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Daniel Bensaid - Marx - Manual de Instruções

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Marx - Manual de Instruções

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Sobre Marx, manual de instruesMarcelo RidentiLererelerMarx.Eisumapropostaquepodeparecerdogmtica,comosetodososproblemasdopresenteedofuturoestivessemresolvidosnassagradasescriturasdeumantigoprofetavisionrio.NoocasodestelivrodofilsofoeativistafrancsDanielBensad.Tampoucosetratadedescobriralgumaspectodespercebidoquedariaumanovachave de leitura obra do revolucionrio alemo, nem de enveredar em discusses sobre seuverdadeiropensamento.Apropostafornecerummanualdeinstruespossveisparainterpretar a obra do Mouro, plena de controvrsias, enfatizando o carter crtico radicaldeseupensamento,avessoaortodoxiasefanatismos,abertoautocrticaeaptoaacompanhar o movimento contraditrio e cambiante da vida social, que envolve constante(auto)questionamento. E usar esse instrumental terico para compreender e transformar omundonocomeodosculoXXI,dominadocomonuncapelofetichismodamercadoriaediante de uma grave crise do capital.Recorrendoarefernciasliterrias,numaprosabem-humorada,BensadlanaoleitornorodamoinhodopensamentodeMarx.Expesuatrajetriadevidaedestacatrechosdesuaobraparatratardetemascomoareligioeosfetiches;classeselutadeclasses;aatualidade do Manifesto Comunista; a revoluo e sua temporalidade; a poltica, o Estado eopartido;ateoriadovaloreacontribuiodeOcapital;ascrises;aecologiaeoprodutivismo;acinciaeocomunismo.Porfim,fazumbalanoalentadordaheranadeMarx em pensadores do presente. H quem possa contestar o estilo metafrico adotado peloautorporsinal,inspiradonobarbudo,bemcomoaspectosdainterpretaoproposta.Massoinegveissuavervecriativaeseuconhecimentodotema.Oleitorganhaumapanhado polmico no s para investigar o clssico pensador alemo, mas tambm o legadode Bensad.Sobre Marx, manual de instruesEstlongeapocaemqueumaimprensabarulhentaanunciavaaomundoamortedeMarx, to aliviada por seu desaparecimento quanto temerosa de que ele retornasse. Passados130 anos, eis que o semeador de drages ressurge e volta a causar alvoroo: as edies deOcapital se multiplicam mundo afora e sua verso em mang torna-se um best-seller no Japo; arevista Time o celebra como uma torre imensa que domina as outras no nevoeiro e at emWall Street h manifestaes aos gritos de Marx tinha razo!.Este livro, com texto de Daniel Bensad e ilustraes bem-humoradas de Charb, pretendemostrarcomoacrticaradicaldeMarx,relutanteaqualquerortodoxia,aqualquerfanatismodoutrinrio,sempreprontaautocrtica,suaprpriatransformaoousuperao, vive as questes deixadas entreabertas e as contradies no resolvidas em nossotempo.umconvitedescobertaecontrovrsiae,aomesmotempo,umaintroduodidticaedivertidaaessateoriafenomenalque,comodisseofilsofofrancsJean-PaulSartre, estar viva enquanto o capitalismo existir.Sumrio Introduo1.Como se tornar barbudo e comunista2.De que morreu Deus?3.Por que a luta tem classe4.Como o espectro encarnou e por que sorri5.Por que as revolues nunca chegam na hora certa6.Por que a poltica desregula os relgios7.Por que Marx e Engels so intermitentes no partido8.Quem roubou o mais-valor? O romance noir do capital9.Por que o sr. Capital corre risco de crise cardaca10.Por que Marx no nem um anjo verde, nem um demnio produtivista11.Como e em que pensa o dr. Marx12.Uma herana sem dono em busca de autoresCronologia resumida de Marx e EngelsSobre o autor e o ilustradorIntroduoSer sempre um erro no ler, reler e discutir Marx. Ser um erro cada vez maior, uma falta deresponsabilidade terica, filosfica, poltica.Jacques DerridaUmtrovoinaudvel,escreveuofilsofoGrardGranelarespeitode Ocapital.Inaudvel talvez para aqueles que foram seus contemporneos. O estrondo desse trovo, noentanto, no deixou de se amplificar desde ento, a ponto de ser hoje ensurdecedor.EstlongeapocaemqueumaimprensaruidosaanunciavatriunfalmenteaomundoamortedeMarx.Involuntariamente,elaexprimiaassimtantooalvioporseudesaparecimentoquantootemordequeelevoltasse.Essetemidoretornocausahojeumgrandealvoroo.Aedioalemde O capitaltriplicousuasvendasemumano.Suaversoem mang tornou-se um best-seller no Japo. Jacques Attali[a] incensa o monumento Marx,mas sugere despropositadamente inspirar-se no papel importante dos fundos de penso edos mercados financeiros norte-americanos. Alain Minc[b] proclama asi prpriooltimomarxistafrancs(sic!),tomandoocuidadodeacrescentar:sobcertosaspectos.Porltimo,arevistaTimecelebraMarxcomoumatorreimensaquedominaasoutrasnonevoeiro. At em Wall Street houve manifestaes aos gritos de Marx tinha razo!.Esse entusiasmo suspeito justifica o receio de que o come-back de um Marx pleiadizado epanteonizadoreduza-seaumabanalizaomiditica,tornandoinofensivoaquelequequissemeardrages.UmMarxsemcomunismonemrevoluo;emsntese,academicamentecorreto.Ashomenagens,tonumerosasquantotardias,so,namaiorparte,prestadaspelovcio virtude. Queiram ou no, saibam ou no, todos os homens sobre a terra so, de certamaneira,herdeirosdeMarx,escreveuJacquesDerrida,emseu EspectrosdeMarx[c].EFernandBraudelrecordouaquepontooespritodapocaeseuvocabulrioestavamimpregnadosdasideiasdeMarx.Emsuma,eatcertoponto,apocapraticaomarxismosem saber.Hmais.Narealidadedomundoatual,ocapitalismoseaproximadeseuconceitoterico.Faztudovirarmercadoria:ascoisas,osservios,osabereavida.Generalizaaprivatizao dos bens comuns da humanidade. Desencadeia a concorrncia de todos contratodos.Nospasesdesenvolvidos,90%dapopulaoativaagoraassalariada.Tudoissoconcorreparaqueacriseatualapresente-secomoumacriseinditadaquiloqueMichelHussonchamadecapitalismopuro.Justifica-seassimplenamenteaafirmaodeDerrida,segundo a qual no h futuro sem Marx, ou pelo menos sem a memria e a herana de umcertoMarx.Suaatualidadeadoprpriocapital,desuacrticadaeconomiapoltica,eisso faz dele um grande descobridor de outros mundos possveis.Estelivronopretenderestabelecer,portrsdasfalsificaesedaespessacrostadeideias recebidas, o verdadeiro pensamento de um Marx autntico e desconhecido. Pretendeapenasapresentarummanualdeinstruespossveis,mostrandocomosuacrticaradical,relutanteaqualquerortodoxia,aqualquerfanatismodoutrinrio,sempreprontaautocrtica,suaprpriatransformaoousuaprpriasuperao,viveasquestesdeixadasentreabertaseascontradiesnoresolvidas.umconvitedescobertaecontrovrsia.Ao mesmo tempo introduo recreativa a uma obra, lembrete, caixa de ferramentas parapensareagir,estelivrodesejacontribuir,naaproximaodegrandesturbulnciasetormentas com desfecho incerto, para afiar novamente nossas foices e nossos martelos. [a] Economista, conselheiro do presidente Franois Mitterrand. (N. T.)[b] Empresrio francs. (N. T.)[c]JacquesDerrida, EspectrosdeMarx:oestadodadvida,otrabalhodolutoeanovaInternacional(trad.AnamariaSkinner, Rio de Janeiro, Relume-Dumar, 1994). (N. E.)1Como se tornar barbudo e comunistaNo mesmo ano em que Mary Shelley traz ao mundo um certo doutor Frankenstein, vem luzumrobustobeb,em5demaiode1818,nafamliaMarx,ruaBrcken,665,emTrier(Rennia). Morre-se muito, e jovem, na casa dos Marx. Um irmo mais velho morre no mesmoano do nascimento do pequeno Karl. Quatro outros irmos e irms perecem prematuramentedetuberculose.Slherestamumairmmaisvelhaeduasmaisjovens.Maistarde,dosseisfilhosdeKarledesuacompanheiraJenny,apenastrsfilhassobreviveroJenny,Laura,Eleanor , mas as duas ltimas acabaro por se suicidar.ComooreiLear,ojovemKarltematrgicavocaodeserhomementrevriasmulheres. E moas.Pelo lado da me, os Marx descendem de uma linhagem de judeus holandeses, rabinos hsculos, qual tambmpertenceoprsperotio Philips.PapaiMarx,por suavez,maisumhomemdasLuzes,alimentadoporVoltaire,RousseaueLessing.ParaescapardainterdioimpostaaosjudeuspelasautoridadesprussianasdesetornaremfuncionriosdoEstado,HirschelMarx,advogadoemTrier,coagidoaconverter-seaocatolicismoetorna-seHeinrich Marx.De 1830 a 1835, em uma Rennia agitada por manifestaes a favor da unidade alem e dasliberdades polticas, o jovem Karl um estudante mediano do Ginsio de Trier, versificadorem alguns momentos e talentoso para a escrita. No outono de 1835, de posse de seu diploma,parteparaBonnafimdeiniciarumcursodedireito.Emcomposioredigidanessemesmoano, sobre a meditao de um adolescente diante da escolha de sua profisso, ele demonstraaaspiraodeagirnointeressecomum,aincertezaquantoescolhadacarreiraeaconscinciadasdeterminaessociaisdessaescolha:Nemsemprepossvelabraaraprofissoparaaqualnsnossentimosimpelidos,porquenossasrelaescomasociedadecomearam, de certa forma, antes que pudssemos determin-las.Habitus, quando nos pegas!De filho prdigo...EmBonn,oestudanteMarx,bombebedor,frequentaastabernaseoclubedospoetas.Entusiasta,briguento,bomio,perseguidopordvidasebate-seemduelo,apesardasreprimendas de um pai que julga incompatveis o duelo e a filosofia.Em 1836, com dezoito anos, vai de Bonn para Berlim. Ao longo de sua correspondncia, opaidescobreemseumeninoumapaixodemonaca.Ascartastraduzemumatensocrescente. Em 10 de novembro, Karl escreve:Meu caro pai, h na vida momentos que so como marcas de fronteira erguidas ao fim de um perodo concludo e que,ao mesmo tempo, indicam uma nova direo. A poesia no poderia ser mais do que um coadjuvante. Era necessrio queeuestudassejurisprudncia,esentiaprincipalmenteumfortedesejodemeaplicarfilosofia. Tivedepassarmuitasnoites em claro, sustentar muitas lutas [...]. Tombou um vu, meu santo dos santos estava despedaado, era necessrioprocurar novos deuses. Queimei todos os poemas, todos os novos projetos.Um ms mais tarde, Marx pai responde:Desordem, sombrios passeios por todos os domnios do saber, sombrias cogitaes luz de uma lamparina; a indolnciaemrobedeintelectual,comoscabelosdesgrenhados,substituiaindolnciadiantedocopodecerveja:insociabilidadequeafastaatodos,comdesprezoatodadignidadeeatodaconsideraoporseupai.Voccausouaseus pais muito sofrimento e lhes deu bem pouca, ou mesmo nenhuma, alegria.Gastador,ofilhofesteiroepagadebomgradoacontadoscolegas.Opaideplorasuaprodigalidade:Comosefssemosduendesrevestidosdeouro!.Ficaindignadocomodescaso filial: Mas como um homem que, a cada quinze dias, precisa inventar novos sistemase rasgar seus velhos trabalhos poderia, pergunto, ocupar-se desses pequenos detalhes?.Heinrich Marx morre cinco meses depois, em 10 de maio de 1838, sem reconciliao.Nasfriasdeverode1836,ojovemMarxhavianoivadosecretamentecomJennyvonWestphalen, quatro anos mais velha. Em Trier, as famlias Marx e Westphalen so vizinhas.Ascrianascompartilhambrincadeiras,estudos,emoesjuvenis.Cortejadacomoumamaravilhosa princesa por muitos homens da boa sociedade, Jenny a rainha do baile. Noentanto,prefereconcederseusfavoresaesseadolescentemorenoeturbulento,aquemapelidameujavaliselvagem.NoNatalde1836,Karllhededicatrsvolumesdepoemas,intitulados O livro do amor. Mas o casamento oficial s acontece sete anos mais tarde, em 19de junho de 1843, em Kreuznach. Os dois amantes dilapidam, ento, em poucas semanas, o doteda noiva.Na vspera do casamento, Karl escreve a seu correspondente Arnold Ruge:Possolheassegurar,semsombraderomantismo,queestouapaixonadodacabeaaosps,omaisseriamentepossvel.Fazmaisdeseteanosqueestounoivo,eminhanoivatevedeenfrentarpormimduroscombates,tantocontraseusparentesquantocontraminhaprpriafamlia,naqualseintrometeramalgunspadreseoutraspessoasquenomesuportam.... a filho prodgioEmBerlim,Karltorna-seamigodejovensestudantesfascinadosporHegel,mortopoucos anos antes, cujo esprito ronda os crculos intelectuais. Juntos, decifram a lgebradarevoluo,entusiasmam-sepelacrticadareligiodeFeuerbach,devoramEspinosaeLeibniz. Mas as liberdades acadmicas estreitam-se como a pele de onagro[a] sob os golpes dareao prussiana. As perspectivas de carreira universitria desaparecem.Emabrilde1841,KarlMarxtorna-sedoutor,defendendoemIenaatese AdiferenaentreasfilosofiasdanaturezaemDemcritoeEpicuro.Acomparaoentreosdoisfilsofosgregos,paraquemomundomaterialcompostoportomos,favoreceosegundo.ParaDemcrito,anecessidadeseriaodestinoeodireito,aprovidnciaeacriadoradomundo.ParaEpicuro,anecessidade,quealgunsapresentamcomosenhoraabsoluta,noexiste:algumascoisassofortuitas,outrasdependemdanossavontadeeviveremnecessidadenoumanecessidade.Osanosdeformaosempredeixamtraosprofundos.TodosqueveememMarxumdeterministavulgar,paraquemtodososfenmenossociaisdecorreriamdeumaimplacvelnecessidadeeconmica,deveriamselembrardesseaprendizado filosfico.Sob Frederico Guilherme IV, a Prssia permanece um Estado reacionrio e intolerante.Como a carreira universitria parece inacessvel, os jovens intelectuais rebeldes dirigem-separa a imprensa. Em 1o de janeiro de 1842, surge em Colnia, sob a responsabilidade editorialde Moses Hess, o primeiro nmero da Gazeta Renana. Voltando de Berlim, o jovem dr. Marxfaza,aos23anos,suabrilhanteestreiacomojornalista.Seusprimeirosartigossobrealiberdadede imprensacausam sensao.Emoutubro,torna-seeditordo jornal. Moses Hesstraa, ento, um retrato muito elogioso e proftico: um fenmeno que me causou enorme impresso [...]. Dr. Marx (esse o nome de meu dolo) um homem muito jovem,de24anosnomximo.Eledarnareligioenafilosofiamedievalotirodemisericrdia.Elealiaamaisprofundaseriedade filosfica ao esprito mais mordaz. Imagine Rousseau, Lessing, Heine e Hegel fundidos no mesmo personagem e ter o dr. Marx.Emjaneirode1843a GazetaRenanainterditadapelacensura.Marxcogita,ento,deixar o pas:lamentveltestemunhartrabalhosservis,mesmoqueemnomedaliberdade,elutarcomalfinetadasenocomcacetadas.Estoucansadodehipocrisia,deestupidez,deautoridadebrutal.Estoucansadodenossadocilidade,denossa obsequiosidade, de nossos recuos, de nossas querelas por meio de palavras. Nada posso fazer na Alemanha. Aqui,falsifica-se a si mesmo.Aps celebrar seu casamento e consagrar o vero leitura crtica das obras de Hegel sobre aquestododireitoedoEstado,parteemsetembroparaumexliovoluntrioemParis,velha escola superior de filosofia e capital do novo mundo.A mutaoDeoutubrode1843ajaneirode1845,aprimeiratemporadaparisienseocasiodoencontrodeMarxcomaimigraooperriaalemecomomovimentosocialistafrancs.Instalado com Jenny em um quarto na rua Vanneau, Karl desembarca cheio de entusiasmo eardornessacapitaldonovomundo,comumprojetodepublicaomensal,osAnaisFranco-Alemes.Ottulofrisaavontadedealiaratradiofilosficaalemtradiorevolucionriafrancesa.Arevistaterumseniconmero.Marxnelepublicadoisartigos,sobreafilosofiadodireitodeHegelesobreaquestojudaica.Elestraduzemsuaevoluo do liberalismo democrtico ao socialismo, mas no ainda ao comunismo.Em 1842, em Colnia, o jovem dr. Marx cruzara com um colaborador ainda mais jovem daGazeta, trs anos mais moo, a caminho de Manchester. Enquanto o estudante Marx bebia eduelavaemBerlim,oturbulentoEngelsderisoeternoseentediavaemBremen,naempresafamiliardeimportao-exportaoondedeveriafazerseuaprendizadocomercial.Empreendedorenrgicoereligiosorigorista,EngelspaifundouemManchester,capitalmundialdosfiosdealgodo,umafbricadefiao,Ermen&Engels,daqualeracoproprietrio.Destinadoaserseusucessor,Engelsfilhonoherdoumuitavocao.Prefere escrever poemas exticos sobre a caa aos lees e a vida livre dos bedunos, balanar-se na rede, enfumaar-se com grossos charutos, fazer a ronda das tabernas, cobrir cadernoscomesboosecaricaturas.Bebemuito,praticaesgrimaeequitaoeexibeumbigodeprovocador.Vangloria-sedenotercompradoporumttuloodireitodefilosofar.Eenviaumacircularatodososjovensemidadedeusarbigodeparalhesdizerqueenfimchegou o momento de amedrontar todos os burgueses. Como poeta supremo e beberro deelite, declara aos antigos, aos presentes, aos ausentes e a todos que viro que no passamdecriaturaspodres,estagnadasnodesgostodaprpriaexistncia.Eletentaatumromance espanhol, escreve uma carta danarina Lola Montez e se entedia profundamente.Desetembrode1841aoutubrode1842,Friedrich,queaosvinteanosjsedeclaracomunista,fazseuserviomilitarcomovoluntrionaartilharia.oinciodeumapaixoporassuntosmilitaresquelhevaleroapelidodeGeneral.EnviadoaManchesterparacontinuar sua educao comercial, entra em contato com o movimento cartista e descobre,empioneirodasociologiaurbanaedasociologiadotrabalho,acondiooperria.Navolta,seuencontrocomMarxemParistemaforadapaixointelectual.Umacordoperfeito emerge de suas longas conversas no Caf de la Rgence. Comeam a escrever juntosumapequenabrochura, Asagradafamlia.EngelsvoltaparaaAlemanhaeMarxdbrochuraadimensodeumlivro,doqualescreveoitodcimos.Engels,quenoescreveumais do que um curto captulo a bem da verdade, decisivo , fica atnito ao ver seu nomena capa da publicao.Na Rennia, h agitao. Reunies e crculos comunistas multiplicam-se. Em maio de 1845,Engels publica seu prprio livro, A situao da classe trabalhadora na Inglaterra: A guerrasocial, aguerrade todos contra todos, aquiexplicitamentedeclarada. [...] permanecemosespantados com o fato de este mundo enlouquecido ainda continuar funcionando[b].Do momento utpico ao comunismoEm artigo de 1843, Os progressos da reforma social no continente, o jovem Engels (deapenasvinteanos)declara,nosemiluses,umentusiasmojuvenilpelocomunismo:HnaFrana mais de meio milho de comunistas, sem contar os fourieristas e outros reformadoressociais menos radicais[1].Ocomunismoparaele,ento,umaconclusonecessriaquesetemdeextrairdascondiesgeraisdacivilizaomoderna.Emsuma,umcomunismolgico. Um novo comunismo, produto da revoluo de 1830, porque:[ostrabalhadores]retornaramentosfontesvivaseaoestudodagranderevoluoeapoderaram-sevivamentedocomunismo de Babeuf, o animador da Conspirao dos iguais contra a reao termidoriana, em 1795. Isto tudo quesepodedizercomcertezadocomunismomodernonaFrana:discute-seprimeironasruassombriasenasruelasabarrotadas de gente do subrbio Saint-Antoine.Antesde1848,essecomunismoespectral,semprogramadefinido,rondaoespritodapoca sob as formas mal esculpidas da seita dos Igualitrios ou dos devaneios icarianos deCabet,tericonosanos1840deumautopiacomunitria.NaAlemanha,pelocontrrio,aparece primeiro como uma tendncia filosfica. J em agosto de 1842, alguns entre ns nopartido[2] estimavam que as mudanas unicamente polticas seriam insuficientes e declaravamquesuasconcepesfilosficasspoderiamcaminharjuntocomumarevoluosocial.Ocomunismosurgeassimcomoumaconsequnciatonecessriadafilosofiahegelianaqueningumpoderiamaisdestru-lo.Parecequeessecomunismofilosfico( sic)estbemenraizado na Alemanha. Sua origem tem, no entanto, uma consequncia paradoxal, lamentaojovemFriedrich,namedidaemquensrecrutamosentreasclassesquesebeneficiaramdosprivilgiosdacultura,querdizer,entreuniversitriosehomensdenegciosquenoconhecerampessoalmentemuitasdificuldadesnavida.porissoquetemosmuitoaaprendercomossocialistasingleses,quenosprecederamefizerampraticamentetodootrabalho[3].No incio dos anos 1840, o jovem dr. Marx mais reservado que seu colega mais moo. Ocomunismo(deCabet,Demazy,Weitling)aindaaseusolhosumaabstraodogmtica,uma manifestao original do princpio do humanismo. Escreve a Ruge, em 30 de novembrode 1842:Tinhapordespropositada,oumelhor,porimoral,aintroduosub-reptciadedogmascomunistasesocialistas,ouseja, uma nova concepo de vida, nas narrativas de teatro que nada tm a ver com isso, e eu gostaria de uma discussocompletamente diferente e aprofundada do comunismo, se que o assunto merecia ser discutido...EmnovacartaaRuge,emmaiode1843,elepedepararefletiraindamaisantesdesepronunciar:Anossapartenissotudotrazerovelhomundointeiramenteluzdodiaedarumaconformaopositivaaonovomundo.Quantomaisoseventosderemtempohumanidadepensanteparaseconcentrarehumanidadesofredorapara juntar foras, tanto mais bem-formado chegar ao mundo o produto que o presente carrega no seu ventre.[c] o contato com o proletariado parisiense e o encontro com Engels no outono de 1844 queprecipitamsuamudanafilosficaepoltica.EduranteaestadiacomumnaBlgicaqueamadurece o sentido de seu compromisso poltico.Engels considera a resposta polmica de Marx a Proudhon em 1847, Misria dafilosofia,comoaprimeiradefinioprogramticaconcreta:Podemconsiderarosr.Marxcomoochefedenossopartido(i.e.,dafacomaisavanadadademocraciaalem),eseurecentelivrocontraProudhoncomonossoprograma.Ocaminho,ento,estabertoparaaredaodo ManifestodaLigadosComunistas,qualosdoisamigosacabamdeseafiliar:Reflita um pouco, escreve Friedrich a Karl em 25 de novembro de 1847, sobre a profissodef.CreioquesejaprefervelabandonaraformadecatecismoeintitularessabrochuraManifestoComunista.Faltaagorasubmeterateoriaaofogodaprtica.Osfatosnotardaro a faz-lo.Oproletariadonascentetevedejogar-senosbraosdosdoutrinriosdesuaemancipaoedasseitassocialistas,dosespritosconfusosquedivagamemhumanistasnomilniodafraternidadeuniversalcomoabolioimaginriadasrelaesdeclasses,escrevem os autores do Manifesto. Mas o movimento real que se ope ordem estabelecidatende a superar seu momento utpico para dar ao possvel um contedo prtico. Ele dissipaas fantasias sectrias e torna ridculo o tom de orculo da infalibilidade cientfica.AleituradocaptuloIIIdo ManifestoComunista,sobrealiteraturasocialistaecomunista[d],mostraaquepontoascorrentesrevistasencontramsuaequivalncianasutopias contemporneas. H em algumas delas como a ecologia profunda os vestgios deumsocialismofeudal,nostlgicodeumacomunidadecoesa,ondesemisturamjeremiadasdopassadoebramidossurdosdofuturo.Aomesmotemporeacionrioeutpico,essesocialismo nostlgico sonha em girar ao contrrio a roda da diviso social do trabalho pararetornaraummundoartesanaldepequenosprodutoresindependentesecalorfamiliar.Algumas verses extremas da teoria do decrescimento flertam com a nostalgia romntica deumaordemnaturalharmoniosaedeumamenaturezabenevolente,pretendemsepararautoritariamenteasnecessidadesverdadeirasdasfalsas,oindispensveldosuprfluo.Osonhodeumarelocalizaogeraldaproduoemoposioaoshorroresdamundializaodomercadoconduzigualmenteaomitoreacionriodeumaautarquiacomunitria primitiva, que Naomi Klein chama de fetichismo da vida-museu.Encontram-senojargocontemporneodaautenticidade(onaturaleobruto)asformascontemporneasdessesocialismoverdadeiro,quepreferiaanecessidadedoverdadeirosverdadeirasnecessidades.Hoje,comoontem,elepretendedissolverosantagonismosdeclassenointeressedohomememgeral.Sonhacomumasociedadeburguesasemlutadeclassese,sepossvel,sempoltica.Damesmamaneiraqueoantigosocialismoverdadeiroexprimiaavisodemundodapequenaburguesiaalem,onovoexprime a viso amedrontada da nova classe mdia, arrastada no turbilho da mundializaodomercado.V-seassimreapareceremasversesatualizadasdeumsocialismoburguspregado pelos filantropos humanitrios, ocupados em organizar a caridade e proteger osanimais.ComoosqueforamoutroraridicularizadosporMarx,osfilantroposdehojedesejariamasociedadeatualsemseusperigos,aburguesiasemoproletariado,asproezasdoscampeesdabolsasemodesemprego,oslucrosfabulosossobreosinvestimentossemdemisses nem deslocalizaes. Hoje como ontem, gostariam de convencer os explorados deque para o seu bem que os exploradores so como so.Encontram-se,enfim,nasfantasmagoriascontemporneastodasasvariantesmodernizadasdosocialismocrtico-utpicodeantigamente.Naausnciadecondiesmateriaisedeforassociaismadurasparaaemancipao,oprotocomunismodosanos1830preconizaumasceticismogeraleumgrosseiroigualitarismo.Sempercebernoproletariadoembrionrioqualquercriatividadehistrica,substitui-oporumacinciaealgumasleissociais,preparadasemlaboratrio:osengenheirosdofuturosubstituemaatividade social por sua prpria imaginao pessoal; as condies histricas da emancipaoporcondiesfantsticas;aorganizaogradualeespontneadoproletariadoemclasseporumaorganizaodasociedadepr-fabricadaporeles.Rejeitam,portanto,todaaopolticaeseempenhamempropagaronovoevangelhopelaforadoexemplo,comexperincias em pequena escala e que naturalmente sempre fracassam[e]. poca de Marx, essas utopias juvenis ainda tinham o frescor da novidade e a ambio demudaromundo.Suaversosenilcontemporneasegueodiapasodapoca.Modestaeminimalista, contenta-se em ajeit-lo.A irrupo do espectroEm janeiro de 1845, a famlia Marx expulsa de Paris para a Blgica, aps o nascimento daprimeirafilha,Jennychen.EmBruxelas,ocrculofamiliaramplia-secomdoisnascimentos,Laura(afuturacompanheiradePaulLafargue)eEdgar,apelidadoMusch [Pequena mosca].Bruxelasentoumaplataformadosmovimentossocialistasnascentes,propciaconspiraointernacional.Naprimaverade1846,MarxeEngelscriamaliumComitdeCorrespondncia Comunista, cujo objetivo principal ser colocar os socialistas alemes emcontato com os socialistas franceses e ingleses: um passo que o movimento ter dado emsuaexpressoliterriaafimdesedesvencilhardanacionalidade.Namesmapoca,osdoiscompadrescomeamaacertarcontascomafilosofiaespeculativaalem.oenormemanuscritode Aideologiaalem.Logoabandonadocrticaroedoradosratos,sserpublicado aps a morte de ambos.Em Bruxelas, Marx um jovem que se aproxima dos trinta anos. Um visitante o descrevecomoumhomemcheiodeenergia,foradevontade,deumaconvicoinabalvel,comumaespessacabeleira,mosaveludadas,paletmalabotoado,cujasmaneirasvodeencontroatodasasconvenessociais,masexalamumardeorgulho,comumtoquededesprezoecujavozcortanteemetlicaexprimebemseusjulgamentosradicaissobreascoisas e as pessoas. Ao fim de 1845, ele renuncia voluntariamente nacionalidade prussianapara tornar-se aptrida.DesdesuachegadaaParis,mesmoprestandohomenagemaospioneirosdossocialismosutpicos, Marx manifestou a vontade de ultrapassar seus balbucios doutrinrios:No queremos antecipar dogmaticamente o mundo, mas, ao contrrio, encontrar o novo mundo a partir da crtica aoantigo. [...] Embora a construo do futuro e sua consolidao definitiva no sejam assunto nosso, tanto mais lquidoe certo o que atualmente temos de realizar; refiro-me crtica radical da realidade dada; radical tanto no sentidodequeacrticanopodetemerosseusprpriosresultadosquantonosentidodequenopodetemerosconflitoscom os poderes estabelecidos. No nos apresentamos ao mundo como doutrinrios com um novo princpio: aqui est averdade, ajoelhem-se diante dela! Trazemos ao mundo os princpios que o prprio mundo desenvolveu em seu seio. Nsapenas lhe mostramos por que exatamente ele luta.Assim,ocomunismoaqueaderenoumacidadeimaginriaemesboo,masomovimentorealquesuprimeaordemexistente.Emseusmanuscritosparisiensesde1844[Manuscritos econmico-filosficos],jodefinecomoaexpressopositivadapropriedadeprivada abolida. Mas tambm adverte contra as formas primitivas e rudes de um comunismoque seria somente a consumao do nivelamento a partir do mnimo; que no suprimisse acategoriadetrabalhador,massecontentasseemestend-laatodososhomens;quenoseopusesse ao casamento que certamente uma forma de propriedade privada exclusiva ouaumacomunidadedemulheres,naqualamulhersetornasseumapropriedadecoletivaecomum.Naprimaverade1847,MarxeEngelsingressamnaLigadosJustos,animadaporimigrantesalemesemParis.Seucongressoaconteceem1odejunho,emLondres,eldecidida a mudana de nome para Liga dos Comunistas. O lema Todos os homens so irmos substitudo por Proletrios de todos os pases, uni-vos.Osegundocongressoaconteceemnovembrodomesmoano,aindaemLondres.Marxencarregado de redigir com Engels um manifesto. Em dezembro, pem-se a trabalhar, mas humatraso.OsdirigenteslondrinosdaLigaseimpacientam.Quando,emfevereirode1848,esto no prelo as ltimas provas do Manifesto Comunista, Paris vive uma revoluo.O espectro do comunismo ronda de fato a Europa.O jovem espadachim imberbe berlins tornou-se um homem barbudo e comunista.Bibliografia selecionadaBENSAD, Daniel. Passion Karl Marx: les hiroglyphes de la modernit. Paris, Textuel, 2001.CALLINICOS, Alex. Les ides rvolutionnaires de Marx. Paris, Syllepse, 2008.CORNU, Auguste. Karl Marx et Friedrich Engels, 4 v. Paris, PUF, 1955-1970.KORSCH, Karl. Karl Marx. Paris, Champ Libre, 1971.MALER, Henri. Congdier lutopie? Lutopie selon Karl Marx. Paris, LHarmattan, 1994.MEHRING, Franz. Karl Marx, histoire de sa vie. Paris, ditions Sociales, 1983 [ed. bras.:Karl Marx: a histria de sua vida.So Paulo, Sundermann, 2013].RIAZANOV, David. Marx et Engels. Paris, Anthropos, 1974. [a] Referncia ao livro A pele de onagro, de Honor de Balzac, que conta a histria de uma pele mgica capaz de realizaros desejos de seu proprietrio. A cada pedido atendido, porm, a pele se encolhe um pouco, reduzindo simultaneamente otempo de vida daquele que a possui. (N. E.)[b]FriedrichEngels, AsituaodaclassetrabalhadoranaInglaterra(trad.B.A.Schumann,1.ed.rev.,SoPaulo,Boitempo, 2010), p. 68-9. (N. E.)[1] The New Moral World , 4 nov. 1843. Engels separa aqui os comunistas dos fourieristas, argumentando que, em Fourier,h uma grave contradio, porque ele no abole a propriedade privada.[2]Engelsentendeporpartidonoumaorganizaopartidria,nosentidomoderno,masacorrentedosjovenshegelianos de esquerda, identificados com os Anais Alemes.[3] Idem.[c]KarlMarx,cartaaArnoldRuge,maio1843,emSobreaquestojudaica(trad.NlioSchneider,SoPaulo,Boitempo,2010), p. 69-70. (N. T.)[d] Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista (trad. lvaro Pina, 1. ed. rev., So Paulo, Boitempo, 2010), p. 59-68.(N. E.)[e] Ibidem, p. 66-7. (N. T.)2De que morreu Deus?[a]OsdoisartigospublicadosporMarxemParis,noanode1844CrticadafilosofiadodireitodeHegelIntroduoeSobreaquestojudaica,noselimitamaanunciaramortedoDeusdasreligies.Elesseempenhamnocombatecontraosfeticheseosdolossubstitutos: o Dinheiro e o Estado.Em A essncia do cristianismo[b], Feuerbach no s mostrou que o homem no a criaturade Deus, e sim seu criador. No s sustentou que o homemfaz a religio, a religio no fazo homem. Ele tambm comprovou que a filosofia simplesmente a religio transposta paraa ideia e por esta desenvolvida, escreve Marx. Ao fazer da relao social do homem com ohomemoprincpiofundamentaldateoria,fundouoverdadeiromaterialismo.Poisohomemnoumhomemabstrato,acocoradoforadomundo,o mundodohomem,ohomem em sociedade que produz, troca, luta, ama. o Estado, a sociedade.O pio do povoUma vez admitido que esse homem real no a criatura de um Deus todo-poderoso, restasaber de onde vem a necessidade de inventar uma vida aps a vida, de imaginar um Cu livredas misrias terrestres. A misriareligiosa constitui ao mesmo tempo a expresso da misriareal e o protesto contra a misria real. A religio o suspiro da criatura oprimida, o nimode um mundo sem corao, assim como o esprito de estados de coisas embrutecidos. Ela opio do povo.[c] Como o pio, ela atordoa e ao mesmo tempo acalma.Portanto,acrticadareligionopodesecontentar,comoacontececomoanticlericalismomanicoeoracionalismodasLuzes,emserhostilcomoclero,comoimameoucomorabino.EssaabordagemdaquestoreligiosatambmadotadaporEngelslogoaps aComunade Paris.Eleconsideraoproblemadoatesmo ultrapassadoecriticaalgunsexiladosparisiensesporquereremtransformaraspessoasemateiasporordemdomufti, em vez de tirarem lies da experincia.Pode-se ordenar tudo o que se quer no papel sem que, no entanto, isso seja colocado em prtica, e as perseguies soamelhormaneiradedarorigemafiisestorvantes.Umacoisacerta:onicoservioquesepodeprestaraDeus,hoje, declarar que o atesmo um artigo de f obrigatrio e sobrevalorizar as leis anticlericais, proibindo a religioem geral.Desde1844,trata-separaMarxdeatacarascondiessociaisqueprovocamumanecessidade de crena e de paraso artificiais:A supresso [Aufhebung] da religio como felicidade ilusria do povo a exigncia da sua felicidade real. A exignciade que abandonem as iluses acerca de uma condio a exigncia de que abandonem uma condio que necessita deiluses. A crtica da religio , pois, em germe, a crtica do vale de lgrimas, cuja aurola a religio.[d]Acrticadareligio visa,assim,aumobjetivo necessrio,maslimitado:privarohomemdesuasiluses,deseusconsolosilusrios,frustr-lo,abrir-lheosolhosafimdequeelepense, aja, configure a sua realidade como um homem desenganado, que chegou razo, a fimde que ele gire em torno de si mesmo, em torno de seu verdadeiro sol. Uma vez acabado oalmdaverdadereligioso,atarefahistricaestabelecer averdadedoaqumedesmascarar a autoalienao nas suas formas no sagradas: A crtica do cu transforma-se,assim, na crtica da terra, a crtica da religio,na crticadodireito,a crticada teologia,na crtica da poltica[e].Ao proclamar que, para a Alemanha, acrtica da religio est, no essencial, terminada,mas que ela o pressuposto de toda a crtica[f], a Crtica da filosofia do direito de HegelIntroduo,de1844,temumardemanifestoantesdo ManifestoComunistaeodeumprogramadetrabalhoqueanunciaasnovastarefasdacrtica.OartigoSobreaquestojudaica,publicadonomesmoeniconmerodos AnaisFranco-Alemes,muitasvezesentendido em sentido inverso, seu prolongamento ou sua primeira aplicao prtica.Em 1842, em artigo sobre a capacidade dos atuais judeus e cristos de se tornarem livres,BrunoBauer,antigocompanheirodeMarxemBerlim,defenderaque,parateremacessocidadaniaemumEstadoconstitucional,osjudeusdeveriamantesrenunciaraserumpovoeternamenteseparadodosoutrose,consequentemente,aumareligiofundamentadanomitodaeleiooriginal.Portanto,elessseriamemancipadospoliticamentequandotivessemabdicadodojudasmoe,porsuavez,oEstadoconstitucionalrenunciadoaocristianismo.ParaMarx,aposiodeBauercontinuavaaconsideraroatesmocomocondionecessriaesuficienteparaaigualdadecivil,ignorandoaessnciadoEstado.Ouseja,bastaria que os judeus quisessem ser livres, quisessem expulsar Deus de seus pensamentos, paraquedefatoselibertassem.ParaMarx,aocontrrio,tempodesaltardosocialismopuramenteespiritual poltica[g].EmrespostaaBauer,tomandooexemplodosEstadosUnidos,naquelapocaopaspoliticamentemaislivre,onde,noentanto,asreligiespermaneciam muito fortes, Marx demonstra que adesintegrao do homem em cidado noreligiosoeem homemprivadoreligiosonocontradizdemodoalgumaemancipaopoltica[h].Oqueelecombate,porintermdiodeBauer,soasilusesdeumatesmoqueapenasumacrticaabstrataeaindareligiosadareligio,quepermanecenoplanonoprticodasideias. Esse atesmo moda de Bauer (ou de Michel Onfray[i]!), a seus olhos, no passa da fasefinal do tesmo e de uma espcie de reconhecimento negativo de Deus[j]. Nesse mesmo anode1844,Marxescreveemseusmanuscritosparisienses:afilantropiadoatesmo,porconseguinte,primeiramenteapenasumafilantropia filosficaabstrata,adocomunismodeimediato[] realeimediatamentedistendidaaoefeito[k].Oatesmofilosfico,assim,aideologiadaburguesiaesclarecida,quepercebeanecessidadedeliberaraeconomiadosentraves da religio sem tocar na ordem social. Ele encontra no positivismo e no culto aoprogresso sua expresso mais persuasiva.A questo judaicaA polmica com Bruno Bauer vale hoje a Marx uma fama falsa e perversa. A lenda de umMarxantissemitainstalou-senodicionriodasideiasrecebidas.Antesdetudo,umanacronismogrosseiro.Oantissemitismoracialganhouimportncianasegundametadedosculo XIX, paralelamente ao desenvolvimento do racismo colonial, de que so emblemticasasteoriasdeGobineaueChamberlain,oudodarwinismosocial.Segundoo Dictionnairehistorique de la langue franaise [Dicionrio histrico da lngua francesa], o termo surgiuapenas em 1879. Antes, tratava-se de um antijudasmo religioso, alimentado pelo mito bblico.Osdoisconceitos,bvio,podemsefundiresobrepor.Quanto afinidade eletivaentrejudeus e dinheiro, evocada no texto de Marx, essa era poca uma banalidade literria noapenasentreospanfletrioscomoToussenelouBakunin,mastambmentreosescritorescomo Balzac A casa Nucingen! , mais tarde Zola e outros autores de origem judaica, comoHeinrich Heine ou Moses Hess. E ainda mais tarde no David Golder, de Irne Nmirovsky.QuantoaMarx,embora,arrebatadoporseuuniversalismo,possaseirritarcomamitologiadepovoeleitoecomoparticularismocomunitrio,nodeixadeapoiaromovimentodosjudeusdeColniapelosdireitoscivis.EmcartaaRugeemmarode1843,contacomoaceitouredigir,apedidodeles,umapetioparaoreconhecimentodessesdireitos:Agoramesmo,receboaquiavisitadochefedacomunidadejudaica,quemepedepararedigir,paraosjudeus,umapetioDieta.Voufaz-la.Pormaiorquesejaminharepugnnciapelareligioisraelita,amaneiradeverdeBauerme parece demasiadamente abstrata. No que depende de ns, trata-se de abrir o maior nmero possvel de brechas noEstado cristo e nele introduzir secretamente a razo.LongedecontradizerastesesdeSobreaquestojudaica,escritopoucassemanasdepois,essegesto,aocontrrio,suailustraoprtica.Procura-seemanciparoEstadodojudasmo,docristianismo,dareligioemgeral,emoutraspalavras,separaroEstadoseculardaIgrejaemancipando-sedareligiodeEstado,detalformaqueestenoprofessenenhuma religio, mas se mostre simplesmente pelo que . No se deve acreditar, no entanto,que sob o pretexto de ter obtido liberdade religiosa o homem esteja liberado da religio,dapropriedade,doegosmoprofissional.Emoutraspalavras,longedeserumfundamentalistalaicoedefazerdoatesmoumanovareligiodeEstado,Marx,emquestodeliberdadedeculto,umliberalnosentidoantigodotermo:umdefensorferozdas liberdades pblicas.Quando bem mais tarde, em 1876, durante uma cura termal em Karlovy Vary, ele deparacomHeinrichGraetz,pioneirodeestudosjudaicosdesdeosanos1840,autordeumamonumental Histoire du peuple juif [Histria do povo judeu], advogado da desassimilao, oencontro muitssimo cordial. Em sinal de estima recproca, presenteiam-se com suas obras.Marx certamente est muito distante de um Proudhon, que deseja o fechamento de todas assinagogaseadeportaoemmassadosjudeusparaasia,edossinaisprecursoresdoantissemitismo racial, destinado a ser, segundo a frmula do socialista alemo August Bebel,o socialismo dos imbecis.O primeiro comunismoAcrticadoatesmocontemplativoeabstratolevaMarxasedistanciardeFeuerbach,quenovqueoprpriosentimentoreligiosoumprodutosocialequeoindivduoabstratoqueeleanalisapertenceaumaformadesociedadebemdeterminada.Essematerialismo,quefazdoespritoumaemanaodanatureza,enoocontrrio,mantmaperspectiva da sociedade burguesa. Tem de ser superado por um novo materialismo, que secoloque na perspectiva da sociedade humana ou da humanidade social: Assim, uma vez quese descobriu que a famlia terrestre o segredo da Sagrada Famlia, justamente a primeiraque deve ser aniquilada na teoria e na prtica.Essenovomaterialismosocial,essasuperaodoatesmoabstrato,simplesmenteocomunismo:Damesmamaneiraqueoatesmo,enquantonegaodeDeus,odesenvolvimentodohumanismoterico,ocomunismo, enquanto negao da propriedade privada, a reivindicao da verdadeira vida humana como propriedadedohomem:ocomunismoodesenvolvimentodohumanismoprtico.Emoutraspalavras,oatesmoohumanismomediado pela supresso da religio, e o comunismo o humanismo mediado pela supresso da propriedade privada. preciso ainda distinguir diferentes momentos no desenvolvimento da ideia comunista.Em sua forma primitiva, o comunismo rude quer aniquilar tudo o que no suscetvel deser possudo por todos. A condio do trabalhador no suprassumida, mas estendida a todososhomens.Apropriedadeprivadageneralizadaencontrasuaexpressoanimalnacomunidade das mulheres. Esse comunismo rude s o aperfeioamento desta inveja e destenivelamento a partir do mnimo representado. A suprassuno da propriedade privada, nessecaso,noaapropriaosocialefetiva,masanegaoabstratadomundointeirodacultura[Bildung]edacivilizao;oretornosimplicidade nonaturaldoserhumanopobreesemcarnciasquenoultrapassouapropriedadeprivada,enemmesmoatelachegou[l].OcomunismopolticooudemocrticovisasupressodoEstado,superaodaalienao humana e ao retorno do homem para si. Mas, no tendo ainda compreendido aessncia positiva da propriedade privada e muito menos a naturezahumana da carncia , eleaindacontinuaembaraadonamesmaeporelainfectado.Ocomunismonacondiodesuprassuno[Aufhebung]positivada propriedadeprivada,enquanto estranhamento-de-si[Selbstentfremdung]humano,eporissoenquanto apropriaoefetivadaessncia humanapelo e para o homem, a verdadeira resoluo [Auflsung] do conflito entre a existncia eaessncia,entreobjetivaoeautoconfirmao[Selbstbesttigung],entreliberdadeenecessidade [Notwendigkeit], entre indivduo e gnero[m].Separasuprassumiropensamentodapropriedadeprivadabastadetodoocomunismopensado,parasuprassumirapropriedadeprivadaefetivaprecisoumaaocomunistaefetiva, um movimento que sofrer na efetividade um processo muito spero e extenso[n].Emsuma,enquantooatesmoapenasanegaoabstratadeDeus,ocomunismosuanegao concreta. Ele vai raiz das coisas e procura acabar praticamente com um mundo defrustraes e misrias das quais surge a necessidade de consolo divino.A crtica dos fetiches terrestresAcabardeumavezportodascomoDeuscelestedesinistramemriatambmacabarcomseussubstitutosterrestres,comtodasascriaeshumanasqueseedificamdiantedoshomens como poderes autnomos, como fetiches que os transformam em joguetes, a comearpelo Estado e pelo Dinheiro, mas igualmente pela Sociedade ou pela Histria.O Dinheiro: tudo aquilo que tu no podes, pode o teu dinheiro: ele pode comer, beber,iraobaile,aoteatro,sabedearte,deerudio,deraridadeshistricas,depoderpoltico,podeviajar, pode apropriar-se disso tudo para ti; pode comprar tudo isso; ele a verdadeiracapacidade.Temaaparnciadeumsimplesmeiomasoverdadeiropodereafinalidadenica. o poder corruptor que transforma a fidelidade em infidelidade, o amor em dio, odioemamor,avirtudeemvcio,ovcioemvirtude...aestupidezementendimento,oentendimento em estupidez[o]. Ele confunde e embaralha tudo. a confuso geral.A Sociedade no um conjunto nem um corpo em que os indivduos so somente peas oumembros:precisoevitarfixarmaisumavezasociedadecomoabstraofrenteaoindivduo.Oindivduoosersocial.Suamanifestaodevida[...],porisso,umaexternao e confirmao da vida social[p].A Histria no este personagem todo-poderoso, a Histria universal, da qual seramosmarionetes.AHistrianofaz nada,escrevesobriamenteEngelsem Asagradafamlia.No lutanenhum tipo de luta! [...] no , por certo, a Histria, que utiliza o homem comomeio para alcanar seus fins como se se tratasse de uma pessoa parte , pois a Histrianosenoaatividadedohomemquepersegueseusobjetivos.[q]Ahistriapresenteeaquelapor vir no so a meta da histria passada. Traar planos para a eternidade no problemanosso, escreve Marx j em 1843. Em 1845, os dois esclarecem em A ideologia alem:Ahistrianadamaisdoqueosuceder-sedegeraesdistintas[...]oqueentopodeserespeculativamentedistorcido,aoconverter-seahistriaposteriornafinalidadedaanterior[...].Comesseprocedimento,infinitamentefcildarhistriaorientaesnicas,bastandoapenasdescreveroseultimoresultadocomoatarefa que ela, na verdade, desde sempre se props.[r]diferenadahistriareligiosa,ahistriaprofananoconhecepredestinaonemjulgamentofinal.umahistriaaberta,quefaznopresenteacrticaradicaldetodaaordem existente, uma luta entre classes, com desfecho incerto.ComoDeusmorreu? E deque? Gravementeferido dois sculosantes pela demonstraode que a Terra gira em torno do Sol, pela observao de manchas na Lua pouco compatveiscomapurezadivina,peladescobertadomovimentoelpticodosplanetas,contradizendoaperfeiocircular,esseDeusdesinistramemriasofre,nosculoXIX,novosgolpes.Adataogeolgicaarrunaomitobblicodacriao.Ateoriadaevoluoreenviaacriatura admica sua origem animal. Essas feridas narcisistas acumuladas tornam-se mortaisquandooshomensaprendemqueelesmesmosfazemsuahistriaemcondiesquenoescolheram. Deus , de certa forma, a primeira vtima colateral da luta de classes no cenriode uma histria tornada profana.ApsoajustedecontascomaheranadeHegel,arupturacomadeFeuerbachregistrada nas Teses de 1845. Desse ponto em diante, na prtica que o homem tem de provaraverdade,isto,arealidadeeopoder,anaturezainterior[Diesseitigkeit]deseupensamento.Acoincidnciaentreaaltera[o]dascircunstnciaseaatividadeouautomodificaohumanasspodeserapreendidaeracionalmenteentendidacomo prticarevolucionria (tese 3). No basta, como ainda faz Feuerbach, dissolver a essncia religiosanaessncia humanaporque,emrealidade,essaessnciasimplesmenteoconjuntodasrelaessociaisetodavidasocialessencialmenteprtica:Todososmistriosqueconduzemateoriaaomisticismoencontramsuasoluoracionalnaprticahumanaenacompreenso dessa prtica (tese 8).Atento,osfilsofostinhamsecontentadoeminterpretaromundodediferentesmaneiras; o que importa agora transform -lo. Para transform-lo, certamente precisocontinuar a decifr-lo e interpret-lo, mas interpret-lo de outro modo, de maneira crticae prtica. Esgotou-se a crtica da religio e da filosofia especulativa. Daqui para a frente, avezdacrticadaeconomiapoltica,quevaimobilizaraintelignciadeMarxatsuamorte.Bibliografia selecionadaBALIBAR,tienne. LaphilosophiedeMarx.Paris,LaDcouverte,1993[ed.bras.:AfilosofiadeMarx.RiodeJaneiro,Zahar, 1995].GOLDMANN, Lucien. Marxisme et sciences humaines. Paris, Gallimard, 1970.HYPPOLITE, Jean. tudes sur Marx et Hegel. 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E.)[c] Karl Marx, Crtica da filosofia do direito de Hegel Introduo, emCrtica da filosofia do direito de Hegel(trad.Rubens Enderle e Leonardo de Deus, 2. ed. rev., So Paulo, Boitempo, 2010), p. 145. (N. E.)[d] Ibidem, p. 145-6. (N. E.)[e] Ibidem, p. 146. (N. E.)[f] Ibidem, p. 145. (N. E.)[g]KarlMarx,Primeiracampanhadacrticaabsoluta,emKarlMarxeFriedrichEngels,Asagradafamlia(trad.Marcelo Backes, So Paulo, Boitempo, 2003), p. 107. (N. E.)[h] Idem, Terceira campanha da crtica absoluta, em Karl Marx e Friedrich Engels, A sagrada famlia, cit., p. 124. (N. E.)[i] Filsofo francs, atesta militante. (N. T.)[j] Ibidem, p. 123. (N. E.)[k] Karl Marx, Manuscritos econmico-filosficos (trad. Jesus Ranieri, So Paulo, Boitempo, 2004), p. 106. (N. T.)[l] Ibidem, p. 103-4. (N. E.)[m] Ibidem, p. 105. (N. E.)[n] Ibidem, p. 145. (N. E.)[o] Ibidem, p. 142, 160. (N. T.)[p] Ibidem, p. 107. (N. T.)[q] Friedrich Engels, Segunda campanha da crtica absoluta, em Karl Marx e Friedrich Engels,A sagrada famlia, cit., p.111. (N. T.)[r]Idem, Aideologiaalem(trad.RubensEnderle,NlioSchneidereLucianoCaviniMartorano,SoPaulo,Boitempo,2007), p. 40, 149. (N. T.)3Por que a luta tem classeO comunismo a que Marx adere, no incio dos anos 1840, ainda uma ideia filosfica, umespectro sem corpo nem carne. O mesmo pode ser dito do proletariado. Ele faz sua aparionoartigodos AnaisFranco-Alemessobreafilosofiadodireitocomopossibilidadepositiva de emancipao social. Essa possibilidade repousa, com efeito,naformaodeumaclassecom grilhesradicais,deumaclassedasociedadecivilquenosejaumaclassedasociedadecivil,deumestamentoquesejaadissoluodetodososestamentos,deumaesferaquepossuaumcarteruniversalmedianteseussofrimentosuniversaisequenoreivindiquenenhum direitoparticularporquecontraelano se comete uma injustia particular, mas a injustia por excelncia.[a]Equenopodeseemanciparsememancipartodasessasesferas[dasociedade]:Taldissoluo da sociedade, como um estamento particular, o proletariado.Em sua espetacular entrada em cena, mesmo que sua formao esteja ligada ao emergentemovimento industrial[b],esseproletariadoaindaumaabstrao,anegaoabstratadapropriedadeeoagenteativodafilosofia,queprocuranelesuasarmasmateriais,assimcomo ele busca na filosofia suas armas espirituais.A cabea e as pernas, em sntese.O proletariado em carne e ossoEmParis,noscrculosoperriosesfumaadosdosubrbioSaint-Antoine,entreosnumerosos imigrantes alemes, Marx descobre esse movimento prtico e suas novas formasde sociabilidade:Quandoos artesoscomunistasseunem,valeparaeles,antesdemaisnada,comofinalidadeadoutrina,propagandaetc.Masaomesmotempoelesseapropriam,dessamaneira,deumanovacarncia,acarnciadesociedade,eoqueaparece como meio, tornou-se fim. Este movimento prtico pode-se intuir nos seus mais brilhantes resultados quandose v operrios (ouvriers) socialistas franceses reunidos. Nessas circunstncias, fumar, beber, comer etc., no existemmais como meios de unio ou como meios que unem. A sociedade, a associao, o entretenimento, que novamente tm asociedadecomofim,bastaaeles;afraternidadedoshomensnonenhumafrase,massimverdadeparaeles,eanobreza da humanidade nos ilumina a partir d[ess]as figuras endurecidas pelo trabalho.[c]OencontrocomEngels,quetrazdaInglaterraumconhecimentoconcretodaclassetrabalhadora e do movimento cartista, a oportuna confirmao dessa descoberta.Antesdeserconfrontadocomaemergnciadoproletariadomoderno,Marxjtinhatratado de questes econmicas e sociais na poca em que dirigia aGazeta Renana.Em 1859,aorelembraropercursodeseusprpriosestudoseconmicos,elerecordaascircunstncias em que teve de falar pela primeira vez, com grande embarao, dos chamadosinteresses materiais. Isso aconteceu em 1842, na Rennia, durante os debates parlamentaressobreofurtodamadeiraeafragmentaodaterra.Nosanos1820-1840,noapenasnaAlemanha,mastambmnaFranaduranteaRestauraoenaInglaterracomafamosaLeidos Pobres de 1834, uma srie de medidas legislativas restringe os direitos consuetudinriosdospobres(recolhimentodemadeira,respiga,pastolivre),queautorizavamousodebenscomunsparasatisfazernecessidadesbsicas.Destroem-seasformaselementaresdesolidariedade camponesa e paroquial e transformam-se os bens comuns tradicionais (como amadeira) em mercadorias, com a inteno de impelir os aldees para as cidades e obrig-los asevendereseexaurirnaindstrianascente.Damesmaforma,hojeacontrarreformaliberaldesmantelametodicamenteodireitoaotrabalhoeossistemasdeproteosocialparacoagirostrabalhadoresaaceitarcondiesdesalrioeempregocadavezmaisretrgradas.Na verdade, essas medidas destinam-se a redefinir a fronteira entre o domnio pblico e apropriedadeprivada.Aoatacarodireitodeutilizaodosbenscomuns,elasinvestemcontraoqueMarxchamadeformashbridaseincertasdepropriedade,herdadasdeumpassadolongnquo.,dessemodo,apartirdaquestodapropriedade,queojovemMarxaborda a luta de classes moderna.A histria de todas as sociedades at hoje existentes a histria das lutas de classes. EmnotaparaareediodoManifesto Comunista,Engelsesclareceafraseinicialdocaptulointitulado Burgueses e proletrios: isto , toda histriaescrita, porque a pr-Histria,aorganizaosocialanteriorhistriaescrita,eradesconhecidaem1847[d].Defato,naquela poca as pesquisas antropolgicas ainda engatinhavam.Mas, mesmo restrita histria escrita, a frmula s aceitvel se a palavra classe tiverumsentidoamplo,queenglobeformasdiferentesdeagrupamentossociais(castas,cls,ordens,estados, status),enoapenasasclassesmodernas,quepressupemotrabalhadorlivreeasrelaesdeproduocapitalistas.Associedadesantigastendiamatornarasprofisseshereditrias,petrific-lasemcastasou,ainda,ossificaremcorporaesosdiferentesramosdaindstria.Nasociedadecapitalista,otrabalhadornoestatreladoporseunascimentoa um status ou a um grupo hereditrio. Ele teoricamente livre, o quepermiteatodosodevaneiodapromoosocialoudosucessopessoal. Todospodemsonharque so Henry Ford. Mas no existe evaso em massa da condio trabalhadora.Emumsentidoamplo,adivisodasociedadeemclassesprovmdadivisodotrabalho.Tologoaprodutividade,graasaousodeferramentas,atingeacapacidadedegerareacumularumexcedente,surgemascastas,acomearpelospadres,encarregadosdecontabilizar e administrar esse excedente social. Na escravido e na vassalagem, a relao deexploraoimediatamentevisvel.Nasformasdetrabalhoforadooucorveia,osobretrabalhoextorquidopelomonopliodaviolncia.Nocontratodetrabalhomoderno, a violncia e a coao esto ocultas, mas conservam sua fora.Emvobusca-seemMarxumadefiniosimplesdeclassesouumquadroestatsticodascategorias socioprofissionais. Ou seja, as classes aparecem em seus escritos como uma relaoantagnicarecproca.Definem-senalutaepelaluta.ParaMarx,alutadeclassesumanoo estratgica tanto como ou mais do que sociolgica.Exploradores e exploradosOLivroIde Ocapital,sobreoprocessodeproduo,sobreoquesepassanolocaldetrabalho, chama a ateno para a relao de explorao (a extorso do mais-valor nos poresdo mercado, onde se elucida o prodgio do dinheiro que parece fazer dinheiro, fertilizar asimesmoemmistriotofantsticoquantoaimaculadaconceio).Essefatoadvmdaseparao entre o trabalhador e seus meios de produo, entre o campons e a terra, entre ooperrio e as mquinas e ferramentas, transformadas em propriedade exclusiva do patro. Naesfera da produo, no entanto, a relao de explorao apenas a carcaa ou o esqueletodasrelaesdeclasse,querdizer,suaformamaisrudimentar.Nocaptulo8doLivroI,aregulamentaodajornadadetrabalhoseapresenta,nahistriadaproduocapitalista,comoumalutaemtornodoslimitesdajornadadetrabalhoumalutaentreoconjuntodoscapitalistas,i.e.,aclassecapitalista,eoconjuntodostrabalhadores,i.e.,aclassetrabalhadora.Nessesistema(capitalista),todososmeiosparaodesenvolvimentodaproduoseconvertememmeiosdedominaoeexploraodo produtorefazemdele umser parcial, degradam-no condio de um apndice da mquina. Alienam ao trabalhador,junto a outras potncias hostis, a cincia como potncia autnoma. Ao trabalho criativo,substituem o trabalho forado e transformam seu tempo de vida em tempo de trabalho[e].OLivroII,sobreoprocessodecirculao(ocaminhoquepercorreocapitaldesdeoinvestimentoinicialemdinheiroataobtenodolucro,passandopelaproduoepeloconsumodasmercadorias),introduzdeterminaesnovas,comoasrelaessalariais,acompraeavendadaforadetrabalho.Introduzparticularmenteasnoesdetrabalho(diretamente) produtivo e no ou indiretamente produtivo (da mesma forma que o LivroItinhaintroduzidoasnoesdetrabalhoconcreto/trabalhoabstrato).Porm,essenvelconceitualnoincluiumcritriodedefiniodeclasses,aocontrriodoquepensamalgunsautores,queconsideramaidentidadeentretrabalhoprodutivoeclassetrabalhadora o fundamento de uma concepo restritiva e operarista do proletariado. Umadasconsequnciasdesseenfoque,emrazodadesindustrializaoedescentralizaoindustrial,oquestionamentodaprpriaexistnciadoproletariado.Noentanto,desdeque exista separao entre o trabalhador e os meios de produo (terra, ferramentas) e queodetentordaforadetrabalhosedefrontecomosmeiosdeproduocomopropriedadealheia, existe uma relao de classes entre capitalista e assalariado:trata-sedecompraevenda,deumarelaomonetriadecompraevenda,emqueocompradorumcapitalistaeovendedorumassalariado,eessarelaoresultadofatodeascondiesnecessriasaodaforadetrabalhomeiosdeexistnciaemeiosdeproduoestaremseparadas,enquantopropriedadealheia,dodetentordaforadetrabalho.OLivroIIIde Ocapitalabordaoprocessoglobaldaproduo(edareproduo)capitalista.Nosetratasimplesmentedeacompanharopercursodeumcapitalabstratoenicoaolongodesuasmetamorfoses,esimdecompreenderomovimentoconjuntodemltiplos capitais em concorrncia no mercado. apenas nesse nvel, mais concreto, que asrelaes de classes aparecem como o conflito entre o trabalhador global e o capitalistaglobal. Torna-se perfeitamente lgico que o captulo inacabado sobre as classes, em que seinterrompeaediodoLivroIII,parenessepontopreciso.Naprtica,adivisoemclassesjamaisaparecedeformapura,porqueasformasintermediriasetransitriasatenuamoslimitesprecisos.Nocaptuloinacabado,asgrandesclassesparecemprimeiravistadefinidaspelasfontesderendasalrio,lucroerendafundiria,relacionadaspropriedadedesimplesforadetrabalho,docapitaloudaterra.Mas,primeiravistasomente, porque, observando de mais perto, essas grandes divises se complicam no campo dalutapoltica.perguntasimplesOqueconstituiumaclasse?,Marxrespondeque,seadefinioforfeitapelarenda,chega-seaumapulverizaoligadainfinitavariedadedeinteressesesituaesqueadivisosocialdotrabalhoprovocanaclassetrabalhadora,naclassecapitalistaenosproprietriosfundirios,estes,porexemplo,divididosemviticultores, proprietrios de campos, florestas, minas, locais de pesca etc.. Aqui termina omanuscrito de Marx, anota simplesmente Engels, sem comentrios.Ouseja,omanuscritoterminaemuminsustentvelsuspenseterico,umaperguntasemresposta,quepossivelmentesecomplicariaaindamaisnoslivrosinicialmenteprevistosedepoisabandonadossobreoEstadoeomercadomundial.Elesintroduziriamsemdvidanovas determinaes que permitiriam considerar o papel especfico da burocracia (esboadona CrticadafilosofiadodireitodeHegel)ouascontradiesdoproletariadoemescalainternacional.Grandes grupos de pessoasAssim,noseencontranasobrasdeMarx,nemmesmoem Ocapital,umadefiniodefinitivamentefixadadeclasses,masumaabordagemdinmica,nahistriaenaluta.Quandoelefaladeproletrios,nofaladotrabalhadorindustrialemblemticoJeanGabinem TrgicoamanhecerouosoperriosdaFiatem RoccoeseusirmosnemdosferroviriosemineiroslendriosdeZola,masdostrabalhadoresdeofcio,artesos,costureiros, sapateiros, joalheiros, encanadores. Na realidade, o proletariado nunca deixoudesemetamorfosear,emfunodastcnicasedaorganizaodotrabalho.porissoque,em vez de definies formais, encontram-se em Marx algumas aproximaes descritivas, comoem O 18 de brumrio de Lus Bonaparte:Milhes de famlias existindo sob as mesmas condies econmicas que separam o seu modo de vida, os seus interesses easuaculturadomododevida,dosinteressesedaculturadasdemaisclasses,contrapondo-seaelascomoinimigas,formam uma classe.[f]Ouainda,emEngels,umadefiniobemelsticadeproletariado:porproletariado[entende-se] a classe dos assalariados modernos que, no tendo meios prprios de produo,so obrigados a vender sua fora de trabalho para sobreviver[g].Finalmente,Lenindeuaosaficionadospordefiniesarespostamenosinsatisfatria,embora no a mais simples, questo das classes:Chama-seclassesa grandesgruposdepessoasquesediferenciamentresipelo seulugarnumsistemadeproduosocialhistoricamentedeterminado,pela suarelao(asmaisdasvezesfixadaeformuladanasleis) comosmeiosdeproduo,pelo seupapelnaorganizaosocialdotrabalhoe,consequentemente,pelo mododeobtenoepelasdimenses da parte da riqueza social de que dispem.[1]Essadefiniopedaggicacombina,assim,aposioreferenteaosmeiosdeproduo(incluindooestatutojurdicodapropriedade)comopapelnadivisodotrabalhoenasrelaeshierrquicas,anaturezaeovalordosalrio.Aocontrriodassociologiasclassificatrias,nopretenderesolvercasosindividuaisnemarbitrarsituaeslimtrofes,mas situar grandes grupos de pessoas.Pergunta-sefrequentementehojeemdiaseoproletariadoestariaounoemviasdedesaparecer,substitudoporcomunidadesdeprivaes,quecompartilhamhumilhaesesofrimentosanlogos,masfiliaes,situaeseassociaesvariveis.Porm,ningumperguntaseaburguesiadesapareceu,porqueelamantmseussalriosmirabolantes,seusclubes(fechados)esuasostensivasorganizaesdecombate(Medef,UIMM[h]).AprovadaburguesiasoasenhoraParisot,osenhorGauthierSauvagnac,osenhorBollor[i].Elachega mesmo a tornar-se hereditria, comportar-se em casta, parodiar a velha aristocracia,com um toque de vulgaridade. Exibe sua riqueza em revistas de celebridades, bem distante daausteridade protestante do suposto esprito do capitalismo das origens.Sehosquesubjugam,devehaversubjugados;sehdominantes,dominados;burguesesemburguesadoseproletrios.Estesexistemnomundo,sim,maisdoquenunca.Oproblemareside na diviso, na individualizao que no uma aspirao a mais liberdade e autonomiaindividuais,masumapolticadeindividualizaoforada(horrios,tempo,lazer,seguros).Caminhajuntocomaconcorrnciadetodoscontratodos,comoespritodecompetio,com o jogo do elo mais fraco: cada um por si, e ai dos vencidos!Bibliografia selecionadaGURIN,Daniel.LaluttedeclassesouslaPremireRpublique.Paris,Gallimard,1968[ed.port.:AlutadeclassesemFrana na Primeira Repblica. Lisboa, Regra do Jogo, 1977].POULANTZAS, Nicos. Pouvoir politique et classes sociales. Paris, Maspero, 1968 [ed. bras.: Poder poltico e classes sociais.So Paulo, Martins Fontes, 1977].ROEMER, John. A General Theory of Exploitation and Classes. Cambridge, Harvard University Press, 1983.SAINTE-CROIX, Geoffrey de. The Class Struggle in the Ancient Greek World. Ithaca, Cornell University Press, 1981.THOMPSONEdwardPalmer.Laformationdelaclasseouvrireanglaise.Paris,Gallimard/Seuil,1998[ed.bras.:Aformao da classe operria inglesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987].WRIGHT, Erik Olin. Classes. Londres, Verso, 1985. [a]KarlMarx, Crtica da filosofia do direito de Hegel (trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus, So Paulo, Boitempo,2010), p. 156. (N. T.)[b] Idem. (N. T.)[c] Idem, Manuscritos econmico-filosficos (trad. Jesus Ranieri, So Paulo, Boitempo, 2004), p. 145-6. (N. T.)[d]KarlMarxeFriedrichEngels, ManifestoComunista(trad.lvaroPina,1.ed.rev.,SoPaulo,Boitempo,2010),p.40.(N. E.)[e] Karl Marx, O capital, Livro I (trad. Rubens Enderle, So Paulo, Boitempo, 2013), p. 390 e 720. (N. E.)[f] Idem, O 18 de brumrio de Lus Bonaparte (trad. Nlio Schneider, So Paulo, Boitempo, 2011), p. 142-3. (N. T.)[g] Friedrich Engels, nota edio inglesa de 1888, em Manifesto Comunista, cit., p. 40. (N. T.)[1] Vladimir I. Lenin, Uma grande iniciativa (So Paulo, Alfa-mega, 1980, verso digital).[h] Associaes patronais francesas. (N. T.)[i] Empresrios franceses. (N. T.)4Como o espectro encarnou e por que sorriHunsvinteanos,osemanrio NewsweekanunciavatriunfalmenteemsuamancheteamortedeMarx.Nenhumdiretorderevistapensariaemprovocaroleitorcomsemelhantefuro de reportagem a respeito da morte de Aristteles, Descartes ou Espinosa.Supe-sequeamancheteprovocadorativessevalordeconjurao,conjuraodeumespectro,evidentemente.E,noentanto,elevoltou.Em2008,aindaantesdacrisedocapitalismo globalizado, o rumor se espalhava: Marx, o retorno ( Courrier International);Marx, um renascimento (Le Magazine Littraire).AtoarcebispodaCanterburyempessoadenunciavaacorridaaolucroresponsvelpelodesastrefinanceiroesaudavaamemriadesseMarxque,hmuitotempo,reveloucomoumcapitalismosemfreiospodeatuardamesmamaneiraqueummito,atribuindorealidade e poder a coisas que no existem por elas mesmas (sic!).Porqueessaressurreio?SimplesmenteporqueMarxnossocontemporneo,aconscinciapesadadocapital.Eporqueocapital,queaindaensaiavaosprimeirosdelitosquandoeletraouseuretratofalado,tornou-sehojeumsocialkilleradultoquedevastatodo o planeta.As teses do ManifestoA atualidade de Marx a do Manifesto Comunista. Escrito s pressas nas ltimas semanasde1847epublicadoemfevereirode1848,noexatomomentoemqueirrompearevoluoparisiense, anunciando a Primavera dos Povos europeus, todos sabem de cor sua retumbanteabertura:UmespectrorondaaEuropaoespectrodocomunismo.Oespritoromnticoda poca aprecia runas gticas, castelos assombrados e fantasmas. Revelando-se luz do dia,tornando-semanifesto,oespectroencarnaereivindicaabertamentesuaidentidade.Comunista!Porqu?quesocialismojumapalavrainspida,tolerada,respeitvel. Temdireito de assento nos cenculos filantrpicos. Casa-se bem com utopias grandes e pequenas.Definitivamente,noameaaaordemestabelecida.Demodoquesedeclararcomunistaamaneiradeanunciarumexcepcionalprojetodesubverso:nadamais,nadamenosdoquemudar o mundo.Essa novidade em forma de modesta brochura deu a volta ao mundo. OManifesto, dizem,otextomaistraduzidoedivulgadodepoisdaBblia.Capturanafonteavitalidadeextraordinria do capital como poder social impessoal, cujo dinamismo a impulso ocultadosentimentomodernodeaceleraodahistriaedesencantamentodomundo.Tudooque era slido e estvel se desmancha no ar, tudo o que era sagrado profanado e os homenssoobrigadosfinalmenteaencararsemilusesasuaposiosocialeasrelaescomosoutros homens.[a]Sua atualidade ainda ativa pode se resumir em sete teses:a formao de um mercado mundial tambm globaliza a luta de classes;a luta de classes o segredo desvendado do desenvolvimento histrico;a questo da propriedade a questo fundamental [dos movimentos];o objetivo , em primeiro lugar, a conquista do poder poltico;os proletrios de todos os pases devem se unir alm da estreiteza das naes;ao mesmo tempo ato e processo, a nova revoluo uma revoluo permanente;olivredesenvolvimentodecadaumacondioparaolivredesenvolvimentode todos.Retomemos:1. Marx soube compreender, no estado nascente, a lgica da globalizao capitalista:Agrandeindstriacriouomercadomundial,preparadopeladescobertadaAmrica.Omercadomundialacelerouenormementeodesenvolvimentodocomrcio,danavegao,dosmeiosdecomunicao[...].Pelaexploraodomercadomundial,aburguesiaimprimeumcartercosmopolitaproduoeaoconsumoemtodosospases.[...]Asvelhasindstriasnacionaisforamdestrudasecontinuamaserdestrudasdiariamente.Sosuplantadaspornovasindstrias[...].Aoinvsdasantigasnecessidades,satisfeitaspelosprodutosnacionais,surgemnovasdemandas,quereclamam para sua satisfao os produtos das regies mais longnquas e de climas os mais diversos. [...] E isto se referetanto produo material como produo intelectual.[b]Maselenosecontentaemdescreverofenmenojornalisticamente.Oobjetivodacrtica da economia poltica desvendar seu segredo. Para superar as contradies ntimasque o corroem, o capital compelido continuamente a aumentar seu espao de acumulao eacelerar o ciclo de suas rotaes. Transformando tudo em mercadoria, ele devora o espao edemoniza o tempo.Desencadeadapelacontrarreformaliberalepeladesregulaofinanceiradoltimoquartodesculo,aglobalizaocontemporneatemmuitasanalogiascomadoregimevitorianoedoSegundoImprio.Arevoluotecnolgicadastelecomunicaes,dosvoossupersnicosedossatlites,guardadasasdevidaspropores,correspondedasferrovias,dotelgrafoedasmquinasavapor.Aspesquisasgenticas,sdescobertasdaqumicaorgnica.Asinovaesemmatriadearmamento,chegadadoqueEngelsqualificoudeindstria do massacre. O escndalo da Enron e a crise dos subprimes, quebra da Bolsa, aoescndalodoPanam,bancarrotadoCrditImmobilieroudaUnionGnrale,evocadaporZolaem Odinheiro.Oentusiasmoespeculativo,alimentadoporartifciosdecrdito,acalentaailusododinheiroquefazdinheiro,atque,nacriseepelacrise,arealidadechame a fico ordem.Destacou-se com frequncia a ambivalncia de Marx, dividido entre a admirao diantedodinamismodocapitaleaindignaoemfacedesuabarbriesocial.Essatensotraduzuma contradio real. Se a burguesia no pode existir sem revolucionar incessantemente osinstrumentosdeproduo[c],essatransformaoportadoradepotencialidadesemancipatrias, sendo a primeira delas a reduo drstica do tempo de trabalho obrigatrio.Mas,cingidopelasrelaessociaisdeexploraoedominao,esseprogressoconstantementeaniquiladoporseureversodestrutivo:Aquiprogresso,lregresso( Ocapital).Essacontradiohojeresultantedachamadaglobalizao.porissoqueosmovimentosreunidosnosfrunssociaisnosedefinemmaiscomoantiglobalistas,esimcomo alterglobalistas: no contra a globalizao simplesmente, mas contra a globalizaocompetitiva e mercantil, a favor de uma globalizao solidria e social.2. A histria de todas as sociedades at hoje existentes a histria das lutas de classes.Afraseinicialdoprimeirocaptulodo ManifestotemomritodeacabarcomoentulhofilosficodeumaHistriauniversalditadadeantemopelaProvidnciadivinaourevelando a si prpria o Esprito do mundo e seu destino. Tudo o que humano histrico eseengendranaincertezadaluta.Aintenoderomperdeumavezportodascomavisoteolgicadomundo,noentanto,noacontecesemsimplificaes.EmumareediodoManifesto, em nota de rodap, Engels sente a necessidade de esclarecer que se entende porhistriadequalquersociedadetodahistria escrita,porqueapr-Histria,aorganizao social anterior histria escrita, era desconhecida em 1847.Essanoanicasimplificao.No Manifesto,afrmulaestendeotermoclasseadiversostiposdegruposeorganizaessociais(castas,corporaes,estados),enquantoemoutrostextosMarxoreservassociedadesmodernas,caracterizadasporumarelativaseparaodopoltico,dosocialedoreligioso.Enfim,comoumtextopolmicoepedaggico,o Manifestofocaumpadrodepuradodelutadeclasses,restritaaseusprincipaisprotagonistas:burguseproletrio,patrcioeplebeu,homemlivreeescravo,mestredecorporaoecompanheiro[d].Nostextosqueabordamsituaespolticasconcretas,como O 18 de brumrio, ou nos artigos sobre a vida poltica inglesa, asrelaes sociais permanecem estruturadas pelo antagonismo de classe, mas readquirem toda asua complexidade.Entende-sehojequeasclassesteriamsedissolvidonaglobalizaoenoindividualismoconcorrencial;adiferenaconflituosa,nadiversidadeindiferente.Contraareduodogmtica de todo conflito social a um conflito de classes, chegada a hora da pluralidadede afiliaes e situaes. Por certo, cada indivduo um entrelaamento mpar de mltiplasdeterminaes,masonarcisismodaspequenasdiferenaspropciosgenealogiaseaopnicodeidentidade.Asociedademodernacomplicaascontradiesedesdobraasdiferenasdeclasse,gnero,cultura,idade,origem...Irredutveisentresi,sotodascondicionadaspeladominaosistmicadocapital.porissoque,semnegarsuasespecificidades, a luta de classes pode lhes servir, para alm das igrejas e capelas, de trao deunio.Quandoeladefinhaeenfraquece,vem,aocontrrio,otempodoconfinamentoegosta e rancoroso, a hora dos cls, hordas e tribos.3.O Manifestoanunciaarevoltadasforasprodutivasmodernascontraasmodernasrelaesdeproduo,contraasrelaesdepropriedadequecondicionamaexistnciadaburguesia e seu domnio[e]. O regime de propriedade privada no parou de ganhar terreno.Estende-seatualmenteaosbenscomunsdahumanidade(terra,gua,ar),aoespaopblico(rua),aosseresvivoseaosaber(comodesenvolvimentoexponencialdaspatentes),violncia (ascenso do mercenarismo), lei (em benefcio do contratualismo generalizado).Agoraqueastcnicasdereproduoecomunicaopermitiriamacessogratuitoanumerososbens,apropriedadeprivadasurgecomooresultadodeumprocessodedesapossamento generalizado e como um freio inovao. A importncia que tem sua crtican o Manifestodestaca-sedemodomaisdoquenuncajustificado:oscomunistaspodemresumirsuateorianumanicaexpresso:supressodapropriedadeprivada[1].Emtodosestesmovimentoscolocamemdestaque,comoquestofundamental,aquestodapropriedade.[2]Nosetratadeabolirtodaformadepropriedade,mas,precisamente,amodernapropriedade privada, [a] propriedade burguesa[f], e o modo de apropriao fundamentado naexploraodeunspelosoutros.Essaprecisomuitoimportante,poisestabeleceumadistinoentreduascompreensesdepropriedade,cujaconfusoutilizadapelosdetratoresdocomunismoparaapresent-locomoumrateador[ partageux]quedesejasuprimir todos os bens de uso pessoal (moradia, meios de locomoo etc.). O que necessrioabolirapropriedadequetemcomocontrapartidaadespossessodooutro,aquelaqueoutorga poder sobre o trabalho e a vida dos dominados.Oquestionamentodessapropriedadeprivadadosmeiosdeproduo,trocaecomunicao no se limita regulamentao de mquinas ou empresas. Ele est presente namaioria das dez medidas programticas expostas no Manifesto: Expropriao da propriedadefundiriaeempregodarendadaterraparadespesasdoEstado;impostofortementeprogressivo; abolio do direito de herana; confisco da propriedade de todos os emigradoserebeldes(hojesediria:detodososresponsveispelaevasofiscalefugadecapitais);centralizao do crdito nas mos do Estado [...]; multiplicao das fbricas nacionais e dosinstrumentos de produo [...]; educao pblica e gratuita[g].4.Paraelevar-seaclassedirigentedanao,tornar-seeleprprionao,oproletariadodeveconquistaropoderpoltico[h].Essaideia,aparentementebanalesensata,narealidaderompecomatradiodeumsocialismocompassivoefilantrpico,oqual fantasiava sobre experincias econmicas e sociais alternativas que coabitassem com umpoderestataltolerantesobacondiodenuncasereleprpriocontestado.Rompeailusosocialdeumsocialismoexperimentalmantidodistnciadaaopoltica,sobaalegao de pureza.OManifestocriticaassimvriascorrentesque,deformadiversa,perduraramnahistriadosmovimentossociais.Osocialismofeudal,nostlgicodeumpassadomtico,encontra-seemmltiplasvariantesdopopulismoreacionriooudavoltamticaeradoourodentrodeumaeconomiadetrocaautrquicaeproduoimediatadevaloresdeuso,semmediaomonetriaesemcomrciogeneralizado.Outrossecontentam,hojecomoontem, em corrigir as anomalias sociais da ordem burguesa, organizando a beneficncia emnome de uma moral caritativa. Para os autores do Manifesto, no se trata de erguer castelosnoarnemdecozinharbonsmomentosembanho-mariaparaoferecer,dechavesnamo,acidadefeliz,masdeorientaromovimentorealquequeraboliraordemexistenteparaconquistar o poder poltico e dele fazer uma alavanca para a transformao econmica e aliberao cultural: O proletariado utilizar sua supremacia poltica para arrancar pouco apouco todo o capital da burguesia[i].pocaemqueademocraciaparlamentaraindaexceonaEuropa,MarxeEngelsencaramessaprimeirafasedarevoluooperriacomosinnimodeconquistadademocracia[j] e da instituio do sufrgio universal. Assim, a Comuna de Paris logicamentelhes parece a frmula enfim encontrada.5.Aestreitezaeaunilateralidadenacionaistornam-secadavezmaisimpossveis.Auniversalinterdependnciadaproduomaterialedaproduointelectualchegandoatacriarumaliteraturauniversal[k]tendearomperosgrilhesdasbarreirasnacionais.Aglobalizaocomercialtemcomoconsequnciaaglobalizaodalutadeclasses.Esseofundamentodointernacionalismo,nocomoimperativomoralcategrico, mas como princpio poltico prtico. Se for elevado a classe dirigente da nao,o proletariado, mesmo que nessa medida nacional, no o ser de modo nenhum no sentidoburgus da palavra[l]. A emancipao que traz em si comea no espao nacional, mas s podeflorescer ao se expandir para o espao continental e mundial.O que j era verdade no sculo XIX e comprovado nas revolues de 1848 e 1871 ainda afortiori verdade hoje. Contrariamente aos que declaram que as naes j se dissolveram noespao homogneo e escorregadio do mercado mundial, os Estados nacionais ainda modelamemparteasrelaesdeforaentreasclasses.possvelquepasesdominadospeloimperialismoepeloneocolonialismosejampontodepartidadeummovimentorevolucionrio,comoconfirmamasexperinciasdaVenezuelaedaBolvia.Elastambmdemonstram que tais processos s tm futuro se rapidamente se ampliarem a uma escala pelomenoscontinental,opondoumarevoluoeumaAmricabolivarianaaoprojetoimperialistadeumgrandemercadodasAmricas.Damesmamaneira,naEuropa,comomostrouarejeiofrancesa,holandesaeirlandesaaoTratadoConstitucionaleaoTratado de Lisboa, o quadro nacional tambm pode organizar a resistncia construo deuma Europa liberal, de concorrncia livre enofalseada.Porm, essa rejeiopressupe,sob pena de se retrair dentro de uma lgica chauvinista e xenfoba, um projeto alternativode Europa democrtica e social dos povos e dos trabalhadores.Domesmomodoqueaglobalizaovitoriana,porocasiodasgrandesexposiesuniversaisdeLondreseParis,favoreceuainternacionalizaodomovimentooperrioemergente e a criao em 1864 da Primeira Internacional, tambm a globalizao neoliberalsuscita uma globalizao planetria das resistncias. Assim comprova a gnese do movimentoalterglobalista, da insurreio zapatista de 1o de janeiro de 1994 aos fruns sociais mundiaisdePortoAlegre,MumbaieNairbi,passandopelasmanifestaesdeSeattlecontraareuniodecpuladaOrganizaoMundialdoComrcioem1999easdaprimaverade2003contraaguerradoIraque.ComparadoaointernacionalismodosculoXIX,essenovointernacionalismo enfrenta no apenas os capitalismos nacionais como as empresas multi outransnacionaiseumcapitalismofinanceiroextremamenteglobalizado.oqueexplicaaemergnciadeuminternacionalismoagrrio,representadopelaViaCampesina,quereneagricultoresdemaisdecinquentapases,confrontadossmesmasfirmasagroalimentareseprodutoras de sementes, como Monsanto ou Novartis.6.Arevoluoburguesaalemspoderser,portanto,opreldioimediatodeumarevoluoproletria.[m]Asrevoluesmodernasparecemcondenadasafaltaraocompromisso,chegarcedooutardedemais,semprenotempoerrado,divididasentrenomaiseaindano.Nuncaaparecemnahoracerta.Asrevoluespolticasburguesascoroavam o poder de uma classe que j tinha conquistado o essencial do poder econmico ecultural.Asrevoluesproletrias,pelocontrrio,soasdeumaclassesubmetidaaumatripladominao,social,polticaecultural,quederepentedevesetornar,senotudo,pelomenosalgumacoisa.Aconquistadopoderpolticosocomeodeumprocessodeemancipao.ComodeclaraMarxem1850,emsuaMensagemdoComitCentralLiga[dosComunistas], ao fazer o balano das revolues de 1848, a tarefa :tornar a revoluo permanente at que todas as classes proprietrias em maior ou menor grau tenham sido alijadas dopoder, o poder estatal tenha sido conquistado pelo proletariado e a associao dos proletrios tenha avanado, nos em um pas, mas em todos os pases dominantes do mundo inteiro.[n]Arevoluopermanenteemumatriplaacepo.Elanoreconhecedivisriaentreseusobjetivos poltico-democrticos e seus objetivos sociais e no estagna a meio caminho entre arevoluoburguesaeaproletria.Noummilagresurgidodonada,masamadurecenaslutas cotidianas, na acumulao de experincias vitoriosas ou derrotas, e se aprofunda, paraalmdaconquistadopoderpoltico,pelatransformaoradicaldasrelaesdepropriedade,organizaoedivisodotrabalho,dascondiesdevidacotidiana.Enfim,iniciadanoterrenonacional,norespeitafronteirasessecompletaverdadeiramenteaoseampliaraoespaodoscontinentesedomundo.Ela,aomesmotempo,atoeprocesso,ruptura e continuidade.7.Inversamentelendareacionriaqueapresentaocomunismocomoosacrifciodoindivduoemproldacoletividadeannima,o Manifestoodefinecomoumaassociaonaqualolivredesenvolvimentodecadaumacondioparaolivredesenvolvimentodetodos[o]. Assim entendido, parece o auge da livre realizao pessoal. No conviria confundi-lo nem com as miragens do individualismo impessoal, nem com o igualitarismo vulgar de umsocialismodecaserna.Aespciehumanaretiradodesenvolvimentodasnecessidadesecapacidadesmparesdecadaindivduoosrecursosparaseuprpriodesenvolvimentouniversal.Reciprocamente,noseconcebeolivredesenvolvimentodecadaumindependentemente do livre desenvolvimento de todos. Isso porque a emancipao no umprazer solitrio.Como fazer, ao certo, para que o apelo iniciativa e responsabilidade individuais no sereduzaaumasubmissolgicadadominao,senopelaadoodeumaredistribuioradicalderiqueza,poderesaber?Comodemocratizaraspossibilidadesderealizaodetodos e todas sem associar essa redistribuio a medidas especficas de discriminao positivacontraasdesigualdadesnaturaisousociais?Parasedesenvolver,oindivduomodernoprecisou de solidariedades sociais (legislao do trabalho, previdncia social, aposentadoria,regulamentao salarial, servios pblicos) que a contrarreforma liberal visa precisamentea destruir, para reconduzir a sociedade a uma selva concorrencial impiedosa.Emboraoliberalismopretendadesenvolveroindivduo,narealidadesdesenvolveoegosmo na concorrncia de todos contra todos, em que o desenvolvimento de cada um tempor condio a aniquilao ou eliminao dos outros. A liberdade oferecida a cada um no adocidado,adoconsumidorlivreparaescolherentreprodutospadronizados.Asideologias liberais fazem do risco o princpio de reconhecimento do valor individual. Essaculturadoriscoedomritopraticamenteservedelibispolticasdedemoliodesolidariedades,medianteaindividualizaodossalrios,dotempodetrabalho,dosriscos(diante da sade, da velhice ou do desemprego); da individualizao das relaes contratuaiscontra as convenes coletivas e a lei comum; do desmantelamento das regulamentaes sobpretexto de melhor reconhecimento das trajetrias individuais.QuandooPartidoSocialistacolocaaquestodoindivduoentresuasprioridades,apenascorrenoencalodamistificaoliberal.Seessetemairrigacadavezmaissuanovilngua, isso fruto da concorrncia retrica com os costumes sarkozistas: propriedadeindividual,sucessoindividual,seguranaindividualetc.Essaexploraoideolgicadesviaasaspiraeslegtimasemnossasociedade.Odesenvolvimentodascapacidadesepossibilidades de cada um(a) umcritrio de progresso bemmaisclaro doque desempenhosindustriaisecocidas.Darimportnciadecisivaoposioentrecapitaletrabalhonosignifica estar surdo s necessidades pessoais de crescimento, reconhecimento e criatividade.Ocapitalismoquepretendesatisfaz-las,narealidade,aprisiona-asnoslimitesdoconformismomercantiledocondicionamentodosdesejos,acumulandofrustraesedecepes.O esprito da insurreioNarevoluode1848,oespectrodocomunismoencarna.Emsuas Lembranas,Tocquevillerecordaopavordeumcolegadeputado,quesurpreendeuaconversadeseusjovensempregados,sonhandoemacabarcomopoderdospatres.Eleaguardouprudentementequeainsurreiofossederrotadaparadespedi-losereenvi-losaseuscasebres.OmesmoTocquevilleserecordatambmdeterencontrado,nocomeodaruaSaint-Honor, uma multido de operrios que escutava o canhoneio:Os homens estavam todos de bluso, que, como se sabe, era para eles tanto a roupa de combate quanto a de trabalho[...]. Observavam com uma alegria mal contida que o barulho do canhoneio parecia aproximar-se, o que anunciava que ainsurreio ganhava terreno. Eu j pressagiara o que estava vendo: toda a classe operria engajada na luta, seja comos braos, seja com o corao. O esprito da insurreio, com efeito, circulava de uma ponta a outra dessa vasta classee em cada uma de suas partes, como o sangue de um nico corpo; enchia tanto os bairros onde no se combatia como osque serviam de teatro ao combate e penetrava em nossas casas, ao redor, acima e abaixo de ns. Os prprios lugares dequeacreditvamosserosdonosformigavamdeinimigosdomsticos;eracomoumaatmosferadeguerracivilqueenvolvia toda Paris e na qual, qualquer que fosse o lugar onde se escapasse, era preciso viver.[p]E por isso que o espectro sorri.Bibliografia selecionadaBENSAD, Daniel. Le sourire du spectre. Paris, Michalon,1999.______. Les dposseds. Karl Marx, les voleurs de bois et le droit des pauvres. Paris, La Fabrique, 2007.CLAUDIN, Fernando. Marx, Engels et la rvolution de 1848. Paris, Maspero, 1980.LABRIOLA, Antonio, Essais sur la conception matrialiste de lhistoire. Paris, Gordon and Breach, 1970.LASCOUMES, Pierre; ZANDER, Hartwig. Marx, du vol de bois la critique du droit. Paris, PUF, 1984.LWY, Michael. La thorie de la rvolution chez le jeune Marx. Paris, Maspero, 1970 [ed. bras.:A teoria da revoluo nojovem Marx. So Paulo, Boitempo, 2012].SERENI, Paul. Marx, la personne et la chose. Paris, LHarmattan, 2007. [a] Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista (trad. lvaro Pina, So Paulo, Boitempo, 1998), p. 43. (N. T.)[b] Ibidem, p. 41 e 43. (N. T.)[c] Ibidem, p. 43. (N. T.)[d] Ibidem, p. 40. (N. T.)[e] Ibidem, p. 45. (N. T.)[1] Ibidem, p. 52. (N. T.)[2] Ibidem, p. 69. (N. T.)[f] Ibidem, p. 52. (N. T.)[g] Ibidem, p. 58. (N. T.)[h] Ibidem, p. 56. (N. T.)[i] Ibidem, p. 58. (N. T.)[j] Idem. (N. T.)[k] Ibidem, p. 43. (N. T.)[l] Ibidem, p. 56. (N. T.)[m] Ibidem, p. 69. (N. T.)[n]Idem,MensagemdoComitCentralLiga[dosComunistas],emLutasdeclassesnaAlemanha(trad.NlioSchneider, So Paulo, Boitempo, 2010), p. 64. (N. T.)[o] Idem, Manifesto Comunista, cit., p. 59. (N. T.)[p]Alexisde Tocqueville,Lembranasde1848(trad.ModestoFlorenzano,SoPaulo,CompanhiadasLetras,2011),p.194.(N. T.)5Por que as revolues nunca chegam na hora certaNo mais... Ainda no... Um mundo est morrendo, o novo luta para nascer.Noentreato,onecessrioeopossvelnoseavizinhammais.odestinotrgicodasrevolues.Marxtemestepressentimentoluzdosacontecimentosde1848:Arevoluopodevirantesdoqueesperamos.Nadapiorparaosrevolucionriosdoqueterdesepreocuparcomoabastecimentodepo(cartade19deagostode1852).Noentanto,oabastecimento de po continuou a ser uma preocupao prioritria para os revolucionriosdo sculo XX.A histria a contratempoMais explcito, Engels confidencia a um correspondente:Tenhocertopressentimentodequenossopartido,emrazodamorosidadeeindecisodosoutrospartidos,umbelodiasercatapultadoaogovernoparaimplantarmedidasquenoseroexatamentedenossointeresse,masquecorrespondero aos interesses gerais da revoluo, especificamente aos da pequena-burguesia. Nessas circunstncias,impelidospelopovoproletrio,seremoscoagidosafazerexperinciascomunistasedarsaltosadiante,quesabemosmelhordoqueningumoquantoseriaminoportunos.Nessescasos,perde-seacabeaesperemosquesnosentidofigurado e ocorre uma reao, e, at que o mundo seja capaz de ter um julgamento histrico sobre acontecimentosdessetipo,passaremosnoapenasporbestasferozes,masporbestas,oquebempior.Noconsigoimaginarqueissotranscorradeoutromodo...Comoprecauoaessaeventualidade,melhorquealiteraturadenossopartidofornea por antecipao os fundamentos de sua reabilitao histrica. (Carta de 12 de abril de 1853.)Muitos,comefeito,foradospelascircunstnciasaadotarmedidasquenotinhamnemprevisto nem desejado, perderam a cabea no sentido literal. Outros tambm a perderam nosentido figurado.Mas aesperana de Engels, de quealiteraturacomunistacrticaajudeadesemaranharosfiosdatragdiaesenorteienoslabirintosdahistria,talveznosejatotalmente v.Toda situao presente um entrelaamento de fatores com temporalidades diferentes:Alm das misrias modernas, aflige-nos toda uma srie de misrias herdadas, decorrentes dapermannciavegetativademodosdeproduoarcaicoseantiquados,comoseusquitoderelaessociaisepolticasanacrnicas[zeitwidrigengesellschaftlichenundpolitischenVerhrnissen][a].Asrevoluesenfeixamumconjuntodspardedeterminaes.Combinamtemposdesarmoniosos.Sobrepemastarefasdeontemeasdeamanh.Porissosoinconstantes,vulnerveis a transfiguraes e metamorfoses, irredutveis a uma definio simples, burguesaou proletria, social ou nacional.O nome sob o qual uma revoluo concebida no ser jamais o que ostentar em sua bandeira no dia do triunfo. Parater chance de sucesso, os movimentos revolucionrios so forados,na sociedademoderna,atomaremprestados,noincio, seus smbolos dentre os elementos da nao, que, mesmo se opondo ao governo oficial, vivem em total harmoniacomasociedadeexistente.Emresumo,asrevoluesdevemconseguirobilhetedeingressonacenapblicacomasprprias classes dominantes.[1]As revolues nunca chegam na hora certa. Divididas entre o no mais e o ainda no,entre o que vem cedo demais e o que vem tarde demais, elas no conhecem a hora certa: Se aComuna [a de 1793] chegou cedo demais, com suas aspiraes de fraternidade, Babeuf chegoumuito tarde. E se o proletariado ainda no podia governar a Frana, a burguesia no podiamaisfaz-lo[b].Nessehiatoentreonecessrioeopossvelsobrevmatragdia,adasjornadas de junho de 1848 ou de julho de 1917, ou ainda a de janeiro de 1917 na Alemanha, emqueperderamavidaRosaLuxemburgoeKarlLiebknecht,osdoisgrandespersonagensdojovem Partido Comunista alemo. Arte das mediaes, a poltica tambm a arte do instantepreciso e do contratempo.Uma outra escrita da histriaAfilosofiahegelianadahistriaaltimaconsequncia,levadasuamaispuraexpresso,detodaessahistoriografiaalem,paraaqualnosetratadosinteressesreais,nem mesmo polticos, mas apenas de pensamentos puros. [...] Tal concepo verdadeiramentereligiosa,escrevemosduetistasMarxeEngelsemAideologiaalem.Osfilsofos,prosseguem, so incapazes de evocar algum dos verdadeiros acontecimentos histricos, nemmesmo as intervenes verdadeiramente histricas da poltica na histria. Sugerem que, emseulugar,nossejaoferecidaumanarraoquenosebaseiaemestudosmassimemconstruesartificiaiseemintrigasliterrias[c].TambmemProudhonnohmaishistria, quando muito a histria na ideia, um simulacro de histria. A essas concepesreligiosas ou idealistas da histria preciso opor uma concepo materialista e profana.Essahistriaprofananotemumsentidopredeterminadonemchegaaumfimpreestabelecido. Contudo, permanece inteligvel. A trilogia das lutas de classe na Frana ,dessemodo,aobradeumnovotipodenarrador,cujanarrativainventaoufabricaapoltica[2]. Essa longa crnica de um quarto de sculo de lutas complica a intriga e rompe odesenrolamento linear do tempo. Sua histria no retilnea. Avana frequentemente pelolado mau. Marx foi criticado por fazer, em nome do progresso, a apologia da colonizaocomo forma imposta de modernizao. enganar-se sobre sua viso. Para ele, a histria no uma linha reta, mas uma sequncia de encruzilhadas e bifurcaes: ou ento, ou ento... Se acolonizaobritnicadandiasuscitaumarevoluosocialnoHindusto,mesmoquemovidaporinteressessrdidos,aInglaterraterevitadoinvoluntariamenteossuplciosdaacumulaocapitalistaecontribudoparatirarandiadoimobilismo.Docontrrio,aInglaterra,quaisquerquesejamseuscrimes,foiuminstrumentoinconscientedahistriaao provocar essa revoluo[3].Longedoscontosedificantesedaslendasmoralizantes,ahistriater,umavezmais,passadopeloladoerrado.Nohnenhumdocumentodeculturaquenosejatambmumdocumento de barbrie, escreve Walter Benjamin. Assim, enquanto perdurar um sistema deexplorao e opresso, progresso e catstrofe permanecero mortalmente entrelaados paraMarx. Por isso, a histria deve ser pensada politicamente, e a poltica, historicamente.No do passado, mas unicamente do futuro, que a revoluo social do sculo XIX pode colher a sua poesia. Ela nopode comear a dedicar-se a si mesma antes de ter despido toda a superstio que a prende ao passado. As revoluesanteriorestiveramderecorreramemriashistricasparaseinsensibilizaremrelaoaoseuprpriocontedo.Arevoluo do sculo XIX precisa deixar que os mortos enterrem os seus mortos para chegar ao seu prprio contedo.Naquelas, a fraseologia superou o contedo, nesta, o contedo supera a fraseologia.[d]E m O18debrumriodeLusBonaparte,Marx,narradorprofano,exortaaquesecriepoliticamente a histria, em vez de se suport-la religiosamente.SuatrilogiasobrealutadeclassesnaFranapropeumaescrituracrticadahistria,em que o fato, os indivduos, a mentalidade tenham o lugar que lhes cabe. Em que o possvelnoimportemenosdoqueoreal.Concretiza-seassimarupturacomasfilosofiasespeculativasdahistria,prenunciadaemAsagradafamliae Aideologiaalem.Em Asagradafamlia,MarxeEngelsrefutamavisoapologticadequetudooqueaconteceudeverianecessariamenteacontecerparaqueomundofosseoqueensfssemosoquesomos. Por um lado, [continua-se] a atividade anterior sob condies totalmente alteradase, por outro, [modifica-se] com uma atividade completamente diferente as antigas condies,o que ento pode ser especulativamente distorcido, ao converter-se a histria posterior nafinalidade da anterior. A esse fetichismo de uma Histria maiscula, reduzida a uma formasecularizadadoantigoDestinoouProvidncia,elesopem,em Aideologiaalem,umaconcepodefinitivamentedesencantada:Ahistrianadamaisdoqueosuceder-sedegeraes distintas[e].Uma frmula lapidar de Engels em A sagrada famlia resume muito bem a mudana radicaldeperspectiva:Ahistrianofaznada.Noumnovodeusquemanipulaacomdiahumana. Quem faz tudo [...], quem possui e luta , muito antes,o homem, o homem real, quevive; no , por certo, a Histria, que utiliza o homem como meio para alcanarseus fins como se se tratasse de uma pessoa parte , pois a Histriano seno a atividade do homemquepersegueseusobjetivos.[f]Essahistriaprofana,quesedecidenalutaepelaluta,justificaplenamente o ttulode umbelo livro deMichel Vade:Marx,penseurdupossible[Marx, pensador do possvel][4].Ocupado com a infindvel Crtica da economia poltica, tambm ela uma escrita originaldahistria,Marxdeixoupoucasconsideraesfilosficasgeraissobreoassunto.Encontram-seapenasnotasesparsas,comoaspublicadasnaintroduodosGrundrisse[g]uma nota bene, escreve Marx. Essas oito anotaes breves, lembretes garranchados em estilotelegrfico, merecem ateno especial.Naprimeira,emvezdeumadeterminaomecnicadapolticapelaeconomia,Marxassinala a importncia da guerra como laboratrio e cadinho de novas relaes sociais. Nasegunda,convidaasubmeterahistoriografiaidealexistenteatopresenteprovadahistoriografiareal,paradesmistificaravelhahistriadasreligiesedosEstados.Naterceira,ressaltaaimportncia,paraatingiracomplexidadedatransformaohistrica,dasrelaesdeproduo secundriasetercirias[...] derivadas,transpostas,nooriginrias,dentreasquaisasrelaesinternacionais.Nasexta,recomendanoconceberdemodoalgumoconceitodoprogressonaabstraohabitual,maslevaremconta o desenvolvimento desigual das relaes de produo, relaes jurdicas, fenmenosestticos;ouseja,levaremcontaosefeitosdecontratempoenocontemporaneidade.Nastima,salientaqueahistriaaparececomoumdesenvolvimentonecessrioeprevineimediatamentecontraainterpretaomecanicista:Masjustificaodoacaso.Como.(Daliberdadetambm,entreoutrascoisas.)(Influnciadosmeiosdecomunicao.Ahistriauniversal no existiu sempre; a histria c