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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
DAIANI CEZIMBRA SEVERO
ROSSINI BRUM
A ATUAÇÃO DE PALHAÇAS E
PALHAÇOS: o hospital como palco de
encontros
NATAL/RN
2017
DAIANI CEZIMBRA SEVERO ROSSINI BRUM
A ATUAÇÃO DE PALHAÇAS E PALHAÇOS: o hospital como palco de
encontros
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Artes Cênicas da
Universidade Federal do Rio Grande do
Norte como requisito para obtenção do grau
de Mestre em Artes Cênicas.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Karenine de
Oliveira Porpino.
NATAL/RN
2017
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART
Brum, Daiani Cezimbra Severo Rossini.
A atuação de palhaças e palhaços: o hospital como palco de encontros / Daiani Cezimbra Severo Rossini Brum. - Natal, 2017.
137f.: il.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-graduação em
Artes Cênicas.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Karenine de Oliveira Porpino.
1. Atuação Cênica - Hospitais. 2. Teatro. 3. Risoterapia. I.
Porpino, Karenine de Oliveira. II. Título.
RN/UF/BS-DEART CDU 792.02
AGRADECIMENTOS
A soma de experiências, saberes, dizeres, ações e corações de muitas pessoas foi
fundamental na composição deste trabalho. Gostaria de destacar minha gratidão a Luiz
Inácio Lula da Silva e a Dilma Vana Rousseff. A partir das iniciativas tomadas por
ambos e através de muita luta, tive condições de subverter as limitações impostas pela
minha condição social e aqui apresentar essa pesquisa.
Sou grata à minha mãe, Janete Cezimbra Severo, e ao meu irmão, Matheus
Cezimbra Severo, queridos parceiros de jornada; assim como à companheira amada,
Flávia Maiara Lima Fagundes. Agradeço ao meu pai, Paulo Rossini Brum e família,
pelo apoio. Simone Cezimbra Severo, Martina Cezimbra Pereira e Schu Pereira:
agradeço-lhes pelas acolhidas e visitas. Tenho profundo agradecimento pelo meu
encontro com a Tainar Gavião Leal e com o Peterson Gavião Leal, com a Édna Gavião,
com o Paulo Leal, com a Raíne Gavião Pereira e com a Luna Leal Barbosa, família
amorosa, amiga e de costumeiros braços abertos. Obrigada aos irmãos do Teatro Porque
Não? pelas experiências compartilhadas na amizade e na entrega para o Teatro.
Sou grata também à ONG Esparatrapo, em especial à Kelly Lima, à Camila
Tiago e ao Xavier Ruiz, com os quais pude atuar nos palcos hospitalares, assim como à
Inaiá Correa, que neles nos recebeu; à Renata Marques, pela importante recepção em
Natal; à ONG Doutores da Alegria, sobretudo ao Wellington Nogueira, por receber esta
pesquisa; aos professores, funcionários e colegas envolvidos no PFPJ5, pelas vivências
intensas; aos entrevistados e entrevistadas pela disponibilidade em colaborar com a
pesquisa. Obrigada também à turma de mestrado pela parceria constante nos “aperreios”
e nos festejos.
Agradeço à Gabriela Amado e à Mariane Magno pelo profissionalismo na
orientação de pesquisas anteriores; à orientadora deste trabalho, Karenine Porpino, pela
sensibilidade, paciência e liberdade com que me recebeu; ao professor Robson
Haderchpek pela abertura e empenho; à professora Márcia Strazzacappa pela
disponibilidade e pelas suas contribuições. Agradeço ao Fundo de Apoio à Pesquisa do
Rio Grande do Norte (FAPERN) pela importante bolsa de mestrado e à Marina
Zampirolo por tecer os detalhes finais deste trabalho. Por fim, aos encontros, pois “Cada
ser é só, e ninguém pode dispensar os outros, não apenas por sua utilidade - que não está
em questão aqui -, mas para a sua felicidade.” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 50).
Existe uma vitalidade, uma força vital,
uma energia, uma vivacidade que é
traduzida em ação por seu intermédio, e
como em todos os tempos só existiu uma
pessoa como você, esta expressão é
única. Se você a bloquear, ela jamais
voltará a se manifestar por intermédio
de qualquer outra pessoa, e se perderá.
(Martha Graham)
RESUMO
O presente trabalho trata-se de uma investigação em Artes Cênicas que teve
como mote algumas inquietações pessoais da autora ao atuar como palhaça em hospitais
de São Paulo e de Natal. A partir dessa experiência profissional, identificou-se que há
peculiaridades no trabalho de atriz e de palhaça próprias aos diferentes espaços da
sociedade. No contexto aqui pesquisado, destaca-se a necessidade que as figuras
palhacescas têm de engendrar uma abertura em que possam se relacionar com os seres e
com os acontecimentos do espaço e do tempo hospitalares. Por isso, pergunta-se: com
base na experiência de profissionais palhaças e palhaços que atuam em contextos
hospitalares, quais são os principais aspectos a serem considerados na atuação nesses
espaços? No intuito de responder a essa questão, objetiva-se investigar a atuação de
palhaças e palhaços em palcos hospitalares, contextualizando, para isso, tal atuação no
âmbito das práticas cênicas. Além disso, a partir da descrição de experiências nos
campos hospitalares, pretende-se identificar os principais aspectos que configuram essas
vivências artísticas em contato com o cotidiano do hospital. Com base numa
metodologia fenomenológica fundamentada em Merleau-Ponty (2006; 2007; 2011),
buscou-se dialogar com experiências palhacescas hospitalares através de entrevistas
realizadas com sete membros da Organização Não Governamental (ONG) Doutores da
Alegria, bem como com o palhaço Ésio Magalhães, que fez parte do elenco da ONG até
o ano de 2003. Como resultados desta pesquisa propõe-se a discussão sobre o jogo
cênico a partir da mescla das técnicas de treinamento pessoal e das sensibilidades de
cada artista, como também a atuação palhacesca no hospital como geradora de
experiências de encontros teatrais. Para tanto o referencial teórico abrange a
Fenomenologia de Merleau-Ponty (2006; 2007; 2011), o conceito de Jogo colocado por
Huizinga (2014) e os estudos brasileiros sobre o riso, o cômico e a palhacaria, tais como
os de Burnier (2001), Viveiros de Castro (2005), Bolognesi (2006), Kásper (2004), Wuo
(1999; 2011) e Sacchet (2009).
Palavras-Chave: Atuação Cênica. Teatro. Palhaçaria Hospitalar. Encontro.
Fenomenologia.
ABSTRACT
This work is an investigation in Scenic Arts that had as motto some personal
concerns of the author when acting as a clown in hospitals of São Paulo and Natal.
From this professional experience, it has been identified that there are peculiarities in
the work of actress and clown in different spaces of the society. In the context
researched here, it is emphasized the need for the clowns to have to engender an
opening in which they can relate to beings and to the events of space and hospital time.
Therefore, it is asked: based on the experience of professional clowns who work in
hospital settings, what are the main aspects to be considered in acting in these spaces?
In order to answer these questions, the objective is to investigate the performance of
clowns in hospitals, contextualizing, for this, such action within the framework of
scenic practices. In addition, from the description of experiences in the hospital fields,
we intend to identify the main aspects that configure these artistic experiences in contact
with the daily life of the hospital. Based on a phenomenological methodology based on
Merleau-Ponty (2006, 2007, 2011), we sought to dialogue with hospital clownings
experiences through interviews with seven members of the Non-Governmental
Organization (NGOs) Doutores da Alegria, as well as the clown Ésio Magalhães, who
was part of the NGO's cast until the year 2003. As a result of this research, we propose
to discuss the scenic play based on the mixture of personal training techniques and the
sensibilities of each artist, as well as the performance of clown in the hospital as
experiences of theatrical meetings. In order to do so, the theoretical reference covers the
Merleau-Ponty Phenomenology (2006, 2007, 2011), the play concept posed by
Huizinga (2014) and the Brazilian studies on laughter, comics and palhacaria, such as
Burnier 2001), Viveiros de Castro (2005), Bolognesi (2006), Kásper (2004), Wuo
(1999; 2011) and Sacchet (2009).
Key-words: Acting Scenic. Theater. Hospital Clowning. Meeting. Phenomenology.
LISTA DE IMAGENS
Figura 1 - Palhaça Brum (Daiani Brum) desenhada. ............................................................... 13
Figura 2 - Corrida de cadeiras com Doutor Lui (Luciano Pontes). ......................................... 29
Figura 3 - Espetáculo O Não Lugar de Ágada Tchainik, ........................................................ 34
Figura 4 - Palhaço circense Chicharrão, José Carlos Queirollo .............................................. 34
Figura 5 - Joseph Grimaldi ...................................................................................................... 41
Figura 6 - Espetáculo Zabobrim, o rei palhaço, do Barracão Teatro. ..................................... 45
Figura 7 - Bess, o deus da alegria. ........................................................................................... 54
Figura 8 - Doutoras Juca Pinduca (Juliana Gontijo) e Greta Garboreta (Sueli Andrade). ...... 66
Figura 9 - PFPJ 5. .................................................................................................................... 72
Figura 10 - Doutora Xaveco Fritza (Val de Carvalho) pegando na mão de um bebê. ............ 76
Figura 11 - Doutora Lola (Luciana Viacava) no corredor hospitalar. ..................................... 90
Figura 12 - Doutores Dud Grud (Eduardo Filho) e Eu_Zébio (Fábio Caio). .......................... 99
Figura 13 - Aroldo, o porta-soro, e os Doutores Dus Cuais Carigudum (Henrique
Rímoli) e Sandoval (Sandro Fontes). ..................................................................................... 113
Figura 14 - Doutora Brum (2013). ........................................................................................ 121
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................... 10
2 PALHAÇAS E PALHAÇOS: RISOS COLETIVOS.......................................... 23
3 PALCOS HOSPITALARES............................................................................... 51
4 CAMPO DE EXPERIÊNCIAS.............................................................................
4.1 JOGO DE TÉCNICAS E SENSIBILIDADES.....................................................
4.2 ENCONTROS TEATRAIS...................................................................................
77
85
103
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................ 118
REFERÊNCIAS......................................................................................................... 123
APÊNDICES..............................................................................................................
APÊNDICE A - LISTA DE FILMES........................................................................
ANEXOS.....................................................................................................................
ANEXO 1 - CARTA PARA OS DOUTORES DA ALEGRIA................................
ANEXO 2 - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO..........
ANEXO 3 – EDITAL PFPJ.......................................................................................
130
130
132
132
133
135
11
1 INTRODUÇÃO
Dos medos nascem as coragens; e das dúvidas, as certezas. Os sonhos
anunciam outra realidade possível e os delírios, outra razão. Somos,
enfim, o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não
é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa
síntese das contradições nossas de cada dia. Nessa fé, fugitiva, eu
creio (GALEANO, 2015, p. 123).
Contraditória como o ser humano, que transita entre o profano e o sagrado, a fé na
mutabilidade da existência descrita por Galeano, pode ser digna de confiança. Aqui
contextualizada, essa fé acolheu incalculável soma de horas em desassossegos,
rascunhos, sonhos acordados, desacertos, recomeços. Em meio a contradições
inconstantes e descobertas, imergi no processo desta pesquisa. Com imensa alegria,
apresento aqui o fruto de uma jornada intensiva, tecido por constantes atos de
reinvenção e produto de investigações, práticas, reflexões e diálogos sobre a atuação
cênica de palhaças e palhaços1 em palcos hospitalares.
Contemporâneos espaços de atuação, esses palcos fornecem material para uma
discussão sobre novos pressupostos do ponto de vista da performance palhacesca, desta
feita voltada para o jogo com os novos tempo e espaço em que se estabelecem e para
com os seres que nesses ambientes habitam. Nos palcos hospitalares, os espectadores
não são o público decidido a ir ao teatro ou ao circo para assistir aos gracejos das
figuras palhacescas, como ocorre corriqueiramente. A plateia desses espaços é
composta, na maioria dos casos observados nesta pesquisa, por crianças hospitalizadas,
seus acompanhantes, equipe médica e funcionários do hospital, que muitas vezes
vivenciam situações delicadas e extremas, que podem envolver a vida e a morte.
A permeabilidade para com o encontro, assim, faz-se fundamental, pois o foco
desse público tão específico está normalmente voltado à interação com a doença e com
o cuidado. Parto, nesse sentido, da seguinte afirmação do encenador polonês Jerzy
Grotowski: “A essência do teatro é o encontro.” (GROTOWSKI, 2011, p. 44). Na
especificidade teatral manifesta no contexto hospitalar, os encontros significam uma
1 No primeiro capítulo deste trabalho a discussão tem início no entorno das palavras palhaça e palhaço,
sendo que por ora compreende-se que tais seres são aqueles que exercem o oficio cômico regularmente a
partir de pesquisas e práticas que desenvolvam uma atitude de jogo cênico; de autonomia do ponto de
vista criativo e de treinamento pessoal e de abertura para a alteridade. Independentemente das técnicas
empregadas, opções estéticas ou espaços de atuação, entende-se o trabalho palhacesco como aquele que
soma saberes e vivências que compõem, ao longo dos anos, as características pessoais de cada palhaça ou
palhaço.
12
possibilidade de deixar-se afetar pelo outro, pelos seus dramas e suas proposições
cotidianas: constitui-se uma zona de convergência entre a arte e a natureza da vida.
Nos espaços hospitalares, fui acolhida como artista e pesquisadora através do
contato com a ONG Esparatrapo2, no ano de 2013. O encontro com a ONG, além de
trazer experiências de atuação contínua como palhaça no contexto hospitalar, levou-me
a viajar pelo nordeste brasileiro em 2014, onde pude, após percorrer dez cidades
atuando como palhaça em hospitais e escolas, fundar e manter atividades contínuas por
todo um ano, em 2015, na unidade da Esparatrapo em Natal (RN).
Anteriormente ao processo vivido com a ONG Esparatrapo, obtive formação na
arte da palhaçaria junto à Organização Não Governamental Doutores da Alegria,
importante grupo de palhaças e palhaços que atuam em contextos hospitalares, e que ao
longo de vinte e cinco anos destaca-se por realizar ações artísticas, de pesquisa e de
formação no campo das Artes Cênicas, dentro e fora dos contextos hospitalares. A
jornada de estudos da qual participei como aluna trata-se do Programa de Formação de
Palhaços para Jovens (PFPJ)3 dos Doutores da Alegria.
A investigação proposta nesta pesquisa, assim, não se aparta de minhas
anteriores travessias investigativas, mas decorre de seus fluxos. Experiências vividas
como estudante, atriz, palhaça, e especialmente como palhaça contextualizada no
hospital apresentam-se aqui como perspectivas sobre o fenômeno investigado.
Nestas páginas, compartilho alguns resquícios de vivências palhacescas
referentes aos encontros ocorridos em contextos hospitalares. Esses vestígios, ora mais,
ora menos palpáveis, são meus e de outras palhaças e palhaços que nos palcos
hospitalares se estabeleceram compondo múltiplas sensibilidades e experiências. Em
meio a esses fragmentos figuram fotografias, descrições de experiências e outras
recordações, como por exemplo, o retrato da Doutora Brum4, que foi desenhado a partir
2 A ONG Esparatapo atuou entre 2006 e 2015 no estado de São Paulo (SP) e no ano de 2015 em Natal
(RN), ano em que se encerraram suas atividades nacionalmente. Composta por palhaças e palhaços
profissionais, a organização surgiu, assim como diversas outras iniciativas no Brasil, através do campo
aberto pelos Doutores da Alegria. 3 O PFPJ foi criado em 2004 e mantém as suas atividades até os dias de hoje, formando a cada dois anos
25 palhaços que ingressam com idade entre 17 e 23 anos no grupo. Esses jovens vivenciam quatro horas
diárias de aulas ao longo de dois anos, sob a condução de artistas dos Doutores da Alegria e de
profissionais convidados, totalizando mais de 1650 horas de aula. O curso não tem por objetivo formar
artistas que atuem apenas no âmbito hospitalar, mas sim em diversos espaços da sociedade. 4 O retrato foi desenhado em 2015 por um menino de cerca de nove anos, hospitalizado no Hospital
Infantil Varela Santiago de Natal (RN).
13
de seu característico procedimento do chá flutuante, forte aliado no tratamento de
“hipnose boboterápica”:
Figura 1 - Palhaça Brum (Daiani Brum) desenhada.
Fonte: acervo da pesquisadora.
O procedimento de “hipnose boboterápica”, frequentemente aplicado ao autor do
desenho acima, diz respeito à realização de um momento de concentração em que a
palhaça realiza um procedimento de ilusionismo que tem por objetivo fixar a atenção
dos espectadores. Curiosos com o funcionamento do “chá mágico”, os espectadores
14
ficam como que hipnotizados. Ao final do procedimento, na maioria dos casos
observados, as crianças agitam-se, tentando desvendar o mistério, mas basta voltar o
ilusionismo para que elas retornem instantaneamente ao estado de concentração. Por ter
ficado marcado na memória do espectador, o tratamento de “hipnose boboterápica” foi
retratado. Outros encontros igualmente carregados de sensibilidade e prolongados pela
convivência se entrepuseram nesses caminhos, sendo que os resquícios da maioria deles
se encontram perpetuados na memória daqueles que os vivenciaram.
Ao atravessar intenso processo de formação na área de palhaçaria e atuar
profissionalmente como palhaça em hospitais do Brasil, sobretudo em São Paulo e
Natal, vivenciei experiências que me permitiram identificar peculiaridades desse espaço
de atuação palhacesca em relação a outros. Dentre elas, está o encontro entre artistas e
público, que se faz de maneira singular, agregando novas significações às figuras
palhacescas e aos contextos hospitalares.
Desse modo, este trabalho tem por objetivo investigar a atuação de palhaças e
palhaços em palcos hospitalares. Para tanto, buscamos contextualizar a atuação
palhacesca no âmbito das práticas cênicas, bem como descrever experiências de atuação
nos campos hospitalares e identificar os principais aspectos que configuram essas
vivências artísticas em contato com o cotidiano do hospital.
Tendo isso em vista, pergunta-se: comparado aos demais âmbitos de atuação
palhacesca, quais são as principais peculiaridades do hospital? Com base na experiência
de profissionais palhaças e palhaços que atuam em contextos hospitalares, quais são os
principais aspectos da atuação nesse espaço e nesse tempo de atuação?
No intuito de responder a essas questões, valho-me de referencial teórico
composto pela Fenomenologia de Merleau-Ponty (2006; 2007; 2011), pelo conceito de
jogo proposto por Huizinga (2014) e pelos estudos brasileiros sobre o riso, o cômico e a
palhaçaria elaborados por Burnier (2001), Viveiros de Castro (2005), Bolognesi (2006),
Kásper (2004), Wuo (1999; 2011) e Sacchet (2009).
Ao mergulhar nos processos de pesquisa prática e teórica na área da palhaçaria
contextualizada ao hospital, deparei-me com um alto contingente de memórias,
experiências, encontros e sensibilidades, porém com baixos registros de estudos
acadêmicos que discutam esse fenômeno pelo viés das Artes Cênicas. Nesse âmbito,
pude identificar a pesquisa de doutorado da professora Ana Achcar (2007), que propõe
uma metodologia de formação para palhaços atuantes de contextos hospitalares.
15
Esse fenômeno tem maior representatividade investigativo-acadêmica na área da
Saúde. No campo da Psicologia, por exemplo, há as pesquisas de Morgana Masetti
(1998; 2001; 2003; 2013; 2014), voltadas para a humanização das relações no hospital,
bem como para a busca por uma ética do encontro no contexto hospitalar, pensada por
meio da atuação de palhaças e palhaços nesses espaços. Na área da Enfermagem, tem
destaque a pesquisa de Antônio Sena (2011), que discute a arte da palhaçaria no
contexto hospitalar a partir da percepção das e dos cuidadores. Na área de Medicina,
existe a pesquisa de Arlene de Sousa Barcelos Oliveira (2014), que diz respeito à
investigação da arte palhacesca como ferramenta de ensino-aprendizagem na graduação
em Medicina. Na Educação Física, é possível encontrar as pesquisas de Ana Elvira Wuo
(1999; 2011), que desenvolvem o conceito de clown visitador de crianças hospitalizadas
como instrumento de lazer.
No âmbito da pesquisa sobre a atuação artística, há considerável número de
materiais produzidos pela ONG Doutores da Alegria, como a série de revistas Boca
Larga, lançada com periodicidade anual entre 2005 e 2008. Tais revistas contam com
entrevistas, depoimentos, relatos sobre o trabalho dos Doutores, textos e contribuições
de autores diversos direcionados às Artes Cênicas. Embora esta pesquisa não seja de
caráter documental, considerei relevante descrever o contexto dos Doutores da Alegria
pelos motivos já descritos.
Considero que o momento é propício para a realização de uma pesquisa
acadêmica sobre o fenômeno da atuação palhacesca hospitalar pelo viés das Artes
Cênicas, uma vez que são crescentes as iniciativas artísticas de cunho semelhante no
Brasil. Nas referências aqui investigadas, habitam experiências vividas por artistas
cênicos profissionais que podem contribuir para o aprofundamento dos estudos sobre
essa prática, assim como para o fomento de mais iniciativas semelhantes.
Valorizando as experiências vividas por mim e pelos entrevistados, tomo-as
como ponto de partida para a investigação aqui proposta. Busco, desse modo, propor
uma atitude metodológica que dialogue com as sensibilidades implícitas na atuação
palhacesca hospitalar, perpetuadas no corpo e no coração daqueles que a constituem
tendo como meio de expressão as Artes Cênicas.
Assim, dialogo com a Fenomenologia, discutida, sobretudo através dos estudos do
filósofo Merleau-Ponty, segundo o qual o corpo pode ser concebido em movimento,
envolvendo suas sensibilidades, como meio de entrelaçamento com o mundo e enquanto
16
expressão criadora (MERLEAU-PONTY, 2006; 2007; 2011).
A Fenomenologia propõe sua investigação partindo da experiência. Em
consonância com essa perspectiva, foram realizadas entrevistas com oito profissionais
que atuam ou atuaram em palcos hospitalares: sete são pertencentes ao elenco da ONG
Doutores da Alegria e um atuou na organização entre 1998 e 2003, destacando-se
atualmente em outros espaços da sociedade. Os entrevistados foram: Wellington
Nogueira, Marcelo Marcon, Roberta Calza, Heraldo Firmino, Luciana Viacava, Raul
Figueiredo, Du Circo (Eduardo Pinheiro) e Ésio Magalhães.
Todos os sujeitos do grupo de entrevistados trabalham com a atuação palhacesca e
com a formação na arte da palhaçaria. Essa foi ponte central de conexão entre mim e os
entrevistados, uma vez que fui aluna de todas e de todos. A ONG Doutores da Alegria
permitiu que as atuadoras e os atuadores de seu elenco concedessem as entrevistas, e
estes forneceram os direitos de utilização de seus conteúdos nesta pesquisa. Tais acordos
foram firmados por meio da assinatura dos termos encontrados nos anexos 1 e 2 deste
trabalho. Os termos foram assinados pela direção da ONG e por cada entrevistada ou
entrevistado.
Com base nessas experiências e vivências, busquei produzir um diálogo sobre a
atuação palhacesca hospitalar e sobre a recente constituição desse campo artístico e
acadêmico, procurando estabelecer, assim, uma zona de convergência com a
Fenomenologia. A partir dessa perspectiva, houve a possibilidade de proceder a uma
investigação e descrição do fenômeno estudado do ponto de vista da experiência do ser
humano no mundo (MERLEAU-PONTY, 2006; 2007; 2011). Essa atitude demanda
uma suspensão (epoché) dos possíveis julgamentos e pressupostos sobre a natureza
investigada e propõe um retorno às “coisas mesmas”, tais como elas se apresentam
(MARTINS, 1992).
Frequentemente sujeito a intervenções críticas e a julgamentos, o olhar, a partir do
retorno às “coisas mesmas”, ou seja, à percepção de como o fenômeno se dá no mundo
vivido, busca desobstruir-se, na tentativa de visualizar o fenômeno tal como ele se
apresenta, valorizando a experiência (MARTINS, 1992). Buscando tomar o fenômeno
de atuação palhacesca hospitalar tal como ele se deu para as atuadoras e atuadores nele
envolvidos, suas vivências foram consideradas como parte fundamental na discussão
sobre os novos desafios da palhaçaria contextualizada aos palcos hospitalares.
17
A atitude fenomenológica valoriza o Lebenswelt, palavra alemã que designa o
mundo vivido (HUSSERL, 2006). O retorno ao Lebenswelt refere-se à busca por um ato
transgressivo perante o cientificismo, dialogando com o universo das experiências, que,
segundo o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, antecede o universo das reflexões.
Nas palavras do autor:
Retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo anterior ao
conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação ao
qual toda determinação cientifica é abstrata, significativa e
dependente, como a geografia em relação à paisagem – primeiramente
nós aprendemos o que é uma floresta, um prado ou um riacho. Este
movimento é absolutamente distinto do retorno idealista à
consciência, e a exigência de uma descrição pura exclui tanto o
procedimento da análise reflexiva quanto o da explicação cientifica.
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 4).
Merleau-Ponty propõe uma retomada do engendro cognitivo corpóreo, ampliando
as possibilidades de intersecção do corpo com o mundo. Essa intersecção ou fricção é
capaz de produzir saberes sensíveis para além do campo do pensamento e das
reproduções conceituais. O autor não exclui a intersubjetividade, e coloca-a como
implícita nos processos de desenvolvimento humano e social, enfatizando as sensações
do corpo como fundamentais ao processo cognitivo.
A valorização do mundo vivido do ponto de vista fenomenológico possibilita a
compreensão de múltiplas experiências perceptivas, pois, como afirma o filósofo, “Tudo
aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de
uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer
nada.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 3). Aliada, portanto, à Fenomenologia, esta
pesquisa atrela-se às vivências de palhaças e palhaços que compõem sua gama de
saberes e sensibilidades a partir de suas experiências de atuação nos palcos hospitalares.
Para Merleau-Ponty, o saber se inscreve no corpo ao longo de nossa relação com
as experiências no mundo vivido. O corpo não é buscado fora do indivíduo ou
submetido a alguma relação com a dualidade entre corpo e mente; o indivíduo é um
corpo e uma mente, não os possui (MERLEAU-PONTY, 2001; 2006; 2007). O ser
humano entrelaçado ao mundo é capaz de abrir-se para a realidade sensível, que se dá
através do fluxo da vida, e do encontro com outros seres humanos. Para o filósofo, “[...]
é por meio de meu corpo que compreendo o outro, assim como é por meio de meu
corpo que percebo as ‘coisas’.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.253).
18
Merleau-Ponty postula que o mundo fenomenológico considera “[...] não o ser
puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na
intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem umas das
outras [...].” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 18). Desse modo, uma atitude que se
pretende fenomenológica não se pode apartar da subjetividade, nem tampouco da
intersubjetividade, inerentes à presença do ser humano no mundo. Estas, para o autor,
formam a unidade do mundo fenomenológico, que se dá através da “[...] retomada de
minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, e da experiência do
outro na minha.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 18). Nessa perspectiva, destacam-se as
relações entre indivíduos no mundo, como traz o pesquisador brasileiro Joel Martins:
[...] somos uns para os outros, e ‘uns-com-os-outros’, precisamos,
necessariamente, ter uma aparência mútua. Não se trata de uma
aparência externa, mas de uma aparência ou perspectiva um do outro.
Minha visão dos outros e a (visão) que eles têm de mim é que
permitem nossa posição no mundo (MARTINS, 1999, p. 54).
O encontro entre os indivíduos é fator imprescindível na investigação
fenomenológica, assim como o encontro dos seres com o mundo e o seu caminhar em
direção a ele. Imprescindível também é esse encontro no contexto da investigação
palhacesca hospitalar aqui proposta, pois é em seus entornos que se encontram as
intersecções cênicas que são objeto desta pesquisa.
A descrição fenomenológica, aqui proposta, é constituída por três elementos: a
percepção, entendida com primazia no processo reflexivo; a consciência direcionada ao
corpo vida (ao corpo vivido) ou a “descoberta da subjetividade e da intersubjetividade”
(MARTINS, 1999, p. 58) e o “[...] sujeito, pessoa ou indivíduo que se vê capaz de
experienciar o corpo vivido por meio da consciência que é a conexão entre o indivíduo,
os outros e o mundo.” (MERLEAU-PONTY, 1945 apud MARTINS, 1999, p. 58). Aqui,
não se propõe uma explicação do fenômeno, mas sua descrição, tal como ele se
apresenta. A descrição fenomenológica, segundo a pesquisadora brasileira Maria
Aparecida Bicudo, “Se limita a descrever o visto, o sentido, a experiência como vivida
pelo sujeito. Não admite julgamentos e avaliações. Apenas descreve.” (BICUDO, 2000,
p. 77).
Aliada à descrição, a redução fenomenológica tem por objetivo, enquanto
momento de uma trajetória de pesquisa, investigar e sistematizar os componentes da
19
descrição que fazem parte da essência do fenômeno estudado (MARTINS, 1999). É
dividida em três momentos: no primeiro, tem por objetivo colocar o fenômeno em
suspensão (epoché), buscando compreender a experiência vivida sem imprimir as
interpretações pessoais da pesquisadora.
O segundo momento é destinado à interpretação dos pontos focais, ou seja, as
descrições são separadas e organizadas em grupos temáticos chamados unidades de
significado. Esses grupos temáticos, no caso desta pesquisa, foram organizados em
relação às questões abordadas nas entrevistas e divididos inicialmente em oito unidades
de significados, destacadas a partir do conteúdo encontrado nas falas dos entrevistados.
São elas: (1) as experiências anteriores ao hospital; (2) como os entrevistados veem o
trabalho do palhaço; (3) os desafios e os objetivos da atuação; (4) a importância da
relação com o outro; (5) as diferenças e as semelhanças com outros contextos de
atuação; (6) as técnicas cênicas no preparo artístico; (7) as experiências no âmbito
hospitalar; (8) o impacto do trabalho sobre si.
Pretendendo compor uma compreensão fenomenológica acerca das referidas
unidades, primei por uma reflexão que decorresse do processo interpretativo do
fenômeno. A identificação de significações essenciais na descrição e na redução
fenomenológicas, como aponta Martins, são “[...] uma forma de investigação da
experiência.” (MARTINS, 1999, p. 60). Dessas oito unidades de significados, foi
realizada uma nova redução, em que elas foram sintetizadas em apenas três, que trago
para a discussão especialmente no capítulo quatro deste trabalho. São elas: (1) o jogo;
(2) as técnicas e sensibilidades e (3) o encontro.
A Fenomenologia é compreendida neste trabalho, ainda, enquanto atitude
metodológica capaz de valorizar a sensibilidade implícita nas experiências do mundo
vivido. Tais experiências, do ponto de vista investigativo em Merleau-Ponty, são
discutidas em conexão com as manifestações expressivas do corpo. Segundo a
pesquisadora brasileira Petrúcia da Nóbrega,
A dimensão expressiva do corpo é enfatizada por Merleau-Ponty
como comunicação da realidade sensível, dimensão poética da
corporeidade comunicada por meio do gesto. Por meio do logos
sensível, estético, coloca-se a experiência perceptiva como campo de
possibilidades para o conhecimento, investido de plasticidade e beleza
de formas, texturas, sabores, odores, cores e sons. O corpo e o
conhecimento sensível são compreendidos como obra de arte, aberta e
inacabada (NÓBREGA, 2008, p. 147).
20
Esse sentido estético encontrado na corporeidade habita a experiência vivida do
indivíduo, possibilitando um conhecimento sensível sobre o mundo. Segundo Nóbrega,
encontra-se em Merleau-Ponty uma atitude de “[...] convivência poética com o corpo,
por meio do logos estético; convida a uma abertura ao mundo e às configurações
desenhadas pelas experiências dos sujeitos.” (NÓBREGA, 2008. p. 147). A
pesquisadora Petrúcia da Nóbrega enfatiza o caráter corpóreo abordado por Merleau-
Ponty e aproxima a Fenomenologia de um mundo voltado aos sentidos, situando a
Filosofia não como detentora da verdade, mas como geradora de possibilidades
oriundas da existência humana.
Concordo, dessa forma, com a percepção de Nóbrega, segundo a qual a
Fenomenologia habita o sensível e “[...] pensa o mundo a partir do contato com o
espaço, o tempo, a presença e a animação do corpo através do movimento que
transforma o mundo em obra de pensamento, obra de linguagem, obra de arte.”
(NÓBREGA, 2015, p.98). Voltam-se as atenções para um aspecto humano em contato
com o mundo, que necessita dialogar com o decorrer constante de situações e
acontecimentos tão imprevisíveis quanto implícitos no fluxo da vida, negando um
conhecimento que se dê de modo puramente racional.
Para a pesquisadora brasileira Karenine Porpino, esse conhecimento se dá
igualmente a partir da sensibilidade, da arte: “Participar da criação de um objeto estético
é também criar a si mesmo, é poder tornar sempre a um começo repleto de horizontes
ilimitados e poder apreender a simbiose entre vários fenômenos de existência.”
(PORPINO, 2001, p. 113).
Conhecer, então, é aderir ao eterno movimento de criação de si, de novas formas
de conceber os arredores, de outrem, do mundo. Nesse movimento, antes de engessar ou
sentenciar um potencial cognitivo, busca-se ampliar a compreensão do fenômeno
investigado, considerando as possibilidades transformadoras da arte, tão dinâmicas
quanto variáveis, humanas e passíveis de encontros. Coaduno, assim, com o pensamento
de Porpino:
A arte modifica nossa existência com seu encanto ou sua brutalidade,
nos faz leves ou estupefatos. De uma forma ou de outra, modifica
nosso olhar, ao mesmo tempo em que a modificamos com o sentido
que criamos para ela e compartilhamos com outros apreciadores.
Assim a arte enlaça o criador e o apreciador no mesmo espaço
poético, que é sempre interminável (PORPINO, 2012, p. 5).
21
A arte, para a autora, é capaz de ligar os seres humanos através das diversas
maneiras possíveis de ser. Nóbrega, também de acordo, afirma que: “A experiência
estética amplia a operação expressiva do corpo e a percepção, afinando os sentidos,
aguçando a sensibilidade, elaborando a linguagem, a expressão e a comunicação.”
(NÓBREGA, 2010, p 93). É necessário, portanto, que os aspectos artísticos estejam
presentes no cotidiano, ampliando as possibilidades perceptivas dos seres humanos e
potencializando suas referências estéticas e culturais.
É pertinente, também, a percepção da pesquisadora Márcia Strazzacappa, quando
postula que:
[...] se a arte só se produz nas práticas sociais, também só pode ser
aprendida pela mediação de outras pessoas. Não é o simples contato
esporádico com algumas obras e muito menos a mera estimulação
sensorial que fará com que alguém desperte uma sensibilidade para
linguagens artísticas. Assim, mais que entrar em contato com, há a
necessidade de se apropriar de, presente no fazer, experimentar,
arriscar, testar, todas atividades inerentes à criação.
(STRAZZACAPPA; SCHROEDER; SCHROEDER, 2005, p.77).
A atuação palhacesca no hospital se aproxima dessa lógica, tendo em vista sua
frequência de acontecimento, bem como as possibilidades de fazer com que os
espectadores se apropriem das ações cênicas, experimentem-nas e as componham. No
âmbito das vivências de cada indivíduo em contato com os outros e com o mundo,
mesclam-se singularidades na composição da pluralidade artística. Tal pensamento vai
ao encontro da seguinte concepção de Grotowski: “A arte não é a fonte da ciência. É a
experiência a que nos entregamos quando nos abrimos para os outros, quando nos
confrontamos com eles para nos entender [...] no sentido elementar e humano.”
(GROTOWSKI, 2011, p. 46). No contexto do hospital, o contato entre individualidades
resulta em criações de cunho coletivo, compostas por seres que vivenciam uma situação
de encontro no momento em que elas ocorrem.
Dada a recente constituição da atuação palhacesca hospitalar, foi necessário
contextualizar o universo em que ela acontece. Assim, no primeiro capítulo deste
trabalho, trago elementos que compõem um diálogo sobre a atuação das figuras
palhacescas na história da humanidade, bem como sobre características recorrentes
dessas figuras ao longo dos milênios.
22
No segundo capítulo, traço os possíveis percursos que conduziram, com base em
estudos bibliográficos, as figuras palhacescas até os palcos hospitalares, onde
contemporaneamente muitas se estabelecem. Nessa parte do trabalho, situo a ONG
Doutores da Alegria, contexto em que parte da pesquisa foi realizada. No capítulo
terceiro, debruço-me sobre as experiências de palhaças e palhaços em contextos
hospitalares; trazendo para a discussão as três unidades de significados encontradas a
partir da redução fenomenológica do conteúdo das entrevistas cedidas para esta
pesquisa, que são o jogo cênico, o treinamento pessoal mesclado com as sensibilidades
de cada artista e a abertura para o encontro. Por fim, trago as considerações finais acerca
desta investigação nos âmbitos artístico e acadêmico.
Aproximando-se de um processo artístico criativo, a composição desta pesquisa
revelou uma constante necessidade de nutrir-me de conteúdos. Entre eles compartilho,
ao fim deste trabalho, no Apêndice A, uma lista de filmes que têm, direta ou
indiretamente, ligação com a atuação palhacesca hospitalar, já que abordam o universo
da criança, da ludicidade, da fantasia, da palhaçaria, da comicidade, dentre outros. Do
mesmo modo, trago, ao longo da escrita, imagens que auxiliam a caracterização do
fenômeno investigado e as experiências por ele geradas.
23
2 PALHAÇAS E PALHAÇOS: RISOS COLETIVOS
José Luis Castro, o carpinteiro do bairro, tem a mão muito boa. A
madeira, que sabe que ele a ama, deixa-se fazer. O pai de José Luis
tinha vindo lá de uma aldeia de Pontevedra para o Rio da Prata. O
filho recorda o pai, o rosto aceso debaixo do chapéu-panamá, a
gravata de seda no colarinho do pijama azul celeste, e sempre, sempre
contando histórias desopilantes. Onde ele estava, lembra o filho, o riso
acontecia. De todas as partes vinha gente para rir, quando ele contava,
e a multidão se amontoava. Nos velórios era preciso levantar o ataúde,
para que todos coubessem – e assim o morto ficava em pé para escutar
com o devido respeito àquelas coisas todas, ditas com tanta graça. E
de tudo o que José Luis aprendeu de seu pai, isso foi o principal:
- O importante é rir – ensinou-lhe o velho.
- E rir juntos (GALEANO, 2015, p. 215).
Frequentemente, ao vivenciar a atuação de palhaças e palhaços, seja como
palhaça, seja como espectadora, chama-me a atenção o fato de que as pessoas costumam
unir-se em momentos de riso ou de estranhamento, e, mesmo entre os desconhecidos
que compõem uma plateia, acabam trocando olhares para concordar, duvidar ou
simplesmente partilhar o riso existente. No fragmento narrado pelo escritor uruguaio
Eduardo Galeano, até mesmo um defunto se junta aos vivos para celebrar a lição do
velho homem: a importância de que o riso seja coletivo.
Nos picadeiros circenses, nos palcos teatrais, nas praças ou nos corredores
hospitalares, outros seres se assemelham ao pai de José Luis. Tais seres promovem o
riso onde quer que estejam desencadeando a constituição de um elo entre eles e o
público, expresso pelo olhar, pela maneira de colocar-se no tempo e no espaço, pela
abertura com que se dão aos outros.
Ao encontrarem-se com as possibilidades abertas pelas figuras palhacescas e com
seu fulgor, os espectadores vivenciam momentos em que estão juntos, compreendendo-
se como seres indivisíveis em momentos de riso. A interação com as figuras
palhacescas pode compor uma maneira de existir que é compartilhada através de
símbolos comuns, a ponto de os espectadores conectarem suas vidas com a coletividade
da existência.
Igualmente, por parte dos seres que desencadeiam o riso, faz-se necessária uma
abertura para a coletividade da existência, para a percepção de suas ações. Assim, o
velho homem, ao contar suas histórias, devia perceber a presença dos ouvintes,
conectando-se com eles. A composição artística das palhaças e dos palhaços não ocorre
24
de modo individual, pelo contrário, desenvolve-se a partir do contato com outras
existências artísticas, humanas e sociais. No momento do encontro com espectadores;
com profissionais e mestres da palhaçaria e com base em uma memória milenar
constituída por figuras cômicas que perpassam a história da humanidade, constitui-se a
atuação palhacesca, propondo coletividades permeadas pelo riso.
É válido, nesse sentido, considerarmos o relato de Ésio Magalhães, criador do
Palhaço Zabobrim, quando diz que: “[...] palhaço não se faz sozinho, é o resultado de
muitos elementos. Tantos dos mestres que vieram antes como das suas referências
estéticas e de todo o trabalho dos palhaços que nos antecederam. É resultado do
imaginário do público e do seu senso de humor.” (Ésio Magalhães) 5
. Seja em palcos
convencionais, tais como os de rua, teatros e picadeiros circenses, seja em espaços
alternativos, como o hospital, destaca-se a coletividade atrelada à composição
palhacesca, bem como ao riso que ela gera, igualmente propenso às coletividades.
Assim, trago no presente capítulo um diálogo com a coletividade do riso
palhacesco, seguido de uma discussão sobre a etimologia das palavras palhaça, palhaço
e clown, utilizados nesta pesquisa nos sentidos que lhes são os mais atribuídos
contemporaneamente. Após esse levantamento, perpasso por traços históricos deixados
pelas figuras palhacescas ao longo de milênios, bem como por aspectos de sua
existência presentes na atualidade. Por fim, focalizo aquele que aqui é tido como um dos
principais aspectos das figuras palhacescas: a abertura que elas necessitam cultivar para
a alteridade, uma vez que que sua atuação busca desencadear risos coletivos.
Para a pesquisadora Karenine Porpino, a partir da arte,
[...] estamos atados ao outro mesmo quando sequer o conhecemos. O
artista sabe ou intui essa aproximação quando cria as suas obras a
exemplo e semelhança de si mesmo, a exemplo de seus modos de
habitar o tempo e o espaço. Todos vivemos essas possibilidades
diversas, e é o compartilhar desses modos diferentes de ser que nos
liga pela arte. (PORPINO, 2012, p.7).
As palhaças e os palhaços, considerados como existências coletivas, evidenciam
essas ligações humanas, uma vez que são as experiências advindas dessas relações que
compõem seu trabalho em qualquer âmbito de atuação.
5 A entrevista concedida por Ésio Magalhães será publicada na íntegra pela revista Urdimento, n.º 28 do
Programa de Pós-graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina, com lançamento
previsto para julho de 2017.
25
Nessa mesma direção, Grotowski salienta que “[...] o teatro é um ato engendrado
por reações e impulsos humanos, por contato entre as pessoas.” (GROTOWSKI, 2011,
p. 45). Sem o contato entre seres humanos, afirma o autor, torna-se impossível a
concretização do ato teatral, já que a arte é “[...] a experiência que adquirimos quando
nos abrimos para os outros, quando nos confrontamos com eles, a fim de nos
compreendermos melhor [...] num sentido elementar e humano.” (GROTOWSKI, 1971,
p. 43).
O Teatro pode acontecer sem a utilização de figurinos, cenários, iluminação,
maquiagem, porém um acontecimento teatral exige minimamente o encontro entre um
ator e um espectador (BROOK, 1999). Tal conjunção, em seus aspectos elementares, já
pressupõe uma coletividade, ao menos estabelecida entre dois seres que se encontram.
Ampliando as proporções cênicas do encontro, esse fator coletivo muitas vezes estende-
se ao posicionamento cotidiano dos espectadores, que se põem a olhar para os lados em
busca de compartilhar suas experiências momentâneas.
Os espectadores tornam-se cúmplices de um acontecimento que oferece certa dose
de transgressão ao cenário cotidiano. Essa transgressão, explica Bolognesi, dialoga com
os números cômicos, que “[...] ao explorar os estereótipos e situações extremas,
evidenciam os limites psicológicos e sociais do existir.” (BOLOGNESI, 2006, p.14). Ao
vivenciar a experiência da atuação palhacesca, os espectadores tornam-se aliados na
subversão da existência, pois compõem junto das palhaças e dos palhaços o risco de
extravasar a mecanicidade impregnada no cotidiano, criando novas possibilidades de
existir coletivamente.
As figuras palhacescas, uma vez que desconstroem as limitações impostas pela
repetição de ações cotidianas, encontram maneiras de reinventar as relações humanas, e
mesmo no ato de repetir realizam maneiras inovadoras de se relacionar. Nesse sentido, o
tom que o filósofo francês Gilles Deleuze dá para a repetição aproxima-se daquele
empregado pelas figuras palhacescas, que se afastam da rigidez mecânica, da
linearidade. O autor propõe que “[...] o evento repetido seja recriado em um sentido
radical: ele (re)surge a cada momento como Novo.” (DELEUZE, 1988, p. 11). Para as
figuras palhacescas, assim como para Deleuze, repetir não se trata de fazer igual.
O conceito de repetição em Deleuze diz respeito a uma repetição que se encontra
oculta, em que um diferencial sempre se desloca e disfarça. Implícito em toda a
repetição, esse diferencial é o seu correlato. O filósofo aponta que “[...] é a diferença
26
que dá a ver e que multiplica os corpos; mas é a repetição que dá a falar e que
autentifica o múltiplo, que dele faz acontecimento espiritual.” (DELEUZE, 2003, p.
298).
Repetir, desse modo, no contexto das figuras palhacescas, pode ser também uma
forma de portar memórias milenares, conectar-se com a ancestralidade dessas
manifestações. A multiplicidade dos elementos cômicos, que brotam da historicidade
dos seres, caminha ao encontro do novo no mundo, multiplicando-se através da
diferença.
Deleuze, ao conceituar a diferença, ensina que ela não se dirige para a oposição ou
para a contradição, uma vez que não é compreendida como subordinada ao idêntico
(DELEUZE, 1988). Assim, mesmo na repetição há alguma diferença, haja vista o fluxo
constante de transformações a que estamos sujeitos no cotidiano.
Esse fluxo, a todo o momento, nos faz ultrapassar as fronteiras daquilo que
passou, ampliando-se, por conseguinte, as possibilidades de perceber para além do que
está dado, abrindo-se novos horizontes. Já não é o mesmo corpo que repete, tampouco a
mesma atmosfera que se instaura, o mesmo clima, a mesma luminosidade. Uma brisa
que ora adentra o espaço, antes poderia não existir. Estamos constantemente sujeitos a
novas configurações de existência, a novos horizontes, a novos encontros.
Ao trilharem seus horizontes, as figuras palhacescas têm um diferencial em
relação aos demais seres que habitam espaços hospitalares, e uma semelhança
primordial com o universo da criança: a liberdade do compromisso com o real. Esse
diferencial acaba por despertar a curiosidade daqueles que entram em contato com as
palhaças e os palhaços, aproximando-os destes e afastando-os do universo cotidiano. Se,
como afirma Merleau-Ponty, “[...] os fantasmas são fragmentos do mundo claro, e
tomam-lhe todo o prestígio que possam ter.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.387), a vida
cotidiana fornece resquícios daquilo que no corpo das palhaças e palhaços transforma-se
em arte, em teatralidade, em novas possibilidades de vida, em um movimento que
permite a coexistência entre repetição e diferença.
Incitando relações de cumplicidade, as figuras palhacescas utilizam-se de
ferramentas do riso, que ampliam a disponibilidade do espectador para a interação entre
si e os artistas. O riso, assim, pode significar uma das principais ferramentas das
palhaças e dos palhaços, e quiçá um de seus principais objetivos de existência, pois tem
o poder de conectá-lo com outrem. Para Bergson, o riso é tido como um fenômeno
27
social, mas também psíquico: perante os olhos do espectador, a comicidade surge
através da observação das falhas humanas, em certo tom de correção (BERGSON,
2004).
Evidenciando essas falhas, as figuras palhacescas colocam-se na posição de
espelho, onde os espectadores veem refletidas vivências humanas distorcidas pelo filtro
do erro, do não convencional. Bergson privilegia as vivências pessoais no riso,
situando-o exclusivamente no âmbito humano, uma vez que, para ele, “[...] não há
comicidade fora do que é propriamente humano.” (BERGSON, 2004, p. 3). Sendo
assim, mesmo em se referindo a objetos inanimados ou a animais que façam rir, vale
salientar que um animal só será cômico quando encontramos nele uma atitude ou uma
expressão humana (BERGSON, 2004). O autor lembra ainda que o riso é um ato
coletivo, dado a partir de determinado grupo de pessoas (BERGSON, 2004).
Para Vladmir Propp, teórico russo, “[...] em poucas palavras, o riso nasce da
observação de alguns defeitos no mundo em que o homem vive e atua.” (PROPP, 1992,
p. 173, 174). O autor afirma que o riso é relativo ao ser humano, evidenciando que este
é passível a defeitos ou a distorções na ordem do mundo. Nas perspectivas de Bergson e
Propp, encontramos alguns dos que seriam os pressupostos criativos fundamentais da
comicidade, tais como a investigação e a observação do ser humano e de suas relações
com o erro, as falhas, o não habitual, com aquilo que pode surpreender.
Para Bergson, o riso pode acontecer de maneira precisa, como uma lei da
natureza: ou seja, sempre será desencadeado quando houver uma causa. Propp contesta
essa tese, afirmando que “[...] pode-se dar a causa do riso, porém é possível existirem
pessoas que não riem e que não é possível fazer rir. A dificuldade está no fato de que o
nexo entre o objeto cômico e a pessoa que ri não é obrigatório nem natural. Lá, onde um
ri, o outro não ri.” (PROPP, 1992, p. 31). Cada ser humano, imbuído das experiências de
seu mundo vivido, fará diferentes associações relativas ao que é risível para si. Essa
compreensão denota a subjetividade e a peculiaridade do riso, embora não exclua o fato
de que o riso também ocorre de modo coletivo.
Bergson, ao afirmar algumas leis que seriam matematicamente geradoras da
comicidade, fornece estofo para reflexões sobre a composição técnica da comicidade,
como, por exemplo, a inversão de séries, a repetição e a rigidez mecânica (BERGSON,
2004).
Propp salienta o fato de que o caráter singular de cada indivíduo deve ser levado
28
em consideração, porém ampara a discussão a partir da presença de mecanismos que
levam ao riso, tais como o da paródia, da comicidade da semelhança/diferença, do
homem-coisa, entre outros. O autor se atém ao campo popular e folclórico, organizando
ampla gama de objetos risíveis, bem como os tipos de riso desencadeados por eles.
Propp, entre os diversos tipos de riso, focaliza o riso de zombaria (PROPP, 1992).
No mesmo âmbito, o pesquisador russo Mikhail Bakhtin identificou na
comicidade uma forma de inverter coletivamente os padrões estéticos e oficiais,
observando principalmente os aspectos grotescos da existência humana como
transformadores da realidade.
Na obra “A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais”, Bakhtin apresenta sua teoria sobre a cultura cômica popular na
Idade Média e no Renascimento. A concepção apresentada por Bakhtin coloca o
carnaval como espaço de inversão hierárquica, onde se instaura o privilégio dos
excluídos, marginalizados, periféricos, grotescos (BAKHTIN, 1999). Nesse contexto, o
autor afirma que a partir do riso carnavalesco: “[...] revoga-se antes de tudo o sistema
hierárquico e todas as formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta, etc., ou
seja, tudo o que é determinado pela desigualdade social hierárquica e por qualquer outra
espécie de desigualdade entre os homens.” (BAKHTIN, 1981, p. 105).
O riso libertador surge como forma de oposição ao tom sério e repressor da
sociedade, como um intento de libertação. Esse mesmo riso é capaz ainda de libertar o
indivíduo para além dos parâmetros exteriores, sociais, mas também, segundo o autor,
“[...] do censor interior, do medo do sagrado, da interdição autoritária, do passado, do
poder, medo ancorado no espírito humano há milhares de anos.” (BAKHTIN, 1999, p.
81).
Para o pesquisador Larrosa,
O riso destrói as certezas. E especialmente aquela certeza que
constitui a consciência enclausurada: a certeza de si. Mas só na perda
da certeza, no permanente questionamento da certeza, na distância
irônica da certeza, está a possibilidade do devir. O riso permite que o
espírito alce voo sobre si mesmo. O chapéu de guizos tem asas. E não
venham vocês me dizer que o riso é perigoso. O riso é, certamente,
ambíguo e perigoso. Como os livros, como as viagens, como os jogos,
como o vinho, como o amor (LARROSA, 2010, p. 181).
Atribuído historicamente ao aspecto coletivo, libertador, transgressivo, inovador, a
29
aquilo que é fora do comum na vida das pessoas, o riso pode manifestar-se intermediado
por personagens ou figuras cômicas que permeiam a história da humanidade. A partir de
uma interação diferenciada com o mundo, tais figuras abrem espaços ficcionais onde os
espectadores tornam-se criadores de uma cena viva fundada no encontro.
Portadores de coletividades, os seres palhacescos promovem transgressões ao
cenário cotidiano e fornecem a quem com eles interage o poder da união entre seres
humanos em atos que extravasam a normalidade do dia a dia.
Haveria, por exemplo, possibilidades para uma corrida sobre rodas em um
corredor hospitalar? Segundo a lógica palhacesca, seria fácil. Basta haver os
competidores, a pista, a linha de chegada, os veículos e a criatividade dos artistas e
espectadores. No espaço permeado pela lógica palhacesca, rompem-se os
impedimentos, fortemente atrelados às convenções sociais. Dessa forma, poucas
são as situações impossíveis de se concretizar, como podemos ver na imagem a seguir:
Figura 2 - Corrida de cadeiras com Doutor Lui (Luciano Pontes).
Fonte: <http://www.kickante.com.br/campanhas/doutores-da-alegria-apoie-nosso-projeto>.
Acesso em 25/07/2016.
Diversas são as terminologias empregadas para denominar essas figuras que têm
por objetivo trabalhar profissionalmente com os aspectos risíveis e aglutinadores da
humanidade. Tendo por meio de expressão a menor máscara do mundo (LECOQ,
30
1997), palhaças, palhaços, clowns, bobos, excêntricos, augustos, jograis, cômicos, entre
outros (VIVEIROS DE CASTRO, 2005) estão fortemente atrelados à subversão na
humanidade. Essas figuras transitam pelo mundo e parecem renovar-se ao longo dos
tempos, adaptando-se ao olhar da sociedade e assumindo novos espaços de atuação.
Buscando dialogar com o percurso que conduziu as figuras palhacescas até a
atuação em espaços hospitalares, foi realizada para esta pesquisa uma investigação
bibliográfica cujos principais marcos estão expostos a seguir. Inicialmente saliento que,
dentre as diversas denominações dadas ao longo da história para estas figuras cômicas,
mantenho o emprego dos termos mais utilizados contemporaneamente: palhaças,
palhaços e clowns.
A opção aqui tomada, de usar tais termos como equivalentes, coaduna com a
proposição do pesquisador Roberto Tessari, ao afirmar que: “[...] tanto na língua
comum quanto na linguagem especializada do teatro, hoje, não existe nenhuma
diferença entre a palavra palhaço e a palavra clown, pois as duas palavras se confundem
em essências cômicas.” (TESSARI apud DORNELES, 2003, p. 26).
Vale considerar, ainda, que contemporaneamente o trabalho das mulheres na
palhaçaria ganhou bastante destaque, sendo que hoje não é mais possível abordar esse
universo apenas a partir de um termo no gênero masculino. Compreendo que
historicamente o universo palhacesco esteve bastante atrelado ao masculino, mas
atualmente essa arte é igualmente desenvolvida por homens e mulheres, portanto, ao
referir-me à palhaçaria, refiro-me tanto às palhaças quanto aos palhaços.
O termo “clown”, que não apresenta marca de gênero, vem, segundo o
pesquisador Roberto Ruiz do inglês “clod”, termo diretamente relacionado à ideia de
rústico, de campo. A expressão de origem inglesa, ao que tudo indica, data do século
XVI (RUIZ, 1987). O pesquisador Mário Fernando Bolognesi, em seu livro Palhaços,
aponta essa palavra como referente a uma figura grosseira e desajustada (BOLOGNESI,
2006). O historiador John Towsen, por sua vez, afirma que o termo remete a “colonus”,
espécie de pessoa rústica, do campo (TOWSEN, 1976).
O termo palhaço adaptou-se do italiano “paglia”, traduzido ao português como
“palha”. Segundo Roberto Ruiz, tal associação deu-se pelo fato de que inicialmente a
roupa do “paglia” era feita do mesmo material utilizado na fabricação de colchões, que
também era utilizado para proteger os artistas das quedas empregadas como recurso
cômico (RUIZ, 1987).
31
O termo “palhaça”, nesse sentido, significa o feminino de palhaço. Talvez essa
colocação seja bastante óbvia, porém percebe-se que embora atualmente o trabalho das
mulheres no universo palhacesco esteja bastante popularizado, a maior parte das
referências a essas figuras se dá no gênero masculino: “o palhaço”. Essa percepção
inquieta e mobiliza minha busca por uma atitude distinta, ao referenciar a palhaçaria
como uma arte também construída por nós, mulheres: as palhaças.
Historicamente a atuação de mulheres em palcos teatrais, de modo geral, foi
proibida. Dos saltimbancos greco-romanos aos atores de Shakespeare, todos os papeis,
inclusive os femininos, eram interpretados pelos homens. Os primeiros indícios da
inserção feminina nos palcos teatrais do Ocidente são encontrados na commedia
dell’arte. Contemporaneamente, as mulheres palhaças vivem um movimento crescente,
segundo Michelle Silveira, idealizadora e editora da revista Palhaçaria Feminina6. Para
ela, esse novo espaço organizativo das mulheres palhaças é “[...] forte e vem se
consolidando a cada ano, com iniciativas que se unem no movimento de valorização,
qualificação e profissionalização das mulheres palhaças.” (SILVEIRA, 2014, p. 01).
Cada vez mais inseridas nos espaços de atuação palhacesca, as mulheres trazem novas
contribuições para a arte da palhaçaria, através da pesquisa pela perspectiva feminina.
Segundo Nara Menezes, palhaça pela Companhia Animèe, de Recife (PE), “[...]
existem precursoras como Gardi Huter, Nola Era e Hilary Chaplain. Na América Latina
Lila Monti, Mariana Barbera, abriram caminho, e no Brasil as Marias da Graça
começaram a atuar como o primeiro grupo de palhaças [...].” (MENEZES, 2014, apud.
SILVEIRA, 2014, p. 22). Esse movimento mundial de busca por uma identidade das
mulheres palhaças desembocou na realização de importantes encontros e festivais
nacionais e internacionais de palhaçaria feminina, tais como o Encontro Internacional de
Mulheres Palhaças (SP), o Esse monte de mulher palhaça (RJ), o Encontro Internacional
de mulheres palhaças (DF) e o Clownin (Viena, Áustria).
A presença das mulheres nos contextos artísticos é tão inegável quanto constante,
sendo possível identificar uma forte onda de expansão da atuação feminina na arte da
palhaçaria. Se antes a presença das mulheres na construção da cena teatral era proibida,
atualmente é fundamental e contundente. Compreendendo assim as vastas contribuições
6 A Revista Palhaçaria Feminina foi criada em 2012 e é composta por artigos, textos, entrevistas e relatos
de mulheres palhaças do Brasil e do mundo. Atualmente, na sua terceira edição, a revista aborda os
espaços de atuação de mulheres no Brasil (SILVEIRA, 2014).
32
das mulheres palhaças para a pesquisa palhacesca contemporânea, atribuímos também a
elas a construção desse ofício.
Reiterando a equivalência dos termos palhaça, palhaço e clown, o pesquisador
Luís Otávio Burner, fundador do grupo Lume de teatro, explica que “[...] clown e
palhaço são termos distintos para se designar a mesma coisa.” (BURNIER, 2001, p.
205). Apesar da afirmação, o autor reconhece diferenças em relação à linha de trabalho
dessas figuras cômicas, sendo que em seu trabalho específico atém-se ao termo clown:
Como, por exemplo, os palhaços (ou clowns) americanos, que dão
mais valor à gag, ao número, à ideia; para eles, o que o clown vai
fazer tem um maior peso. Por outro lado, existem aqueles que se
preocupam principalmente com o como o palhaço vai realizar seu
número, não importando tanto o que ele vai fazer; assim, são mais
valorizadas a lógica individual do clown e sua personalidade; esse
modo de trabalhar é uma tendência a um trabalho mais pessoal.
Podemos dizer que os clowns europeus seguem mais essa linha.
Também existem as diferenças que aparecem em decorrência do tipo
de espaço em que o palhaço trabalha: o circo, o teatro, a rua, o cinema,
etc. (BURNIER, 2001, p. 205).
Tendo estudado na França com os pesquisadores Etiene Decroux e Jacques
Lecoq7, Burnier desenvolveu seu trabalho voltado para o clown próximo de uma
concepção europeia. O grupo Lume de teatro, fundado por Burnier há trinta e um anos,
exerceu grande influência sobre as Artes Cênicas no Brasil, e consequentemente a
vertente do clown trazida por Burnier difundiu-se em nosso contexto. O artista Ricardo
Pucceti, ator do grupo, aprofundou sua pesquisa sobre o clown e atualmente é
considerado referência no país.
Como observou a pesquisadora Patrícia Sacchet, essas diferenças nas linhas de
trabalho também são vistas por Bolognesi. O autor as considera, sobretudo, no que
tange aos modos de interpretação. Bolognesi (2006 apud SACCHET, 2009)acredita na
diferença existente entre o palhaço circense e o palhaço teatral, afirmando que essa
distinção significaria uma nova etapa na história dos palhaços. O pesquisador afirma
ainda que existem diferenças significativas no âmbito de atuação e encenação: “[...] no
ambiente épico do circo e no dramático do teatro, talvez a diferenciação seja proveitosa,
pois demarca possivelmente uma nova história na vida dos clowns, desta feita voltada
7 Jacques Lecoq fundou em 1956, na França, sua escola. No ano de 1962 inseriu o estudo do clown. Esta
pedagogia difundiu-se, e atualmente, apesar de existirem muitas maneiras de trabalho com o clown, a
maioria está direta ou indiretamente relacionada com a pedagogia de Lecoq (SACCHET, 2009).
33
para o palco teatral, seja ele em espaços fechados, em ruas ou praças.” (BOLOGNESI,
2006, p. 15 apud SACCHET, 2009, p. 22).
A partir dessa diferenciação, pode-se pensar que, no contexto brasileiro, as
palhaças e os palhaços estariam mais voltados para a atuação dentro dos parâmetros
circenses, e os clowns, aos teatrais. Essas duas linhas de trabalho têm especificidades
técnicas e estéticas. Buscando salientar tais diferenças, a pesquisadora Daniele Pimenta
postula que em relação aos palhaços circenses, a criação da figura palhacesca se dá
através de recursos exteriores, tais como o treinamento técnico de quedas, batidas,
acrobacias, sequências cômicas. Nesse âmbito, “[...] a escolha das roupas e da
maquiagem tem muitas referências de outros palhaços, e leva sempre em consideração o
efeito visual na relação picadeiro e plateia (com capacidade para cerca de 2000 pessoas
ou mais).” (PIMENTA, 2006, p. 23).
Em relação ao clown teatral, para Pimenta, o processo de composição se dá “[...]
de modo mais lento, interiorizado e, consequentemente, muito particular. Explora-se
uma gama de possibilidades expressivas que busca também um intimismo que não
caberia no picadeiro, o lirismo, e, portanto, uma emotividade mais delicada.”
(PIMENTA, 2006, p. 23). Os apontamentos levantados por Pimenta em relação às
especificidades na atuação de palhaças e palhaços circenses ou de clowns teatrais, como
vimos, dialogam com a realidade espacial como componente das técnicas de atuação,
bem como com os aspectos estéticos da cena.
Nos hospitais são outras as especificidades que movem a atuação palhacesca, uma
vez que se exige dos artistas uma postura de abertura para a proximidade com os
espectadores. Nestes ambientes as linhas adotadas por palhaças e palhaços podem
mesclar elementos dos palcos e dos picadeiros durante as atuações, porém lidam com a
necessidade de desenvolver técnicas e sensibilidades específicas no contexto hospitalar.
No espaço dos picadeiros circenses ou dos palcos teatrais exige-se uma postura
corpórea das figuras palhacescas que ora tendem a evidenciar aspectos mais visuais e
amplos, ora mais contidos e sutis. Esses espaços delimitam também a permeabilidade
das relações entre artistas e plateia. Nas imagens colocadas a seguir, trazemos de um
lado a clown construída pela atriz Naomi Silman e o palhaço circense Chicarrão, vivido
pelo artista José Carlos Queirolo. Nelas podemos perceber que são bastante distintas as
composições estéticas de um e de outro: na primeira percebemos mais sutileza, e na
outra o emprego de mais recursos visuais.
34
Figura 3 - Espetáculo O Não Lugar de Ágada Tchainik, com a clown Naomi Silman (Lume Teatro).
Fonte: <http://www.sescsp.org.br/programacao/26863_o+naolugar+de+agada+tchainik>.
Acesso em 05/08/2016.
Figura 4 - Palhaço circense Chicharrão, José Carlos Queirollo
Fonte: <http://blogln.ning.com/profiles/blogs/em-2011-espaco-para-o-circo>. Acesso em
05/08/2016.
35
O palhaço Chicarrão, acima retratado, nascido em família circense no ano de 1889
em Bagé, no Rio Grande do Sul, formou seu aprendizado a partir das apresentações
circenses e dos saberes transmitidos pela família e por artistas mais antigos nos Circos
do Brasil, Argentina e Uruguai, onde atuou com frequência. Naomi Silman, por outro
lado, atriz do grupo Lume Teatro, graduou-se em Artes Cênicas pelo Goldsmith’s
College, da Universidade de Londres, e aprofundou seus conhecimentos na arte de atriz
na École Philippe Gaulier e na École International du Théâtre, de Jacques Lecoq, ambas
em Paris. A partir da formação desses dois artistas, podemos pensar as bases da atuação
palhacesca contemporânea no Brasil, composta a partir dos saberes circenses portados
através de gerações, bem como das influências do clown da Europa.
Atualmente as distinções entre palhaças, palhaços e clowns, como percebemos a
partir dos comentários dos autores destacados, não estão restritas apenas à
nomenclatura, mas também à multiplicidade de referências, bem como à potencialização
do acesso às diversas maneiras possíveis de se trabalhar. Nota-se, ainda, constantes
espaços de fricção entre os ditos palhaços circenses e aqueles teatrais ou clownescos. As
diferenças estão, sobretudo, vinculadas às experiências de cada artista, que, em meio a
tantas e tão difusas técnicas, busca seus meios de atuação.
Heraldo Firmino, com sabedoria e simplicidade, conta que, no Brasil, “Você
chega na frente de uma criança, ela não vai olhar para você e falar: -Oi, clown! Ela vai
falar: -Oi, palhaço! Então palhaço é palhaço.” (Heraldo Firmino). Opto, assim, por
utilizar nesta pesquisa o termo “palhaço”, em português, acompanhado também do seu
emprego no gênero feminino, “palhaça”. No intuito de reconhecer que seres de ambos
os gêneros são de extrema importância para a constituição da palhaçaria, empregamos
também a expressão figuras palhacescas, capaz de contemplar as construtoras e os
construtores desse ofício.
Percebe-se, nos dias atuais, uma permeabilidade técnica capaz de reinventar a
composição artística e de alimentá-la de fontes diversas. Há, ainda, um livre acesso a
múltiplas vertentes palhacescas, assim como uma permissividade por parte dos artistas,
que podem utilizar-se de técnicas circenses, de técnicas teatrais e da cultura popular em
geral.
No âmbito palhacesco, vale a singularidade criativa de cada artista posta em jogo
com as circunstâncias do presente. Composta de uma memória ancestral e proposta em
36
momentos de encontro com o público, essa singularidade de ação ao longo dos tempos
parece repetir-se tanto quanto renovar-se.
Não restritos aos palcos, picadeiros, praças e espaços convencionais da cena, as
palhaças e os palhaços fazem emergir suas contradições, mistérios e enigmas em
diversos âmbitos sociais. Aqui, a investigação tem foco no hospital, mas para isso foi
necessário desvelar as outras rotas perpassadas por essas figuras ao longo da história até
que nele pudessem se estabelecer.
Para Burnier, os tipos cômicos trazem consigo elementos de uma genealogia e
portam traços recorrentes na história da humanidade. Conforme a sua lógica, bufões e
bobos da Idade Média; personagens imortais da commedia dell'arte; o palhaço do circo
e o clown “[...] possuem uma mesma essência: colocar em exposição a estupidez do ser
humano, relativizando normas e verdades sociais.” (BURNIER, 2001, p.34).
Durante as celebrações e ritos religiosos, bem como nas representações cênicas
populares da Antiguidade, por exemplo, sempre esteve presente uma oscilação entre o
sagrado e o profano, fator que autoriza a convivência com a comicidade. Segundo
Burnier, essa alternância é um fato que se repete em povos distintos, “[...] dos gregos até
os aborígines da Nova Guiné, passando pelos europeus da Idade Média ou pelos
lamaístas do Tibete.” (BURNIER, 2001, p. 34).
A pesquisadora Alice Viveiros de Castro nos diz que o palhaço está presente em
todas as culturas e que “[...] a mais antiga expressão do personagem é a que se faz
presente nos rituais sagrados. Desde o início dos tempos, o riso foi e ainda é utilizado
como elemento ritual para espantar o medo, especialmente o medo da morte.”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2005, p.18).
A existência das figuras cômicas é milenar. Sua presença vibra em rituais tribais e
celebrações antigas, festividades religiosas, feiras populares, picadeiros circenses,
palcos teatrais, principalmente os enraizados na vida popular. De origem controversa, as
palhaças e os palhaços possuem facetas misteriosas. Segundo o pesquisador John
Towsen:
Sem dúvida os clowns foram aparecendo e desaparecendo desde o
início dos tempos, e sua tradição foi tirada do “ói nós aqui outra vez!”
evoca a chegada de todo um universo de clowns. Este mundo é tão
diversificado quanto a própria vida, já que o herói de nossa história
pode ser encontrado em um número surpreendente de disfarces, das
aulas de clown aos bobos da corte; do encantador povoado indiano de
37
cheyenne “contrary”; no teatro, no rodeio e no circo. São todos
clowns, e, no entanto, as diferenças entre eles são tão completamente
fascinantes quanto suas similaridades (TOWSEN, 1976, p. 04 apud.
SACCHET, 2009).
Componentes do imaginário popular, essas figuras cômicas são calcadas na
humanidade, em suas fraquezas, quedas e erros, revelando-os através do filtro da
comicidade. Assim como salientou Towsen, o universo palhacesco é tão amplo como a
própria vida, e é impossível definir o surgimento das palhaças, palhaços e clowns. As
figuras cômicas certamente não são invenção ou descoberta de uma única pessoa, que
imortalizou sua forma, mas componentes de um conjunto social, pois na sociedade
sempre houve espaço para os fatores risíveis da existência. Essas figuras passaram e
passam por um perpétuo movimento de redescoberta, e, para Towsen, “[...] como bobo,
Jester ou Trickster – elas encontram razões suficientes nas necessidades humanas.”
(TOWSEN, 1976, p. 04 apud. SACCHET, 2009). Conservando traços recorrentes na
história da humanidade, palhaças e palhaços estabelecem-se nas sociedades gerando
risos coletivos e modificando, com elas, suas possibilidades de existência.
As figuras cômicas fazem parte de frondosa tradição, sendo que uma das suas
mais antigas manifestações no contexto ocidental pode estar situada na chamada farsa
atellana. Surgida na cidade de Atella, tal manifestação teatral é remetida ao século IV
a.C.. Nas farsas, histórias de fácil assimilação por parte do público que dialogavam com
sátiras sociais da atualidade, eram utilizadas máscaras que concerniam aos tipos físicos
nelas representados (DE FREITAS, 2008). Para a pesquisadora Nanci de Freitas, a farsa
atellana teria sido composta pelos seguintes tipos/personagens fixos:
Pappus, um velho libidinoso, bonachão e ridículo, constantemente
enamorado de mocinhas e vítima de pilhérias; Dossenus, um corcunda
astucioso, com pretensões de filósofo e linguajar empolado,
contrastando com a fala dos camponeses; Baccus e Maccus, uma
dupla de glutões, sendo Baccus um camponês grosseiro, idiota,
guloso, bêbado e infeliz nas aventuras amorosas, enquanto Maccus era
um tipo fanfarrão, esperto e avarento, sempre se vangloriando de suas
torpezas (DE FREITAS, 2008, p. 67).
O comediógrafo Plauto (255 a.C. – 185 a.C.), para a autora, “[...] tornou-se
célebre por conseguir dar forma literária a estas manifestações antigas do teatro popular,
dando-lhes feições de personagens.” (DE FREITAS, 2008, p. 67). Essas manifestações
teatrais populares apresentaram características que mais tarde foram reencontradas nos
38
personagens da commedia dell’arte, tais como a conotação popular das ações cênicas, a
representação teatral, a sátira social e a sátira humana.
Surgida por volta do século XVI na Itália, a commedia dell’arte, assim como a
farsa atellana, utilizava-se de máscaras e tipos fixos em sua construção cênica.
Originalmente, a commedia dell’arte não se utilizava de textos dramáticos, mas sim de
roteiros de intrigas que serviam como suporte para as improvisações denominados
canovacchios ou sogettos (BERTHOLD, 2014). Ao longo de repetidas representações,
as atrizes e os atores dell’arte acumulavam um repertório pessoal de situações, recursos
cômicos e técnicas corporais, tornando-se mestres de seu ofício, como explica o
pesquisador Dário Fo:
Os cômicos possuíam uma bagagem incalculável de situações,
diálogos, gags, lengalengas, ladainhas, todas arquivadas na memória,
as quais utilizavam no momento certo, com grande sentido de timing,
dando a impressão de estar improvisando a cada instante. Era uma
bagagem construída e assimilada com a prática de infinitas réplicas,
de diferentes espetáculos, situações acontecidas também no contato
direto com o público, mas a grande maioria era, certamente, fruto de
exercício e estudo (FO, 1999, p. 17).
Esses cômicos, muitas vezes, desempenhavam ao longo de décadas o mesmo
papel nas representações, desenvolvendo profunda conexão com o personagem
interpretado. Podemos pensar a organização dos personagens ou tipos fixos da
commedia dell’arte hierarquicamente, e, ainda, dividi-los em três grupos centrais: os
servos, os nobres e os enamorados. No primeiro grupo encontram-se Arlecchino,
Briguella, Colombina, Punchinello, Zanni, entre vasta gama de personagens populares
de gênero feminino ou masculino, representantes das classes baixas da população. No
segundo, encontram-se Pantalone, Dottore e Capittano, representantes dos (pretensos)
ricos, letrados, cultos. Estes, normalmente vinculados ao “mundo das aparências”, são
constantemente ridicularizados em razão de seus defeitos, tais como a avareza, a gula, a
fome sexual, a covardia. No último grupo estão os enamorados, que figuram como
jovens pueris, movidos pela inocência e pelo intento de permanecer ao lado de sua
amada ou seu amado. Normalmente são filhas e filhos dos nobres Dottore e/ou
Pantalone e possuem índole bondosa, posta muitas vezes em oposição à índole dos
nobres e dos servos.
39
A exacerbação dos defeitos e a busca pela comicidade sempre foram motrizes da
commedia dell’arte, fatores que “transpiram nos poros” de seus personagens tipificados.
Ridicularizando a própria estrutura social em que foram estigmatizados, repetem de
forma única os acontecimentos da vida humana, exagerando-os com o objetivo de trazê-
los para o presente. Os vícios, os defeitos, as escatologias, as quedas, os tropeços, e
também as virtudes, os malabarismos, as acrobacias, eram representados em praça
pública por meio de figuras cômicas fortemente atreladas à vida popular.
Esse gênero de teatro, que se difundiu pela Europa entre os séculos XVI e XVIII,
influenciou e ainda influencia diversas criações teatrais. O dramaturgo, comediógrafo,
ator e encenador francês Molière (1622 – 1673) foi fortemente influenciado por esse
movimento teatral, tendo sido reconhecido mundialmente por transpor a dramaturgia do
improviso popular para o gênero literário. Aprofundando a composição dos personagens
por meio de seus diálogos, assim como o fez Plauto a partir das farsas atellanas,
Molière retomou elementos recorrentes na história da comicidade.
O pesquisador José Fernando Marques de Freitas Filho afirma a existência de
traços cômicos recorrentes ao analisar as peças “A comédia da marmita”, do
comediógrafo romano Plauto, “O avaro”, do dramaturgo e ator cômico Molière, e “O
santo e a porca”, do escritor nordestino Ariano Suassuna (1927-2014). Esses textos,
segundo Freitas, demonstram a recorrência de recursos cômicos e o “[...] poder crítico
do gênero, que exagera e deforma o real com vistas a melhor representá-lo.” (FREITAS,
2012, p. 1).
Através dessa relação, traçada antes por Sábato Magaldi (1997), Freitas afirma
que “[...] denunciando os defeitos humanos, o gênero cômico mantém viva, atual, uma
tradição longa e coerente.” (FREITAS, 2012, p. 1). Essa tradição é revivida nas obras
dos três autores através da conexão com um defeito humano: a avareza; vivificada pelos
protagonistas Euclião (de Plauto), Harpagão (de Molière) e Eurico (de Suassuna). A
pioneira peça, de Plauto, que declaradamente inspirou os outros dois autores, teve
alguns de seus princípios mantidos e atualizados em criações cômicas posteriores, como
no mencionado caso de Molière e de Suassuna. Mas apesar das semelhanças, são
significativas também as diferenças entre as obras, que, por movimento de aderência, se
abrem aos novos tempos (FREITAS, 2012).
A partir da análise traçada por Magaldi e desenvolvida por Freitas, é possível
pensar na transformação e na conservação dos traços cômicos que acompanham as
40
modificações ocorridas na sociedade. A análise de Freitas coaduna com a concepção de
historiadores que remetem a gênese e o desenvolvimento dessas figuras à comédia
greco-romana, à tradição da commedia dell’arte e ao vínculo com a cultura popular.
Essas três obras carregam sequências cômicas que parecem encontrar no curso da
História seus aspectos de mutação e de conservação.
Ainda sob o invólucro das influências atellana e posteriormente dell’arte,
encontramos a figura do ator popular londrino Joseph Grimaldi (1778-1837). Grimaldi
era filho do ator de commedia dell’arte italiano Giuseppe Grimaldi, filho do também
ator Giovanni Battista Nicolini Grimaldi, conhecido arlecchino do século XVIII.
Descendente dessa linhagem, Joseph Grimaldi é considerado o criador do clown
moderno (BOLOGNESI, 2006).
Alice Viveiros de Castro, acerca da atuação de Joseph Grimaldi, diz:
[...] suas graças, truques, apetrechos e maquiagem marcaram de tal
forma a arte da palhaçada que, por quase um século, sua imagem
passou a ser a imagem clássica do palhaço. O rosto pintado de branco,
grandes manchas vermelhas marcando as bochechas, a boca vermelha
dando a sensação de um sorriso rasgado à força e uma inusitada
peruca com os cabelos espetados produziam uma figura estranha,
estapafúrdia, com um toque de crueldade (VIVEIROS DE CASTRO,
2005, p.62-63).
A autora afirma que Joseph Grimaldi foi o maior responsável pela ascensão do
clown no contexto da pantomima inglesa. A partir de seu trabalho, foi capaz de galgar o
protagonismo para uma figura antes secundarizada, suplantando o Arlequim nas
representações cômicas denominadas Arlequinadas (VIVEIROS DE CASTRO, 2005).
Ganhando maior destaque, e de certo modo delineando-se esteticamente, o
palhaço, a partir de Grimaldi, nasceu de uma espécie de fusão entre o tipo cômico do
clown inglês e os personagens da commedia dell’arte. O resultado dessa conjunção foi o
maior potencial atrativo para o público, bem como a prolongamento da permanência do
palhaço nas cenas dos espetáculos (REIS, 2013).
41
Figura 5 - Joseph Grimaldi
Fonte: <en.wikipedia.org>. Acesso em 26/07/2016
No ano de 1768, o sargento inglês Philip Astley construiu um anfiteatro a céu
aberto, destinado tanto ao ensino de equitação quanto à apresentação de espetáculos
equestres. Nesse mesmo período, em Londres, coexistiam também outras companhias
equestres, tais como as de Hayam, de Jacob Bates e de Price (VIVEIROS DE CASTRO,
2005).
Ao sargento Astley, porém, ocorreu mesclar em um picadeiro de 13 metros de
diâmetro, conforme Viveiros de Castro, “[...] exercícios equestres com as proezas dos
artistas de feira.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2005, p. 53). Tal inovação ocasionou um
espetáculo, segundo a autora, “[...] baseado na disciplina militar e na valorização da
destreza e do perigo deixava a plateia muito tensa; era preciso criar um momento de
relaxamento, provocar a quebra da tensão, deixando o espectador aliviado, preparando-o
para as próximas emoções.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2005, p. 53). É nesse contexto
que, para Viveiros de Castro, surge o palhaço de circo.
42
A autora explica ainda que “Os primeiros espetáculos de circo eram uma mescla
de teatro e picadeiro de equitação, apresentando pantomimas, melodramas, burletas, que
aconteciam num palco montado ao fundo, e números circenses que se passavam no
picadeiro [...]” (VIVEIROS DE CASTRO, 2005, p. 55). A comicidade nos primeiros
espetáculos do circo moderno, para a autora, estava dividida entre duas figuras com
funções distintas: o palhaço a cavalo e o palhaço da cena.
Segundo Bolognesi, assim como “[...] o próprio circo, a arte clownesca deve sua
expansão às iniciativas britânicas e francesas do século XVIII e XIX.” (BOLOGNESI,
2006, p. 61). Essas sementes geraram frutíferos bosques, onde artistas múltiplos
floresceram, inserindo em seus jogos habilidades de alta perícia física, e expondo, ao
mesmo tempo, as vulnerabilidades humanas, ao realizarem de maneira torpe as façanhas
circenses. Diversas outras foram as possibilidades calcadas pela formulação do
espetáculo circense no universo de atuação das figuras cômicas, historicamente
presentes na humanidade.
O palco circense recebeu ainda os ditos palhaços brancos e augustos: um
representante do opressor, o outro do oprimido – grosso modo. Ambos compõem uma
dupla que perdura até os dias de hoje nos picadeiros circenses ou nos palcos teatrais. O
historiador francês Tristan Rémy, pesquisador da arte clownesca, usa o termo “clown”
para denominar a figura autoritária, e “augusto” para denominar a figura torpe,
subordinada. Ao referir-se, no plural, a “clowns”, o autor dirige-se à dupla de cômicos,
o branco e o augusto (RÉMY, 1945).
Em seu livro Les Clowns, Rémy aparta a origem e o desenvolvimento do clown
das figuras cômicas da commedia dell’arte. Tampouco relaciona o percurso do clown
às figuras dos bufões medievais ou dos mimos greco-romanos. Para ele, os registros
históricos carecem de comprovações e evidências que permitam qualquer afirmação
nesse sentido. O autor afirma que “[...] o clown de tradições recentes teve sua
constituição em poucas gerações.” (RÉMY, 1945, p. 14).
Para o historiador, há uma diferenciação dos clowns em relação às figuras
cômicas que perpassam a história da humanidade. Essas figuras ou tipos cômicos, para
o autor, “[...] nasceram todos da necessidade inerente dos seres humanos de rir e de
tornar ridículos alguns de seus semelhantes, esta é a única continuidade e a única razão
do aparecimento e do desaparecimento dos tipos cômicos através das eras.” (RÉMY,
1945, p. 14). O autor afirma ainda que a História, com suas especificidades, apenas nos
43
permite cogitar sobre possíveis influências deixadas pelos cômicos populares na
composição do trabalho clownesco.
Embora, como sublinhou Rémy, os indícios históricos careçam de comprovações
suficientes para relacionar as figuras palhacescas como as concebemos hoje,
considerando a multiplicidade de vertentes que atualmente estão em processo de
floração, é inegável a recorrência de recursos relacionados com figuras cômicas de
tempos remotos. O próprio autor, apesar da ressalva, dedica um dos capítulos de seu
livro para analisar essas semelhanças e influências recorrentes.
De acordo com Viveiros de Castro,
Acreditar que a figura do palhaço é exclusiva do circo é negar uma
história de milênios em troca de uns meros cento e poucos anos de
circo clássico. O palhaço tem seu lugar de maior destaque no circo,
mas o próprio circo – a casa de espetáculos – é uma relativa novidade
(genial novidade!) que não detém a exclusividade como espaço de
apresentação das artes circenses (VIVEIROS DE CASTRO, 2005, p.
32).
As artes circenses, antes mesmo de serem configuradas no espaço do picadeiro
circular coberto, estão presentes na história das sociedades. A autora ensina que nos
primórdios das artes circenses encontram-se manifestações ligadas com a caça aos
touros, hipótese levantada após a descoberta de objetos arqueológicos de uma antiga
cidade turca datada de 8.000 anos atrás. Esses vestígios revelam a presença da arte de
realizar acrobacias e saltos sobre os touros. Viveiros de Castro explica ainda que, na
China, foram descobertas pinturas que retratam a existência de acrobatas,
contorcionistas e equilibristas com quase 5.000 anos de criação, e que há
aproximadamente 3.000 anos as pirâmides do Egito eram pintadas com imagens de
malabaristas, equilibristas e contorcionistas (VIVEIROS DE CASTRO, 2005). As
técnicas circenses são encontradas ainda nos espetáculos populares greco-romanos, bem
como nos exercícios atléticos da Grécia.
O circo tal como o conhecemos hoje foi formalizado por iniciativa do inglês
Astley, porém é inegável, ao longo da história das sociedades, a recorrência de alguns
elementos circenses. Assim, as palhaças, os palhaços e os clowns, talvez encontrando na
figura criada por Joseph Grimaldi uma possibilidade de existir, reinventam-se
perpetuamente com base em um passado milenar.
44
No contexto do Brasil, o cavalo não teve a mesma importância do que na Europa,
onde foi considerado símbolo da consolidação do espaço circense. Segundo Bolognesi,
isso se deve ao fato de que o “[...] circo brasileiro não se instalou em uma sociedade
com valores aristocráticos consolidados.” (BOLOGNESI, 2006, p. 49). O autor afirma
que, nesse sentido, no nosso país “[...] prevaleceu a pluralidade artística dos
saltimbancos.” (BOLOGNESI, 2006, p. 49).
Essa pluralidade certamente advém do próprio contexto do país, inicialmente
habitado por indígenas e posteriormente colonizado por povos advindos da Europa, e,
sobretudo, da África. A mescla de culturas sempre foi uma das características do povo
brasileiro, contexto em que se mesclaram também os elementos cômicos ancestrais de
diversas nações.
Para Viveiros de Castro, “[...] pouco a pouco foi se formando um jeito brasileiro
de ser palhaço. A mistura de culturas que caracteriza o Brasil – somada a uma imensa
capacidade de rir de si mesmo e à bagunça institucionalizada – são a base do nosso
humor.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2005, p. 103). A tradição do humor brasileiro,
como afirma a autora, teve seu fundamento nas festas e celebrações populares,
[...] seguindo a longa linhagem que atravessa os tempos e se espalha
por todos os povos e regiões desse planeta. Os palhaços dos folguedos
- Mateus, Bastiões, Biricos, Velhos, entre outros – cantam e falam
besteiras e safadezas o tempo todo. A habilidade para o improviso foi
sendo desenvolvida no Brasil ao longo dos séculos e em todas as
regiões do país temos uma riquíssima poesia regional, seja nas toadas
dos galpões do sul ou nos cordéis e desafios do nordeste (VIVEIROS
DE CASTRO, 2005, p. 103).
As palhaças e os palhaços brasileiros, assim como os cômicos greco-romanos,
saltimbancos, atores dell’arte, clowns, palhaços circenses, entre outras figuras cujo
objetivo é trabalhar com os aspectos risíveis da existência, conservam profunda ligação
com a vida popular. Dessa forma, a atuação palhacesca, portadora de uma tradição
milenar, renova-se e conserva-se também no Brasil.
No contexto brasileiro, percebemos inegavelmente a influência do clown advinda
da pedagogia europeia de Lecoq, ou seja, voltada para a descoberta do ridículo de cada
ator, de suas vulnerabilidades e particularidades (LECOQ, 1997). Como já apontado,
muito dessa difusão pelo Brasil deu-se através do trabalho desenvolvido a partir da
pesquisa de Luís Otávio Burnier no grupo Lume de teatro.
45
Por outro lado, percebemos um constante movimento de intersecção entre as
formas de trabalho popular e aquela voltada para as particularidades do indivíduo.
Como exemplo desse fato, menciono o trabalho do brasileiro Ésio Magalhães: o palhaço
Zabobrim, do Barracão Teatro, de Campinas (SP). O artista utiliza-se de elementos
circenses, tais como equilibrismo, acrobacia, malabarismo, ilusionismo, reprises, entre
outras, mas, ao mesmo tempo, compõe uma figura extremamente particular, valorizando
sua singularidade em contato com os espectadores.
É possível notar, na atuação de Ésio, de um lado o cômico popular e seus recursos
visuais, e de outro o clown sutil e a exposição das fraquezas do indivíduo.
Recentemente, no ano de 2015, com a direção de Tiche Viana, também do Teatro
Barracão, Ésio atuou no espetáculo “Zabobrim, o rei vagabundo”. Nele, havia palhaços
e personagens da commedia dell’arte, como podemos observar abaixo:
Figura 6 - Espetáculo Zabobrim, o rei palhaço, do Barracão Teatro.
Fonte: <http://cartaodevisita.r7.com/conteudo/11091/sesc-santana-realiza-projeto-470-anos-
de-commedia-dell-arte>. Acesso em 05/08/2016.
A fusão entre palhaços e personagens da commedia dell’arte em um mesmo
palco, acima retratada, alude a uma história centenária. Nessa ocasião, as figuras
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cômicas dividiram o mesmo espaço remontando elementos ancestrais de sua
permanência no mundo enquanto revelavam extrema singularidade na feitura das ações,
feitas em consonância com o tempo e o espaço em que decorriam.
Não é possível, dadas as pluralidades de manifestações criadas a partir das
peculiaridades de cada atuador, encerrar em estreitas definições o percurso que integra o
surgimento e o desenvolvimento das figuras cômicas na história da humanidade. Uma
boa opção para “solucionar” o problema é, assim como o fez Alice Viveiros de Castro,
imaginar o surgimento dessas figuras cômicas a partir de uma ideia de comunicação
transgressiva com o mundo:
Imagino que o primeiro palhaço surgiu numa noite qualquer em uma
indefinida caverna enquanto nossos antepassados terminavam um
lauto banquete junto ao fogo. Em volta da fogueira, numa roda de
companheiros, jogavam conversa fora. Comentavam a caçada que
agora era jantar e falavam das artimanhas usadas, dos truques e da
valentia de cada um. É quando um deles começa a imitar os amigos e
exagera na atitude do valentão que se faz grande, temerário e risível
na sua ânsia de sobrepujar a todos. E logo passa a representar as
momices do covarde, seus cuidados para se esquivar do combate,
sempre exagerando os gestos, abusando das caretas, apontando tão
absurdamente as intenções por trás de cada ação e o ridículo delas que
o riso se instala naquela assembleia de trogloditas. E todos descobrem
o prazer de rir entre companheiros, de rir de si mesmo ao rir dos
outros... (VIVEIROS DE CASTRO, 2005, p.16).
A necessidade do riso atravessa a natureza humana e é inerente ao
desenvolvimento cognitivo e emocional dos indivíduos, sendo impossível precisar o
surgimento do riso. Sabe-se, entretanto, que através da ação das figuras palhacescas o
riso se manifesta coletivamente, pelo compartilhamento de vivências e pelas inter-
relações entre os seres humanos.
O clown russo Oleg Popov defende a necessidade de aproximação das figuras
palhacescas com os espectadores, alertando que “[...] o espectador é um amigo, mas
amigos precisam ser conquistados.” (POPOV, 1968, p. 26). Essa conquista ocorre de
maneira gradual, atrelada ao momento de encontro com os espectadores e também ao
passado de experiências vividas no âmbito humano e profissional de cada artista.
Segundo a proposição de Kásper, “[...] podemos pensar o palhaço/clown como
certa política de relação com a alteridade, presentificada performaticamente. O palhaço
só existe em sua relação com o outro – este é um de seus traços distintivos.” (KÁSPER,
2004, p. 18). Essas figuras, assim, dependem de abertura para deixar-se afetar pelos
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outros.
A troca de pensamentos e ações entre indivíduos ocasiona a criação de zonas de
convergência entre o universo das Artes Cênicas e aquele que se dá no cotidiano da
vida, como por exemplo, durante a atuação de palhaças e palhaças no contexto hospital.
Kásper corrobora esse ponto de vista, afirmando que “[...] o palhaço opera com a
abertura de mundos possíveis.” (KÁSPER, 2015, p.18). Para a autora, as palhaças e
palhaços atuam promovendo a criação de “[...] outras lógicas, outras possibilidades de
vida, modos de agir, pensar, sentir. O clown opera com a produção de tais modos. Um
dos campos explorados pelo clown é este: a produção de lógicas próprias.” (KÁSPER,
2004, p. 64). A vivificação dessas lógicas e possibilidades na ação palhacesca, dessa
forma, necessariamente inclui o outro, pois dele partem diversas proposições cênicas.
Isso implica uma atitude de abertura, de escuta, que demanda um treinamento
específico. Para a autora, um dos grandes desafios do palhaço, é “[...] Ao mesmo tempo,
abrir-se ao imprevisto, arriscar-se, mas tendo recursos para lidar com o que virá, com o
que acontecerá nesta abertura criada, sem se perder, sem se dissolver [...].” (KÁSPER,
2004, p. 70).As figuras palhacescas, ao trabalharem com as vulnerabilidades humanas,
suas fragilidades, seus momentos de fracasso, segundo Kásper, “[...] tem o privilégio de
reviver os erros, as loucuras, a estupidez.” (KÁSPER, 2004, p. 79). Em sua lógica, esses
aspectos da vida, ao contrário do que costuma ocorrer no cotidiano, não são evitados,
mas servem como “gatilho” para as ações, uma vez que as palhaças e os palhaços
valorizam tudo aquilo que se faz no momento presente, inclusive o erro, a loucura e a
estupidez. Tal compreensão ecoa com o pensamento de Miller, segundo o qual as
figuras palhacescas lidam com:
[...] todos os mal entendidos que são as chagas da raça humana. Ser a
própria inépcia, isto era algo que mesmo o rei dos imbecis podia
entender. Nada compreender, quando tudo é claro como o dia; não
pegar o truque, mesmo se lhe for mostrado cem vezes; tatear como um
cego, quando tudo lhe grita a boa direção: teimar e querer abrir a porta
errada, apesar do letreiro PERIGO; bater a cabeça no espelho, ao
invés de dar a volta; olhar pelo lado errado de um fuzil... de um fuzil
carregado! – Nunca o bom povo cansa desses absurdos, porque há
milênios os seres humanos erram o caminho, milênios que todas suas
buscas, suas interrogações levam-lhe ao mesmo beco sem saída
(MILLER, 1953, p.83 apud KÁSPER, 2004, p. 79).
Guiados pela composição de uma lógica diferenciada de ação, palhaças e palhaços
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são capazes de desestruturar o cotidiano, imprimindo nele aquilo que é torpe, avesso ao
esperado. Ao colocar em cena a falha, eles propõem uma nova ótica para uma questão
tão presente no cotidiano: o erro. Recordam que a vida não é, necessariamente, feita
apenas de acertos. Agindo dessa maneira, as figuras palhacescas ensinam-nos a rir de
nós mesmos, a conviver com os nossos erros (MILLER, 1953). Incorporando o erro em
momentos de atuação, esses seres conectam-se de maneira intensa com o momento
presente, seja ele feito de ações acertadas, seja o contrário disso. Miller, no sentido de
afirmar as ligações entre o clown e o fluxo da vida, coloca que:
A alegria é como um rio: seu fluxo é incessante. Acho que essa é a
mensagem que o clown tenta nos transmitir - a que devemos participar
através de um movimento e um fluxo contínuo, de que não
deveríamos parar para refletir, comparar, analisar, possuir, porém
prosseguir adiante, infinitamente, como a música (MILLER, 1953, p.
127 apud KÁSPER, 2004, p. 69).
Para o autor, a atuação palhacesca demanda uma capacidade de entrega, realizada
simbolicamente pelos clowns, que vivem para o momento presente. Isso não significa,
entretanto, que não haja preparação anterior, mas que as capacidades artísticas e
palhacescas, pesquisadas por atuadoras e atuadores, estão abertas para a intersecção
com a natureza da vida (MILLER, 1953).
É necessário coragem para despir-se das amarras cotidianas, lançar mão de
fortalezas e desnudar-se perante outros seres humanos. Se, por exemplo, uma palhaça
tropeça e cai, intencionalmente, sua relação com a queda será cômica, e uma fragilidade
será revisitada por quem a observa no momento do riso: cair também poderia ser
trágico, doloroso, até mesmo embaraçoso. No corpo treinado da palhaça, esse ato pode
tornar-se cômico, divertido e de uma intensidade leve: ela logo pode se levantar, pronta
para uma nova trapalhada.
As fragilidades e a busca por sua superação, atreladas intrinsecamente ao fluxo da
vida, são redimensionadas pelo filtro da comicidade. Os acontecimentos se dão através
de um jogo que é dimensionado pela ação cênica de palhaças e palhaços, em um
momento de encontro com o público. Trabalhando com sutilezas e elaborações
artísticas, essas figuras abarcam, por estarem atreladas ao fluxo incessante da vida, as
energias que nelas forem manifestas no momento de seu acontecimento. Isso implica
em um desafio para seus atuadores, que se colocam à disposição do tempo presente.
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Para Angela de Castro, palhaça brasileira radicada em Londres, “Clowning é uma
arte de coragem e disciplina. Temos que ser corajosos para expor nossa própria
vulnerabilidade.” (CASTRO, 2011, p.10). Colocar-se em situação de disponibilidade
para o desconhecido é um desafio para as artistas e para os artistas, na medida em que
não lhes é permitido ensaiar. Aprende-se a valorizar as pequenas coisas e os detalhes da
vida, que podem estar impregnados de sutilezas cênicas surgidas em encontros
cotidianos. Angela afirma ainda que a simplicidade é um dos principais recursos do
clown, e que algumas de suas melhores ideias sempre vêm daí (CASTRO, 1997).
Tal apontamento é também compartilhado pelo clown suíço Dimitri, para quem a
simplicidade é um dos principais recursos dos clowns, assemelhando o trabalho dessas
figuras ao do artesão. O artista afirma que, como clown, “[...] eu não represento um
papel: estou nu; o clown é o mais nu de todos os artistas porque ele coloca a si mesmo
em situação de jogo, sem poder trapacear.” (DIMITRI, 1982, apud FABRI; SALLÉE,
1982, p. 37).
O ato de entrega necessário ao clown requer uma intensa disponibilidade para a
abertura com o outro. Grotowski, sobre o teatro, explica:
A essência do teatro é o encontro. O homem que faz um ato de
autorrevelação é, digamos assim, aquele que estabelece contato com
ele mesmo. Isto é, uma confrontação extrema, sincera, disciplinada,
exata e total – não simplesmente uma confrontação com seus
pensamentos, mas a que envolve todo o seu ser, desde seus instintos e
seu inconsciente até seu estado mais lúcido (GROTOWSKI, 2011,
p.44).
Em busca de romper seus próprios bloqueios, bem como de alcançar
amadurecimento pessoal, o artista, no sistema do pesquisador polonês, se expressa “[...]
através de uma tensão elevada ao extremo, de um completo denudar-se, da exposição da
própria intimidade – e tudo isso sem nenhum traço de egoísmo ou deslumbramento”
(GROTOWSKI, 2011, p.13).
Desnudar-se, doar-se para a relação consigo, com o outro, com o espaço, exige
uma “[...] mobilização de todas as forças físicas e espirituais do ator, que deve estar em
um estado de prontidão total e disponibilidade passiva que permita uma partitura de
atuação ativa.” (GROTOWSKI, 2011, p.13). Essa atitude figura como um mergulho do
artista em si, em seus recursos pessoais e na constante busca por sua expansão, na busca
pelo rompimento das fronteiras entre a arte e a natureza da vida. Grotowski afirma ainda
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que o ator:
Não deve representar para a plateia, e sim se confrontar com ela, em
sua presença. Deve cumprir um ato autêntico, tomando o lugar dos
espectadores, experimentando participar de um ato de extrema
sinceridade e autenticidade, ainda que disciplinado. Ele deve doar-se,
e não controlar-se; abrir-se, e não se fechar [...] (GROTOWSKI, 1971,
p. 169).
O ato de entrega, para o autor, trata-se de um ato total, definido como “[...] o ato
de desnudar-se, de rasgar a máscara diária, da exteriorização do eu. É um ato de
revelação, sério e solene. O ator deve estar preparado para ser absolutamente sincero.”
(GROTOWSKI, 1971, p. 165). Para o encenador, através da arte, o ser humano pode
ultrapassar seus limites, promovendo o autossacrifício e o desnudamento de si.
Esse pensamento aproxima-se do universo palhacesco, uma vez que as palhaças e
os palhaços têm por característica a exposição de seu ser. Para Burnier, vale lembrar, a
máscara clownesca é aquela que “[...] que menos esconde e mais revela” (BURNIER,
2001, p.218).
Evidenciando defeitos e torpezas humanas, essa máscara carrega, através de
ampla gama de figuras cômicas, traços historicamente conservados e revisitados, que
perpassam pelos milênios, ressurgindo em novas vestes ao longo dos tempos.
Enraizados na sociedade em que vivem, palhaças e palhaços buscam constantemente
novas razões para existir, novos espaços para preencher e novos costumes para
transgredir a partir de seu olhar multifacetado pelo encontro. Contornados pelo espectro
do passado, carregam elementos genealógicos que são capazes de emergir
reconfigurados, gerando eternamente risos coletivos. Nesse eterno movimento de
reinvenção, e em completo contato com o seu tempo e espaço, as figuram palhacescas
rumaram ao longo de milênios até chegarem aos palcos hospitalares.
A seguir, apresento uma contextualização sobre o fenômeno da atuação de
palhaças e palhaços nos palcos hospitalares, dando ênfase ao contexto brasileiro. Nesse
âmbito, destaca-se mundialmente a atuação da ONG Doutores da Alegria, que conta
com vinte e cinco anos de existência e atualmente é tida como referência no que tange
ao trabalho de palhaças e palhaços em ambientes hospitalares. Abordo, dessa forma, os
aspectos artísticos, formativos e de pesquisa promovidos pela ONG no campo das Artes
Cênicas. Adiante, portanto, os palcos hospitalares.
51
3 PALCOS HOSPITALARES
A gente sempre passa na ilha enfermagem e pergunta quantas
crianças têm e depois prestamos um relatório, e também para saber
se tem alguém em isolamento, se alguém não pode rir porque fez uma
cirurgia... E aí me informaram que a gente não podia entrar no
quarto 302 porque o H. estava falecendo, e a gente fez um cortejo no
corredor, tocando uma música e, justamente na porta do (quarto)
302, eu vi uma maçaneta mexendo e saiu o pai do H. chorando, bem
emocionado e falou:
-Doutores, eu gostaria que vocês entrassem no quarto para se
despedir do H. porque ele está indo embora e eu queria que vocês
tocassem uma música que ele gostava muito.
Nós entramos no quarto e começamos a tocar para ele. Quando
terminamos de tocar, ele foi embora, e o pai, muito comovido com a
situação, falou que ele não tinha melhor maneira para ir embora. E
ali foi muito forte para mim. Nós abraçamos o pai e a gente sabia que
qualquer intenção de falar ou consolar não teria nenhum efeito e a
gente foi embora. [...] É uma coisa que eu não sei como descrever.
Aquilo me marcou muito (Marcelo Marcon).
Nas tênues fronteiras entre a realidade e a fantasia, a urgência e a tranquilidade de
cada momento, a vida e a morte, constituem-se as experiências de atuação palhacesca
hospitalar. Como podemos constatar na descrição acima, em momento de total entrega
para o presente, Marcelo Marcon somou-se ao corpo do hospital e, aderindo ao
chamado do pai da criança hospitalizada, produziu um novo olhar sobre aquele
momento.
Os palcos hospitalares abarcam a coletividade dos risos palhacescos, porém
também revelam, como demonstra o relato de Marcelo Marcon, que o riso muitas vezes
não está presente nas relações que se dão entre palhaças, palhaços e espectadores, mas
sempre permanece o encontro entre seres humanos que vivenciam situações reais.
Buscando contextualizar essa prática contemporânea no campo das Artes Cênicas,
trago aqui colocações que integram o universo palhacesco nos palcos hospitalares, onde
é notável a presença da ONG Doutores da Alegria. Aqui constam também informações
embasadas nas entrevistas que foram cedidas para esta pesquisa, obtidas através de
vivências pessoais e de uma pesquisa bibliográfica sobre o tema da atuação palhacesca
nos palcos hospitalares.
Ao iniciar essa contextualização, vale a leitura da reflexão da pesquisadora Denise
de Sant’Anna sobre o universo do hospital:
O hospital é certamente um lugar de extremos, mas, dentro dele, há
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uma busca constante da “boa dose”, do comedimento entre medidas
radicais, entre os limites da vida e da morte. Trata-se, em suma, de um
lugar repleto de experiências difíceis de filmar ou representar, pois
elas emergem entre a ficção e a realidade, entre a guerra e a paz, entre
a audácia e o medo de errar. Afinal, é entre os extremos, e não apenas
diante de suas pontas vertiginosas, que se joga boa parte do destino
humano (SANT’ANNA, 2011, p. 20).
No espaço hospitalar, como vimos, propício aos extremos, palhaças e palhaços
podem criar uma ponte entre a fragilidade e o riso, compondo através da escuta do
espaço uma convivência cênica capaz de ocorrer entre os extremos. Com o ambiente
hospitalar, a existência palhacesca se entrelaça e se identifica, visto que ela também se
expressa em confronto e em contato com limites. Vivendo situações extremas, os seres
palhacescos atuam sempre em busca da “boa dose” nos momentos de atuação,
mesclando em seu jogo debilidades e fortalezas na busca por uma relação
transformadora, que se dê por meio encontro.
Tecendo uma conexão entre a ficção e a realidade, palhaças e palhaços inserem-se
em um lugar repleto de experiências, onde se destaca, em relação aos outros tempos e
espaços de atuação cênica, impreterivelmente, uma atitude extrema de abertura para o
outro. Segundo a pesquisadora Ana Achcar,
A instituição hospitalar desperta a força de provocação do palhaço
devolvendo-lhe o papel de verdadeira encarnação do festivo, que nos
possibilita, a todos, inclusive a ele, o exercício de existência
libertadora, que tanto nos falta na vida cotidiana. O palhaço de
hospital foge à empregabilidade superficial e desenfreada da
comicidade publicitária, e é aproveitado na promoção de uma idéia de
saúde e de bem estar geral, que está relacionada com a valorização da
humanidade nos indivíduos (ACHCAR, 2007, p.206).
A partir da valorização do tempo e do espaço das ações, as figuras palhacescas
estimulam a participação dos indivíduos que integram esses espaços, reconhecendo suas
experiências, disposições, proposições e reações, tendo como pressuposto a liberdade do
compromisso com o real. Corrobora essa ideia Morgana Masetti, segundo a qual a
atuação palhacesca se refere a uma “[...] proposta artística do teatro um passo além. Em
lugar da experiência estética contemplativa de uma plateia sentada na cadeira, propõe a
interação direta e individual em um contexto de crise.” (MASETTI, 2003, p.25).
Palhaças e palhaços contextualizados no hospital propõem, por meio de sua
ousada lógica de existência, encontros fundados na liberdade de expressão e na
53
transformação da realidade. Em um âmbito que, de cotidiano, torna-se também artístico
e cênico, essas figuras visam construir maneiras harmônicas de intersecção entre a arte e
a natureza.
Nesse rompimento de fronteiras, as palhaças e os palhaços atuam, segundo a
pesquisadora brasileira Ana Wuo, “[...] subvertendo e burlando a ordem das coisas para
que a criança hospitalizada se adorne com a arte de rir da sua própria dor.” (WUO,
1999, p. 45). Essa subversão é espacial, física e sensível, pois as palhaças e os palhaços
colocam-se no espaço hospitalar como seres humanos imbuídos de ferramentas
artísticas que se deixam permear pelo fluxo circunstancial da vida.
A presença dessas existências palhacescas nos leitos, corredores e enfermarias
hospitalares propõem uma nova lógica tanto no âmbito das Artes Cênicas quanto no da
Saúde. Permeadas uma pela outra, essas áreas somam-se ainda com outras, tais como
Educação, Ciências Sociais, Filosofia, História, Artes Visuais, Música, todas atualmente
presentes nos contextos hospitalares. Para Ana Wuo, esse é um sinal de que as figuras
palhacescas abarcam as transformações da sociedade e com elas dialogam:
Os tipos cômicos e sua genealogia vêm sendo historicamente
transformados pelo tempo e pelas necessidades sociais de cada época.
Em consequência disso, o clown começa a abranger a sua área de
atuação, chegando à instituição de saúde (WUO, 1999, p. 16).
Pesquisando a inserção dos seres palhacescos nos palcos hospitalares, percebem-
se traços genealógicos que os vinculam ao espaço da cura. Por volta de 4.500 a.C., por
exemplo, na civilização egípcia, a figura de um cômico, Bess, o deus da alegria,
vivificava a busca pelo equilíbrio:
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Figura 7 - Bess, o deus da alegria.
Fonte: <http://egiptologia.com/consideraciones-acerca-de-la-
evolucion-iconografica-del-dios-bes/>. Acesso em
30/09/2016.
Já na cultura greco-romana, em 400 a.C., os atenienses buscavam a cura do corpo
e da mente no santuário de Asclépio, deus da medicina e da cura. Nesse espaço, os
pacientes recebiam através do humor os benefícios da cura (MASETTI, 2001).
Para o Doutor Peter Spitzer, palhaças e palhaços atuam em espaços hospitalares
desde o período em que viveu Hipócrates, porém, apenas em 1908 encontra-se registro
dessa forma de atuação teatral, em uma das edições do Le Petit Journal (SPITZER,
2002). Destaca-se também, neste contexto, a iniciativa do Doutor Patch Adams,
considerado por Spitzer como o pai da palhaçaria hospitalar (SPITZER, 2002). Há mais
de três décadas Patch Adams trabalha com a arte palhacesca no cuidado com seus
pacientes, história que está registrada no filme estadunidense Patch Adams, dirigido por
Tom Shadyac e estrelado pelo ator Robin Williams.
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Recentemente inseridas no espaço hospitalar, as figuras palhacescas despertaram
para uma nova fase em sua história. Essa etapa contemporânea diz respeito à
investigação da atuação palhacesca hospitalar por meio da paródia do médico, com a
criação do personagem do Doutor Palhaço, proposta pelo programa Clown Care a partir
de 1986.
O Clown Care é um programa comunitário da organização circense
norteamericana Big Apple Circus, que tem por objetivo levar a alegria do circo
tradicional às crianças internadas em centros pediátricos nos Estados Unidos. Um dos
fundadores do Big Apple Circus, Michael Christensen, criou o programa em 1986,
devido ao seu desejo de oferecer um serviço exclusivo para jovens em tratamento nas
instalações pediátricas (BIG APLLE CIRCUS, 2015). Ao Brasil, essa proposta foi
trazida por Wellington Nogueira, no ano de 1991, com a fundação da ONG Doutores da
Alegria.
No Brasil, há ainda outra linha de trabalho das figuras palhacescas no contexto
hospitalar, desenvolvida pela pesquisadora Ana Elvira Wuo, da Universidade Federal de
Uberlândia (UFU). Wuo apresenta uma abordagem distinta em relação aos Doutores da
Alegria, uma vez que propõe a figura do clown visitador, que realiza visitas a crianças
hospitalizadas, e não exames “besteirológicos”, como os Doutores da Alegria (TELLES,
2011 apud. WUO, 2011).
A proposição da ONG Doutores da Alegria traz para a cena a figura do médico
“besteirologista”, que atua visitando crianças leito a leito. Tomando como pretexto a
realização de procedimentos médicos, tais como “extração de miolo mole”, “apertar o
riso frouxo”, “afiar a língua”, realizar um “ultrassom musical”, “apertar parafusos
soltos”, entre outros procedimentos agregados ao léxico e à rotina hospitalares, os seres
palhacescos pedem licença para entrar nos leitos.
Wellington Nogueira afirma que, no momento em que ouviu falar sobre a atuação
palhacesca hospitalar, na década de 1980, nos Estados Unidos, foi acometido de
imediata aversão. Para ele, aquele tipo de trabalho parecia estapafúrdio, sem sentido.
Passado o período do choque, o então artista do Teatro Musical Wellington deixou-se
levar ao contexto hospitalar enquanto observador. Observou e, então, ficou fascinado
pela dimensão aberta por esse trabalho teatral:
Aí este meu preconceito todo caiu por água abaixo quando eu fui para
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o hospital. [...] Quando eu cheguei ao hospital, a primeira coisa que
me surpreendeu foi a força, você vê, dois palhaços. Porque eles
realmente promoviam uma interrupção muito grande na frequência.
Era que você pensasse, oi? O que foi aquilo que eu vi? E quando você
vai parar para pensar, eles já sumiram (Wellington Nogueira)8.
Ele relata que os artistas eram extremamente competentes e profissionais, e que,
ao contrário daquilo que imaginava, “[...] havia uma excelência no trabalho deles, uma
limpeza, que você via que era de gente que tem muita competência, e isto me
arrebatou.” (Wellington Nogueira).
Esse arrebatamento foi tão intenso que motivou Wellington a construir no Brasil
iniciativa semelhante, buscando sempre trabalhar com a excelência artística que
inicialmente o cativou. Tido como a primeira pessoa que acreditou e investiu seriamente
na atuação palhacesca hospitalar brasileira, Wellington coloca que:
O circo funcionou como um ventre de lona, porque ele gestou este tipo
de artista, que é o palhaço, que a gente conhece com o nariz
vermelho. O confinamento trouxe um refinamento técnico para este
artista, mas eu entendo que em 1986 ele sentiu falta daquele contato
direto de fazer parte da vida das pessoas, porque antes do teatro e do
circo, a arte era na rua, você cruzava com os artistas no caminho de
casa, e isto podia marcar você para sempre. Então, eu vejo que houve
um refinamento da sociedade e houve um refinamento deste artista,
em 86 ele sai do circo [...] (Wellington Nogueira).
Como vimos, as figuras palhacescas fazem parte de uma longa tradição, e, assim
como ocorre com as artes circenses, trazem resquícios históricos milenares para afirmar
e reinventar sua permanência no mundo. Essas figuras, para Wellington, fazem parte de
uma linhagem de subversores, em que o palhaço,
[...] é uma manifestação de um arquétipo milenar do bobo e este
arquétipo tem várias formas de materialização na história da
humanidade, seja como um bobo da corte, um palhaço no circo, uma
figura xamânica, uma divindade destas que vem para bagunçar, numa
dimensão folclórica quando você vê, por exemplo, o curupira ou o
Saci Pererê, todas estas figuras que vem para bagunçar as percepções
do homem, o curupira confunde os caçadores para salvar os animais.
De certa forma, o palhaço dentro do hospital, ele está fazendo o
trabalho dele, a arte dele, a palhaçada, e completamente integrada no
contexto em que ele está visitando, e ele está, sim, alterando a
8 A entrevista concedida por Wellington Nogueira será publicada na íntegra pela Revista Moringa de
Artes do Espetáculo v.7, n. 2, do Departamento de Artes da Universidade Federal da Paraíba, cuja
publicação é prevista para o segundo semestre de 2016.
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percepção das pessoas lá dentro (Wellington Nogueira).
Historicamente relacionadas aos curadores, as figuras palhacescas, segundo
Wellington, são capazes de “[...]abrir um canal de comunicação entre você e a doença,
você e sua enfermidade. Não é para acabar com ela, mas é para ouvir, dialogar, e
brincar com ela, para você poder ver que história vocês vão escrever juntos.”
(Wellington Nogueira).
Esse movimento foi forte o suficiente para se globalizar, e, segundo Wellington, as
figuras palhacescas surgiram para suprir necessidades emergentes:
Isto para mim é um sinal muito claro e concreto de um movimento, de
uma necessidade contemporânea sendo suprida pelo resgate de um
arquétipo milenar, através da arte. A saída do palhaço hoje do circo é
uma questão sociocultural muito forte, ele vem fazer uma ruptura no
teu cotidiano, e assim agindo, permite que você se emocione, acesse
emoções, percepções, que é isto que arte pode fazer. Se você for ver o
contexto social hoje, com o advento de tecnologias, traz a
humanidade para uma ampliação de seu conhecimento, e, ao mesmo
tempo, uma regressão nas capacidades relacionais. Somente na
relação com o outro, você é capaz de enxergar também a tua relação
com você mesmo. Qual é papel deste arquétipo ao longo da história
da humanidade? Buscar o outro ponto de vista, buscar o lado menos
visitado, menos explorado, avisar, comentar (Wellington Nogueira).
Atualmente existem mais de 1.080 grupos ou organizações de palhaças e palhaços
que atuam no contexto hospitalar de modo profissional ou amador no Brasil
(MASETTI, 2014). A consultora de pesquisa e psicóloga dos Doutores da Alegria
Morgana Masetti, ao realizar um panorama do ponto de vista mundial, aponta que:
O movimento de palhaços é um movimento muito forte, é uma coisa
que cresceu muito [...]. Existem divergências sobre como começou (a
atuação palhacesca hospitalar), mas uma referência forte é o Michael
Christensen (fundador do Clown Care) em Nova Iorque e ele estando
lá, a Caroline (Simonds) que depois foi para a França (e fundou do
grupo Le Rire Médicin), o Wellington (Nogueira) que veio para cá (e
fundou os Doutores da Alegria), Laura (Fernadez) que depois foi para
a Alemanha (e fundou o grupo Die Clown Docktoren) [...]. Outro ator
foi para a Itália, outro para a Espanha. Todos estes atores beberam da
mesma fonte e depois se espalharam um pouco pelo mundo e deram
uma continuidade para este trabalho com uma linguagem próxima,
claro, todos adaptando para sua realidade e depois fazendo novas
descobertas. Tem um diálogo que felizmente é possível entre todos
estes grupos. Então eu acho que isto ajudou a gente pensar que hoje
em dia o trabalho do palhaço no hospital está no mapa mundial, e cada
país está lidando com ele de um jeito (MASETTI, 2014, s.p.).
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A reflexão da autora nos faz pensar o contexto recente da edificação da atuação
palhacesca hospitalar. Para Viveiros de Castro, porém, a presença de figuras palhacescas
no ambiente hospitalar é antiga e tem ligações com a tradição circense, que desde
tempos remotos tem por pressuposto atos de solidariedade para com as comunidades em
que se estabelecem por períodos indeterminados de tempo, dentre eles, a realização de
espetáculos em hospitais. A autora afirma que a novidade é a proposta trazida ao Brasil
pelos Doutores da Alegria, que realizam a paródia do médico (VIVEIROS DE
CASTRO, 2005). Essa aproximação, para Masetti, foi uma forma de habituar o contexto
hospitalar brasileiro com a figura palhacesca. Referindo-se ao ano de 1991, em que a
ONG Doutores da Alegria iniciou seu trabalho cênico nos hospitais, a autora informa:
Naquela época, a figura do palhaço era algo absolutamente incomum
ao cenário das macas e enfermarias. Graciosamente destoante,
habilmente desconcertante e não ameaçador. Uma imagem que
propunha aos adultos que cruzavam seu caminho um tempo de
reflexão para tentar aproximar o mundo médico ao do circo
(MASETTI, 2003, p.9).
Nos dias de hoje, devido à crescente proliferação de iniciativas semelhantes no
Brasil e no mundo, cada vez mais essas figuras se aproximam com naturalidade das
pessoas situadas no hospital. Heraldo Firmino, ator, palhaço e formador nos Doutores da
Alegria, afirma que os avanços visualizados nos dias de hoje são frutos de laboriosa
empreitada e dá mostras de que o trabalho das palhaças e dos palhaços está sendo mais
reconhecido nos hospitais:
Hoje em dia as pessoas respeitam mais o trabalho nos hospitais. Hoje
muitas vezes as enfermeiras chegam quando a gente está trabalhando
com a criança e voltam em outro momento, respeitam nosso tempo
com a criança. A criança está sendo atendida pelo palhaço e ela sabe
que isto também é importante. Isto facilita o trabalho dela, é um
conjunto de ações sendo feitas (Heraldo Firmino).
Esse processo deu-se em função da constância de ações realizadas por
profissionais da área da palhaçaria, tornando a prática da atuação de palhaças e palhaços
junto a crianças hospitalizadas, seus acompanhantes, equipe médica e funcionários do
hospital uma realidade.
No campo das Artes Cênicas, o fenômeno da atuação palhacesca em contextos
59
hospitalares gerou um movimento bastante representativo no cenário brasileiro e no de
diversos outros países, tais como os Estados Unidos, a França, a Itália, a Alemanha, a
Espanha, a Argentina, entre outros (MASETTI, 2014).
Recentemente, no ano de 2015, a Argentina deu um grande passo rumo ao
desenvolvimento da arte palhacesca hospitalar na América Latina. O país instituiu a Lei
14.726, que, conforme o seu artigo 1°, tem por objetivo: “[...] incorporar ao Sistema de
Saúde da Província de Buenos Aires o trabalho do Palhaço de Hospital.”9 (BUENOS
AIRES, 2015, p.2). Consta, no artigo 2° da mesma lei, que “[...] cada Serviço de Terapia
Pediátrica deverá contar com um trabalho de especialistas na arte de clown ou palhaços
hospitalares.”10
(BUENOS AIRES, 2015, p.2). Nesse sentido, a presença de
profissionais da arte da palhaçaria torna-se obrigatória em todos os hospitais infantis da
província de Buenos Aires, a maior do país. Esse fato foi amplamente divulgado pelos
meios de comunicação e pode ser considerado como significativo avanço para a área
como um todo, uma vez que possibilita o fortalecimento da profissionalização das
palhaças e dos palhaços que atuam no contexto hospitalar.
Podemos observar que esta manifestação cênica passou por um processo de
aceitação por parte do público hospitalar para que chegasse até a aceitabilidade dos dias
de hoje, a exemplo do que ocorreu em Buenos Aires. A própria combinação desajustada
e multicolor da figura palhacesca entra em contraste com o equilibrado e alvo semblante
hospitalar, podendo gerar momentos iniciais de estranhamento. A inserção de figuras
palhacescas no ambiente hospitalar, por isso, deu-se de modo gradual, passando por um
processo de desenvolvimento e transmutando-se com base no profissionalismo e na
escuta das necessidades do contexto de atuação.
Para a pesquisadora Morgana Masetti, a aproximação da arte com o contexto
hospitalar funda-se em um espaço e tempo de escuta e concretiza-se como uma “ética
do encontro”, como podemos ler a seguir:
O palhaço incorpora os fatos recusados ou pouco falados ao momento,
favorecendo a possibilidade de lidar com eventos geradores de tensão.
Ele ajuda a lidar com a vulnerabilidade da condição humana, em um
ambiente onde se exige a perfeição, com isso favorece a expressão de
conflitos e dificuldades. Leva-nos a entrar em contato direto com
nossos sentimentos, sem análises. Desse modo, estimula a capacidade
de experimentarmos nossas emoções e aceitarmos diferentes
9 Livremente traduzido.
10 Livremente traduzido.
60
possibilidades de reações, expandindo os limites de nossos
comportamentos. Sua ação ensina que nada persiste e favorece nossa
ligação com o acontecimento presente. Através desta filosofia de ação
o palhaço propõe uma ética de encontro (MASETTI, 2013, p. 12).
Para a autora, essa ética busca estabelecer “[...] uma situação de cumplicidade e
confiança nas relações e gera as condições para que se estabeleçam espaços internos de
reflexão e aprendizado.” (MASETTI, 2013, p. 12). Objetivando “Pensar na ética das
relações como fonte de aprendizado, onde os afetos e o corpo são lugares importantes
de aprendizado.” (MASETTI, 2013, p. 12), Masetti enxerga o trabalho das figuras
palhacescas no contexto hospitalar como sempre passível de aprendizado, já que está
atrelada aos encontros humanos.
Para o Doutor Patch Adams, a atuação palhacesca hospitalar compõe
evidentemente um campo de aprendizados artísticos, porém abarca também a área
terapêutica, uma vez que há uma ação em favor do bem estar, que no caso das palhaças
e dos palhaços manifesta-se por meio da arte.
[...] a palhaçaria precisa ser um contexto, não uma terapia. É
engraçado este palhaço dizer "terapia de palhaço". Claro que é
terapêutico! Se uma estratégia de amor existisse em nossa sociedade,
ninguém precisaria de terapia palhacesca. Mas modernos hospitais e
consultórios médicos em todo o mundo gritam para se reconectar com
a prestação de cuidados à compaixão, alegria, amor e humor. Há mais
de 30 anos tenho ouvido milhares de estudantes de medicina, médicos,
enfermeiros e pacientes chorar por falta de amor em seu ambiente
médico (ADAMS, 2002, p. 447-448).11
Em busca de uma atitude distinta enquanto médico, Patch Adams aliou-se às
possibilidades transgressivas das figuras palhacescas. Agindo desse modo, o Doutor
Palhaço subverteu a “lógica de falta de amor”, como Adams compreendia, que costuma
operar no ambiente hospitalar.
Na pesquisa aqui realizada, o foco está na atuação de artistas cênicos
profissionais em contextos hospitalares, e não nos aspectos terapêuticos desse trabalho.
No contexto teatral, porém, não podemos afirmar que o encontro entre as figuras
palhacescas e as crianças hospitalizadas, seus acompanhantes, funcionários e equipe
médica se distancie da atenção, da escuta, da abertura e do cuidado para com os outros
que Patch Adams denomina como terapia. Implícitos na atuação das figuras palhacescas
11
Livremente traduzido.
61
contextualizadas no hospital, esses princípios terapêuticos são direcionados por
profissionais das Artes Cênicas, que precisam aprender a bem empregá-los.
O emprego da energia transformadora da palhaçaria, para Du Circo, um dos
entrevistados dessa pesquisa, acaba retornando para o artista e modificando sua maneira
de estar no mundo:
Sem dúvida, ser palhaço tem dessas coisas, fazemos muitas pessoas
rirem no dia a dia; o rir faz essas pessoas mais felizes, essa felicidade
acaba voltando para o artista. (Preciso) Aceitar os momentos mais
difíceis após ver tanta gente hospitalizada e ver que muitas vezes
meus problemas são pequenos. Não sei se modifico minha maneira de
viver, mas acabo sendo modificado e realizado, com isso fico mais
feliz e vivo aceitando o mundo como ele está. O mundo está doente e
precisamos curar as pessoas. Uma coisa boa do meu trabalho é que
todo dia saio do hospital mais feliz do que quando entro (Du Circo).
As figuras palhacescas, ao saírem dos espaços convencionais como o teatro e o
circo, conforme Wellington, fazem-no “[...] não para abandonar aquele ventre, mas
para torná-lo mais amplo, e o primeiro lugar que ele encontra é o lugar onde estão as
crianças hospitalizadas [...]” (Wellington Nogueira).
Para a pesquisadora Ana Achcar, “[...] o mundo do palhaço é bem diferente
daquele do hospital, mas seu universo está muito próximo ao da criança.” (ACHCAR,
2007, p.24). Essa proximidade, segundo a autora, é capaz de facilitar uma conexão e
“[...] cria rapidamente uma grande cumplicidade entre eles.” (ACHCAR, 2007, p.24).
Achcar afirma que, no contexto hospitalar, a aproximação com os demais transeuntes do
hospital ocorre com base nessa relação de confiança.
Segundo Soraya Saíde, “[...] o palhaço é a máscara da inadequação do homem
frente ao mundo em que vive. O palhaço no hospital está no exílio, assim como uma
criança internada. Parceiros no estranhamento, na perplexidade, na vontade de brincar.”
(SAÍDE, 2005, apud DOUTORES DA ALEGRIA, 2005).
O encontro entre palhaças, palhaços e crianças é capaz de fazer que coexistam a
realidade e a brincadeira. Tanto as figuras palhacescas quanto as crianças estão
recentemente inseridas no hospital, e juntas inventam novas maneiras de viver nesse
espaço. Lá, crianças, palhaças e palhaços se depararam com novos desafios, que podem
ser também artísticos. Por trás dos narizes vermelhos dos palhaços existem seres reais
que, repletos de experiências vividas, sentimentos e emoções, atuam por meio de
saberes artísticos adquiridos através de pesquisas e de práticas constantes.
62
Repleto de situações extremas, o ambiente hospitalar traz momentos delicados,
em meio aos quais os artistas deverão aproximar-se dos espectadores, protagonistas
desses momentos, considerando sempre aspectos artísticos, emocionais e éticos para
guiar sua atuação. Para manter, porém, a composição cênica, é necessário guardar certa
distância, sem a qual não é possível delinear as características palhacescas. É
elucidativa, assim, a reflexão de Achcar, que ressalta:
A ação do palhaço de hospital é audaciosa, arriscada e difícil; porque
para que ele atinja seus objetivos é preciso que ele se coloque próximo
ao seu público e nesse sentido, que ele esteja intimamente bem
disponível para o contato com o outro. Ao mesmo tempo em que é
necessária a proximidade, o palhaço é uma máscara e precisa tomar
certa distância para não se misturar às figuras cotidianas, para não se
tornar familiar; e conservar a característica de ser fora do comum. A
formação é indispensável porque possibilita ao estudante / palhaço
fazer o exercício de se aproximar e de se distanciar sem perder a
qualidade artística da forma e do conteúdo de sua ação (ACHCAR,
2007, p.192).
Além de um treino, essa atuação requer acompanhamento psicológico
especializado, e pode ser regido por um código de conduta, que visa a compor as
especificidades de atuação palhacesca em cada ONG ou grupo. Ao propor a constituição
de um código de ética, Achcar justifica que:
Na tentativa de responder às exigências da atuação no hospital e às
escolhas metodológicas que é preciso fazer em sala de aula, deparei-
me com uma intensa necessidade de reflexão ética acerca do trabalho.
A coerência na adoção de princípios do jogo cômico, a transparência
na avaliação do aproveitamento do estudante, a responsabilidade na
liberdade de ação do artista, chamaram a minha atenção para a
construção de um código normativo e prescritivo dos valores e
deveres do palhaço de hospital. Essa pesquisa também se baseou em
dois códigos de ética de palhaços de hospital, um do programa Le Rire
Médecin, da França, e outro do Pupaclown da Argentina (ACHCAR,
2007, p.135).
A busca pela criação de um conjunto de regras que abarcam a atuação palhacesca
hospitalar significa a constituição das especificidades dessa recente área de atuação nas
Artes Cênicas. Tomemos por exemplo, neste sentido, os artigos estabelecidos pela
63
associação Pupaclown12
:
Artigo 1. Intervenção: o palhaço que faz intervenção num hospital é
um profissional, com formação específica na área do palhaço de
hospital, com experiência em atividades em hospitais. Tem formação
nas artes do espetáculo e tem vasta experiência neste campo. [...] Deve
respeitar e respeita a especificidade e deve adaptar se ao meio
hospitalar. Artigo 2. Exercício da atividade no hospital: o palhaço só
deve realizar atos/atividades relacionados com as suas competências
artísticas. O palhaço está presente no hospital para ajudar as crianças,
jovens e seus familiares a suportar melhor a hospitalização. Manifesta
a sua atividade através do humor e fantasia e pode também transportá-
las para o meio hospitalar. O palhaço deve estar sempre consciente de
que as suas intervenções devem ser no sentido de melhorar o bem
estar das crianças, jovens e seus familiares, em estreita colaboração
com toda a equipe médica. [...] Artigo 3. Duplas: o palhaço não deve
intervir solitariamente no ambiente hospitalar, deve trabalhar sempre
em duplas de palhaços. Artigo 4. Responsabilidade: o palhaço é
responsável pelos seus atos durante a sua atuação no hospital. Exerce
suas intervenções com respeito pela dignidade, personalidade e
intimidade das crianças, dos jovens e dos seus familiares e amigos.
Exerce todas as suas intervenções com a mesma consciência
profissional, sem ter em conta a sua procedência, sexo, raça,
nacionalidade, religião, costumes, situação familiar, status social,
educação e doença. Se pedirem a sua opinião deve abster-se de
qualquer comentário e/ou observação que possa ser inadequada e que
possa chocar ou magoar os doentes, familiares e amigos. Artigo 5.
Segredo Profissional: exige-se ao palhaço de hospital segredo
profissional e confidencialidade. Deve manter segredo sobre toda a
informação que lhe foi transmitida e também sobre tudo o que ouviu,
que leu, constatou e se apercebeu sobre a identidade, estado e saúde
das crianças e jovens. Exige-se descrição em todos os lugares tanto no
interior como fora do hospital. Artigo 6. Formação: para assegurar a
qualidade das suas intervenções, o palhaço deve estar em constante
formação, deve aperfeiçoar os seus conhecimentos com alguma
regularidade, fazendo cursos na área do clown e clown de hospital,
deve usar as técnicas e teorias de clown. Deve fazer formação nas
seguintes áreas: desenvolvimento da criança, formação sobre
patologias, vocabulário especifico de hospital, a dor, a morte, etc.
Artigo 7. Segurança: o palhaço de hospital deve sempre zelar pela
segurança física e psíquica das crianças e jovens. Não deve, nas suas
intervenções, jogos, atividades, nos seus “acessórios clownescos” e
nas suas deslocações, pôr em perigo as crianças, jovens, família e
restante pessoal médico. Artigo 8. Regulamento interno: o palhaço
deve conhecer, respeitar e acatar o regulamento interno. Deve cumprir
as regras de higiene e de segurança específicas de cada hospital.
Artigo 9. Imparcialidade: o palhaço não deve tomar partido ou
posições quando lhe transmitem queixas relativas ao serviço
hospitalar, problemas pessoais, problemas entre elementos da equipe
12
A Associação Pupaclown de palhaços que atuam em contextos hospitalares leva a arte do palhaço para
instituições de saúde de Murcia, na Espanha, desde o ano de 1998, além de realizar outras ações de
pesquisa, formação e geração de conteúdo cultural para a sociedade.
64
médica/hospitalar, problemas entre familiares e seus problemas
pessoais. Não deve tomar partido relativamente também a questões
relacionadas com a gestão do hospital. Assuntos e situações ocorridas
dentro do hospital e/ou relacionadas com o hospital, pacientes e seus
familiares, equipe médica, etc. devem ser mantidos sempre em
segredo profissional. Artigo 10. Promoções: em nenhum caso, o
palhaço deve aceitar prendas, gorjetas ou remunerações pelas suas
intervenções. Não pode participar nem oferecer-se para participar em
operações/ações de promoção, de distribuição de objetos ou
publicidade com fins lucrativos. E o palhaço não deve fazer
afirmações ou participar em iniciativas em nome do hospital, equipe
médica ou outros elementos do hospital (PUPACLOWN, 2009, s.p.
apud CASSOLI, 2012, p. 128-130).
Esses dez artigos sintetizam de maneira bastante concreta os princípios comuns da
atuação palhacesca em ambiente hospitalar, onde, em meio a todo um conjunto de
elementos de conduta desejada, dão-se as ações artísticas. É possível afirmar que esses
artigos significam uma possibilidade de unificação ética necessária para guiar algumas
das ações palhacescas e situar artistas sobre aquilo que delas e deles se espera no
ambiente hospitalar.
3.1 DOUTORES DA ALEGRIA
O contexto brasileiro, no âmbito do fenômeno da atuação palhacesca hospitalar,
obteve expressividade e relevância mundial através do trabalho desenvolvido pela ONG
Doutores da Alegria, responsável atualmente por manter um dos mais completos
programas do gênero no mundo, e também por desenvolver ações artísticas, de
formação e de pesquisa referentes à área. Dada a dimensão profissional da ONG,
exponho aqui um registro sobre sua atuação, bem como a descrição de algumas de suas
ações, que dizem respeito não só ao contexto artístico hospitalar, mas também a outros
âmbitos da sociedade. Leiamos, pois, o posicionamento de Wellington Nogueira,
fundador da ONG Doutores da Alegria, sobre esse tipo de manifestação teatral:
O teatro para mim ainda é um templo, ainda é um espaço sagrado,
mas o que eu aprendi com isto é que quando você tem dois artistas
muito tranquilos e seguros no que eles estão fazendo, como eles estão
fazendo, o templo pode ser reproduzido em qualquer lugar, em
qualquer circunstância da vida, inclusive a cotidiana, para justamente
provocar no cotidiano uma ruptura e aí poder entrar a arte, entrar
outra forma de ver o mundo, de se relacionar com a vida (Wellington
Nogueira).
65
O fenômeno a que se refere Wellington é capaz de reproduzir “templos sagrados”
até mesmo nos corredores de um hospital. Transformando o cotidiano artisticamente, as
figuras palhacescas podem propiciar perspectivas e maneiras distintas de relação tanto
no que diz respeito às Artes Cênicas, quanto no que tange ao contexto hospitalar.
Pesquisando essas maneiras singulares de tecer relações com os outros e com o
mundo, a ONG está presente na sociedade civil desde 1991, e atualmente mantêm
contratados cerca de quarenta palhaços profissionais, além de funcionários e equipe
técnica. Todas as palhaças e palhaços da Organização são profissionais com formação
cênica, advindos de contextos artísticos, tais como teatros, ruas e circos. O elenco da
ONG Doutores da Alegria é composto por profissionais atuantes na cadeia produtiva
local e nacional, sendo que alguns são artistas premiados dentro e fora do Brasil.
Ao se inserirem no contexto de atuação da ONG, os artistas já trazem consigo
experiências na atuação palhacesca, e ainda passam por um treinamento específico para
atuarem no âmbito hospitalar, conduzido por artistas mais experientes da ONG, tais
como Thaís Ferrara (nos Doutores da Alegria desde 1993), Soraya Saíde (nos Doutores
da Alegria desde 1992) e Wellington Nogueira, dentre outros profissionais
(DOUTORES DA ALEGRIA, 2007; 2008; 2009).
Os Doutores da Alegria cultivam um acervo de bibliografias, imagens, vídeos,
entre outros registros que contém palestras, oficinas, cursos, espetáculos, apresentações
de artistas da ONG, discentes da Escola e demais artistas do Brasil e do mundo. Nesse
espaço, também constam títulos clássicos do cinema mundial relacionados com o
universo cômico ou da palhaçaria, assim como livros, revistas, entre outros materiais de
cunho didático e de pesquisa.
A matriz da ONG está situada na capital paulista, porém os Doutores da Alegria
estão presentes também em Recife (PE), onde mantêm outra sede e equipe de
profissionais. Ambas as representantes estão fortemente integradas no cenário cultural
de suas localidades e em decorrência desse fato o acesso a suas ações se difundiu
também por interiores brasileiros. De norte a sul existem pessoas influenciadas pelo
trabalho dos Doutores no Brasil, que buscam na experiência desenvolvida pela ONG
uma referência. Segundo o fundador, Wellington, a ONG Doutores da Alegria optou por
não negligenciar as pessoas que de alguma maneira se inspiraram no trabalho, mas sim
propiciar oportunidades de desenvolvimento técnico, sensível e de profissionalização
66
para pessoas que têm o intuito de realizar trabalhos semelhantes. Hoje, como
mencionado, estas pessoas somam-se em mais de mil e oitenta grupos no Brasil.
Sem fins lucrativos, a ONG “[...] promove a qualidade das relações humanas e
qualifica a experiência de internação em hospitais por meio da visita contínua de
palhaços profissionais especialmente treinados em São Paulo e no Recife.”
(DOUTORES DA ALEGRIA, 2014, p.54). Sua base de trabalho se define como o “[...]
o resgate do lado saudável da vida, mesmo em condições adversas, por meio da arte do
palhaço.” (DOUTORES DA ALEGRIA, 2014, p.15).
Figura 8 - Doutoras Juca Pinduca (Juliana Gontijo) e Greta Garboreta (Sueli Andrade).
Fonte: <http://sejamedeasy.com.br/doutores-alegria/>. Acesso em 05/08/2016.
No ano de 2013, os Doutores da Alegria computaram um milhão de visitas a
crianças hospitalizadas, seus acompanhantes, equipe médica e funcionários dos
hospitais atendidos, contadas desde 1991, ano em que passou a existir (DOUTORES
DA ALEGRIA, 2014). As visitas ocorrem de modo contínuo, com os palhaços
67
compondo duplas e atuando duas vezes por semana no mesmo hospital, cerca de seis
hora em cada dia. As duplas, como é possível observar na imagem 8, desenvolvem um
vínculo entre si que é capaz de conectá-las com os espectadores.
O trabalho dos Doutores da Alegria, além de produzir grande impacto artístico e
social no Brasil, também é reconhecido internacionalmente e foi incluído duas vezes
pela Divisão Habitat da ONU entre as melhores práticas globais (DOUTORES DA
ALEGRIA, 2014, p. 57). As ações da ONG, que repercutiram fortemente no Brasil,
abriram espaço para que hoje existam milhares de outros grupos desenvolvendo
trabalhos semelhantes no país. Wellington afirma que a consciência de que ele estava
abrindo as portas desse trabalho no Brasil, desde o início, acarretou-lhe um forte senso
de responsabilidade, como podemos ver abaixo:
Você já pensou se eu entrar para história como o cara que ferrou com
este trabalho no Brasil? Eu vou responder eternamente por isso,
então eu tenho até hoje um medo muito grande, mas não é um medo
paralisante, é um medo que me faz ouvir com cuidado, e isto eu
aprendi com o palhaço que criou este trabalho, Michael (Christensen)
que dizia que o trabalho sabe para onde ele quer ir, você só tem que
ouvir e sair do caminho para não atrapalhar. Hoje eu vejo esta
contribuição em vários aspectos, no sentido de você fomentar a arte
do palhaço no Brasil, de uma maneira que acho que é incontestável
(Wellington Nogueira).
Guiado por uma busca pelo profissionalismo e consciência na realização do
trabalho, Wellington traçou as metas da hoje mundialmente reconhecida ONG Doutores
da Alegria, tendo contribuído fortemente no fomento da arte palhacesca brasileira. A
ONG se tornou uma referência no que tange à atuação de palhaças e palhaços em
contextos hospitalares e recebeu diversas honrarias, tais como:
[...] o prêmio Universidade de São Paulo de Direitos Humanos em
2005, o Stockholm Partnerships Award em 2002, o Prêmio Camargo
Correa em 2004, e o Prêmio de Dubai, outorgado pela Divisão Habitat
da Organização das Nações Unidas (ONU), que os classificou entre as
40 melhores práticas sociais do mundo, colocando os Doutores da
Alegria na lista das 100 melhores práticas globais em 1998 e 2000
(SENA, 2011, p. 34).
Através de suas publicações, a ONG atenta para a sistematização e difusão de
conhecimentos e tecnologias produzidas pelo seu trabalho. Além disso, os Doutores
realizam cursos e palestras que visam o “[...] estudo das relações entre arte e ciência e
68
do universo do palhaço como um todo.” (DOUTORES DA ALEGRIA, 2008, p.
8).Embora seu trabalho esteja voltado para a “[...] atuação profissional de palhaços junto
a crianças hospitalizadas, seus pais e profissionais de saúde.” (DOUTORES DA
ALEGRIA, 2015), a ONG desenvolveu e desenvolve ações artísticas, formativas e de
pesquisa para além do contexto hospitalar. Os Doutores da Alegria se caracterizam
como “[...] a única organização no mundo que evoluiu do trabalho no hospital para
atividades que também priorizam a formação, a pesquisa e a geração de conteúdo para a
sociedade.” (DOUTORES DA ALEGRIA, 2015).
Atualmente as ações da ONG nos hospitais são compreendidas pelo Programa de
Palhaços Besteirologistas, que garante a visita dos palhaços aos hospitais atendidos, e
pelo projeto Plateias Hospitalares. Com esse último projeto, os Doutores da Alegria
pretendem viabilizar o acesso da comunidade hospitalar a apresentações cênicas, como
de teatro infantil e adulto, teatro de bonecos, intervenções, contos infantis,
apresentações circenses, musicais e de dança. Essa ação ocorre no Rio de Janeiro e se dá
através da abertura de um edital e seleção de propostas artísticas a serem apresentadas
nos hospitais parceiros da ONG naquele local (DOUTORES DA ALEGRIA, 2014).
Fora dos hospitais, os Doutores experimentam criações artísticas e desenvolvem
projetos como a Roda Besteirológica, conhecida anteriormente como Roda Artística,
que nasceu da necessidade de os artistas dos Doutores da Alegria se encontrarem para
avaliar o que realizam nos hospitais, trocar experiências e compartilhar processos de
trabalho. As criações apresentadas nas Rodas Besteirológicas, mesmo que em estado
bruto, são registradas e documentadas, conforme pode-se observar no arquivo dos
Doutores da Alegria, situado na sede de São Paulo. As Rodas Besteirológicas acontecem
desde 2008 a cada dois meses em São Paulo (DOUTORES DA ALEGRIA, 2014).
A ONG conta com um elenco de profissionais que se dedicam à criação e à
circulação de espetáculos cênicos em teatros, praças, empresas, hospitais e em outros
espaços da sociedade. Alguns desses espetáculos são “Midnight clown” (1995), “Senhor
Dodói” (2008), “O homem que fala” (2013), entre outros. Além dessas produções, os
Doutores da Alegria também realizam espetáculos temáticos anuais como o “Auto de
Natal” e a montagem de uma quadrilha junina, ambos itinerantes e realizados nos
diferentes hospitais atendidos. Os Doutores da Alegria também realizam intervenções
em empresas (palestras, oficinas, atuações).
Em determinado momento de sua história, por volta de 2004, a ONG decidiu que
69
era o momento de difundir os conhecimentos e tecnologias desenvolvidas e investir na
organização da Escola de Palhaços dos Doutores da Alegria. Desde sua abertura até os
dias de hoje, a Escola vem realizando um trabalho pioneiro no Brasil e na América
Latina13
, oferecendo cursos para pessoas interessadas em geral, desenvolvendo desde
2004 o Programa de Palhaços para Jovens, e desde 2007 o Programa Palhaço em Rede.
Nascido em 2007, o Programa Palhaço em Rede tem por intuito conectar os
diversos grupos no Brasil que surgiram após a iniciativa de Wellington Nogueira no
país. O Programa configura-se hoje como uma importante plataforma de cartografia on-
line dos grupos que atuam com palhaços em hospitais, bem como torna possível a
comunicação da ONG com outros grupos ou indivíduos que almejem envolver-se com
trabalhos semelhantes. O seu objetivo é, portanto, “[...] estabelecer uma rede de
cooperação entre indivíduos e grupos que atuam nos hospitais como palhaços, tendo
como foco a qualidade do que é levado para a criança ou adulto hospitalizado.”
(DOUTORES DA ALEGRIA, 2009).
O tutor do programa, Raul Figueiredo, é responsável por estimular a
comunicação dos Doutores da Alegria com outros grupos e desde 2009 tem a missão de
viajar pelo Brasil e pela América Latina ministrando cursos em nome dos Doutores da
Alegria. Com a mencionada nova lei da Argentina, que institui a presença de
profissionais palhaços nos hospitais da província de Buenos Aires, Raul, como relatou
em momento de entrevista, deslocou-se até o país para levar a contribuição dos
Doutores da Alegria nesse processo organizativo.
O Programa de Formação de Palhaços para Jovens (PFPJ), outro importante
projeto da Escola de Palhaços dos Doutores da Alegria, foi o primeiro projeto
desenvolvido pela Escola, fator de conexão entre os entrevistados e esta pesquisa. O
PFPJ teve sua primeira turma aberta em 2004, sendo que no ano de 2013 eu, Daiani
Brum, ingressei na quinta turma. A Escola promove, através do PFPJ, uma experiência
formativa ímpar na realidade da pesquisa palhacesca brasileira e latino-americana.
Configurando-se como um importante espaço de pesquisa sobre a comicidade, bem
como sobre diferentes técnicas corporais empregadas na composição palhacesca, a
13
Existem diversas escolas de circo na América Latina, como a Escola Nacional de Circo (RJ), a Escuela
Nacional Circo Para Todos (Colombia), El Circo Del Mundo (Chile), entre outras. Porém, as escolas de
palhaço são uma realidade bastante recente. No Brasil, em 2013, dez anos após o surgimento da Escola de
Palhaços dos Doutores da Alegria, foi fundada a Escola Livre de Palhaços (ESLIPA, RJ) e em 2014
iniciaram-se as atividades da Escola de Palhaços do Circo da Dona Bilica (SC), fundada pelo palhaço
espanhol Pepe Nunéz, totalizando três escolas de palhaços no país.
70
Escola serve de referência para outras iniciativas mais recentes. No anexo 3,
disponibilizo o edital de 2016, onde constam os objetivos do curso, as disciplinas
básicas a serem cursadas e demais informações sobre o PFPJ.
Atualmente, o Programa conta com 12 anos de existência, tendo formado cerca de
175 jovens na arte da palhaçaria. Mantém-se hoje com cerca de outros 25 em processo
de formação. Estudos realizados pela ONG comprovam que cerca de oitenta por cento
dos jovens formados pela escola estão inseridos no meio artístico profissionalmente.
Vale salientar o fato de que o PFPJ não tem como foco a formação de palhaços
que atuem, como os Doutores da Alegria, apenas em contextos hospitalares, mas sim em
diversos âmbitos da sociedade. Assim, a Escola oferece uma ampla gama de
possibilidades técnicas, estéticas e sensíveis na condução da formação cênica dos jovens
aprendizes. Cabe a cada aluno construir seu trajeto profissional, através da busca por
experiências que condigam com suas expectativas artísticas e humanas.
A cada dois anos, a Escola de Palhaços dos Doutores da Alegria abre inscrições
para o processo seletivo do PFPJ. São selecionados, após cinco dias de oficinas práticas
guiadas por formadores dos Doutores da Alegria, vinte e cinco jovens com idade entre
17 e 23 anos. Esses jovens vivenciam diariamente, de segunda a sexta, entre 9h da
manhã e 13h da tarde, durante dois anos, uma experiência de formação na técnica e na
sensibilidade palhacescas e da comicidade em geral, sob a condução de artistas e
docentes dos Doutores da Alegria, totalizando 1.800 horas/aula. Os jovens aprendizes
são instigados a construírem de uma maneira particular a sua forma de serem palhaças e
palhaços, como se lê a seguir:
O objetivo do curso é oferecer formação na linguagem do palhaço e
gerar experiências artísticas com o foco na constituição da autoria, da
autonomia de criação, valorizando o permanente processo de
aprendizagem por meio do estudo, do treino e da pesquisa. O
programa também fornece instrumentos para formar artistas
implicados nas questões de seu tempo, propositivos a partir de uma
leitura crítica da realidade. É gratuito, financiado por leis de incentivo
à cultura e por instituições públicas e privadas que têm garantido a sua
continuidade (DOUTORES DA ALEGRIA, 2015).
Valorizando a autoralidade dos jovens estudantes, os mestres conduzem um
ambiente onde a pesquisa na arte da palhaçaria e da comicidade é o foco. Ao longo dos
dois anos, são ministradas disciplinas ou módulos de expressão corporal, jogo cênico,
máscara neutra, comédia humana, comédia Dell Arte, malabarismo, mágica, história do
71
circo e do palhaço, corpo cômico, música, acrobacia, produção cultural, literatura,
danças populares brasileiras, maquiagem, laboratório de experimentação de figurinos,
filosofia, palhaço. Ao final do processo, os alunos realizam a montagem e a circulação
de um espetáculo/exercício cênico sob a direção de um ou dois docentes da Escola. Essa
estrutura curricular não é estanque e modifica-se a cada ano, conforme o perfil dos
discentes e seus anseios artísticos. Segundo relatou em momento de entrevista o
coordenador da Escola de Palhaços dos Doutores da Alegria, Heraldo Firmino, a equipe
de formadores busca manter-se atenta às necessidades de cada turma.
Na minha turma, denominada FPJ5, intitulamos o espetáculo/exercício cênico de
“Nada de crachá, meu chapa!”. Ele foi dirigido por Thaís Ferrara, atriz, diretora,
formadora da Escola e palhaça na ONG desde 1992, e Roberta Calza, atriz, diretora,
formadora da Escola e palhaça na ONG desde 2002. “Nada de crachá, meu chapa!”, foi
apresentado em diversas cidades do interior de São Paulo, além de manter uma
temporada de um mês no Teatro FECAP, na capital de São Paulo, totalizando cerca de
25 apresentações.
A seguir, trago uma foto do elenco reunido no espetáculo “Nada de crachá, meu
chapa!”, onde a Doutora Brum ganhou seus contornos. Na fotografia, ela aparece
vestida de vermelho, com o pé para cima:
72
Figura 9 - PFPJ 5.
Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora. Foto de André Stéfano.
Com o caráter empregado na construção do espetáculo pelas diretoras, capazes de
conduzir um ambiente de pesquisa em que as verdades preestabelecidas, os rótulos e os
“crachás” foram transgredidos pela experimentação, pela ação e pela proposição, a
conclusão é de que o título do espetáculo foi muito apropriado.
Ao longo dos dois anos de formação, fizeram-se alicerce para a minha experiência
a condução das diretoras; do diretor pedagógico Heraldo Firmino e da sempre presente
formadora da escola, a coordenadora de formação e palhaça da ONG desde 1991 Soraya
Saíde. Os docentes do PFPJ majoritariamente são ou foram palhaços profissionais do
elenco dos Doutores da Alegria, com exceção de alguns profissionais convidados para
ministrar aulas. As aulas, desse modo, tiveram um caráter de compartilhamento de
experiências, pois os professores ministraram-nas com base em uma prática artística
pesquisada dentro e fora do contexto hospitalar.
Encerro, assim, este registro sobre a Escola de Palhaços dos Doutores da Alegria
com uma experiência descrita pelo idealizador e coordenador do PFPJ, Heraldo
Firmino:
73
A gente fez um MOCREA (Mostra Criativa de Ex-alunos e alunos do
PFPJ) estes dias, e era uma MOCREA especial, só com alunos que já
se formaram, e a gente fez uma grande roda no teatro para passar as
músicas e eu olhei e estava todo o mundo com instrumento na mão e
eu pensei: Mas que bandinha é esta com trinta pessoas? Aí, eu fiquei
olhando, eles começaram a tocar e fazendo, e aí a gente combinou de
fazer um cortejo na rua, e eu fiquei olhando aquilo, e pensando como
artista a gente tem sonhos de grandes realizações, e eu acho que em
conjunto com os Doutores o PFPJ é minha maior realização enquanto
artista. Quando eu vi aquela moçada toda ali para entrar em cena, e
conhecendo a história de cada um, mesmo, porque a gente fica muito
perto e começa a dividir alguma coisa desta experiência. E quando eu
falei isto, foi uma choradeira deles, e eu também me emocionei muito.
E eu fiquei muito emocionado por eles terem ficado muito
emocionados com esta questão. Não quero louros por nada deste
negócio, mas eu posso olhar e dizer que muita coisa bonita foi feita e
a gente ainda tem muito que fazer. (Heraldo Firmino).
No relato acima, podemos perceber que o trabalho da ONG Doutores da Alegria
transgrediu as fronteiras dos palcos hospitalares, onde se propuseram inicialmente a
atuar. Esses palcos, permanentes espaços de pesquisa na área da palhaçaria, permitiram
que a experiência os ultrapassasse sem deixar de manter com eles a mesma e intensa
conexão. O trabalho desenvolvido pela ONG Doutores da Alegria, assim como o que
acontece em diversas outras organizações do mundo, constitui-se de uma prática
cotidiana que tem como veículo de expressão o corpo, as possibilidades artísticas e a
sensibilidade das atuadoras e dos atuadores.
Segundo a pesquisadora e psicóloga da ONG Doutores da Alegria Morgana
Masetti, a composição do trabalho do palhaço no contexto hospitalar é derivada do “[...]
esforço do homem em se entregar para a única condição possível de existência: a da
relação humana.” (MASETTI, 2013, p. 921). Masetti aborda as relações humanas pelo
viés das boas misturas, proporcionadas através dos bons encontros, ou seja, dos
encontros que ampliam a potência da ação humana (MASETTI, 2001). Para ela, o
palhaço profissional no contexto hospitalar é um promotor de boas misturas, e uma
importante figura na busca pelo que ela chama de “ética da alegria” no espaço
hospitalar:
Porque a alegria nos aproxima da ação. [...] Por meio dela buscamos
os bons encontros, que favoreçam a ampliação de nossa potência e
qualidade de relação. Já não se trata do profissional tecnicamente bem
preparado, capaz de separar sua vida profissional da emocional, mas
daquele que tem a coragem de abandonar o esforço para separá-las,
74
misturando-se a cada novo olhar que encontra. Isso exige desafios do
ponto de vista educativo (MASETTI, 2013, p. 922).
Esses desafios também podem ser pensados no campo das Artes Cênicas, pois
somando o hospital à gama de espaços possíveis para a cena, surgem novos
pressupostos do ponto de vista da atuação. No contexto hospitalar, como vimos, as
palhaças e os palhaços constroem seu percurso através do jogo entre as situações reais e
circunstanciais da vida, deixando-as se misturarem com os olhares que encontram e com
a articulação simultânea de seu repertório artístico, técnico e sensível.
Wellington Nogueira relata que esse trabalho ocorre quando “Eu estou cocriando
uma cena com meu parceiro de cena, que é a criança, em tempo real. Um roteiro com
início, meio e fim, criado em tempo real pela criança e pelo palhaço.” (Wellington
Nogueira). A partir de uma abertura para o outro, artistas, crianças, acompanhantes,
profissionais da saúde e funcionários vivem situações de encontro entre seres humanos
que compõem teatralidades no cotidiano.
Esse jogo do tempo presente, para a pesquisadora Sayad, é calcado no improviso e
exige um preparo aliado ao estado de abertura:
Nós treinamos para o presente, não estamos prontos (no sentido de
acabados, finalizados), mas sim prontos (no sentido de prontidão, de
predisposição a adaptar-se, a transformar-se). Esta noção de presença,
que nos é tão cara, corre o risco de se perder, de ir por água abaixo se
o palhaço acreditar que ele tem que acertar: chegar ao hospital, fazer
algo de muito mágico ou engraçado, mudar o ambiente e sair. Para
transformar o outro é preciso, antes de tudo, transformar-se a si
mesmo. (SAYAD apud. DOUTORES DA ALEGRIA, 2008).
A transformação referida por Sayad refere-se ao aguçar da escuta e da percepção,
necessário à atuação palhacesca hospitalar, uma vez que cada micro acontecimento
cotidiano pode ser mote criativo para uma cena teatral. Wellington Nogueira, criador do
palhaço Dr. Zinho, afirma que o palhaço promove uma ruptura na realidade:
Ao entrar no hospital, sair do espaço sagrado do teatro, para mim, foi
como o que acontece quando acaba a peça e você não tira a
maquiagem e você sai do palco e você se encontra com a plateia no
ponto de ônibus ou no metrô. A vida continua e tudo mais, então para
mim aquilo trouxe todos estes questionamentos e campos de visão
(Wellington Nogueira).
75
Esse teatro sobre o qual se questionou Wellington estava migrando dos palcos
para os hospitais, o que, através da figura palhacesca, propicia a diluição das fronteiras
entre artistas e público. Tal pensamento pode se aproximar novamente das experiências
documentadas no teatro de Jerzy Grotowski. Segundo o professor e pesquisador Robson
Haderchpek, “No Teatro Laboratório de Grotowski o acontecimento teatral é visto como
um ato de comunhão e de co-participação entre o ator e o espectador.”
(HADERCHPEK, 2016, p. 7). Esse ato de entrelaçamento aproxima as colocações de
Grotowski ao trabalho de atuação palhacesca no contexto hospitalar, uma vez que
igualmente valoriza o individual na composição do coletivo.
Habitado pela singularidade dos encontros, no espaço e no tempo do ambiente
hospitalar, palhaças e palhaços percorrem por corredores, quartos e salas, segundo
Wellington Nogueira, “[...] realizando o caminho inverso, eu estou pedindo licença
para entrar na sua vida em um momento de intimidade, existe esta força, este
compromisso.” (Wellington Nogueira).
Ao receber a permissão para entrar, as figuras palhacescas passam a buscar um
elo com a criança, seus acompanhantes, funcionários e equipe médica do hospital. Essa
ligação pode ser capaz de estabelecer uma relação de confiança mútua na qual os seres
em situação de encontro têm a possibilidade de desenvolverem suas potencialidades.
Assim, através da lógica palhacesca e em consonância com os acontecimentos
hospitalares, constituem-se cenas teatrais em tempos reais.
Nos tempos e espaços hospitalares, os menores gestos do cotidiano são materiais
para a composição palhacesca. As trocas entre sutilezas do dia-a-dia e elaborações
teatrais ocorrem, por vezes, de maneira orgânica, e um simples tocar de mãos pode
significar uma cena de poesia, onde os presentes compreendam certo tom de realidade
por trás da máscara palhacesca, e certo toque de palhaçaria na tessitura do cotidiano. O
íntimo contato entre a arte e a vida nos contextos hospitalares exige proximidade,
envolvimento e sensibilidade, como podemos pensar a partir da imagem 10:
76
Figura 10 - Doutora Xaveco Fritza (Val de Carvalho) pegando na mão de um bebê.
Fonte: <https://www.doutoresdaalegria.org.br/blog>. Acesso em 04/09/2016.
A atuação palhacesca contextualizada ao hospital propicia a existência de um
movimento de aproximação entre espectadoras, espectadores e artistas. A situação
apresentada na fotografia não se trata de uma exposição da plateia ou imposição
performática, mas sim de uma troca de saberes e existências, que se estabelece entre as
Artes Cênicas e a natureza da vida. Ao estabelecer um momento de conexão com o
bebê, a palhaça gera experiências que não são necessariamente risíveis, mas que exigem
sensibilidade para perceber o que pode proporcionar o bem estar nos palcos
hospitalares. No encontro com o bebê, possivelmente as habilidades circenses, truques
de alto desempenho ou brilhantes interpretações teatrais talvez ficassem aquém de um
simples toque de mãos acompanhado de um olhar inteiro por trás de um nariz vermelho.
Através de um engendro alquímico que mescla sensibilidades e técnicas cênicas,
geram-se no corpo das palhaças e dos palhaços que atuam em palcos hospitalares
experiências e saberes que ultrapassam as fronteiras da racionalidade, que estão
enraizadas na pele e no coração. A partir desses registros corpóreos, passaremos a
conhecer algumas memórias sobre a palhaçaria hospitalar. No capítulo que se segue,
terão vez entrevistas que abordam vivências e experiências no âmbito da palhaçaria
hospitalar, cujos dados serão interpretados a partir de uma metodologia fenomenológica.
77
4 CAMPO DE EXPERIÊNCIAS
Merleau-Ponty considera que “As coisas estão ali, de pé, insistentes, esfolando o
olhar com suas arestas.” (MERLEAU-PONTY, 1975, p. 450). Tal pensamento nos leva
a refletir sobre o campo das experiências, em que por meio do contato se dão os
conhecimentos sobre o mundo. Antes da reflexão, as coisas encontram-se situadas no
mundo, apresentando-se tal como são. Basta que nosso olhar se volte para elas e perceba
seus contornos. Esse olhar, porém, deve ser constituído a partir de uma atitude
interrogativa, sem inferir significações ao fenômeno observado (MERLEAU-PONTY,
2006).
Ao investigar referências bibliográficas aliadas às experiências vividas por
palhaças e palhaços profissionais, é possível compreender que essas existências, bem
como suas características técnicas, não estão puramente vinculadas ao campo reflexivo,
mas são permeadas pelo contato com o corpo e com o coração dos artistas que as
vivenciam, bem como com o dos espectadores que com eles entram em contato. Para a
pesquisadora Márcia Strazzacappa, aquilo “[...] que me toca o corpo, o coração registra
e o que é falado ao coração, mesmo que em segredo, o corpo escuta.”
(STRAZZACAPA, 1994, s.p.). Essa colocação reflete uma impossibilidade de
separação das técnicas corpóreas com a sensibilidade de cada artista.
No contexto da atuação palhacesca encontra-se, ainda, a inviabilidade de se
aplicar técnicas de maneira arbitrária ou estanque. É necessário constituir uma conexão
entre o corpo e o coração daqueles que vivem no tempo e no espaço presentes os
encontros teatrais.
Essa atuação registra recordações significativas no processo de composição
palhacesca, que no contexto de nossa investigação podem gerar saberes e sensibilidades.
Para Grotowski, “[...] as recordações são sempre físicas. Foi a nossa pele que não
esqueceu, nossos olhos que não esqueceram. O que escutamos pode ainda ressoar
dentro de nós.” (GROTOWSKI, 1971, p. 172). Ou seja, perpetuam-se no corpo as
recordações. Nessa mesma perspectiva, o escritor Eduardo Galeano lembra que o verbo
recordar vem do “[...] latim re-cordis, voltar a passar pelo coração.” (GALEANO, 2015,
p. 11), abarcando um campo para além da racionalidade e vinculado às sensibilidades
corpóreas.
78
Se tudo aquilo que vivemos passa pelo corpo e pelo coração, é fulcral percorrer
por essas rotas para investigar o fenômeno da atuação palhacesca hospitalar. Sendo
assim, dialogo, nas linhas que se seguem, com algumas experiências vividas e
compartilhadas através das memórias de oito entrevistados, escolhidos por terem vivido
experiências no âmbito da palhaçaria e especialmente da palhaçaria hospitalar. O
objetivo do presente capítulo, portanto, é trazer de maneira mais explícita os relatos das
entrevistadas e dos entrevistados. Tais relatos trazem importantes vivências do campo
da atuação cênica hospitalar, proporcionando também uma profunda possibilidade de
investigação do campo das experiências.
Os entrevistados, sete membros e um ex-membro da ONG Doutores da Alegria,
são: Wellington Nogueira (ator, palhaço e fundador dos Doutores da Alegria), que
cedeu uma entrevista de 58 minutos na sede dos Doutores da Alegria (SP), no dia 31 de
agosto de 2015; Heraldo Firmino (palhaço e coordenador da Escola de Palhaços dos
Doutores da Alegria, na ONG desde 1998), que cedeu uma entrevista de 42 minutos no
dia 18 de setembro de 2015, através da plataforma digital do Skype; Raul Figueiredo
(palhaço, músico, formador, nos Doutores da Alegria desde 1995), cuja entrevista,
realizada no dia 22 de setembro de 2015, durou cerca de 50 minutos e também foi
realizada através da plataforma do Skype; Roberta Calza (atriz, palhaça e formadora,
compõe o elenco dos Doutores da Alegria desde 2002), que foi entrevistada durante
cerca de 30 minutos no dia 18 de setembro via Skype; Marcelo Marcon (palhaço,
mágico e formador, na ONG desde 2010), que foi entrevistado presencialmente ao
longo de 49 minutos no dia 1 de setembro de 2015, na sede dos Doutores da Alegria
(SP); Du Circo (palhaço, malabarista e formador, nos Doutores da Alegria desde 2006),
que entregou um questionário respondido para esta pesquisa no dia 29 de setembro de
2015; Luciana Viacava (atriz, palhaça e formadora, profissional da ONG desde 2006),
que respondeu a algumas questões através de um questionário poucos dias antes de ter
sido entrevistada ao longo de 40 minutos, no dia 28 de setembro de 2015, via Skype.
Essas entrevistas foram, com exceção daquela em formato de questionário, gravadas em
áudio e integralmente transcritas.
A oitava entrevista foi realizada em junho de 2016, através de um questionário
respondido pelo palhaço Ésio Magalhães, que já trabalhou no elenco da ONG Doutores
da Alegria, entre 1998 e 2003, e atualmente se destaca artisticamente no Brasil e em
outros países. Os sujeitos entrevistados foram selecionados pelo fato de terem
79
experiências vividas nos palcos convencionais e em hospitais, sendo que todos os
referidos profissionais cederam os direitos de utilização do conteúdo das entrevistas
nesta pesquisa.
Optei por realizar entrevistas com membros da ONG Doutores da Alegria por ser
essa uma referência tanto nacional quanto internacional na formação de palhaças e de
palhaços em hospitais do Brasil ao longo de seus vinte e seis anos de atuação
ininterrupta em palcos hospitalares. Nesse sentido, além da pesquisa qualitativa
realizada a partir das entrevistas, também realizei uma pesquisa documental sobre os
Doutores da Alegria. Trago descrições encontradas no blog dos Doutores da Alegria, no
livro Soluções de Palhaços, de Morgana Masetti, e na coleção Boca Larga, composta
por revistas sobre a palhaçaria publicadas pelos Doutores da Alegria. Aqui também
figuram relatos de experiências minhas enquanto palhaça inserida no hospital,
experiências tais que voltaram a ser sentidas em momentos de escrita e reflexão.
Como mencionado anteriormente, participei como aluna da Escola dos Doutores
da Alegria, frequentando diariamente a sede da ONG ao longo dos dois anos do curso
no Programa de Formação de Palhaços para Jovens. A partir dessa experiência, tive a
oportunidade de conviver e de me relacionar com profissionais da ONG, tecendo
diálogos sobre a atuação palhacesca.
Desses diálogos e experiências de pesquisa teatral surgiu a vontade de vivenciar a
atuação palhacesca no contexto hospitalar. Ao entrar no elenco da ONG Esparatrapo,
percebi diferenças bastante significativas em relação à estrutura observada nos Doutores
da Alegria. A ONG Esparatrapo apresentava, naquele ano de 2012, indícios dos
problemas formativos, organizacionais, administrativos e financeiros que a obrigariam,
em 2015, a fechar as portas de maneira definitiva.
Apesar dos problemas citados, a ONG Esparatrapo contava com uma
aconchegante equipe artística, composta por profissionais extremamente dedicados, o
que resultava em uma ótima relação de confiança com os hospitais parceiros. Em função
dos esforços do elenco de artistas, a ONG percorreu diversos palcos hospitalares de São
Paulo e do Nordeste brasileiro, fixando-se por um ano na cidade de Natal. Entre os
hospitais, tive a oportunidade de trabalhar como palhaça no Hospital das Clínicas de
São Paulo; na Assistência à Criança Deficiente (AACD) de São Paulo; no Hospital
Infantil Cândido Fontoura, de São Paulo; no Hospital São Camilo de Balsas, no
Maranhão; no Hospital Infantil de Teresina, no Piauí e, por fim, no Hospital Infantil
80
Varela Santiago, de Natal (RN).
Desse modo, a partir do campo das experiências de profissionais que atuaram e
atuam em palcos hospitalares, somaram-se os materiais que compõem este capítulo. O
que registram, com base em suas experiências vividas, as palhaças e os palhaços que
transfiguram espaços hospitalares em palcos cênicos? Quais são suas vivências? No
intuito de tentar compreender essas questões, tem início agora uma jornada pelas
sensações, percepções e saberes dos artistas que compõem os palcos hospitalares. Com
base, portanto, nos procedimentos metodológicos de descrição e de redução
fenomenológicas, bem como no diálogo com as unidades de significados encontradas
nos registros de experiências, procuro elaborar uma compreensão fenomenológica sobre
a atuação de palhaças e palhaços em palcos hospitalares.
Nesses registros, a tríade composta pelo jogo cênico, pelo treinamento pessoal
mesclado com as sensibilidades de cada artista e pela abertura para o encontro gerou as
unidades de significado encontradas recorrentemente no conteúdo das entrevistas. Após
trazer uma discussão metodológica voltada para a Fenomenologia, abordo essas três
unidades no capítulo presente, subdivididas nos itens 4.1. e 4.2. do trabalho.
Caminhando nessa direção, compactuo com Merleau-Ponty, quando este afirma
que o mundo “[...] não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto
ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é
inesgotável.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.14). A partir de minhas vivências,
aberturas e comunicações com o mundo da palhaçaria hospitalar, concretizou-se um
ponto de partida para a investigação, sempre aberto para intersecções com os saberes e
sensibilidades de outros seres humanos que igualmente experimentaram vivências nesse
âmbito.
As figuras palhacescas contextualizadas ao hospital, como pude perceber ao
tornar-me uma delas, compõem um campo de atuação onde se valoriza a singularidade
de cada artista, suas experiências vividas, assim como suas intersecções com as
vivências de cada espectadora e espectador.
Para Merleau-Ponty,
[...] um romance, um poema, um quadro, uma peça musical são
indivíduos, quer dizer, seres em que não se pode distinguir a
expressão do expresso, cujo sentido só é acessível por um contato
direto, e que irradiam sua significação sem abandonar seu lugar
81
temporal e espacial. É nesse sentido que nosso corpo é comparável à
obra de arte (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 209-210).
O corpo, para o filósofo, é tido como obra de arte aberta e inacabada
(NÓBREGA, 2015). Podemos aproximar esse pensamento à arte da palhaçaria no
contexto hospitalar, uma vez que as figuras palhacescas expressam aquilo que elas são
tendo como ponto de partida seu contato com o mundo. No hospital não há uma
estrutura de ação linear, de acontecimentos preestabelecidos, todas as cenas teatrais são
criadas a partir da relação com o tempo e espaço em que ocorrem.
Segundo Nóbrega, a filosofia de Merleau-Ponty “[...] habita o sensível, e pensa o
mundo a partir do contato com o espaço, o tempo, a presença e a animação do corpo
através do movimento que transforma o mundo em obra de pensamento, obra de
linguagem, obra de arte.” (NÓBREGA, 2015, p. 98). Essa abertura para o inacabamento
do mundo pressupõe indubitavelmente uma abertura para outras existências, igualmente
inacabadas e em eterno processo de construção.
Merleau-Ponty questiona: “[...] enfim, o que é viver a unidade do objeto ou do
sujeito, senão fazê-la?” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.320). Ao corpo palhacesco que
habita o espaço hospitalar, viver é a ação de abrir-se para o outro, transgredir com ele a
lógica cotidiana em busca de uma construção teatral. Para o filósofo, ainda, apenas “[...]
posso compreender a função do corpo vivo realizando-a eu mesmo e na medida em que
sou um corpo que se levanta em direção ao mundo.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.
114).
Aproximamo-nos assim do mundo vivido, que, segundo as proposições de
Merleau-Ponty, considera o sentir no processo cognitivo e compreende nosso olhar
como sempre posicionado para perceber o mundo, para misturar-se com ele
(MERLEAU-PONTY, 2006). Como esclarece Nóbrega, o filósofo francês intentou “[...]
atingir o espaço sensível do coração, aquele onde estamos situados, e que é heterogêneo,
tendo relação com nossas particularidades corporais, nossos desejos, preferências,
memórias. É preciso então, questionar o dogmatismo, a coerência do mundo [...]”
(NÓBREGA, 2015, p. 101).
Em consonância com o pensamento de Merleau-Ponty, alio-me às palhaças e aos
palhaços como questionadores primordiais, propositores de novas coerências no mundo.
Através das figuras palhacescas contextualizadas no hospital, é possível visualizar um
espaço heterogêneo, posto em relação, passível de ser habitado por tudo aquilo que foge
82
ao cotidiano linear, capaz de dispor no mundo outras coerências concebíveis, invertendo
certa lógica enraizada de pensamento. Essa lógica, no contexto de Merleau-Ponty, é
uma proposição frente ao racionalismo, psicologismo e cientificismo predominantes em
sua época.
Para o autor, a experiência vivida sempre está presente e é passível de construir
saberes, como um horizonte permanentemente em posição de ser reaberto, em ato de
recordação. Esse ato, no campo fenomenológico, é tomado como tema de
conhecimento, percebendo-se, porém, que ele pode deixar fatos à margem das
recordações. Merleau-Ponty atenta de igual modo para o fato de que esse a
rememoração fornece, sempre que desencadeado, “[...] uma atmosfera e uma
significação presentes.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 47), motivada pelo estado
presente de quem rememora. A rememoração sempre está imersa em uma situação
temporal, de onde, segundo o filósofo, jorram “[...] de uma constelação de dados um
sentido imanente sem o qual nenhum apelo às recordações seria possível.”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 47).
Para Merleau-Ponty, uma lembrança é capaz de inscrever-se no ser como um
bloco: “Assim um grande livro, uma grande peça de teatro, um poema está em minha
lembrança como um bloco. Posso perfeitamente, revivendo a leitura ou a representação,
lembrar-me de tal momento, de tal palavra, de tal circunstância, de tal mudança de
ação.” (MERLEAU-PONTY, 2007, p. 38). Esses blocos abarcam os significados, em
diferentes indivíduos, que compreendem ações, gestos, palavras de distintas maneiras.
Sem a necessidade da descrição minuciosa de detalhes, a memória permanece,
segundo o autor, “[...] tão singular e evidente como uma coisa viva.” (MERLEAU-
PONTY, 2007, p. 38). Antes de um recorte estanque do passado, a memória é acessada
enquanto fluxo, condizente com os conjuntos de significações que com ela fazem-se
presentes em cada momento.
Esses conjuntos não fragmentados de experiências vividas podem ser pensados
segundo a proposição do filósofo, pois quando um diálogo entre duas pessoas se dá de
maneira justa, de modo que os sujeitos saibam exprimir-se e serem compreendidos,
“[...] os signos são imediatamente esquecidos, só permanece o sentido, e a perfeição da
linguagem é de fato passar despercebida.” (MERLEAU-PONTY, 2007, p. 38). Do
mesmo modo como triunfa a linguagem ao secundarizar-se em prol da expressão e da
compreensão do pensamento, sobrepõe-se a memória ao ser compreendida como
83
conjunto de significações, e não como pequenas réstias estanques do passado.
No presente contexto, o sentido do encontro cênico prioriza-se em relação à
atuação palhacesca hospitalar, sua mediadora. As descrições de experiências figuram
aqui como diálogos com as percepções e recordações de palhaças e palhaços que
descortinam palcos hospitalares, valorizando a sensibilidade do corpo na composição do
conhecimento.
Concordo ainda com Merleau-Ponty, que afirma não haver outra forma de
conhecer os segredos do mundo, a não ser pelo contato com ele: a partir da experiência
compreende-se o mundo (MERLEAU-PONTY, 2006; 2007; 2011). Situadas em
determinados tempo e espaço, essas experiências perceptivas, como discorre o filósofo,
[...] se encadeiam, se motivam e se implicam umas às outras, a
percepção do mundo é apenas uma dilatação de meu campo de
presença, ela não transcende suas estruturas essenciais, aqui o corpo
permanece sempre agente e nunca se torna objeto (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 408).
Esse corpo deslocado de uma compreensão mecanicista, e não compreendido
enquanto puro objeto, mas sim como nosso meio de habitar o mundo, para o filósofo,
retém uma experiência que “[...] está aquém da afirmação e da negação, aquém do juízo
– opiniões críticas, operações ulteriores -, é mais velha que qualquer opinião [...].”
(MERLEAU-PONTY, 2000, p. 37).
As experiências, assim, são como uma espécie de comunhão ou comunicação,
enlace de nosso corpo com o mundo, habilitando-o e agindo nele. Como diz o filósofo,
“[...] a consciência do corpo invade o corpo, a alma se espalha em todas as suas partes
[...].” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.114). O ato perceptivo da experiência, nesse
âmbito, trata-se de um olhar em fluxo, plenamente em contato com o mundo, que para
ele caminha.
Assim como propôs Merleau-Ponty, pensa-se o ser não como simples objeto
mundano, mas como forma de nossa comunicação com o mundo, e vê-se o mundo não
apenas como uma conjunção de objetos, mas sim como um “[...] horizonte latente de
nossa experiência, presente sem cessar, ele também, antes de todo o pensamento
determinante.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 136). Nesse mundo que preexiste ao
pensamento, vasto horizonte de nossas experiências, desenvolvem-se os encontros
humanos.
84
Esses encontros representam, em nosso contexto, a busca por uma efetiva abertura
para o outro, que se dá a partir da composição de uma cena teatral viva, criada sob as
pistas do cotidiano hospitalar. O outro é capaz de penetrar na figura palhacesca a ponto
de assegurar-lhe novas perspectivas, como ilustra Merleau-Ponty: “[...] esse outro que
me invade é todo feito de minha substância: suas cores, sua dor, seu mundo,
precisamente enquanto seus, como os concebia eu senão a partir das cores que vejo, das
dores que tive, do mundo em que vivo?” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 22). A partir de
nossas experiências é que podemos alcançar a dimensão do outro, tomando por base os
espectros exteriores, visíveis e em zona de convergência com nosso corpo.
Ao viverem momentos de abertura para o outro, mesmo que isso implique lidar
com suas fragilidades, as figuras palhacescas profissionais, contextualizadas no
hospital, passam por uma ampla gama de experiências, desenvolvendo a habilidade de
articular seus saberes ao sabor de cada encontro hospitalar, na ocasião do acontecimento
cênico. O exercício de atuação dessas figuras assemelha-se com o expresso no
pensamento de Merleau-Ponty, quando afirma que: “Meu corpo toma posse do tempo,
ele faz um passado e um futuro existirem para um presente, ele não é uma coisa, ele faz
o tempo em lugar de padecê-lo.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.322).
Para o filósofo, é graças ao tempo, do qual nosso corpo se apossa, que temos “[...]
um encaixe e uma retomada das experiências anteriores nas experiências ulteriores, mas
em parte alguma uma posse absoluta de mim por mim, já que o vazio do futuro se
preenche sempre com um novo presente.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.323). Desse
modo, o mais nu dos artistas (DIMITRI, 1982), ao fazer do hospital um palco de
encontros, pressupõe uma abertura, um vazio enquanto espaço de criação que caminha
em direção ao outro.
O corpo que faz o tempo, e especialmente o corpo palhacesco e situado em um
espaço hospitalar, viveu em seu passado uma rotina de treinamentos específicos e
vislumbra em um futuro próximo um ato de jogo artístico mediado pela abertura para a
potência da criança hospitalizada (e/ou seus acompanhantes, equipe médica e
funcionários). Articulando o passado e o futuro em existência, as palhaças e os palhaços
vivenciam um presente de maneira ativa, construindo-o a partir do jogo, da abertura
para o outro e de um treinamento pessoal específico, aliado às sensibilidades de cada
artista.
85
4.1. JOGO DE TÉCNICAS E SENSIBILIDADES
Eu estava ensaiando um espetáculo, tocou meu celular, atendi e
alguém falou:
-Por favor, o Doutor Mingau?
Aí eu dei risada e falei:
-Quem está falando?
-Aqui é do Hospital das Clínicas, eu queria falar com o Dr. Mingau.
Aí eu falei (modificando a voz):
-É ele que está falando.
-Oi eu sou a Val aqui do Hospital das Clínicas, da parte
administrativa, e a gente está entrando em contato com você por que
tem o I., menino de quatro anos que recebeu alta e não quer ir
embora, falou que você é o médico dele, você não tem como vir aqui?
Era um dia que eu não podia, estava no meio do ensaio, então ela
perguntou se eu poderia falar com ele no telefone mesmo. E falei que
claro. Aí ela passou para ele e ouvi aquela vozinha (carinhosamente).
-Oi Doutor Mingau?
-Oi I. Tudo bem?
E fui conversando com ele até que ele me perguntou:
- Onde você está?
-Eu estou dentro do guarda roupa, preso em um cabide para não
amassar, e me trancaram, eu não consigo sair. Já pedi pra chamar o
chaveiro e até agora nada. Mas eu fiquei sabendo que você recebeu
alta, e não quer ir embora. Vamos fazer o seguinte, vou fazer um
exame pelo telefone para você poder ir embora para casa. Fala 33.
Aí ele falou “33”, eu falei para ele falar 33 vezes 33, aí ele falou:
-33 vezes 33.
-Pronto! Você está de alta! Pode ir embora para casa! E pode falar
para os seguranças que quem te deixou ir embora foi o Doutor
Mingau (Marcelo Marcon).
Na descrição de experiência relatada acima, destacada da entrevista concedida
pelo palhaço Marcelo Marcon, o Doutor Mingau, pode-se identificar o estabelecimento
de uma relação entre um palhaço e uma criança. Mesmo que por telefone, essa relação
aproxima-se da constituição de um jogo teatral, no qual se percebe a presença de
técnicas cênicas aliadas com a sensibilidade do artista e da equipe do hospital.
Inicialmente vale buscar a compreensão da palavra “jogo”, orientada pelos
pensamentos do pesquisador Johan Huizinga, segundo o qual:
Numa tentativa de resumir as características do jogo, poderíamos
considerá-lo uma atividade livre, conscientemente tomada como
não séria e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de
absorver o jogador de maneira intensa e total (HUIZINGA, 2014,
p.16).
86
Concordando com este pensamento, aproximo-o do que ocorre a partir do
encontro entre as figuras palhacescas e os públicos hospitalares. Na descrição feita
por Marcelo, por exemplo, podemos perceber a constituição de um jogo entre o
palhaço e o menino na medida em que nessa relação encontramos a liberdade do
espectador e do ator; trata-se de uma atividade tomada como diferente da vida
cotidiana, que, por fim, é capaz de manter a atenção dos jogadores de maneira
intensa.
No jogo proposto em contextos hospitalares, as palhaças e os palhaços
revelam ações e espaços desconhecidos, aliando sua subversão a um universo
hospitalar fortemente atrelado ao mundo de jogo da criança.
Para o pesquisador Tiago Cassoli,
Os jogos cênicos realizados pelos palhaços acrescentam uma novidade
na rotina hospitalar. Esta começa a se compor também por um
dispositivo que traz à tona, ou confere contornos, a conteúdos internos
do indivíduo. Nesse sentido tais jogos acabam por emergir como uma
tática de comunicação entre as pessoas que frequentam este
estabelecimento, pois a intervenção convoca os indivíduos a expressar
seus conteúdos internos (CASSOLI, 2012, p. 155).
O prazer de brincar com as figuras palhacescas, muitas vezes, pode contrastar com
sentimentos e situações vivenciadas no contexto hospitalar, onde a liberdade fica restrita
e os conteúdos internos por vezes são suprimidos. Médicos e enfermeiras muitas vezes
entram nos leitos a qualquer momento para aplicar remédios, realizar exames e
procedimentos sobre o corpo da criança, que acaba perdendo o domínio sobre si, sobre
suas vontades, sobre sua liberdade de escolha. Em situações de jogo com as figuras
palhacescas, as crianças passam também por momentos de revelação, onde arriscam
vivenciar a lógica dos inexplorados universos de suas vontades e, consequentemente, do
teatro.
Sobre o universo das crianças, concordo com as colocações feitas pelas
educadoras Karenine Porpino e Ruth Lima, quando dizem que:
Crianças são sujeitos históricos, criadores de cultura, seres sociais que
vivem e possuem um papel no grupo social, cidadãos de direitos que
apresentam formas singulares de viver e ver a realidade, seres
inteligentes, capazes de interagir ativamente por via de diferentes
linguagens – dança, música, teatro, artes plásticas entre outras
(PORPINO e LIMA, 2011 apud JALLES e ARAÚJO, 2011, p. 117).
87
As crianças, repletas de peculiaridades e possibilidades de interação, revelam-se
parceiras bastante próximas às figuras palhacescas, já que entregam-se ao prazer do
jogo com grande intensidade. Na descrição que se segue, encontramos um diálogo entre
uma palhaça e quatro crianças, onde é possível perceber a proximidade desses seres e a
naturalidade com que jogam entre a vida cotidiana e a fantasia:
Quebra-quebra no Pronto Socorro (PS):
- (Palhaça) Doutora Juca: Nossa! Ele quebrou o braço! E você? Já
quebrou alguma coisa?
- Criança 1: Já, a perna.
- Criança 2: Eu já quebrei o pé.
- Doutora Juca: E você?
- Criança 3: Eu quebrei um copo lá em casa.
- Criança 4: Eu quebro o vento (e começa a agitar os braços no ar)
(DOUTORES DA ALEGRIA, 2008, p. 130).
Percebe-se, a partir das experiências, seja nas apreendidas nos palcos
hospitalares, seja nas encontradas nas entrevistas, que a maioria dos hospitais onde a
atuação palhacesca se instaura estão repletos de seres infantis. As entrevistadas e os
entrevistados relataram de forma recorrente seu contato com as crianças, aproximando
esse universo do universo da atuação palhacesca.
Aliadas à força criativa da criança, as figuras palhacescas são capazes de revelar
novas situações a partir do cotidiano, através de uma interação que ocorre de modo
diferente do habitual, e que no contexto hospitalar é uma das poucas coisas sobre as
quais a criança pode decidir. A criança sabe que na relação com as figuras palhacescas
sua decisão será respeitada e aceita, pois um dos principais propósitos da presença
desses seres no hospital é gerar o bem estar de seus espectadores.
Du Circo aponta, nesse sentido, que é necessário sempre “[...] saber sair se a
criança não te aceita naquele momento, perceber se a família está com muitos
problemas e não está a fim de palhaçada.” (Du Circo). A percepção espacial e temporal
do artista deve buscar compreender os sinais oferecidos pelos espectadores na
composição de seu jogo teatral.
Pelo fato de a interação com as figuras palhacescas ocorrer respeitando-se a
liberdade de escolha da criança, o que difere de outras práticas realizadas no domínio
hospitalar, a criança pode se sentir valorizada e desejar empregar seu potencial decisivo.
Quando uma criança diz não e os palhaços vão-se embora, há uma ruptura na lógica
cotidiana de modo que suas possibilidades de escolha são ampliadas. Sabendo que será
88
respeitada em suas decisões, a criança muitas vezes estabelece uma relação de domínio,
exercendo um papel de autoridade sobre as figuras palhacescas.
No exemplo abaixo, que descreve um jogo cênico entre uma palhaça e uma
criança ocorrido no hospital, a primeira, a partir da percepção do seu entorno, encontrou
no “não” inicial da criança havia margem para a tentativa de um jogo. Nesse caso, a
negativa inicial significou um convite à brincadeira:
Ao perguntar se podia entrar em um quarto de hospital recebi imenso
não de um menino com cerca de cinco anos de idade. Acreditei ser
aquele não tão amplo quanto propositivo, e para mim soou como
convite para uma brincadeira, um jogo do NÃO. Ao concordar em ir
embora, NÃO consegui fechar a porta pelo lado de fora, ela se
chocou contra meu nariz. Percebi escapar um risinho e, animada,
perguntei novamente se podia entrar:
-NÃO!
Na segunda tentativa de fechar a porta, minha mão é que NÃO
conseguiu sair. Ao tentar retirá-la fiquei presa do lado de dentro.
Envergonhada, me escondi atrás de um porta-soro. O menino
contestou com toda a certeza:
-NÃO! Eu te vejo, palhaça!
Apavorada, tentava me esconder em outros lugares pouco ou muito
secretos, até que, cansada de desaparecer, decidi fazer outros objetos
caírem no desaparecimento, e reaparecerem em outros lugares, até
mesmo:
-Na orelha da minha mãe?! NÃÃÃÃO!
Caímos todos na gargalhada. Ao despedir-me e tentar ir embora,
NÃO consegui sair. Amassei o nariz na porta, prendi a mão e fui
arremessada para o lado de fora do quarto. Perguntei de fora se
podia voltar outro dia, caso ele ainda estivesse ali. Imediatamente
balançaram-se as cabeças de mãe e filho, dizendo que sim. Ao fechar
a porta, ainda ouvi em alto e bom som:
-NÃÃÃÃO (Descrição da autora, ano de 2015).
O jogo presenciado na descrição acima ocorreu a partir do respeito à liberdade da
criança, uma vez que as palhaçadas tiveram como mote de criação a compreensão de
que a palhaça tinha de ir embora, em contraste com a torpeza de suas ações, que a
conduziam para dentro do quarto. A partir desse pretexto, surgido da proposta da
criança: a negação. Como palhaça, participei de uma relação com a criança, onde ela
exerceu sua autoridade. Para ela este encontro foi prazeroso por se tratar de um jogo que
transgrediu as relações hierárquicas do cotidiano, e permitiu que ela adentrasse em
outras esfera de comunicação.
Huizinga considera que: “Antes de mais nada, o jogo é uma atividade voluntária
[...] as crianças e os animais brincam porque gostam de brincar, e é precisamente em tal
89
fato que reside sua liberdade.” (HUIZINGA, 2014, p.10). No contexto hospitalar,
diferentemente da medicação, do exame, dos procedimentos médicos, o jogo não pode
ser imposto, a criança antes de tudo decide jogar, entregar-se para a brincadeira.
Conforme o autor, em situação de jogo:
A criança representa alguma coisa diferente, ou mais bela, ou mais
nobre, ou mais perigosa do que habitualmente é. Finge ser um
príncipe, um papai, uma bruxa malvada ou um tigre. A criança fica
literalmente transportada de prazer, superando-se a si mesma a tal
ponto que quase chega a acreditar que realmente é esta ou aquela
coisa, sem, contudo perder o sentido da realidade habitual. Mais do
que uma realidade falsa, sua representação é a realização de uma
aparência: é imaginação, no sentido original do termo (HUIZINGA,
2014, p.17).
Enveredando no universo imaginativo da criança, e tomando-o por real, as figuras
palhacescas agem como uma espécie de sacerdotes e sacerdotisas, realizando um ritual
de passagem para outras dimensões de existência, fundadas na percepção da criança, de
sua própria e dos demais transeuntes do contexto hospitalar, que também se abrem para
novas lógicas de relação. Esse processo, para Ana Achcar, se concretiza:
Pois o palhaço quando traz no seu corpo, e na sua ação, o indício de
uma temporalidade e de um lugar diferente daqueles nos quais ele se
encontra, abre um mundo novo no ambiente hospitalar: propõe outra
lógica, redimensiona lugares, desestabiliza relações estruturadas de
poder, estimula a comunicação e chama a atenção para a ligação entre
corpo e indivíduo, entre forma e conteúdo, entre exterior e interior,
porque movimenta imaginação e crença numa perspectiva física,
concreta (ACHCAR, 2007, p. 25-26).
A partir de sua experiência, Ésio Magalhães tece considerações que caminham
nesse sentido. Para ele, o palhaço “[...] de certa forma, humaniza as relações, uma vez
que os papéis se transformam e o imaginário vem à tona para fazer o paciente virar
médico, o médico assistente e o acompanhante alguém que precisa de cuidados para
tirar a água do joelho...” (Ésio Magalhães). O jogo proposto pelas figuras palhacescas,
para Ésio, “[...] alivia tensões, deixa mais leve o ambiente, pois traz momentos de
alegria, em que o foco não está na enfermidade e sim no encontro entre as pessoas e o
palhaço.” (Ésio Magalhães).
No contexto hospitalar as figuras palhacescas realizam um movimento distinto
daquele da vida cotidiana, como diz Achcar: “O palhaço se dirige ao que é saudável
90
numa criança que está doente, no intuito de manter vivas as suas possibilidades de criar,
de sonhar, de rir.” (ACHCAR, 2007, p. 24). Na imagem 11, podemos perceber um
momento de conexão entre a palhaça e a menina no corredor hospitalar.
Figura 11 - Doutora Lola (Luciana Viacava) no corredor hospitalar.
Fonte: <doutoresdaalegria.com.br> Acesso em 09/08/2016.
O encontro registrado na imagem acima demonstra a abertura criada entre a
palhaça e a criança, como ocorre com tantas outras pessoas. A arte manifesta pelas
palhaças e pelos palhaços, para a autora, é capaz de acionar “[...] processos criativos
carregados de uma liberdade interior inexplicável e com enorme poder de transformação
da realidade exterior.” (ACHCAR, 2007, p. 190).
Ao penetrarem na lógica de ação proposta pelas figuras palhacescas, as crianças
entregam-se ao movimento de reverter qualquer acontecimento em jogo, em
brincadeira. Por vezes deixando-se afastar, mesmo que por breves momentos, da
atmosfera da doença ou dos problemas que as conduziram ao contexto hospitalar, as
crianças podem acessar uma realidade distinta, conectada com as Artes Cênicas, a
exemplo do visto na imagem.
91
Segundo Huizinga, “Em toda a parte encontramos presente o jogo, como uma
qualidade de ação bem determinada e distinta da vida comum.” (HUIZINGA, 2014,
p.6). Para o autor, “[...] o jogo não é vida corrente nem vida real. Pelo contrário, trata-se
de uma evasão da vida real para uma esfera temporária de atividade com orientação
própria.” (HUIZINGA, 2014, p.11).
As crianças, seus acompanhantes, a equipe médica e os funcionários presentes
no contexto hospitalar muitas vezes anseiam por momentos em que seja possível agir
fora dos padrões da realidade, ter a opção de aliviar a tensão durante breves instantes.
Essa possibilidade é ofertada pelo jogo palhacesco quando ele propõe a constituição de
uma esfera de atividade temporária, que se oriente de maneira própria.
Em convergência com esse pensamento, é válido explorar um conceito
apresentado em 2012 pela pesquisadora sueca Lotta Linge, tratando da criação de uma
“área mágica segura”, criada a partir do encontro de palhaças e palhaços com crianças
hospitalizadas. Essa “área mágica segura” configura-se, para a pesquisadora, como um
espaço simbólico onde coabitam a fantasia e a realidade (LINGE, 2012).
Esse espaço orientado pelas lógicas da criança e das figuras palhacescas, para a
autora, faz-se através da escuta que uma existência obtém com a outra, tendo em vista o
desenvolvimento de uma relação de confiança e espontaneidade que transporte ambos
para essa “área mágica segura”, onde todos são protagonistas do jogo cênico.
Para realizar essa proposição, as figuras palhacescas necessitam de um preparo
técnico e sensível, capaz de habilitá-las a lidar com as situações hospitalares de
encontro, que se dão em tempo real. Uma vez instaurada a situação de jogo, encaminha-
se para seu desenvolvimento e pela busca de um desfecho coerente com a lógica criada.
Para Huizinga,
O jogo tem, por natureza, um ambiente instável. A qualquer momento
é possível à vida quotidiana reafirmar seus direitos, seja devido a um
impacto exterior, que venha interromper o jogo, ou devido a uma
quebra das regras, ou então do interior, devido ao afrouxamento do
espirito do jogo, a uma desilusão, um desencanto (HUIZINGA, 2014,
p.24).
Visando o preparo para a instabilidade do jogo em um contexto em que diversas
são as interrupções surgidas do cotidiano externo, as figuras palhacescas
impreterivelmente passam por um processo de treinamento específico, individual,
92
coletivo ou a mescla de ambos. Esse treinamento pessoal conduz a uma técnica pessoal
fundada na sensibilidade de cada artista. A qualidade do jogo intermediado pela arte da
palhaçaria ao longo do encontro entre seres humanos contextualizados no hospital faz
com que o jogo se fixe de maneira imaterial naqueles que dele participam. Acerca do
tempo no jogo, reflete Huizinga:
Joga-se até que se chegue a um certo fim. Enquanto está
decorrendo, tudo é movimento, mudança, alternância, secessão,
associação, separação. E há, diretamente ligada à sua limitação no
tempo, uma outra característica interessante do jogo, a de se fixar
imediatamente como fenômeno cultural. Mesmo depois de o jogo
ter chegado ao fim, ele permanece como uma criação nova do
espírito, um tesouro a ser conservado pela memória (HUIZINGA,
2014, p.12-13).
Ao passar por um processo de treinamento artístico, as palhaças e os palhaços
preparam-se para o jogo nos contextos hospitalares, onde urgem as mudanças e
movimentos no entorno da vida e da morte. Esse preparo, para o pesquisador Demian
Reis, diz respeito à constituição de um corpo cênico, que envolve “[...] a prática de
exercícios específicos, vivências corporais, técnicas corporais, o treinamento e a
pesquisa; todas estas experiências confluem para o desenvolvimento de uma memória,
consciência e vida muscular próprias de e para cada ator.” (REIS, 1999, p. 63).
Porém, como coloca Ésio Magalhães, o treinamento por si não basta, é necessário
reafirmar “[...] a ideia do exercício, creio que o profissional se define não pela sua
formação somente, mas muito mais pelas experiências que tem à medida que exerce seu
trabalho em contato com o público para o qual ele se destina.” (Ésio Magalhães).
Assim, um jogo bem realizado, isto é, onde é implícita a liberdade dos jogadores,
propicia a criação de uma situação que foge aos parâmetros do cotidiano e é capaz de
absorver integralmente a atenção daqueles que jogam, ficando registrado na memória e
compondo parte do saber palhacesco. Do mesmo modo, um jogo que não deu certo, ao
longo do contato com o público, saberá produzir suas lições.
Segundo Soraya Saíde, o preparo das palhaças e dos palhaços para o contexto
hospitalar é bastante complexo, e visa liberar os artistas de maneirismos vagos, criando
uma concretude, vida e estofo na atuação cênica. Esse preparo, para a formadora, não se
restringe a momentos de ensaio, mas também de prática. Trata-se de um mergulho na
máscara e requer momentos de entrega artística, bem como disponibilidade para a
93
prática profissional e a busca pelo aperfeiçoamento das técnicas e sensibilidades em
diferentes espaços da sociedade (SAIDE, 2005, apud DOUTORES DA ALEGRIA,
2005).
O hospital, também, para a palhaça e formadora Roberta Calza, exige um
treinamento bastante singular, e trata-se de “[...] um espaço caótico, um lugar de
trânsito. A gente tem um treinamento muito específico, desde você trabalhar olhar
periférico, entendimento do espaço, a figura do médico, que é a paródia que os
Doutores da Alegria propõem.” (Roberta Calza). Esse treinamento pessoal, que conduz
a uma técnica pessoal, compreende uma dilatação corpórea e sensorial no sentido de que
os artistas possam desenvolver um estado de abertura para o jogo teatral.
A artista relata que “[...] a gente tem técnicas, tem repertório, mas a construção é
feita mesmo em conjunto. Eu me deparei com a efemeridade da arte, com o escavar da
arte, o contato com existências possíveis, ou formas de ser diferentes.” (Roberta Calza).
Roberta afirma ainda que “[...] cada artista é muito autônomo do ponto de vista da
criação Besteirologista, que é uma criação cênica.” (Roberta Calza), e que é somente a
partir das relações interpessoais que a transposição das técnicas cênicas trabalhadas
enquanto artista faz sentido.
Trazidas para o hospital, as técnicas artísticas requerem abertura para uma
proximidade, pois muitas ações são realizadas ao lado dos espectadores, que podem
estar com a atenção voltada para uma situação mais urgente, que envolva sua saúde ou a
de seus entes queridos. No contexto hospitalar, assim, não se pode pensar na realização
de um show de habilidades. Nesse espaço, a maior habilidade que as artistas e os artistas
poderão dominar é a de relacionar-se, como podemos observar na descrição abaixo:
Ontem mesmo, eu estava na U.T.I. do Instituto da Criança, e lá estava
uma menina que você fala nossa ela não vai conseguir reagir! A gente
foi ali na cama dela, estava chorando meio triste e daqui a pouco ela
virou para mim e me deu um susto. Aí, eu me assustei e ela começou a
rir. Como assim, sabe? Então, no último do último ela está brincando,
né? Isso é muito legal. Isto é um grande aprendizado, eu acho
(Luciana Viacava).
No relato de Luciana, podemos perceber que a artista não precisou empregar
técnicas especificas, tais como o malabarismo, por exemplo. Sua técnica pessoal de
palhaça aliou-se à sensibilidade de perceber a proposição da menina: assustar, bastando
esse fato para garantir o início do jogo entre as duas. Deixando por um momento seu
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sofrimento de lado, a menina do relato se permitiu jogar com a palhaça. Essa situação
comprova que através da permanência das figuras palhacescas nos contextos
hospitalares, torna-se possível a coexistência de movimentos distintos e muitas vezes
opostos, tais como o riso e a dor.
Abarcando o fluxo dos acontecimentos em suas ações e palavras, as figuras
palhacescas são capazes de ampliar as possibilidades de ação de outrem. Nesse âmbito,
Masetti esclarece que “[...] o sorriso resultante do encontro com o palhaço revela que,
de alguma forma, o paciente percorreu seu sofrimento e suas dificuldades e pode
transformá-las.” (MASETTI, 2003, p.50).
Nessa relação perpassada pelo jogo cênico pode haver espaços para o surgimento
de técnicas artísticas surpreendentes, oriundas de estudos e práticas constantes. A partir
da busca pelo aprimoramento pessoal de cada artista, torna-se possível desenvolver uma
boa relação. Em busca de qualidade no jogo, as figuras palhacescas dependem da lida
com técnicas cênicas específicas, sempre filtradas por sua sensibilidade para com cada
momento.
Como lembra Achcar, os seres que descortinam os palcos hospitalares são atrizes
e atores, estudantes de teatro, artistas circenses,
[...] que tem como propósito específico estender sua arte para além
dos limites da cena espetacular. Se o instrumento de expressão de um
ator é sua própria pessoa, isto é, seu corpo, sua voz, sua personalidade
e sensibilidade, a formação do ator para uma ação, nesta arte, permite
que se ampliem objetivos de modo a habilitar o ator a ultrapassar os
limites da atuação artística quando deseja refletir e discutir seu próprio
papel fora do seu lugar habitual de atuação (ACHCAR, 2007, p. 20-
21).
Nos palcos teatrais ou picadeiros circenses, prevalece o caráter espetacular, que
dirige a atuação das figuras palhacescas. No contexto hospitalar essa atuação é regida
pela transformação dos saberes corpóreos vividos em contextos teatrais ou circenses,
bem como de seu diálogo com os espaços e momentos presentes. Assim, quanto mais
vasto for o repertório cênico de cada artista, mais possibilidades ele terá de articular o
teatro com a natureza da vida, uma vez que sua arte se compõe dessas duas dimensões.
Heraldo Firmino afirma, nesse sentido, que, para o artista cênico que trabalha no
contexto hospitalar, além de domínio da expressão teatral, são necessárias ferramentas
artísticas, tais como malabarismo, ilusionismo, acrobacia, dança, música, entre outras.
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Essas ferramentas, para Heraldo, “[...] devem estar a serviço do jogo que foi iniciado a
partir da relação. Muitas vezes você não utiliza nenhuma destas habilidades, a não ser
o jogo, o olhar, a escuta sobre o que a criança propõe.” (Heraldo Firmino).
Marcelo Marcon também tece consideração semelhante, e exemplifica a potência
do domínio de dinâmicas corporais ou técnicas de atuação a partir da música e da
mágica, trabalhadas por ele enquanto palhaço: “[...] se você entra em um cortejo no
hospital, é impressionante. Se eu passo tocando cavaquinho, no corredor a gente já vê
todas as cabecinhas do lado de fora para ouvir. E a mágica surpreende, traz uma nova
lógica, que é a função do palhaço também.” (Marcelo Marcon). Marcon explica que
essas técnicas funcionam como ferramentas para o artista se “defender” no contexto
hospitalar.
O palhaço e malabarista Du Circo também afirma que, embora a prática de
técnicas cênicas vindas do teatro, do circo e da dança sejam imprescindíveis no preparo
do artista que atua no hospital, o aspecto mais importante não é o virtuosismo técnico,
mas sim a abertura para se relacionar com o outro, e afirma que é necessário: “[...]
tomar cuidado com o tom de voz, chegada rápida, sentir a aceitação dos pequenos para
ser bem recebido e poder criar grandes palhaçadas sem o medo do seu espectador.”
(Du Circo).
Com base em sua trajetória artística, Raul Figueiredo aponta que o treinamento
desenvolvido no hospital significa que se deve trazer em seu ser um conjunto de
dinâmicas corpóreas e dispô-las para a potencialização de encontros cênicos. Para o
artista, as figuras palhacescas entram em um local sem saber o que acontecerá, se haverá
jogo ou não, colocando-se em uma zona de incertezas.
Esse jogo que se dá, muitas vezes, na contramão das proposições lógicas do
mundo, para Heraldo, também é fundamental:
O palhaço tem que saber jogar em qualquer instância, as habilidades
estão a serviço deste jogo. Esta habilidade de você poder jogar com
as coisas que acontecem. Você entra no quarto, você tem mais ou
menos dez segundos para decidir o que vai acontecer, o mote que
você vai trabalhar. Se eu entro no quarto com uma mágica que eu sei
fazer, com um malabares ou com uma música, não é muito diferente
do que você vê no palco, e este trabalho pede uma postura
completamente diferente (Heraldo Firmino).
A postura exigida no contexto hospitalar é desenvolvida com base no jogo, que
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constitui uma relação entre aqueles que jogam, além de produzir significações para
aqueles que de longe observam. Heraldo, nesse sentido, revela que o trabalho no
contexto hospitalar: “[...] aprimorou muito a minha sensibilidade, minha escuta, meu
olhar para o que está do lado, para fazer pequeno, não fazer coisas desnecessárias, por
respeitar o outro, respeitar seu espaço.” (Heraldo Firmino).
Heraldo afirma ainda que o hospital pede um olhar estrangeiro, pois a cada visita
traz novas pessoas, novas experiências de vida, novos encontros. Para o artista, esse
olhar significa uma urgência de humanidade, visto que não se permite mecanizar,
sempre está atento ao fluxo da vida humana, em direção ao mundo.
A artista Roberta Calza igualmente afirma que “[...] a linguagem do palhaço no
hospital pede este contato vivo, não tem muito ensaio. Você tem um treino de improviso,
mas a linguagem se relaciona com o tempo real [...].” (Roberta Calza). Roberta
enxerga a realidade cotidiana como matéria de criação a ser trabalhada no sentido de ser
revelada pelo ato artístico. Para ela, “[...] às vezes a gente tem uma dinâmica social
onde a própria realidade está escondida, nela mesma.” (Roberta Calza).
Essa percepção aproxima-se do pensamento da pesquisadora Marilena Chauí, ao
afirmar que:
É a obra que explica a vida e não o contrário, pois a obra é como o
artista transforma, num sentido figurado e novo, o sentido literal e
prosaico de sua situação de fato. A obra de arte é existência, isto é, o
poder humano para transcender a facticidade nua de uma situação
dada, conferindo-lhe um sentido que, sem a obra, ela não possuiria
(CHAUÍ, 2010, p. 273).
Luciana Viacava, corroborando com a percepção de que a técnica artística está
impregnada de sensibilidades, acredita que “[...] depois de tanto tempo trabalhando
com isso no mínimo duas vezes por semana, a técnica fica impregnada e deixa de ser
técnica para ser relação.” (Luciana Viacava). Para a artista, a experiência desenvolvida
pelos Doutores da Alegria, com periodicidade de duas vezes por semana, ao longo de
cinco ou seis horas seguidas, é de um grande aprendizado enquanto palhaça:
Eu digo não só no hospital, pode ser em outro lugar também, mas no
hospital, esta periodicidade, duas vezes por semana, você estar lá no
improviso, e aberto, é um grande exercício para o palhaço. E você se
propor a coisas novas, você está o tempo inteiro se treinando, e
também acho que enfim trabalhando com várias pessoas, vindas de
97
diferentes escolas, você vai aprendendo novas abordagens de
palhaço, desenvolvendo um repertório, você vai criando,
improvisando. Então esta experiência artisticamente eu acho muito
rica mesmo (Luciana Viacava).
Afirmando o hospital como importante espaço de formação, Luciana diz que, a
partir dessa vivência no hospital, foi levada a buscar novos desafios, como a atuação no
circo e na rua. Para a artista, ao sair do contexto hospitalar, o palhaço “[...] vai para
outros lugares, acontece de diferentes maneiras, mas com a mesma essência. Então eu
me sinto mais segura hoje para fazer em outros lugares por que eu tenho esta prática,
esta experiência.” (Luciana Viacava).
Para ela, sua vivência como palhaça situada em hospitais também intensifica suas
relações com seus parceiros de cena, pois se estabelece uma relação de cumplicidade
entre artistas que partilharam experiências e momentos marcantes. Luciana aponta ainda
que, entre seus objetivos enquanto besteirologista, estão desenvolver uma relação
intensa “[...] com todos: meu parceiro, as crianças, os acompanhantes, os funcionários,
médicos, enfermeiros, levando ao cotidiano desse contexto um olhar diferente sobre a
realidade. Levando arte, leveza, beleza e graça.” (Luciana Viacava).
Para Luciana, “Não existe palhaço de hospital, existe palhaço no hospital.”
(Luciana Viacava). O espaço da atuação, para ela, pode modificar as técnicas
empregadas, porém não a essência palhacesca de cada artista. Por exemplo, o volume da
voz empregada na rua é necessariamente distinto do volume utilizado em um hospital,
pois na rua existe uma competitividade sonora e de atenção bastante latente, ao passo
que em um leito hospitalar o espaço é mais restrito, e assim por diante. Modifica-se o
emprego da técnica, porém conserva-se a potência corpórea palhacesca pessoal.
Olhar e escutar os acontecimentos, desse modo, são ações imprescindíveis ao
trabalho das figuras palhacescas que atuam em contextos hospitalares. Ao penetrar num
leito hospitalar, é necessário dar atenção aos objetos, pessoas e acontecimentos
presentes, tudo o que houver pelos arredores é passível de converter-se em mote para o
jogo. O artista Raul Figueiredo equipara esses olhares e escutas atentas a um “scanner”
que se passa no espaço. Raul chama atenção para o fato de que, no jogo palhacesco, é
necessário ter uma noção de espacialidade que habilite o artista para perceber:
As crianças que estão dormindo, as que estão acordadas, as que estão
com medo, as interessadas, as enlouquecidas. Os pais, os
98
acompanhantes, os que estão a fim, os que não estão a fim, aqueles
que estão querendo dormir. A enfermeira que entra no quarto, o
médico, a televisão ligada, o que está passando. É um scanner que a
gente passa, esta espacialidade que o hospital te dá, esta noção de
espacialidade, quando eu vou para a cena, quando eu vou para a rua
ou para o palco, é uma retroalimentação (Raul Figueiredo).
Faz-se necessária uma dilatação da atenção por parte das figuras palhacescas,
assim como uma forte conexão com as possibilidades de transformação dos resquícios
cotidianos em jogo cênico. Esse ato de entrega ao momento presente, como afirmou
Raul, é capaz de impregnar o trabalho do artista em outros contextos da sociedade. Raul
afirma que “Esta questão de você entrar em um lugar sem saber se vai dar jogo ou se
não vai, isso é o treino do hospital.” (Raul Figueiredo). Esse ponto de vista vai ao
encontro da concepção de que as técnicas treinadas são potencializadas pela
sensibilidade de cada artista, bem como de sua abertura para o jogo.
A atenção é aqui compreendida em consonância com o pensamento de Merleau-
Ponty, segundo o qual: “A atenção supõe primeiramente uma transformação do campo
mental, uma nova maneira, para a consciência, de estar presente aos seus objetos.”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p.57). Isso indica que:
[...] a atenção não é nem uma associação de imagens, nem o retorno a
si de um pensamento já senhor de seus objetos, mas a constituição
ativa de um objeto novo que explicita e tematiza aquilo que até então
só se oferecera como horizonte indeterminado. Ao mesmo tempo em
que aciona a atenção, a cada instante o objeto é reapreendido e
novamente posto sobre sua dependência (MERLEAU-PONTY, 2006,
p.59).
Essa atenção está sempre em posição de perceber as circunstâncias e os objetos
vindos de diferentes formas, uma vez que as concepções se transformam com o tempo e
o espaço. Ligada a uma temporalidade e espacialidade próprias da atuação palhacesca
no contexto hospitalar, a atenção abarca as transformações de cada momento e de cada
local.
Segundo Morgana Masetti,
Uma das características da atuação dos clowns doutores é transformar
qualquer acontecimento em um recurso para o seu trabalho: um
enganchar na porta, um tropeço, um não, tudo é incorporado como
oportunidade, é canalizado para a linguagem humorística. Essa
capacidade carrega em si uma metáfora importante, em se tratando de
99
doença e hospitalização: a de que é possível transformar a dor e o
sofrimento (MASETTI, 1998, p. 56).
Não é possível prever a entrada de sujeitos no espaço de ação cênica hospitalar,
nem tampouco a reação de uma criança, ou de muitas delas, caso a ação se passe em
uma brinquedoteca, ou mesmo num corredor hospitalar, portanto uma constante
abertura para a transformação faz-se presente. Marcelo Marcon, nessa direção, afirma
sentir-se um palhaço tridimensional, ou seja, visto por muitos ângulos. Nesse espaço
onde é possível se ver as figuras palhacescas por todos os ângulos, para Marcelo
Marcon,
[...] Você é palhaço todo o tempo. Em um espetáculo, eu apresento,
tiro a maquiagem e vou embora. Lá não. No hospital, eu saio do
quarto e não deixo de ser palhaço. No corredor, eu também tenho que
ser. Geralmente, a gente olha para trás e sempre tem alguém olhando.
(Marcelo Marcon).
Podemos perceber na imagem a seguir um exemplo dessa afirmação:
Figura 12 - Doutores Dud Grud (Eduardo Filho) e Eu_Zébio (Fábio Caio).
Fonte: <doutoresdaalegria.com.br> Acesso em 09/08/2016.
100
Na imagem 12, encontrada no site dos Doutores da Alegria, percebemos essa
tridimensionalidade: os palhaços estão expostos em altura, largura e profundidade reais
perante os olhos dos espectadores. De todos os lados é possível que em momento de
relação surjam intersecções do público com a ação cênica. O trabalho tridimensional,
segundo Marcelo, das figuras palhacescas, exige que o artista dispa-se de si enquanto
ser social para lidar com a energia do palhaço em tempo integral, mantendo o estado de
atenção dilatada.
Ésio Magalhães realiza apontamentos semelhantes quando afirma que:
O palhaço está a todo o momento vendo e jogando com as reações do
público, então é fundamental que ele tenha um olhar aberto a ele.
Mais que tudo, o palhaço dialoga com a plateia. A comunicação se
faz com fala e escuta, ação e reação. Por isso, o olhar para o público
tem muita importância, já que através dele eu tenho um forte radar
para captar as reações e escutar o que se passa na plateia. E com
esta escuta, posso dimensionar os melhores caminhos para a
interação (Ésio Magalhães).
Essa escuta e esse olhar voltados para o público, para a palhaça e formadora
Luciana Viacava, estão presentes no trabalho das palhaças e dos palhaços
independentemente do lugar da atuação: “[...] a percepção do espaço, a escuta, o olhar
estão presentes em todos os espaços e conforme o contexto você muda o modo de
atuação, mas nunca perde o palhaço, o estado, o corpo, a voz, o raciocínio, a
subversão.” (Luciana Viacava). Para a artista, não é possível segmentar palhaças e
palhaços por espaços de atuação, mas sim contextualizá-los nos palcos onde atuam. A
partir de suas experiências, Luciana afirma que a essência palhacesca permanece em
todos os contextos de atuação, “[...] o que muda é o tamanho do gesto, o volume da voz,
o olhar, pois muitas vezes no hospital você atua para uma pessoa, enquanto que no
circo você está para 400 pessoas ao mesmo tempo” (Luciana Viacava).
Outra diferença significativa, para Luciana, é que no contexto hospitalar as
relações podem se prolongar, uma vez que existem crianças que permanecem por dias,
meses ou anos em situação de internação. A palhaça explica que “[...] quando você
trabalha assim, você visita sempre a mesma criança, faz uma amizade, conhece a
família inteira, sabe como anda a vida e tudo mais.” (Luciana Viacava). Nesse contexto
intensificam-se as relações, prolongam-se no tempo e no espaço da realidade e da ficção
a permanência dos encontros, perpetuam-se as liberdades, a quebra de mecanismos
101
cotidianos, a entrega para um momento de jogo. Luciana afirma que entre suas
memórias mais significativas de encontros ocorridos entre crianças, seus
acompanhantes, profissionais da saúde e funcionários do hospital, estão aquelas onde há
um envolvimento nascido da constância dos encontros.
A recorrência de encontros, para Heraldo Firmino, também é um fator importante,
que potencializa o jogo cênico, porém ele afirma que isso pode significar um grande
desafio, pois é necessário ter vasto repertório artístico para impedir que a relação torne-
se mecânica, cotidiana ou desinteressante: “[...] ao trabalhar com uma criança, você
tem um repertório, vamos dizer para umas dez visitas, mas tem crianças que ficam anos
dentro do hospital. Então você tem de se reinventar sempre e aí uma coisa muito
importante é o improviso, a abertura para o jogo.” (Heraldo Firmino).
Para Luciana, desenvolver a potência desse jogo demanda muita prática e
reflexão, além de representar grandes desafios dos pontos de vista artístico e humano. A
artista aponta que a dificuldade habita em “[...] lidar com diferentes formas de jogo,
dos parceiros com quem vou trabalhar. Cada palhaço tem um jeito, e encontrar uma
boa escuta, um bom jogo que traga encontros potentes no dia a dia, não é tão evidente,
leva tempo e é uma conquista.” (Luciana Viacava). Podemos perceber também no
discurso de Du Circo essa necessidade de abrir-se para o jogo cênico, ação em que é
necessário “[...] saber jogar e criar com a criança, transformar ela no terceiro
palhaço, construir um jogo com entrada, começo, meio e fim.” (Du Circo).
Assim, as capacidades técnicas praticadas pelos artistas podem ampliar sua gama
de possibilidades no jogo cênico, que atende, primeiramente, às necessidades do
momento presente. Desse modo, o malabarismo, a mágica, a manipulação de fantoches,
a música, as técnicas de tropeços e quedas, a dança e sejam quais forem as outras
práticas sobre as quais os artistas tenham domínio, podem somar-se ao seu trabalho no
contexto hospitalar, transgredindo a lógica cotidiana e gerando comicidade, surpresa,
porém sempre são secundarizadas em prol da relação, do jogo.
Para Luciana, “[...] primeiro a gente se relaciona com a criança, com a pessoa
que estiver nem sempre através da comicidade, às vezes tem que ser num
estranhamento mesmo, ou conversando.” (Luciana Viacava). A partir desse contato,
através da sensibilidade de cada palhaça ou palhaço, percebe-se a conveniência ou não
do emprego das técnicas pessoais pesquisadas, sejam elas típicas do teatro, do circo, da
dança ou da música.
102
Achcar afirma que “[...] o princípio de comicidade que rege a ação do palhaço no
hospital abrange além do riso e suas gradações de expressão, do sorriso à gargalhada;
outras manifestações expressivas que indicam uma comunicação bem realizada, mas
não necessariamente risível.” (ACHCAR, 2007, p. 114). Nos palcos hospitalares,
diferentemente dos palcos teatrais ou picadeiros circenses, a comicidade não é o
principal objetivo das figuras palhacescas, mas sim, como dissemos, o desenvolvimento
de uma relação de qualidade fundamentada no jogo cênico que, como vimos, nem
sempre é risível.
Ésio Magalhães, nesse sentido, comenta que:
Depois que fui para o hospital, entendi que o trabalho pode ser mais
sutil, mais delicado e pontual. Ali, compreendi a pausa e o silêncio.
Assim, Zabobrim teve que lidar com situações em que o riso não era o
primeiro canal de cumplicidade e nem a ação o seu maior atrativo.
Vivenciei a força da escuta do palhaço, a importância da passividade
na relação com o público e experimentei muito esta outra ligação com
os espectadores. Para mim, o trabalho no hospital me fez aproximar,
não só espacialmente, do público. Foi neste contexto que meu palhaço
se humanizou. A partir desta humanização, tive outro olhar para o
mundo e comecei a interagir de outra forma (Ésio Magalhães).
O contexto hospitalar exige uma postura de atenção para as emergências e
calmarias de cada momento. A ação das palhaças e dos palhaços requer uma intensa
necessidade de conexão com o público, de onde provém sua força de intervenção na
realidade. Como bem pontuou Ésio, a escuta dos artistas, nesse contexto, é um canal
para a humanização da figura cômica, e a partir dela entrelaçam-se a técnica e a
sensibilidade pessoais no trabalho palhacesco hospitalar. Para Beatriz Sayad:
A palavra do palhaço revela multiplicidade de camadas por onde
transita. Ser palhaço no hospital é, ao mesmo tempo, vontade de
brincar, de fantasiar e de ser atravessado pela realidade que, de
brincadeira e de fantasia não tem nada. Mas é importante (e assunto
recorrente entre nós) que não haja um muro intransponível entre a
criação do palhaço e a realidade na qual ele atua. E sim que se tenha
um tecido transparente, poroso, que faça com que estes mundos sejam
permeáveis (SAYAD apud DOUTORES DA ALEGRIA, 2008, p.
129).
A permeabilidade desses mundos depende do desenvolvimento da abertura para
o outro, capaz de somar, a partir de sua realidade, elementos para a composição de um
jogo cênico que mescla elementos extremos, tais como a fantasia e a realidade, a dor e o
103
riso, a vida e a morte. Nesse jogo torna-se impossível delimitar aquilo que é vida
cotidiana ou realidade teatral. Tanto artistas quanto espectadores revelam-se em
momentos de conexão, abrem-se uns aos outros, escutam, expressam-se e juntos
constroem uma nova realidade, que para Sayad trata-se de “[...] uma breve viagem no
tempo, mas longa na imaginação. Para isso, temos que ter paciência, modéstia, escuta,
generosidade para acolher os sins e os nãos.” (SAYAD apud DOUTORES DA
ALEGRIA, 2008, p. 129).
Esse jogo sempre ocorre, como expressa a autora, em uma imaginação que “[...]
não estava pronta. Foi uma construção que envolveu o palhaço, a criança, o espaço, os
móveis, os objetos, todos estes seres que não eram mais do que eles mesmos, mas que
estavam aptos a serem redescobertos.” (SAYAD apud DOUTORES DA ALEGRIA,
2008, p. 87). O jogo palhacesco hospitalar desestabiliza e é desestabilizado pela
estrutura do cotidiano em que se insere, constituindo um novo olhar sobre o tempo e o
espaço hospitalar, bem como sobre si e sobre os seres que nesse espaço transitam.
Nesse âmbito, o jogo palhacesco situado no contexto hospitalar pode ser
pensado a partir da mescla das técnicas cênicas pesquisadas por cada artista, bem como
por sua sensibilidade em cada momento de encontro. Abrindo em si um espaço para as
outras existências componentes do espaço do hospital, as palhaças e os palhaços
deixam-se permear pelos encontros, tornando-os teatrais em momentos de jogo.
4.2 ENCONTROS TEATRAIS
Um palhaço e uma criança se encontram [...] há aparelhos
computadorizados e luzes que piscam, ligadas a um incontável
número de fios que dão ritmo ao andar das pessoas que ali trabalham.
O espaço da cama da criança delimita esse encontro. Envolta pelos
lençóis arrumados dentro das grades que a protegem, a criança tem um
desafio: viver. Ele está sendo cumprido no ritmo dos aparelhos, na
velocidade dos homens e dentro do mistério da vida que habita seu
pequeno corpo. O palhaço acredita na força dessa união. Acredita que
brincar é a melhor forma de encontro e que este não tem tempo
definido para acontecer: depende da intensidade dos olhares e da
permissão para o jogo. E aqui o jogo já começou e nele é difícil dizer
quem brinca com quem. É tão intenso que brincar, nesse cenário, é
sinônimo de viver (MASETTI, 1998, p. 14).
Na citação acima, da pesquisadora Morgana Masetti, encontramos a descrição de
um encontro situado no espaço hospitalar. Permeado por situações de jogo, esses
encontros podem ser compostos, como vimos, a partir da técnica e da sensibilidade de
104
cada artista que para ele se coloca em estado de abertura. Na descrição de Masetti, o ato
de brincar torna-se a melhor maneira de efetivar o encontro entre um palhaço e uma
criança.
Optei, neste trabalho, por me referir a esses encontros, promovidos pelas figuras
palhacescas nos contextos hospitalares, como encontros teatrais, uma vez que ocorrem
tendo como parâmetro de relação o Teatro. Aproxima-se esse fazer artístico de uma
“arte do encontro”, termo criado pelo encenador Jerzy Grotowski. Para o pesquisador
Robson Haderchpek, “Pesquisar a ‘arte do encontro’ é promover um encontro do
homem consigo mesmo, é descobrir a arte que pulsa dentro de nós.” (HADERCHPEK,
2015, p. 7).
Buscando descobrir o pulsar da arte palhacesca, deparamo-nos com a recente
trajetória das palhaças e dos palhaços nos palcos hospitalares, que propiciou novas
lógicas de encontros entre seres humanos no espaço e no tempo em que transitam.
Nesse movimento permite-se ainda observar espectadores desavisados em contato com
direto com a arte.
A professora e pesquisadora Josette Féral considera que a teatralidade não está
restrita ao campo do teatro e pode ser reconhecida em qualquer área do conhecimento,
estando presente em diálogos artísticos e na vida cotidiana. Abarcando rituais,
celebrações carnavalescas, cerimônias religiosas, coroações, atividades de moda,
esportes, entre outros, o alcance da teatralidade, para a pesquisadora, está muito além de
uma esfera puramente teatral. É no campo do teatro, contudo, que melhor se efetuam as
experimentações sobre a teatralidade (FÉRAL, 2003):
Teatralidade não emerge passivamente a partir de um conjunto de
objetos teatrais, cujas propriedades se poderia enumerar em um
relance, mas como parte de um processo dinâmico, pertencendo para
ambos, o ator e o espectador, que toma posse da ação que ele assiste.
(FÉRAL, 2002, p. 103, tradução da autora)14
.
Esse processo em movimento em que se concretiza a teatralidade seria canalizado
pela figura do ator: “O ator é simultaneamente o produtor da teatralidade e o canal por
onde ela passa.” (FÉRAL, 2002, p. 102, tradução da autora)15
. Porém essa teatralidade
14
“Theatricality does not emerge passively from an ensemble of theatrical objects whose properties one
could enumerate at a glance, but as part of a dynamic process belonging to both the actor and the
spectator, who takes possession of the action he watches”. 15
“The actor is simultaneously the producer of theatricality and the channel through which it passes.”
105
não é exclusivamente de seu domínio, uma vez que o espectador também é responsável
por sua constituição. Na descrição abaixo, feita por Wellington Nogueira ao narrar seu
primeiro contato com a atuação palhacesca hospitalar, ainda enquanto observador,
podemos perceber a constituição da teatralidade por meio de um encontro no hospital:
Aí eu fui seguir a dupla, que eu tinha combinado de seguir, e logo no
primeiro quarto, o que eu vi foi muito marcante, porque me lembro de
que era uma menina de uns nove ou dez anos e ela estava bem
prostrada no leito dela. Quando eles chegaram à porta, eles não
entraram no leito. Eles se apresentaram e ela fez isso (gesto de
esquivar-se), mas quando ela viu quem estava na porta, ela já fez isso
(gesto de curiosidade), aí eles, da porta, se apresentaram. Eu sou
Doutor Fulano, Doutora Fulana. Como vocês sabem estamos aqui no
hospital e só queremos fazer uma esterilização, uma coisa simples,
não pode ter micróbios e tal. E ele (o palhaço) começou a soltar
bolhas de sabão. E ele era um mágico habilidoso, e daquelas bolhas
de sabão, ele começa a fazer truques de mágicas completamente
fascinantes. Eu fiquei completamente enredado nas mágicas e a outra
parceira dele era engraçadíssima, e a menina foi ganhando tônus, ela
sentou no leito, e foi ficando fascinada com aquilo (Wellington
Nogueira).
Esse encontro cênico foi qualificado pelo preparo técnico e sensível proposto no
jogo pelos artistas, capaz de modificar o cotidiano da espectadora, sua postura corporal,
sua relação com o espaço e o tempo. No relato de Wellington, a teatralidade emerge do
encontro para ambos, artistas e espectadora.
Essa relação é próxima do que afirma Féral, para quem há uma dupla perspectiva
que o termo teatralidade abarca: a de quem produz, e a de quem recebe a ação teatral
(FÉRAL, 2003). O ator, produtor de teatralidade, não interpreta e tampouco representa a
si, sendo que se torna uma constante fonte de “produção e deslocamento” (CARLSON,
1997).
Féral aponta ainda que a teatralidade não depende das formas artísticas ou
estéticas, mas sim do estabelecimento de um consenso entre artistas e público. Em
momento de encontro cênico, o espectador aceita jogar o jogo proposto pelos artistas de
modo que uma situação teatral se estabeleça e a ficção perpetue-se na realidade
(FÉRAL, 2003).
106
Na constituição desses mundos fictícios, que têm como pano de fundo os
resquícios da realidade, é necessária uma atitude de abertura das figuras palhacescas
para o encontro cênico. Nesse sentido, o palhaço Ésio Magalhães explica que:
[...] a abertura para o outro é fator fundamental para o trabalho do
palhaço. Não só no hospital, mas onde quer que ele interaja. O
palhaço conquista a cumplicidade com o público pelo riso e para isso
precisa abrir o seu trabalho, compartilhar com o outro. Como a
improvisação está muito presente no contexto hospitalar, o palhaço
precisa estar muito atento a todas as possibilidades para sua atuação
(Ésio Magalhães).
Ésio considera que, como palhaço contextualizado no hospital, sempre buscou
perceber os elementos que o cercavam, aproveitando as possibilidades surgidas a partir
do encontro com outros seres humanos. Para o artista, esse encontro é o fator mais
importante na arte palhacesca, independentemente do palco em que ocorrer.
Nesse cenário, Wellington Nogueira igualmente afirma a importância do encontro
na arte palhacesca que ocorre nos espaços hospitalares, que, para ele, revelaram um
novo palco:
Eu fui fazer teatro porque amava o risco do ao vivo, mas lidava com
este risco após dois meses de ensaio, oito horas por dia, cenas,
marcas, figurinos, o luxo de ter um diretor te olhando, dando
retornos, quer dizer, toda uma estrutura criada para te jogar na vida
real, e te jogar no contato com o público. A tua plateia é muito mais
espectadora do que qualquer outra coisa, no hospital não,
quebraram-se todas as barreiras, vieram todas as licenças
(Wellington Nogueira).
Nesses palcos, nem mesmo a composição espacial pode ser definida previamente,
tendo em vista que a atuação palhacesca hospitalar ocorre a partir da composição de
palcos itinerantes, criados em cada espaço cotidiano (corredores, quartos, enfermarias).
Com base nos seres que habitam cada um desses espaços é que se constituem as ações e
relações que pulsam no ritmo de cada encontro cênico.
Marcelo Marcon também assinala que no contexto hospitalar faz-se necessária
uma abertura para a relação com outras pessoas, pois, para ele, no hospital “A criança
está perguntando por que o seu sapato é assim grande? por que você tem nariz
vermelho? por que você usa jaleco sendo que você é palhaço?” (Marcelo Marcon). A
criança dialoga com as figuras palhacescas, diferente dos palcos convencionais, onde
107
predominantemente ela observa com determinada distância as ações. O mesmo ocorre
com os adultos presentes nos hospitais: percebem que essa figura está aberta para
intersecções, e com elas se somam na modificação do espaço hospitalar.
Para Soraya Saíde, componente dos Doutores da Alegria desde 1992, esse contato
direto em termos de enlace com o público é visto como fator fundamental na arte
palhacesca hospitalar. No hospital, para ela, “[...] é preciso ter disponibilidade para o
outro, para o jogo, olhar e escutar as situações, as circunstâncias, criatividade para
transformá-las e mais que tudo é preciso ter vontade de mergulhar na máscara.”
(SAIDE, 2005, apud DOUTORES DA ALEGRIA, 2005, p.24).
Nesse espaço, a partir da fala dos entrevistados, podemos perceber que a abertura
para os outros seres humanos, fortemente aliada ao jogo de técnicas e sensibilidades, é
considerada fator primordial na arte da palhaçaria. Como percebemos em algumas das
descrições fornecidas para esta pesquisa, essa disponibilidade muitas vezes está situada
entre tênues fronteiras e extremidades da existência. Para a pesquisadora Ana Achcar,
extremidades são intrínsecas ao trabalho das figuras palhacescas em contextos
hospitalares: “[...] o palhaço que atua para crianças em hospitais inventa uma maneira
de fazer coexistirem norma e rebeldia, semelhança e diferença, vida e morte.”
(ACHCAR, 2007, p.213).
Wellington Nogueira afirma que igualmente se faz necessária uma atitude extrema
por parte do artista que se insere nos hospitais, apontando que: “Imagina para você
enquanto artista, ir de encontro a sua plateia, e ser autorizado a fazer parte de
momentos de extrema intimidade e de respeito.” (Wellington Nogueira). Esse ato de
encontro quebra com barreiras e rompe divisões entre artistas e público, sequência de
ações e marcações definidas, trata-se de um ato de extrema entrega para o encontro com
o outro.
Tal perspectiva de acontecimento teatral aproxima-se da concepção de Grotowski
de um ato total, visto como “[...] o ato de desnudar-se, de rasgar a máscara diária, da
exteriorização do eu. É um ato de revelação, sério e solene. O ator deve estar preparado
para ser absolutamente sincero.” (GROTOWSKI, 1971, p. 165). Nesse ato, os artistas
entregam-se para o encontro com os espectadores, sem defesas previamente calculadas e
disponíveis para criar uma cena viva, que emerge do encontro cênico entre artistas e
espectadores e suas experiências vividas, como podemos identificar no relato abaixo:
108
Teve uma experiência com um menino quando eu trabalhava no Itaci,
que é um hospital de crianças com câncer, com Ju (Juliana) Gontijo,
e ele tinha câncer, e devia ter uns doze anos. A gente brincava que ele
era meu noivo que eu queria casar com ele, e ele vivia tirando sarro,
e a mãe dele ficou super amiga nossa e falava:
-Ai, eu não quero esta nora pra mim!
Então, ela brincava com a gente nesta coisa né? E aí lá para frente o
menino ficou bem mal, sabe? E parece que teve uma história que
parece que o pai dele, enquanto a mãe estava no hospital, ele estava
com outra. Ela descobriu e ficou brava e tal. E um dia ela chegou
para mim e falou assim: Lola! Vem aqui! Aí ela pegou minha roupa,
pegou minha saia e começou a rasgar, e aí eu tirei a saia e dei para
ela rasgar, aí sei lá, ela descontou toda a raiva dela e pouco tempo
depois também o filho morreu e eu nunca mais a vi. (Luciana
Viacava).
Em um momento intenso de entrega para o encontro com a mulher, a palhaça
assumiu uma relação de cumplicidade que permitiu que se tomassem atitudes extremas,
desprovidas de julgamentos e fundadas na interação verdadeira entre seres humanos.
Naquele espaço, a palhaça se percebeu enquanto uma “[...] pessoa de confiança, sabia
que ela podia fazer isto comigo, que não seria uma loucura, que a gente tinha um
código de transgressão já e isso para mim ficou muito marcado.” (Luciana Viacava). O
estreitamento dos laços entre a palhaça e a mãe possibilitou um encontro que talvez não
fosse possível entre mais ninguém naquele ambiente.
Ana Achcar, ao afirmar a importância do encontro na arte da palhaçaria
hospitalar, salienta que nos palcos teatrais ou picadeiros circenses, “[...] o palhaço é o
centro das atenções, e o riso depende da sua performance ridícula. No hospital, embora
ele ainda seja o instrumento do risível, é a criança, ou o profissional de Saúde, ou ainda
o acompanhante, a razão de sua presença e de sua existência” (ACHCAR, 2007, p.
193).O encontro com esses indivíduos no contexto hospitalar é muitas vezes o pretexto
da interação, e pode ser compreendido em concordância com as proposições de Masetti.
A autora se refere aos pensamentos da ética do filósofo Spinoza (2005), em que o corpo
pode afetar e ser afetado a partir dos encontros, e afirma:
Os encontros são feitos das mais diversas químicas, às vezes
construídos simplesmente a partir de um olhar, ou da soma de
pequenas ações cotidianas, que mudam a direção de nossas vidas.
Pouco podem ser medidos ou avaliados cientificamente. Só o contato
com a reconstrução da nossa experiência de vida, e um diálogo
interno, pode validar sua importância (MASETTI, 1998, p. 13).
109
Existem diversos tipos de encontros. Aqueles com as figuras palhacescas podem
criar novas realidades, pois palhaças e palhaços são capazes de incorporar, segundo a
autora, “[...] a coexistência das realidades opostas da vida, sem tentar reconciliá-las. Isso
dá ao nosso ego a possibilidade de absorver outra lógica e, consequentemente, maior
equilíbrio.” (MASETTI, 1998, p. 18). Capazes de concretizar mundos fictícios,
palhacescos, esses encontros cênicos abrem canais onde se potencializam a criação de
outras estruturas de relação, desconstruindo muitas vezes lógicas racionais, chamando a
atenção para as possibilidades do corpo humano, que se coloca sempre em posição de
encontrar-se com outros em situações de jogo.
Esse pensamento aproxima-se do engendrado por Merleau-Ponty no que tange à
noção de corpo. Ainda sobre esse aspecto, explica a pesquisadora Mirian Rabelo:
Postular a imbricação necessária entre corpo e consciência não é para
Merleau-Ponty retirar o corpo de seu lugar consagrado na natureza,
para jogá-lo no terreno da subjetividade. Trata-se antes de redefinir os
dois termos a partir desta sua “imbricação”. Perpassado pelo subjetivo
(“todo ele psíquico”), o corpo não é mais matéria inerte ante o
espetáculo da cultura, é “corpo vivido”. Ancorada no corpo, por sua
vez, a subjetividade já não pode mais ser tomada como interioridade,
locus de onde emanam e onde são armazenados representações acerca
do mundo. O corpo nos enraíza no mundo da cultura e da história
(mas também dos sensíveis), nos enreda nas ações de outros e faz os
outros inevitavelmente participarem de nossas ações (RABELO, 2008,
p. 109).
Essa concepção de corpo enraizado no mundo assemelha-se ao trabalho
palhacesco que ocorre nos palcos hospitalares. Nesses espaços, como afirmado ao longo
do trabalho, é igualmente possível pensar na noção de um corpo que, para além de
perceber outrem, forma com esse outro um sistema de coexistência.
A noção de experiência, nesse sentido, é vinculada ao corpo, e propõe o retorno ao
mundo vivido, onde impreterivelmente se dão os encontros. Para Merleau-Ponty,
Sinto meu corpo como potência de certas condutas e de certo mundo,
sou dado a mim mesmo como certo poder sobre o mundo; ora, é
justamente meu corpo que percebe o corpo de outrem, e ele encontra
ali como que um prolongamento miraculoso de suas próprias
intenções, uma maneira familiar de tratar o mundo; doravante, como
as partes de meu corpo em conjunto formam um sistema, o corpo de
outrem e o meu são um único todo, o verso e o reverso de um único
fenômeno, e a existência anônima da qual meu corpo é a cada
110
momento o rastro que habita doravante estes dois corpos ao mesmo
tempo (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 474).
Assim como a corporeidade tem certo poder sobre o mundo, a junção de
corporeidades exerce sobre ele uma tensão que revela novos sistemas de vida. Palhaças
e palhaços, assim, constituem o verso e o reverso das situações cotidianas, propondo
para elas pontos de vista teatrais, do universo da criança, do inesperado. Para que o
corpo palhacesco esteja apto ao desenvolvimento de certas condutas, faz-se necessário
criar experiências artísticas e sensíveis capazes de ampliar seu “poder sobre o mundo”,
neste caso, cênico e hospitalar.
Assim, os encontros teatrais proporcionados pelas figuras palhacescas expandem a
gama de possibilidades, situações e ações realizadas nos espaços hospitalares por meio
do jogo.
Não se pode, no entanto, precisar a potência desses encontros, nem mesmo prever
como eles irão reverberar em outrem. O que se sabe é que, para as figuras palhacescas
situadas no contexto hospitalar, os encontros são primordiais; para os demais
transeuntes desse espaço, esses encontros representam uma possibilidade de sentir-se
bem, de distrair-se da enfermidade, e, mesmo que por um breve momento, de deixar-se
mesclar com a figura palhacesca, formando com ela um único sistema de
transformações.
Merleau-Ponty considera que “[...] nós não conhecemos nosso corpo, a potência, o
peso e o alcance de nossos órgãos como um engenheiro conhece a máquina que ele
construiu peça por peça.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 421). Essa corporeidade que
se encontra com outras, antes de sujeita à sapiência racionalista, trata-se de nosso meio
de comunicação e de presença no mundo. O autor afirma ainda que “[...] cada atitude de
meu corpo é de um só golpe certa potência de um espetáculo [...] porque diante das
coisas, meu corpo está permanentemente em posição para percebê-las [...].”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 421). Além de percebê-las, meu corpo também é
percebido a cada atitude, em cada ação, e complementado por outros corpos.
Esse perceber, no caso da atuação palhacesca hospitalar, pode ser pensado como
um perceber-agir. Na medida em que as palhaças e os palhaços percebem a lógica
cotidiana hospitalar, agem no sentido de fazer emergir suas possíveis teatralidades.
Embora haja sempre um estado de abertura para as proposições dos espectadores, na
atuação das palhaças e dos palhaços são necessárias atitudes propositivas ao longo dos
111
encontros cênicos, para que tais atitudes possam desencadear a manifestação de outros
encontros. Aqui, cabe também a definição de “ativo”, descrita por Spinoza:
Digo que somos ativos [agimos] quando se produz em nós ou fora de
nós qualquer coisa de que somos a causa adequada, isto é, quando, em
nós ou fora de nós, decorre da nossa natureza alguma coisa que se
pode conhecer clara e distintamente tão-somente pela nossa natureza
[...] (SPINOZA, 2005, p. 197).
As palhaças e os palhaços próximos a esse pensamento são seres ativos nos
contextos hospitalares, uma vez que produzem neles e fora deles a abertura para o
teatro, o circo, a música, a dança, da qual podem ser causas adequadas em espaços e
tempos hospitalares. As cenas geradas a partir dessa abertura se produzem também pela
natureza de outros, mas sempre a partir de uma proposição das figuras palhacescas,
mesmo que tal proposição se restrinja a existir em sua peculiaridade, direcionar um
olhar.
Na descrição abaixo podemos perceber um encontro cênico. Envolvendo uma
criança, uma enfermeira e uma palhaça, tal encontro foi constituído a partir de um jogo
de técnicas e sensibilidades no contexto hospitalar.
Estávamos terminando uma rotina com a D., quando a enfermeira veio
colocar o soro. D. pediu que eu segurasse sua mão e começou a berrar
durante várias tentativas frustradas de encontrar a veia. A enfermeira
desistiu, [...] pois a pequena estava sofrendo muito. D. pediu que a
colocasse em pé. Ajudei-a calçar os sapatos e, quando ela se sentiu
pronta, falou, como se nada houvesse acontecido:
-Faz mais bola!
E assim nos teletransportamos para uma realidade mágica e
começamos a brincar. (ABBUD, 1998, apud MASETTI, 1998, p.60).
Podemos perceber, na descrição da palhaça Doutora Emily, vivida pela atriz Vera
Abbud, que no contexto hospitalar faz-se imprescindível um estado de atenção e
disponibilidade, que podem conduzir a um encontro cênico potente, muitas vezes capaz
de auxiliar os pacientes a superarem traumas da experiência de internação, bem como
auxiliar os artistas a lidarem com a realidade latente. Esse contato intenso com o outro
no contexto hospitalar gera encontros cênicos que estão para além da comicidade, do
espetáculo de habilidades, dos aplausos. A partir de suas atividades nos palcos
hospitalares, as figuras palhacescas desencadeiam situações teatrais ao longo de cada
encontro no cotidiano.
112
No campo das Artes Cênicas, artistas e público comunicam-se através de uma
situação ficcional convencionada, mediada pelo jogo teatral, e penetram numa lógica
distinta da vida cotidiana. No contexto hospitalar, devido à proximidade entre artistas e
espectadores, essa teatralidade ocorre de maneira intensa, permitindo às palhaças e aos
palhaços a invenção de mundos fictícios condizentes com o universo imaginativo das
crianças hospitalizadas, de seus acompanhantes, da equipe médica e dos funcionários do
hospital no momento do encontro teatral.
Para a palhaça, atriz e pesquisadora Beatriz Sayad, “[...] o hospital é o cruzamento
da rotina com o imprevisível. Do mesmo com o inusitado. Da mesmice com a urgência.
Do tédio com a iminência da morte.” (SAYAD, 2008 apud DOUTORES DA ALEGRIA,
2008, p. 16). Nesse local propício às modulações extremas, palhaças e palhaços agem
de acordo com os encontros, impregnando-se também de uma atitude extrema: a de
abrirem-se, sem amarras, para o outro.
Ao propor novas lógicas de existência, as figuras palhacescas realizam uma ponte
entre a concretude do espaço hospitalar e o espaço imaginário. Nesse pensamento que
também é ação, aquilo que era um porta-soro, por exemplo, pode tornar-se um porta-
chapéus, um porta-palhaços e até mesmo tal Dr. Aroldo, como percebemos na descrição
que se segue:
Andando pelos corredores do Hospital Universitário, o Dr. Dus Cuais
Carigudum e o Dr. Sandoval encontraram um solitário porta soro. Um
olhar e uma ideia surgiram. Reviraram os seus bolsos, pegando uma
coisa aqui e outra ali, e então um simples porta soro foi ganhando
cabelo, barba, olhos, nariz, jaleco, vida… De porto soro agora é um
besteirologista! O Dr. Aroldo! E o Dr. Aroldo trabalhou o dia inteiro
junto aos palhaços, foi um sucesso. Exames exatos, diagnósticos, altas
médicas, tudo na ponta da língua! Paqueras, brigas… Realmente o trio
deu o que falar! (DOUTORES DA ALEGRIA, BLOG, 2014).
A partir do fato descrito, há que se concordar com Merleau-Ponty: “Se o mito, o
sonho, a ilusão devem poder ser possíveis, o aparente e o real devem permanecer
ambíguos no sujeito, assim como no objeto.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.395). A
interação dos seres componentes do espaço hospitalar com o Dr. Aroldo caracteriza a
convivência do ser humano com os aspectos lúdicos e irreais da vida, mesclando-os
concretamente com a realidade, como nos prova a imagem 13:
Andando pelos corredores do Hospital Universitário, o Dr. Dus ‘Cuais
Carigudum e o Dr. Sandoval encontraram um solitário porta soro. Um olhar e
uma ideia surgiram. Reviraram os seus bolsos, pegando uma coisa aqui e outra
ali, e então um simples porta soro foi ganhando cabelo, barba, olhos, nariz,
jaleco, vida…
De porto soro agora é um besteirologista! O Dr. Aroldo!
E o Dr. Aroldo trabalhou o dia inteiro junto aos palhaços, foi um sucesso.
Exames exatos, diagnósticos, altas médicas, tudo na ponta da língua! Paqueras,
brigas… Realmente o trio deu o que falar! (DOUTORES DA ALEGRIA, BLOG,
2014).
113
Figura 13 - Aroldo, o porta-soro, e os Doutores Dus Cuais Carigudum (Henrique
Rímoli) e Sandoval (Sandro Fontes).
Fonte: <https://www.doutoresdaalegria.org.br/blog/aroldo-o-porta-soro/>. Acesso em
04/08/2016.
A realidade compreende objetos como um porta-soro interagindo com seres
humanos em situação cotidiana, quando se trata de uma interação cênica com figuras
palhacescas. A partir da subjetivação de um objeto inanimado com a atribuição de
características de palhaços, nasceu o Dr. Aroldo, promovendo uma transgressão da
realidade a partir de elementos do cotidiano concreto.Ao pensar a arte em seus
postulados filosóficos, Merleau-Ponty sugere que ela:
[...] fala no silêncio dos gestos, com sua imensa capacidade de criar
sentidos, de significar e de admitir uma verdade que não se assemelhe
às coisas, que não tenha modelo exterior, nem instrumentos de
expressão predestinados, e que seja, contudo, verdade (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 59).
Desse modo, ao surgir nos corredores hospitalares, Dr. Aroldo tornou-se um
doutor de verdade. Palhaças e palhaços, portadores de certa ambiguidade, tornam-se
seres ativos na construção de mundos fictícios, onde realidades cotidianas – reais – e
114
realidades cênicas – aparentes – se entrecruzam, promovendo a criação de novos
mundos, novas verdades. Constituído de elementos concretos, vindos do vestuário e de
objetos cênicos dos palhaços, Dr. Aroldo representa um mundo ficcional em completo
diálogo com a realidade, transformando-se, de um porta-soro, em médico
besteirologista.
Achcar afirma que, principalmente por meio do seu corpo, o palhaço “[...]
transporta outras realidades, propõe novas configurações físicas, arquiteta movimentos
surpreendentes e impensados: é o espaço lúdico, lugar praticado pelo jogo e pelo
imaginário, pela memória, pela experiência de presença daqueles que o ocupam.”
(ACHCAR, 2007, p.68).
O artista e formador Heraldo Firmino, em consonância com essa proposição,
afirma que o hospital é um palco onde o artista mescla-se com o público na composição
da ludicidade, e que “[...] você está lidando com pessoas que estão em uma situação
complicada. [...] te olham de uma maneira diferente, te contam coisas, sorriem para
você, só pelo fato de você estar trajado de palhaço, já existe esta premissa. [...].”
(Heraldo Firmino). Para ele, a maioria das pessoas está disposta a jogar com as figuras
palhacescas e aceitar suas proposições, por mais estranhas que pareçam à normalidade.
Para Ésio Magalhães, essa composição teatral e lúdica tem suas raízes no
encontro:
[...] as principais diferenças de atuação entre apresentar um
espetáculo para um público que te espera e interagir num contexto
hospitalar têm duas naturezas: a espacial e a artística. Dentro da
natureza espacial, vejo a questão da dimensão da atuação como uma
diferença, pois num espetáculo a adequação espacial se dá antes que
o público chegue, ou seja, o artista prepara os locais de atuação,
percebe onde estará o público e faz previamente a adaptação do seu
material ao espaço possível. Já no hospital, por mais que se conheça
o espaço, o artista deve o tempo todo estar atento às suas
modificações, pois é um espaço móvel, de passagem, por conseguinte,
transitório. O público também se desloca e se move no espaço, então
o artista deve ajustar o seu repertório ao mesmo tempo em que se
apresenta. Desta forma, o palhaço no hospital deve redimensionar
todo o tempo suas possibilidades de interação para preservar o
campo de atuação possível e seguro (Ésio Magalhães).
O artista lembra, ainda, que o contexto hospitalar pode apresentar certa hostilidade
em relação à apresentação artística: “[...] a finalidade do hospital não é propiciar uma
experiência com as artes para seu público, mas buscar a cura para quem dela
115
necessita.”(Ésio Magalhães).Voltada para os cuidados com a saúde, a atenção do
público pode, a qualquer momento, ser levada para longe da atuação palhacesca. Ésio
afirma que:
Esta diferença espacial se reflete em outra diferença de atuação, mas
de natureza artística. O artista dentro do hospital está a serviço da
disponibilidade e possibilidade do público. Não é o público que deve
se adequar ao contexto do espetáculo, mas o artista que deve estar
atento ao ambiente em que adentra para saber desde o que vai propor
até o tempo de duração de seu trabalho que pode ser até interrompido
por qualquer questão mais urgente. Neste sentido, o artista deve, se
colocando a serviço, ter um permanente desapego ao que veio fazer
para poder criar o melhor caminho para a interação. O público no
hospital não está, a princípio, disponível ou interessado na interação
e o palhaço deve conquistar a atenção da plateia antes de começar
sua atuação. Paradoxalmente, há uma leve semelhança com a
atuação espontânea do artista na rua, que também deve chamar a
atenção do público antes de começar a atuar e deve manter a atenção
do público até o final de sua atuação (Ésio Magalhães).
Atentas às possibilidades de jogo propiciadas pelo momento e pelo espaço,
partilhados sempre com outros seres, as figuras palhacescas realizam uma chamada para
o fluxo da vida, abrem-se aos seus mínimos detalhes. Uma corrente de ar, uma brisa,
uma trovoada, um diálogo, um telefone que toca, uma mão que se move, um choro que
irrompe, um riso que escapa: todos os fatos que se passam no momento de atuação
palhacesca hospitalar têm o poder de determinar seus rumos, compor caminhos de
criação cênica ao longo de cada encontro.
A palhaça Luciana Viacava, em consonância com essa reflexão, relata que, no
contexto hospitalar,
[...] a primeira questão mesmo eu acho que tem que ser a relação.
Então, muitas vezes, eu vejo que primeiro a gente se relaciona com a
criança, com a pessoa que estiver lá, nem sempre através da
comicidade, às vezes tem que ser num estranhamento mesmo, ou
conversando, e uma vez que você estabelece este contato, aí sim a
gente vai procurar a comicidade (Luciana Viacava).
Essa comicidade, em outros contextos de atuação, é intrínseca à atuação
palhacesca. No contexto hospitalar, como vimos, nem sempre a comicidade se faz
presente, e, quando há, é derivada de uma relação. Nesse contexto, o impacto dos
artistas sobre o público e vice-versa torna-se evidente, tendo em vista a proximidade das
116
relações. De acordo com a pesquisadora Ana Achcar:
A relação que o palhaço estabelece com seu público é direta e
imediata, pois ele só pode existir se mediado pelo olhar do outro. No
hospital, não é diferente. A menor reação, um gesto, uma risada, uma
palavra, vindos do outro, são para o palhaço uma oportunidade de
jogo e relação (ACHCAR, 2007, p. 113).
Ao referir-se a essa maneira de fazer teatro, completamente vinculada aos
acontecimentos do cotidiano, Wellington Nogueira observa que, no contexto hospitalar,
existem “[...] cenas que são criadas pelas crianças, a criança dá o mote da
improvisação, outras nós, outras a gente vai construindo juntos.” (Wellington
Nogueira).
Na atuação palhacesca contextualizada no hospital, para Wellington, “[...] eu
estou cocriando uma cena com meu parceiro e com meu outro parceiro de cena que é a
criança em tempo real. É isso. Um roteiro com começo, meio e fim, criado em tempo
real pela criança e pelo palhaço.” (Wellington Nogueira). Esse processo, para ele, gera
uma autonomia criativa arrebatadora, calcada em um compromisso, pois uma vez que as
palhaças e os palhaços pedem permissão para entrar e a obtém, não têm por intuito
submeter a criança a alguma performance. O artista explica que a ação palhacesca se
trata de “[...] estar a serviço da criança para construir junto com ela uma
performance.” (Wellington Nogueira). Esse trabalho, dessa forma, pode ser visto como
“[...] uma intervenção cênica na vida real, para construção de cenas, uma dramaturgia
da vida real.” (Wellington Nogueira).
Revelando a realidade através de novos filtros perceptivos, a dramaturgia da vida
real mencionada por Wellington é mediada pelas figuras palhacescas, que podem criar,
a partir de sua dimensão cênica, novas possibilidades para os encontros teatrais. Quanto
a isso, Masetti salienta:
A surpresa da presença de um palhaço, como conceito aparentemente
tão oposto à realidade hospitalar, tem a capacidade de brecar, ou
suspender a lógica dos pensamentos e a dinâmica de sentimentos
vividos por pacientes, familiares e profissionais. Isso abre espaço para
que essas pessoas percebam novos processos que acontecerão a partir
da visão de mundo do palhaço (MASETTI, 1998, p.18).
A busca por uma relação cênica é o pretexto fundamental e razão de existência de
palhaças e palhaços em contextos hospitalares. Para Masetti, o palhaço “[...] é movido
117
pela curiosidade e flexibilidade, pela capacidade de aceitar erros e transformá-los em
recursos, pela postura de enobrecer a atitude do outro, por mais absurda que ela seja ao
olhar racional.” (MASETTI, 2003, p. 36).
As figuras palhacescas, assim, fazem um chamado para a percepção da realidade
através dos sentidos e das sensações do corpo, que por breves momentos supera a
racionalidade cotidiana, cria novas maneiras de existir no espaço. O palhaço, para
Achcar,
[...] nos ensina a rirmos de nós mesmos. Ele aceita seu próprio
ridículo, e se expõe, tornando inútil a pretensão de sermos uns
melhores do que os outros. O palhaço nos lembra a nossa própria
humanidade. E é nessa perspectiva humana que a experiência do
humor, que ele traz para dentro do ambiente hospitalar, acaba
possibilitando a transformação da realidade das relações que nele se
estabelecem (ACHCAR, 2007, p. 19-20).
Em uma cena construída no contexto hospitalar, é difícil delimitar as margens
entre aquilo que é cênico e aquilo que é real. Ambas as dimensões existem no mesmo
espaço e são constituídas de humanidades em movimento e atenção. Os acontecimentos
são recebidos no ato de sua chegada, através de uma atitude de entrega do artista para
com o tempo e o espaço.
A constituição de uma corporeidade aberta ao mundo e que caminha em direção
ao encontro torna-se, nesse âmbito, um dos principais desafios de cada artista. Heraldo
Firmino, nessa direção, afirma que “A criança tem que olhar para você e perceber que
ela pode te acessar, e aí ela vira o terceiro palhaço e entra no jogo.” (Heraldo
Firmino). Tal premissa vale não somente para as crianças, mas também todos os
adolescentes, jovens, adultos e idosos que compõem o espaço hospitalar.
O encontro com as proposições das palhaças e dos palhaços se dá de maneira
opcional para as espectadoras e espectadores no contexto hospitalar. Aos artistas, como
vimos, encontrar-se é condição essencial, para a qual há inevitavelmente o impulso a
um estado de abertura para o encontro com o outro.
Palhaças e palhaços, desse modo, oferecem-se enquanto portais de acesso ao jogo
cênico, restando saber se cada espectador tem interesse em nele ingressar, e que história,
a partir de suas vivências, trará para compartilhar. Os encontros teatrais, promovidos
pelo jogo entre as circunstâncias da vida e a realidade peculiar do hospital, constituem-
se, assim, como cenas que emergem no tempo e no espaço corrente das ações.
118
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como foi possível constatar a partir das experiências palhacescas e da pesquisa
bibliográfica realizada, a atuação palhacesca nos palcos hospitalares depende da
abertura para a interação com as características do espaço, dos seres que o habitam, e
mesmo das variações que se dão entre os diferentes polos presentes no contexto
hospitalar, como a vida e a morte. Compreendido como imprescindível na atuação de
palhaças e palhaços em palcos hospitalares, a arte do encontro figura é mote criativo
central e é percebida como determinante na criação cênica hospitalar. A teatralidade,
assim, emerge da abertura para a relação entre artistas e espectadores.
Foi possível perceber, ainda, que no contexto dos hospitais se faz necessário um
treinamento pessoal no âmbito das Artes Cênicas por parte de cada artista, bem como no
campo das especificidades de atuação nos palcos hospitalares. Esse preparo, como
observado, alia-se às situações presentes por meio da sensibilidade das palhaças e dos
palhaços, que, ao se encontrarem com crianças hospitalizadas, seus acompanhantes,
equipe médica e funcionários do hospital, desenvolvem relações de jogo no tempo e no
espaço da ação.
O jogo cênico criado no contexto hospitalar valoriza a singularidade dos
indivíduos envolvidos, intensificando-se nesse espaço. Palhaças e palhaços de diferentes
formações artísticas, com distintas técnicas e experiências de vida são convidados pelo
próprio espaço a articular seus saberes e vivências no momento do encontro com os
espectadores, que se tornam ativos na constituição das cenas. O jogo cênico com os
integrantes dessa plateia, assim, não permite uma relação que desconsidere as suas
subjetividades, pois muitas vezes é composta apenas pela figura palhacesca e uma
pessoa em situação cotidiana. As peculiaridades de ambos é que, nestes casos,
determinam as ações.
Assim a atuação das palhaças e dos palhaços no contexto hospitalar aproxima-se
de um jogo mediado pelo encontro entre seres humanos, ao passo que se distancia de
uma forma espetacular convencional de teatro, da rua ou do circo. Nesses palcos
permeados pela lógica e pelo universo hospitalar, percebeu-se uma quebra de
paradigmas na atuação palhacesca, de modo que palhaças e palhaços passaram a
desenvolver suas ações mais sobre o pressuposto de encontrar-se do que de apresentar-
se.
119
As regras desse jogo são distintas, já que, no picadeiro circense ou nos palcos
teatrais, os espectadores estão concentrados em um só espaço, onde uma apresentação
ocorre para que todos a vejam ao mesmo tempo. Nos palcos hospitalares, as cenas
emergem de cada encontro, que, por sua capacidade de transgredir o cotidiano,
surpreendem os espectadores com suas proposições. Subvertendo as limitações de
tempo e espaço cênicos, esse tipo de atuação compromete-se fundamentalmente com as
circunstâncias presentes, distanciando-se delas apenas para promover novas lógicas de
ação, que ainda assim são por elas impregnadas.
Portando recursos e memórias milenares, as figuras palhacescas têm por
característica a geração de risos coletivos, favorecendo a troca entre seres humanos e, a
partir dessa troca, estabelecendo situações de jogo. Dialogando com o tempo e o espaço
em que vivem, palhaças e palhaços tanto se repetem como se renovam ao longo dos
milênios, e em decorrência desse movimento passaram a ocupar os contextos
hospitalares. Neles, compuseram palcos de atuação onde a vida e as Artes da Cena se
fundem de maneira intensa.
Neste trabalho, busquei, a partir da valorização das experiências de profissionais
que atuaram ou que atuam em espaços hospitalares, além da minha própria experiência
vivida como Doutora Brum, constituir uma atitude metodológica que abarcasse esses
saberes, concebidos em momentos de treinamento e de atuação. Buscando dialogar com
uma sabedoria fundada no corpo, em suas sensibilidades e em sua sabedoria, entrei em
contato e propus a compreensão da filosofia de Merleau-Ponty para fundamentar estas
reflexões.
Situando as sensibilidades do corpo enquanto importante meio de investigação do
fenômeno da atuação de palhaças e palhaços em palcos hospitalares, pude, ainda,
ingressar no campo das experiências de profissionais da palhaçaria. Nessas
experiências, estiveram sempre presentes o diálogo com o jogo, com as técnicas e
sensibilidade palhacescas, bem como com os encontros teatrais, nos quais há uma
imprescindível abertura dos artistas para com a alteridade. Essas unidades de
significados propuseram-se como importantes caminhos na investigação da atuação
palhacesca que acontece em contextos hospitalares.
Com base na experiência de profissionais palhaças e palhaços que atuam ou
atuaram em contextos hospitalares, busquei identificar os principais aspectos desse
espaço e tempo de atuação. Quais sejam: a elaboração de uma atitude de abertura para o
120
outro e para as circunstâncias do cotidiano, a constituição de jogos que envolvem
técnicas e sensibilidades de cada artista ao longo dos encontros teatrais gerados no
hospital.
Partindo desta investigação, na qual me debrucei com intensidade, assumo a
impossibilidade de definir em sua totalidade as figuras palhacescas, bem como suas
significações materiais e imateriais. Profundamente vinculadas às manifestações
humanas do corpo, essas figuras geram conteúdos internos e externos que se fazem num
perpétuo movimento de mudança.
Espero que, com esta pesquisa, eu possa aderir a esse movimento de mudança,
somando meus pensamentos a um campo que é repleto de transformações. Antes de
sentenciar afirmações ou elaborar um manual de atuação palhacesca hospitalar,
pretendi, aqui, ampliar as possibilidades de discussão desse fenômeno a partir da
experiência de profissionais das Artes Cênicas, assim como de minhas vivências
sensibilidades em relação a este tipo de trabalho.
A “[...] intervenção cênica na vida real.” (Wellington Nogueira) traz vasta gama
de contribuições para a área das Artes Cênicas e é capaz de ligá-la a diversas áreas do
conhecimento, redimensionando suas possibilidades e gerando imbricações para além
dos campos do Teatro e do Circo. Dialogar sobre a atuação palhacesca hospitalar, assim,
pode significar uma possibilidade de pensar a arte em contato direto com a vida, com
diversos campos e saberes.
Nos palcos hospitalares observou-se ainda o desenvolvimento de importantes
espaços formativos, onde se desenvolvem pesquisas na arte da atuação palhacesca. As
peculiaridades reveladas por este tipo de espaço ampliam saberes e experiências, que
influenciam no trabalho artístico em diversos espaços da sociedade. Influenciam
também no desenvolvimento da sensibilidade humana, como colocado aqui, elemento
essencial a ser desenvolvido no campo da palhaçaria hospitalar. Seja na área das Artes
ou no cotidiano, o hospital revelou-se como um potente local de ensino e aprendizagem.
Para mim, a atuação palhacesca hospitalar trouxe novas maneiras de estar em
contato com arte e com a vida, novos pensamentos e ligações com áreas antes pouco
conhecidas, como por exemplo, a da saúde. Posso afirmar com segurança que atuar
como palhaça em hospitais infantis foi um dos maiores desafios que, até hoje, encontrei
na arte e na vida – como se possível fosse apartá-las. Foi também o desafio pelo qual
me apaixonei em desmedida e ao qual dediquei largas horas do dia e da noite entre
121
sonhos e realidades.
Em ato de entrega para a atuação palhacesca hospitalar, ocorreu-me contextualizar
a composição milenar dessas figuras, bem como enveredar pelas experiências de artistas
que as compõem diariamente, compreendendo que o passado e o presente se tornam um
só neste campo de trabalho. Ao propor esta discussão por meio das linhas aqui escritas,
saliento que o tempo aqui empregado foi capaz de dilacerar e reinventar este ser que vos
escreve.
Vejo-me em cada letra deste trabalho, que para mim é espelho e avesso. Ao tecer
estas linhas, senti sabores, cheiros, sons, cores e texturas que vivi nos palcos
hospitalares. Os mesmos nós que insistem em fechar a minha garganta foram os que
conduziram esta escrita. Minhas experiências, desse modo, não estiveram presentes
apenas ocupando o tempo e o espaço deste trabalho, mas compuseram-no e
compuseram-me de maneira vital.
Consta abaixo, para finalizar esta dissertação, uma das primeiras imagens minhas
como palhaça atuando em palcos hospitalares. Nela podemos perceber uma tentativa de
interação entre as Artes Cênicas e a natureza da Vida:
Figura 14 - Doutora Brum (2013).
Fonte: Arquivo pessoal. Foto de Bruno Ferreira.
122
Posso concluir que, nesse campo de atuação, se não se dissolvem por completo,
muito se atenuam as fronteiras entre a arte e a vida. Com este trabalho, concluo
importante ciclo como artista e pesquisadora, desejando oferecer contribuições para
outras trajetórias que são artísticas e também cotidianas. Anseio que essas intersecções
se ampliem no Brasil e no mundo, somando novos saberes tanto para as Artes Cênicas
quanto para o cotidiano hospitalar.
Por acreditar na potência do encontro do Teatro com o cotidiano das pessoas, foi
possível tecer estas linhas, alimentadas de múltiplas experiências. Desejosa de que se
ramifiquem os diálogos entre a Arte e a Vida, ofereço este trabalho, que de algum modo
se propôs a investigar e a contribuir para a construção dessas tão necessárias relações.
123
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130
APÊNDICES
APÊNDICE A
LISTA DE FILMES
I clowns (Os palhaços), direção de Federico Fellini, Itália, 1970.
Amarcord, direção de Federico Fellini, Itália, 1973.
Doutores da Alegria - O filme, direção de Mara Mourão, Brasil, 2005.
Patch Adams - O amor é contagioso, direção de Tom Shadyac, Estados Unidos, 1998.
O palhaço, direção e atuação principal de Selton Mello, Brasil, 2011.
Hotxuá, direção de Letícia Sabatela, Brasil, 2009.
Clown in' Kabul (Palhaços em Cabul), direção de Enzo Balestrieri, Cabul, 2002.
Il viaggio di Capitan Fracassa (Viagem do Capitão Tornado), direção de Ettore Scola,
Itália, 1990
Le bal (O baile), direção de Ettore Scola Itália, 1983.
Brutti, sporchi e cattivi (Feios, sujos e malvados), de Ettore Scola, Itália, 1976.
L'armata Brancaleone (O incrível exército de Brancaleone), direção de Mário Monielli,
Itália, 1966.
The General (O General), direção e atuação principal de Buster Keaton, Estados
Unidos, 1926.
Sherlock Jr., direção e atuação principal de Buster Keaton, Estados Unidos, 1924.
Modern Times (Tempos Modernos), direção e atuação principal de Charlie Chaplin,
Estados Unidos, 1936.
The kid (O garoto), direção e atuação principal de Charlie Chaplin, Estados Unidos,
1921.
The gold rush (A corrida do ouro), direção e atuação principal de Charlie Chaplin,
Estados Unidos, 1925.
The Great Dictator (O grande ditador), direção e atuação principal de Charlie Chaplin,
Estados Unidos, 1940.
131
The circus (O circo), direção e atuação principal de Charlie Chaplin, Estados Unidos,
1928.
Duck Soup (Diabo a quatro), direção de Leo McCarey, estrelando os Irmãos Marx,
Estados Unidos, 1933.
Bean: The Ultimate Disaster Movie (Mr. Bean - O filme), direção de Mel Smith, Reino
Unido, 1997.
Little Miss Sunshine (Pequena Miss Sunshine), direção de Jonathan Dayton e Valerie
Faris, Estados Unidos, 2006.
Black Cat, White Cat (Gato preto, gato branco), direção de Emir Kusturica, Jugoslávia,
1998.
Zivot Je Cudo (A vida é um milagre), direção de Emir Kusturica, Sérvia, 2004.
The King of Comedy (O rei da comédia), direção de Martin Scorsese, Estados Unidos,
1982.
Borat: Cultural Learnings of America for Make Benefit Glorious Nation of Kazakhstan
(Borat - O segundo melhor repórter do glorioso país Cazaquistão viaja à América),
direção de Larry Charles, Estados Unidos, 2006.
Forrest Gump, direção de Robert Zemeckis, Estados Unidos, 1994.
Big Fish (Peixe grande), direção de Robert Zemeckis, Estados unidos, 2003.
Antonia (A Excêntrica Família de Antônia), direção de Marleen Gorris, Países Baixos,
1995.
La cité des enfants perdus (O ladrão de sonhos), direção de Jean-Pierre Jeunet, Marc
Caro, França, 1995.
L'Extravagant Voyage du jeune et prodigieux T. S. Spivet (Viagem extraordinária),
direção de Jean-Pierre Jeunet, França, 2013.
Noviembre (Novembro), direção de Rodrigo Bento, Espanha, 2011.
Le Petit Nicolas (O pequeno Nicolau), direção de Laurent Tirard, França, 2009.
Los colores de la montaña (As cores da montanha), direção de Carlos César Arbeláez,
Colombia e Panamá, 2010.
Chocolat (Chocolate), direção de Roschdy Zem, França, 2016.
千と千尋の神隠し (A viagem de Chirriro), direção de Hayao Miyazaki, Japão, 2001.
132
ANEXOS
ANEXO 01
CARTA SOLICITANDO PERMISSÃO À DIREÇÃO/COORDENAÇÃO DA ONG
DOUTORES DA ALEGRIA – SÃO PAULO PARA A REALIZAÇÃO DA
PESQUISA.
São Paulo, 31 de agosto de 2015.
Prezada Direção,
Como aluna do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – PPGARC da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, tendo como orientadora a Prof.
Dra. Karenine de Oliveira Porpino, venho solicitar a autorização a Vossa Senhoria para
aplicar um estudo sobre a história da ONG, bem como realizar entrevistas com
membros do elenco e formadores da organização. A pesquisa trata-se da investigação
sobre a comicidade do palhaço que atua no contexto hospitalar. A participação neste
estudo não oferece danos ou prejuízos ao grupo e aos participantes do estudo em
questão, mas pretende dialogar com suas contribuições enquanto profissionais das Artes
Cênicas.
A pesquisa pretende contribuir para um maior entendimento sobre a comicidade
do palhaço no contexto hospitalar, assim como contribuir para futuras pesquisas e
colaborar no sentido de perceber a importância de se investigar as especificidades deste
trabalho cênico. A identidade dos entrevistados poderá ser mantida em sigilo, caso
solicitado pelo entrevistado. Gostaria de contar com a valiosa ajuda de Vossa Senhoria
para a realização deste trabalho. Caso deseje mais informações, pode dirigir-se a Prof.
Dra. Karenine de Oliveira Porpino, do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas –
PPGARC da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Desde já agradeço
sua cooperação.
___________________________________________________________________
Prof. Dra. Karenine de Oliveira Porpino
_________________________________________________________________
Mestranda Daiani Cezimbra Severo Rossini Brum
___________________________________________________________________
Direção dos Doutores da Alegria
133
ANEXO 02
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Fui informado (a) de que a pesquisa “A atuação de palhaças e palhaços: o
hospital como palco de encontros”, desenvolvida como trabalho de mestrado pelo
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN tem como objetivo investigar
os processos artísticos que envolvem a composição da palhaçaria no contexto
hospitalar.
Fui informado (a) também de que a coleta de dados envolve entrevistas
semiestruturadas a serem realizadas presencialmente, e registradas através da gravação
do áudio. As gravações de áudio terão fim científico e acadêmico. Fui esclarecido (a)
também de que a participação neste estudo não oferece danos ou prejuízos à pessoa
participante do projeto em questão. Fui informado também de que a identidade dos
entrevistados será mantida em sigilo, caso solicitado pelo entrevistado.
Os pesquisadores responsáveis pela pesquisa são a Professora Dra. Karenine de
Oliveira Porpino, professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte e a mestranda Daiani Cezimbra Severo
Rossini Brum, aluna do referido Programa. É estabelecido o compromisso por parte dos
pesquisadores de aclarar quaisquer dúvidas e demais informações que sejam necessárias
no momento da realização do estudo ou posteriormente, por meio do telefone (84)
3342-2340 (ramal 9) do PPGARC da UFRN.
Após ter sido devidamente informado (a) dos aspectos relacionados à pesquisa e
ter elucidado todas as minhas dúvidas, eu
________________________________________, portador de Identidade
n.°________________, declaro para os devidos fins que concedo os direitos de minha
participação por meio de depoimentos apresentados para a pesquisa realizada na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), desenvolvida pela mestranda
Daiani Cezimbra Severo Rossini Brum, com a orientação da Profa. Dra. Karenine de
Oliveira Porpino, para que sejam utilizados integralmente ou em parte, sem condições
restritivas de prazos e citações, a partir desta data. Da mesma forma, dou permissão e o
uso das referências a terceiros, ficando o controle das informações a cargo desses
pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN.
134
Renunciando voluntariamente aos meus direitos autorais e os de meus
descendentes, dou consentimento para a presente declaração, São Paulo,....../....../ de
2015.
_________________________ _________________________
Ass. do participante da pesquisa Ass. da Pesquisadora
Carta de Cessão de direito
Eu, _________________________________________, portador de Identidade
n.º_____________, declaro, para os devidos fins, que cedo os diretos das entrevistas
realizadas no período de setembro de 2015, revisadas por mim, para Daiani Cezimbra
Severo Rossini Brum, Identidade 580834566 SSP/SP, podendo esta utilizá-las
integralmente ou em parte, sem restrições de prazos e citações, desde a presente data.
Dessa forma, autorizo o uso das citações e imagens. Abdicando igualmente dos direitos
dos meus descendentes sobre a autoria dos ditos dados, subscrevo o presente
documento.
São Paulo, _______________de 2015.
135
ANEXO 03
EDITAL PFPJ
136
137