28).

Assim, de acordo com a norma vigente, mulheres como Joana precisavam se dirigir até a delegacia, as quais eram avaliadas por homens, nem sempre médicos, geralmente policiais, para conseguirem seus atestados14. O poder público, nos idos de 1870 não contribuía ou facilitava este procedimento, ele simplesmente exigia.

Desta maneira, por meio da análise da imprensa, é possível adentrar no universo municipal da limpeza, ou da sujeira, da cidade de Fortaleza no início dos anos de 1870, para compreender como o poder público era questionado por políticos e intelectuais, a respeito de seus papeis diante da manutenção das ruas. A ausência dos órgãos municipais e provinciais era tão latente que até a mesmo a literatura da época registrou o descaso e abandono diário da cidade e do interior.

3. a salubridade pública e a seca

Em A fome, romance escrito em 1890, relativo a seca de 1877, Rodolpho Theophilo conta a história de uma família que tenta fugir do interior do Ceará se dirigindo à sede do poder provincial. A todo o momento os personagens tem sua fé, decência e honestidade testadas. Segundo Frederico de Castro Neves, “o romance A Fome reforça esta visão dos pobres como criaturas à beira de um ataque de perversão possuidoras de valores morais e éticos bastante frágeis e sem- pre propensas às formas pouco confessáveis de ganhar a vida” (NEVES, 2000, 36).

Theophilo narra a busca dos retirantes que não mais queriam apoio paternal dos governantes e senhores de terras do interior, representação física da força política e ideológica provincial. A partir das últimas décadas do século XIX as estruturas sociais e políticas foram redefinidas, e a seca permitiu a visibilidade desta tensão (TEÓFILO, 1979, 23). A obra é interessante na medida em que apresenta um rompimento bastante instigante. Até meados do século XIX a população camponesa do interior do norte (atual nordeste) contava apenas com o apoio dos donos de terras (coronéis) do sertão.

14 (Biblioteca Pública Dolor Barreiro) Codigo de Posturas da Camara Municipal da Cidade de Fortaleza: Tipografia Minerva, 1916.

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É a partir, principalmente da seca de 1877, que a população comum toma uma decisão inédita: a busca pelos socorros públicos. Ou seja, a partir do final da década de 1870 os representantes do poder imperial terão a obrigação em assistir a população pobre vitimada pela seca. Até então o poder público nunca tinha tomado a seca como um problema político. Até a seca de 1877-79 os políticos, magistrados e doutores não se deparavam com a seca, pois a população sentia as agruras, mas não se retiravam do sertão. Foi com a estruturação mais bem definida da política, das leis, da presença do Estado imperial que a população passou a não mais esperar ajuda das elites do campo, mas do próprio Imperador, na capital da província. Surge assim, a figura do migrante (retirante), que se tornará preocupação dos cofres públicos até o século XXI.

Na obra de Theophilo, a família de Manuel de Freitas chegou a Fortaleza depois de longa caminhada a pé. Porém, se limitaram a permanecer nos arrabaldes da cidade – até mesmo porque foram ali que conseguiram abrigo e comida. Ao se dirigir até a circunscrição urbana, Manuel de Freitas passou por um monte de areia, branca como neve, pobremente recoberta por uma vegetação rala, para adentrar na Rua Senador Pompeu. Pelos olhos do personagem, Theophilo descreve a capital cearense: ruas regulares, com trajetória bem definida, tal como um tabuleiro de xadrez, revelando toda a monotonia do saber racional e técnico (TEÓFILO, 1979, 98).

O autor leva Manuel de Freitas para dentro do espaço urbano, e na medida em que este se admira com o que vê, o autor desmistifica e até ridiculariza o que mostra ao personagem. Ao admirar a regularidade das casas, Rodolpho Theophilo critica a forma pela qual as portas e janelas foram construídas – a altura das janelas impedia o bom uso das calçadas. Os representantes do poder, fruto do pensamento positivo da época, desejavam uma cidade sistematicamente simétrica. Assim, ruas, fachadas, calçada e janelas eram muito regradas, mas inviáveis aos usuários.

Quando não havia pequenos acidentes nas calçadas, era o trânsito do pedestre que ficava comprometido, pois ou era obrigado a descer até a rua ou passar sob a janela aberta, causando, segundo o autor, constrangimento. Neste momento o escritor demonstra que por mais que os preceitos da norma condissessem com a moral e os bons costumes, ou mesmo com a saúde dos moradores, estes, no nível prático, não funcionavam. A imposição de medidas para a edificação urbana

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atrapalhava a utilização dos próprios equipamentos da cidade, demonstrando as falhas do discurso e da execução destes.

Em meio à beleza da cidade, contudo, Manuel de Freitas se deparou com uma Fortaleza cheia de mazelas, pobre e devastada pela seca. Contraste inevitável. É perceptível a necessidade do autor em descrever o quanto a pequena Fortaleza poderia crescer, principalmente se não tivesse acontecido tamanha calamidade. O personagem voltou ao abrigo, falando horrorizado para a mulher o que presenciou no que para eles seria a salvação: “vi mortos no meio da rua, um velho e uma mulher, expostos no calçamento como cães ou gatos, apodrecendo no monturo. (...) A peste a fome matam mais de quatrocentos por dia!” (TEÓFILO, 1979, 99).

Manuel de Freitas e sua esposa, Josefa, aterrorizaram-se com as imagens que Theophilo colocou diante de seus olhos. Acreditavam estarem salvos se conseguissem chegar até a capital. Porém, não imaginavam que iriam se deparar, entre outras coisas, com o despreparo do governo e as péssimas condições de vida e de morte dos retirantes.

A imagem fortemente construída no Brasil imperial era que as capitais simulavam verdadeiras sedes do governo, representantes do Imperador. A Nação brasileira, em construção, era vendida com foros de civilidade. O que de fato, não ocorria (CARVALHO, 1981, 39-40).

Muito do que foi colocado aos olhos de Manuel de Freitas, em outros textos, Theophilo afirma ter acontecido de fato. O personagem conta para Josefa que no tempo que parou em uma calçada contou vinte cadáveres indo rumo ao cemitério, e que “os que têm rede, vão nela, suja, rota, como se acha; os que não a têm, são amarrados de pés e mãos em um comprido pau e assim são levados para a sepultura” (TEÓFILO, 1979, 100). Exatamente da mesma forma que o cronista descreve em seu livro, Varíola e Vacinação, enquanto testemunha ocular dos acontecimentos.

Neste momento, para Theophilo, realidade e ficção se confundem. São através das palavras de Manuel de Freitas, que, em muitos momentos, Theophilo busca demonstrar a situação da província no período de seca, as mazelas da alma humana, as consequências da fome. Este texto tem a função de retratar “através das degradações espectrais da desnutrição e da penúria, com seu caudal

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de verdades sociais e econômicas aviltantes, chegando às raias do inacreditável” (TEÓFILO, 1979, XVIII).

Para piorar, em agosto daquele ano chegou, por Aracati, a varíola. Mortos caíam ao chão em centenas, segundo o autor. Sem outra saída, muitos, como Manuel de Freitas, para não ter de assistir sua família morrer de fome, tiveram de ir para o Mucuripe carregar pedras para a estrada de Messejana. Theophilo mostra, com este trecho de sua obra, os frágeis socorros públicos engendrados pelo poder local. A Intendência não tinha meios para garantir cuidado, alimentação, abrigo, saúde e trabalho, consequentemente, para ocupar a popula-ção e evitar que a mesma permanecesse no centro da cidade, ofereceu trabalho por baixa remuneração, na periferia. Com a seca de 1877-9, as formas de gerenciar e organizar a salubridade pública recebeu outros contornos, exigindo a utilização de trabalho braçal dos próprios migrantes, contribuindo para a construção da complexa organização social.

Uma das consequências em tentar organizar a vida e a morte dos populares em meio à seca acabou por gerar novos campos de tensão. Cada vez mais o conflito entre os guardas e os populares ficava mais nítido. Principalmente com o “desfile” organizado pelos carregadores de cadáveres, causando medo entre os moradores. Era papel dos policiais evitar que os corpos fossem carregados pelo centro da cidade, para que os moradores não tivessem que ver a morte, e por isso, ficarem assustados e temerosos. Por outro lado, o número de cadáveres era muito alto. Se os enterradores tivessem que carregar os corpos por fora da cidade, levariam o triplo do tempo para executar a tarefa, aumentando a possibilidade de transmissão da doença.

4. a salubridade pública e a doença

No primeiro parágrafo de seu livro, Varíola e vacinação, um registro de memó-ria da época, Rodolpho Theophilo, de imediato apontou a necessidade de existir na província do Ceará um laboratório para pesquisa e inoculação. O autor era muito crítico a situação existente. A sede da província não possuía um instituto vacinogênico, impossibilitando os médicos de estudar, conhecer e vacinar os doentes. O memorialista questionava a postura do governo diante das epidemias que assolaram a população durante o século XIX. É com este ponto de partida

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que o farmacêutico começou a descrever a história das secas e das epidemias dentro da capital cearense, bem como o seu difícil percurso da vacinação entre os moradores dali15 (THEOPHILO, 1997, 5).

Afirma Theophilo que “na historia de taes epidemias encontram-se grandes devastações mas nenhuma egual a do Ceará em 1878” (THEOPHILO, 1997, 5). Causou espanto a este cronista assistir a vinda de mais de 110 mil retirantes para Fortaleza – na época à cidade possuía 20 mil –, os quais chegavam e se acomodavam em qualquer lugar, dificultando a limpeza e organização da mesma. Ocasionando, posteriormente, a disseminação da epidemia de varíola. Se para controle da população urbana fortalezense o governo era despreparado, imagina-se com a entrada de pessoas que multiplicou muitas vezes o número da população local?

A multidão, afirma, “vivia na mais completa infracção dos mais rudimentares preceitos de hygiene” (THEOPHILO, 1997, 7). Além do mais, não existia na cidade a “immunidade” adequada para combater a varíola. Deste modo, o espaço físico estaria propício para a epidemia. Acusa o autor que o governante da província pouco se empenhou em promover a imunidade dos fortalezenses deixando estes à sorte da divina providência.

Era setembro de 1878, e, segundo Theophilo, não choveu na região. Pelo contrário, a ameaça de uma epidemia era eminente, pois o governo preocu- pava-se exclusivamente em matar a fome dos retirantes. Para o farmacêutico a epidemia era uma questão de tempo. Na província do Rio Grande do Norte a varíola já havia se estabelecido. O cronista entendia isto como um sinal a ser observado, pois, era “província limitrophe, em communicação constante com o Ceará pela corrente da emigração. E nem por isso cuidou-se da vaccinação dos retirantes!” (THEOPHILO, 1997, 9). Ou seja, o poder público, ciente da epidemia na província vizinha, deveria ter tomado providências para que a mesma não chegasse ao Ceará. Porém, isto não ocorreu.

Em questão de dias a varíola chegou ao interior do Ceará, pela cidade de Aracaty, preocupando os sanitaristas. No dia 12 de agosto de 1878 a embarcação

15 Em meio à seca de 1877, no período de maior incidência de mortes por varíola na capital cearense, Rodolpho Teophilo, sozinho e sem o apoio das autoridades da época inoculou centenas de moradores da periferia da cidade.

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“Purus”, trouxe para dentro da cidade de Fortaleza dois variolosos, os quais foram dirigidos para o Lazareto da Lagôa-Funda. A varíola chegou à capital. Todavia, não demorou muito tempo e os dois homens morreram. A doença não se espalhou.

Por outro lado, os migrantes do interior não cessavam de chegar à sede da província. Ainda preocupados, o governo pediu a Corte que enviasse a lympha vaccinica, para vacinar nos abarracamentos, a qual sempre chegava, mas nunca servia “por antiga ou má”. Vale ressaltar que a Corte imperial tentava cumprir seu papel, mas as adversidades eram muitas. As “lymphas” eram transportadas em lombos de burros, demorando meses para atravessar o país; os frascos eram de vidro, quebrando-se no caminho; por mau acondicionamento, muitas perdiam a validade antes de chegar ao destino final; para finalizar, o produto era de péssima qualidade, pois não era produzido adequadamente.

Nos primeiros dias de setembro, por Aracati, chegou à epidemia, se instalan-do de forma descontrolada. Um grande número de pessoas começou a ficar doente. Segundo o autor, o Lazareto comportava, no máximo, o número de trezentos doentes. “No fim de poucos dias o morbus havia se alastrado pela area sub-urbana de Fortaleza”, afirma Theophilo (THEOPHILO, 1997, 9). Isso significa dizer que o governo provincial não tinha aonde deixar estas pessoas, pois o instituto vacinogênico não existia, superlotando, então, os hospitais e lazaretos, contaminando outros doentes.

No dia 30 de setembro de 1877 o Lazareto da Lagôa-Funda já estava lotado, e cada vez mais crescia o número de doentes pela cidade. Apesar dos esforços empregados, tardiamente, pelo governo.

No fim de outubro já não havia mais esperanças de restabelecer um serviço hospitalar mais ou menos regular tal a cifra dos variolosos. Mais de cinco mil enfermos contavam-se disseminados pela area sub-urbana da cidade afora os 592 mortos durante o mez (THEOPHILO, 1997, 11).

Era visível dentro do espaço urbano a presença de doentes e mortos, ambos esqueléticos e de aspectos sombrios e em plena deterioração de seus corpos. A população tradicionalmente moradora do centro, financeiramente preparada para os dias de seca, presenciava, ininterruptamente, o desfile do transporte de cadáveres. Theophilo é veemente ao condenar tamanho abuso a moral e a saúde

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pública. Contudo, informa que este “espetáculo” só teve fim quando surgiram os primeiros casos de varíola dentro do centro da cidade.

Disse ser repugnante o espetáculo do transporte dos cadáveres dos variolosos. E de facto o era. Imagini-se um cadaver, meio putrefacto, vestido apenas de ligeiros trapos, amarrado de pés e mãos a um páo, conduzido por dois homens, ordinariamente meio embriagados, e se terá visto o modo porque iam para a vala os retirantes mortos de variola em Fortaleza (THEOPHILO, 1997, 13).

Com esta descrição, é possível analisar, por um lado, o modo pelo qual eram feitos os “misteres” dos carregadores de cadáveres, no período de seca, os quais eram contratados pela municipalidade para realizarem o serviço de limpeza. Em troca do trabalho a Intendência se responsabilizava apenas por alguns réis, ração e aguardente. O Intendente convocava uma turma de cinquenta a cem homens, dos quais, apenas alguns compareciam. Theophilo revoltava-se com o fato destes homens receberem, mas não executarem o serviço. Em reunião, a Câmara Municipal da Cidade de Fortaleza constatava que seus esforços, muitas vezes, eram em vão16.

A municipalidade não tinha, ainda, um sistema de translado dos corpos elaborado. Os anos anteriores ao da seca incentivaram os órgãos locais a organizarem uma estrutura mínima de serviços públicos, o que ocasionou uma enxurrada de necessidades emergenciais no final de 1870. Desacostumados com o medo da doença e da morte a seca trouxe, além de abalos no sistema político-jurídico, medo diante da morte.

O medo do corpo morto passa a afetar o imaginário da população fortale-zense, ainda mais se este corpo tivesse infectado pelo mal da varíola. É a partir da segunda metade do século XIX que o corpo vivo se distanciará do morto, causando uma separação entre a vida e a morte, a qual será colocada como novo limite para as atitudes sociais e físicas do homem. (ENGEL, 1989, 13)

Contribuindo para este degradante quadro, tem-se a presença dos carregado-res de cadáveres, que, sem o mínimo de condições necessárias para executarem o

16 (Arquivo Público do Estado do Ceará – fundo) Ata da Camara Municipal da Fortaleza, nº 80, em sessão de 3 de outubro de 1878.

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transporte dos corpos, levavam estes pelas ruas até as valas coletivas. Para aguentar tamanho serviço, durante horas seguidas, era fundamental que estivessem embriagados, afirma a documentação da época.

A partir deste momento, juntamente com a problemática do lixo, da seca e da doença, os trabalhadores das ruas vão se configurar como um novo problema para a salubridade pública, pois se sabe agora, que pouco adiantaria controlar o lixo e a doença sem antes criar mecanismos de controle sobre quem suja e quem traz a doença. Mas do que nunca a sujeira e a enfermidade ganharam rosto dentro da sociedade da época, podendo ser combatidos cara a cara, pelos sanitaristas.

Neste ínterim, o cronista da seca fez dura críticas ao serviço de salubridade pública, demonstrando que os foros de cidade “aformoseada” a qual a elite da época queria transmitir não atingiram todos os espaços. O autor compreende as circunstâncias pelas quais a província estava passando, mesmo assim afirma que “a confusão era geral e indescriptivel. O serviço de assistencia publica era mal feito” (THEOPHILO, 1997, 19).

Diversas foram às tentativas de minorarem a situação. Todavia pouco foi decidido sobre o assunto. Até que surgiu a ideia de retirar o principal foco da doença de dentro da cidade. “Fortaleza assentou-se, como medida salvadora, a remoção dos abarracamentos de retirantes que demoravam a barlavento da cidade para os suburbios a sotavento” (THEOPHILO, 1997, 21).

A vantagem acreditava-se, era que estando os doentes naquele lugar, por ali ao passarem os ventos, trariam para dentro da cidade os miasmas, piorando a situação epidêmica. Levando-os ao outro lado o vento desviaria os odores da peste para fora do espaço urbano, ajudando a diminuir a possibilidade de infecção. Mas, para Theophilo “esta medida nada influiu na marcha da variola. Trouxe apenas mais despezas a Nação e grandes vexames para os infelizes retirantes” (THEOPHILO, 1997, 21).

Nesta empreitada, três foram os abarracamentos removidos: São Luiz, Paje-hú e Meirelles. Cada um contava centenas de variolosos. Theophilo afirmou ser testemunha ocular do transporte dos retirantes do Meirelles, que ficou a cargo do Sr. Dr. José Lourenço de Castro e Silva, médico sanitário e auxiliar da Presidência da Província cearense. O autor explicita o drama dos retirantes:

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Tudo faltou ao bem estar no transporte dos enfermos. Não havia vehiculos proprios e nem tão pouco carregadores amestrados e humanos. Imagine se um corpo em carne viva, que custa a supportar immovel o contacto de folhas de bananeiras humedecidas em oleo, atirado, sem caridade, dentro de uma rêde de panno grosso, e depois levado aos trambolhões por homens aguardentados a uma distancia de mais de tres kilometros e se terá visto o modo porque se transportaram os variolosos de barlavento para sotavento da cidade. (THEOPHILO, 1997, 21)

Primeiramente, o autor mais uma vez faz críticas à situação de trabalho e transporte dos doentes de varíola, acusando a província de negar o devido socorro, pois, “nem uma padiola appareceu” para a execução do serviço. Em segundo, o descaso também se deu na contratação dos carregadores. Segundo o autor, eram homens “brutos” e “sem escrúpulos”, que jogavam os enfermos de um lado para o outro, sem ter o mínimo de cuidado. Todavia, previne Theophilo que era impossível selecionar os carregadores, pois já era muito encontrar pessoas dispostas a realizar tal “mister”.

Ora, muito destes homens que compareciam nos abarracamentos eram retirantes. Sabiam o que era caminhar léguas de distância até a capital cearense, tendo de enfrentar a realidade dos abarracamentos, socando suas famílias em pequenos cubículos, junto a outras, a implorar por ajuda e comida.

Além do mais, pelas condições que Fortaleza passava, aquele momento propiciou uma zona de negociação e de trabalho para os populares, os quais precisavam se alimentar, trabalhar e se divertir ao passo que os políticos da província necessitavam retirar os doentes de dentro do espaço urbano, longe de seus olhos, ouvido e narizes.

O Presidente da Câmara exigiu do governo provincial medidas que mini-mizassem o odor espalhado nas ruas, que “muito impregnado de miasmas nocivos a saúde, em consequencia da secca e da agglomeração de um grande numero de emigrantes sujos”17 deveria colocar a disposição alcatrão queimado, para melhorar o ar a ser respirado. Pois, acreditava-se na época que o cheiro bom, saudável, anularia o cheiro ruim, doente e miasmático.

17 (APEC – fundo) Ata da Câmara Municipal da Cidade da Fortaleza, n° 51, em sessão de 8 de abril de 1878.

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Piorava cada vez mais a situação na capital da província, a temperatura chegou, no dia 10 de dezembro de 1878, aos 33º graus na sombra. Neste dia chegou a notícia de que o Cemitério da Lagôa-Funda recebeu mil e quatro cadáveres. Segundo Theophilo: “este assombroso obituario, de um dia, encheu de panico a quantos d’elle tiveram noticia” (THEOPHILO, 1997, 26).

Com esta quantidade de mortos ao chão de Fortaleza, iniciou uma maratona para sepultar todos os corpos. Foi contratada para o serviço uma turma de sessenta e quatro retirantes. Afirma o autor que receberam por este serviço a “insignificante diária de mil réis, comida e aguardente”. Porém, exatamente quando a municipalidade mais precisou dos coveiros, faltaram doze.

Ao anoitecer, os enterradores estavam exaustos e ainda existiam duzentos e trinta cadáveres insepultos. Por mais que estes homens se esforçassem era humanamente impossível enterrar todos aqueles corpos, ainda mais se levar em consideração as condições de transporte e perfuração das valas. O governo local não foi ausente apenas por não oferecer padiolas. Faltaram pás, redes, cordas, sacos, velas, caixões, trabalhadores, salários, alimentação... Tudo que fosse necessário para o cumprimento adequado do trabalho. Na manhã do dia 11 os coveiros foram concluir o serviço e encontraram “cães e urubús cevando-se na carniça!” (THEOPHILO, 1997, 28).

No decorrer do mês de dezembro, porém, esta “hecatombe” só havia acometido a população pobre de Fortaleza – principalmente os retirantes que estavam distribuídos na cidade e os confinados nos abarracamentos. O centro das atenções estava voltado para os migrantes. A população tradicional presenciava todas as mazelas urbanas pelo lado de dentro das janelas. Não haviam presenciado o mal baterem suas portas ou vitimizarem seus parentes. Isto até o dia 31 daquele mês.

O caso da peste entrar em palacio e matar uma pessoa de tamanha distincção cada vez mais abateu os animos. Ninguem se julgava seguro, se a peste fazia victimas entre gentes que viviam completamente isoladas, entrava onde se praticavam os preceitos da sã hygiene! (THEPHILO, 1997, 35)

Muitos foram os boatos sobre o acontecimento. Afirma o farmacêutico que Marieta Raja Gabaglia, a mulher do Presidente da Província, Jose Julio de Barros Albuquerque, há muitos anos havia tomado a vacina antivariólica, mas nunca se

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revacinara. Estava no Palácio do Governo de onde nunca saia. Contudo, afirma o autor, que isto não significava que ela estivesse protegida. Todos os dias seu marido visitava as enfermarias, trazendo a doença para sua morada. A mulher foi contaminada com a varíola hemorrágica e cinco dias depois sepultaram seu cadáver.

Esta morte comprovou para a população da cidade que ninguém estava a salvo do mal. Ora, se a mulher do Presidente do governo morreu no Palácio, lugar que representa a ordem, o poder e a limpeza da cidade, imagine aqueles que estavam mais próximos da rua, em sobrados que davam para o desfile dos transportes de cadáveres diariamente. A partir deste momento ficou claro para os moradores de Fortaleza que a doença não atingia apenas aos pobres, loucos e/ou prostitutas, mas a todos aqueles que não estivessem imunes contra a varíola.

Com a chegada do ano de 1879, os fortalezenses também esperavam mais tranquilidade, chuva e o fim do horror da seca e dos retirantes que ali estavam. À medida que adentrava o mês de janeiro, diminuía sintomaticamente o número de mortos na cidade. Isto é tanto que neste mês haviam ocorrido “apenas” 2.204 óbitos (THEOPHILO, 1997, 41).

Junto com a seca, também diminuiu a presença impactante dos carregadores de cadáveres pelas ruas da cidade. De todo modo, as lembranças ainda estavam presentes na memória das pessoas, além do mais, muitos destes não voltaram para o sertão, ficaram na cidade em busca de emprego, moradia e comida. Afirma o farmacêutico que

A hygiene publica, por sua vez, acompanhava o vulgo, não isolava os bexigosos e nem tão pouco, depois de restabelecidos, lhes mandava desinfectar as casas, deixando assim espalhados por todos os cantos da cidade focos de contagio. (THEPHILO, 1997, 47)

Deste modo, os cuidados para com a salubridade pública ganharam contornos mais concretos. A necessidade/vontade de aumentar o corpo de fiscais da Câmara para sair em busca dos focos de infecção era uma realidade. Porém, o que o Intendente não esperava era que a quebra da norma não fosse realizada apenas pelos populares. Muitos eram os casos de pessoas defecarem nas ruas da cidade, mesmo em período de epidemia.

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Em ofício de 8 de outubro de 1878, o Intendente exigiu a permanência de uma sentinela na rampa do passeio público. Pedido este que é atendido, para impedir o transporte de imundícies para o mar. Contudo, a sentinela descobre que “os soldados do 15º Batalhão de Infantaria tem convertido em latrina a rampa da Rua da Palma, contigua a aquella e confronte ao Passeio Publico”18.

Era impossível para os políticos locais manter a limpeza da cidade se os órgãos que deveriam servir de exemplo, estavam contribuindo para o surgimento e a proliferação de novos tipos de infecções. Fica cada vez mais claro que não estava no alcance do Intendente ou mesmo do Presidente da Província organizar a desinfecção da capital cearense.

As prescrições vigentes no Código de Postura não foram levadas a diante, servindo apenas de letra morta. Muitas vezes os guardas serviam de olhos do poder público informando e prendendo infratores. Por outro lado, a repetição do descumprimento da norma era tão sistemática que aqueles desistiam de fiscalizar, fazendo “vistas grossas”. Até mesmo porque a prática em transformar as ruas em “cloacas” perdurou por anos. Muitas vezes o Intendente exigia do governo provincial, medidas enérgicas para que os soldados parassem de sujar as ruas19.

Para magistrados e doutores os populares eram responsáveis por sujar as ruas. Agora, os pobres são os principais suspeitos e criminosos da cidade. Reportando-se a Rodolpho Theophilo, em seu primeiro trabalho sobre a seca de 1877-9, é possível compreender a diferenciação das práticas aviltantes dos populares e as práticas morais da elite política e intelectual. Por outro lado, o poder instituído participou de forma muito unilateral da salubridade pública. Era preciso verba, remédios, médicos, trabalhadores e comida.

5. a salubridade pública e o trabalho informal

A cidade de Fortaleza chegava aos anos de 1880 com calçamentos apenas nas proximidades da Praça do Ferreira (AZEVEDO, 1980, 129). As principais ruas

18 (APEC – Fundo) Ata de Correspondência da Camara Municipal da Cidade da Fortaleza, nº 86, em sessão de 25 de outubro de 1878.

19 (APEC – Fundo) Ata de Correspondência da Camara Municipal da Cidade da Fortaleza, em sessão de 6 de março de 1879.

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da cidade ainda estavam repletas de terrenos desabitados20. A feira livre existente na calçada da Assembleia Provincial, que ficava em frente à Biblioteca Pública, era uma praça coberta de areia com castanheiras, xixazeiros e mugumbeiras antigas (NOGUEIRA, 1980, 116), não muito diferente das outras ruas descritas. Tam-bém não existiam esgotos nem fossas. “Era costume de quase todas as residências encher de detritos fecais enormes barricas de madeira” (AZEVEDO, 1980, 129), “que acumulavam-se semanas e quinzenas (...) chamados cartolas” (BARROSO, 1989, 110), também conhecidas por quimoas. Estes barris, de formato mais ou menos uniforme, tinham a autorização do governo local para serem utilizados na coleta de dejetos das residências.

Os carregadores de quimoas eram geralmente homens pobres, livres, for-ros ou escravos (BARROSO, 1989, 110). Muitos eram escravos de ganho, complementando a situação econômica de seus senhores e senhoras, da mesma forma que trabalhavam para garantir o seu sustento pessoal ou para a compra de sua alforria.

Muitos daqueles trabalhadores precisavam sustentar suas famílias – mulheres e filhos (BARROSO, 1989, 110). Na época, nem sempre com o aval da Câmara Municipal, muitas mulheres estavam em pontos estratégicos da cidade, vendendo frutas e verduras, carnes e peixes, oferecendo doces, biscoitos e bolos, auxiliadas por seus filhos e filhas, complementando, e, muitas vezes, realizando sozinhas a junção do dinheiro para as despesas da casa.

Independente de onde o freguês morasse, os carregadores de quimoas passa-vam pela frente da Santa Casa de Misericórdia, desciam pelo calçamento, que ficava ao lado do Passeio Público, até o velho gasômetro e rumavam para a praia. Chegando lá, atiravam o mal cheiroso conteúdo ao mar. Depois de lavarem suas quimoas voltavam para a cidade, direto pela Rua Formosa (AZEVEDO, 1980, 130).

Entretanto, de acordo com o Código de Posturas de Fortaleza, art. 77, “é prohibido lançar nas ruas, praças e mais logares publicos da cidade, aguas servidas, matereaes fecaes, animaes mortos, lixo, vidros ou quaesquer immundicies”21.

20 (APEC) Ata da Presidencia da Camara Municipal da Fortaleza, em 18 de setembro de 1884.21 (BPDB) Codigo de Posturas da Camara Municipal da Cidade de Fortaleza. Fortaleza: Typ.

Minerva, 1916, p – 16.

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João da Silva Jatahy – então Presidente da Câmara Municipal de Fortaleza – determinou que um guarda ficasse a postos na rampa do gasômetro, servindo de sentinela, mesmo desfalcando o “insufficiente numero de guardas fiscaes”22. O guarda municipal a ser convocado foi João Saboia de Castro e Silva. Também foi chamado um guarda cívico para servir de sentinela no local, José Rodrigues do Amorim.

No dia 18 de setembro de 1884, como de costume, Romão, ex-escravo e antigo quimoeiro da cidade, se dirigia até a rampa do gasômetro. Eram duas para as três horas da tarde quando João Saboia proibiu o carregador de deitar a barrica de lixo, alegando que aquela prática era proibida de acordo com a Postura Municipal. Nem mesmo na rampa ou na praia Romão poderia despejar o lixo. Porém, o quimoeiro não deu atenção. Indignado, João Saboia chamou José Rodrigues para auxiliá-lo a cumprir a ordem, mas o guarda cívico se negou a prestar o serviço, ocasionando o descumprimento da norma e a ida do carregador de quimoa até a praia, com sua “cartola”23 sobre a cabeça24.

Em muitos casos os trabalhadores das ruas se dispersavam pela cidade, tornando-se invisíveis para os olhares normatizadores de guardas e sentinelas. Todavia, explicitamente, algumas pessoas, como o quimoeiro Romão, não se submeteram de forma alguma ao disciplinamento gerido pelo poder municipal. Nem mesmo dois guardas foram o suficiente para impedir o ir e vir do trabalhador. Os quimoeiros eram sujeitos conhecidos, realizavam um trabalho necessário para várias famílias. Ao mesmo tempo, tinham de ser rápidos, pois transitavam por toda a cidade, recolhendo a quimoa, levando-a até a praia e depois a devolvia para seus donos.

Por outro lado, os guardas também sabiam que de nada adiantaria impedir Romão. Muitos trabalhadores das ruas passavam por aquela rampa, durante todo o dia e a noite. Não era José Rodrigues do Amorim que conseguiria interromper o fluxo de pessoas no lugar. E o guarda cívico tinha consciência disto.

Os trabalhadores das ruas estavam arranjados de uma forma tal que dificil-mente os policiais conseguiriam conter as artimanhas destes homens e mulheres.

22 (APEC) Ata de Correspondência da Presidencia, de 18 de setembro de 1884. Op. Cit.23 Nome dado ao barril de quimoa, ao ser posto sobre a cabeça do trabalhador, assemelhando-se

a uma cartola.24 (APEC) Ata de Correspondência da Presidencia, de 18 de setembro de 1884. Op. Cit.

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Quanto mais o policiamento fosse organizado – o que não acontecia – mais os vendedores e carregadores estavam resistindo, confabulando, esgueirando pela cidade, sem deixar rastros para médicos, sanitaristas, guardas civis e municipais impedi-los.

Porém, havia momentos em que as sentinelas se faziam presentes e intoleran- tes. Não era raro o dia em que os trabalhadores das ruas não fossem aprisionados, sob agressão física, por desacato as autoridades policiais. O cotidiano dos carregadores de quimoas estava repleto de perigos e ameaças. Além da presença dos guardas, nas ruas, existia o problema da má conservação dos barris, causando acidentes – muitas vezes fatais – para os quimoeiros (AZEVEDO, 1980, 110). Nos Relatórios dos Presidentes da Província e de Estado é possível perceber momen-tos em que o barril de quimoa representava perigo para a população, tanto para quem assistia a cena, quanto para aqueles que carregavam o instrumento de transporte25.

Tendo como referência para se estabelecerem na cidade às trajetórias organizadas nas ruas, para atenderem a todos os seus fregueses; demarcando sempre pontos de chegada e saídas para o centro da cidade; e acessos rápidos para o mar, passando em frente da Santa Casa de Misericórdia, os trabalhadores das ruas articulavam-se de modo a exercerem seus trabalhos sem serem pegos por fiscais e guardas. Era importante evitar o embate físico, quando possível. Por isso, eles desenhavam trajetórias que evitassem ao máximo o encontro com os guardas. Isso significa dizer que a força policial existia em número reduzido, abrindo brechas para que as regras fossem descumpridas, oferecendo livre circulação da sujeira em ruas e praças. Principalmente pelo fato de muitos destes homens já serem bastante conhecidos pelos poderes municipais e provinciais, era quase impossível sua captura.

Vale lembrar que a cidade de Fortaleza, neste momento, possui um insipiente sistema de esgoto. Na verdade, fora a Cadeia Pública, a Assembleia, o Palácio do Presidente da Província e alguns poucos palacetes, nenhuma outra edificação possuía sistema de esgoto. Ou seja, se estes homens e mulheres fossem retirados das ruas, quem se encarregaria da limpeza urbana?

25 (BPMP- setor de microfilmagem) Mensagem apresentada á Assembléa Legislativa do Ceará pelo Presidente do estado Dr Antonio Pinto Nogueira Accioly, em 1º de julho de 1897. Fortaleza: Typ. D’Republica, 1897, P. 24.

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Enfim, os trabalhadores informais eram um mal necessário, quando os habitantes de Fortaleza viviam em um espaço urbano desarticulado, sem infraestrutura mínima nos diversos serviços essenciais à coletividade.

6. conclusões

Diante do que foi exposto várias considerações podem ser feitas para enten-der o universo político e jurídico da cidade de Fortaleza, nas últimas décadas do século XIX. Tão recorrente no presente, assim como no passado, o número de leis aprovadas foram consideráveis. Inclusive, muitas delas, preocupadas com as questões sanitárias. Por outro lado, o governo imperial, representado aqui na figura do Presidente da Província, não tinha condições financeiras, materiais e humanas para tornarem a letra uma prática recorrente. Expondo, assim, as fragilidades da estrutura administrativa vigente.

Apesar da exigência da Corte imperial em manter a Nação indivisível, as ver-bas destinadas à manutenção das províncias eram ínfimas. Consequentemente, os governos locais estariam a mercê das intempéries políticas, climáticas e econômicas. Se as verbas enviadas para as províncias eram diminutas, seria imprescindível rever prioridades. Dependendo basicamente de si próprias seria necessário ter um governo que soubesse utilizar seus poucos recursos em prol da manutenção da vida e da saúde, mas não foi o que ocorreu. Como foi apresentado, as elites políticas e econômicas, nas diferentes províncias do Império brasileiro preferiram destinar seus recursos ao aformoseamento de ruas, praças e calçadas, limitando recursos para necessidades realmente importantes – como o instituto vacinogênico. Fortaleza, na segunda metade do século XIX, possuía belas praças, ruas e palacetes. Espaços estes que foram invadidos pela fome, seca e doença. A tentativa de europeizar as capitais se demonstraram frágeis.

A elite política, então, teve de enfrentar um grave problema, em parte, entre-gando parcela de suas obrigações para a população local, também despreparada e, muitas vezes, desinteressada, em cumprir os preceitos nacionalistas, atrelados, em alguns aspectos, ao sanitarismo social. Cabe, neste momento, uma reflexão importante a cerca da manutenção da vida política e jurídica, sobre como o poder instituído direciona suas prioridades, propondo debates importantes sobre como a população poderia participar, contribuir e gerir a coisa pública.

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7. referências

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BARROSO, Gustavo. Memórias de Gustavo Barroso. Fortaleza: Governo do Estado do Ceará, 1989.

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CORBIN, Alain. Saberes e odores: o olfato e o imaginário social nos séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984.

ENGEL, Magali. Meretrizes e doutores, saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). São Paulo: brasiliense, 1989.

LARA, Silvia Hunold. “Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil”. In: Revista Projeto História. São Paulo: Educ, (16), fev. de 1998. Pp. 25-38.

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PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza belle époque: reformas urbanas e controle social (1860-1930). Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha/Multigraf Editora Ltda., 1993.

TEÓFILO, Rodolfo. A fome; violação. Rio de Janeiro: J. Olympio; Fortaleza: Academia Cearense de Letras, 1979. (Coleção Dolor Barreira; v. n. 2.)

THEOPHILO, Rodolpho. Varíola e vacinação no Ceará. Ed. Fac-sim. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 1997.

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perspectivas de uma nova teoria das alterações de funções no

contrato de trabalho

Claudio Pedrosa Nunes1

Resumo

O presente artigo objetiva sugerir a formação de uma nova teoria do regime jurídico-funcional dos trabalhadores na relação de trabalho a partir da superação da ideia restrita de tutela laboral unicamente sobre o empregado, dotando o contrato de trabalho de rotatividade funcional capaz de atender à efetiva tutela do trabalho humano no âmbito do direito privado. A ideia comporta conformação com a conjuntura econômico-produtiva ou de prestação de serviços em permanente oscilação e transformação no presente momento de elevada dinâmica dos mercados regionais, nacionais e internacionais, autorizando aos atores sociais (trabalhadores e tomadores) a avaliação, com desejável liberdade, da modalidade contratual que se mostra mais adequada às suas conveniências laborativas, especialmente no caso do trabalhador com elevada qualificação profissional.

Palavras-chave

Teoria; Mobilidade; Funcional.

Resumen

Este artículo pretende sugerir la formación de una nueva teoría del régimen jurídico y funcional de los trabajadores en la relación de trabajo desde la supera-ción de la idea restricta de la protección laboral únicamente sobre el empleado, fomentando el contrato de trabajo con una maleabilidad funcional capaz de alcanzar la efectiva protección del trabajo humano en el ámbito del derecho privado. La idea permite conformidad con la actual dinámica económica y productiva o de la prestación de trabajo en permanente oscilación y transformación en el

1 Doutor em Direito do Trabalho e Trabalho Social pela Universidade de Salamanca. Professor Adjunto II da UFPB. E-mail: [email protected].

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presente momento de notable impulso de los mercados regionales, nacionales e internacionales, autorizando a los actores sociales (trabajadores y tomadores) la evaluación, con deseable libertad, de la modalidad contractual que se muestra más adecuada con sus conveniencias laborales, en especial en el caso del trabajador de alta calificación profesional.

Palabras-clave

Teoría; Mobilidad; Funcional.

1. introdução

O Direito é produto da expressão cultural de determinada comunidade política. A dinâmica dos fatos sociais e as respectivas conjunturas socioeconômicas constituem uma espécie de bálsamo que orienta e move a construção do Direito. Diante disso, não é incomum que determinadas normas jurídicas decaiam de obsolescência pelo simples fato de não acompanharem a efervescência dos fatos sociais, de que resulta sua natural e consequente ineficácia jurídica.

Assim é que Direito e fatos sociais são categorias indissociáveis no sentido de que o primeiro conserva a plenitude de sua capacidade de observância jurídico-social na medida em que atende e produz resultados adequados às demandas da comunidade política. Tal constatação mais se eleva quando se têm em mira as complexidades das relações privadas, onde cada pessoa ou grupo de pessoas guarda suas expectativas no disciplinamento adequado que o Direito posto pode e deve assegurar a essas relações, de modo a conferir a necessária segurança e tranquilidade dos ajustes entre particulares.

No âmbito do Direito do Trabalho essa conjuntura é ainda mais contundente diante da atualidade pulsante das relações de trabalho, pela razão especial de eclosão de fenômenos como a mundialização econômico-produtiva e a profusão de profissões, funções e ocupações. O atual cenário de profissões e funções multitudinárias noticia, sem dúvida, uma transformação substancial no conteúdo e na realidade social das relações laborais. É dizer que o desafio do Direito do Trabalho não mais se restringe a regular, conciliar ou dirimir conflitos entre o capital e o emprego, mas, doravante, espraia-se sobre a evolução constante do

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mundo do trabalho como um todo, em especial diante da ampliação substancial de novos modos de prestação de serviços.

O regime jurídico-laboral torna-se, destarte, um elemento jurídico-social merecedor de atenção para possível extensão a essas novas modalidades de labuta. Os atuais óbices dogmáticos que impõem restrições subjetivas ao Direito do Trabalho não mais se justificam e põem em causa sua própria utilidade como ramo autônomo do Direito.

Em todo esse contexto, as profissões e funções exercidas pelo novo acervo de trabalhadores, subordinados ou não, merecem especial relevo. A inserção dos trabalhadores no ambiente produtivo e prestacional ocorre crescentemente a nível de coordenação ou de parassubordinação em relação ao seu tomador, pondo de lado, em muitos casos, o tradicional trabalho subordinado. É dizer que o trabalho puramente subordinado ainda guarda seu lugar apropriado, mas, ao mesmo tempo, põe-se apenas ao lado e em igualdade de importância com o trabalho autônomo e parassubordinado, não alçando mais a proeminência de outrora. De consequência, as profissões e funções envoltas nessas novas modalidades de trabalho multiplicam-se notavelmente, de modo a permitir a antevisão de que o trabalho desenvolvido para o mesmo tomador poderá ser executado sob diferentes títulos jurídico-laborais, sem, entretanto, comprometer sua qualidade, densidade ou mesmo tutela estatal.

Desse modo, uma determinada profissão ou função poderá ser desenvolvida a título subordinado ou autônomo, com sucessivas e periódicas alterações recí-procas, a depender de conjunturas organizacionais, técnicas ou socioeconômicas em geral que motivem os agentes contratantes para essas alterações. Mais que isso, referidas alterações poderiam ser previstas num mesmo diploma contratual, cujas cláusulas permitam o exercício de uma ou outra função pelo mesmo trabalhador, seja a título subordinado ou autônomo.

É nesse panorama socioeconômico e jurídico-laboral que entendemos ser possível vislumbrar uma nova teoria geral das alterações das funções dos trabalhadores no contrato de trabalho. É sensível, outrossim, que a ideia em foco perpassa pela necessidade de modificação legislativa e reordenação dos princípios básicos das alterações do contrato de trabalho, porquanto a rigidez do atual regime legal modificativo do contrato de trabalho, designadamente no Brasil,

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ignore qualquer iniciativa nesse sentido, sob uma artificial presunção de violação da tutela do trabalhador e consequente causação de prejuízos a este, tal qual se extrai exegeticamente do artigo 468 da Consolidação das Leis do Trabalho.

As iniciativas congressuais dirigidas a conferir determinados direitos trabalhistas a trabalhadores autônomos talvez constituam o anúncio de uma primeira fase de transição nesse aspecto. Com efeito, a recente Lei nº 12.690, de 19 de julho de 2012 confere aos associados em cooperativas de trabalho – atualmente considerados trabalhadores autônomos – direito a jornada diária máxima de trabalho e a descansos semanal e anual (artigo 7º), além de outros direitos tipicamente trabalhistas. Sem dúvida, tal norma legal é o anúncio de que trabalho autônomo e direitos tutelares podem conviver harmonicamente e sob um mesmo instrumento jurídico.

De igual modo, é teoricamente possível indagar a possibilidade de admissão, no direito laboral brasileiro, da Lei espanhola nº 20/2007, que reconhece a existência jurídica do trabalhador autônomo economicamente dependente, sobretudo a partir da leitura e definição do alcance do artigo 8º da nossa Consolidação das Leis do Trabalho. Teríamos, aqui, uma outra vertente da transi-ção que estamos a ressaltar.

Também em Portugal, o atual regime de alterações de funções dos trabalhadores permite modificações mesmo substanciais na prestação do serviço, alcançando inclusive funções alheias às contratadas diretamente pelas partes quando da celebração do contrato de trabalho, tal como se extrai do disposto no artigo 120º, nº 2, do Código do Trabalho em vigor naquele país.

Por todas essas observações, o presente artigo é orientado a sugerir a pos-sibilidade de construção de uma nova teoria geral das alterações funcionais dos trabalhadores no contrato de trabalho, permitindo-se que um mesmo instrumento contratual admita tanto uma relação de trabalho subordinado quanto de trabalho autônomo ou parassubordinado a partir das habilidades profissionais e funcionais dos trabalhadores.

2. novas tendências do direito do trabalho

Em tema de tendências atuais do Direito do Trabalho, revela-se oportuno discorrer sobre suas origens, especialmente diante do polimorfismo das relações

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laborais, que, por sua vez, eclode como fato gerador de uma perceptível fase de transição do âmbito de atuação subjetiva da tutela laboral, com reflexos da dogmática dessa disciplina jurídica.

2.1. transição e âmbito subjetivo

O Direito do Trabalho brasileiro em voga conserva um rígido regime de modificações do contrato de trabalho. Com efeito, o texto dos artigos 468 e 469 da Consolidação Trabalhista exibe o perfil acentuadamente conservador do princípio da proteção do trabalhador empregado, vedando qualquer alteração funcional ou territorial que, mesmo com sua anuência, cause-lhe prejuízos direitos ou indiretos.

Sem dúvida, a tutela trabalhista consequente aos citados artigos 468 e 469 da Consolidação parece reduzir a vontade do trabalhador à de pessoa relativamente incapaz. Além disso, superdimensiona o conceito de prejuízo, como a anunciar que o Estado é o efetivo avaliador do que convém ou não ao empregado. (SAAD, 2006, p. 440).

Esse quadro tutelar, como parece evidente, constitui óbice às alterações con- tratuais que dinamizam as relações de trabalho no cenário produtivo e pres-tacional contemporâneo, eis que, mesmo diante de um trabalhador de alta qualificação profissional, retira-lhe a necessária independência para contratar de conformidade com suas potencialidades e com as necessidades empresariais. É dizer que, num mundo de globalização econômico-produtiva como o atual, o trabalhador qualificado e o empreendedor por excelência não podem exercer suas vocações negociais.

O panorama de alterações das condições de trabalho previsto nos dispositivos celetistas em foco constitui um problema a superar diante da natural dinâmica do mundo produtivo contemporâneo. Não há como negar que a realidade da evolução das profissões e do sistema produtivo esteja em franca colidência com a normativa brasileira vigente, esta que parece atender mais às conjunturas do passado (sistema vertical de organização das relações de trabalho) que ao presente e ao futuro do mundo do trabalho. (ALCARAZ, 2001, p. 15).

O problema central é, portanto, superar as antinomias e colidências entre a atual dinâmica de profusão das profissões e das modalidades de prestação

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de serviços e a preocupante estática do sistema legal relativo às funções dos trabalhadores em geral, designadamente em razão do disposto nos artigos 468 e 469 da Consolidação das Leis do Trabalho.

Esse contexto reclama ainda toda uma discussão a respeito das tendências atuais de ampliação da tutela laboral para categorias de trabalhadores não considerados empregados puramente subordinados2, anunciando uma espécie de fase de transição para um regime tutelar laboral que alcance trabalhadores não-empregados, especialmente os autônomos, eventuais, diaristas e similares, não obstante possam ser-lhes conferidas pautas especiais quanto ao elenco de direitos laborais.

Essa tendência parece ter-se consolidado especialmente diante de estatutos legais editados recentemente na Espanha e no Brasil que conferem direitos tipicamente laborais a trabalhadores autônomos e parassubordinados. Assim é que na Espanha foi editado o estatuto jurídico do trabalhador autônomo economicamente (Lei nº 20/2007) e, no Brasil, foi editada a Lei nº 12.690/2012, a qual confere aos associados em cooperativas de trabalho – atualmente considerados trabalhadores autônomos – alguns direitos dos trabalhadores empregados3.

Em Portugal, por sua vez, o novo Código do Trabalho, editado pela Lei nº 7/2009, de 12 de fevereiro, e alterado recentemente pela Lei nº 23/2012, de 25 de junho, prevê alterações substanciais das funções desempenhadas pelos trabalhadores em determinada empresa, mediante ajuste bilateral, admitindo cláusulas transcendentes daquelas que motivaram a celebração originária do contrato de trabalho4. Leal Amado (2013, p. 247) expõe, nesse panorama, que

2 LUJÁN ALCARAZ, por exemplo, ao discorrer sobre as categorias trabalhistas excluídas da incidência do Estatuto dos Trabalhadores da Espanha, sugere que o legislador ibérico adota critérios heterogêneos e dissonantes da realidade atual.

3 Ente outros direitos, o artigo 7oda referida Lei nº 12.690/2012 assegura ao trabalhador

cooperado piso salarial não inferior ao salário mínimo, duração do trabalho normal não superior a 8 (oito) horas diárias e 44 (quarenta e quatro) horas semanais, repouso semanal remunerado, repouso anual remunerado, retirada para o trabalho noturno superior à do diurno, adicional sobre a retirada para as atividades insalubres ou perigosas e seguro de acidente de trabalho.

4 O artigo 120º do Código do Trabalho de Portugal prescreve, por exemplo, a possibilidade de ajuste bilateral para alteração substancial das funções do trabalhador, com redução salarial e estabelecimento de outras condições de trabalho.

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“a lei autoriza que as partes, através de simples estipulação contratual, alarguem aquele ‘direito de variação’, vale dizer, subvertam a excepcionalidade do recurso ao jus variandi”. Assim, se é certo que as alterações em foco não traduzem necessariamente a ampliação da tutela laboral a trabalhadores não-empregados, não é menos certo que tal regime modificativo do contrato de trabalho não a nega peremptoriamente.

Em outras palavras, as alterações substanciais de funções dos trabalhadores em Portugal consubstanciam um permissivo de celebração de ajustes que rompem com o tratamento demasiado rígido de estabelecimento de funções de trabalhadores, funções estas que podem certamente concentrar trabalho externo comparável ao de trabalhadores parassubordinados, a exemplo do trabalhador a domicílio ou o teletrabalhador.

2.2. polimorfismo das relações laborais

Por outro lado, a flexibilização das relações de trabalho, em especial das funções dos trabalhadores, possui estreita relação com as especificidades de cada organização produtiva. Quer dizer que a elasticidade dos processos produtivos terá melhores resultados na medida em que se aplicar com maior ou menor envergadura a determinadas atividades econômicas, cujas concorrência e pro-dutividade revelem peculiaridades próprias. Assim, a flexibilização trabalhista não pode ser empregada sem critérios, sem objetivos bem delineados, sem investigação da natureza da atividade empresarial ou não-empresarial a que se destina, pena de converter-se em prejuízo para o conjunto da comunidade laboral, inclusive o empresário ou empreendedor.

Há atividades que demandam mais acentuado nível de concorrência que outras, como, por exemplo, as atividades relacionadas à produção de equi-pamentos de informática. Já os serviços prestados por entidade sem finalidade lucrativa (assistência social, fundações de direito privado, sociedades de amparo e preservação de animais etc.) não ostentam concorrência propriamente dita.

Disso deflui que as sociedades filantrópicas em geral não têm como desiderato substancial o apuro sistemático de lucros. Neste caso, a flexibilização evidentemente não tem o mesmo caráter que possui em relação às empresas, isto

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é, às instituições envoltas no mercado capitalista concorrencial. É visível que as medidas flexibilizatórias são mais imperiosas em empresas de produção de equipamentos de informática que naquelas de emprego de mão-de-obra em uma sociedade protetora dos animais.

Assim, como ensina Martínez (1984, p. 21), a flexibilização no sentido da necessidade de modificação das condições de trabalho tem sua utilidade mensurada pela especificidade da atividade econômica que deva ser explorada ou incrementada. A profundidade do processo de flexibilização das relações de trabalho, por outro lado, fez surgir uma nova série de categorias trabalhistas, não necessariamente desvinculadas de sua origem contratual. São as categorias muitas vezes denominadas de “trabalho atípico” ou “relação de trabalho atípico”.

A questão do trabalho atípico, entretanto, tem suscitado não poucas dúvidas e indagações no referente a sua real utilidade para prossecução de resultados positivos significativos. Indaga-se, outrossim, se tal representa mais um paliativo de que os agentes capitalistas pretendem lançar mão para simular uma eventual saída, ou seja, uma possível alternativa para esquivar-se das temerosas crises, com menoscabo do trabalho humano.

Na verdade, a caracterização do trabalho como “atípico” não é mais que uma nova vertente do processo global de flexibilização. Assim, muitos aspectos que autorizam as postulações empresariais de maleabilidade das relações de trabalho são encontrados nos “remédios atípicos” através dos quais se manifesta. Não obstante, é necessário observar que nem toda medida de fomento ou emprego do trabalho atípico tem-se revelado como instrumento da recuperação regular do emprego nem tem auxiliado com destreza na recuperação econômica das empresas em crise. Demais disso, muitos dos remédios atípicos idealizados já se poderiam vislumbrar em meio à disciplina legal tradicional do contrato de trabalho, razão pela qual a inovação idealizada nesse campo limitou-se, segundo entendemos, à pretensão de atribuir-lhe a condição de categoria jurídica específica, o que corrobora com a profusão de profissões e ocupações. Isto, então, dispensaria (como efetivamente dispensa em muitos casos) a edição de leis para criação, regulação e alteração do que já estava criado, regulado e disciplinado.

No contexto do direito coletivo e no tocante ao capítulo das modificações do contrato de trabalho, os citados remédios atípicos já se achavam regularmente

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concebidos. Um exemplo do direito brasileiro pode esclarecer o que ora pro-pugnamos. O atual artigo 58-A da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), prevê a instituição da jornada de tempo parcial. A ideia central do texto legal foi proporcionar a contratação de trabalhador com menor tempo de trabalho diário ou semanal a fim de autorizar a redução proporcional do salário. Assim é que, por aquele dispositivo, a jornada de tempo parcial não poderá ser superior a vinte e cinco (25) horas semanais, com salários adequados a tal jornada. Ora, o artigo 58, “caput”, e o artigo 444 da velha CLT já haviam previsto, como efetivamente ainda prevêem, a “jornada contratual” de trabalho, por meio da qual o empregador já poderia estabelecer jornada reduzida em relação à máxima permitida. É dizer que as partes contratantes (empregado e empregador) já estavam autorizadas a estabelecer jornada adequada às suas conveniências, com reflexos inclusive em termos salariais. Isto evidentemente atende a uma das finalidades propaladas pela nova “jornada a tempo parcial” no sentido de fomentar a abertura de mais postos de trabalho, em razão da diminuição do tempo de trabalho do operário. A regulação anteriormente existente, como visto, já socorria ao propósito dito inovador.

Em nosso entendimento, a nova regra (artigo 58-A, CLT) concentra tentativa de transformação de um posto de trabalho em dois, repartindo a jornada originária integral, geralmente de oito (08) horas diárias, em duas jornadas. Com isso, permite-se, presumimos, mais tempo ao trabalhador para estudar, procurar ocupação remunerada complementar, ou simplesmente permanecer mais tempo com a família. Por outro lado, para os que justificam a criação da jornada de tempo parcial segundo o argumento central de que sua finalidade essencial é permitir a redução proporcional do salário, é imperioso registrar que o artigo 7º, inciso XIII, da Constituição do Brasil há muito (1988) autoriza a redução salarial por meio de acordo ou convenção coletiva de trabalho. Aliado a isso está o fato de que parte da jurisprudência dos tribunais trabalhistas brasileiros impõe o pagamento do salário mínimo interprofissional tanto em jornada de tempo integral como em jornada de tempo parcial5. E isto põe por terra o argumento dos que indicavam

5 Nesse sentido é, por exemplo, o Recurso Ordinário (RO) nº 4554/2002, Acórdão TRT 13ª Região nº 070556, DJ 17.11.2002, Rel. Des. VICENTE VANDERLEI NOGUEIRA DE BRITO.

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como diferença entre ambas as modalidades de jornada a possibilidade de redu- ção do salário para menos do mínimo em se tratando de jornada de tempo parcial.

Mais ainda. A jornada de tempo parcial não pode ser imposta por iniciativa unilateral do empregador, tanto nos contratos em curso (celebrados antes da instituição da jornada de tempo parcial) como para aqueles que, celebrados depois da instituição da multicitada jornada de tempo parcial, têm previsto inicialmente a jornada de tempo integral. Por tudo isto, é mister ressaltar que o modelo flexibilizatório a que supostamente se destinou o artigo 58-A da Consolidação Trabalhista (CLT) já se fazia presente na legislação laboral ordinária e na própria Constituição Federal do Brasil. (RUSSOMANO, 2001, p. 23). Nada há de inovador senão a tentativa de transformar o meio em um fim em si mesmo.

Alguns entendem, por outro lado, a exemplo de Magano (1988 apud CARRION, 2005, p. 105), que a jornada de tempo parcial permite a redução salarial proporcional por ajuste individual de ambas as partes, considerando a vinculação natural do salário ao volume de trabalho. Nisso, distingue-se do previsto no artigo 7º, inciso XIII, da Constituição do Brasil, o qual exige negociação coletiva para tanto. Ora, tal concepção dá motivo à arguição de pos-sível inconstitucionalidade do artigo 58-A, CLT, haja vista que a Constituição só admite a redução salarial por meio de ajuste coletivo, não de pacto individual.

Registre-se que em matéria salarial a interpretação da norma deve ser sempre restritiva, conquanto se trate de conteúdo rígido do contrato de trabalho6. Por situações como esta é que, conforme sugere Gomes Redinha (1995, p. 67), a jornada de tempo parcial tem suscitado interrogantes quanto a sua utilidade prática, isto é, se constitui efetivamente uma alternativa nova de auxílio às empresas em crise ou se proporciona realmente maior estabilidade e incremento do emprego.

Por outro lado, certas formas de fragmentação da relação de trabalho subordinado não passam de paliativos que sempre em certo espaço de tempo

6 Sobre o assunto escrevemos que o tema da redução salarial no Brasil é regulado fundamentalmente pelo artigo 7º, inciso XIII, da Constituição Federal (Cf. Controle Difuso de Constitucionalidade em Matéria Trabalhista. Uma Abordagem sob o Prisma do Princípio da Igualdade, São Paulo: LTR, 2003, p. 90-91).

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acabam por revelar-se ineficientes. Veja-se o caso do job sharing7 instituído nos Estados Unidos e na Inglaterra, cujos resultados iniciais aparentemente animadores foram substituídos pela supressão do programa, com a justificativa de que se tornou muito oneroso. (GOMES REDINHA, 1995, p. 67). O mesmo ocorreu com o trabalho intermitente e outras formas de acomodação do tempo de trabalho. A mobilidade contratual que estamos a idealizar no âmbito das funções dos trabalhadores, subordinados ou não, obviamente não se ombreia com qualquer dessas medidas juslaborais perniciosas, não obstante possa haver redução transitória de alguns direitos com uma correspondente e importante compensação.

Não se deve, outrossim, confundir um quadro de manifesta precariedade de um ou outro trabalho atípico com solicitudes adequadas de mobilidade funcional no contrato de trabalho. A flexibilidade que deve ser adotada nesse domínio, isto é, no domínio das alterações das condições de trabalho, conserva um regulamento sólido especial que preserva sobretudo a dignidade do trabalhador e o núcleo inalterável de direitos mínimos. Sua fisionomia, natureza e entranhas em sede juslaboral, da maneira que idealizamos, convergem para a facilitação de ajuste entre capital e trabalho, com a especial missão de dar resposta aos momentos de adversidades que sempre acompanharam (e acompanharão) os processos produtivos, designadamente em uma escala de economia capitalista de repercussões globais.

As novas modalidades de prestação de serviços são uma interessante tentativa de modernização das relações de trabalho frente ao novo panorama econômico-tecnológico. O contrato de trabalho bem que pode incorporar transformações que anunciem uma nova disciplina jurídica a ele aplicável. Que dizer de admitir-se que o contrato de trabalho preveja formas autônomas ou parassubordinadas de prestação de serviço? Que dizer, mais ainda, que o contrato de trabalho possa sofrer

7 O chamado job sharing é um modo de organização do tempo de trabalho que se faz através da repartição de um posto de trabalho a tempo completo e de um só salário entre dois ou mais trabalhadores, os quais dividem as tarefas, responsabilidades e resultados sociais segundo um cálculo proporcional. Sustenta-se na idéia de que um só posto de trabalho comporta vários empregos. Tal modalidade de trabalho atípico foi adotada na United Airlines e na Pan Am, sem sucesso.

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alterações no sentido de disciplinar ora uma relação de trabalho subordinado, ora uma relação de trabalho autônomo ou vice-versa?

Estas alterações teriam talvez o condão não só de adaptar e modernizar as relações de trabalho, através da flexibilidade do contrato de trabalho, mais tam- bém evitar que a desocupação se torne algo sem solução ante a rigidez que se verifica em alguns itens do contrato individual de trabalho. Na linha de incorporação de novas modalidades de trabalho pelo contrato laboral é preciso admitir também a alteração do espectro dos direitos de todos os prestadores de serviço humano. Os direitos trabalhistas tradicionais teriam de estender-se, de certo modo, ao trabalho não tipicamente subordinado, de maneira a produzir um efeito de uniformidade dos direitos decorrente da celebração do contrato de trabalho e não só do contrato de “emprego”.

2.3. obsolescência do conceito tradicional de su-bordinação jurídica e mobilidade jurídico-fun-cional

No panorama de ampliação da tutela contratual-laboral para trabalhadores não-subordinados, com reflexos na mobilidade funcional, é de se vislumbrar uma nova conceituação e redimensionamento do requisito da subordinação jurídica, conduzindo-o para um estágio mais abrangente que aquele que atualmente se verifica e que está umbilicalmente relacionado ao vínculo de emprego pro-priamente dito.

Iniciamos por sugerir que o requisito da dependência econômico-jurídica (também chamada subordinação jurídica) transcenda ao âmbito de configuração da relação jurídica de emprego, estendendo-se também, com as devidas adaptações e mitigações, à prestação de serviço disciplinada modernamente pelo Direito Civil ou pelo Direito Comercial8. Isto porque, segundo entendemos, não mais se justifica a exclusão de certas modalidades de trabalho humano, regidas atualmente pelo Direito Civil e/ou pelo Direito Comercial, do âmbito de

8 No Brasil, por exemplo, o serviço do trabalhador eventual rural, em pequena empreitada rural, é equiparado ao trabalho do empregado rural, conforme se extrai do texto do artigo 17 da Lei nº 5.889/73 (Lei do Trabalho Rural).

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aplicação do Direito do Trabalho, considerando-se uma virtual flexibilização do conceito de subordinação jurídica.

Assim é que, por exemplo, o trabalhador autônomo (representante comercial pessoa física) e o eventual (“chapa”) são também, de certa forma, trabalhadores subordinados, já que a natureza da subordinação jurídica e econômica tem sido também flexibilizada, não estando alheia às diversas modalidades de prestação de trabalho humano. Por tais razões, se a nota da subordinação é o marco que define o âmbito de regulação normativa e principiológica do Direito do Trabalho, ter-se-á de integrar nele outras modalidades de trabalho humano envoltas no qualificativo da subordinação, dentre elas o trabalho autônomo e/ou o eventual jungido acentuadamente às ordens e parâmetros do tomador.

A flexibilização do conceito e entendimento de subordinação jurídica, exigida pela própria evolução do sistema produtivo, permitu que a nota da dependência viesse a transpassar as fronteiras do tradicional contrato de emprego, para contemplar uma boa parte de prestação de serviços até então ubicadas no âmbito puramente civil ou comercial9.

No panorama da ampliação do âmbito de atuação e regulação do Direito do Trabalho, a jurisprudência não poderá descurar do critério histórico-evolutivo de interpretação das normas e fatos. Assim, a nova interpretação dinâmica das transformações das categorias e institutos do trabalho reclama seja conferida especial ênfase e atenção à interpretação histórico-evolutiva, mais que, talvez, à interpretação sistemática ou teleológica.

Não é de olvidar que nem sempre a norma jurídica é corretamente editada no sentido de disciplinar e resolver, com justiça e retidão, uma determinada relação jurídica. Nesse aspecto, cabe ao intérprete corrigir os defeitos de destinação da lei, inclusive através da transformação de sua exegese. É exatamente nesse panorama que se encontra a tendência de evolução do Direito do Trabalho, especialmente

9 A propósito das necessárias transformações do mundo do trabalho, bom fazer referência à edição da Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, a qual introduizu significativa ampliação no âmbito da competência da Justiça do Trabalho, tradicionalmente voltada para resolver questões restritas relacionadas ao contrato de trabalho, para fazer integrar-se em seu âmbito competencial toda e qualquer relação de trabalho, inclusive aquelas regularmente disciplinadas pelo Direito Civil ou pelo Direito Comercial.

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no aspecto de ampliação de seu campo de regulação e atuação. A letra ou texto da norma jurídica laboral, hoje em voga, não mais ostenta as tendências e transformações do mundo do trabalho, designadamente em razão da crescente introdução e criação de novas modalidades de prestação do trabalho humano.

A tutela do trabalho em geral, vocação natural do Direito do Trabalho, é tendência e prognóstico evolutivo que deve integrar toda e qualquer espécie de trabalho humano. Trata-se de conjuntura fática que deve ser objeto de acurada atenção dos intérpretes e aplicadores das leis do trabalho, dando corpo e alma jurídicos à tendência geral de tutela do trabalho humano através da disciplina trabalhista.

A multiplicidade de espécies de prestação de serviços tem conduzido a concluir-se, não poucas vezes, que pode uma mesma modalidade de trabalho conjugar caracterísiticas civis, comerciais e trabalhistas. Tal constatação, já agora conhecida dos tribunais, promete expandir-se na medida da dinâmica dos sistemas produtivos. Assim, podemos antever naturalmente que haverá momentos em que será impossível distinguir o âmbito de aplicação do Direito do Trabalho em face da execução de determinada modalidade laborativa, senão sob casuísticas e manobras interpretativas pouco convenientes e juridicamente irresponsáveis.

A extensão de direitos e da tutela trabalhista, entretanto, não significa igua- lação dos direitos de trabalhadores subordinados aos autônomos ou paras-subordinados, mas presume o estabelecimento de graus de proporcionalidade entre eles. Estes graus de proporcionalidade, por sua vez, estariam vinculados a um mínimo de direito necessário. Toda a dinâmica de alterações contratuais que envolve tratamento ora do trabalhador subordinado, ora do autônomo ou parassubordinado pode ser objeto do capítulo das modificações do contrato de trabalho. Ter-se-ia tal segmento do contrato laboral como o suposto essencial que lhe conferiria a aptidão de colaborar significativamente para a modernização das relações de trabalho, via incremento de um polimorfismo redundante na harmonização entre capital e trabalho.

O direito espanhol tem anunciado e adotado – mutatis mutandis - algumas experiências no contexto das transformações das relações jurídicas de trabalho (modalidades de trabalho no mesmo instrumento contratual). Trata-se de

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experimento que pode servir de subsídio para adoção de uma nova interpretação dinâmica das modificações das condições de trabalho no contexto que ora propomos. É o caso da possibilidade de conversão do contrato de trabalho de tempo integral em contrato de trabalho de tempo parcial e vice-versa (artigo 12.5, “e”, do Estatuto dos Trabalhadores) e, também, o caso do chamado “contrato de relevo”, o qual deriva da divisão de um contrato laboral em dois por força da aposentação de um empregado (artigo 4 da Lei nº 10/1994, de 19 de maio). (VILLALÓN, 2003, p. 216).

A grande preocupação que se pode perceber nessa nova dinâmica do contrato de trabalho, como não poderia deixar de ser, é, uma vez mais, a possível redução ou precarização dos direitos trabalhistas. Entretanto, um modelo que pretenda sobretudo a modernização das condições de trabalho não se pode divorciar do cuidado e garantia dos direitos sociais tradicionais dos trabalhadores. Sem isso, a pretendida modernização daria lugar à precarização e, conseguintemente, ao retrocesso. E a precarização do trabalho e do trabalhador não se harmoniza, em nenhum momento, com uma autêntica e verdadeira modernização das condi-ções de trabalho frente à modernidade econômico-tecnológica.

A modernização das relações do trabalho, ante o novo panorama econômico mundial, não implica segregação do especial caráter tutelar do Direito do Trabalho. (CASTELO, 1998, p. 667). A tutela que o Direito do Trabalho oferece ao trabalhador transcende àquela de natureza meramente pecuniária ou de limitação da duração do trabalho. Mais que isso, abrange também aquel’outras que envolvem os direitos de personalidade do trabalhador. Em outras palavras, a modernização das condições de trabalho é mais ampla que o caráter puramente contraprestacional que enlaça a relação de trabalho e se dirige a conceber os direitos de cidadania e de personalidade do trabalhador como intrínsecos da própria celebração do contrato de trabalho. (CASTELO, 1998, p. 684). É nesse pormenor, também, que a modernização das relações de trabalho deve acompa-nhar a atual dinâmica das relações econômico-tecnológicas via flexibilização.

Conclui-se que o polimorfismo da relação jurídica de trabalho é efeito natural da aplicação dos processos flexibilizatórios de utilização do trabalho humano. Entrementes, suas consequências positivas ou negativas dependerão do maior ou menor controle sobre as exigências que os empresários ou tomadores dirijam ao

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trabalhador, no que poderão estar em causa os direitos tradicionais trabalhistas mínimos e a proteção da dignidade do trabalhador. É atribuição dos estudiosos e aplicadores do Direito do Trabalho envidar esforços para a consecução do ajuste, harmonia e proveito comum entre o atual modelo polimórfico de prestação de trabalho e os objetivos empresariais de competitividade e de obtenção de maiores vantagens e lucros.

3. por uma nova teoria geral das alterações jurídico-funcionais dos trabalhadores

A perspectiva de adoção de uma nova teoria das alterações funcionais dos trabalhadores no contrato laboral certamente atrai um exame adequado da con-juntura e multiplicidade de profissões e funções reinantes no atual nundo do trabalhor, permitindo vislumbrar sua utilidade para o mercado produtivo e de emprego de mão-de-obra qualificada ou não. Vejamos.

3.1. conjuntura

Ante a problemática e tendências expostas, é perfeitamente possível vislum-brar a concepção de uma nova teoria geral do contrato de trabalho no que diz respeito às modificações jurídico-funcionais dos trabalhadores. Pretende-se permitir que um mesmo instrumento contratual admita a possibilidade de execução de trabalho funcionalmente subordinado ou autônomo, alterando-se a respectiva modalidade prestacional a partir das necessidades empresariais e da conjuntura socioeconômica, com impacto na própria liberdade contratual dos agentes interessados.

A proposta é compatível não só com a atual tendência de incremento do trabalho autônomo e de multiplicidade de funções a tal título, mas também com as exigências da dinâmica do mercado produtivo globalizado. Ademais, embora com alguns entraves a superar, a proposta ora formulada possui fontes de autoridade no direito comparado e no próprio imperativo de ampliação do âmbito subjetivo de tutela laboral ante a evolução do mercado econômico-tecnológico e da profusão crescente de profissões. Ainda que se admita a necessidade de uma fase de transição, parece sensível uma tendência gradativa do Direito do Trabalho

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e do contrato de trabalho no sentido de amalgamar a tutela social em geral do trabalho humano. As Leis nºs 20/2007, da Espanha, e a Lei nº 12.690/2012, do Brasil, além do novo regime de mobilidade funcional previsto nos artigos 118º a 120º do Código do Trabalho de Portugal (Lei nº 23/2012), parecem confirmar a maturidade dessa fase de transição.

Assim é que o panorama jurídico-laboral em evidência autoriza a possibili-dade, senão necessidade, de superação da rigidez do regime legal de modificações do contrato de trabalho (artigos 468 e 469 da Consolidação Trabalhista brasi-leira) em benefício do próprio trabalhador, especialmente em razão do ofício de profissionais de elevada qualificação técnica. De igual modo, os respectivos tomadores interessados na produção de bens e prestação de serviços também serão beneficiados nesse aspecto, na medida em que terão maior espaço de mobilidade na utilização do contrato de seus auxiliares, tudo conduzindo a um ideal desenvolvimento socioeconômico.

3.2. mobilidade jurídico-funcional e suas utilidades

No atual mundo da economia e da produção em nível inter-regional é sensível a profusão de diversas espécies de profissões, funções e outros modos de prestação de serviços manuais e intelectuais. Em especial no tocante ao trabalho autônomo, diversas pesquisas e estatísticas aplicadas ao mundo do trabalho anunciam uma mudança de paradigma na prestação do trabalho humano, sugerindo, na voz de Alcaraz (2001, p. 18) que o trabalho subordinado tradicional, substrato da relação de emprego, não mais constitui o modelo de autoridade que vingou no que se refere à utilização de mão-de-obra no quadro econômico-produtivo.

Nesse contexto, o estudo em foco tem em mira descortinar instrumentos e modelos jurídicos que auxiliem na transição adequada dessa mudança de paradigma, inclusive sob iniciativa legislativa. Em outras palavras, trata-se de empreender uma nova concepção do regime jurídico-legal e contratual de alterações de funções dos trabalhadores, autorizando-se aos principais atores sociais (trabalhadores e tomadores) uma conveniente margem de liberdade para estabelecer a que título jurídico o trabalho pode e/ou deve ser desempenhado, considerando particularidades como habilidades profissionais do trabalhador e

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oscilações da conjuntura socioeconômica do ambiente econômico-produtivo do atual cenário de globalização.

Nesse panorama, o Direito do Trabalho não mais pode ostentar uma posição de mera ordem reguladora da relação de emprego pura e simples. Sua missão no atual cenário socioeconômico exige a formulação de bases de um Direito Social por excelência, reunindo e conciliando interesses dos atores sociais em geral e a modernidade produtiva sem, descuidar de sua natural índole tutelar. O novo Direito Social do Trabalho é, assim, dinâmico e aberto por sua própria natureza jurídico-social e jurídico-econômica. Com efeito, a evolução natural das relações socioeconômicas é indicativo da regular conexão entre o direito das relações sociais e as conjunturas econômico-produtivas do mundo contemporâneo. Afinal, o direito laboral é produto das crises e oscilações da economia, sendo-lhe indissociável. (LÓPEZ, 2004, p. 29).

Por isso mesmo, as normas e regulamentos do trabalho são consequência da realidade empírica decorrente da dinâmica capitalista e das mutações do mer- cado produtivo e comercial, especialmente em razão do atual estágio de desen-volvimento tecnológico, encurtamento dos espaços por conta da evolução dos transportes e das comunicações e oferecimento de novas técnicas e funções laborativas.

Esse panorama de natural transformação dos processos produtivos projeta-se sobre as formas de contratação de trabalhadores e reivindica a possibilidade de um novo modelo dogmático do contrato de trabalho, sugerindo um novo olhar interpretativo sobre o princípio da liberdade contratual no âmbito das relações de trabalho. É dizer que as relações laborativas, no contexto das novas técnicas de produção de bens e de prestação de serviços, reclamam ajustes e conciliação com novos postos de trabalho, profissões e funções, ao mesmo tempo em que postulam uma constante e sistemática qualificação profissional dos agentes sociais.

A conciliabilidade entre os processos produtivos e o emprego da mão-de-obra trabalhadora, no quadro econômico que estamos a evocar, não significa rom-pimento ou menoscabo do segmento profissional nem lhe sonega a dignidade enquanto pessoa humana. Direitos mínimos e segurança social são institutos que, com maior ou menor relevo, sempre constituíram parte importante da teoria do contrato de trabalho. Antes, inspira e recobra, na devida medida, a

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qualificação, aprendizado e habilitação profissional dos trabalhadores. Com efeito, não se cogita de colocação ou recolocação profissional ou funcional de trabalhadores sem a devida e necessária instrução técnico-profissional, exigência mercadológica contemporânea que parece não comportar retrocesso. Assim, o espaço de dignidade laboral dos trabalhadores é proporcional ao seu esforço pela qualificação profissional. Afinal, o incremento e as exigências de qualificação profissional conduzirão à inserção segura do obreiro no mercado de trabalho.

É nesse quadro que o contrato de trabalho possui sua importância social e econômica. A maior ou menor flexibilidade contratual possibilita (ou impede) um ambiente de associação adequada entre trabalhadores e tomadores, cuja dinâmica é proporcional às habilidades e formação técnica dos obreiros. Estudos recentes indicam que a melhor qualificação profissional dos trabalhadores é o diferencial fundamental que os insere no mercado produtivo de modo duradouro. (PUEBLA, 1998, p. 86-87). Dessa forma, os instrumentos contratuais são de especial relevância para conveniente conciliação entre interesses empresariais e estabilidade laboral dos trabalhadores.

Um aspecto a merecer atenção em tema de proteção social e desenvolvimento econômico está na injustificada limitação subjetiva do campo de atuação do Direito do Trabalho. Com efeito, a limitação subjetiva de incidência das normas sociais laborais representa um marco tutelar de trabalhadores que atualmente atende mais ao passado que ao presente e futuro das relações de trabalho. Aliás, como anota García (2010, p. 48-50), a evolução dessas relações ao longo de sua história é caracterizada pela ampliação da tutela de sucessivos coletivos de trabalhadores, tendo iniciado nos idos da Revolução industrial pela proteção, embora incipiente, das chamadas “meias-forças” para avançar, como ocorre nos tempos atuais, inclusive sobre coletivos que não se caracterizam pelo trabalho por conta alheia, isto é, o trabalho subordinado propriamente dito.

Não basta, destarte, nem é juridicamente adequado, que a regulação atual do trabalho autônomo, eventual ou parassubordinado tenha tomado de empréstimo algum aspecto ou elemento tutelar de orbe empregatícia sem garantir o merecido tratamento social. Afinal, em essência, essas modalidades de prestação laborativa encerram dependência similar à dos empregados. Veja-se, nesse panorama, que a ausência de definição e conceituação de critérios pacíficos entre o que caracte-

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riza efetivamente um trabalhador subordinado e um trabalhador não subordinado conduziu o constituinte brasileiro de 1988, por exemplo, a projetar a tutela trabalhista ao trabalhador avulso, este que, teoricamente, aproxima-se mais do trabalhador autônomo ou do eventual que propriamente do trabalhador empregado, diante da natureza descontínua ou esporádica de seu trabalho (CARRION, 2007, p. 108).

Portanto, verifica-se que a tutela trabalhista tradicional (aquela destinada em primeiro plano ao empregado) pode estender-se para além do âmbito subjetivo que atualmente informa sua disciplina jurídica, seja projetando sua normativa específica a outros coletivos de trabalhadores, seja adaptando tal normativa, com os devidos desdobramentos, às peculiaridades daqueles coletivos de trabalhadores.

Nesse contexto, as recentes e já mencionadas alterações legislativas ocorridas na Espanha, Brasil e Itália, onde o trabalhador autônomo e o trabalhador pa-rassubordinado, respectivamente, passaram a ostentar proteção jurídica similar à proteção do trabalhador empregado, são uma demonstração inequívoca de que o campo de atuação subjetiva do Direito do Trabalho possui utilidade e aplicação bem mais ampla, representando substancial instrumento de sedimentação do princípio da dignidade humana do trabalhador, ao mesmo tempo em que possibilita a conciliação entre as necessidades empresariais e os interesses dos trabalhadores envoltos em múltiplas habilidades e preparo profissionais, diante sobretudo das oscilações econômicas do mercado produtivo global.

Todo esse panorama permite rediscutir o conceito e o alcance de dependência econômica para fins de definir-se o título jurídico que efetivamente caracteriza a regulação jurídica de determinada categoria de trabalhadores, haja vista que, em muitos casos, tais definição e alcance não possuem qualquer relevância no sentido de ensejar a adequada tutela do trabalho e, ao mesmo tempo, oferecer melhores condições empresariais de utilização de trabalhadores sob o título jurídico que melhor atenda às suas expectativas e necessidades econômicas. (SANDULLI, 2003, p. 28). Em outras palavras, a tutela mínima de trabalhadores pode e deve ser legalmente ou contratualmente prevista independentemente do título laboral rígido que os vincula aos respectivos tomadores, considerando-se sobretudo as habilidades técnico-profissionais dos trabalhadores e a conjuntura socioeconômica que movem os interesses e necessidades da produção e/ou da prestação de serviços.

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Assim é que a dependência econômica não concentra sinonímia com uma rigorosa e vertical subordinação do trabalhador ao tomador, mas consubstancia a integração e inserção técnico-econômica do trabalhador no círculo organicista nuclear e disciplinar do tomador em face de quem realiza um específico trabalho. A teoria da dependência ou subordinação estrutural a que alude Delgado (2006, p. 657-660), constitui, assim, um marco definidor do tratamento protetivo que se deve destinar aos trabalhadores que atuam sob tal integração técnico-econômica ao tomador, não significando necessariamente a aplicação da normativa protetiva prevista legalmente ao empregado propriamente dito.

3.3. mobilidade funcional e economia social de mer-cado

A reestruturação dogmática da normativa trabalhista, sob a ótica que se está a invocar neste estudo, também se coaduna com as exigências do que se convencionou chamar economia social de mercado. (LAMPERT, 1980, p. 210). A economia social de mercado é definida como um programa destinado a promo- ver a reestruturação social e econômica de países que apresentam um quadro de grande desigualdade entre o desenvolvimento econômico-produtivo e a implementação de direitos sociais. Em outras palavras, significa um projeto que objetiva reduzir as desigualdades sociais e o desemprego a partir do direciona-mento da economia para o bem-estar social.

O êxito da economia social de mercado fez-se sentir sobretudo na Alemanha do pós-guerra, dando lugar à concepção da relevante iniciativa de se conferir direitos sociais aos trabalhadores não só sob o ponto de vista humanístico, mas também porque se revela como um imperativo ético e de justiça social que repercute na eficiência da economia capitalista10.

Sem dúvida, a economia social de mercado encerra mais uma fonte dogmática que reforça a ideia de flexibilidade funcional das cláusulas do contrato de trabalho em proveito dos agentes da relação de trabalho e da própria sociedade. Com

10 A economia social de mercado constituiu-se num programa idealizado pelo ministro alemão LUDWIG ERHARD e adotado na Alemanha para auxiliar em sua reestruturação econômica e social. Pressupõe a conjugação de esforços entre empresários e trabalhadores com base na concessão de direitos sociais para estimular a produção e o comércio.

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efeito, as novas demandas que envolvem a vida em sociedade revelam a neces-sidade de considerar-se flexíveis tanto as práticas do trabalho quanto as políticas econômicas do atual mundo globalizado. (PANADERO, 2006, p. 108). A harmonização do econômico com o social não pode prescindir dessa inolvidável constatação. É mesmo possível afirmar, como o faz Bagolini (1997, p. 26-27), que a sociedade atual viceja sob mutações de índole fático-jurídica, não obstante o sedentarismo das ideologias ultrapassadas. Noutro dizer, a absolutização das ideologias que formaram de um modo geral a atual normativa trabalhista constitui um processo que se põe na contramão da renovação dos tempos e dos comportamentos, ao contrário do que se aguarda delas (as ideologias) como exemplo e edificação de novos pensamentos. O novo, consoante o pensamento pouco razoável de alguns, parece profetizar sempre o anunciar do imperfeito e do imoral.

O sectarismo em que se converteu a ideologia de proteção do trabalhador subordinado e o seu oposto extremo que pugna pela total liberdade das práticas econômicas e financeiras com vista unicamente à potencialização dos lucros e solidificação do espaço empresarial (neoliberalismo ou neocapitalismo) são antagonismos ideológicos que só podem culminar na instabilidade social e no confronto malfazejo dessas estruturas e categorias.

Os direitos sociais, consistentes sobretudo na valorização do trabalho humano e na constante busca de melhores condições de vida do trabalhador, fulcram-se em premissas histórico-humanitárias cuja maximização constitui anseio a ser plenamente satisfeito. Esse referencial social, todavia, tornar-se-á tanto mais palpável no plano empírico quanto mais firmes e seguras estiverem as estruturas econômicas. Se é verdade que a busca da conciliação entre o econômico e o social constitui um ideal que ensejará a superação dos momentos de crise entre ambos, não é menos verdadeiro afirmar que a necessidade de sua conjugação suplanta a ameaça de que o social acabe sucumbindo inteiramente diante do econômico.

É possível, pois, que numa economia social de mercado, constitutiva de uma das principais reivindicações do Estado Social de Direito, seja autorizado aos agentes sociais decidir sobre a conveniência de executar um trabalho a título autônomo ou subordinado alternativamente em um mesmo contexto contratual, sem que tal disciplina represente menoscabo de direitos laborais mínimos do trabalhador.

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Portanto, a conciliação entre interesses econômicos e sociais de que se cuida por conduto da presente proposta de uma nova teoria das alterações funcionais do contrato de trabalho é, antes, como diria Kaufmann (2006, p. 163-164), um modelo de superação da estagnação dogmático-ideológica do atual regime jurídico-legal de modificações do contrato de trabalho.

4. conclusões

No mundo contemporâneo do trabalho é sensível que a dogmática atual e subjetivamente restrita do Direito do Trabalho e do contrato de trabalho tornou-se ultrapassada, senão obsoleta. Assim, uma das alternativas para o incremento e ampliação do campo de atuação do Direito do Trabalho é o reconhecimento adequado, por legisladores e justrabalhistas, da necessidade de estabelecimento de uma nova teoria das alterações funcionais dos trabalhadores contratados. Nesse estágio, conforme se expôs precedentemente, as diversas formas de trabalho autônomo, aliado ao trabalho atípico, são fatos fundamentais que denunciam a excessiva limitação do âmbito de tutela jurídica do mercado de trabalho.

Para que o Direito do Trabalho e o contrato de trabalho continuem atuando como as principais instâncias de proteção e regulação jurídica do trabalho humano, dando pronta resposta às acentuadas e rápidas transformações das técnicas de produção, é mister iniciar-se uma também acentuada e rápida modificação de sua dogmática tradicional, assim considerada como marco tutelar do trabalho humano no contexto do atual cenário econômico-produtivo.

Mister, ademais, conferir-se uma nova dinâmica legislativa, interpretativa e aplicativa às modificações substanciais das condições de trabalho, especialmente no contexto da mobilidade funcional, conquanto a contratação atípica e informal do trabalho humano tenha se tornado uma consequência direta da deficiência do atual e superado modelo sujetivo de proteção laboral.

A edição de recentes leis laborais no Brasil e Espanha que conferem um elenco mínimo de direitos trabalhistas típicos a trabalhadores autônomos (Leis nºs 12.690/2012 e 20/2007, respectivamente), parecem confirmar uma especial fase de transição no tocante à ampliação do âmbito subjetivo de atuação, regulação e proteção social do trabalho humano em geral, com as devidas conexões em tema de mobilidade funcional.

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Nesse desenho, o artigo 120º, nº 2, do atual Código do Trabalho de Portugal (Lei nº 7/2009) também admite uma substancial mobilidade funcional de tra-balhadores mediante ajuste bilateral, sem renegar necessariamente a escolha do título jurídico objeto da contratação.

Em todo este panorama, pensar-se uma nova dinâmica das cláusulas contratuais do trabalho, com amparo da legislação laboral, é concretizar as bases de uma adequada teoria geral das alterações funcionais dos trabalhadores, adotando princípios que permitam a tutela adequada de inúmeras modalidades de prestação de serviço hoje emergentes por conduto das inovações do mundo globalizado, ainda que sob uma incipiente fase de transição.

As questões relativas à jornada de trabalho, à forma de retribuição, ao regime de repousos, à proteção única da relação de emprego consubstanciam, em nosso entender, aquelas que deverão figurar como experiência introdutória dessa nova perspectiva teórica do trabalhismo.

Cláusulas contratuais adaptáveis às oscilações do mercado de trabalho e à autonomia individual e coletiva dos agentes sociais certamente oferecem, hoje, mais proveito que adversidades, figurando o Direito do Trabalho e o contrato de trabalho como guardião contra eventuais abusos consistentes em precarização do trabalho e do trabalhador.

O capítulo das modificações das funções dos trabalhadores deve, pois, ser considerado um item dogmático essencial do contrato de trabalho nessa nova perspectiva de modernização do marco tutelar regulatório e do campo de atuação do Direito do Trabalho. Sem a utilização eficiente do capítulo dogmático em comento, pouco se avançará em termos dessa fenomenologia jurídico-laboral. Portanto, é perceptível que o Direito do Trabalho está a enfrentar um novo panorama de relações laborativas, consequência direta da evolução e estágio atual das relações sócioeconômicas, exigindo-se a adequada ruptura com o modelo atual de obsolescência.

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por trás de marbury vs. madison: uma análise histórica sobre a política

envolvendo a criação do controle jurisdicional de constitucionalidade

Luiz Magno Pinto Bastos Junior1

Eduardo de Carvalho Rêgo2

Resumo

Marbury vs. Madison talvez seja a decisão judicial mais estudada no mundo inteiro. Não é à toa, pois, de fato, foi nesse caso, julgado na Suprema Corte norte americana, à época presidida pelo Chief Justice John Marshall, que se criou efetivamente o controle de constitucionalidade. Mas o culto a tal decisão talvez escamoteie a realidade dos fatos: por mais inovador que seja o acórdão proferido por Marshall e seus colegas, ele decorre de uma lógica pouco corajosa, quase cor- porativista. É que, ao declarar a inconstitucionalidade da norma jurídica que obrigava o Poder Judiciário a conceder a comissão a um funcionário nomeado pelo antecessor do Presidente Thomas Jefferson, a Suprema Corte dos Estados Unidos se omitiu de resolver a verdadeira questão posta nos autos, qual seja, a obrigatoriedade de um Presidente respeitar e dar consecução às nomeações ou decisões políticas de um outro. Em breves palavras: a Suprema Corte norte americana criou o controle de constitucionalidade para não ter de resolver sozinha

1 Doutor em Direito Público pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Graduado em Direito pela Universidade Federal do Pará – UFPA; Professor de Direito Constitucional, Direito Processual Constitucional e Informática Jurídica nos cursos de Direito e Relações Internacionais da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI; Professor convidado permanente da Escola Superior de Advocacia e da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina; Membro da Associação Internacional de Direito Constitucional, da Associação Internacional de Ciência Política e do Comitê para o Estudo e Desenvolvimento do Direito na América Latina.

2 Doutorando em Direito, Política e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Mestre em Teoria, História e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL; Professor de Filosofia do Direito e Ética Profissional no Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina – CESUSC.

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a celeuma política envolvendo o ex-Presidente John Adams e o Presidente Tho- mas Jefferson. Ao mesmo tempo, a Corte aproveitou a oportunidade para empoderar politicamente o Judiciário em relação aos outros poderes, na medida em que firmou o entendimento de que a Suprema Corte é quem deveria ser a legítima guardiã da Constituição dos Estados Unidos.

Palavras-chave

Marbury vs. Madison; Suprema Corte norte americana; controle de cons-titucionalidade.

Abstract

Marbury vs. Madison is perhaps the most studied court decision of the world. It is so because it was in this lawsuit, tried in the U.S. Supreme Court, at the time headed by Chief Justice John Marshall, wherein the judicial review was actually created. However, the worship of such a decision might hide the reality of the facts: for more innovative that was the judgment by Marshall and his colleagues, it comes from a corporatist logic. This is because, in declaring the unconstitutionality of the legal rule which required the Judiciary to grant an official commission appointed by President Thomas Jefferson’s predecessor, the U.S. Supreme Court has failed to decide the real issue raised in the case, namely, the requirement for a President to respect and pursue the decisions of another President. In a nutshell: the U.S. Supreme Court created the judicial review to not have to solve the political uproar involving former President John Adams and President Thomas Jefferson. At the same time, the court took the opportunity to politically empower the Judiciary in relation to other powers, by understanding that the U.S. Supreme Court is the rightful guardian of the U.S. Constitution.

Key words

Marbury vs. Madison; U.S. Supreme Court; judicial review.

1. introdução

Todo manual de Direito Constitucional que se preze dedica as páginas iniciais do capítulo sobre o controle jurisdicional de constitucionalidade das normas ao

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famoso caso intitulado Marbury vs. Madison, que tramitou na Suprema Corte dos Estados Unidos da América no início do século XIX e foi resolvido no voto encabeçado pelo Chief Justice John Marshall. De fato, as honrarias são bastante justas e o culto em torno dessa decisão judicial – que alterou o modo de se pensar a Constituição, dando-lhe verdadeira eficácia e, consequentemente, preponderância sob quaisquer outras normas jurídicas – se justifica, na medida em que todas as premissas nele evidenciadas formularam não só a base, mas praticamente a versão final e acabada do atual controle de constitucionalidade.

Nessa linha de raciocínio, não se pode negar que em toda declaração de in-constitucionalidade de uma norma jurídica haja o germe de Marbury vs. Madison. Entretanto, historicamente falando, a decisão proferida no mencionado caso não foi simplesmente o produto de um refinado pensamento jurídico ou da evolução de um constitucionalismo militante, mas, ao contrário, foi o modo pelo qual a Suprema Corte dos Estados Unidos da América conseguiu deixar de se posicionar sobre uma disputa política entre o ex-Presidente federalista John Adams e o Presidente republicano Thomas Jefferson. Para a Corte de Justiça liderada pelo Chief Justice Marshall não era interessante tomar partido nessa disputa – em certo sentido até mesmo para não enfraquecer politicamente, ou, como prefere o historiador Peter Irons, para não aleijar3 o órgão de cúpula do Poder Judiciário estadunidense.

É importante destacar que, apesar do pioneirismo do Juiz Marshall, que a partir de um raciocínio lógico criou verdadeiramente o controle jurisdicional de constitucionalidade, o seu voto em Marbury vs. Madison – e todas as respectivas implicações – foi eminentemente político. Ora, sendo ele o braço direito do ex-Presidente John Adams, inclusive tendo sido seu Secretário de Estado, mas também preocupado com a derrota dos federalistas nas eleições do Congresso e de como isso poderia repercutir politicamente na Suprema Corte, decidiu ele apresentar uma “não decisão” às partes envolvidas num dos mais emblemáticos casos já levados à Suprema Corte norte americana: reconheceu o direito a William

3 Em Marbury vs. Madison, Marshall “decidiu evitar o confronto com o Congresso, que poderia ter provocado até mesmo novos esforços para aleijar o Tribunal” (IRONS, 2006, p. 105). Tradução livre de: “decided to avoid a confrontation with Congress that might have provoked even further efforts to cripple the Court”.

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Marbury, mas negou-lhe a possibilidade de pleiteá-lo perante o Tribunal por ele presidido – deixando a resolução do problema, quiçá, às instâncias ordinárias.

Além disso, agindo assim, a Suprema Corte norte americana atingiu outro objetivo político igualmente relevante: por meio de um discurso técnico-jurídico, consolidou-se como a legítima guardiã da Constituição dos Estados Unidos, conquistando, dali para frente, posição de destaque na relação entre os três poderes constituídos.

O objetivo principal deste trabalho é demonstrar como a “invenção”4 ou “consolidação” do controle jurisdicional de constitucionalidade se deu de manei-

4 Embora seja escorreito dizer que o controle jurisdicional de constitucionalidade, tal como se conhece nos dias de hoje, foi “inventado” no caso Marbury vs. Madison, não se pode deixar de registrar que, em casos anteriores, a mesma lógica de superioridade ou supremacia da Constituição já havia sido consagrada em decisões judiciais singulares nos Estados Unidos. A propósito do tema, Nagib Slaibi Filho preleciona que “Antes mesmo da promulgação da Constituição de 1789, os juízes [americanos] tinham proclamado que, nos casos que lhes fossem submetidos, poderiam deixar de aplicar a lei incompatível com as leis de maior importância (New Jersey, em 1780; Virgínia, 1782, North Carolina, 1787). Os juízes seguiam aí precedentes decorrentes do fato de que, no estabelecimento das colônias na América, a metrópole inglesa concedia aos fundadores o poder de elaborar normas coloniais próprias, desde que não atentassem contra as normas que regiam a sua formação. Note-se, daí, a idéia de hierarquização das leis – as leis coloniais postas em patamar inferior, submetidas às normas, superiores, que autorizavam a formação da colônia – que foi o padrão imposto na constituição rígida e do qual derivou o controle de constitucionalidade das leis” (SLAIBI FILHO, 2002, p. 286). No mesmo sentido, Oswaldo Luiz Palu lembra que “Os precedentes do controle da constitucionalidade das leis existiam, mesmo na História da Inglaterra ou antes; entretanto, a afirmação dessa doutrina deveu-se, sem dúvida, ao direito norte-americano. A técnica de atribuir à Constituição um valor normativo superior, imune às leis ordinárias, foi a mais importante criação, juntamente com o sistema federal, do constitucionalismo norte-americano e sua grande inovação (the higher law) frente à tradição inglesa da soberania do Parlamento. Além dos sempre citados precedentes do Bonham’s case de 1610 e de outros de mesmo teor, o fundamento de tal doutrina pareceu ter sido buscado, inclusive, em John Locke, que havia imaginado mudança importante no direito natural, abstrato, em direitos do homem que precedem o estado de natureza e que não se transmitem em pactos sociais, que existem, justamente, para sua salvaguarda. A Magistratura desse país já vinha se defrontando com esse problema desde os tempos coloniais, com as ‘Cartas’, que eram vinculatórias para a legislação das Colônias e que poderiam aprovar leis ‘razoáveis’, ou seja, que não fossem contrárias às leis da Inglaterra, e de seu Parlamento. Muitas das leis coloniais foram anuladas ou deixaram de ser aplicadas por serem contrárias às ‘Cartas’ que funcionavam como verdadeiras leis fundamentais e ‘leis do Reino’. Após a Independência em 1776, em decisão do ano de 1780 do Supremo Tribunal de New Jersey, cujo Chief-Justice era Brearley, ficou assentado que a corte tinha o direito de sentenciar sobre a constitucionalidade das leis; no mesmo sentido decisão da Magistratura da Virgínia em 1782. Também em Nova York foi

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ra contingencial, não espelhando, como já dito, a evolução de uma doutrina consolidada no âmbito do Direito Constitucional da época. Importa dizer: o judial review se apresentou como a solução perfeita para o órgão de cúpula do Poder Judiciário dos Estados Unidos não se manifestar sobre a querela envolvendo federalistas e republicanos e, ao mesmo tempo, conquistar terreno na conflituosa relação entre os poderes constituídos. Nesse sentido, não soa absurdo dizer que, caso o pano de fundo fosse outro e não estivessem em jogo disputas políticas de tamanha envergadura, talvez fosse desnecessário declarar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica.

Por isso mesmo é que as bases da criação do controle de constitucionalidade podem ser mais bem compreendidas a partir de uma abordagem histórica – ou melhor, por meio de uma verdadeira filosofia da história do direito –, que leve em consideração as disputas políticas entre federalistas e republicanos e, principalmente, que deixe de lado, ao menos momentaneamente, o pioneirismo da decisão proferida pelo Presidente do Supremo Tribunal norte americano.

2. a técnica jurídica utilizada na criação do con-trole de constitucionalidade à moda americana

O famoso caso Marbury vs. Madison era quase que exclusivamente uma disputa política: saber se a nomeação (porém sem a respectiva comissão) de um Juiz de Paz realizada pelo ex-Presidente dos Estados Unidos John Adams deveria ser respeitada ou não por um dos Secretários de Estado do Presidente Thomas Jefferson. Isto é: a pergunta que se objetivava responder era se o funcionário nomeado pelo Presidente anterior tinha direito de ser empossado pela nova Administração, entrando, assim, no exercício do cargo.

Um bom resumo da controvérsia é encontrado na própria decisão, proferida pelo Chief Justice John Marshall, na Sessão de fevereiro de 1803, da Suprema Corte dos Estados Unidos da América:

refutada, por inconstitucional, lei que reduziu a seis o número de jurados. Podem-se lembrar os casos de pronúncia de inconstitucionalidade de tribunais de Rhode Island em 1786 e da Carolina do Norte em 1787, entre outras. Coube, todavia, o mérito pela teoria a Marshall, no conhecido Marbury vs. Madison” (PALU, 2001, p. 113-114).

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Havia nestes autos os seguintes fatos: na sessão de fevereiro de 1803, William Marbury, por seu advogado, requereu ao Supremo Tribunal a notificação de James Madison, Secretário de Estado dos Estados Unidos, para embargar a expedição de um mandamus em que o Tribunal lhe ordenaria entregar ao dito Marbury a sua comissão de juiz de paz para o Distrito de Columbia. Em confirmação desse requerimento mostravam-se certificados de que John Adams, último Presidente dos Estados Unidos, propusera Marbury ao Senado para ser nomeado juiz de paz deste Distrito; que o Senado aprovara tal nomeação; que em conseqüência disso a comissão fora lavrada, subscrita pelo presidente e selada com o selo dos Estados Unidos; mas que o Sr. Madison não quisera entregá-la, a despeito de já estar assim subscrita e selada (MARSHALL, 2004, p. 96-97).

De modo a resolver o caso, o Tribunal enumerou três questões basilares: 1. Teria Marbury, o nomeado, direito à comissão por ele requerida? 2. Se ele tivesse tal direito, e considerando-se que ele tivesse sido, de fato, violado, as leis dos Estados Unidos lhe facultariam algum recurso? 3. Se tal recurso fosse existente, seria ele um mandamus a ser emanado da Suprema Corte norte americana? (MARSHALL, 2004, p. 97).

No que diz respeito à primeira questão, o Supremo Tribunal se posicionou no sentido de que “a nomeação se diz feita quando a comissão está assinada pelo presidente e que a comissão se completa quando nela se estampa o selo dos Estados Unidos” (MARSHALL, 2004, p. 104). Nos termos do voto de John Marshall:

É, pois, certo que o Sr. Marbury foi nomeado, visto que a sua comissão fora assinada pelo Presidente e selada pelo Secretário de Estado, e como a lei da criação do ofício deu ao funcionário o direito de conservá-la por cinco anos, independentemente do executivo, a nomeação, longe de ser revogável, empossara o funcionário em legítimos direitos que são protegidos pelas leis de seu país (MARSHALL, 2004, p. 105).

Já a segunda questão, qual seja, saber se as leis norte americanas facultavam ao requerente um recurso específico capaz de lhe garantir a efetividade do direito violado, foi também respondida afirmativamente pela Suprema Corte. De acordo com o Juiz Marshall, “Por ênfase, o governo dos Estados Unidos se

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chama governo de leis e não de homens. Certamente se tornaria ele indigno desta altíssima denominação, se as leis não ministrassem recursos contra a violação de legítimos direitos adquiridos” (MARSHALL, 2004, p. 106).

Ainda nas palavras de Marshall:

A conclusão deste raciocínio é que, até onde os chefes de departamentos são agentes políticos e confidenciais do executivo, só destinados a executar a vontade do presidente ou antes a obrar nos casos em que o executivo possui um arbítrio legal ou constitucional, nada mais certo que seus atos só podem ser investigados politicamente. Quando, porém, um dever específico lhes é assinado por lei, e direitos individuais dependem do fiel cumprimento desse dever, parece igualmente certo que a pessoa que se julga ofendida tem o direito de recorrer às leis de seu país para a sua desafronta (MARSHALL, 2004, p. 109).

Portanto, a resposta do Tribunal em relação às duas questões iniciais era afirmativa: Marbury não só tinha direito a ocupar o cargo de Juiz de Paz, como também lhe era facultado recorrer ao Poder Judiciário para fazer valer tal direito.

Colhe-se da decisão:

É, pois, o Tribunal de opinião:

1°, que o Presidente dos Estados Unidos, em assinado o título de comissão ao Sr. Marbury, o nomeou juiz de paz para o condado de Washington, no Distrito de Columbia; que o selo dos Estados Unidos, nele impresso, é prova concludente da verdade da assinatura, e da suma perfeição da nomeação; e que a nomeação lhe conferiu legítimo direito ao ofício pelo termo de cinco anos;

2°, que Marbury, possuindo esse legítimo jus ao ofício, tem correlato direito à comissão; e que a recusa da entrega da comissão constitui flagrante violação desse direito, para cujo desagravo as leis do seu país lhe facultam recurso (MARSHALL, 2004, p. 110).

Já a terceira questão, consistente na averiguação sobre o instrumento proces-sual adequado a ser utilizado em casos como o presente, foi examinada pela Corte em dois momentos distintos: em primeiro lugar, buscou-se estudar a natureza do alvará requerido por Marbury e, em segundo lugar, a competência da Suprema Corte norte americana para a sua eventual expedição.

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Quanto à natureza do alvará de mandamus, a questão foi resolvida rapidamente, com base em precedentes. Após citar a doutrina de Blackstone, o Chief Justice Marshall prosseguiu em seu voto:

Lord Mansfield, na causa do rei contra Baker e outros (3 Repertório de Barrow, 1266), determina com nímia clareza os casos em que cabe este alvará.

“Todas as vezes, diz o emérito juiz, que houver direito a ocupar um ofício, a fazer um serviço ou a exercer uma isenção (mais especialmente se for objeto de interesse público ou fonte de proventos), e sempre que o titular for privado ou espoliado da posse desse direito, e se não deparar na lei nem um outro recurso específico, deverá este tribunal ampará-lo com um mandamus, mediante justas razões expressas no alvará, e por virtude de imperiosas exigências de alta política, para que se mantenham a paz, o ordem e um bom governo”. Na mesma causa diz ele: “Este alvará tem cabimento todas as vezes que a lei não houver instituído algum recurso específico, e seja mister um recurso a bem da administração da justiça e do funcionamento de um bom governo”.

Em aditamento às autoridades ora especialmente citadas, foram lidas em sessão do Tribunal muitas outras que mostram quanto a prática se há conformado com as doutrinas gerais ora referidas.

O alvará pretendido, se for outorgado, será dirigido a um funcionário do governo e lhe ordenará, segundo os termos de Blackstone, fazer uma coisa particular especificada no texto e relativa a seu ofício e dever, que o Tribunal já houvera julgado, ou ao menos presumido, ser conforme o direito e a justiça. Além disto quem requer o alvará há de ter, consoante Lord Mansfield, direito a exercer um ofício público e se lhe há de negar a posse desse direito.

Estes requisitos concorrem evidentemente no caso em questão (MARSHALL, 2004, p. 111).

Portanto, no entendimento de Marshall, secundado pelo Tribunal, a expedi-ção do alvará de mandamus na hipótese era cabível, restando analisar somente se competia à Suprema Corte expedi-lo5.

5 “Dá-se, em suma, um caso evidente de mandamus para a entrega da comissão ou da certidão de seu registro e só nos falta examinar se o tribunal tem competência para expedi-lo” (MARSHALL, 2004, p. 115).

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Conforme o voto de Marshall, a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciários dos Estados Unidos autorizava a Suprema Corte norte americana “a expedir alvarás de mandamus nos casos justificados pelos princípios e estilos legais, a quaisquer tribunais instituídos, ou pessoas que exerçam funções, sob a autoridade dos Estados Unidos” (MARSHALL, 2004, p. 115). E prosseguiu no voto:

O Secretário de Estado, sendo pessoa que exerce funções sob a autoridade dos Estados Unidos, está precisamente dentro da letra da lei; e, se porventura carecer este Tribunal de competência para expedir alvará de mandamus àquele funcionário, isso provirá somente da circunstância de ser a lei inconstitucional e, portanto, incapaz absolutamente de conferir a atribuição e de assinar os deveres que seus termos se propõem assinar e conferir (MARSHALL, 2004, p. 115).

Para a Suprema Corte, embora a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciários dos Estados Unidos (Paramount Law) a autorizasse a expedir o mandamus solicitado por Marbury, tal prescrição legal era inválida, pois colidia com norma de hierarquia superior. É que a Constituição era muito clara ao conferir ao Supremo Tribunal as suas atribuições:

Declara-se na distribuição do Poder Judiciário que o “Supremo Tribunal terá jurisdição originária em todas as causas concernentes a embaixadores, outros ministros públicos e cônsules, e nos litígios em que for parte um Estado. Em todas as outras causas o Supremo Tribunal terá jurisdição em grau de recurso” (MARSHALL, 2004, p. 116).

Assim, embora o pedido de Marbury estivesse escorado numa lei, ele não po-dia ser atendido, pois tal lei extrapolava o contido na Constituição. Com base nes- se raciocínio, a Suprema Corte norte americana declarou a inconstitucionali-dade do dispositivo que a mandava conceder o alvará requerido pelo Juiz de Paz nomeado pelo ex-Presidente John Adams.

Se o Congresso ficasse com liberdade de dar a este Tribunal jurisdição de segunda instância onde a Constituição dispõe que sua jurisdição será originária, e jurisdição originária onde a Constituição dispõe que será de segunda instância, a distinção de jurisdição feita na Constituição é forma vazia de substância (MARSHALL, 2004, p. 116).

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Conforme ponderado por Nagib Slaibi Filho, a declaração de incons-titucionalidade da chamada Paramount Law pela Suprema Corte estadunidense inaugurou um novo período dentro do cenário jurídico norte americano:

No caso Marbury vs. Madison o reconhecimento da incons-titucionalidade verteu sobre a validade da lei federal de organização judiciária de 1789, que concedia à Suprema Corte competência que não lhe fora deferida pela Constituição.

O que deu notoriedade a tal reconhecimento foi o sistema do stare decisis que, de um lado, tornou obrigatório o precedente para todos os órgãos judiciais e, de outro, permitiu que a mais Alta Corte criasse o precedente de carrear para si e para os demais tribunais a atribuição de expressar o significado da Lei Maior, através do seu poder de verificar a compatibilidade das leis em face da Constituição, ou dos atos dos demais ramos do Poder (Legislativo e Executivo) em face da Paramount Law (SLAIBI FILHO, 2002, p. 287).

Sem dúvida, a partir da decisão proferida pela Suprema Corte norte americana no caso Marbury vs. Madison, foi inaugurado o controle jurisdicional de constitucionalidade das leis, mais especificamente o controle difuso, até hoje utilizado pelos juízes e tribunais dos Estados Unidos.

3. o culto à decisão proferida pelo chief justice john marshall

Não é demasiado afirmar que a decisão proferida pelo Chief Justice John Marshall no caso Marbury vs. Madison é até hoje cultuada mundo afora pelos constitucionalistas. No Brasil, por exemplo, é raro encontrar uma obra de Direito Constitucional que não dedique ao menos algumas linhas ao célebre caso relatado no tópico anterior. Contudo, também é curioso perceber que muitos desses juristas, embora façam questão de enaltecer a jurisprudência da Suprema Corte norte americana, não se ocupem em esmiuçar o objeto daquele célebre processo.

Alexandre de Moraes, por exemplo, quando trata dos modelos clássicos de controle de constitucionalidade em seu Direito Constitucional, menciona o famoso julgado nos seguintes termos:

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O direito norte-americano – em 1803, no célebre caso Marbury v. Madison, relatado pelo Chief Justice da Corte Suprema John Marshall – afirmou a supremacia jurisdicional sobre todos os atos dos poderes constituídos, inclusive sobre o Congresso dos Estados Unidos da América, permitindo-se ao Poder Judiciário, mediante casos concretos postos em julgamento, interpretar a Carta Magna, adequando e compatibilizando os demais atos normativos com suas superiores normas (MORAES, 2006, p. 640).

Embora tudo quanto dito pelo constitucionalista brasileiro em sua principal obra seja verdade, não há ali comentários sobre o mérito da causa julgada e nem menção aos propósitos implícitos que motivaram a Suprema Corte de Justiça estadunidense a desencadear o que viria a ficar posteriormente conhecido como controle difuso de constitucionalidade.

Contudo, em obra posterior, denominada Jurisdição Constitucional e Tribunais Constitucionais, observa-se que o mesmo autor aprofundou o tema sob o ponto de vista histórico, relatando o contexto vivenciado à época pelos atores envolvidos na celeuma. Contudo, deixou de analisar em que medida tal contexto influenciou politicamente na tomada de decisões pela Suprema Corte norte americana, como se ela estivesse escorada somente na pureza do saber jurídico teórico.

Marshall, de forma hábil, tratou o caso pelo ângulo da competência constitucional da Suprema Corte Americana, analisando a incompatibilidade da Lei Judiciária de 1789, que autorizava o Tribunal a expedir mandados para remediar erros ilegais do Executivo, e a própria Constituição, que em seu artigo III, seção 2, disciplinava a competência originária da Corte.

Assim, apesar de a Corte ter entendido ser ilegal a conduta do Secretário de Estado Madison, por recusar-se a expedir a comissão legalmente devida a Marbury proveniente da ação do antigo presidente Adams, com aprovação da maioria do Senado, entendeu, preliminar e prejudicialmente, que carecia de competência para emitir o mandado requerido, uma vez que as competências da Suprema Corte estariam taxativamente previstas pela Constituição, não podendo a Lei Judiciária de 1789 ampliá-las (MORAES, 2013, p. 79).

O jurista mineiro Kildare Gonçalves Carvalho também exalta a decisão pro-ferida pela Suprema Corte dos Estados Unidos, mas sem adentrar nos meandros das premissas utilizadas pelos seus julgadores:

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No sistema norte-americano, a Constituição escrita e rígida posiciona-se com superioridade diante das demais normas positi-vas. Assim, ou a Constituição anula os atos legislativos contrários a ela ou as leis, podendo modificá-la, tornam incontrolável o Poder Legislativo. Cabe ao Judiciário a competência para deixar de aplicar as normas inconstitucionais. Os fundamentos do controle de constitucionalidade, por órgãos judiciários, foram lançados pelo Chief Justice John Marshall, em 1803, no julgamento do caso Marbury v. Madison. Nesse julgamento ficou expresso que uma lei do Congresso, quando contrária à Constituição, carece de validade (CARVALHO, 2008, p. 349).

A exposição acerca das consequências provocadas pelo julgamento de Marbury vs. Madison pela Suprema Corte norte americana é escorreita. Porém, a omissão relativa ao pano de fundo envolvendo os confrontos entre federalistas e republicados, ou mesmo a repercussão política que uma decisão completamente favorável ou desfavorável a William Marbury poderia causar no contexto norte americano, torna incompleta a análise. Em outras palavras: do texto transcrito, o leitor fica com a equivocada impressão de que a tese defendida por Marshall e seus colegas na sessão de julgamento ocorrida em 1803 estava livre de influências políticas, sendo produto de uma técnica jurídica acurada e independente do contexto histórico que a rodeava, o que, como será visto na sequência, não espelha a realidade.

Por sua vez, o comentário de Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco é o seguinte:

O controle de constitucionalidade difuso ou americano assegura a qualquer órgão judicial incumbido de aplicar a lei a um caso concreto o poder-dever de afastar a sua aplicação se a considerar incompatível com a ordem constitucional.

Esse modelo de controle de constitucionalidade desenvolve-se a partir da discussão encerrada na Suprema Corte americana, especialmente no caso Marbury v. Madison, de 1803. A ruptura que a judicial review americana consagra com a tradição inglesa a respeito da soberania do Parlamento vai provocar uma mudança de paradigmas. A simplicidade da forma – reconhecimento da competência para aferir a constitucionalidade ao juiz da causa – vai ser determinante para a sua adoção em diversos países do mundo (MENDES, COELHO e BRANCO, 2007, p. 955).

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O destaque dado pelos três autores à coragem da Suprema Corte em romper com a soberania do Parlamento dos Estados Unidos é de fundamental importância. Realmente, declarar a inconstitucionalidade de um ato produzido dentro do Poder Legislativo significou um passo enorme em relação à autonomia do Poder Judiciário no que diz respeito ao controle de constitucionalidade. Ocorre que, como será visto no tópico seguinte, isso tudo não foi feito com base em premissas puramente jurídicas ou em nome do “bom Direito”. O que a Suprema Corte dos Estados Unidos fez foi utilizar o controle de constitucionalidade como um trunfo político, capaz de colocá-la numa estratégica neutralidade na fervorosa disputa entre federalistas e republicanos.

Mas é óbvio que a decisão – além de politicamente acurada, como se verá – foi também corajosa e pioneira6, na medida em que a Constituição dos Estados Unidos não previa expressamente nenhum método de defesa da Constituição, conforme destaca o jurista Célio Armando Janczeski:

Em decisão célebre, John Marshall no caso Marbury vs. Madison decidiu pela primazia das normas constitucionais federais sobre a lei ordinária. A Constituição, segundo a decisão, prevalece sobre a lei que com ela for incompatível, sendo vedado ao poder legislativo alterar a Constituição através de lei ordinária. Ato legislativo contrário à Constituição não é lei. Foi a primeira decisão na qual ficou registrado o poder da Suprema Corte em exercer o controle de constitucionalidade, repudiando leis que se manifestassem

6 Não se discute o pioneirismo da decisão proferida pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Contudo, enquanto tese jurídica, o pensamento externado no voto do Chief Justice John Marshall não era inédito. Conforme salientado por Marianna Montebello Willeman, “a elaboração teórica subjacente à formulação de Marshall a respeito do judicial review encontra-se integralmente delineada no Federalista n. 78, em artigo de autoria de Alexander Hamilton. E, em verdade, não apenas Hamilton, mas vários integrantes da chamada ‘geração fundadora’ dos Estados Unidos preocuparam-se com o tema e a ele dedicaram seu pensamento, com especial destaque para Thomas Jefferson e James Madison” (WILLEMAN, 2013, 133). A propósito, transcreve-se excerto do texto de Hamilton: “A independência rigorosa dos tribunais de justiça é particularmente essencial em uma Constituição limitada; quero dizer, em uma Constituição que limita a alguns respeitos a autoridade legislativa, proibindo-lhe, por exemplo, fazer passar bills of attainder e decretos de proscrição, leis retroativas ou coisas semelhantes. Restrições desta ordem não podem ser mantidas na prática, senão por meio dos tribunais de justiça, cujo dever é declarar nulos todos os atos manifestamente contrários aos termos da Constituição. Sem isso, ficariam absolutamente sem efeito quaisquer reservas de direitos e privilégios particulares” (HAMILTON, 2003, p. 459)

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contrárias à Lei Maior, mesmo sem existir, de modo explícito, previsão expressa na própria Constituição a respeito deste poder (JANCZESKI, 2009, p. 68).

De todo modo, para entender o verdadeiro sentido e profundidade da decisão proferida em Marbury vs. Madison – e, ademais, as consequências políticas que ela provocou na relação entre os Poderes instituídos no Estado constitucional – talvez seja necessário recorrer inicialmente a autores que não sejam do Direito; autores que, deixando um pouco de lado a habilidade jurídica de John Marshall, voltem suas análises para o lado histórico da questão; principalmente as disputas políticas entre federalistas e republicanos, representados, no caso, pelo ex-Presidente John Adams e pelo então Presidente Thomas Jefferson.

4. o contexto histórico e a política por trás de uma das mais famosas decisões judiciais de todos os tempos

Antes de ser nomeado Chief Justice, John Marshall participou ativamente da vida política norte americana, que passava, no final do século XVIII, por um período bastante controvertido. Em meio ao conflito entre federalistas e republicanos – que apoiavam respectivamente Inglaterra e França na guerra entre esses dois países – o Presidente John Adams decidiu encaminhar uma missão diplomática à França. De acordo com Peter Irons, o Presidente Adams “escolheu dois antigos delegados antigos da Convenção Constitucional de 1787, Elbridge Gerry e Charles Cotesworth Pinckney, além de um advogado mais jovem da Virginia, John Marshall” (IRONS, 2006, p. 98).7

Conforme relata Irons, no seu retorno aos Estados Unidos Marshall recebeu algumas honrarias:

Os diplomatas neófitos chegaram a Paris em outubro de 1797, com a expectativa de se reunirem com o chanceler estrangeiro Talleyrand. Mas o imperioso Talleyrand se recusou a encontrar

7 Tradução livre de: “chose two former delegates to the Constitutional Convention of 1787, Elbridge Gerry and Charles Cotesworth Pinckney, and a younger Virginia lawyer, John Marshall”.

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os norte-americanos por vários meses, finalmente enviando três homens – que jamais revelaram seus nomes – para o hotel deles depois de escurecer. Os misteriosos homens franceses demandaram um pedido de desculpas dos Estados Unidos pelos delitos passados (não especificados), um empréstimo de $10 milhões para a França, e $1 milhão de suborno para Talleyrand e seus amigos. Depois de meses discutindo com os ainda-anônimos homens franceses, a delegação norte-americana, indignada, recusou-se a aceitar essas condições para o acordo. Marshall informou todo o ocorrido para Adams em março de 1798, e o presidente prontamente enviou a carta dele ao Congresso, rotulando os extorsionários como “Messr. X, Y, e Z”. Quando Marshall retornou para a Philadelphia (ainda capital da nação norte-americana) de Paris, ele teve uma recepção de herói e encontrou o país inflamado sobre o que todos estavam chamando de “o caso XYZ” (IRONS, 2006, p. 98) 8.

Contudo, a sua posterior nomeação à Suprema Corte norte americana não foi das mais tranquilas. Antes de indicar Marshall, o Presidente Adams se defrontou com algumas dúvidas, conforme relata Irons:

Marshall não chegou à Suprema Corte numa onda de aclamações, como a sua posterior reputação poderia sugerir. Ele não estava, de fato, entre os candidatos que Adams considerou primeiramente para o cargo. Adams se voltou para Marshall, que então servia como seu secretário de estado, em grande medida para escapar do fogo cruzado das batalhas políticas e pessoais dentro das fileiras Federalistas. A renúncia do Chief Justice Oliver Ellsworth em outubro de 1800, pouco antes de Adams perder a presidência para Jefferson, ofereceu a chance de colocar o Tribunal sob a tutela federalista nos anos seguintes. Mas os mais proeminentes

8 Tradução livre de: “The neophyte diplomats arrived in Paris in October 1797, expecting to meet with Foreign Minister Talleyrand. But the imperious Talleyrand refused to meet with the Americans for several months, finally sending three men – who would not reveal their names – to their hotel after dark. The mysterious Frenchmen demanded an American apology for past (and unspecified) misdeeds, a $10 million loan to France, and a $1 million bribe to Talleyrand and his friends. After months of haggling with the still-anonymous Frenchmen, the American delegation indignantly refused to accept these conditions for a treaty. Marshall reported these events to Adams in March 1798, and the president promptly sent his letter to Congress, labeling Talleyrand’s extortioners as ‘Messr. X, Y, and Z’. When Marshall returned to Philadelphia (still the nation’s capital) from Paris, he received a hero’s welcome and found the country inflamed over what everyone called the ‘XYZ affair’”.

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candidatos para o cargo foram alijados pela idade, enfermidade, ou feridas políticas. O primeiro problema enfrentado por Adams resultou das maquinações de Alexander Hamilton e seus aliados. As objeções de Hamilton às políticas do presidente, tanto a exterior quanto a doméstica, levaram ele a publicar um panfleto que circulou amplamente, “Sobre a Conduta Pública e o Caráter de John Adams”, arguindo que Adams não servia para ser presidente. Adams era notoriamente thin-skinned, e se vingou demitindo três membros do gabinete que ficaram ao lado de Hamilton (IRONS, 2006, p. 101).9

Mas o Chief Justice Marshall sempre foi muito competente e logo conquistou a simpatia e, principalmente, a confiança do Presidente Adams. Tanto que, no último mês da administração de Adams, Marshall acumulou os cargos de Juiz da Suprema Corte e de Secretário de Estado:

Na sequência de seu retorno triunfante da França após o caso XYZ, Marshall voltou sua visão para as eleições nacionais e ganhou a eleição para o Congresso em 1798. O presidente Adams o escolheu como secretário de estado em 1800, e durante o último mês da administração de Adams – depois de sua confirmação como Chief Justice – Marshall serviu em ambos os cargos até Thomas Jefferson se tornar presidente em 4 de março de 1801 (IRONS, 2006, p. 103).10

9 Tradução livre de: “Marshall did not ride to the Supreme Court on a wave of acclamation, as his later reputation might suggest. He was not, in fact, among the candidates that Adams first considered for the post. Adams turned to Marshall, then serving as his secretary of state, largely to escape the crossfire of political and personal battles within the Federalist ranks. The resignation of Chief Justice Oliver Ellsworth in October 1800, just before Adams lost his office to Jefferson, offered a chance to place the Court under Federalist tutelage for years to come. But the most prominent candidates for the post were disabled by age, infirmity, or political wounds. The first problem Adams confronted stemmed from the machinations of Alexander Hamilton and his allies. Hamilton’s objections to the president’s policies, both foreign and domestic, led him to publish a widely circulated pamphlet, ‘Concerning the Public Conduct and Character of John Adams’, arguing that Adams was unfit to be president. Adams was notoriously thin-skinned, and took his revenge by dismissing three cabinet members who sided with Hamilton”.

10 Tradução livre de: “Following his triunphant return from France after the XYZ affair, Marshall turned his sights to national Office and won ellection to Congress in 1798. President Adams chose him as secretary of state in 1800, and during the last month of the Adams administration – after his confirmation as Chief Justice – Marshall served in both posts until Thomas Jefferson became president on March 4, 1801”.

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Na condição de Secretário de Estado, o Chief Justice John Marshall viu os federalistas criarem o Judiciary Act, assinado pelo Presidente John Adams em 1801. Era uma lei que alterava a composição da Suprema Corte dos Estados Unidos e criava alguns novos cargos de juízes.

A previsão mais notável da lei era a redução de seis para cinco membros da Suprema Corte, após a próxima abertura de vaga. Muitas pessoas esperavam que o idoso e frágil Juiz Cushing se aposentasse logo, e os Federalistas queriam impedir Jefferson de escolher um Republicano para substituí-lo. Cushing, embora visivelmente senil, dependia do seu salário de juiz e manquitolou pela Corte até 1810.

O Judiciary Act também criou vinte e seis novos postos no distrito federal e nos tribunais de recursos, para aliviar a Suprema Corte do detestável fardo proveniente de demandas menores. Com a mudança da capital para o Distrito de Columbia, o Congresso estabeleceu quarenta e cinco postos de “juiz de paz”, cargo judicial de menor estatura que fornecia um pequeno salário e taxas para analisar documentos e cuidar de pequenas causas. Washington ainda era uma cidade pequena em 1801 e quase não precisava de quarenta e cinco novos juízes. Mas, conforme um documento Republicano anotou com precisão, o Congresso havia passado “uma lei concedendo lugares e pensões para os correligionários do partido”. O Presidente Adams e o Congresso passaram considerável tempo escolhendo e confirmado os novos juízes do distrito e dos tribunais de recursos nas semanas anteriores à assunção de Jefferson à presidência. Diante de um encerramento de prazo à meia-noite do dia 3 de março, o Congresso passou a noite reunido e correu atrás da validação do Secretário de Estado Marshall, que assinou os documentos e empilhou-os em sua mesa (IRONS, 2006, p. 104).11

11 Tradução livre de: “The law’s most notable provision would reduce the Supreme Court from six to five members after the next vacancy. Many people expected the elderly and frail Justice Cushing to retire soon, and the Federalists wanted to prevent Jefferson from choosing a Republican to replace him. Cushing, although noticeably senile, depended on his judicial salary and hobbled to the Court until 1810. The Judiciary Act also created twenty-six new posts in the federal district and circuit courts, to relieve the Supreme Court of the detested burden of circuit-riding. With the nation’s capital moved to the District of Columbia, Congress established forty-five positions as ‘justice of the peace’, a minor judicial office that provided a small salary and fees for notarizing papers and handling small claims. Washington

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O curioso é justamente que, no cargo de Secretário de Estado, John Marshall estava responsável por dar aos juízes de paz nomeados pelo Presidente Adams as suas comissões. Entretanto, por conta do tempo exíguo, não conseguiu cumprir a contento as determinações de seu superior hierárquico:

Na correria de última hora, no entanto, Marshall deixou de entre- gar as comissões para os “juízes da meia noite”, como os republicanos ironicamente os chamavam. Uma narrativa – provavelmente apócrifa – retratou o novo procurador-geral, Levi Lincoln, adentrando dramaticamente no escritório de Marshall com o relógio de Jefferson na mão. Apontando para o relógio, Lincoln informou Marshall da chegada da meia noite e o conduziu à saída do escritório. Humilhado por essa ordem, Marshall aban-donou sua caneta e partiu. Embora não se saiba ao certo se esse fato realmente ocorreu, sabe-se que Marshall assinou as comissões judiciais até, pelo menos, nove horas daquela noite. Pouco depois de Jefferson firmar seu juramento como presidente no dia 4 de março, 1801, James Madison assumiu o cargo de Marshall como secretário de estado e sentou-se atrás da mesa em que descansavam as comissões não entregues (IRONS, 2006, p. 104).12

Foi por conta do “esquecimento” de Marshall que Marbury ingressou na Suprema Corte, em busca de um mandamus que garantisse a sua assunção ao cargo que lhe era de direito. Ou seja, o Chief Justice que julgaria o caso Marbury

was still a small city in 1801 and hardly needed forty-five new judges. But as one Republican paper accurately noted, Congress had passed ‘a bill providing sinecure places and pensions for thoroughgoing Federal partisans’. President Adams and Congress spent considerable time picking and confirming the new district and circuit judges in the weeks before Jefferson took office. Faced with a deadline of midnight on March 3, Congress met into the night and rushed through confirmations to Secretary of State Marshall, who signed the parchment documents and stacked them on his desk”.

12 Tradução livre de: “In the last-minute rush, however, Marshall neglected to have the commissions delivered to the ‘midnight judges’, as Republicans derisively called them. One account – probably apocryphal – had the incoming attorney general, Levi Lincoln, dramatically striding into Marshall’s office with Jefferson’s watch in his hand. Pointing to the timepiece, Lincoln informed Marshall that midnight had arrived and directed him to leave the office. Humiliated by this order, Marshall laid down his pen and departed. Whether or not this actually happened, Marshall did keep signing judicial commissions until at least nine o’clock that night. Shortly after Jefferson took his oath as president on March 4, 1801, James Madison took Marshall’s office as secretary of state and sat behind the desk on which the undelivered commissions rested”.

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vs. Madison era o autor indireto da controvérsia, pois se ele tivesse cumprido os prazos estabelecidos e entregado a comissão aos juízes nomeados, Marbury não teria recorrido ao Poder Judiciário.

Esse foi o curioso início do famoso caso Marbury v. Madison, que começou com o descuido de Marshall, em 1801, como secretário de estado e culminou em 1803 com sua contundente afirmação no controle de constitucionalidade como Chief Justice. Os dois anos que separaram os dois eventos foram marcados por insistentes esforços republicanos para enfraquecer os tribunais federais, que permaneceram como redutos Federalistas. “Os Federalistas se infiltraram no Judiciário como uma fortaleza”, reclamou Jefferson depois tomar posse na presidência, “e todos os trabalhos com o timbre do republicanismo estão sendo abatidos e apagados”. Ele fez Madison entregar apenas vinte e cinco das quarenta e duas comissões deixadas por Marshall em sua mesa, talvez para cortar despesas salariais, até mesmo a pequena quantidade destinada aos postos menores. Dos dezessete juízes menosprezados, apenas quatro – incluindo William Marbury – levaram suas reivindicações ao tribunal, entrando com um processo na Suprema Corte, pleiteando um “writ of mandamus” contra o Secretário Madison (IRONS, 2006, p. 105).13

É claro que a decisão proferida pela Suprema Corte norte americana foi, acima de tudo, política. Aliás, a própria participação de Marshall no processo é questionável, na medida em que ele tinha interesse na causa – senão diretamente como autor ou réu, ao menos como “autor da omissão” que deu origem ao processo que então devia julgar.

Nessa linha de raciocínio, Ronaldo Poletti pondera que o interesse pessoal de Marshall na causa posta em julgamento recomendaria, se não na época ao menos hoje em dia, a sua declaração de impedimento:

13 Tradução livre de: “This was the odd beginning of the famous case of Marbury v. Madison, which started with Marshall’s oversight in 1801 as secretary of state and culminated in 1803 with his forceful assertion of judicial review as Chief Justice. The two years in between were marked by Republican efforts to hobble the federal courts that remained as Federalist redoubts. ‘The Federalists have retired into the judiciary as a stronghold’, Jefferson complained after taking office, ‘and from that battery all the works if republicanism are to be beaten down and erased’. He directed Madison to deliver only twenty-five of the forty-two commissions Marshall left on his desk, perhaps to cut expenses for judicial salaries, even the small amount for these minor posts. Of the seventeen slighted judges, only four – including William Marbury – took their claims to court, filing suit in the Supreme Court and asking for a ‘writ of mandamus’ against Secretary Madison”.

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A situação política que emoldura o caso e a lendária decisão, pela qual foram estabelecidos, concretamente, os princípios do controle da constitucionalidade das leis, foi deveras singular, e, talvez não permitisse, ocorrendo hoje, o mesmo desdobramento ensejado pelo aresto célebre do Marshall. A rigor, ele tinha interesse pessoal direto no caso e, hoje em dia, deveria dar-se por impedido, sob pena de argüir-se a sua suspeição (POLETTI, 2001, p. 31).

Mais do que simples interesse pessoal na causa – dada a ligação política de Marshall com os federalistas – o pano de fundo de Marbury vs. Madison revela uma completa confusão entre as partes do processo e o mentor intelectual da decisão proferida pela Suprema Corte. Vale dizer: o controle jurisdicional de constitucionalidade foi criado pelo Magistrado que, na condição de Secretário de Estado, deu azo à celeuma jurídica que posteriormente se viu na obrigação de julgar.

5. a estratégica declaração de inconstituciona-lidade proferida pela suprema corte dos estados unidos como subterfúgio à resolução do caso marbury vs. madison

Como já referido, a decisão proferida pela Suprema Corte norte americana em Marbury vs. Madison foi inovadora e juridicamente perfeita. Contudo, quan-do se conhece a história por trás do julgamento, torna-se possível a compreensão de que a estratégica declaração de inconstitucionalidade ali empreendida foi utilizada não como técnica jurídica, mas, sim, como subterfúgio à resolução da quaestio. Em outras palavras: embora o Chief Justice Marshall, sendo ele próprio um federalista, tivesse interesse em ver cumprida a ordem presidencial de nomeação de Marbury, sob o ponto de vista da Suprema Corte dos Estados Unidos não havia interesse político em fazê-lo às custas de seu enfraquecimento enquanto órgão de cúpula do Poder Judiciário. É que, tivesse a Corte decidido a favor ou contra Marbury, isso desencadearia uma série de consequências políticas14, que certamente não seriam interessantes para o Poder Judiciário estadunidense.

14 A título de exemplo, é possível conjecturar que, se a Suprema Corte norte americana tivesse pura e simplesmente deferido o pedido de Marbury, tal decisão judicial provavelmente

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Assim é que declarar a inconstitucionalidade da lei que mandava a Suprema Corte expedir o writ of mandamus requerido por William Marbury foi um golpe de mestre por duas razões: em primeiro lugar, por livrar o Tribunal de decidir a favor dos federalistas ou dos republicanos; e, em segundo lugar, por fortalecer politicamente o Poder Judiciário, ao menos discursivamente, já que fixou a ideia de que a palavra final sobre o sentido da própria Constituição caiu nas mãos Suprema Corte.

Nesse sentido, o comentário de Peter Irons é preciso:

A opinião de Marshall em Marbury é mais bem compreendida não como uma opinião legal, mas como um ato político. Na condição de Federalista comprometido, ele sabia que sua visão nacionalista somente poderia sobreviver ao regime “Jacobino” de Jefferson se a Suprema Corte utilizasse o poder inerente ao controle de constitucionalidade para manter o presidente e o congresso em xeque. Marshall ganhou o seu primeiro duelo contra Jefferson no caso Marbury. Não houve, de fato, outra troca de tiros em público antes da morte de Marshall em 1835 (IRONS, 2006, p. 107).15

O ácido comentário do jurista baiano Dirley da Cunha Júnior talvez resuma, também de forma bastante precisa, toda a política por trás de uma das mais famosas decisões judiciais de todos os tempos:

[...] lançando os olhos para os aspectos fáticos que engendraram a famosa decisão, vamos perceber que tudo não passou de um indecente caso de politicagem. Isso porque, Marshall, além de Chief Justice, era Secretário de Estado do então Presidente Federalista John Adams, e nessa condição auxiliou o Presidente

seria descumprida pelo Poder Executivo então liderado pelo Presidente Thomas Jefferson. Além disso, outra consequência plausível de tal decisão judicial seria o questionamento da própria participação do Chief Justice Marshall no processo. É que, sendo ele, como visto, parte interessada na demanda, tendo inclusive dado causa à controvérsia, o seu envolvimento certamente enfraqueceria o posicionamento adotado pelo órgão julgador.

15 Tradução livre de: “Marshall’s opinion in Marbury is best understood not as a legal opinion but as a political act. As a committed Federalist, he knew that his nationalist views could only survive Jefferson’s ‘Jacobin’ regime if the Supreme Court employed the power of judicial review to keep the president and Congress in check. Marshall won his first duel with Jefferson in the Marbury case. There were, in fact, no more shots fired in public before Marshall died in 1835”.

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dos EUA, em fim de mandato, a realizar inúmeras nomeações em favor dos correligionários (os conhecidos “testamentos políticos”), que foram feitas no último dia de seu governo. Todavia, Marshall, substituído por Madison na Secretaria de Estado, não teve tempo de fazer chegar às mãos de todos os interessados os atos de nomeação, razão pela qual estes foram sustados por ordem do novo Presidente dos Estados Unidos, o então Republicano Thomas Jefferson. Entre os prejudicados pela sustação, figurava William Marbury, nomeado juiz de paz no Condado de Washington, Distrito de Columbia, que moveu uma ação judicial (writ of mandamus) junto à Corte Suprema objetivando obrigar Madison a empossá-lo. Nesse caso – conhecido por Marbury v. Madison – o Justice Marshall não só tomou parte no julgamento, mas também liderou a opinião de seus pares, o que caracterizou uma situação sui generis, dado o seu manifesto interesse pessoal e direto no caso em apreço. Acusado pela opinião pública e pela ameaça de impeachment dos juízes da Suprema Corte e do não cumprimento da ordem, caso deferida, Marshall valeu-se de uma habilidosa estratégia. Embora reconhecendo o direito de Marbury, denegou a ordem requestada em razão de uma preliminar de incompetência da Corte. Para o reconhecimento dessa preliminar, Marshall desenvolveu sua doutrina da judicial review of legislation, reconhecendo a inconstitucionalidade de dispositivo de lei que atribuía competência à Suprema Corte para julgar originariamente ações daquela espécie (a Corte declarou a inconstitucionalidade do artigo 13, da lei de 1789, no qual se basearam os recorrentes). Considerou-se que a competência da Supreme Court encontrava-se taxativamente enumerada na Constituição, sem qualquer possibilidade de ampliação legal (CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 266-267).

Marshall sabia que uma decisão favorável a qualquer das partes colocaria a Suprema Corte em xeque, uma vez que chamaria a atenção para a disputa política entre federalistas e republicanos, relegando a fundamentação jurídica constante no decisum a segundo plano. Reconhecendo, então, a necessidade de deixar a sua condição de federalista de lado, e percebendo a oportunidade de empoderar o Judiciário em relação aos outros dois poderes estatais, o Tribunal deu a cartada que lhe assegurou credibilidade.

A conclusão de Oswaldo Palu é irretocável:

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Enfrentava-se uma situação dificílima. Indeferir simplesmente o pedido seria, conforme observou Crosskey, capitulação demasiadamente visível; afirmar apenas que a lei judiciária somente autorizava o mandamus pela Corte Suprema em grau de apelação era resultado insatisfatório. A Corte, de modo hábil, procurou dissimular o recuo inevitável, com um ato de afirmação contra o partido no poder. Invertendo a ordem do exame das questões preliminares, decidiu que Madison, na realidade, agira ilegalmente ao negar a posse a Marbury, e de acordo com os princípios aplicáveis da common law, havia remédio para tal caso, o mandamus, pelo qual Madison poderia ser compelido a dar posse a Marbury. Não cabia, porém, o writ, porque pedido diretamente à Corte Suprema, cuja competência originária era estritamente definida na Constituição e não poderia ter sido dilatada pela Lei Judiciária de 1789. Era, assim, inconstitucional e nulo o artigo 13 dessa lei, que atribuíra competência originária à Suprema Corte para expedir ordens de mandamus (Lêda Boechat Rodrigues, A corte suprema e o direito constitucional americano, p. 21). Evitou a Suprema Corte o confronto com o Executivo, e ao mesmo tempo afirmou a possibilidade de o Poder Judiciário anular leis votadas pelo Congresso (PALU, 2001, p. 115).

Em meio ao fogo cruzado, a Suprema Corte norte americana – e o Poder Judiciário como um todo – saiu fortalecida. Embora a celeuma envolvendo Marbury e Madison fosse, acima de tudo, mais uma movimentação dentro da disputa política entre federalistas e republicanos, Marshall conseguiu deslocar o Tribunal por ele presidido para o papel de protagonista no embate, pois conciliou o direito de Marbury com a manutenção da decisão de Madison, fazendo prevalecer, no fim das contas, a superioridade do Poder Judiciário enquanto guardião da Constituição.

Dimitri Dimoulis e Soraya Lunardi identificaram as duas vantagens políticas na decisão proferida pela Suprema Corte norte americana no caso Marbury vs. Madison:

Primeiro, a Suprema Corte evitava o conflito com o governo federal, aceitando a decisão de não entregar o diploma de investidura a Marbury.

Segundo, a Suprema Corte afirmava seu poder perante o Le-gislativo e o Executivo, formulando a doutrina do controle de constitucionalidade de leis federais.

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Dessa maneira, a Suprema Corte, sem entrar em conflito imediato com os outros poderes e sem sofrer uma derrota, criou uma poderosa “arma” para futuros conflitos com os demais poderes. Como observou Beard em 1912, havia caminhos para evitar a declaração de inconstitucionalidade da lei, mas “a chance de firmar a doutrina era muito boa para ser desperdiçada – e Marshall era suficientemente astuto para aproveitar” (DIMOULIS e LUNARDI, 2013, p. 41).

Como se observa, o grande mérito do Chief Justice Marshall está no fato de, ao se encontrar de mãos atadas, ter se utilizado de um pensamento jurídico refinado, capaz de encontrar uma solução jurídica para resolver a questão política posta no processo. Tivesse ele decidido a favor ou contra Marbury, aí sim entraria na história como um politiqueiro, enfraquecendo, sobremaneira, o Poder Judiciário dos Estados Unidos no contexto da independência e harmonia entre os poderes.

O ponto que não pode ser ignorado é o seguinte: além de oportuno sob o pon-to de vista da política partidária então vigente nos Estados Unidos da América, o controle jurisdicional de constitucionalidade já nasce (propositalmente) como um fator de desequilíbrio entre os poderes; e a consolidação do Judiciário enquanto guardião da Constituição, mediante a utilização de argumentos puramente jurídicos, o colocou, já naquela primeira oportunidade, em posição privilegiada em relação aos Poderes Executivo e Legislativo.

Eis as conclusões de Dimoulis e Lunardi:

A observação da estratégia de Marshall permite formular duas conclusões.

a) Politicidade do controle de constitucionalidade. A decisão da Su-prema Corte foi resultado de um cálculo político e não da mera aplicação de normas vigentes. Essa é uma característica que sempre se encontra nas importantes decisões relacionadas ao controle de constitucionalidade. Considerações políticas, relacionadas às consequências da decisão, sempre influenciam os juízes.

[...]

b) Natureza polêmica das decisões sobre a constitucionalidade. Mar-shall afirma repetidamente que sua decisão se fundamenta de maneira clara e evidente. Mas isso é um artifício retórico, muito comum nas peças jurídicas. Na verdade, a decisão se baseia em

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opções interpretativas discutíveis, como mostrou o debate posterior, no qual a decisão Marbury vs. Madison enfrentou fortes críticas que invocam o mesmo texto constitucional para chegar a conclusões opostos. Isso confirma a regra que as questões constitucionais são sempre controvertidas (DIMOULIS e LUNARDI, 2013, p. 42).

Fica claro, então, que o controle jurisdicional de constitucionalidade de nor-mas não foi implementado propriamente para garantir a chamada supremacia da Constituição, mas, sim, para projetar, já naquele momento histórico, a supremacia do Poder Judiciário em relação aos outros dois poderes instituídos. Não se está aqui a defender que toda a teoria jurídica desenvolvida para subsidiar o controle de constitucionalidade, antes e depois da decisão proferida no caso Marbury vs. Madison, seja inválida. Trata-se, na verdade, de perceber que, sem as manobras políticas perpetradas no caso, que recomendavam a não resolução da celeuma entre federalistas e republicanos, o controle de constitucionalidade sequer precisaria existir.

Em outras palavras: foi percebendo a possibilidade de decidir a celeuma jurídica envolvendo Marbury e Madison sem adentrar no mérito das brigas políticas entre federalistas e republicanos, e ainda vislumbrando a oportunidade definitiva de consolidar a Suprema Corte norte americana como protagonista no cenário político de tensão entre os três poderes instituídos, que o Chief Justice John Marshall desenvolveu a refinada teoria acerca do controle jurisdicional de constitucionalidade. Sem esse cenário político por trás de Marbury vs. Madison, é possível que a causa tivesse sido resolvida de outra forma.

6. conclusões

Quando John Marshall sentou na cadeira destinada ao Chief Justice da Suprema Corte dos Estados Unidos talvez ele não esperasse que quem estivesse em julgamento no célebre caso Marbury vs. Madison fosse ele próprio – Secretário de Estado omisso que deixou de dar a respectiva comissão aos Juízes de Paz nomeados pelo então Presidente federalista John Adams.

Por outro lado, o que talvez todos os outros expectadores da causa não esperassem fosse justamente a decisão por ele proferida. Federalistas, na maioria seus convivas, pediam um julgamento favorável a Marbury; republicanos, por

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outro lado, sem nenhuma esperança de vitória, tinham tanta certeza da derrota que, sequer, mandaram um advogado para representar Madison (IRONS, 2006, p. 105).

Mas, pressionado pela opinião pública e receoso em relação ao futuro da Su- prema Corte, Marshall estratégica e convenientemente criou o controle de cons- titucionalidade das normas, sem desagradar a federalistas e republicanos, mantendo-se politicamente estável no seu honorável cargo de Chief Justice. Isso, é lógico, não muda o fato de a sua decisão ter sido politiqueira e, principalmente, de que a decisão mais cara ao Direito Constitucional moderno seja, realmente, um arranjo político tendente a colocar panos quentes sobre uma controvérsia histórica entre federalistas e republicanos.

Como consequência, foi criado o controle jurisdicional de constitucionali-dade, o chamado judicial review, que colocou o Poder Judiciário em posição de destaque na ininterrupta disputa de poder entre Executivo, Legislativo e Judiciário. É curioso pensar que a principal preocupação do Chief Justice Marshall fosse encontrar uma saída jurídica que não prejudicasse a autonomia e independência da Suprema Corte norte americana, mas que, no final das contas, a solução por ele encontrada – a criação do controle de constitucionalidade – acabou por colocar o Poder Judiciário em posição hegemônica.

Evidente que essa hegemonia cobra seus custos: já na época (e ainda hoje) todo controle de constitucionalidade realizado pelo Poder Judiciário tem por trás um carga política em relação à qual o Direito posto nem sempre dá conta de administrar. Daí a propagação da manipulação de questões importantes – que em regra deveriam ser decididas no Parlamento – por meio de discursos jurídicos vazios, da invenção de princípios sem qualquer conteúdo autônomo16, da ponderação de valores supostamente conflitantes por meio da “fórmula

16 Conforme adverte Carlos Ari Sundfeld, “Vive-se hoje um ambiente de ‘geleia geral’ no direito público brasileiro, em que princípios vagos podem justificar qualquer decisão [...]. O profissional do Direito, ao construir soluções para os casos, tem um dever analítico. Não bastam boas intenções, não basta intuição, não basta invocar e elogiar princípios; é preciso respeitar o espaço de cada instituição, comparar normas e opções, estudar causas e consequências, ponderar as vantagens e desvantagens. Do contrário viveremos no mundo da arbitrariedade, não do Direito” (SUNDFELD, 2012, p. 60-61).

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mágica” da proporcionalidade17, etc. Tudo isso em prol da manutenção do poder conquistado de forma atravessada no precedente tratado neste breve estudo.

7. referências

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CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2008.

DIMOULIS, Dimitri e LUNARDI, Soraya. Curso de Processo Constitucional: Controle de constitucionalidade e remédios constitucionais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013.

HAMILTON, Alexander. O Federalista. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003.

IRONS, Peter. A People’s History of the Supreme Court. London: Penguin Books, 2006.

JANCZESKI, Célio Armando. O Controle de Constitucionalidade das Leis Municipais. Florianópolis: Conceito, 2009.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006.

______. Jurisdição Constitucional e Tribunais Constitucionais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2013.

17 Ao abordar a obra de Robert Alexy, André Karam Trindade pondera: “Observa-se, em suma, que os princípios tornaram-se uma espécie de máscara da subjetividade, na medida em que passaram a ser aplicados como enunciados performativos que se encontram à disposição dos intérpretes, permitindo que os juízes, ao final, decidam como quiserem. Neste contexto, os princípios jurídicos, especialmente a proporcionalidade, exercem a função de verdadeiros curingas, servindo de muleta para imposição de todo e qualquer argumento” (TRINDADE, 2013).

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PALU, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade: conceitos, sistemas e freios. 2. ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2001.

POLETTI, Ronaldo. Controle da Constitucionalidade das Leis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

SLAIBI FILHO, Nagib. Breve História do Controle de Constitucionalidade. Revista da EMERJ. V. 5, nº 20, p. 284-319, 2002.

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SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para Céticos. São Paulo: Malheiros, 2012.

TRINDADE, André Karam. Robert Alexy e a vulgata da ponderação de princípios. Consultor Jurídico, São Paulo, nov. 2013. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-nov-16/diario-classe-robert-alexy-vulgata-ponderacao-principios>. Acesso em 16 de jun. 2014.

WILLEMAN, Marianna Montebello. O judicial review na perspectiva da geração fundadora e a afirmação da supremacia judicial nos Estados Unidos. Interesse Público. V. 82, p. 133-152, 2013.

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por uma filosofia no processo judicial: a linguagem como ponto de partida e

reflexão

Cristiano Becker Isaia1

Resumo

O presente trabalho parte da premissa de que o direito processual manteve-se distante dos movimentos filosóficos verificados no século XX. Sua (contínua) fixação pelo sentido do procedimento fez com que o processo não acompanhasse o linguisticturn, a invasão da filosofia pela linguagem. Por isso um novo olhar sobre o direito processual se faz necessário. A clássica separação entre o intérprete (juiz) e o fato concreto (em processo) deve dar lugar à instituição de uma filosofia no processo. É preciso, pois, aludir a uma filosofia no direito processual que o faça voltar para o mundo prático, para o mundo da vida, para o direito material discutido em juízo. Em resumo, uma filosofia que justifique a sua existência. Ao final será possível constatar se o processo judicial de que se dispõe atualmente rompeu ou não com a filosofia da consciência (da subjetividade), considerando-se principalmente sua metodologia tradicional. A matriz teórica (método de abordagem) adotada foi a fenomenológico-hermenêutica, que constitui um “deixar ver” que o fenômeno é essencial para o desvelamento, para que o jurista (que desde-já-sempre tem experiência de mundo antecipada pela pré-compreensão) possa compreender a realidade, abnegada pelo positivismo jurídico e pela filosofia da consciência, a partir da tradição em que está inserido e da finitude de seu conhecimento. Os métodos de procedimento adotados foram o histórico e o monográfico.

1 Doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor Adjunto lotado no Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e no Curso de Graduação e Pós-Graduação (lato sensu) em Direito do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Coordenador do NEAPRO/UFSM (Núcleo de Estudos Avançados em Processo Civil da Universidade Federal de Santa Maria --www.ufsm.br/neapro). Autor das obras “Processo civil, atuação e hermenêutica filosófica” (Ed. Jurúa, 2011) e “Processo civil e hermenêutica” (Ed. Juruá, 2012). E-mail: [email protected]. Trabalho vinculado ao projeto Elementos para uma (necessária) compreensão hermenêutica e democrática do direito processual civil.

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Palavras-chave

Filosofia no processo; Filosofia da linguagem; Processo judicial; Hermenêu-tica.

Abstract

This paperassumesthat theprocedural lawremaineddistant of philosophi-calmovements in thetwentieth century. Their (continuous) fixing for the mea-ningof the procedurehas made theprocess does notaccompanythelinguistic turn, the invasionby the languageof philosophy. Soa new look attheprocedural lawis necessary. Theclassic separationbetween theperformer (judge) and the concrete fact (in process) shouldgive rise to theimposition ofa philosophyin the process.It istherefore necessary toallude toa philosophyinprocedural lawthat makes back to thepractical world, to the worldof life, the right materialsdiscussedin court. In summary, a philosophythat justifies itsexistence.At the endyou cansee if theju-dicialprocessthatdoes not havecurrentlybrokeor thephilosophy of consciousness (subjectivity), especiallyconsideringits traditionalmethodology. The theoreti-cal matrix (method approach) adopted was thephenomenologicalhermeneutic, which is a”leave to see” that the phenomenonis essential forthe unveiling, that the lawyer (since-since-alwaysexperiencetheworldof earlypre-understanding) ca-nunderstand reality, selflessbylegal positivismand thephilosophy of conscious-ness, from thetradition in whichit is inserted andthe finitenessof his knowledge. The methods ofprocedure wereadoptedandhistoricalmonograph.

Key words

Philosophyin the process; Philosophy of language; Procedural law; Herme-neutics.

1. introdução

O Estado contemporâneo depende diretamente de uma atuação jurisdicional e de um processojudicial que proporcionem o fortalecimento (coerente) da Constituição a partir da aplicação dos princípios constitucionais e do respeito ao direito substantivo, ao caso concreto submetido a juízo. Para tanto, uma das condições de possibilidade está em pensar o direito processual para além do reducionismo dogmático.

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Tal é tarefa que se impõe a uma filosofia no processo, que para este estudo se funda na tentativa de substancialização do direito processual, valorizando a Constituição enquanto instrumento vinculante e programático, enquanto base de toda a juridicidade. Pensar o processo no interior de uma filosofia, que neste trabalho terá como fio condutor a hermenêutica de cariz filosófico, conduz ao seguinte questionamento: Como pode a filosofia auxiliar na construção de um processo judicial pós-moderno, pós-burocrático e anti-positivista, partindo-se da premissa de que o processo de que se dispõe atualmente está inserido em uma tradição inautêntica em que se supervalorizou o solipsismo judicial e a busca por verdades eternas, ignorando a própria finitude do conhecimento?

Um novo olhar sobre o processo judicial se faz necessário. A clássica separação entre o intérprete (juiz) e o fato concreto (levado à jurisdição) deve ceder à instituição de uma forma de compreensão fático-procedimentalassemelhante ao modelo atual, ainda quando se está prestes ao advento de “novo código de processo civil”, por exemplo. Isso porque o direito processual não acompanhou a invasão da filosofia pela linguagem, mantendo o julgador equidistante ao direito material que fundamenta a própria existência do processo.

A consequência não poderia ser outra: a linguagem, que na matriz filosófica adotada neste trabalho é tratada como forma de acesso a algo, acabou sendo praticamente proscrita pelo direito processual, principalmente o civil. Acabou sendo relegada a uma segunda coisa, motivo este que levou à construção de um processo alicerçado naideia de linguagem (procedimental) ideal. Afinal de contas, qual a razão para o rigorismo formal que se apresenta, por exemplo, no direito processual civil moderno? Note-se que a significação está (sempre esteve) no procedimento, nas súmulas, enunciados, etc., não no objeto tutelado, o que é fruto da (ficcional) exatidão linguística da qual o processo (ainda) faz parte.

Uma filosofia no processo, em razão disso, prescinde de que a linguagem sirva como ponto de partida e de reflexão, porquanto é nela que o direito material-constitucional se desvelará. É nela que se dará o sentido. É através dela que o sujeito solipsista dará lugar a um sujeito mediado por uma práxis intersubjetiva, que o fará respeitar a tradição (autêntica) e o caso (que é sempre novo) que se lhe apresenta. Um sujeito autêntico e angustiado (Heidegger), que pode fazer parte da história ao abrir cuidadosamente as portas do mundo para si.

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A condição de possibilidade está em pensar o direito processual para além do reducionismo procedural-dogmático.Como se disse, pensá-lo no interior de uma filosofia, em que todo caso apresentado exigirá “a” resposta constitucionalmente corretaà situação conteudística (fática), que não é e nem pode ser fruto da repe-tição. É isso que se passa a investigar nas linhas que seguem. O suporte teórico para tanto tem início com a hermenêutica (filosófica) de Hans-Georg Gadamer (a partir da filosofia de Martin Heidegger).

2. aportes sobre a hermenêutica filosófica e a neces-sidade de se falar numa filosofia no processo

Desde já é preciso alertar que a hermenêutica filosófica não se confunde com a hermenêutica clássica e seu desiderato técnico-interpretativo. A hermenêutica filosófica, como mais a frente se poderá observar, trabalha com um dar sentido (sinngebung), o que requer o ingresso na dimensão da compreensão do sujeito (que sempre possui uma dimensão linguística), justificando porque a hermenêutica é filosofia. Essa nova hermenêutica (de feição heideggeriana-gadameriana), como assinala LenioStreck, surge no horizonte de um problema totalmente humano relacionado à experiência de encontrarmos frente à totalidade do mundo como contexto vital da própria existência, o que a fará questionar a totalidade do existente humano e sua inserção no mundo.2

Todavia, antes de penetrar no seio da hermenêutica filosófica é importante ressaltar que a palavra hermenêutica (que, segundo Grondin, só apareceria no século XVII, ainda que entre os gregos, principalmente na obra platônica, já se encontre a palavra hermèneutike)3 classicamente tem guardado relação com a interpretação de algo, de um gesto, um texto, etc. Etimologicamente está rela-cionada a figura mitológica de Hermes, o mensageiro de Zeus entre os homens. A ele, na mitologia grega, atribui-se a descoberta da linguagem. Assim, classicamente a palavra hermenêuticaestá relacionada ao processo de tornar algo compreensível, de explicar algo.

2 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005,pp. 188-189.

3 GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução de BennoDischinger. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1999, p. 47.

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O objetivo do presente capítulo ainda assim está em dar primazia ao recorte da hermenêutica filosófica, principalmente a partir da contribuição de Heidegger e Gadamer. Trata-se de uma opção teórica, justificada pelo fato de que ao relacioná-la ao direito processual surge a possibilidade de pensá-lo em sua singularidade fática, que em nada se assemelha aos tradicionais processos de fungibilização dos fatos. Uma singularidade, contudo, que no processo compreensivo trabalha com o desvelamento do ser da Constituição, o que depende da atuação (não-solipsista) do jurista; da instituição de uma jurisdiçãoprocessual democrática.

Na pretensão de introduzir os aportes da hermenêutica no seio do direito processual é preciso referir que a intenção de Gadamer é estudar a hermenêutica em seu elemento puro de experiência da existência humana, postura que terá como substrato a obra de Heidegger, caracterizada por explicar a compreensão como forma de definir o Dasein (ser-aí), a compreensão da vida fática do homem.4Em Heidegger, compreender é o caráter ôntico original da vida humana mesma, o que justifica a passagem de uma hermenêutica normativa para uma hermenêutica filosófica, onde a compreensão é entendida como estrutura do ser-aí, o que pressupõe o resgate do ser na obra heideggeriana, recorrendo ao único ente que o compreende: o homem (Dasein), que é ser-no-mundo.5

No recurso às condições de possibilidade da questão do sentido do ser6 Heidegger questiona as condições de possibilidade do discurso sobre a situação do homem constituído linguisticamente, isso porque somente o homem pode perguntar pelo sentido de algo, o que justifica a opção de Heidegger por uma fenomenologia doser-no-mundo. É nesse movimento que Heidegger passa para a análise, tanto do ponto de vista linguístico como do ponto de vista filosófico-existencial, das partes componentes da expressão “mundo”; “ser-com e ser-si-mesmo”; “ser-em”. A situação total que Heidegger designa ser-no-mundo pode ser designada como situação do cuidado. A relação de cuidado consigo mesmo e com o mundo caracteriza todas as relações da vida.7

4 SCHUBACK, Márcia Sá Cavalcante. A perplexidade da presença. Apresentação de Ser e Tempo, de Martin Heidegger. 3.ª adição. Petrópolis: Ed. Vozes, 2008, p. 15.

5 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise:uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Op. cit.,p. 190.

6 Ver, para tanto, a título de introdução da questão: HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 3.ª edição. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Ed. Vozes, 2008, pp. 37-40.

7 STEIN, Ernildo. Seis estudos sobre “Ser e tempo”. 3.ª edição. Petrópolis, Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2005, pp. 13-14.

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Para se chegar a essa nova filosofia é necessário preparar o terreno da hermenêutica, o que impõe a construção de um pequeno escorço histórico desde a hermenêutica pré-romântica, já que até então a arte da compreensão e da interpretação havia se desenvolvido pelo caminho teológico e pelo caminho filológico. O primeiro guardou relação à proposta reformista da Bíblia, capitaneada por Lutero.8 Já o segundo apareceu como instrumental para as tentativas humanísticas em redescobrir a literatura clássica.9 Um período em que o fundamento da hermenêutica está na busca da compreensão do texto bíblico ou de um texto clássico. Diferentemente do saber instituído pela Sagrada Escritura e pelos textos clássicos, uma nova ciência da natureza deveria se impor com uma metodologia própria, que através da matemática e da razão conduziria a evidência do que é compreensível em si mesmo.10

Disso se depreende que só pode surgir hermenêutica na modernidade, quando as cosmovisões não expressam simples duplicações da realidade, mas interpreta- ções pragmáticas, inclusas na relação do homem com o mundo.11 Um pouco antes de Schleiermacher e da própria hermenêutica romântica, alertando pela necessi-dade em se desenvolver uma ciência universal do interpretar, Dannhauer foi pre-cursor, no século XVII, em agregar no título de uma obra a palavra hermenêutica. Sua proposta coadunava-se a uma hermenêutica universal, elaborada a partir do solo da filosofia, permitindo assim às outras ciências a interpretação.12

Já em 1742 Chladenius abriu novos horizontes à hermenêutica, ainda que sua proposta fosse condizente à universalidade de uma hermenêutica pedagógica. Para Chladenius, compreender e interpretar não são a mesma coisa, já que o texto que necessita de interpretação faz parte de um caso excepcional, partindo da premissa de que no geral as passagens podem ser entendidas imediatamente

8 Para Gadamer, o pressuposto da hermenêutica bíblica é o princípio que a Reforma propõe quanto às Escrituras. De acordo com esse ponto de vista não se teria a necessidade da tradição para compreender a Sagrada Escritura adequadamente, pois sua literalidade possui um sentido unívoco, o sensusliteralis, que deve ser mediado por ela mesma. In:Verdade e método. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis, Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1997, p. 242.

9 Ibidem,p. 241.10 Ibidem,p. 251.11 GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução de BennoDischinger.

São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1999, p. 47.12 Ibidem,pp. 94-98.

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quando se conhece o assunto tratado.13 De uma problematização hermenêutica puramente lógica encontrada no pensamento de Dannhauer, em Chladenius a interpretação aumentaria o conhecimento por seu pensamento pessoal e suas próprias invenções, sendo ocupada, doutro lado, daquilo que os outros, antes de nós, pensaram de proveitoso ou interessante. Uma capacidade de interpretação já exercida deveria ser aperfeiçoada.14

Até então a tradição hermenêutica pugnava que o objeto interpretativo deves-se recair nas frases ou passagens obscuras. Todavia, com Chladenius, apenas um tipo especial dessas passagens deveria receber interpretação. Elas não deveriam guardar relação com as obscuridades decorrentes de uma passagem editorialmente deteriorada, tampouco derivada do pouco domínio da linguagem, mas as que derivassem de insuficientes “conhecimentos de fundo”. Uma insuficiência no processo compreensivo derivada da ausência do conhecimento histórico ou objetivo de algo, especialmente quando o algo da linguagem permanece na escuridão em razão de não despertar no receptor o mesmo sentido empregado pelo falante.15

Outra facção representativa das hermenêuticas universais – aquelas em que a hermenêutica representava um caráter filosófico (universal) – foi desenvolvida por Meier (1757) na tentativa de uma arte universal da interpretação. Agora não somente a escritura era importante para a hermenêutica, mas também o todo global dos sinais do mundo. No fundo dessa concepção, segundo Grondin, é que se encontra a doutrina universal dos sinais elaborada por Leibniz. Interpretar, portanto, significa reconhecer o sentido pelo sinal; poder ordená-lo segundo a característica universal de todas as coisas.16

A tarefa de transformar a compreensão em algo não relacionado a um pro- cedimento, pensando-a a partir de uma metodologia própria, deve-se prin-cipalmente ao teólogo alemão Schleiermacher. Seu pensamento situa-se no período denominado de romantismo, no século XIX. Com ele há um deslocamento de caráter fundamental: de uma compreensão unicamente voltada à literalidade das

13 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Op. cit.,p. 252.14 GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Op. cit.,p. 99.15 Ibidem,pp. 103-106.16 Ibidem,p. 108.

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palavras e seu sentido objetivo, passa-se (também) a uma compreensão voltada à individualidade de quem fala.17

Ao lado da interpretação gramatical, Schleiermacher coloca a psicológica. ParaGadamer, ela atua num “transferir-separa dentro da constituição com-pleta do escritor, um conceber o ‘decurso interno’ da feitura da obra, uma reformulação do ato criador”.18 Partindo das determinações principais de Kant, segundo Schleiermacher, ao fazer menção sobre o pensamento artístico, exemplo a ele privilegiado, os discursos não se submetem ao mesmo padrão de entendimento sobre a coisa visada, pois o modo quediz e o modo como se diz o discurso são inseparáveis. Logo, também o falar é concebido como arte. Com Schleiermacher “cada individualidade é uma manifestação da vida universal e assim ‘cada qual traz em si um mínimo de cada um dos demais’”.19 O compreender, para Schleiermacher, é sempre um mover-se num círculo, o qual proporciona o retorno do todo às partes e vice-e-versa.

Doravante, na hermenêutica, passa a ser de fundamental importância as condições pelas quais o sujeito (individual) interpreta; não simplesmente os objetos de sua compreensão, razão pela qual no pensamento de Schleiermacher a hermenêutica definitivamente ultrapassa as concepções teológicas e filológicas, já que guarda relação à arte de descobrir os pensamentos de um escritor a partir de sua exposição.20 Tais condições é que desvelarão o traço essencial do compreender, onde o sentido do peculiar só pode resultar do contexto, do todo, numa espécie de raciocínio circular. A hermenêutica será uma arte, não um procedimento mecânico, levando a cabo sua obra, a compreensão, do mesmo modo como se realiza uma obra de arte.21

O fato é que com Schleiermacher o processo compreensivo não mais in-clui somente a coisa de que se está falando, mas considera a expressão que representa algo com uma produção livre. É nesse local que a linguagem é um campo de expressão. O intérprete, a partir dela, considera os textos como puros

17 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Op. cit.,p. 256.18 Ibidem, p. 257.19 Ibidem,p. 260.20 SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Hermenêutica:arte e técnica de interpretação.

Tradução de Celso ReniBraida. Petrópolis: Ed. Vozes, 1999, p. 31. 21 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Op. cit.,p. 262.

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fenômenos de expressão, à margem de qualquer pretensão de verdade.22 Há em seu pensamento uma indissociabilidade entre o gramatical e o psicológico.23 O resultado de uma interpretação meramente gramatical devia acabar sendo muito modesto na concepção schleiermachiana, já que o objetivo último da interpretação seria o de penetrar até o pensamento interior, ou seja, o que o escritor queria dizer com tal texto.24

É flagrante, no pensamento de Schleiermacher, o abandono do objeto da her-menêutica mais antiga. Isso porque ao invés de mediar um sentido, uma verdade, interessava a Schleiermacher um ato de criação do autor, considerando os textos como fenômenos de expressão.25A supervalorização do momento psicológico da tarefa interpretativa, elemento presente no pensamento schleiermachiano, será objeto da crítica de Gadamer, como mais a frente se fará alusão. Isso porque, segundo o filósofo, a hermenêutica não se resume em unicamente retornar ao aspecto subjetivo de quem interpreta, mas na discussão da própria coisa a que o texto faz referência. Mesmo assim o pensamento de Schleiermacher é fundamen-tal para que seja possível entender o processo compreensivo hermenêutico a partir da posição ocupada pelo intérprete, não apenas voltado unicamente para a verdade da coisa em causa.

Esse dado seria fundamental para que Dilthey, após a morte de Schleierma- cher em 1834, desenvolvesse a tese de uma hermenêutica travestida como sustentáculo epistemológico das ciências do espírito26, etapa em que ampliaria a hermenêutica romântica, transformando-a numa historiografia, tese poste-riormente confirmada e consolidada por Conde York.27Dilthey torna-se o principal intérprete da escola histórica no século XIX, segundo a qual qualquer manifestação individual (aproveitando-se do pensamento de Schleiermacher) deve ser concebida a partir do contexto de sua época.28

22 Ibidem,p. 269.23 MOREIRA FILHO, José Carlos. Hermenêutica filosófica e direito: o exemplo privilegiado

da boa-fé objetiva no direito contratual. 2ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2006, p. 18.

24 GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Op. cit.,p. 130.25 Ibidem,p. 131.26 MOREIRA FILHO, José Carlos. Hermenêutica filosófica e direito:o exemplo privilegiado

da boa-fé objetiva no direito contratual. Op. cit.,p. 24. 27 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Op. cit.,p. 491.28 GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Op. cit.,p. 135.

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Segundo Heidegger, o trabalho de Dilthey pode ser dividido em três campos. O primeiro tende aos estudos sobre a teoria das ciências do espírito e sua delimitação frente às ciências da natureza; o segundo com as pesquisas sobre a história das ciências do homem, da sociedade e do estado; já o terceiro com as investigações sobre uma psicologia que exporia “todo o fato homem”. Tais campos de pesquisa tinham uma meta: trazer a vida para uma compreensão filosófica e assegurar, para essa compreensão, um fundamento hermenêutico a partir da vida mesma, onde tudo estaria centrado na psicologia, que assim compreenderia a vida em seu nexo de desenvolvimento e ação históricos como o modo em que o homem é.29

A tendência de York foi também a de tomar posição frente à psicologia analítica, principalmente na tarefa de elaborar as diferentes estruturas categoriais entre o ôntico e o histórico. York, como relata Heidegger, se empenhou em apreender categorialmente o histórico em oposição ao ôntico, elevando a vida a uma compreensão científica adequada.30 Com York é então possível dizer que a questão da historicidade é uma questão ontológica sobre a constituição do ser dos entes históricos, da mesma forma que a questão do ôntico é a questão ontológica sobre a constituição do ser dos entes não dotados de historicidade. Por isso a ideia do ser abrange tanto o ôntico quanto o histórico.31

Anteriormente a Dilthey e York, Johann Droysen já dera início ao historicismo interpretativo, principalmente ao relacionar a compreensão com o processo de conhecimento das ciências históricas. Recusando o positivismo, acusado de submeter a história aos métodos matemáticos naturais, bem como uma concepção puramente narrativa da história, para Droysen a história seria assemelhanteàs ciências naturais, já que a compreensão histórica aproxima-se da compreensão de alguém que fala conosco, onde entendemos a palavra particular como manifestação de um interior. Quando o historiador busca manifestações históricas e pesquisa sobre seu interior, pretende na verdade reconstruir o particular a partir do todo, do qual ele emerge e, inversamente, o todo a partir do particular, no qual ele se expressa.32

29 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Op. cit.,pp. 491-492.30 Ibidem,p. 493.31 Ibidem,p. 497.32 GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Op. cit.,pp. 141-143.

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Segundo Gadamer, emDroysen o método histórico divergiria do método experimental das ciências da natureza em razão de que a historiografia seria investigação, nada mais que isso. E para poder conhecer a investigação histórica somente se pode perguntar à tradição. Nessa investigação é que resultaria o compreender.33

Todavia, são realmente Dilthey e York os principais protagonistas da escola histórica. Com a adoção do círculo hermenêutico, anteriormente pensado por Schleiermacher, em Dilthey a unidade, o todo, não seria mais o conjunto de obras ou a vida do autor, mas a história universal. A interpretação de um texto se desvelaria desde sua assumida função como mediador de um nexo histórico mais amplo, completo na perspectiva da história universal.34 O novo ponto de partida de Dilthey será a filosofia da vida, categoria que expressará a necessidade de uma outra espécie de ciência, diversa das ciências da natureza. Isso explica porque Diltheytrata, no contexto de seu pensamento, de individualidades históricas, já que as ciências do espírito não devem tentar compreender a vida com categorias exteriores a ela, mas derivadas dela.35

Se for correto afirmar que a vida é o fato básico da história para Dilthey, tam-bém o é que para ele as condições objetivas de validade das ciências do espírito podem ser encontradas na experiência interior, ao passo que toda a realidade se encontra sob os condicionamentos da consciência. Disso se depreende que em Dilthey somente uma reflexão psicológica básica está em condições de fundamentar a objetividade do conhecimento das ciências do espírito, o que faz com que formule o “princípio da vivência”, no qual “tudo o que está para nós, existe apenas enquanto dado, como tal, no presente”.36

Desse princípio é que deriva, em Dilthey, o conceito de compreensão. As ciên-cias do espírito passam a se diferenciar das ciências naturais em razão de sua relação

33 GADAMER, Hans-Georg.Verdade e método. Op. cit.,pp. 293-295.34 Essa constatação servirá, posteriormente, para que Heidegger, em Ser e Tempo, trabalhe com

o problema das ciências históricas, que a partir dele assume a fisionomia de um problema ontológico. Para um maior aprofundamento, consultar: VATTIMO, Gianni. Introdução a Heidegger.Tradução de João Gama. Lisboa: Ed. Instituto Piaget, 1996, p. 15.

35 MOREIRA FILHO, José Carlos. Hermenêutica filosófica e direito:o exemplo privilegiado da boa-fé objetiva no direito contratual. Op. cit.,pp. 24-28.

36 GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Op. cit.,pp. 148-151.

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diversa com o objeto, já que nas ciências do espírito o processo compreensivo dá-se de fora para dentro, um movimento denominado “auto-reflexão”: um retorno do manifestado ao interior, onde cada expressão ou enunciado “brota de um aconselhar-se a si mesmo, que procura reviver a compreensão”.37

Em Dilthey, como se fez alusão, as ciências do espírito devem compreender a vi-da a partir de categorias dela derivadas, razão pela qual o caráter do indivíduo é uma unidade compreensível em si mesma, manifestando-se através de exteriorizações de sua vida, local onde todos os fatos surgem a partir da consciência, sob o seu condicionamento. Os fatos da consciência para Dilthey, como assinala Moreira Filho, são compostos de imagens, sensações, o que aponta para a totalidade da vida psíquica. Uma experiência interna que enquanto ocorre é imediata, o que serviria na sedimentação da própria fenomenologia do século XX, principalmente com Husserl e Heidegger. Nela, a experiência humana tem significado na medida em que é histórica, revelando uma coerência e uma unidade no tempo.38

Quando se fala numa fenomenologiaestá-se a falar, como define o próprio Heidegger, num conceito de método. Não o quê dos objetos, mas o como deles. O filósofo sustenta que a palavra fenomenologia é capaz de gerar a expressão “para as coisas elas mesmas”, por oposição à admissão pura de conceitos aparentemen-te verificados, às construções soltas no ar. Consiste em deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo. Nela, não se evoca o objeto, mas o modo como ele se mostra, pertencente ao que se mostra numa primeira aproximação a ponto de constituir o seu sentido e fundamento. É o desvelar não do ente em si, mas do ser dos entes. A fenomenologia, assim, é a via de acesso da ontologia (já que propõe o ser dos entes, o seu sentido).39

Segundo Gadamer, foi Heidegger quem tornou consciente a radical exi-gência que se coloca ao pensamento em virtude da inadequação do conceito de substância para o ser e para o conhecimento histórico, razão pela qual seria somente com Heidegger que se libertara a intenção filosófica de Dilthey. Sobre o trabalho de Heidegger, é de fundamental importância referir que o mesmo engata

37 Ibidem,p. 152.38 MOREIRA FILHO, José Carlos. Hermenêutica filosófica e direito:o exemplo privilegiado

da boa-fé objetiva no direito contratual. Op. cit.,pp. 28-30.39 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo.Op. cit.,pp. 66-75.

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na fenomenologia de Husserl, que representa uma ruptura com a hermenêutica anterior, já que a consciência não seria um objeto, mas uma coordenação essen-cial, o que levaria a uma suposta superação do objetivismo, uma vez que o significado das palavras não poderia se confundir com o conteúdo psíquico da consciência, com as representações associativas que uma palavra desperta.40

Com isso é possível falar em uma fenomenologia onde a subjetividade huma-na também possui validade ontológica, também deve ser vista como fenômeno. Essa concepção, como se verá mais adiante, será crucial para que seja possível falar numa filosofia no processo, mediada pela história, pela tradição, pela práxis intersubjetiva entre juiz, partes e sociedade, com a intermediação da linguagem. Para se lá chegar, veja-se que a fenomenologia husserliana vai além de um simples dar-se dos fenômenos da consciência objetiva, porque toda vivência implica os horizontes do anterior e do posterior e se funde com a continuidade das vivências para formar a unidade do fluxo de vida.41

A investigação fenomenológica é compreendida como uma investigação de unidades da e na consciência do tempo, as quais pressupõem a constituição dessa consciência temporal, onde o fluxo vivencial possui o caráter de uma consciência universal do horizonte, da qual se dão as vivências. Para Husserl, não mais suportando a amplitude que alcançara as ciências objetivas, “o que está dado como ente está dado como mundo e leva consigo o horizonte do mundo”.42Assim é que Husserl passa a falar de vida, contrastando com o conceito de mundo objetivado pelas ciências, o que o leva a forjar o conceito de “mundo da vida”, o mundo em que o homem está introduzido pelo viver de sua atitude natural, que jamais poderá se tornar objetivo, mas que representa o solo de toda a experiência.43

O “mundo da vida” husserliano, nas palavras de Gadamer, “significa o todo em que estamos vivendo enquanto seres históricos”.44 Heidegger aproxima-se de Husserl a partir desse conceito. Ele estudara num dos centros da filosofia neokantiana, que dominara a cultura filosófica alemã nos primórdios do século XX, tendo percebido que o problema do ser está destinado a parecer estranho

40 GADAMER, Hans-Georg.Verdade e método. Op. cit.,p. 328.41 Ibidem,p. 329.42 Ibidem, p. 330.43 Ibidem, p. 331.44 Ibidem, p. 332.

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devido justamente à mentalidade neokantiana, caracterizada pela lógica e pela necessidade em considerar as categorias só como funções do pensamento.

O fato central é que Heidegger via em Husserl e na fenomenologia o modo de direcionar o seu discurso às dimensões da historicidade da compreensão.45 Para Vattimo, enquanto o neokantismo dava preferência ao objetivismo, privile-giando a ciência no seu caráter matematizante como única forma de conhecimento válido, influência nitidamente racionalista, em Husserl a cognição se resolvia na intuição, elemento que irá remeter a interpretação heideggeriana do conceito de fenômeno em Ser e Tempo, a obra-prima de Heidegger.

Sem a menor pretensão em estancar as inúmeras interações entre todos os pensadores até agora trabalhados, esse breve escorço histórico da hermenêutica foi fundamental para se preparar o terreno que conduz aos projetos hermenêuticos de ordem heideggeriana e gadameriana, os quais, pelo que já se pôde constatar, formam a base teórica para a instituição de uma filosofia no processo. Sua (dos aportes de Heidegger e Gadamer) influência no direito já é uma realidade. Tem se revelado pela tentativa de libertação do pensamento jurídico apegado ao paradigma da filosofia da consciência de cariz cartesiano, o que vem sendo pesquisado principalmente pelo jurista gaúcho LenioStreck.

Já o perfil de uma hermenêutica crítica, de cariz filosófico, quando recepciona-da pelo direito processual, certamente auxiliará na superação do objetivismo, travestido pela metodologia daplenipotenciariedade das regras e do modo de aplicação legal-reprodutivo no ambiente processual, local (ainda) habitado pelo juiz solipsista e sua consciência. Isso porque, principalmente com Heidegger, é possível constatar que a atividade compreensiva está em constante movimentação, num constante reprojetar, pensamento que, quando transposto ao direito pro-cessual, leva à instituição da necessidade em se buscar uma jurisdição que seja eficiente em contribuir com os anseios populares de um Estado verdadeiramente Democrático de Direito.

Daí que a possibilidade em se pensar numa filosofia no processo parte também de um alerta: não se está a trabalhar com a produção de verdades únicas ou abso-lutas. A questão está que nele a verdade é sempre uma verdade hermenêutica

45 VATTIMO, Gianni. Introdução a Heidegger.Op. cit.,pp. 08-13.

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sujeita as condições de temporalidade e compreensão, e que, portanto, almeja uma atuação jurisdicional para além do solipsismo, rumando à construção (cons- titucional) de um modelo de juiz ser-no-mundo, autêntico e democrático, que compreenda o processo como fenômeno, desvelando a realidade que se lhe apresenta em cada caso concreto (o qual deve ser compreendido em sua unicidade)46, instaurando seu sentido diante de sua singularidade.

Essa filosofia no processo parte do pressuposto de que a linguagem serve como ponto de partida e de reflexão, porquanto é nela que o direito material-constitucional se desvelará. É nela que se dará o sentido. É através dela que o sujeito solipsista, o qual não reprojeta suas próprias convicções, dará lugar a um sujeito mediado por uma práxis intersubjetiva que o fará respeitar a tradição e o caso (que é sempre novo) que se lhe apresenta. Nela o intérprete em sua faticidade deve preocupar-se, o que o mantém no interior do círculo hermenêutico, local onde se terá de atingir uma situação hermenêutica que permita a interpretação do sentido da preocupação (temporalidade).47

É realmente preciso aludir a uma filosofia no direito processual voltada para o mundo prático, para o mundo da vida, para o direito material-constitucional discutido em juízo, onde a linguagem seja compreendida como condição de possibilidade, rompendo com a ideia ficcional de que o processo é sinônimo de método. Se todo caso exige “a” resposta constitucionalmente correta àquela situação conteudística (fática), que não é e nem pode ser entificada, está-se frente à necessidade de superação de uma metodologia procedural-dogmática que renunciou o fato no direito processual, especialmente o civil. As obras de Heidegger e Gadamer têm a dizer sobre essas questões. A elas, pois.

3. a invasão da filosofia pela linguagem e o con-tributo de heidegger e gadamer

No decorrer do que até agora foi enfrentadoneste trabalho, é possível con- cluir, dentre outras coisas, que a processualística ainda é refém da filosofia da

46 GADAMER, Hans-Georg. El problema de laconciencia histórica.Tradução para o espanhol de Agustín Domingo Moratalla. 2ª edição. Madri: Ed. Tecnos, 2000, p. 50.

47 HOMMERDING, Adalberto Narciso. Fundamentos para uma compreensão hermenêutica do Processo civil.Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2007, p. 137.

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consciência (ou filosofia da subjetividade). A tradição inautêntica em que o processo de que se dispõe atualmente está inserido revela que tanto o fato concreto quanto a própria Constituição ainda não receberam a atenção demandada pelo constitucionalismo instituído pelo Estado Democrático de Direito.

Uma possível superação desse paradigma deve levar em conta a questão da linguagem em processo. Isso porque é nela que o fato concreto se desvelará. E trabalhar com a linguagem é trabalhar com uma das questões centrais da filosofia. Desde Platão, com o Crátilo, a linguagem assume um lugar na filosofia ocidental. Ao sustentar que o Crátilo é um tratado acerca da linguagem, LenioStreck, fazendo alusão a Josef Simon e Garcia-Roza, leciona que com essa obra Platão teria lançado a base para uma filosofia ontológica, que viu o ser das coisas o seu objetivo, local onde o significado precede o significante e o determina, sendo a linguagem reduzida a mero instrumento; algo secundário em relação ao conhecimento do real.48

Com Platão e seu Crátilo é possível definir uma espécie de unidade entre palavra e coisa na filosofia. Gadamer, sobre isso, dirá que na filosofia grega a palavra é somente nome, não representando o verdadeiro ser. OCrátilo objetiva, segundo o filósofo, discutir duas teorias que pretendem determinar justamente a relação entre palavra e coisa. São elas o convencionalismo e o naturalismo. A primeira defende o significado das coisas através da univocidade do uso da linguagem, por convenção. Assim é que se dá a ligação do nome com as coisas. A segunda sustenta uma relação natural entre palavra (nome) e coisa, onde cada coisa teria seu nome por natureza.49

Ainda segundo Gadamer, o objetivo central de Platão estaria em mostrar que se deve conhecer o ente sem as palavras, deslocando a questão da significação das coisas para o nível da dialética, “que pretende evidentemente embasar o pensamento sobre si mesmo, abrindo seus verdadeiros objetos, as ‘ideias’, de tal modo que isso supere o poder das palavras e sua tecnificação demoníaca na arte

48 In:Hermenêutica Jurídica e(m) crise:uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Op. cit.,p. 119.

49 In:Verdade e método. Op. cit.,p. 525.

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da argumentação sofística”.50 Observe-se, dessa passagem, a luta de Platão contra os sofistas e sua habilidade no trato da linguagem.

A linguagem ainda é mantida numa posição secundária com Aristóteles. Isso porque a palavra seria um símbolo, e sua relação com a coisa se daria por significação. Logo, para Aristóteles, as palavras só possuiriam um sentido definido porque as coisas deteriam uma essência. É ela quem conferiria às palavras a possibilidade de sentido.51 A questão, dessa forma, estaria na adequatio, ou seja, na conformidade entre a linguagem e o ser. E se a linguagem é portadora de ambiguidade, aquilo que ela aponta é o significado na sua universalidade.52

Assim, desde Platão e seu mundo das ideias, bem como Aristóteles e sua filosofia dos universais, das essências, a filosofia questiona o ente enquanto ente, escondendo o ser, o que sintetiza o pensamento metafísico, a primeira instância da filosofia.53 O verdadeiro conhecimento, com a metafísica, guardaria relação com aquilo que é pura e simplesmente geral, imutável e necessário, pouco importando ser interpretado através da matemática ou segundo a lógica. É nesse contexto que o ceticismo em relação ao primado do ser sobre o pensamento engendraria uma posição de destaque ao sujeito cognoscente, abrindo uma esfera interior de representações que precede o mundo dos objetos representados, o que justifica porque a metafísica só pode encontrar um equivalente numa teoria da consciência.54

A crítica mais contundente à metafísica seria realizada apenas com Heidegger, no século XX, ainda que a questão da linguagem e seu papel fossem antes disso enfrentados. Para o filósofo, somente se aprende a conhecer e a saber quando se experimenta de que modo a filosofia é, ao modo da correspondência que se harmoniza com a voz do ser do ente. A filosofia, em Heidegger, guarda relação “a correspondência propriamente assumida e em processo de desenvolvimento, que

50 Ibidem, p. 526.51 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise:uma exploração hermenêutica da

construção do Direito. Op. cit.,p. 122.52 Ibidem,pp. 122-123.53 HEIDEGGER, Martin. Que é Metafísica? Tradução de Ernildo Stein. In:Conferências e

escritos filosóficos. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1991, p. 56.54 HABERMAS, Jurgen. Pensamento pós-metafísico:estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Ed.

Tempo Brasileiro, 1990, p. 22.

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corresponde ao apelo do ser do ente”.55 E esse apelo, com Heidegger, dá-se na e pelalinguagem.

Contudo, as raízes da metafísica relegaram a linguagem a um segundo pla-no, o que inegavelmente traria reflexos tanto ao direito quanto ao processo. Para compreender esse fenômeno é preciso antes alertar que a representação metafísica analisa e assim representa apenas o ente sob o ponto de vista do ente, que aparece na luz do ser. O ser não é pensado em sua essência desveladora, em sua verdade.56Disso se depreende que a metafísica nunca se voltou para o ser enquanto ser, o que levou a filosofia a se manter na condição de refém de uma concepção em que a linguagem é mero instrumento, local onde os entes são designados independentes da intervenção da linguagem.

Esse processo de adequação do olhar ao objeto (concepção central da metafísica), buscando desvendar a essência das coisas, local onde a verdade é caracterizada pela correspondência entre o intelecto e a coisa visada, e também onde a linguagem é apenas um instrumento que transporta a essência das coisas ou conceitos em-si-mesmos verdadeiros57, somente seria transformado nos séculos XIX e XX com a viragem linguística na filosofia.58 Até lá foi percorrido um longo caminho. Nele, a tradição metafísica não logrou êxito em fazer com que a linguagem assumisse um lugar de destaque.

Com Habermas, percebe-se que desde Parmênides é estabelecida uma íntima relação entre o pensamento abstrato e seu produto, o ser. Platão disso tiraria a consequência de que a ordem fundadora da unidade é de natureza conceitual. Os gêneros e espécies, de acordo com os quais ordenam-se os fenômenos, seguiriam a ordem ideal das próprias coisas. De sua essência.59

55 HEIDEGGER, Martin. Que é isto, a filosofia?:identidade e diferença. Tradução de Ernildo Stein. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2006, p. 32.

56 HEIDEGGER, Martin. Que é Metafísica? Op. cit.,p. 55.57 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise:uma exploração hermenêutica da

construção do Direito. Op. cit.,p. 125.58 Segundo Habermas, a partir desse momento os sinais linguísticos, que serviam apenas

como instrumento e equipamento das representações, adquirem, como reino intermediário dos significados linguísticos, uma dignidade própria. As relações entre linguagem e mundo substituem as relações entre sujeito-objeto. O trabalho de constituição do mundo deixa de ser uma tarefa da subjetividade transcendental para se transformar em estruturas gramaticais. Sobre o tema, consultar: HABERMAS, Jurgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, 1990, p. 15.

59 Ibidem, pp. 39-40.

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A concepção central do pensamento metafísico desde Platão, Aristóteles, Descartes, Leibniz, chegando a Kant e após Hegel, buscou dar similitude entre pensamento e coisa, desvendando a essência própria das coisas, onde a verdade caracteriza-se pela correspondência entre o intelecto e a coisa visada, servindo a linguagem apenas como instrumento dessa ligação entre essência e verdade.60 O pensamento metafísico vigente até os primórdios da modernidade pode então ser caracterizado pelo idealismo e pela filosofia da consciência, o que passou a ser questionado a partir de alguns desenvolvimentos históricos. O aparecimento do método experimental das ciências da natureza, o formalismo na teoria moral, no direito e nas instituições de Estado (principalmente com o nominalismo de Hobbes e o conceitualismo de Locke) nos séculos XVII e XVIII são marcos essenciais na tentativa de ferimento à metafísica. O mesmo se pode dizer em relação ao surgimento das ciências histórico-hermenêuticas no século XIX, local em que se sobrelevou a consciência histórica em oposição a uma razão não-situada.61

Mesmo diante de todos esses desenvolvimentos a linguagem ainda estava longe de assumir um lugar de destaque, o que também pode ser constatado em Hume e Kant. Partindo do pressuposto de que as palavras só possuem significado na medida em que se referem a fatos concretos, o que eliminaria os conceitos da metafísica, já que estes guardam relação a realidades exteriores ao sujeito pensante, o ceticismo de Hume negou a realidade objetiva da causalidade, do mundo e do sujeito.62 Já em Kant, a linguagem também não assinalaria uma função específica nos processos de conhecimento, regulados pelas condições a priori da razão.63 Isso

60 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise:uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Op. cit.,p. 125.

61 Ibidem,pp. 42-43.62 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise:uma exploração hermenêutica da

construção do Direito. Op. cit.,p. 133.63 Essa constatação justifica a seguinte passagem de Kant: “Que todo o nosso conhecimento

começa com a experiência, não há dúvida alguma, pois, do contrário, por meio do que a faculdade de conhecimento deveria ser despertada para o exercício senão através dos objetos que tocam nossos sentidos e em parte produzem por si próprios representações, em parte põem em movimento a atividade do nosso entendimento para compará-las, conectá-las ou separá-las e, desse modo, assimilar a matéria bruta das impressões sensíveis a um conhecimento dos objetos que se chama experiência? Segundo o tempo, portanto, nenhum conhecimento em nós precede a experiência, e todo ele começa com ela. Mas embora todo o nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso todo ele se origina justamente da experiência. Pois poderia bem acontecer que mesmo o nosso conhecimento de experiência seja

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porque, para Kant, as palavras são concebidas como signos das representações, os quais representam verdadeiramente as coisas. Logo, na representação das coisas a função principal é reservada ao pensamento.64

O maior golpe à metafísica seria oriundo da mudança do paradigma da filoso-fia da consciência para a filosofia da linguagem. Somente a partir de então é possível falar na linguagem como abertura, como acesso ao mundo. Um dos precur- sores desse movimento é Wilhelm Von Humboldt, que para Gadamer é o criador da moderna filosofia da linguagem. O ponto de partida de Humboldt é o fato de que as línguas são produtos da força do espírito humano. Para ele a linguagem não é somente um dentre outros dotes do homem que está no mundo, mas serve de base para que o homem tenha mundo, porque nela se representa o mundo.65

Esse estar-aí no mundo é constituído pela linguagem, o que justifica que em Humboldt, frente ao indivíduo que pertence a uma comunidade de linguagem, a linguagem instaura uma espécie de existência autônoma que o introduz numa relação e num comportamento com o mundo.66 Com Humboldt, como assinala LenioStreck, a linguagem aparece como a condição de possibilidade de uma visão da totalidade do mundo. O mundo só é mundo enquanto vem à linguagem, que somente tem a sua existência no fato de que nela se apresenta o mundo.67

Também Saussure e Peirce contribuíram decisivamente para a invasão da filosofia pela linguagem, rompendo com os dualismos dos conceitos que susten-tam a filosofia da consciência. Sob a necessidade de construir uma teoria geral dos

um composto daquilo que recebemos por impressões e daquilo que a nossa própria faculdade de conhecimento (apenas provocada por impressões sensíveis) fornece de si mesma, cujo aditamento não distinguimos daquela matéria-prima antes que um longo exercício nos tenha tornado atento a ele e nos tenha tornado aptos à sua abstração. Portanto, é pelo menos uma questão que requer uma investigação mais pormenorizada e que não pode ser logo despachada devido aos ares que ostenta, a saber se há um tal conhecimento independente da experiência e mesmo de todas as impressões dos sentidos. Tais conhecimentos denominam-se a priori e distinguem-se dos empíricos, que possuem suas fontes a posteriori, ou seja, na experiência”. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Coleção “Os Pensadores”. Tradução de Valério Rohden e UdoBaldurMoosburguer. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1991, p. 25.

64 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Op. cit.,p. 135.

65 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Op. cit.,pp. 566-572.66 Ibidem.67 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da

construção do Direito. Op. cit.,pp. 141-144.

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sistemas sígnicos, o primeiro propôs denominá-la de semiologia; já o segundo, de semiótica. A novidade de Saussure está na tentativa de reconstrução, no plano do conhecimento, de um sistema teórico que explicasse o funcionamento dos diversos tipos de signos.68 Seu projeto encontra-se orientado para as diversas linguagens naturais. E é na constituição dos diferentes sistemas sígnicos das linguagens naturais que Saussure elege, como modelo analítico, a linguística (teoria dos signos verbais). Já Peirce acentuaria a função lógica do signo para a constituição da semiótica: uma teoria geral dos signos voltada para as práticas linguísticas da ciência; ao contrário de Saussure, que se preocupava com o tratamento científico das linguagens naturais.69

A viragem linguística da filosofia e um possível rompimento com a metafísi-ca somente ocorreriam decisivamente no século XX. Segundo Carlos Nieto Blanco, cujo pensamento foi sintetizado por LenioStreck, é possível afirmar resumidamente que a invasão da filosofia pela linguagem deu-se sob três frentes: a) a do neopositivismo lógico, que buscava a construção de linguagens ideais, iniciando com a denominação de Círculo de Viena, sendo, na década de 20, Schlick e Carnap seus principais protagonistas; b) a filosofia de Wittgenstein, em sua segunda fase70, principalmente com a obra Investigações Filosóficas, onde o

68 Os quais representam a combinação do conceito e da imagem acústica, composto por quatro características: a) a arbitrariedade, pois o significante é arbitrário em relação ao significado na medida em que não tem nenhum laço natural na realidade; b) a imutabilidade, que surgiria no momento posterior a produção de sentido; c) a mutabilidade, ou seja, a possibilidade do signo ser modificado com o passar do tempo e, d) o fato de que o significante, já que se desenvolve no tempo, representa uma extensão, mensurável na extensão de uma linha. Ibidem,pp. 146-148.

69 WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. 2.ª edição. Porto Alegre: Ed. Sérgio Antonio Fabris, 1995, pp. 11-14.

70 O próprio Wittgenstein, no prefácio das Investigações, indica que seus pensamentos só poderão ser compreendidos se considerados em oposição e sob o pano de fundo do Tractatus, sua primeira obra filosófica. Já no TractatusWittgenstein trabalha com a questão da linguagem. Um termo que determinaria o conjunto de elementos que, combinados entre si de uma determinada maneira, têm uma significação, possuem vida. Logo, no TractatusWittgenstein sustentará que todos os elementos da linguagem representam algo, o que pressupõe duas condições: que haja diferenças entre aquilo que representa e aquilo que é representado, sem o que não seria possível distinguir o linguístico do não- linguístico, e que haja uma semelhança entre o representante e o representado, sem que o não fosse possível a relação de representação entre realidades heterogêneas. Diante disso, no Tractatusa linguagem aparece como o conjunto de formas proposicionais possíveis, ou melhor, de todas as formas proposicionais que permitem representar significativamente os fatos. Nesse

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filósofo sustentou que não existe um mundo em si que independa da linguagem, razão pela qual somente há o mundo da linguagem; c) o desenvolvimento da filosofia da linguagem ordinária, cujo principal representante é John Austin, que desenvolveu a dimensão pragmática do discurso ligado a ações coletivas, intersubjetivas, mesclando atos de linguagem e práticas (ações).71

Dessa resumida construção histórica da relação entre linguagem e metafísica, ciente dos riscos que definições resumidas provocam no âmbito da pesquisa, é possível constatar que mesmo alguns movimentos filosóficos que se auto intitularamenquanto “rompantes” àmetafísica acabaram sendo por ela seduzidos. O próprio neopositivismo lógico visou a superação da metafísica mediante a análise lógica da linguagem, principalmente com Carnap em 1932. Talvez por isso Heidegger tenha referido que a ciência não pensa, já que pensar, nas palavras de Simon, é escutar a linguagem em vez de, como resultado de um conceito pré-determinado do ser do ente, a representar a ela própria como ente e, enquanto objeto de uma ciência dominada por este conceito determinado de ser, a conside-rar como objeto ao lado de outros objetos.72

movimento há uma relação entre linguagem e mundo. A linguagem, por um lado, na medida em que dispõe de proposições elementares em número indeterminado, é sempre capaz de dizer os fatos do mundo. O mundo, por outro lado, na medida em que possui objetos em número determinado, pode ser dito pela linguagem sob a condição de que esta contenha as proposições elementares correspondentes aos fatos elementares. No Tractatus, dessa forma, não se trata de considerar uma linguagem nem um mundo em particular, mas sim a linguagem a o mundo em sua maior generalidade, enquanto puras manifestações da forma lógica ou forma de representação. Já nas Investigações filosóficas Wittgenstein sustentará que não existe um mundo em si que independa da linguagem, razão pela qual somente temos o mundo da linguagem. Em vista disso, trata-se de uma nova concepção de proposição, que deixa de ser um modelo exato da realidade para se tornar uma hipótese, uma forma mais ou menos adequada de representação. Nada mais constitui uma garantia fixa e translúcida da significação; essa garantia se perde no turbilhão imprevisível das diferentes formas de vida em que o homem se empenha. Isso justifica o abandono de Wittgenstein de uma ideia que lhe permitiu considerar o processo de análise da proposição como revelador do significado, que dependerá por isso das diferentes formas de vida em que se faz a linguagem. Para um maior aprofundamento sobre o tema, consultar: WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Coleção “Os Pensadores”. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1991; MORENO, Arley. Wittgenstein.In: Os labirintos da linguagem: ensaio introdutório. São Paulo: Ed. Modena, 2000.

71 In:Hermenêutica Jurídica e(m) crise:uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Op. cit.,pp. 161-169.

72 SIMON, Josef. Filosofia da Linguagem. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Ed. Edições 70, 1990, p. 206.

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Heidegger, discorrendo sobre o fundamento fulcral da metafísica, questiona73: de que fundamento provém o ente? Em que fundamento ele se alicerça? A que fundamento ele se dirige? Seriam estas as mais vastas e profundas questões da metafísica, assim relacionadas ao fundamento das coisas. O problema, para Heidegger, é que ao questionarmos, afastamos de nós todo o ente particular e singular. Ao se colocar a questão, apenas um ente se destaca: o homem que coloca essa questão. Com isso se percebe que classicamente na metafísica a condição humana sempre aponta para além de si mesma, mantendo a exigência contínua de uma abertura.74 É de se questionar: diante da metafísica da subjetividade, que lugar a linguagem assumiria nesse contexto?

Eis o esforço de Heidegger em propor pensar a desconstrução da metafísica a partir da hermenêutica da faticidade, produzindo uma mudança fundamental na filosofia, deslocando o lugar da fundamentação no sujeito e na consciência para a concepção de mundo, de ser-no-mundo, reduzindo a metafísica ao campo da finitude humana.75 Na obra do filósofo alemão a ontologia da coisa (metafísica) dá lugar à ontologia do ser, a interrogação sobre o sentido do ser, partindo da premissa de que a metafísica o esqueceu.76 A metafísica partira do pressuposto de que o ser e a verdade são colocados no horizonte da transparência de Deus, sendo este a verdade por excelência. O fundamento do ser e da verdade. O arquétipo de todo o conhecimento perfeito.77 A tarefa heideggerianaentão está em reconquistar a força designativa da linguagem e das palavras em seu estado intacto, partindo do pressuposto de que as palavras e a linguagem não são invólucros em que se embalam as coisas.78

73 In: Introdução à metafísica. Tradução de Mario Matos e Bernhard Sylla. Coleção Pensamento e Filosofia. Lisboa: Ed. Instituto Piaget, 1987, pp. 11-12.

74 STEIN, Ernildo. Compreensão e finitude:estrutura e movimento da interrogação heideggeriana. Ijuí: Ed. Unijuí, 2001, p. 22.

75 STEIN, Ernildo. Diferença e metafísica:ensaios sobre a desconstrução. Porto Alegre: Ed. EDIPUCRS, 2000, p. 46.

76 Isso porque, para Heidegger, no horizonte da metafísica pode considerar-se a questão do ser como tal apenas como uma repetição mecânica da questão do ente como tal. A questão do ser como tal constituiria então apenas uma questão transcendental entre outras, embora pertencendo a uma ordem superior. Tal desvio interpretativo da questão do ser como tal obstruiria, porém, o caminho para um desenvolvimento apropriado dessa questão. In:Introdução à metafísica. Op. cit.,p. 26.

77 Ibidem,p. 21.78 Ibidem,p. 22.

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Ernildo Stein, sobre isso, dirá que Heidegger realizará uma virada paradigmá-tica na filosofia a partir do projeto de desconstrução da metafísica, escolhendo como objeto de sua crítica as obras de Kant, Descartes e Aristóteles. Em Kant, Heidegger localiza a questão do que é o ser humano através da analítica existen- cial; em Descartes, descobre a questão da subjetividade, que servirá como fio condutor por onde se fará a crítica; já a tarefa de reconstruir os conceitos que utilizará em Ser e Tempo dar-se-á a partir da crítica a Aristóteles. Assim, toda a desconstrução é realizada em função da percepção de homem enquanto finitude, enquanto ser dotado de um espaço de compreensão. Um encurtamento hermenêutico que reduziria a filosofia ao campo da linguagem, ao campo da analítica existencial, ou seja, ao campo do próprio homem.79

É possível então situar o pensamento de Heidegger no interior de uma nova hermenêutica condizente à totalidade do existente humano e sua relação com o mundo, num continuísmo ao trabalho de Schleiermacher, protagonista da libertação da hermenêutica interligada a leitura da bíblia, bem como de Dilthey e o rompimento da hermenêutica em sua relação de dependência com as ciências naturais. Um dos pontos de partida heideggeriano é dar continuidade a alforria da hermenêutica de uma alienação estética e histórica para estudá-la em seu elemento puro de experiência da existência humana.80 O autor de Ser e Tempo propõe um rompante ao continuísmo da filosofia subjetiva, onde o fundamento, o ser, identifica-se com o sujeito. Heidegger resgata – e essa parece ser sua maior contribuição – a questão do ser, ofuscada desde os gregos81, percebendo que ela não aponta para um sujeito absoluto e transcendental, mas para uma temporalidade absoluta, para o a priori da própria existência humana.

O ser, nesse contexto, é o conceito evidente por si mesmo, donde conclui Heidegger que ele não é um ente. Isso porque em todo o relacionamento com

79 STEIN, Ernildo. Diferença e metafísica: ensaios sobre a desconstrução. Op. cit., pp. 49-52.80 FERNÁNDEZ-LARGO, AntonioOsuna. Hermenêutica Jurídica : en torno a lahermenéu-

tica de Hans-Georg Gadamer. Valladolid: Ed. Secretariado de Publicaciones, Universidad de Valladolid, 1992, p. 41.

81 De acordo com o pensamento de Stein, a metafísica ocidental parte do pressuposto de que o ser e a verdade são colocados no horizonte da transparência e da identidade. Deus é a total transparência, sendo a verdade por excelência. É o fundamento do ser e da verdade, o arquétipo de todo o conhecimento perfeito. STEIN, Ernildo. Compreensão e finitude: estrutura e movimento da interrogação heideggeriana. Op. cit.,p. 21.

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os entes faz-se uso do ser, e nesse uso compreende-se. Logo, ser é sempre ser de um ente, que traz consigo um primado ôntico e um primado ontológico. O primado ôntico é o primado da existência do ser, da presença: um ente determinado em seu ser pela existência. Já o primado ontológico guarda relação às condições a priori de possibilidade sobre o sentido de ser82, razão pela qual o filósofo alemão identificou a necessidade de um ponto prévio para compreender o sentido do ser e a objetividade: a temporalidade e a historicidade do ser-aí (do homem, do Dasein, do ser-no-mundo). Heidegger, para tanto, apropria-se da fenomenologia83, associando-a ao aspecto hermenêutico, que se revelará graças à presença da diferença entre ser e ente.84

A postura heideggeriana se caracterizará por explicar a compreensão como forma de definir o ser-aí, o que é dado entender sobre o existente humano, como sua finitude, sua projeção ao futuro, sua precariedade.85 O compreender faz parte da estrutura do ser-aí e a questão sobre o sentido do ser só é possível quando se dá uma compreensão do ser, que não pode ser concebido como ente. Para Ernildo

82 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Op. cit.,pp. 44-51.83 Segundo Stein, o fator determinante do pensamento de Heidegger foi seu encontro com a

fenomenologia. A palavra de ordem do movimento filosófico desde Husserl guarda relação com a expressão “as coisas em si mesmas”. Cada espécie de ente tem seu modo próprio de se revelar ao investigador e constatações filosóficas com sentido somente podem ser feitas quando fundadas nessa auto-revelação. Compreendido o ser como velamento e desvelamento, decidido que o ser é “a coisa em si mesma”, estabelecido que o ser, desde a antiguidade, se dá como tempo, determinado que o método da filosofia é o mostrar fenomenológico, então se apresenta toda a problemática heideggeriana até hoje envolta nas experiências e no seu contato com Husserl. A tarefa fundamental da filosofia será, portanto, para Heidegger, captar o ser como velamento e desvelamento por meio de um método adequado e no horizonte adequado. O método adequado será a fenomenologia esboçada em Ser e Tempo. O horizonte adequado será o tempo que, desde a antiguidade, vem ligado ao ser. Para analisar o ser ligado ao tempo é preciso partir daquele ente que esconde em suas estruturas o tempo como seu sentido: é o ser-aí. Portanto, é necessário partir da faticidade do ser-aí que esconde em suas estruturas a temporalidade para determinar o ser como tempo. Isso é possível porque o único ente cujo ser consiste em compreender o ser é o homem. Dessa maneira, uma hermenêutica das estruturas do ser-aí, realizada pelo método fenomenológico hermenêutico, conduzirá ao horizonte em que se poderá interrogar pelo sentido do ser que é o tempo. Afinal, interrogar pelo ser no tempo e partir da temporalidade do ser-aíé movimentar-se na finitude, é compreender a questão do ser fora do contexto da tradição metafísica. In: Compreensão e finitude:estrutura e movimento da interrogação heideggeriana. Op. cit.,pp. 135-147.

84 MOREIRA FILHO, José Carlos. Hermenêutica filosófica e direito: o exemplo privilegiado da boa-fé objetiva no direito contratual. Op. cit.,p. 35.

85 FERNÁNDEZ-LARGO, AntonioOsuna. Hermenêutica Jurídica: en torno a lahermenéutica de Hans-Georg Gadamer. Op. cit.,p. 41.

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Stein, a interrogação heideggeriana guarda compromisso com a finitude, onde a busca pela verdade do ser, do sentido do ser, começa pela analítica existencial. Nas estruturas da finitude e da temporalidade do ser-aí, local onde se manifesta o sentido do ser. Essa compreensão exige uma situação hermenêutica passível a partir do círculo hermenêutico, um conhecimento como articulação de uma pré-compreensão, razão pela qual Heidegger parte de uma intuição fundamen-tal que comanda sua analítica existencial: a aletheia, compreendida enquanto desvelamento (tirar do velamento).86

Assim é que em Heidegger somente há ser enquanto se der a compreensão do ser. Somente há ser enquanto há ser-aí, já que este pré-domina o processo de compreensão. Somente há verdade enquanto há ser-aí, o que representa um golpe para a metafísica da subjetividade87, já que o filósofo parte do fato do ser-aí, que é ser-no-mundo, renunciando o sujeito ideal, o eu puro, a consciência em geral, a filosofia transcendental. Assim é possível referir, parafraseando Stein, que com Heidegger a dimensão interrogativa não se localiza mais na consciência, no espírito, na reflexão subjetivística, apontando antes para o terreno da faticidade do ser-aí e sua estrutura temporal finita. Ela é o sentido do ser-aí, que enquanto ente compreende o ser. E aquilo que o ser-aí pode compreender e explicitar o ser é o tempo. Este é o horizonte de toda a compreensão do ser.88

Nesse ambiente, como revela Grondin, a própria interpretação é o negócio da hermenêutica elevada ao nível da filosofia, e isso em vista de uma auto-transparência do ser-aí, a ser conquistada, onde o trabalho filosófico de clarificação simplesmente leve a termo a interpretação, que o entendedor ser-aí já realiza sempre. A hermenêutica filosófica visa a uma auto-interpretação da faticidade, a uma interpretação da interpretação, para que o ser-aí possa tornar-se transparente para si mesmo, pois nela devem ser manifestadas ao ser-aí as estruturas básicas de seu ser.89 A interpretação, no sentido oferecido pela perspectiva heideggeriana, será então o desenvolvimento das possibilidades abertas que existem no Dasein. O compreender será um “ver entorno” e sua fundamentação reside em um “ter

86 STEIN, Ernildo. Compreensão e finitude:estrutura e movimento da interrogação heidegge-riana. Op. cit.,pp. 23-27.

87 Ibidem, p. 30.88 Ibidem, p. 104.89 GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Op. cit.,p. 167.

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prévio”, de modo que a interpretação se decide na antecipação da compreensão. Ela está prefixada no previamente possuído, visto e obtido. Logo, não há interpretação sem a prévia referência de sentido das coisas, uma condição prévia do Dasein.90

A transposição desse pensamento ao âmbito do direito processual, o que pa-rece ainda não ter ocorrido no processualismo contemporâneo, justifica porque, já na introdução deste trabalho, fez-se alusão à necessidade de superação do juiz solipsista, detentor de um poder (subjetivo) solitário, arraigado ao procedimento para legitimar sua íntima convicção em relação a determinado caso submetido a “sua” jurisdição, seduzido pelo método (rito ordinário) em (ficcionalmente) extrair da lei um sentido único e absoluto, colocando em jogo a potencialidade de concreção das promessas constitucionais. A necessidade no rompimento de uma cultura jurídica que há séculos confere ao juiz a posição de senhor da linguagem, local em que se despreza o conjunto de contextos interpretativos já existentes e em que se diz o direito de forma livre, independente do elo que liga ao passado da tradição (autêntica).

É notável como o processo ainda vem trabalhando, por exemplo, com a ques- tão da interpretação. Registre-se que para Eduardo Couture, processualista renomado, “interpretar é extrair sentido”, o que demonstra o intenso comprome-timento do processo com a filosofia da consciência e, por consequência, com o protagonismo judicial.91 No direito, o grande defensor dessa aposta na consciência do juiz, sujeito pensante do conhecimento, é Herbert Hart, que no contexto do direito anglo-saxão sustentou que diante do fato da indeterminação ser uma característica inerente à linguagem jurídica, e que na decisão dos casos difíceis existe mais de uma interpretação razoável, quando tais casos chegam ao Judiciário os juízes têm discricionariedade para escolher a interpretação que consideram mais “adequada”.92

É incrível como esse protagonismo judicial, o que não é de todo enfrentado pela literatura processual, mantém-se arraigado à filosofia da subjetividade, à

90 FERNÁNDEZ-LARGO, AntonioOsuna. Hermenêutica Jurídica: en torno a lahermenéutica de Hans-Georg Gadamer. Op. cit.,p. 61.

91 COUTURE, Eduardo J. Interpretação das leis processuais. 2.ª edição. Tradução de Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1993, p. 40.

92 RODRÍGUEZ, Cezar. La decisión judicial. El debate Hart-Dworkin.Bogotá: Siglo Del Hombre Editores,Universidad de los Andes, 1997, p. 34.

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tradição metafísica ocidental e sua aposta no subjetivismo do sujeito pensante e em sua crença de que há uma essência verdadeira em si mesma no direito a ser cap- tada pelo sujeito do conhecimento mediante um trabalho de índole dedutiva.93 Fato semelhante, só que na filosofia, levou Heidegger, através da aletheia, a substituir a substância e a subjetividade da tradição metafísica pela possibilidade, pelo ser pensado, não apenas como presença (metafísica), mas como possibilidade de presença (desvelamento).94

Com isso é possível perceber que a obra de Heidegger coloca o problema do conhecimento de maneira radical, desenvolvendo a hermenêutica no nível ontológico, uma ontologia fenomenológica que é uma hermenêutica do ser-aí, onde o horizonte do sentido é dado pela compreensão.95 Um problema que em Heidegger torna-se prático. Segundo Stein, a questão teoria/práxis percorre como tema central em Ser e Tempo. Isso justifica porque Descartes é um alvo privilegiado de Heidegger. É na obra cartesiana que assoma a afirmação da modernidade na filosofia: a subjetividade96. Um elemento que justifica a preocupação do filósofo alemão com a questão do método, a grande questão da filosofia da consciência.

Ser e Tempo, a principal obra heidegeriana, desenvolve-se na direção de uma nova questão do método (em Heidegger, o método assume a feição de uma fenomenologia). Nele apareceria uma nova metáfora: o círculo hermenêutico, desaparecendo a ideia da re-flexão, da introspecção, da reduplicação do mundo na consciência. O círculo da compreensão introduz elementos radicalmente novos. Em lugar da consciência põe-se uma hermenêutica do ser-aí, da inelutabilidade do ser histórico do dado, da descoberta da compreensão do ser-no-mundo.97 Em Heidegger é na compreensão que se esboça a matriz do método fenomenológico, possuindo (a compreensão) uma estrutura em que se antecipa o sentido, com-

93 MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Subsídios para pensar a possibilidade de articular direito e psicanálise. In: Direito e Neoliberalismo. Elementos para uma leitura interdisciplinar. Curitiba: Ed. Edibej, 1996, p. 28.

94 Ibidem,p. 84.95 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da

construção do Direito. Op. cit.,p. 177.96 STEIN, Ernildo. Seis estudos sobre “Ser e tempo”. Op. cit.,pp. 24-25.97 Ibidem, p. 32.

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pondo-se de aquisição prévia, vista prévia e antecipação, nascedouro da situação hermenêutica.98

4. conclusões

Transpondo-se o pensamento de Heidegger ao direito processual, o que é possível afirmar sobre a relação entre método, procedimento e situação herme- nêutica na história moderna do processo? Este trabalho parte do pressuposto de que a (contínua) fixação do processualismo moderno pelo ser do procedimento como legitimador da atividade inerente ao dizer o direito não acompanhou o ontologicalturn(a invasão da filosofia pela linguagem), assim como não acompa- nhou o surgimento dos novos direitos oriundos do movimento neocons-titucionalista compromissário e dirigente, tornando-se uma ferramenta pouco democrática e pouco realizadora. Tem se mantido num déficit de realidade produzido principalmente pelo subjetivismo do magistrado e pela supervaloriza-ção do processo de conhecimento e seu corolário método ordinário-declaratório-plenário, o que o distanciou da própria Constituição.

Essas constatações respondem porque aquilo que Heidegger denominou de situação hermenêutica é algo fragilizado no âmbito processual, o que interfere no próprio processo compreensivo do juiz, intérprete final do caso concreto. Isso se manifesta com maior intensidade quando se está frente a procedimentos “faseafase”, os quais têm justamente o condão de obnubilar a compreensão do intérprete na medida em que vai paulatinamente afastando, com uma linguagem escrita e fria, o juiz das partes e do caso que se lhe apresenta.

Se a compreensão é marcada pelo sentimento da situação, e se a situação é quem proporciona a própria compreensão, fenômeno aliado ao que o intérprete já traz consigo mesmo, já que no Dasein reside uma pré-compreensão, não há como crer que o processo de que se dispõe atualmente tenha rompido com a filosofia da consciência (da subjetividade), uma vez que seu método, em razão do ritualismo e da supervalorização do subjetivismo interpretativo, fomenta o encontro de verdades absolutas renunciando a faticidade na relação processual.

98 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Op. cit.,p. 178.

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Veja-se que, por exemplo, no âmbito do processo civil moderno a fixação pelo rito ordinário acabou tornando o juiz um ser a-histórico, ausente de mundo; alguém que retira sentido dos fatos que se lhe apresentam. Foi o magistrado seduzido pela tradição do pensamento jurídico-dogmático e pela posição de autossuficiência do direito, que está à espera de sua captação mediante um processo racional-subsuntivoao aplicar a lei. Como é possível trabalhar com esses conceitos quando se está frente, novamente tomando-seo processo civil como exemplo, a sistemas de valoração de provas, a uma escritura que renunciou a linguagem oral afastando juiz e partes, a um sistema recursal que dia após dia vem apostando no solipsismo do relator, a prática da reprodução, da fungibilização do fato, dentre outras coisas?

Isso justifica a preocupação destetrabalho em pensar uma filosofia no processo. Em pensar o direito processual hermeneuticamente, o que conduz a necessidade em compreender a filosofia de Heidegger e seu processo de desconstrução metafísica (que para o filósofo será tida como nome para o núcleo de toda a filosofia) vigorante no pensamento moderno. A transposição da hermenêutica filosófica ao processo revela que o conhecimento sobre o fato (caso concreto), ou seja, o próprio acesso a ele, sempre se dá a partir de um ponto de vista, de uma pré-compreensão. Ela é condição inexorável à interpretação e à (não cindida) aplicação do direito (que do fato não se cinde), tese que foi inaugurada com Heidegger ao analisar a questão ontológica do ser-no-mundo (Dasein).

Como pôde, diante impulso filosófico hermenêutico, ter sido o processo mantido no interior da filosofia da consciência, classicamente relacionado a um método, ciente de que o método, desde Descartes, é o supremo momento da subjetividade, encobrindo a diferença entre ser e ente, que é ontológica? O fato é que o processo da modernidade, dada a renúncia ao plano fático, ao direito material-constitucional, transformou tanto os fatos quanto o direito em objetos de representação, como algo à disposição do intérprete, ou melhor, à disposição de sua subjetividade. Com isso passou a ser o lugar apropriado para que o operador do direito pudesse descobrir o sentido da lei, a vontade do legislador, tudo diante da razão, do método (revelando a subjetividade do próprio intérprete).

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Carnelutti99 e Chiovenda100, doutrinadores renomados pelo processualismo clássico, serão os principais expoentes dessa intenção de teorização (subjetivação) do direito processual, que acabou classicamente relacionando a atividade interpretativa com os métodos da dedução e da indução. Esse ideário também faria parte da obra de Enrico Allorio101, Adolf Wach102, Ugo Rocco103, Pedro Aragoneses Alonso104, Enrique Véscovi105 e, no Brasil, principalmente com Benedito Hespanha, para quem a interpretação jurídica é a alma da observância e da aplicação do direito, razão pela qual quem observa e quem aplica o direito deve descobrir o sentido e a compreensão das normas jurídicas, o que faz da interpretação um pensamento racional que conduz à escolha livre de seu próprio direito, justificando porque o homem precisa “interpretar bem” o preceito jurídico.106107

Toda essa lógica científica a que o direito processual está embebido, umbilicalmente relacionada a uma técnica processual enquanto técnica inter-pretativa acabaria, por razões metodológicas, a ignorar que a compreensão do substrato fático em processo depende da inserção do intérprete (juiz) na situação hermenêutica, sem o que o ente (fato/direito) não existirá. Ele necessita estar junto ao ser, o que pressupõe a linguagem como abertura e como condição de possibilidade. Isso, como se viu, vem da filosofia heideggeriana, para quem as condições do processo interpretativo têm a linguagem como meio de acesso ao

99 Consultar, para tanto: CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil, volumes I a IV. Tradução de Hiltomar Martins de Oliveira. São Paulo: Ed. Classicbook, 2000.

100 In:CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Vols. 1, 2 e 3. Campinas: Bookseller, 1998.

101 In: Problemas de derechoprocesal.Tradução para o espanhol de Santiago Sentis Melendo. Buenos Aires: Ed. EJEA, 1963.

102 In:Manual de derechoprocesal civil. 1ª ed. Buenos Aires: Ed. Juridicas Europa-America, 1977.

103 In:Derechoprocesal civil. Tradução para o espanhol de Felipe Tena. México: Ed. Porrua, 1944.

104 In:Proceso y derechoprocesal:introducción.Madri: Ed. Aguilar, 1960.105 In:Teoría general delproceso.Bogotá: Ed. Temis, 1984.106 In: Tratado de teoria do processo. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1986, pp. 757-758.107 Acerca da intenção de teorização (subjetivação) do direito processual civil, consultar:

HOMMERDING, Adalberto Narciso. Fundamentos para uma compreensão hermenêutica do Processo civil.Op. cit., pp. 135-184.

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mundo, tese que fará com que o filósofo desenvolva sua fenomenologia herme-nêutica. A linguagem, nesse pensamento, é constituidora do saber, do modo-de-ser-no-mundo.

No âmbito da filosofia, nesse mesmo movimento de invasão da linguagem, os elementos da filosofia hermenêutica de Heidegger serão extremamente importan-tes para que Gadamer, em Verdade e Método, com a proposta de uma filosofia da existência humana, onde a fenomenologia da compreensão se identifica com a fenomenologia da própria existência humana108, retome a questão da linguagem, do caráter universalmente linguístico da experiência humana109, sustentando que a hermenêutica é forma de acesso ao mundo, tendo a linguagem como condição de possibilidade no interior da qual o homem se manifesta. É um acontecer. O exsurgir da compreensão, a qual dependerá da faticidade e da historicidade do intérprete110. Logo, não há método para interpretar; ao contrário, ela (a interpretação) depende da experiência do homem no mundo.

Essas considerações justificam porque não há, para Gadamer, compreensão sem linguagem. Ao elevá-la, o filósofo sustentará que é a linguagem que determina o próprio objeto compreendido, razão pela qual toda a interpretação é especulação, onde não existem significados infinitos (dogmas), justificando o fato de que a interpretação sempre trabalha com conceitos prévios (pré-compreensão), que podem ser substituídos por outros mais adequados. Uma reflexão que está dirigida contra a redução do mundo dos signos a instrumentos manipuláveis pelo homem.111 Nesse sentido é que a pré-compreensão atua sempre num movi-mento de reprojeção, pelo que o intérprete desvencilha-se de seus pré-juízos inautênticos, formando a estrutura da pré-compreensão.

Para este estudo a pré-compreensão (que é condição de possibilidade) assume a função delineadora de uma maior ou menor relação do intérprete (juiz) com o caso concreto (e com direito material-constitucional). Isso porque na perspectiva

108 FERNÁNDEZ-LARGO, AntonioOsuna. Hermenêutica Jurídica: en torno a lahermenéutica de Hans-Georg Gadamer. Op. cit.,p. 42.

109 RICOEUR, Paul. Del texto a laacción. Ensayos de hermenéutica II. Tradução para espanhol de Pablo Corona. México: Ed. FCE, 2002, p. 94.

110 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise:uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Op. cit.,p. 212.

111 RICOEUR, Paul. Del texto a laacción. Ensayos de hermenéutica II. Op. cit., p. 94.

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filosófica gadameriana não há espaço para a dicotomia sujeito-objeto, no qual o su-jeito se contrapõe a um determinado objeto que está a sua disposição, o que serviu de base para o pensamento filosófico ocidental em toda a história da metafísica, que por sua vez buscou na filosofia um fundamento para o conhecimento a partir do discurso em que impera a concepção de juízo, de síntese na subjetividade em que se fundamenta o enunciado.112 No ambiente de pensamento gadameriano, a linguagem é totalidade, local onde age o Dasein. Logo, onde falta a linguagem não há acesso a algo, porque ausente a compreensão do ser; o mundo somente aparece como mundo na e pela linguagem, onde ela determina a compreensão e o próprio objeto hermenêutico.113

Muito do pensamento de Gadamer se deve a uma exigência por ele mesmo tra-çada derivada de uma preocupação com a objetividade nas ciências do espírito: estabelecer a questão da consciência da história efeitual como princípio.114 A consciência da história efeitual está em consonância com a visualização da própria situação hermenêutica, expressando a exigência de tornar consciente a situação hermenêutica, para controlá-la. A questão está em que a consciência da história efeitual não está à disposição do ser-aí, que é submisso a ela na medida em que pré-compreende (ou não) algo. Ela obtém, como leciona Grondin, a função de uma instância basilar para cada compreensão, a partir da qual toda a compreensão continua determinada.115

Para Gadamer a história continua atuante. Já para Fernández-Largo, ela é o marco próprio e exclusivo do entender (é a condição prévia do compreender), relegando o marco anterior, que procedia de uma hipotética identificação,

112 STEIN, Ernildo. Diferença e metafísica:ensaios sobre a desconstrução. Op. cit., p. 47.113 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise:uma exploração hermenêutica da

construção do Direito. Op. cit., p. 204.114 Segundo a lição de Fernández-Largo, a questão da consciência da história efeitual em

Gadamer expressa a ideia de que a consciência histórica também se dirige aos efeitos provocados pelos fenômenos históricos no decorrer da história. Os fatos históricos vão se sedimentando no fundo da história, gerando sua sedimentação histórica captada pelo intérprete. Trata-se, enfim, de um aspecto construtivista da história, que não está amarrada ao primeiro significado dado a um determinado fato histórico, mas também a seu influxo no decurso do tempo histórico. In: Hermenêutica Jurídica: en torno a lahermenéutica de Hans-Georg Gadamer. Op. cit.,p. 57.

115 GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Op. cit.,pp. 190-191.

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mediante representação, do sujeito com o objeto.116 Assim determina a retaguar-da das valorações do Dasein, o que justifica que seus preconceitos são a realidade histórica de seu ser. Retira-sedisso a crítica de Gadamer ao historicismo, que pretende manter a distância a história que o determina, voltando suas atenções aos fenômenos históricos ou às obras transmitidas, sem se preocupar com o efeito desses fenômenos na história.117 Ter consciência da história efeitual quer dizer que a consciência do ser-aí foi cunhada por uma história efeitual que está sempre sendo reconquistada a partir de sua inserção na situação hermenêutica.

Com Heidegger essa consciência foi associada à própria estrutura prévia da compreensão, na medida em que quando o ser-aí procura compreender um fenômeno histórico a partir da distância histórica que determina sua situação hermenêutica ele se encontra sob os efeitos da história efeitual, que pré-determina o que se mostra questionável e o que é objeto de investigação. A consciência da história efeitual é a consciência da própria situação hermenêutica, que em cada caso se reveste de uma dificuldade própria. Gadamer associou ao conceito de situação o de horizonte, “o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que pode ser visto a partir de um determinado ponto”.118

Desse modo, a tarefa da compreensão histórica, marca essencial no pensamen-to do Gadamer, está no interior da exigência de em cada caso alcançar o horizonte histórico a fim de que se mostre o que se quer compreender. Compreender passa a ser um processo de fusão de horizontes que ocorre na vigência da tradição. Nesse processo, o presente não se forma a margem do passado; o velho e o novo crescem conjuntamente.119

Os horizontes são âmbitos de visão obtidos desde um ponto de vista deter-minado da história. Eles não se esgotam, nem se estabilizam, pois podem progredir na medida em o intérprete se desvencilha de pré-juízos inautênticos, penetrando em novos espaços de compreensão. Esse penetrar é um projetar o horizonte histórico no trabalho de compreensão, o que abre um novo horizonte ao presente. O processo compreensivo está intimamente interligado a ultrapassagem

116 FERNÁNDEZ-LARGO, AntonioOsuna. Hermenêutica Jurídica: en torno a lahermenéutica de Hans-Georg Gadamer. Op. cit.,pp. 53-54.

117 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Op. cit.,p. 397.118 Ibidem,p. 399.119 Ibidem,pp. 400-404.

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de um dado horizonte histórico e o aparecimento de outro, um novo horizonte superador, que não se cria a margem do passado e é fruto de seu enfrentamento com o presente. Nesse ambiente de fusão de horizontes parte-se da convicção de que a consciência histórica tem lugar tanto no fato passado quanto no presente atual do intérprete, submetido às condições de temporalidade e historicidade.120

Isso significa dizer, deslocando-se essa questão para o âmbito do direito pro-cessual, que um determinado fato só passa a ser hermeneuticamente compreen-dido a partir da historicidade do intérprete, o que pressupõe sua inserção no contexto da controvérsia e a pré-compreensão da Constituição. Só assim é que ao fato será possível o processo de atribuição de sentido a partir de uma recons-trução de seu significado.121 Uma fusão entre o horizonte em que age e habita o intérprete e o horizonte do próprio fato submetido à jurisdição processual.

5. referências

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FERNÁNDEZ-LARGO, AntonioOsuna. Hermenêutica Jurídica: en torno a lahermenéutica de Hans-Georg Gadamer. Valladolid: Ed. Secretariado de Publicaciones, Universidad de Valladolid, 1992.

120 FERNÁNDEZ-LARGO, AntonioOsuna. Hermenêutica Jurídica: en torno a lahermenéutica de Hans-Georg Gadamer. Op. cit.,pp. 55-56.

121 Isso faz lembrar Michele Taruffo no artigo intitulado Idee per una teoria delladecisionegiusta, para quem a reconstituição dos fatos é um pressuposto fundamental de decisões justas. In:Sui confini: scrittidellagiustiziacivile. Bologna: Ed. Mulino, 2002, pp. 223-224.

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retórica entimemática como estratégia judicial dos atores do desenvolvimento econômico, político e social no direito

do século xxi

Lorena Freitas1

Enoque Feitosa2

Resumo

O trabalho pretende discutir a retórica no ambiente judicial. Parte do pressuposto que direito é tecnologia de decisão para manutenção do status quo. Assim, considera o discurso judicial como um discurso de poder e com pretensão de neutralidade como estratégia argumentativa necessária para neutralizar os dissensos. A hipótese da pesquisa é a de que, para viabilizar o objetivo de neutralização, a forma pela qual o discurso judicial se formata é por meio de uma argumentação entimemática.

Palavras-chave

Entimema; Discurso Judicial; Argumentação.

Abstract

This paper discusses the rhetoric in the court room. The presupposition tags is that the law is a decision technology to maintain the status quo. Thus, the judicial discourse is a discourse of power with the pretense of argumentative neutrality, which theirs strategy needed to neutralize dissent. The research hypothesis is that, for achieving the goal of neutralizing the way the judicial discourse, the format is through a enthimematical argument.

1 Professora Adjunta II da Universidade Federal da Paraíba - UFPB. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas (PPGCJ/ UFPB). Líder do Grupo de pesquisa UFPB/CNPq: Realismo Jurídico.

2 Professor Adjunto III da Universidade Federal da Paraíba - UFPB. Responsável pelo Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas (PPGCJ/ UFPB). Líder do Grupo de pesquisa UFPB/CNPq: Marxismo e Direito.

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Key words

Enthimema; Judicial discourse; Argumentation.

1. do objeto do trabalho: a forma e a matéria ju-rídicas

O trabalho pretende discutir a retórica no ambiente judicial. Parte do pressuposto que direito é tecnologia de decisão para manutenção do status quo. Assim, considera o discurso judicial como um discurso de poder e com pretensão de neutralidade como estratégia argumentativa necessária para neutralizar os dissensos.

A hipótese da pesquisa é a de que, para viabilizar o objetivo de neutralização, a forma pela qual o discurso judicial se formata é por meio de uma argumentação entimemática.

O entimema é um silogismo retórico3 que consiste de poucas proposições, ou seja, menos do que a quantidade necessária. É um silogismo normal, pois caso qualquer dessas proposições seja um fato familiar, não há necessidade de mencioná-la, os ouvintes a acrescentarão por conta própria.4 A omissão de um dos enunciados no argumento tem função persuasiva, Lanigan refere-se ao entimema quando cita a lei clássica da lógica como um discurso do poder5.

Atentando para a delimitação metodológica, a pesquisa se concentra no trato do direito sob dois focos: a matéria e a forma, com o fito de compreender que a forma, isto é, a maneira como o discurso judicial é proferido é forma de um conteúdo específico6, e mais, é forma para um conteúdo específico, qual seja, o de ser expressão de manutenção das condições de desigualdade sociais, não obstante

3 ARISTOTLE. Rhetoric. Book I, 2, 1356b,5. New York: Dover, 2004.4 ARISTOTLE. Rhetoric. Book I, 2, 1357a, 16-19.New York: Dover, 2004.5 LANIGAN, Richard. From Enthymeme to abduction: the classic law of logic and the

postmodern rule of rhetoric. In: Recovering prgmatism’s voice: the classical tradition, Rorty and the philosophy of communication. New York: StateUniversity of New York, 1995, p. 49-70.

6 MARX, Carlos. “La ley sobrelosrobos de leña”. InEscritos de juventude. México. Fondo de Cultura, 1987, p. 281-282; Assinalando no mesmo sentido: FEITOSA, Enoque. Forma jurídica e método dialético: a crítica marxista ao direito.In: Marxismo, realismo e direitos humanos. João Pessoa: Ed UFPB, 2012, p. 118.

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as inúmeras conquistas jurídico-sociais que se tenha conseguido sob a rubrica de direitos humanos.

Para ilustrar a alienação entre forma e conteúdo do direito, trazemos o exemplo de algumas decisões em matéria de direito econômico. Todavia, ressalte-se que se trata de pesquisa bibliográfica e as decisões são elencadas e analisadas com fito de argumentação paradigmática.

Por fim, considere-se para efeitos deste artigo o termo discurso jurídico no sentido da argumentação proferida nas razões ou fundamentos que justificam uma decisão proferida. Não obstante o termo ser amplo, por questões de delimitação metodológica, o artigo vai se restringir a este âmbito do discurso judicial.

Assim, esse trabalho parte de dois pressupostos os quais orientam sua tese especifica: o primeiro deles é que o direito é examinado enquanto discurso de justificação de decisões, com o que se permite entender o uso que dele se faz como instrumento de convencimento social acerca das soluções construídas em seu âmbito, proporcionando uma análise retórica e pragmática da atividade judicial; em segundo lugar, o direito é aqui visto enquanto exercício de interlocução entre diversos atores sociais, o que confere centralidade aos problemas da relação entre o que é e como o que é será percebido e interpretado, trazendo assim à baila a reflexão acerca das relações entre verdade e interpretação.

Com isso, é preciso que se diga que, mesmo de forma incidental, este trabalho procura atingir uma questão polêmica entre os juristas, notadamente aqueles que cuidam da reprodução deste saber, isto é, aqueles que ensinam: para o direito atingir plenamente sua funcionalidade é necessário que seu operador entenda como se expressa o fenômeno jurídico e tire desse saber todas as conseqüências dogmaticamente permitidas a fim de que tenha êxito com o instrumento com o qual lida.

2. da retórica enquanto estratégia judicial

O que aqui se entende como retórica estratégica tem como referência os sentidos propostos por Ballweg (1991, p. 17), isto é, aquelas “retóricas materiais, com as quais preenchemos as funções básicas da vida em comum”. Estes sistemas

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lingüísticos constituem o vocabulário filtrado da linguagem comum e com os quais os juristas lidam em seu ofício.

Assim, não é minimamente necessário, para que se opere de forma estratégica o direito, que também se assimile todo aquele compêndio de ilusões que caracterizam o senso comum teórico dos juristas visto que a fixação de determina-das crenças não tem o condão de dar mais eficácia nas formas e meios de se utilizar o objeto. Ao contrário: compreender o direito, seus objetivos e finalidades enquan-to tecnologia de solução de conflitos ao despir o jurista prático das chamadas ilusões referenciais permite que ele aperfeiçoe sua ferramenta de trabalho.

Claro que tal opção de encarar o direito, na academia, ensinando-o e na vida concreta, resolvendo os negócios e problemas humanos, deixa o jurista sem a segurança da crença, mas, por outro lado, permite-lhe se apossar do “ceticismo esclarecido” do qual falava Holmes (1970), colocando no próprio indivíduo a responsabilidade das escolhas que faz acerca de como dotar de maior eficácia a ferramenta social que tem diante de si.

Ao mesmo tempo, uma visão crítica do direito serve para prevenir contra a onipotência que leva o jurista a seguir sentindo-se ou Atlas ou Hércules - com a dura opção de, ou carregar o mundo nos ombros ou de realizar tarefas inimagináveis - e adotar uma atitude mais tranquila, porque centrada em seus limites, de ser um operador do direito mais próximo de Hermes, isto é, voltado a descobrir, muitas vezes por meios tortuosos, os caminhos que o leva à decisão que resolva o problema da forma mais eficaz, operativa e socialmente útil que for possível, como assinalou Ost em texto clássico acerca dos três modelos de juízes.

O fato de o raciocínio jurídico ser diferenciado das demais formas deve-se muito mais a outras especificidades do que do fato dele não poder ser minimamente inteligível. Por exemplo, quando se desenvolve a cadeia de inferências “Matar é crime => João matou => João deve ser condenado, poderia parecer a uma lógica estrita que o raciocínio estaria errado e que a conclusão não decorre das premissas. Mas no campo jurídico, salvo as hipóteses das excludentes, ele é plenamente compreendido na medida em que outra cadeia de inferências está implícita: Todo aquele que mata alguém (salvo as hipóteses de excludentes de punibilidade) deve ser condenado => João matou => João deve ser condenado (com o que se tem a mesma conclusão anterior). Trata-se de um raciocínio entimemático – ou algo

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como um silogismo “encurtado” – na medida em que, como lembra Aristóteles (2004, p. 75), “se alguma dessas premissas for bem conhecida, nem é necessário enunciá-la, pois o próprio ouvinte a supre”.

Diz-se aí que há uma verdade sancionada pela forma jurídica e que ela faz parte do raciocínio jurídico e sequer precisa ser evidenciada por ser parte do senso comum dos que operam o direito, embora ela possa deixar de ser explicitada por pelo menos mais dois motivos interessantes: a) por ser “disfuncional” a sua menção ou, b) para, deixando lacunas propositais no raciocínio – quase que causal em certas circunstâncias – criar no interlocutor a crença que ele chegou a tal ou qual conclusão e não a de que foi conduzido a ela, algo que não agrada a ninguém.

Embora – pelo menos para as pessoas com razoável formação em teoria do direito – se reconheça um objetivo prático de se buscar a persuasão nas lides jurídicas, tais questões necessitam, de forma premente, de serem justificadas. A persuasão não seria mais do que um meio de realizar o intento da justificação, na medida em que, “nem mesmo que tivéssemos a ciência mais exata nos seria fácil persuadir com ela certos auditórios” (ARISTÓTELES, 2004, p. 31). Por isso que seria pouco provável que quem quer que seja tivesse êxito numa demanda se acerca dela não conseguisse oferecer boas razões. Logo, entender o direito como discurso de justificação implica em notar que a noção essencial aqui con-tida é de que se deve sempre oferecer boas razões para justificar aquilo que se pleiteia. Quem sublinhou com propriedade essa questão foi Aristóteles (1998, p. 75), mostrando a diferença entre o discurso judiciário e os demais:

Nos discursos judiciários (...) há toda vantagem em captar o ânimo do ouvinte porque os juízes sentenciam sobre assuntos que lhes são estranhos (...) pelo que, escutando por escutar, entregam-se às partes em causa e não julgam no sentido rigoroso do termo [grifo dos autores do presente artigo].

Daí decorre a importância da argumentação, se valendo tanto dos apelos à razão (o logos), quanto dos sentimentos e afetos (o pathos) e mesmo do caráter daquele que pleiteia, o orador, através de seu ethos. Isso porque - como os realistas apontam - e independente de nossas valorações acerca disso, o direito acaba sendo, em última análise, o que juízes e tribunais assim definem enquanto tal,

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de forma que as instâncias argumentativa, retórica e persuasiva acabam por serem fundamentais, no sentido de em que direção caminhará a instância decisória.

Dessa forma, o que falta responder é (e este é um ponto essencial deste artigo): O que o direito busca justificar? Se a resposta consistir em afirmar que o direito visa justificar apenas a própria decisão, ela leva a um paradoxo - ao menos para os juristas não vinculados às teses do realismo jurídico e que vêem a decisão como silogismo - pelo qual ao direito incumbiria justificar o que já está decidido! E ainda que parcialmente o direito faça isso – justifique o já determinado (o que não constitui exatamente uma visão otimista do direito) – é preciso que se diga que ele justifica o poder, que assim se torna legítimo e, portanto, justifica a dominação.

Por isso que, pari passu com tal reflexão, trata-se de discutir em que condições a interpretação cumpre, no âmbito jurídico, menos um papel de descobrir sentido ou alcance da norma, intenção do texto ou do legislador e muito mais um papel de justificação do direito e do poder que lhe é consectário. Para não padecer de incompletude e imprecisão, desde logo se atente para o objetivo em que será trabalhada tal afirmação, qual seja, a de que a interpretação cumpre um papel de justificação.

Assim, a ideia de justificação é trabalhada no sentido de fundamentação po-lítica do direito, mas também no que lhe atribui Wróblewski (1985) ao tratar da oposição entre a justificação ou fundamentação interna e a sua justificação exter-na, em que a primeira se refere à validade de uma inferência a partir de premissas dadas e a segunda a que põe a prova o caráter menos ou mais fundamentado dessas mesmas premissas. A primeira seria mera questão de lógica dedutiva e a segunda vai além dos limites da lógica stricto sensu, na medida em que argumentar no interior da forma jurídica exige a observação de certos padrões de justificação.

Dessa forma, em toda ocasião em que for chamado a discutir os problemas que envolvam interesses materiais (e esses são a base fundamental do direito) compete ao jurista qualificado combinar o exame adequado da forma jurídica com uma refinada justificação interna. Daí assistir plena razão a Ballweg (1991, p. 07), quando ele assinala que “da retórica nenhum direito escapa”.

Dessa forma, fica mais evidente a necessidade de um trato retórico a relação entre verdade e interpretação, no direito, bem como a aplicabilidade de tais

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formulações a uma compreensão mais adequada do fenômeno jurídico e de suas finalidades sociais, contribuindo para sua teorização. Esse desiderato depende da instauração de uma boa dose de ceticismo, isto é, de retórica, na filosofia do direito, campo que ainda se alimenta de mitos românticos e ideais vagos e genéricos. Com isso, uma compreensão retórica da forma jurídica enquanto discurso socialmente constituído com o objetivo de justificar decisões pode dar respostas mais adequadas à otimização estratégica desse campo de saber, o que não elide seu controle social e caráter democrático.

Ou seja, se o direito é, efetivamente, poder e dominação, mas também pode evitar o arbítrio e o abuso. Ele argumenta em torno de fatos, mas lida com relatos. Nele, a verdade é o que as decisões de juízes e tribunais reconhecem como tal, pelo que tal conceito acaba por reduzir-se a um “selo de qualidade” que se apõe sobre determinadas afirmações e consensos argumentativamente construídos.

3. da matéria jurídica: o direito como expressão ideológico-discursiva de poder

O objeto deste ponto é tratar do discurso jurídico como um discurso ideoló-gico de poder. Para tanto a questão central aqui é apresentar em que sentido este artigo aborda o termo ideologia.

A hipótese do artigo é que a matéria do direito, seu conteúdo está vinculado ao conceito de ideologia mannheimiano que se veicula como aquelas ideias que se voltam para a manutenção ou conservação do status quo. Para garantir tal conservação o direito se utiliza de uma forma específica. Leia-se forma como os recursos instrumentais e estruturais para garantia de seu conteúdo específico. Isto posto, a forma entimemática – do ponto de vista da estrutura discursiva da linguagem jurídica – é o veículo proporcionador da indissociabilidade da forma e conteúdo jurídicos.

O marco teórico sobre o qual o artigo se erige é a partir das concepções de Karl Mannheim, herdeiro da tradição marxista7 e que distingue ideologia de utopia.

7 Ludovico chama atenção para o pondo de semelhança e dessemelhança quando diz que “por ejemploladeterminación social de lasideas, puessonéstastansóloconconstantes metodológicas

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Para compreender os termos mannheimianos, o primeiro exercício é com-preender seu referencial. É no âmbito de uma visão que distorce a realidade que Marx e Engels vão conferir sentido a ideologia. O termo é introduzido nos escritos deles mediante uma metáfora tirada da experiência física que é o fenô- meno óptico da inversão da imagem na retina ou na câmara escura de uma máquina fotográfica.8

É a imagem invertida da realidade a base semântica do sentido forte de ideologia.

Quando falamos da concepção de ideologia, numa concepção marxista, compreendemos que há dois momentos fundamentais que urge rapidamente esclarecermos pra fechar a delimitação conceitual. Assim aludimos à divisão que é feita no seu pensamento – que se serve como propósito didático, mas não poderia ser tomado absolutamente como um corte epistemológico – com o antes e pós 1845.

No antes está a primeira fase9 dos seus escritos, cuja característica são as referências a Feuerbach e Hegel. Na segunda fase, que se caracteriza pela cons-trução do materialismo histórico, conserva-se a ideia da inversão, porém não partindo da realidade material, mas da consciência. Daí, ideologia são “as soluções puramente espirituais ou discursivas que ocultam efetivamente ou disfarçam, a existência e o caráter das contradições”.10

A referência ao marxismo foi mais característica do jovem Mannheim, apesar de que em toda sua obra sempre há esta discussão com elementos da teoria

aptas para elestudio de lo que Mannheim llamaprincipios vivos – entre ellosla ideologia y la utopia - , esto es, creaciones históricas, em todo distintas de presuntas formas ontológicas previas a toda historia humana. Em este sentido, puededecirse que fue Mannheim um buen discípulo de Marx, aunque em su obra se separa em más de um punto de ladoctrina marxista”. Cf. LUDOVICO, Silva. Teoria y practica de la ideologia. 13. ed.México: Nuestrotiempo, 1984, p. 84.

8 MARX. Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: teses sobre Feuerbach. São Paulo: Centauro, 2005, p. 26.

9 A expressão ideologia ainda não aparece nos textos, mas sim os elementos materiais do futuro conceito na crítica da religião e da concepção de Estado de Hegel, definidas como “inversões” que obscurecem o verdadeiro caráter das coisas. Cf. BOTTOMORE, Tom (ed.). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2001, p. 184.

10 Idem,p. 184.

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marxista, isto é, pontos que revelam nítida influência (como ao detalhar os ter-mos ideologia e utopia, ambos mantendo na base conceitual a ideia de consciência invertida ou a luta contra a burguesia, comungando com o pensamento de Marx) e pontos já não tão próximos. “Mannheim não era um marxista integral, combinou elementos marxistas com muitos outros heterogêneos, mas também para ele, o declínio da burguesia e a ascensão do proletariado era o traço essencial da fase contemporânea da história [...]”. 11

A base de falseamento da realidade aparece tanto ao tratar da ideologia como da utopia, pois o ponto crucial distinguidor é a função que essas ideias apresentam.

O conceito de ideologia, em Mannheim, reflete um aspecto emergente do conflito político que é o de que os grupos dominantes podem, em seu pensar, tornar-se tão intensamente ligados por interesse a uma situação que simples-mente não mais são capazes de perceber certos fatos que iriam ou poderiam de algum modo solapar seu senso de dominação. “Está implícita na palavra ‘ideologia’ a noção de que, em certas situações, o inconsciente coletivo de certos grupos obscurece a condição real da sociedade, tanto para si como para os demais, estabilizando-os, portanto”.12 (grifo nosso).

Tal inversão da realidade também aparece em Mannheim quando discute utopia. O conceito de pensar utópico reflete a descoberta oposta a de ideolo-gia. Por este, a condição de certos grupos oprimidos estão intelectualmente tão firmemente interessados na destruição e na transformação de uma dada condição da sociedade que, “mesmo involuntariamente, somente vêem na situação os elemen-tos que tendem a negá-la. Seu pensamento é incapaz de diagnosticar corretamente uma situação existente da sociedade”.13 (grifo nosso).

Na mentalidade utópica, a preocupação não é exatamente com o que existe realmente, antes, no seu pensamento, buscam logo mudar a situação existente.

11 KECSKEMETI, Paul.Introdução à Sociologia do Conhecimento. In: MANNHEIM, Karl. Sociologia do Conhecimento. Trad. Maria da Graça Barbedo. Vol. I. Porto: Rés, 19--, p. 10.

12 MANNHEIM, op. cit., 1968, p. 66.13 Idem, p. 67.

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Aqui “o inconsciente coletivo, guiado pela representação tendencial e pelo desejo de ação, oculta determinados aspectos da realidade. Volta as costas a tudo o que pudesse abalar sua crença ou paralisar seu desejo”.14 (grifo nosso).

Daí que a noção de falsidade permanece no seu pensamento, que inclusive ele prefere denominar de “ideias situacionalmente transcendentes ou irreais” em oposição às “ideias adequadas ou situacionalmente congruentes”15, a distinção que opera é ao introduzir a questão da utopia, e assim, delimitar as definições dos dois conceitos.

Todavia, o mérito de Karl Mannheim foi ter relacionado ideologia e utopia, mantendo ao mesmo tempo a distinção entre ambas. Nesta distinção, as ideo-logias têm como objetivo a manutenção ou conservação da situação, é um conceito completamente com função oposta à da utopia. A utopia está sempre num processo de se realizar, já a ideologia não tem este problema de ser realizada, porque é a legitimação do que existe. 16

A irrealização que dá sentido ao termo utopia no senso comum, adquire em Mannheim a potencialidade ou superveniência de acontecer. É um u–topos, lugar nenhum, enquanto condição primeira para sua transformação.

A insatisfação e desejo de mudança, imprimem à utopia mannheimiana a perspectiva transformadora. Por isso que ela “transcende a realidade, rompe as amarras da ordem existente”. 17

Portanto, o foco na função das ideias, transformar (utopia) e/ou conservar (ideologia) a situação, é que definem os termos Mannheimianos.

Considerando que o direito tem sua razão de ser na sua função conservadora, posto que a sociedade civil, e assim o direito surgiu com este fim (como o diria Rousseau no seu Tratado sobre a origem das desigualdades ao afirmar que aquele que teve primeiro que todos a ideia de cercar um lugar e dizer isto é meu, foi este individuo o verdadeiro inventor da sociedade civil (ROUSSEAU, 1983, p. 89), é o termo ideologia que explica a matéria jurídica, no sentido ontológico do

14 Idem, p. 67.15 MANNHEIM, op. cit., 1968,p. 218. 16 RICOEUR, o. cit., 1986, p. 450.17 MANNHEIM, op. cit. 1968, p. 216.

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termo. E para garantir a ideologia do direito a forma entimemática se revela a mais funcional como se passa a expor.

4. da forma jurídica: a hipótese da retórica en-timemática

Para Marx os trabalhadores estariam dominados pela ideologia da classe dominante, ou seja, as ideias que eles têm do mundo e da sociedade seriam as ideias transmitidas ideologicamente pela classe dominante.18

Considerando o legislador como pertencente ao aparelho do Estado19 e, em sua maioria, oriundo dos grupos mais fortes, nunca legislará contra a sua ideologia, que será, por extensão, a ideologia do próprio Estado, instituindo o ordenamento legal impregnado de ideologia e privilégios gozados somente pelos próprios que integram a classe que domina.

Assim a lei está a serviço da ordem político-econômica, que necessita - para garantir a segurança das expectativas e o jogo do mercado, mediante o reconhecimento, a definição e a regulação da propriedade privada - da livre disposição contratual, dos direitos adquiridos, enfim da lei garantindo o interesse de alguns, garantindo o direito de propriedade.20

Garantem-se assim os interesses de manutenção da ordem aos auspícios de uma tão proclamada segurança jurídica, que na verdade é um anseio pela manutenção da segurança do status quo. Para tanto reiteram discursos retóricos avultando o princípio do pacta sunt servanda21.

Nesse âmbito retórico do direito, fundamental é desnudar os trejeitos discursivos que apregoam uma visão de igualdade, mas ocultando as reais

18 MARX; ENGELS, op. cit.,2005,p. 63.19 Vale ressaltar que o direito pertence ao mesmo tempo aos aparelhos repressivos e ideológicos

do Estado. Cf. ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do estado. 9.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003, p. 68.

20 “O Estado, pois é a forma pela qual os indivíduos de uma classe fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de uma época [...]. Daí a ilusão de que a lei repousa na vontade e, mais ainda, na vontade livre, destacada de sua base real. Do mesmo modo o direito é reduzido, por seu turno à lei”, cf. MARX; ENGELS, op. cit., 2005, p. 114.

21 “Os pactos devem ser cumpridos”, brocardo jurídico.

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desigualdades sociais das classes bem como as contradições entre estas e as ideias que supostamente as explicam e controlam, como se natural fossem as condições de existência e encobrindo as contradições dessa realidade.

Operando o sistema jurídico com a distorção do real, no sentido de que se encarregando de fazer com que as imagens das relações sociais sejam reproduzidas e transformadas num conjunto coerente lógico e sistemático de ideias que agirão como apresentação da realidade, o direito estabelece as normas e regras de um comportamento ideal.

Como diz Bourdieu, “o direito só pode exercer sua eficácia específica na me-dida em que obtém o reconhecimento, quer dizer, na medida em que permanece desconhecida a parte maior ou menor de arbitrário que está na origem de seu funcionamento”.22

Nesse sentido a ideologia jurídica assegura a todos modos de entender a realidade e de se comportar nela ou diante dela, eliminando dúvidas, angustias, insatisfações. 23

Por fim, tendo Marx articulado originalmente a ideia de uma construção teórica distorcida, i.e., ligada a uma condição histórica ensejadora de distorção, tem-se desde logo a vinculação da ideologia à alienação24.

Mas como o direito formata e cria as condições garantidoras de tal alienação/ manutenção do status quo?

A hipótese que o artigo defende é pela forma entimemática.

O entimema é um silogismo incompleto no sentido que alguma de suas premissas ou a própria conclusão está ausente. Tal ausência não significa a impossibilidade de uma termo médio ou a inexistência da inferência. “Um argumento incompletamente enunciado é caracterizado como entimemático...parte fica ‘subentendida’ ou apenas ‘na ideia’”.25

22 BOURDIEU, op. cit., p. 243.23 Ou, nas palavras de Bourdieu, o imperativo formulado por um dos grupos que compõem a

sociedade global tende a tomar um valor universal pela sua formalização jurídica. Cf. Idem, p. 244.

24 KONDER, Leandro. A questão da ideologia. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 31.25 COPI, Irving M. Introdução à Lógica. Trad. Alvaro Cabral. São Paulo: Mestre Jou, 1987, p.

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Quando se pensa no discurso jurídico26 tradicionalmente se ensina nos cursos de direito a partir da vizualização de um perfeito silogismo categórico do tipo:

Todo homem é mortal (premissa 1); Sócrates é homem (premissa 2); Logo, Sócrates é mortal (conclusão inferida das premissas pela eliminação do termo médio).

Se pensamos uma regra como matar alguém pena de 6 a 20 anos (art. 120 do Código Penal Brasileiro) e um caso concreto em que Fulano mata Cicrano. A sentença condenatória tem, sob uma estruturação lógica genérica, a forma daquele silogismo categórico, pois: Matar alguém tem pena tal (premissa 1); Fulano matou Cicrano (premissa 2); Logo, Fulano enquadrado naqueles limites da pena por ter violado a regra (conclusão).

Todavia, esta ilustração não representa a formatação que explica a linguagem jurídica. Especificamente os fundamentos legais que lhe conferem legitimidade, estes estão explicitados, são exarados na decisão. Mas há argumentos indeclarados27 e que contribuem na escolha dos argumentos legais trazidos à colação na decisão.

Assim, há elementos ocultos que informam a decisão e a incompletude da for- ma entimemática serve como adequada porque garante a forma jurídica de veicular uma linguagem discursivo-ideológica do jurídico.

5. considerações finais: o exemplo de decisões de cu-nho econômico como argumento paradigmático do entimema retórico das decisões judiciais

Para ilustrar o caráter retórico-entimemático do discurso judicial decisório, qual seja o de fundamentação de decisão em que algumas das suas razões são obscurecidas, inarticuladas e não-ditas, tomemos o exemplo de algumas decisões do CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica).

26 Considere-se por discurso jurídico a argumentação proferida nas razões ou fundamentos que justificam uma decisão proferida.

27 Conforme Cardozo, “some principle, however unavowed and inarticulate and subconscious, has regulated the infusion”. CARDOZO, Benjamin Nathan. The nature of judicial process. New York: Dover, 2005, p. 7.

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O CADE é um tribunal administrativo brasileiro cujas funções estipuladas por lei (Lei 12.529 de 2011) são orientar, fiscalizar, prevenir e apurar abusos de poder econômico. Esta autarquia atua preventivamente nas análises das incorporações, fusões e associações de qualquer espécie entre agentes econômicos com a prerrogativa de julgar (aprovando, aprovando com condições ou rejeitando) as pretensões de fusões empresariais de modo a evitar a formação de trustes28.

A postura do decididor é influenciada por suas preferências, elementos externos ao direito e que se relacionam com a noção de ideologia mannheimiana, pois pretendem a manutenção da estrutura de poder econômico. Não se pode desconsiderar que as posições sociais e políticas de um conselheiro de CADE são muito mais aproximadas das dos empresários. A partir destas questões pode-se analisar algumas decisões tão díspares em casos bastante similares, bem como a ínfima quantidade de rejeição por parte do CADE dos atos de concentração.

Historicamente, as decisões do CADE sempre se destacaram pela aprovação dos atos de concentração. No período entre 1994 e 1998 e entre 2000 e 2004 o CADE só deixou de aprovar três atos de concentração, o correspondente a 0,1% do total de casos julgados29. No balanço demonstrativo de 201230 é possível perceber que, dos 825 atos de concentração julgados, apenas 3 foram reprovados.31

Tome-se como exemplo os pareceres do CADE relativos a duas fusões: a pri- meira que resultou na Ambev (CADE, Ato de concentração n. 08012.005846/ 1999-12) e outra que pretendia reunir Garoto e Nestlé (CADE, Ato de concentração n. 08012001697/2002-89). Da análise das liminares e decisões que se referem aos processos dos respectivos atos de concentração, o foco argu-mentativo nas consequências e implicações que as fusões ensejariam é o norte daquelas decisões administrativas, cujos argumentos reaparecem nas liminares e demais decisões judiciais que dali resultam.32

28 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. Atlas: São Paulo, 2006, p. 239.

29 Idem.30 Disponível em <http://www.cade.gov.br/upload/BALAN%C3%87O%20CONSOLIDADO

%20-%202012.pdf>31 BRAGA, Manuela F.; FREITAS, Lorena. Uma análise da proteção do direito concorrencial

pelo CADE sob o olhar do critical legal studies. In: XXII Congresso Nacional do Conpedi. Florianópolis: FUNJAB, 2013, v. 1, p. 265-286.

32 Idem.

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O que acontece é que em 1999 as cervejarias Brahma e Antártica propuseram uma fusão que, uma vez aprovada, como o foi, resultou na AMBEV. A AMBEV desde então, apesar de ter sido instada a se desfazer da marca Bavaria, tomou uma fatia de 64% do mercado de cervejas no Brasil, porcentagem bem acima dos 20% permitidos em lei. Já a Garoto/Nestlé, que foi negada, as empresas juntas toma- riam 70% do mercado de chocolates no país, de acordo com os relatórios da proposta. Uma fatia enorme, mas não destoante dos números aceitos anterior-mente pelo Conselho no caso da AMBEV, que também girava em torno dos 70%, podendo-se hoje observar em alguns estados uma fatia de 90% do mercado.33

Cardozo, ao expor como o juiz deve proceder diz que:

[...] deve pôr na balança todos os seus ingredientes: sua filosofia, sua lógica, suas analogias, sua história, seus costumes, seu senso de direito e tudo o mais; e, ajuntando um pouco aqui e tirando um pouco ali, o mais sabiamente que puder, determinará o peso que há de equilibrar a balança.34

Esta defesa por uma atuação/criação e interferência na decisão representa o principal cariz da postura realista – logo, oposta àquela idealista – quanto ao direito. É realista porque, antes de tudo, declara a existência de elementos subconscientes, nas palavras de Cardozo.

O idealismo (aqui entendido em sentido filosófico, ou seja, enquanto inversão da realidade, pela qual a idéia precede o real) está em crer e manter ilusões referenciais quanto ao direito quando constrói definições conteudistas como, por exemplo, definir direito em torno do ideal de justiça, encobrindo por outro lado que direito é expressão de força para manutenção de uma situação ou simplesmente que o direito é também poder-dominação, além de controle-disciplina.

Ressaltamos por fim que uma postura crítica frente ao direito não pretende, todavia destituí-lo de seu inegável valor como instrumento de pacificação social, de ordenação da vida em coletividade, apenas propor uma postura realista para sua compreensão, isto é, compreendendo-o de forma afastada de ilusões referenciais,

33 Idem.34 CARDOZO, Benjamin Nathan.The nature of judicial process. New York: Dover, 2005, p.

158.

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compreendendo-o como uma tecnologia para construção de decidibilidade com o fim último de manutenção das estruturas de dominação.

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secularismo e liberdade religiosa na abordagem de charles taylor

Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira1

Resumo

A história é o tempus da efetivação da liberdade. Embora o princípio do secularismo que domina as sociedades democráticas do Ocidente seja universalmente reconhecido, sua realização histórica caminha na proporção mesma da efetivação da liberdade dos cidadãos. O esforço de filósofos como Charles Taylor e Jocelyn Maclure em esclarecer os problemas que envolvem a liberdade religiosa no momento atual estão aliados ao tema do secularismo e da autenticidade ética. A igualdade de respeito e a liberdade de consciência são apontados como os dois princípios maiores da secularização. A política de reconhecimento das diferenças, de caráter universalista, preconiza que a digni-dade dos cidadãos exige justamente o oposto da política de reconhecimento igualitário, ao lutar pelo reconhecimento das singularidades que identificam os grupos sociais ou os indivíduos. Neste artigo, visa-se a unir estes pressupostos teóricos a uma concepção ecumênica como fonte para ampliação do debate sobre a liberdade religiosa ou a liberdade de consciência, que não exclua crentes nem não crentes. Este poderia ser o “secularismo aberto”

Palavras-chave

Secularismo aberto; Liberdade religiosa; Liberdade de Consciência; Charles Taylor.

Abstract

The History is the tempus of realization of freedom. Although the principle of secularism that dominates Western democratic societies is universally ack-nowledged, his historic achievement progresses in proportion to the realization

1 Prof. Dr. Universidade Católica de Petrópolis.

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of freedom of citizens. The effort of philosophers like Charles Taylor and Jocelyn Maclure clarifying the problems involving religious freedom at the present time are allied to the theme of secularism and ethical authenticity. Equal respect and freedom of conscience are seen as the two major principles of secularism. The policy for the recognition of differences, equally universalistic character, calls for the dignity of citizens requires precisely the opposite of egalitarian political recognition by securing recognition of singularities that identify the social groups or individuals. In this paper, we aim to unite these theoretical principles with a conception of the ecumenism as a source for expanding the debate on religious freedom or freedom of conscience, which does not exclude believers or non-believers assumptions. It could be the open secularismo.

Key words

Open Secularism; Religious Freedom; Freedom of conscience; Charles Taylor.

1. introdução

A história é o tempus da efetivação da liberdade. Esta proposição poderia ser atribuída a Hegel, contudo creio que ela deva ser referida primeiramente a Spi- noza. O paradoxo da liberdade determinista aventado pelo holandês foi assim resumido por Jean Préposiet: “O homem não pode nem produzir magicamente um ato livre, negando o determinismo absoluto do Mundo, nem renunciar voluntariamente de sua liberdade2” (PRÉPOSIET, 1967, 298). O esforço de cada indivíduo em perseverar em seu ser, o conatus, é inicialmente um esforço indivi- dual, porém, no processo de autorrealização, o conatus torna-se cada vez mais exigente e abre o indivíduo para o outro, numa ascensão contínua para a universalidade, para a comunidade, para a participação de todos nesta autodeterminação que podemos chamar de democracia. A confirmar esta conexão intrínseca entre o conatus e sua realização temporal indefinida, está a proposição VIII da terceira parte da Ethica: “Conatus, quo unaquaeque res in suo esse perseverare conatur, nullum tempus finitum, sed indefinitum involvit”.

2 “L’homme ne peut ni produire magiquement um acte libre, en niant le déterminisme absolu du Monde, ni se dessaisir volontairement de sa liberté”.

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O princípio de imanência ganha sua formulação metafísica com Spinoza, que vai influenciar toda a filosofia subsequente, especialmente a filosofia alemã do século XIX. Toda a Ethica do filósofo judeu está fundada num princípio básico que ele mesmo enuncia na primeira parte da obra: “Deus é causa imanente de todas as coisas e não transitiva” (Ethica, I, p. XVIII. O texto latino: “Deus est omnium rerum causa immanens, non vero transiens”). Deixando de lado neste momento a questão hermenêutica do famoso princípio, o fato é que este princípio, de um modo ou de outro, encontrou nesta proposição spinozista a caraterização do seu tempo, isto é, o tempo da imanência. O trabalho de um comentador de Spinoza, Yovel, parece determinante e definitivo para que se possa entender esse princípio e essa influência, especialmente na obra Spinoza and Other Heretics, quando, na segunda parte, identifica esse imanentismo spinozista nos principais autores modernos, como Kant, Hegel, Nietzsche e até Freud. Yovel afirma que, depois de Spinoza, a imanência é o horizonte total do ser, fonte única da ética e da política, e que o reconhecimento disso é condição prévia para a emancipação do homem. O próprio comentador admite níveis de compreensão desse princípio na história da filosofia moderna: 1. “a imanência é o horizonte único e global do ser”, o que poderíamos chamar de imanência metafísica e gnosiológica; 2. “é igualmente a única fonte de valor e normatividade”, imanência ética; 3. “integrar o reconhecimento disso em sua vida é o prelúdio e a condição prévia de toda libertação e emancipação do homem”, a imanência política e religiosa (YOVEL, 1989, p. 271 tradução nossa).

Como já disse em outro lugar (SILVEIRA, 2012, p. 47), o respeito pelo seme-lhante e por todos os indivíduos da natureza é a democracia natural: a natureza é democrática, só age em função da preservação da existência e não excede tal limite. A sociedade humana organizada visa a favorecer este estado de coisas, que é o próprio sentido de liberdade de Spinoza. Esta liberdade humana se exerce numa sociedade assim constituída, pois é a ideia mais adequada para a convivência humana, dado que se espelha na própria Natureza.

Sem aprofundar embora o processo de imanência spinozista de que o pensamento moderno é devedor, Charles Taylor, em sua monumental Uma Era Secular (2011), cita o filósofo holandês, com avaliação mais para negativa, dentro deste contexto imanentista. A crítica à concepção religiosa de Deus, levada

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a extremo por Spinoza em seu Tratado Teológico-Político, recebe o seguinte tratamento de Taylor: “A partir de uma perspectiva filosófica, como a de Spinoza, a religião histórica poderia ser descartada como algo condescendente a temores e ilusões populares e que oferece um retrato inteiramente desmerecido de Deus” (TAYLOR, 2010, p. 330, tradução nossa).

A ausência duma análise mais pormenorizada do imanentismo de Spinoza na referida obra de Taylor não exclui o reconhecimento da influência deste filósofo na concepção de democracia em que não somente a religião está separada do Estado e a liberdade de pensamento não deva ser regulada por este último. As exigências duma concepção democrática na qual todas as diferenças estão contempladas parece pertencer à mais autêntica fundamentação metafísica da democracia oferecida ao pensamento moderno. Seu modelo imanentista talvez seja a razão por que Spinoza tenha sido negligenciado pelo autor em temas tão determinantes na história das ideias relativas ao papel tanto da religião como do Estado numa sociedade democrática.

Por conseguinte, o mundo ocidental a partir do século XVI inicia um proces-so até aqui irreversível de secularização. Taylor, como disse, aborda este percurso de modo magistral na obra citada. Contudo, conceito de secularismo liga-se a outros tão famosos quanto esse, quais sejam: laicismo, secular, laicidade. Eis o que observam Teresa Toldy e Mathias Thaler (2011, p. 4):

O secularismo constitui, sem dúvida, um dos alicerces da autoimagem ideológica da Europa. A noção (ou, melhor dito, as noções) de secularismo serve(m) vários objetivos politicamente relevantes: marca(m) o momento da história europeia em que a Igreja e o Estado se separam institucionalmente; assinala(m) o constante declínio das crenças individuais, o que é, supostamente, um sinal de uma modernização bem-sucedida; e descreve(m) o processo de diferenciação que permite a multiplicidade de esferas sociais com os respetivos padrões locais de legitimidade. Estes objetivos constituíram-se, também, ao longo do tempo, como significados múltiplos da própria palavra “secularismo”. Aliás, a apresentação deste “fenómeno” só é possível recorrendo a uma série de conceitos nem sempre coincidentes: secularismo, secularização e laicidade não significam, necessariamente, o mesmo.

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2. que é o secularismo em taylor?

Na Introdução de Uma Era Secular, Taylor indica três sentidos ou três usos do termo secular. Primeiramente, o sentido mais conhecido, que se confunde com a laicidade, que é o sentido de separação entre religião e política. Os dois outros sentidos vão ganhando força ao longo da história mais recente. Trata-se, num segundo sentido, da concepção de que a secularidade consiste no abandono das convicções e da prática religiosa, um esvaziamento da religião. Finalmente, o terceiro sentido, que interessa a Taylor na obra em pauta, que é o entendimento, que de alguma maneira supõe o anterior, de que a fé é uma opção entre outras, e não necessariamente mais fácil que outras.

Em recente obra que investiga a liberdade de consciência e sua relação com o secularismo, Jocelyn Maclure e Charles Taylor anunciam logo na introdução que “one of the most important challenges facing contemporary societies is how to manage moral and religious diversity” (2011, p. 1). Esta obra é mais uma contribuição de Taylor, agora em companhia de Maclure, para a compreensão da religião na “era secular”. Com efeito, a obra insere-se no conjunto de investigações do filósofo canadense que teve seu ponto mais alto até agora na indispensável Uma Era Secular.

Maclure e Taylor explicam que o secularismo é normalmente entendido como separação entre religião e Estado, porém que o entendimento do secularismo no contexto mais atual indica que este conceito se relaciona ao princípio da igualdade dos indivíduos nas sociedades ocidentais globalizadas e multiculturais. Nestas sociedades devem conviver não somente as distintas religiões, mas também os que não aderem a nenhuma religião ou se consideram agnósticos, indiferentes ou em situação análoga a estas. Neste sentido estrito, alguns defenderiam que o princípio do secularismo deveria ser aplicado em todo lugar e no mesmo sentido:

“In that view the resolution to the debate on the place of religion in the public space is fairly simple: apply the principle of secularism rigorously.” (MACLURE, TAYLOR, 2011, p. 3). Trata-se do secularismo aberto (“open secularism”, que traduz para o inglês o termo “laïcité ouverte”), que não se reduza ao laicismo mono- lítico e remonta ao conceito debatido por Henri Peña-Ruiz (apud MACLURE, TAYLOR, 2011, p. 25):

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Secularism, let us recall, is the simultaneous affirmation of three values, which are also principles of political organization: freedom of conscience based on the autonomy of the person and of the private sphere; the full equality between atheists, agnostics, and the many kinds of believers; and a concern for universality in the public sphere, since common law should promote only the common interest of all. Thus understood, secularism is not about being opened or closed. It must quite simply exist, without any infringement of the principles that make it an ideal of concord, open to all without discrimination. The notion of open secularism is bandied about by those who, in reality, contest true secularism but dare not overtly oppose the values that define it. What could it mean to open up secularism if not to call into question one of its three constitutive principles, or even all three at the same time? You be the judge.

3. os princípios do secularismo

O modelo americano de secularismo analisado por Marta Nussbaum, estaria fundado, segundo Maclure e Taylor (apud 2011, p. 23) em seis princípios: igualdade, respeito igual concedido a toda pessoa, liberdade de consciência, adaptação, nonestablishment e separação.

A igualdade de respeito e a liberdade de consciência são apontados como os dois princípios maiores da secularização (MACLURE, TAYLOR, 2011, p. 20). É bem verdade que o tema da igualdade na filosofia de Taylor se enlaça com tantos outros que seria impossível abordá-los aqui. Mas, em vista da contextualização do problema aqui abordado e de sua relação com o princípio democrático fundamental que está subjacente a toda discussão do gênero, creio que o reconhecimento seja o elemento mais significativo para se situar o pensamento de Taylor sobre a igualdade.

O reconhecimento das diferenças, de caráter universalista, preconiza que a dignidade dos cidadãos exige justamente o oposto da política de reconheci-mento igualitário, e defende o reconhecimento das singularidades que identificam os grupos sociais ou os indivíduos.

Taylor propõe um reconhecimento das diferenças que não apenas permita a sobrevivência de uma cultura minoritária em uma sociedade, mas que reconheça

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seu valor (2010, p. 268), permitindo sua manutenção e efetiva influência na to- mada de decisões coletivas e na construção coletiva de significados em uma sociedade democrática. O reconhecimento, assim, configura um ato de respeito e valorização de diferenças culturais, não um ato de condescendência de grupos majoritários.

Para a obtenção de tal fim, uma articulação pública entre concepções dis- tintas de bem, na qual haveria a compreensão e aceitação dos elementos de percep- ções opostas, com o fim de formular uma visão comum e ampla de bem, publica-mente compartilhada e não excludente, que abrangeria as concepções iniciais.

Aprendemos a nos movimentar num horizonte mais amplo em que aquilo que antes tínhamos por certo como a base da valoração pode ser situado como uma possibilidade ao lado da base diferente da cultura desconhecida. A fusão de horizontes opera por meio do desenvolvimento de novos vocabulários de comparação, voltados para articular esses novos contrastes. Assim, se e quando terminarmos por encontrar apoio substantivo para nossa suposição inicial, isso depende de uma avaliação do valor que possivelmente não teríamos condição de fazer no começo. Chegamos ao juízo em parte por meio da transformação de nossos padrões (TAYLOR, 2010, p. 271).

A valorização e compatibilização entre as culturas requer um diálogo, um conhecimento dos fatores que constituem cada grupo social. Segundo Taylor (2010, p. 207),

[…] o que o pressuposto exige de nós não são juízos de valor peremptórios e falsos, mas uma disposição para nos abrirmos ao estudo comparativo das culturas que nos obriga a deslocar nossos horizontes nas fusões resultantes. Acima de tudo, exige que admitamos que estamos muito aquém desses horizontes, pelos quais o valor de diversas culturas poderá ser evidenciado.

Desse modo, Taylor busca um meio-termo entre a “exigência inautêntica e homogeneizante do reconhecimento de igual valor, e um lado, e o afrouxamento em padrões etnocêntricos do outro. Há outras culturas, e temos que viver juntos cada vez mais, tanto em escala mundial como na convivência no interior de cada sociedade” (2010, p. 273). Tais políticas de reconhecimento, conforme

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já registrado, fornecem parâmetros formação das identidades individuais, que devem ser adequadas às estruturas sociais de significado e não mais uma mera afirmação absoluta de individualidades.

A investigação que ora importa não se refere somente à eficácia dos fundamen-tos das políticas de reconhecimento para a ética e a política dos Direitos humanos, mas também a participação das distintas organizações religiosas na vida pública, graças sobretudo ao último trabalho de Taylor sobre a sociedade secularizada.

As polêmicas relativas aos projetos nacionais dos direitos humanos eviden-ciam a necessidade de um aprofundamento teórico e de uma fundamentação dos argumentos de cunho interdisciplinar. Estas polêmicas inserem-se também no debate internacional acerca da validade das políticas dos direitos humanos e das formas de inclusão social. Por exemplo, o comunitarismo, que tem raí-zes em distintas experiências religiosas, encontra-se remodelado nesta era que Charles Taylor caracteriza de secular. A era em que vivemos aponta novas perspectivas para o diálogo social. Por outro lado, o tema da construção do sujeito e da autenticidade reveste-se de capital importância justamente porque o comunitarismo pretende defender os ideais de bem comum a partir de uma defesa da instância contemporânea do ser autêntico em oposição às tendências individualistas presentes, seja no pensamento liberal, seja nas variadas formas de desconstrutivismo. Como coadunar estas instâncias da sociedade contemporânea com as novas características do secularismo descritas por Taylor em Uma Era Secular?

A base imediata em que se pauta a discussão contemporânea e a posição de Taylor pode ser definida a partir do conceito de autenticidade exposto, sobretudo na obra A Ética da Autenticidade. Taylor elabora o problema na forma de al-ternativas que seriam excludentes para algumas tendências da filosofia atual, mas que ele, contudo, defende como inclusivas: uma alternativa chamada de (A) defende que a autenticidade envolve criação e construção, originalidade e oposição às regras da sociedade; a outra, (B), “requer abertura aos horizontes de significado e autodefinição no diálogo (TAYLOR, 2011, p. 73).

A autenticidade entendida como mera afirmação das individualidades gera um conflito para o bem comum, pois implicaria na própria ideia de exclusão e seu defeito estaria numa fundamentação errônea da autenticidade. A solução seria

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assumir o conceito de autenticidade no sentido comunitário, isto é de pessoa, como ser naturalmente aberto ao próximo, lugar da realização do autêntico. Isto exigiria então uma retomada da fundamentação da ética na pessoa e a superação de fundamentações insuficientes conduzidas até aqui pelos ideais liberais e seculares. Então a hipótese reside em considerar a secularização, tal como é entendida por Taylor, no horizonte construtivo da autenticidade, isto é, na “abertura aos horizontes de significado e autodefinição no diálogo”.

A secularização, ao se revestir de aspectos positivos, como a separação entre religião e Estado, não exclui, contudo, a participação da sociedade em sua dimensão religiosa, na mesma medida em que a religião constitui patrimônio dos membros dessa sociedade e é referencial de valores.

4. a liberdade de consciência ou liberdade religiosa

Este princípio domina a segunda parte de Secularism and Freedom of Conscience. Embora a liberdade de consciência possa ser entendida em sentido mais amplo, e assim o foi em sua origem, indicando o direito de uma pessoa de escolher seus valores, princípios, regras morais e religião, aqui a liberdade de consciência concentra na liberdade de crer e também de não crer. Portanto, trata-se de admitir a liberdade de especificação, de escolha do credo religioso mas também do reconhecimento do agnosticismo, do ateísmo.

Uma proposta de “secularismo aberto” poderia superar esses impasses, até agora não muito fáceis de solução. Na verdade, o que falta a propostas como esta é uma possibilidade de diálogo plural que preserve a identidade do outro. A citação que segue caracteriza bem as dificuldades e as exigências da liberdade religiosa:

A vegetarian therefore has the right to demand, within a closed setting such as a prison or an airplane, that she be provided with meatless meals. There does not seem to be any good reason for establishing a hierarchy at the level of rights between a person whose vegetarianismo is based on a religion (Hinduism) and one whose vegetarianism stems from a secular moral philosophy (as sentient creatures, animals tooexemptions from military ser vice based on objections of conscience.

A pacifist whose refusal to resort to violence is intimately linked to his understanding of himself as a moral agent will be able, in a

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time of obligatory military ser vice, to avail himself of the status of conscientious objector and thereby be exempted from bearing arms. Freedom of religion must therefore be seen as a subcategory of freedom of conscience (MACLURE, TAYLOR, 2011, p. 90).

5. a liberdade religiosa ecumênica

Diferentemente de pensadores mais contemporâneos que se preocuparam em construir a partir de uma desconstrução, exigindo oposição às regras da sociedade até então presentes no contexto social, Taylor procura recuperar a tradição de uma comunidade ou sociedade como fonte de sentido. A partir disso as teorias de Charles Taylor ganham força, sendo capazes de articular a autenti-cidade aos valores presentes no seio de determinada sociedade. Segundo o autor,

Este traço decisivo da vida humana é seu caráter fundamental-mente dialógico. Transformamo-nos em agentes plenamente humanos, capazes de nos compreendermos a nós mesmos e, assim, de definir a nossa identidade por meio da aquisição de linguagem enriquecedoras para nos expressarmos. Para os meus propósitos sobre este ponto, eu gostaria de usar o termo linguagem na sua forma mais flexível, abrangendo não apenas as palavras que falamos, mas também outros modos de expressão com os quais nos definimos, e entre eles incluem a “linguagem” da arte , gesto, amor e similares. Mas aprendemos essas formas de expressão através de nosso intercâmbio com os outros. As pessoas, por si sós, não adquirem as linguagens necessárias para a autodefinição. Pelo contrário, entramos em contato com elas pela interação com outros que são importantes para nós: o que George Herbert Mead chamou os “outros significativos” (TAYLOR, 1993, p. 26-27, tradução livre).

A partir destas reflexões de Mead, Taylor procura recuperar uma perspectiva da linguagem que garanta aos interlocutores uma dimensão objetiva, descoberta no diálogo:

A gênese da mente humana não é, neste sentido, monológica (não é algo que cada qual faz por si só), mas dialógica. Além disso, este não é apenas um fato sobre a gênese que depois possamos esquecer. Não aprendemos simplesmente as linguagens no diálogo

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e, em seguida, continuamos a usá-las para nossos próprios fins. É claro que se espera de nós que desenvolvamos nossa própria opinião, perspectiva e atitude em relação às coisas, em grau considerável, por meio de reflexão solitária. Mas não é assim que as coisas acontecem em questões importantes, como a definição de nossa identidade. Sempre definimos a nossa identidade em diálogo com as coisas que nossos outros significantes desejam ver em nós, e às vezes em luta com elas. E mesmo depois de ter deixado para trás alguns desses outros, por exemplo, nossos pais, e desaparecem de nossas vidas, a conversa com eles continuará dentro de nós enquanto vivamos (TAYLOR, 1993, p. 26-27, tradução livre).

Portanto, a busca de objetividade no diálogo está presente no pensamento de Taylor há algumas décadas e podem ser hoje percebidas em suas análises sobre a secularização, a autenticidade e o papel da religião no mundo contemporâneo.

Retomando, pois, alguns princípios propostos por Taylor que foram apresen-tados aqui, creio que um tema a ser aprofundado e a eles relacionados, porque capaz de encaminhar novas soluções ou ao menos propor novos debates. Trata-se do ecumenismo, tal como tem sido proposto e experimentado nas últimas décadas no Ocidente. Charles Morerod (2004) desenvolveu o tema das potencialidades do diálogo ecumênico na obra OEcuménisme et philosophie: Questions philosophiques pour renouveler le dialogue. Tomo o ecumenismo no sentido mais geral, isto é, o do reconhecimento e do respeito recíproco entre as religiões, que inclui, portanto, o diálogo interreligioso em geral. Um testemunho interessante vem de um anglicano:

A par de uma pluralidade da fé composta pelas históricas igrejas cristãs, Católica Romana, Anglicana, Luterana, Reformada, Ortodoxa e Protestantes e pelo Judaísmo, podem ver‑se hoje na Europa outras igrejas e religiões que eram marginais e estranhas a própria historia europeia ha menos de cinquenta anos. Em termos de religiões, o Islão, o Hinduísmo, o Budismo e, na área cristã, igrejas ortodoxas autocéfalas e novas igrejas pentecostais provindas sobretudo da África subsariana e da América Latina. E neste contexto plural nenhuma das expressões religiosas sai ilesa, tanto as que pretendem representar a consciência colectiva de nações (as igrejas históricas), como as que foram trazidas na bagagem cultural e religiosa dos imigrantes e seus descendentes (SOARES, 2011, p. 71-72).

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Antes, porém, descrever os elementos do ecumenismo, retomo os prin-cípios defendidos por Taylor. Primeiramente, na sociedade democrática, o reconhecimento do outro na sua identidade e diversidade é exigência insuperável e indiscutível. As sociedades democráticas do Ocidente têm neste princípio a base de sua subsistência.

Em segundo lugar, a admissão da secularidade do Estado. Este processo de secularização do Ocidente não é visto como desvalor, mas como a condição mesma para a convivência e o respeito ao diferente.

Terceiro, a liberdade de consciência que indica que todos têm direito a escolher não somente sua religião, seria a liberdade religiosa, mas também de ter outras fontes de valor que não provenham da religião.

Quarto, a autenticidade, tal como a formulou Taylor em sua Ética da Auten-ticidade, especialmente no que tange ao horizonte de sentido e à autodefinição no diálogo. Este aspecto da filosofia de Taylor merece especial atenção, pois está intimamente coligado ao problema da identidade e do reconhecimetno

Nesse sentido, e a partir das instâncias desenvolvidas pelo pensamento mais contemporâneo, a criação da própria identidade passa a exigir o reconhecimento de nós mesmos, através da autodefinição. Nessa descoberta, a originalidade se faz necessária, caso contrário, o homem estará simplesmente absorvendo e replicando tudo que se encontra à sua volta, ou que tenha poder de influenciá-lo na cons-trução do eu. O indivíduo assume cabalmente o encargo de definição de sua identidade e dos critérios para sua busca do bem, a partir de uma representação interna do mundo. Passa-se de um período em que regras externas moldaram o homem, para outra, que rechaça qualquer influência externa. A autenticidade passa a ser entendida como um fim em si mesmo, sendo uma forma de satisfação intrínseca ao homem. Além disso, a descoberta dessa identidade autocentrada é feita através da manifestação, da expressão de um determinado modo de vida em discursos e ações tidas pelo sujeito como originais.

Dado que a religião exige de seus seguidores uma adesão a um corpo doutri-nal, o ecumenismo não consiste num sincretismo. Exige, pois, que qualquer proposta de autenticidade tenha uma dimensão objetiva: cada religião deve preservar seus princípios e a eles ser fiel, promovê-los etc. Torna-se, assim, fonte

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de sentido para seus adeptos e não se confunde com outras e, ao mesmo tempo, supera os impasses de um subjetivismo exacerbado que prejudique o diálogo. O reconhecimento da identidade de cada religião coaduna-se com o critério tayloriano de autodefinição no diálogo.

A liberdade religiosa, o diálogo interreligioso e o ecumenismo foram objeto de profundo estudo por parte da Igreja Católica no Concílio Vaticano II. Estes grandes geraram três grandes documentos conciliares, que tem sido objeto de análise, de debate e de aprofundamento, não sem polêmicas, entre as distintas denominações religiosas de todo o mundo. Taylor chega a ver nessa dimensão conciliar a influência de Charles Péguy:

Não é difícil reconhecer em Péguy alguns dos temas que se tornaram centrais nas reformas do Vaticano II, a reabilitação da liberdade, da igreja como povo de Deus, a abertura para outras crenças, entre outros. E realmente houve uma linha de influência nesse ponto. Boa parte da literatura teológica crucial, que deitou o fundamento para o Concílio, veio da França. Penso em Congar, Daniélou, de Lubac. Suas fonts intelectuais primordiais foram os Padres, mas eles emergiram de um ambiente de pensamento e sensibilidade católicos que levaram a marca de Péguy (2010, p. 876).

Muito discutível é a influência de Péguy no Concílio aí ressaltada, contudo fica a observação mais importante de Taylor, a que se refere às reformas conciliares: “a reabilitação da liberdade, da igreja como povo de Deus, a abertura para outras crenças”. A mudança de rumo do Vaticano é louvada por Taylor em muitas passagens de Uma Era Secular, especialmente como contraponto às posições anteriores da Igreja de cunho mais apologético. Essas novidades podem ser bem apreciadas nos documentos que se seguem.

O documento sobre a liberdade religiosa, Dignitatis Humanae, visa a elaborar princípios para o respeito à liberdade de consciência. Ao ressaltar a sensibilidade do homem moderno em relação a sua consciência, o documento defende logo de início a liberdade religiosa:

Da dignidade da pessoa humana tornam-se os homens de nosso tempo sempre mais cônscios. Cresce o número dos que exigem que

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os homens em sua ação gozem e usem de seu próprio critério e de liberdade responsável, não se deixando mover por coação, mas guiando-se pela consciência do dever. Da mesma forma, postulam uma delimitação jurídica do poder público, para não ser por demais cerceado o campo da liberdade honesta tanto da pessoa quanto das associações. Esta exigência de liberdade na sociedade humana visa soberanamente o que se refere aos bens da alma humana, sobretudo como é natural aqueles bens que atingem o livre exercício da religião na sociedade (COMPÊNDIO, 2000, p. 599).

O documento refere-se imediatamente ao poder público como o responsável para garantir essa liberdade almejada. Os limites da liberdade religiosa são declarados nestes termos: “no exercício de seus direitos, o homem individualmente e os grupos sociais estão obrigados por lei moral a levar em conta tanto os direitos dos outros, quanto seus deveres para com os outros, quanto ainda o bem comum de todos” (COMPÊNDIO, 2000, p. 600). O documento prossegue indicando a fundamentação dessas assertivas, mas o que foi dito é suficiente para ilustrar a perspectiva da liberdade religiosa que a Declaração Dignitatis Humanae assume.

Já o documento sobre o diálogo inter-religioso, isto é, entre as religiões cris- tãs e as não cristãs, conhecido como Nostra Aetate, propugna um diálogo que reconheça as diferenças, valorize-as, visando o que há de comum entre as mais distintas religiões, mas sem sincretismos que diminuam a originalidade de cada manifestação religiosa. Trata da relação dos católicos com os judeus, com os muçulmanos, mas refere-se também a outras religiões mais distantes do Cristianismo na doutrina, como o budismo, o hinduísmo. A última parte deste breve documento conclui nestes termos:

Não podemos, na verdade, invocar a Deus como Pai de todos, se recusarmos o tratamento fraterno a certos homens, criados também à imagem de Deus.

(...) Elimina-se assim o fundamento a toda teoria ou prática que introduz discriminação entre homem e homem, entre povo e povo, com relação à dignidade humana e aos direitos dela decorrentes (COMPÊNDIO, 2000, p. 624).

Finalmente, o documento mais restrito quanto aos destinatários, pois trata do diálogo entre os cristãos. Para as igrejas cristãs, este é o diálogo propriamente

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ecumênico, portanto de sentido restrito. Neste sentido, o documento, conhecido como Unitatis Redintegratio, declara: “Por ‘Movimento Ecumênico’ se entendem as atividades e iniciativas suscitadas e ordenadas em favor das várias necessidades da Igreja e oportunidade dos tempos, no sentido de favorecer a unidade dos cristãos” (COMPÊNDIO, 2000, p. 314).

Essa busca de unidade segue o princípio da unidade na diversidade, assumin-do que não se trata de uniformidade, mas que a própria diversidade faz parte da história do Cristianismo. O documento exorta os que querem colaborar para a unidade dos cristãos a criarem meios de fraternidade, de ajuda ao próximo, de convivência pacífica, mas evitando também o que se conhece por irenismo, isto é, uma paz de aparência e sincrética. Como enfatizei anteriormente, a defesa que o movimento ecumênico cristão faz da preservação da doutrina de cada denominação religiosa é um dos princípios mais eficazes do ecumenismo e que serve como modelo a qualquer tipo de diálogo.

Estas breves considerações sobre alguns documentos relativos a um conceito de ecumenismo que defendo aqui parecem suficientes e adequadas à proposta de Maclure-Taylor, conforme o que resumem na conclusão de seu livro:

In short, contemporary societies must develop the ethical and political knowledge that will allow them to fairly and consistently manage the moral, spiritual, and cultural diversity at their heart. Those who embrace worldviews such as the great historical mono the isms, the Eastern religions, spiritual eclecticism, aboriginal spiritualities,militant atheism, agnosticism, and so on must learn to coexist and,

ideally, to establish bonds of solidarity. We believe that the pluralist political secularism outlined in this book, supported by an ethics of dialogue respectful of the different moral and spiritual options, is best able to promote that learning process (2011, p. 110).

Pode-se incluir neste processo de aprendizado indicado por nossos autores o diálogo entre as religiões. Com efeito, o pluralismo religioso não excluiu nas últimas décadas certa unidade de objetivos e de metas. Redescobrir este itinerário é também um alento para crentes e não crentes, embora a inclusão destes últimos no processo de diálogo religioso e, sobretudo, na discussão sobre as relações entre religião e Estado continuem a ser algo delicado e urgente.

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6. conclusões

As exigências da democracia nas sociedades ocidentais são cada vez mais específicas e exigem do pesquisador, assim como exigem do jurista e do político, um vasto conhecimento dos argumentos que envolvem determinada deman- da social, mas sobretudo uma ampla capacidade de diálogo.

A certeza de que a relativamente recente experiência do diálogo ecumênico assim como os princípios do ecumenismo põe a humanidade num novo patamar para enfrentar o problema da liberdade religiosa funda-se, sobretudo, nas características da sociedade democrática tal como ela é exposta por Taylor. Esta sociedade caracteriza-se pelas exigências éticas da autenticidade, que em mais de uma de suas dimensões coaduna-se com os princípios ecumênicos, de modo especial a exigência de autodefinição no diálogo. Esta autodefinição traz como consequência um reconhecimento do outro e, ao mesmo tempo, uma preservação de sua doutrina religiosa, sem proselitismos, sem irenismos, sem sincretismos.

O sentido de secularismo assumido por Taylor que defende que a fé é uma opção entre outras, e não necessariamente mais fácil que outras, parece enten- der a liberdade religiosa apenas como liberdade especificação entre uma religião ou outra, excluindo, assim, os não crentes. Contudo, em Secularism and Free-dom of Conscience, Taylor e Maclure orientam-se para a solução de questões como esta com o conceito de liberdade de consciência e de secularismo aberto (open secularism).

A evocação do ecumenismo para que entre em diálogo com esses princípios democráticos, éticos e jurídicos, desenvolvidos por Taylor ao longo de décadas, visa a tornar o debate sobre a liberdade religiosa mais dinâmico e talvez mais eficiente porque concretiza as próprias definições e exigências indicadas neste trabalho. Esta evocação é também o reconhecimento de que a história é a efetivação da liberdade humana, e, portanto, da democracia, mesmo naqueles horizontes em que isso poderia parecer impossível.

7. referências

COMPÊNDIO DO VATICANO II. Petrópolis: Vozes, 2000.

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um olhar semiótico-prescritivo sobre a linguagem e a norma jurídica1

Aparecida Luzia A. Zuin2

Bruno Valverde Chahaira3

Resumo

Esse artigo apresenta a ideia de que a linguagem jurídica é marca notória da cultura e das relações sociais, afinal é pela e na linguagem que se podem expressar conceitos, normas, comportamentos, ou seja, como condição que provoca relações, ações e reações. Nesse sentido, os procedimentos metodêuticos advindos da Teoria Semiótica norte-americana, comumente conhecida como Semiótica Peirceana, embasarão a proposta para entender o processo de semiose contido aí, e para alcançar tal compreensão busca para as análises o modelo filosófico do pragmatismo. Assim, a pragmática passa a ser o foco do trabalho, pois, concebida como uma dimensão da semiose faz parte da Teoria da Semiótica Peirceana, cujo estudo se pauta no signo em relação aos seus intérpretes. Toma como objeto à análise a Teoria da Norma Jurídica nesse caso, de Tercio Sampaio Ferraz Jr. Por outro lado, estende os apontamentos ressaltando o caminho do estudo do Direito pela linguagem, nos termos de Norberto Bobbio, no que concerne a função prescritiva. Superadas essa fase, reserva-se o lugar para o signo e a realidade

1 Artigo apresentado para discussão no GT 6: Teoria. Filosofia. História do Direito.2 Doutora e Mestre em Comunicação e Semiótica, pela Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo – PUC-SP. Pós-Doutora em Estudos Culturais pelo Programa Avançado em Cultura Contemporânea, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Pós-Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Direito. Linha de Pesquisas: Direito da Cidade. Docente do Programa de Mestrado em Educação, da Universidade Federal de Rondônia - UNIR. Docente do Departamento de Ciências Jurídicas, curso de Direito- UNIR; Amazônia Ocidental-Brasil. Líder do Centro de Estudos e Pesquisas Jurídicas da Amazônia - CEJAM – Linha de Pesquisa Direito, Educação e Comunicação. Líder do Grupo de Estudos Semióticos em Jornalismo – GESJOR. E-mail: [email protected]

3 Doutorando em Direito Constitucional (Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo). Mestre em Direito Negocial (Universidade Estadual de Londrina-UEL/PR). Professor da Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR, curso de Direito. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pelo Instituto Paranaense de Ensino. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. E-mail: [email protected]

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sociocultural, cuja configuração do fazer-fazer (constante na função prescritiva) não pode deixar de ser perpassada pela modalidade do fazer-dizer do Direito como ato comunicativo, a fim de concretizar no interpretante da norma jurídica certo fazer-saber; porque a linguagem, nesse caso a jurídica, é lugar das trocas simbólicas que permitem a comunicação entre os sujeitos e que gera relações sociais ou ainda as interrompem, modificam ou alteram comportamentos quando forem necessários.

Palavras-chave

Teoria Semiótica; Linguagem; Norma Jurídica; Função prescritiva.

Abstract

This article presents the idea that the legal language is a notorious brand of culture and social relations , and after all it is the language that can express concepts , norms , behaviors; in other words, a condition that causes relationships , actions and reactions . In this sense, the procedures coming from metodêuticos of American Semiotics Theory, commonly known as Peircean Semiotics, will base the proposal to understand the process of semiosis contained therein, and to achieve this understanding search for philosophical analysis model of pragmatism. Thus, the pragmatic becomes the focus of the work is therefore conceived as a dimension of semiosis is part of Peircean Theory of Semiotics, whose study is guided in the sign in relation to their interpreters. Builds its object the semiotic analysis of the Theory of Law Norm this case, of Tercio Sampaio Ferraz Jr. On the other terms, extends the notes highlighting the way the study of law in language, in terms of Norberto Bobbio, in what concerns the prescriptive function. Overcome this phase, reserves the place for the sign come act communicative and sociocultural realities which “fazer-fazer” (in constant prescriptive function) cannot fail to be permeated by the mode of “fazer-dizer” of the law as communicative act setting in order to achieve interpretant in the right legal rule – “fazer-saber”; because language, in this case the juridical, is a place of symbolic exchanges that allow communication between subjects and generates social relations or the interrupt, modify or change behaviors when they are needed .

Key words

Semiotics Theory; Language; Juridical Norm; Prescriptive function.

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1. introdução

Muitos teóricos já apresentaram a ideia de que o Direito não é pura lógica, o que significa dizer que questões culturais, sociais, tecnológicas e políticas per-meiam a leitura dos fatos e as formulações das leis. Nos dizeres de Gregorio Robles: “Na vida social dos homens, como sistema de comunicação, o direito é linguagem ou, em outras palavras, o direito é texto” (2005, p. 2), e enquanto texto é passível de interpretação, como ainda, condição sine qua non para produzir outros textos.

Para Bobbio, o autor julga possível distinguir três funções fundamentais da linguagem do Direito, quais sejam: descritiva, expressiva e prescritiva. Logo, se confirma que é na linguagem que o Direito exercita a sua própria função discursiva sociocultural.

Nesse sentido, as concepções de linguagem e de texto transcendem o que corriqueiramente lhe são reservadas nos estudos comuns. Por isso, a propositura se embasa nos estudos semióticos, em particular, a Semiótica norte-americana, também conhecida como Semiótica Peirceana (fundação por meio de Charles Sanders Peirce (1839-1914)), para ampliar o debate.

A empreitada inicia com a apresentação do que é Semiótica e o objeto de estudos dessa ciência. Em seguida, refere-se ao signo, à linguagem e ao processo de semiose para, em seguida efetivar as questões e/ou temas em relação ao Direito e suas relações com o mundo, a sociedade e a cultura.

E para justificar que a empreitada é ousada, utilizamo-nos dos mesmos ter-mos do douto professor Tercio Sampaio Ferraz Junior (2009, p.1): “a empresa de realizar, ainda que em esboço, uma pragmática da comunicação jurídico-normativa supõe certa audácia e grande risco. Isto porque a própria noção de pragmática é deveras imprecisa [...]”

Assim, a pragmática passa a ser o foco do trabalho, pois, concebida como uma dimensão da semiose faz parte da Teoria da Semiótica Peirceana, cuja ideia é o estudo do signo em relação aos seus intérpretes.

Superadas essa fase, reserva-se o lugar para o signo e a realidade sociocultural, cuja configuração do fazer-fazer (constante na função prescritiva) não pode deixar de ser perpassada pela modalidade do fazer-dizer do Direito como ato comunicativo, a fim de concretizar no interpretante da norma jurídica um certo

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fazer-saber; porque a linguagem, nesse caso a jurídica, é lugar das trocas simbóli-cas que permitem a comunicação entre os sujeitos e que gera relações sociais ou ainda as interrompem, modificam ou alteram comportamentos quando forem necessários.

Estendem-se as proposições pautadas no trabalho de Norberto Bobbio (1909-2004), Teoria da Norma Jurídica, justamente porque o autor elabora o pensa-mento acerca do Direito nos parâmetros das funções da linguagem, ou seja, interessa-nos sem maiores pretensões (tais como as abordagens anteriores) se fixar na função prescritiva, porque é de Bobbio a concepção que é ela a responsável em modificar o comportamento alheio; assim, a função da linguagem prescritiva faz valer o fazer-fazer dos sujeitos.

Essa tentativa vem ao encontro das exigências de interpretar as normas jurídi-cas através dos estudos da linguagem para favorecer, nos dizeres de Paulo de Bar- ros Carvalho (apud Bittar, 2010): “[...] a possibilidade para o público, com distintas formações, não somente jurídicas, possam entender e identificar interfaces entre os códigos comunicacionais e o sistema legal”.

Nesse sentido, diz Ricardo Souza Pereira, apud Bittar (2010), acerca da aplicação da semiótica para as abordagens da linguagem jurídica:

é propor uma reavaliação do Direito, numa perspectiva teórico-semiótica, procedendo-se a um perscrutamento da juridicidade, o conjunto das práticas jurídicas de discurso. Trata-se de aplicar sobre o mundus juris a metodologia de pensamento própria da ciência do sentido, a semiótica.

Lauro Frederico Barbosa da Silveira (2007, p. 4) também contribui para a presente proposta considerando a razão para tal escolha:

A razão para tal escolha é oferecer um referencial teórico que, diante de uma necessidade de esclarecer-se um problema no futuro, possa ser utilizado pelo profissional do direito. Conservará, conseqüentemente, o caráter filosófico e formal com que foi concebido. [...] “Delas se deduzirão, em etapas sucessivas, as classes de signos que pretendem representar as modalidades essenciais de pensamento, com isso tendo o estudioso o instrumento teórico para a representação do fenômeno que lhe interessa elucidar”.

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Como ainda colocadas na defesa de Clarice von Oertzen de Araújo (2005): “A semiótica se mostra estratégica como recurso para decodificar essas intercessões.”

2. a semiótica como ciência das linguagens

O termo Semiótica foi usado inicialmente para indicar a ciência dos sintomas em medicina (cf. Galeno, Op. Ed, Kün. XIV, 689). Foi proposto por Locke, para indicar a doutrina dos signos, correspondente à lógica tradicional (Ensaio, IV, 21, 4).

Lambert empregou o termo como título da terceira parte do seu Novo Organon (1764) (ABBAGNANO, 2000, p. 870).

Na Filosofia Contemporânea, Charles Morris utilizou o conceito de Semiótica como teoria da semiose, mais do que do signo, dividindo a semiótica em três partes, que correspondem às três dimensões da semiose: semântica, que considera a relação dos signos com os objetos a que se referem; pragmática, que considera a relação dos signos com os intérpretes; sintática, que considera a relação formal dos signos entre si. (ABBAGNANO, 2000, p. 870).

Segundo Winfried Nöth (1995, p. 19) “a semiótica é a ciência dos signos e dos processos significativos (semiose) na natureza e na cultura”. Semiótica vem da raiz grega = semeion, que quer dizer - signo. Semiótica é a ciência dos signos, mas dos signos das linguagens.

A investigação semiótica abrange virtualmente todas as áreas do conhecimen-to envolvidas com as linguagens ou sistemas de significação, tais como a linguísti- ca (linguagem verbal), a matemática (linguagem dos números), a biologia (linguagem da vida), o direito (linguagem das leis-linguagem jurídica), as artes (linguagem estética), o jornalismo, a publicidade, etc. Pode-se dizer que, desse ponto de vista, o objeto da Semiótica, que é a teoria dos signos, não é mais o próprio signo, mas a semiose, ou seja, o uso dos signos ou o comportamento semiótico. Essa orientação foi iniciada por Charles Sanders Peirce (ABBAGNANO, 2000, p.870).

Para Lúcia Santaella, semiótica “é a ciência que tem por objeto de investigação todas as linguagens possíveis” (1983, p. 15), ou ainda: “A Semiótica é a ciência geral de todas as linguagens” (SANTAELLA, 2003).

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O estudo das linguagens e dos signos, segundo Santaella, é muito antigo. Embora a semiótica só tenha ficado conhecida como uma ciência dos signos, da significação e da cultura, no século XX, a preocupação com os problemas da linguagem e da semiótica tiveram início no mundo grego (SANTAELLA, 1983, p. 16).

No mundo grego, segundo Winfried Nöth (1995), a semiótica foi ampliada para incluir três ramos da Medicina: 1- anamnéstica (anamnéstico adj (gr anamnestikós) i) estudo da história médica do paciente; ii) Relativo ou perten-cente à anamnese; iii) que ativa a memória: Remédios anamnésticos; iv) referente aos antecedentes de uma doença: Sinais anamnésticos. sm pl Farm Remédios para avivar a memória); 2- diagnóstica (estudo dos sintomas atuais da doença ); 3- prognóstica (que trata das predições e projeções do desenvolvimento futuro das doenças).

A partir da tradição médica, o termo semiótica também começou a adquirir sentidos mais amplos no contexto de uma semeiotica moralis.

A semiótica propriamente dita encontra seu ancestral mais antigo na história da medicina, aí entendida como o primeiro estudo diagnóstico dos signos das doenças. O médico grego Galeno de Pérgamo (139-199), por exemplo, referiu-se à diagnóstica como sendo – a parte semiótica – (semeiotikón meros) da medicina.

No século XVIII a literatura médica também começou a empregar o termo sem(e)iologia como alternativa semiótica, às vezes, com algumas variações de sentido. Naquela altura, a semiótica médica foi ampliada para incluir três ramos de investigação: a anamnéstica, estudo da história médica do paciente; a diagnóstica, estudo dos sintomas atuais das doenças; e a prognóstica, que trata das predições e projeções do desenvolvimento futuro das doenças. (NÖTH, 2003, p.19)

De acordo com Santaella (2010, p.XII):

A semiótica não é uma ciência especial ou especializada, como são ciências especiais a física, a química, a matemática, a biologia, a sociologia, a economia etc., quer dizer, ciências que têm um objeto de estudo delimitado e de cujas teorias podem ser extraídas ferramentas empíricas para serem utilizadas em pesquisas aplicadas.

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Diferentemente de uma ciência especial, a semiótica é uma das disciplinas que compõem uma ampla arquitetura concebida como ciência com um caráter extremamente geral e abstrato. Por exemplo, a Semiótica Peirceana tem como arquitetura filosófica as ciências normativas – estética, ética e lógica ou semiótica –, estas antecedidas pela quase-ciência da fenomenologia e seguidas pela metafísica (SANTAELLA, 1983, p. 20).

Empregado de forma genérica, o termo “semiótica” pode significar simplesmente “teoria”, que é um conjunto de princípios coerentes, gerais e abstratos que servem para descrever e analisar um objeto (PORTELLA, 2009, p. 2).

Em Semiótica, existem três grandes correntes teóricas:

• 1-ASemióticadeorigemamericana,criadapelocientistaelógicoame-ricano Charles Sanders Peirce (1839-1914), no final do século XIX;

• 2-A Semiótica de origem europeia, desenvolvida na França pelo li-tuano Algirdas Julien Greimas (1917-1992) na década de 60, a partir do legado dos linguistas Ferdinand de Saussure (1857-1913) e Louis Hjelmslev (1899-1965) e;

• 3-ASemióticadeorigemeslava(russa),queremontaaoséculoXVIII,conhecida como a Escola de Tártu-Moscou a partir dos anos 60, cujo teórico mais proeminente é Iúri Lótman (1922-1993) (NÖTH, 2003)

Outra linha teórica de relevância para o Direito é a Sociossemiótica.

A Sociossemiótica nos permite analisar todo o processo de produção e veiculação de discursos sociais. Em primeiro lugar, convém explicar que discursos sociais são aqueles discursos cujo receptor é tido como coletivo, ou seja, não é um indivíduo isolado, mas um grupo aberto e indeterminado de indivíduos, que chamamos de público (LANDOWSKI, 1992).

Dessa maneira, o Direito, por exemplo, caracteriza-se por ser uma atividade produtora de discursos dirigidos a um público. Já para entender a função do Direito, precisamos falar um pouco sobre as funções desses discursos sociais. Segundo Landowski apud Zuin (2012, p.10): “Todos os discursos sociais possuem

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uma função principal ou primária. A maioria dos discursos sociais tem caráter eminentemente pragmático (Landowski, 1992), isto é, visa a satisfazer alguma necessidade prática do ser humano”.

Nesse diapasão, Bobbio formula que uma norma jurídica é uma proposição, isto é:

Queremos dizer que é um conjunto de palavras que têm um sig-nificado. Com base no que dissemos acima, a mesma proposição normativa pode ser formulada com enunciados diversos. O que interessa ao jurista, quando interpreta uma lei, é o seu significado.

[...] Há vários tipos de proposições. Pode-se distingui-los com base em dois critérios: a forma gramatical e a função. [...]

[...]

Julgo que seja possível distinguir três funções fundamentais da linguagem: a função descritiva, a expressiva e a prescritiva.

[...]

Interessa-nos de modo participar a função prescritiva: um conjun-to de leis ou regulamentos, um Código, um Constituição, consti- tuem os mais interessantes exemplos de linguagem normativa [...]. (BOBBIO, 2014, p.74-79)

Observa-se, se encontramos de acordo com Landowski (1992) a função principal ou primária nos discursos sociais visando satisfazer alguma necessidade prática do ser humano, é possível dizer, portanto que, para Bobbio nessa linha de referência a função da linguagem prescritiva também visa satisfazer questões práticas sociais, tais como: informar, comunicar, transmitir saber etc. Afinal, como Bobbio assevera, a função prescritiva é própria da linguagem normativa, porque implica ao mesmo tempo em que influencia o comportamento alheio, tende a transformá-lo, se utilizando para tal da performance que lhe é característica: no fazer-fazer.

Ora, antes do fazer-fazer performático é preciso primeiro um fazer-dizer – presente no ato comunicativo do Direito para com a sociedade. Pois, para que o indivíduo possa ser influenciado e receba corretamente a comunicação almejada, garantindo a inteligibilidade da mensagem por meio de um processo eficaz de formulação e transmissão, conforme se prevê nas normas jurídicas, o destinatário

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“precisa acreditar”, “assumir” e a tomar como verossímil; tem-se aí, o que a faz digna de credibilidade.

A isso significa nos termos de Bobbio (2014, p.48):

[...] o primeiro ponto que, a meu juízo, é preciso ter bem claro em mente se quisermos estabelecer uma teoria da norma jurídica com fundamentos sólidos, é que toda norma jurídica pode ser submetida a três valorações distintas, e que essas valorações são independentes umas das outras. De fato, frente a qualquer norma jurídica podemos colocar uma tríplice ordem de problemas: 1) se é justa ou injusta; 2) se é válida ou inválida; 3) se é eficaz ou ineficaz. Trata-se dos três problemas distintos: da justiça, da validade e da eficácia de uma norma jurídica (grifos do autor).

Assim, na ordem do direito, a função prescritiva embora incida sobre o obje-tivo de disciplinar a convivência social, nas diretrizes do direito positivo (sistema nomoempírico prescritivo) também preceitua conduzir a conduta dos sujeitos sociais, de modo a modificar o seu comportamento. Daí dizer que o Direito como prática discursiva sociocultural está imbuído de características vigentes, nos termos de Bobbio, nas proposições prescritivas, e ainda na pragmática de Tercio Sampaio Jr, haja vista ser aqui o Direito – lugar do ato comunicativo. Para Zuin (2009, p. 152) isso também está presentificado no ato que é próprio da linguagem, qual seja: a persuasão, porque para que a norma jurídica seja eficaz é necessário e constante o ato de persuadir ou continuar persuadindo, em qualquer que seja o contexto comunicativo.

Para Greimas & Courtès, apud Zuin (2009, p. 152), esse fazer significa:

Se assumir a fala do outro é nela acreditar de uma certa maneira, então, fazê-la assumir equivale a falar para ser acreditado. Assim considerada, a comunicação é mais um fazer-crer e um fazer-fazer do que um fazer-saber, como se imagina um pouco apressadamente.

Em se tratando da norma jurídica, nesse caso somos obrigados a reconhecer o valor modal do fazer, que para Greimas & Courtès (2008, p. 202) é “um fazer operatório (fazer-ser) ou manipulatório (fazer-fazer)”, haja vista ser ela um fazer que modifica os comportamentos, transforma e rege outros enunciados. Conforme a dimensão de Ferraz Junior essa modalidade do fazer consta no fazer

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pragmático e que pode se estender no fazer cognitivo. Diz-se “pode” no sentido que pela natureza do fazer pragmático há investimentos de valores descritivos, socioculturais, por isso, dizer do Direito como prática discursiva sociocultural, porque está investido de programas de fazeres persuasivos e de fazeres interpretativos.

Assim, por ser lugar do ato comunicativo, os mecanismos e procedimentos de estruturação da linguagem jurídica, tratando-a enquanto totalidade de sentido pauta-se nos modos como as normas se organizam para produzir determinados valores de “certa sociedade”, sem, contudo, desconsiderar o que os mantêm ou os modificam, no contexto sociocultural.

2.1. as dimensões da semiose – a significação que im-porta

Como dito anteriormente e a fim de fixação da proposta ora trazida aos estu-dos da linguagem jurídica, os estudos semióticos compreendem três dimensões da semiose: sintática, semântica e a pragmática. Isso significa compreender os estudos dos signos e suas relações, do seguinte modo:

1- Sintática: Ramo da semiótica que estuda os signos entre si prescindindo dos usuários e das designações. É a relação do signo com relação a si mesmo.

2- Semântica: Ramo da semiótica que estuda os objetos designados pelos sinais, vale dizer, estuda a relação dos signos e dos objetos denotados. É a relação do signo com relação aos objetos.

3- Pragmática: Ramo da semiótica que estuda a relação dos signos com os usuários ou intérpretes. É a relação do signo com o intérprete.

Nessa linha, a pragmática projetada para o mundo jurídico permite com-preender que a ideologia é um fator indissociável da estrutura das normas gerais. As normas jurídicas são o resultado de uma vivência social e histórica, ou seja, são elaboradas de acordo com o sentido histórico, de acordo com determinado momento histórico. Aqui, a linguagem se estrutura em uma relação recíproca com o contexto e com aqueles que nele se insere.

E como eleger uma ou outra dimensão para os estudos do signo da linguagem? Como propõe Mariângela Guerreiro Milhoranza (2009): “a dimensão escolhida

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vai depender da concepção adotada por cada jurista”; que nesse caso, para os estudos pretendidos será a dimensão pragmática; lado outro, a função prescritiva.

3. o direito como prática discursiva sociocultural

Várias pesquisas têm apresentado o estabelecimento de relações entre a se-miótica peirceana e a linguagem jurídica; em outros termos, as pesquisas estão gradativamente direcionando a contribuição da semiótica a um encontro teórico linguístico e metodológico, com vistas à geração de uma interdisciplinaridade entre seus princípios fundamentais. E quais seriam esses princípios fundamentais? Os princípios basilares ao estabelecimento dessas relações são encontrados na Teoria Semiótica da percepção, do signo e do interpretante. É justamente nesse apor- te que se pode buscar as respostas para a efetiva compreensão dos modos como os significados se transformam em cognição, ou seja, é na teoria do interpretante que se encontra o entendimento dos processos mentais, da produção da cognição na mente dos intérpretes.

Segundo Correia (2009, 2010, 2012):

Uma questão essencial que deve ser considerada como uma síntese do pensamento de Peirce e que direciona a Semiótica para um encontro com as ciências da cognição está na definição peirceana do pensamento enquanto uma corrente de signos. Não há formas de pensamento sem signos na teoria de Peirce. O pensamento é totalmente estruturado em uma corrente de signos e depende desta estruturação para ter a potencialidade para representar. Assim, se entendemos que o pensamento é constituído de signos, somente nos aproximaremos de uma compreensão do que é o pensamento e suas relações com a experiência a partir do entendimento do que é o signo. Os signos precisam ser entendidos, sua função precisa ser desvelada, pois seu processamento descreve os caminhos da apreensão dos fenômenos da experiência e o gradativo desenvolvimento e geração do conhecimento. Os fenômenos são traduzidos e transformamos em signos.

Gomila (1996, p. 1357), apud Correia, afirma que a ciência cognitiva emerge exatamente como uma crítica às teorias de estímulo-resposta (behaviorismo) que tinham como objetivo compreender, através de teorias comportamentais, as formas como os conceitos, significados e representações mentais são geradas.

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Nesse sentido, se os processos de mediação simbólica são capazes de demons-trar a capacidade humana de superar os processos perceptivos transformando-os em experiência cognitiva, pode-se dizer que a teoria defendida por Charles San-ders Peirce cujo princípio não é o signo, mas o processo de semiose (da significa-ção) explica os mecanismos de produção e de apreensão dos sentidos da lingua-gem jurídica. O que significa dizer que o Direito, inserido nessa lógica linguística, não almeja que a sociedade encontre na sua prática ou fundamentação experiên-cias meramente perceptivas, mas tão somente o conhecimento que depende, para ao mesmo tempo que apreende os sentidos advindos daí, seja colocado em ato; ou em ato comunicativo como dito anteriormente. Assim poder afirmar, o que caracteriza o Direito nessa linha de pensamento é a sua condição de mediação de processos comunicativos, fato que ocorre por meio do esquema triádico proposto por Peirce.

Correia se utilizando de Gomila (1996, p. 1358) expõe a tríade no seguinte sentido:

As interpretações são mediações sígnicas e a teoria geral dos signos descreve os níveis de abstração e de complexidade em jogo no processo de engendramento dos conceitos. Gomila (1996, p. 1358) afirma que o conceito de signo desenvolvido por Peirce é de suma importância para as Ciências Cognitivas. O conceito triádico de signo desenvolvido por Peirce ajuda a entender as formas como o signo representa o objeto, e, neste processo, gera um signo equivalente ou mais desenvolvido chamado de interpretante, correlato do signo que é caracterizado como o efeito do signo em mentes interpretadoras.

Nöth (1995, p. 130) nos chama a atenção para a forma como, nas categorias fe- nomenológicas da experiência desenvolvidas por Peirce, a cognição é entendida:

Na filosofia de Peirce, a tríade tradicional da mente corresponde às suas três categorias de primeiridade, secundidade e terceiridade. O sentimento pertence à primeiridade, a categoria do imediato e das qualidades ainda não diferenciadas. A volição pertence à secundidade, categoria da interação diádica entre o eu e o outro (um primeiro e um segundo). A cognição pertence à terceiridade, categoria da comunicação, da representação “entre um segundo e um primeiro” (CP 5.66)

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Consequentemente relacionado a esse fenômeno está a propositura de Tercio Sampaio Ferraz Jr. (2009, p.7) ao mencionar que não basta aos estudos se pautar no aspecto linguístico, haja vista não ser o propósito “estudar a linguagem do direito ou da sua manifestação normativa; mas investigar o próprio direito, enquanto necessita, para a sua existência, da linguagem”. Logo, o direito é levado ao nível linguístico, sem, contudo, dispensar à investigação o que lhe é da competência do jurídico, da norma, dos regulamentos de comportamento, da possibilidade de conflitos, das características imanentes que nos levam a outro nível, que aqui se apresenta – o nível discursivo. Afinal, assevera Ferraz Jr (2009, p. 8): “Em nome das leis das regularidades da linguagem procede-se, usualmente, a uma investigação do discurso político, filosófico, científico, etc.”

Sob o ponto de vista normativo, o Direito como regra de conduta, nos dizeres de Norberto Bobbio (2014, p. 25):

Aproxima-se da experiência jurídica e apreender seus traços característicos é considerar o direito como um conjunto de normas, ou regras de conduta. Comecemos então por uma afirmação geral do gênero: a experiência jurídica é uma experiência normativa.

Ainda para Bobbio e correlacionado à afirmação de Ferraz Jr (2009) de que mais importante que estudar a linguagem do direito ou da sua manifestação normativa é investigar o próprio direito enquanto necessita para a sua existência da linguagem, vale para os estudos do direito, como regra de conduta, apreender os sentidos dos modos como a “nossa vida se desenvolve em um mundo de normas” (BOBBIO, 2014, p. 25). Por isso, no mundo das normas vale ainda a experiência do sujeito com relação à norma a ele estabelecida, caso contrário, de nada significará, porque não passou pela própria experiência jurídica da qual se propõe.

Pode-se dizer nesse caso que a linguagem representa o sentido do mundo vivido, como lugar da ação política e de expressão do sujeito, embora estejamos constantemente envoltos em regras de conduta. Importante neste contexto destacar que o mundo vivido, tal qual concebido por Jürgen Habermas, permite a ação comunicativa, onde deve dominar a ação dos sujeitos no ambiente, logo, um espaço social – lugar por excelência do agir comunicacional, cujo domínio

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é historicamente constituído de modo democrático e do uso livre e público da razão do sujeito (ZUIN, 2009, p. 26).

Assim, muito embora seja preciso a experiência do sujeito com o mundo da vida para que ele possa se colocar no ato comunicativo e compreender os sig- nificados das normas que lhe são postas, surge nos imperativos autônomos e heterônomos considerados por BOBBIO (2014, p.91), um paradoxo a esse posicionamento; pois, a categoria das prescrições da ordem jurídica é vastíssima, porque compreendem tanto as regras morais quanto as regras da gramática, tanto as normas jurídicas quanto as prescrições de um médico. A isso implica uma mudança no paradigma de Habermas, haja vista que na relação do sujeito com o objeto cognoscitivo presente na teoria da ação comunicativa há a predominância do uso livre e público da razão do sujeito sobre o objeto, dado a ideia relevante da relação sujeito-sujeito para a efetiva formulação discursiva. Entretanto, o que é formulado pela função prescritiva da linguagem jurídica, nos dizeres de BOBBIO (2014, p.91) não se insere nesse domínio discursivo.

Bobbio busca em Kant (no Fundamento da Metafísica dos Costumes) a com-preensão para esse fator particular para os estudos das normas jurídicas, tendo em vista que somente os imperativos morais são autônomos, nos dizeres de Kant.

São autônomos porque a moral consiste em comandos que o homem, enquanto ser racional, dá a si mesmo e não os recebe de nenhuma outra autoridade que não seja a própria razão. Quando o homem, ao invés de obedecer à legislação da razão, obedece aos instintos, às paixões, aos interesses, segue imperativos que o desviam do aperfeiçoamento de si próprio: o seu comportamento consiste, nesses casos, na adesão a princípios que estão fora dele e, enquanto tal, não é mais um comportamento moral (BOBBIO, 2014, p. 91).

Eis, portanto, uma antítese própria da linguagem jurídica, afinal, diz-se em Kant que a autonomia da vontade é qualidade que possuía a vontade de ser lei de si mesma, ou seja,

Quando a vontade procura a lei que deve determiná-la em lugar distinto ao da inclinação de suas máximas de instituir como sua uma legislação universal, quando, por consequência, ultrapassando a si mesma, procura esta lei na qualidade de qualquer de seus

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objetos, disso resulta sempre uma heteronomia (grifo do autor) (KANT, apud BOBBIO, op.cit).

Veja-se se por um lado se defende que o Direito é condição sine qua non para a formulação de discursos socioculturais, lado outro, na prática por ser produtor das normas: “A vontade não dá então a lei a si mesma; é o objeto, ao invés, graças a suas relações com ela, que lhe dá a lei” (KANT, p. 104, apud BOBBIO, 2014, p. 91-92).

A distinção entre imperativos autônomos e heterônomos tem importância para o estudo do direito, porque constitui um dos tantos critérios com os quais se desejou distinguir a moral do direito. Segundo Kant, a moral se resolve sempre em imperativos autônomos, e o direito, em imperativos heterônomos, visto que o legislador moral é interno, e o jurídico é externo. Em outras palavras, essa distinção pretende sugerir que, quando nos comportamos moralmente, não obedecemos a ninguém além de a nós mesmos; quando, ao contrário, agimos juridicamente, obedecemos a leis que nos são impostas por outros (BOBBIO, 2014, p. 92).

Nesse diapasão, o Direito passa a ser um fenômeno predisposto a cada geração, grupo, cultura ou mesmo indivíduo, do qual depende para a elaboração, o estabelecimento e o acesso ao conteúdo, à norma; uma vez que, para entender o mundo jurídico cada cultura tem sua maneira singular de expressá-lo e de interpretá-lo, ou seja, cada qual tem a experiência correlata ao mundo da vida, muito embora, a proposição prescritiva também diz respeito à força vinculante.

[...]

Até agora, falamos dos imperativos (ou comandos). Mas os imperativos (ou comandos) são aquelas prescrições que têm maior força vinculante. Essa maior força vinculante se exprime dizendo que o comportamento previsto pelo imperativo é obrigatório, ou em outras palavras, o imperativo gera uma obrigação à pessoa a quem se dirige. Imperativo e obrigação são dois termos correlativos: onde existe um, existe o outro. Pode-se exprimir o imperativo em termos de obrigatoriedade da ação-objeto (BOBBIO, 2014, p. 97)

No entanto, para Bobbio não está descartado que a maior parte das vezes a isso implica um velamento que há por trás da linguagem jurídica, ou seja, a função prescritiva que visa:

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pressupor o conhecimento da função que tem o sistema normativo de caracterizar uma dada sociedade, e não podem ser respondida senão através do estudo das regras de conduta que moldaram a vida daqueles homens, distinguindo-a da vida de outros homens, pertencentes a outra sociedade inserida em outro sistema normativo (BOBBIO, 2014, p. 27).

Em outro aporte:

Acreditamos ser livres, mas na realidade, estamos envolvos em uma rede muito espessa de regras de conduta que, desde o nascimento até a morte, dirigem nesta ou naquela direção as nossas ações. A maior parte destas regras já se tornou tão habituais que não nos apercebemos mais da sua presença. Porém, se observarmos um pouco, de fora, o desenvolvimento da vida de um homem através da atividade educadora exercida pelos seus pais, pelos seus professores e assim por diante, nos daremos conta de que ele se desenvolve guiado por regras de conduta (BOBBIO, 2014, p. 26).

Nesse mesmo sentido estão às questões relacionadas ao conteúdo das representações mentais das quais são de extrema importância para a Ciência Jurídica, pois, para entender o Direito é necessário apresentar as possibilidades interpretativas; porque a ideia de prioridade pragmática dos atos de comunicação só é validada a partir da decisão de se colocar em discurso e em situação comunicativa, utilizando os termos de Ferraz Jr. (2009, p. 12). E ampliam-se, mesmo as normas de conduta que fazem parte da função prescritiva pretendem sublinhar imperativos positivos ou negativos de ambas as espécies, sem, contudo, deixar de almejar a experiência jurídica a rigor formulada, porque são de signos linguísticos que se fala. Nessa linha, na dimensão pragmática está a constituição significativa do que venha a ser destinado à linguagem jurídica, porque é nela que também se fincam os propósitos da função prescritiva, seja para a adesão espontânea ou obrigatória do interpretante da norma.

Por isso também destacar o Direito como prática discursiva sociocultural, tendo em conta que é exatamente nas relações que constituem o esquema triádico de Peirce (fundamento, objeto e interpretante) que de acordo com Correia (2012, p.3)

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podemos encontrar aquilo que a Semiótica Peirceana possui de essencial para o entendimento do conteúdo das representações mentais: é no jogo das relações entre os elementos que compõem o signo que o conteúdo das representações mentais nascem como signos-interpretantes, efeitos do signo, efeitos de sentido e de representação do signo nas mentes interpretadoras.

Sendo assim, não há como dizer que o Direito é meramente condicionante comportamental, pois a ideia é justamente romper com as vertentes do behaviorismo e das análises logocêntricas do estruturalismo, para propor uma situação de comunicação, de interação, de mentes interpretadoras para as normas jurídicas. Desse modo, o pragmatismo peirceano conduz ao patamar da pragmática, e o Direito pelo viés dessa dimensão se propõe a sair dos limites impostos pela estrutura linguística e ir ao encontro da proposta de Habermas (1997, p. 31-32), no sentido que mesmo função prescritiva:

O mundo como síntese de possíveis fatos só se constitui para uma comunidade de interpretação, cujos membros se entendem entre si sobre algo no mundo, no interior de um mundo da vida compartilhado intersubjetivamente.

Complementa Ferraz Jr.:

Uma situação comunicativa não ocorre, porém, num vácuo, mas se manifesta sempre num conjunto de articulações complexas que a circundam, tendo, assim, um limite identificável. Esse limite em um aspecto externo – mundo circundante- e um aspecto interno – estrutura da situação. O mundo circundante corresponde ao conjunto complexo de alternativas, ações possibilidades de ação, conflitos em larga escala, ausência de consenso, etc. Toda vez que esta imensa complexidade é, em parte, reduzida pelo estabelecimento de regras e de relações, estrutura-se a situação (FERRAZ Jr., 2009, p.13-14).

Nos dizeres de Andrade e do Carmo (2010, p. 3):

Ora, por tratar-se o Direito um produto da sociedade, é plenamente concebível que o mesmo contemple os fatos cotidianos, a pluralidade e a integração de elementos da realidade. Esta seria, portanto, uma das principais motivações do estudo da semiótica

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jurídica: a reflexão do discurso jurídico como um campo de conhecimento que não deve se manter apartado dos demais, já que seus argumentos estão intimamente relacionados às necessidades humanas.

Portanto, dizer que o Direito tem como objetivo “regular condutas sociais admissíveis” não o isenta, sobremaneira de conceber tal dinâmica nos moldes circunscritos nos acontecimentos sociais. Pelo contrário, enquanto produtor de práticas discursivas socioculturais, como se apregoa aqui, é previsto admitir a complexidade dos fenômenos humanos, quais seja: econômicos, sociais, culturais, filosóficos, comunicativos, etc. Afinal se assim não fosse a questão fundamental do Direito se perderia, porque deixaria de ser fundante na dialogicidade que se pretende. É dado a essa fundamentação que Ferraz Junior aponta no sentido da situação comunicativa. E nessa esteira é pautado o princípio da pragmática de Peirce, haja vista o privilégio dessa dimensão para a semiose, tendo em vista como enfatiza o autor, a norma como fato linguístico, incorporando a dimensão lúdica (Ferraz Jr., 2009, p.12). Merece citar nos termos de Ferraz: “as demais dimensões: semântica e a sintática são aspectos relevantes aos estudos da norma jurídicas, mas salienta ser a pragmática a preterida em razão do princípio da interação” (2009, p. 30).

E acrescentamos, se o Direito cuja capacidade de mediação é formalizar o universo simbólico da ordem jurídica, por reconhecer o homem como ser “simbólico” e como tal, diferente de outras espécies animais pela condição de apreensão dos sentidos ao alto nível de abstração, a experiência advinda dessa formalização simbólica, na realidade apreendida e percebida, é capaz de transfor-mar o mundo mental, psicológico, sociocultural e interacional do receptor.

Nos termos de Ricardo Souza Pereira (2012), eis os motivos pelos quais a opção pelo ponto de vista pragmático para a abordagem da linguagem jurídica, porque se de um lado está a própria função que lhe é destinada – a de prescrever, sancionar, obrigar, do ponto de vista da semiose tal qual a propositura de Ferraz Jr.:

Quanto à concepção do ponto de vista pragmático, objetiva esse estudo a ser um facilitador da comunicação entre aquele que emite a norma e o destinatário desta, que poderia ser apenas um receptor

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da norma. Todavia quanto de forma pragmática o fim é alcançado, deixa de ser um mero receptor, entretanto, para se transformar em conhecedor da mesma, o que torna o ato da linguagem, muito mais eficaz.

E do mesmo modo o Direito como prática discursiva sociocultural, pois, esse passa a assumir a função de agenciador-comunicacional das relações humanas, porque concebe não apenas a linguagem e os signos como investigação da semiose, mas a interação que a concebe como comunicação social com o interpretante. Para essa compreensão toma-se Carlos Eduardo Bianca Bittar que ensina:

Então percebe-se que a presença corpórea do Direito não é tão unitária, nem tão homogênea; percebe-se mesmo que ao Direito falta algo quando dele se extraem suas substâncias sócio-cultural, expressiva, discursiva, político-potestativa (...). Se assim é, então se está diante de um fenômeno que convive com outros fenômenos, de alguns dependendo intrinsecamente, de outros extraindo sua articulação, sobre outros se estruturando, com outros convivendo dialeticamente, etc. Nesse sentido, e nesse exato momento, abre-se uma nova visão para o que seja a realidade do Direito, um sentido que não apela para aquela realidade artificial [...] (ortografia original do autor). (BITTAR, 2003, p. 15).

Nesse consentimento Bittar complementa:

De um lado o discursus consiste no uso da racionalidade depurativa das idéias, contrapondo-se, portanto, à noção de intuição (noésis); o discursus envolve o cursus de uma proposição a outra, de modo que todo raciocínio encontra-se condicionado por esse percurso. De outro lado, o discurso é entendido como sendo logos, ou seja, o transporte do pensamento (noûs) das estruturas eidéticas para a esfera da comunicação, o uso do noûs na articulação da linguagem. O logos, em verdade, é o noûs feito em palavra, o que equivale a dizer que há uma passagem do simbólico abstrato e noético, do simbólico do pensamento e da formação das idéias, para o simbólico concreto e expressivo (ortografia original do autor). (BITTAR, 2003, p. 71)

Desse modo, o processo de semiose que Peirce introduziu a fim de caracterizar o processo dinâmico na mente do receptor é tomado no sentido de

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que, tal processo é a ação do signo, e ainda, o processo no qual o signo tem um efeito cognitivo sobre o intérprete, consequentemente, o Direito engendra por meio da situação comunicativa normativa à aquisição do conhecimento humano e com isso, o desenvolvimento da linguagem jurídica. Afinal, é na linguagem que a cognição é narrativizada de modo ativo pelas interpretações carregadas de subjetividade. O processo de mediação do Direito passa da experiência perceptiva ao jogo estratégico dos símbolos organizados na linguagem jurídica. No sentido semiótico peirceano, passa pela primeiridade (a categoria do sentimento imediato e presente das coisas, sem nenhuma relação com outros fenômenos do mundo):

Na definição de Peirce, “primeiridade” é o modo de ser daquilo que é tal como é. É a categoria do sentimento sem reflexão, de mera possibilidade, da liberdade, do imediato, da qualidade ainda não distinguida e da independência. (SANTAELLA, 2003, p. 43).

Em seguida pela secundidade que significa:

Começa quando um fenômeno primeiro é relacionado a um segundo fenômeno qualquer. É a categoria da comparação, da ação, do fato, da realidade e da experiência no tempo e no espaço, aqui e agora, ação e reação (SANTAELLA, 2003, p. 47)

E alcança a categoria da terceiridade, cuja tese peirceana é a categoria que relaciona um fenômeno segundo a um terceiro. “É a categoria da mediação, do hábito, da memória, da continuidade, da síntese, da comunicação, da representação, da semiose e dos signos” (SANTAELLA, 2003, p.51).

Nessa medida é colocar o homem sujeito da interpretação, visto que é sempre o resultado de uma elaboração cognitiva, fruto de uma mediação sígnica que possibilita nossa orientação no espaço por um reconhecimento e assentimento diante das coisas que só o signo permite (SANTAELLA, 2003, p. 52-53).

Consequentemente, o processo de significação (semiose) é presente na narratividade das mediações não ao acaso, na medida em que a mediação é um processo semiótico-discursivo, também o é o processo de narratividade, por se tratar de um mapa mental cognitivo não meramente narrativo. Porque, nesse mapa a narratividade se trata de uma dada propriedade que caracteriza certo tipo

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de discurso (GREIMAS, 2008, p.328), nesse caso, o discurso do Direito que escreve e/ou subscreve o modo como os sujeitos sociais devem saber-fazer, poder-fazer, dever-fazer das práticas discursivas jurídicas uma situação de comunicação na cultura, na história, na sociedade. Esse modelo embora abstrato é justificado na medida em que o comunicador normativo (FERRAZ Jr. 2009, p.43), nesse contexto, também passa a assumir diversas posições dentro dos demais discursos sociais.

Aí estão enraizadas as bases que constituem o fenômeno do Direito enquanto prática discursiva sociocultural.

4. conclusões

A Semiótica elaborada por Charles Sanders Peirce, concebida como Lógica, não pode ser confundida com uma ciência aplicada, nos dizeres de Santaella, visto que o esforço de Peirce foi de configurar conceitos sígnicos gerais para a apreensão dos sentidos advindos dos procedimentos abstratos-formais.

Cumpre reter nessa linha que os procedimentos teóricos de Peirce contribuí-ram para o avanço do pragmatismo norte-americano, uma vez que por meio do esquema triádico do signo, muito diferente do modelo diádico de Ferdinand de Saussure, permite a relação de semiose (significação) que designa uma ação; ou uma influência que supõe a cooperação de três sujeitos no processo: o signo, o objeto e seu interpretante.

Ocorre dessa ideia a ação do homem no mundo, mesmo que apenas perpas-sada pela experiência, segundo a qual ele chamará de primeiridade, que nada mais é que as coisas fora do lugar ou de qualquer suporte (ARAÚJO, 2004, p. 47). No entanto, adianta e leva em conta o caráter tríplice do signo e da ação primeira, porque reside em seguida uma segunda – a secundidade que ocorre pelo contato com alguma coisa que obriga a uma modificação, às reações, ao aspecto de relação mútua. Assim, na transuação, como propõe Araújo (2004, p. 47), para Peirce ocorre a mediação ou modificação da primeiridade e da secundidade, e nesse nível ocorre os processos comunicativos.

O Direito se encaixa nessa dimensão terceira, pois representa algo que provo-ca, conclama, modifica, persuade, cria mediações tipicamente e genuinamente

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características de sua situação comunicacional normativa, ou seja, é representação ao mesmo tempo em que é representado, porque hábito, memória, difusão, crescimento, inteligência, cognição segue sua constituição deôntica de validade argumentativa, consequentemente, discursiva.

Por ser terceiridade implica gerar na mente do intérprete outro signo equiva-lente ou mais desenvolvido que Peirce (1972, p. 94) intitula como interpretante. E, com tudo o que isso determina, o pragmatismo de Peirce foi apresentado fazendo-se notório que: “os caracteres de todos os signos utilizados por uma inteligência científica, isto é, por uma “inteligência capaz de aprender com a experiência” (1977, p. 45), constituem uma espécie de abstração junto com a observação”. (ARAÚJO, 2004, p. 54). O Direito nessa seara, enquanto categoria terceira diz respeito “à mediação ou processo, crescimento contínuo e devir sempre possível pela aquisição de novos hábitos” (SANTAELLA, 2003, p. 39), normas, costumes, assentimento, convenção, situação de comunicação/interação; porque por meio do Direito se representa e interpreta o mundo das leis; é a camada da inteligibilidade que demanda na profusão do cognitivo.

A Semiótica Peirceana, na área do Direito, é um campo do conhecimento em desenvolvimento que busca entender os processos de significação que permeia o discurso jurídico. Como uma semiótica específica pode ser aplicada aos processos de cognição que o Direito propõe replicar, dadas as potencialidades cognitivas da espécie humana.

Em suma, dessas abordagens chegou-se à dimensão pragmática, pelo fato de que na complexidade do discurso se apela ao entendimento de outrem, nos dizeres do professor Ferraz Jr. Nesse contexto, o que dá sentido da sua unidade é a possibilidade pragmática do discurso, ou seja, as regras compõem uma unidade em função da possibilidade de comportamentos discursivos fundamentantes (FERRAZ Jr, 2009, p. 20). Por fim, sob o ângulo da pragmática do discurso, como assevera o autor, interesses se manifestam através de valores (2009, p. 151).

Se para Norberto Bobbio a função prescritiva da linguagem jurídica vai ao encontro do que se propõe, isto é, modificar o comportamento do indivíduo, a influência também dos modos como ele a recepciona, nesse caso a interpreta por meio dos mecanismos cognitivos, mesmo que de modo indireto, enquanto

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influência da prescrição é direta, o que significa dizer que é pela linguagem que há o consentimento do interpretante em fazer-fazer. Ou ainda, como função prescritiva perpassa pela dinâmica do imperativo heterônomo, haja vista que sai da esfera da moral kantiana: a autonomia da vontade segundo a qual é a qualidade que possui a vontade de ser lei de si mesma; em direção ao discurso do legislador, visto que esse é legislador moral interno, e o jurídico é externo, como acentua Bobbio.

O Direito como prática discursiva sociocultural não seria diferente, dado que em termos pragmáticos, a função discursiva imanente aí contém, nos dizeres do Ferraz Jr: “observações que nos conduzem a conclusões pouco satisfatórias sobre a legitimidade tomada como um problema de justificação última do discurso normativo”. (2009, p. 172).

Porque, como o autor (2009, p. 172) mesmo afirma: “O seu caráter de jogo sem fim mostra, por analogia, que qualquer tentativa de exigir padrões últimos, capazes de decidir inapelavelmente sobre a “lisura” do jogo, sobre se o jogo continua sendo jogado ou se está sendo apenas feito na aparência, exige critérios que não estão dentro do sistema, mas, de algum modo, fora dele.”

Ora, então aí reside a colocação de que todo discurso é dotado de ideologia, e dada a impossibilidade de se sair do limite ideológico, isso não dá o direito de tornar irracional e acessível a legitimidade do discurso jurídico, tendo em vista que para a pragmática formal é preciso permitir aos participantes da comunicação entenderem-se entre si acerca de algo que o mundo lhe coloca; logo, culmina na proposta de uma nova racionalidade, entendida como disposição dos sujeitos capazes de produzir e apreender os sentidos da linguagem – processo cognitivo, ao mesmo tempo em que possibilita a ordem social.

Por fim, como produtor de discursos sociocultural é também o Direito capaz de gerir a competência do indivíduo a fim de conduzi-lo a um saber-fazer escolhas, analisar, compartilhar, mas, fundamentalmente, vivenciá-lo com ética e senso crítico. Portanto, uma experiência cognoscente, que impulsionaria a percepção da cultura e relativizaria as normas e os valores da norma de cada sociedade, levando em conta o saber-fazer que, além disso, compreende as experiências estéticas e estésicas dessa mesma sociedade.

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