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A PRIMA RAQUEL Título Original: MY CAUSIN RACHEL Daphne Du Maurier Capítulo Primeiro Antigamente, costumavam enforcar homens em Four Turnings. Mas agora já não. Hoje em dia, quando um assassino é punido pelo seu crime, acontece em Bodmin, após julgamento imparcial nos Assizes. Isto se a lei o condena antes de a consciência o matar. É preferível assim. Como uma intervenção cirúrgica. E o corpo tem um enterro decente, embora numa sepultura anónima. Quando eu era pequeno, as coisas não se passavam assim. Recordo-me, na adolescência, de ver um indivíduo pendurado em correntes no local onde as quatro estradas se encontram. O rosto e corpo tinham sido enegrecidos com alcatrão para os preservar. Esteve lá suspenso durante cinco semanas antes de o apearem, e foi na quarta que o vi. Oscilava entre o céu e a terra sobre o estrado de madeira ou, como o meu primo Ambrose referiu, entre o Céu e o Inferno. O Céu nunca ele alcançaria e, quanto ao inferno que conhecera, achava-se fora do seu alcance. Ambrose tocou no corpo com a bengala. Ainda consigo imaginá-lo, a mover-se com a deslocação do ar como um cata-vento num eixo enferrujado, um triste espantalho daquilo que fora um homem. A chuva apodrecera-lhe os calções, senão o corpo, e tiras de tecido pendiam dos membros inchados como papel polposo. Era Inverno, e um brincalhão qualquer que passara colocara um ramo de azevinho na jaqueta rasgada, para celebração. Aos meus sete anos, aquilo afigurou-se o ultraje final, mas não me pronunciei. Ambrose devia ter-me levado lá com alguma ideia em mente; talvez para testar a minha coragem, ver se eu fugiria, riria ou choraria. Como meu tutor, pai, irmão e conselheiro - na realidade, como todo o meu mundo -, estava

Daphne D Maurier - A Prima Raquel

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Da mesma autora de Rebecca.

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A PRIMA RAQUEL

Título Original:MY CAUSIN RACHEL

Daphne Du Maurier

Capítulo Primeiro

Antigamente, costumavam enforcar homens em Four Turnings.Mas agora já não. Hoje em dia, quando um assassino é punido pelo seu crime, acontece em Bodmin, após julgamentoimparcial nos Assizes. Isto se a lei o condena antes de aconsciência o matar. É preferível assim. Como uma intervenção cirúrgica. E o corpo tem um enterro decente, embora numa sepultura anónima. Quando eu era pequeno, as coisas não sepassavam assim. Recordo-me, na adolescência, de ver um indivíduo pendurado em correntes no local onde as quatro estradas se encontram. O rosto e corpo tinham sido enegrecidoscom alcatrão para os preservar. Esteve lá suspenso durantecinco semanas antes de o apearem, e foi na quarta que o vi.Oscilava entre o céu e a terra sobre o estrado de madeiraou, como o meu primo Ambrose referiu, entre o Céu e o Inferno. O Céu nunca ele alcançaria e, quanto ao inferno queconhecera, achava-se fora do seu alcance. Ambrose tocou nocorpo com a bengala. Ainda consigo imaginá-lo, a mover-secom a deslocação do ar como um cata-vento num eixo enferrujado, um triste espantalho daquilo que fora um homem.A chuva apodrecera-lhe os calções, senão o corpo, e tiras detecido pendiam dos membros inchados como papel polposo.Era Inverno, e um brincalhão qualquer que passara colocara um ramo de azevinho na jaqueta rasgada, para celebração.Aos meus sete anos, aquilo afigurou-se o ultraje final, masnãome pronunciei. Ambrose devia ter-me levado lá com algumaideia em mente; talvez para testar a minha coragem, ver se eufugiria, riria ou choraria. Como meu tutor, pai, irmão econselheiro - na realidade, como todo o meu mundo -, estava

sempre a pôr-me à prova. Lembro-me de que contornámos oestrado, enquanto ele explorava o corpo com a bengala, atéque se deteve, acendeu o cachimbo e pousou-me a mão noombro.5 - Aqui tens no que todos acabamos, Philip. Uns no campo de batalha, outros na cama e outros ainda em conformidade com o seu destino. Não há fuga possível. Não podes aprender a lição demasiado cedo. Mas é assim que um assassinomorre. Uma advertência para ti e para mim, no sentido de levarmos uma vida direita. - Conservávamo-nos lado a lado, aver o corpo oscilar, como se estivéssemos de visita à feira deBodmin e o cadáver fosse um alvo para visar com bolas.- Observa o que um momento de exaltação pode provocarnuma pessoa - continuou. - Aqui tens Tom Jenkyn, honesto e estúpido, excepto quando bebia de mais. Sem dúvida quea esposa era rezingona, mas isso não justifica que a matasse.Secomeçássemos a eliminar as mulheres por causa das suas línguas aguçadas, quase todos os homens seriam assassinos.Eu preferia que ele não tivesse mencionado o nome do homem. Até então, o corpo fora uma coisa morta, sem identidade. Surgiria nos meus sonhos, sem vida e horrível, como meapercebi perfeitamente a partir do momento em que pousei avista no cadafalso. Agora, relacionar-se-ia com a realidade ecom o homem de olhos aguados que vendia lagostas no cais dacidade. Costumava encontrar-se junto dos degraus nos mesesde Verão, com a cesta a seu lado, e punha os crustáceos a rastejar pelo chão numa corrida fantástica, para gáudio dascrianças. Não havia muito tempo que eu o vira.- Então? - perguntou Ambrose, observando-me a expressão. - Que te parece?Encolhi os ombros e dei um pontapé na base do estrado.Não queria que ele reparasse no meu estado de espírito, queme percorria um misto de amargura e terror. De contrário,desprezar-me-ia. Aos vinte e sete anos, Ambrose era o deus detoda a criação, pelo menos de todo o meu reduzido mundo, eo único objectivo da minha vida consistia em emulá-lo.- O Tom tinha um ar sorridente a última vez que o vi repliquei. - Agora, nem tem frescura suficiente para servirdeengodo às suas lagostas.Soltou uma gargalhada e puxou-me levemente a orelha.- Assim é que gosto de te ouvir. Falaste como um verdadeiro filósofo. - E, com um súbito lampejo de percepção,acrescentou: - Se estás agoniado, vai vomitar atrás daquelasebe e lembra-te de que não me dei conta de nada.Voltou as costas ao cadafalso e à encruzilhada e afastou-sepela alameda que construía na altura, a qual atravessava obosque e serviria de segunda via de acesso de carruagens à casa.Fiquei satisfeito ao vê-lo retirar-se, porque não alcancei asebea tempo. Depois, senti-me melhor, embora os dentes chocalhassem e tivesse muito frio. Tom Jenkyn voltou a perderidentidade e converteu-se numa coisa sem ?vida, como um sacovelho. Foi mesmo um alvo para a pedra que atirei. Invulgarmente temerário, observei o corpo

oscilante. Mas não aconteceu nada. A pedra atingiu o vestuário molhado com um somabafado e saltitou no chão. Envergonhado com o gesto, abandonei o local apressadamente pela nova alameda, à procura deAmbrose.Bem, isto passou-se há dezoito anos, e não me recordo deter pensado muito no assunto desde então. Até aos dias maisrecentes. É curioso como nos momentos de crise aguda a mente faz reaparecer a infância. Recomecei a pensar no infortunado Tom, suspenso nas suas correntes. Nunca ouvira a sua história, e poucas pessoas se lembrariam dela agora. Ambrosedissera que tinha matado a mulher. E nada mais. Era rezingona, mas isso não constituía motivo suficiente para recorrer aohomicídio. Possivelmente, como manifestava inclinação especial para a bebida, matara-a sob o efeito do álcool. Mas como?E com que arma? Uma faca ou as próprias mãos? Talvez tivesse saído do bar da pousada para o cais a cambalear, naquelanoite de Inverno, inflamado de amor e febre. E a maré estavaalta, com a água a lamber os degraus de pedra e a lua cheia areflectir-se no mar. Quem sabe que sonhos de conquista lheacudiam à mente perturbada, que súbita erupção de fantasia?Talvez se arrastasse em direcção a casa, no pequeno chaléatrás da igreja, um indivíduo pálido, de olhar congestionado,atresandar a lagosta, e a mulher invectivara-o por entrar comos6 7pés molhados, o que pusera termo ao sonho e o levara a matá-la. As coisas podiam perfeitamente ter-se passado assim. Seexiste sobrevivência depois da morte, como nos ensinaram acrer, procurarei o coitado do Tom para o interrogar. Sonharemos no Purgatório juntos. No entanto, ele era um homem demeia-idade, com cerca de sessenta anos, e eu ainda só tenhovinte e cinco. Os nossos sonhos não seriam os mesmos. Porconseguinte, volta para as tuas sombras, Tom, e deixa-me alguma medida de paz. O cadafalso há muito que desapareceu, etu com ele. Atirei-te uma pedra por ignorância. Perdoa-me.A verdade é que a vida tem de ser suportada e vivida. Maso problema consiste em como vivê-la. O trabalho do dia-a-dianão apresenta dificuldades. Tornar-me-ei juiz de paz, comoAmbrose foi, e também frequentarei, um dia, o Parlamento.Continuarei a ser honrado e respeitado, como toda a famíliaantes de mim. Cultivarei bem a terra e velarei pelas pessoas.Ninguém suspeitará do fardo de culpa que me pesa nos ombros, nem saberá que todos os dias, ainda atormentado peladúvida, faço a mim próprio uma pergunta a que não possoresponder. Raquel estava inocente ou culpada? Talvez tambémme inteire disso no Purgatório.Como soa terno e suave o seu nome quando o murmuro!Perdura na língua, insidioso e lento, quase como veneno, queé de facto apropriado. Passa da língua aos lábios ressequidosedestes regressa ao coração. E o coração governa o corpo, assimcomo a mente. Libertar-me-ei disso, um dia? Dentro de quarenta, cinquenta anos? Ou porventura

algum persistente vestígio de matéria no cérebro subsistirá, pálido e doentio? Algumaminúscula célula do sistema circulatório deixará de correr comas outras em direcção ao coração-fonte? É possível que, quando tudo tiver sido dito e feito, eu não deseje ser livre. Porenquanto, não o posso determinar.Ainda tenho a casa para estimar, como Ambrose desejaria.Posso restaurar as paredes onde a humidade se infiltra e manter tudo devidamente em ordem. Continuar a plantar árvores earbustos, cobrir as colinas despidas por onde o vento circulauivando, proveniente de leste. Deixar algum legado de belezaquando partir, se não puder ser nada mais. Mas um homemsolitário é contranatura, e não tarda a enfrentar aperplexidade.Da perplexidade passa à fantasia. Da fantasia à loucura. E regresso assim a Tom Jenkyn, suspenso nas suas correntes.É possível que ele também sofresse.Há dezoito anos, Ambrose afastou-se pela alameda e eu fuino seu encalço. Ele talvez usasse a jaqueta que visto agora.Esta velha jaqueta de caça verde, com protecção de cabedal noscotovelos. Tornei-me tanto como ele que quase poderia ser oseu fantasma. Os meus olhos são os seus, e os traços fisionómicos também. O homem que assobiou aos seus cães e voltouas costas à encruzilhada das quatro estradas e ao cadafalsopodia ser eu. Bem, era o que sempre desejara. Ser como ele. Terasua altura, os seus ombros, a maneira de se encurvar, até osbraços compridos, mãos de aspecto algo desajeitado, o sorrisorepentino, o acanhamento no primeiro encontro com um desconhecido, a aversão ao rebuliço, ao cerimonial. A cordialidade de maneiras com aqueles que o serviam e estimavam - lisonjeiam-me aqueles que dizem que também possuo essacaracterística. E a resistência que se revelou ilusória, peloquetombámos ambos na mesma calamidade. Tenho-me interrogado ultimamente se, quando morreu, a mente enevoada e torturada pela dúvida e temor, ao sentir-se abandonado e só naquela maldita vivenda onde eu não podia estabelecer contacto comele, se o seu espírito se desprendeu do corpo e se juntou aomeu, para tomar posse, pelo que voltou a viver em mim e repetir os seus erros, tornou a contrair a doença e pereceu pelasegunda vez. Pode ter sido assim. Só sei que a minha parecença com ele, de que tanto me orgulhava, constituiu um inconveniente. Em virtude dela, surgiu o desaire. Se eu fosse outro,ágil e rápido, com uma língua aguçada e ideias lúcidas para osnegócios, o ano agora terminado não teria passado de mais doze meses surgidos e deixados eventualmente para trás. Preparar-me-ia para um futuro activo e satisfatório. Para ocasamento, possivelmente, e para uma jovem família.8 9Mas eu não era nada disso, e Ambrose tão-pouco. Éramossonhadores, desprovidos de sentido prático, reservados, cheiosde grandes teorias nunca testadas e, como todos os sonhadores, adormecidos perante o mundo acordado. Antipatizandocom o nosso semelhante, ansiávamos por afecto, porém a timidez manteve o impulso dormente até que o coração foi afectado. Quando isso aconteceu, os céus abriram-se e sentimos que

dispúnhamos de toda a riqueza do universo para dar. Teríamossobrevivido se fôssemos outros. Raquel teria vindo do mesmomodo. Permaneceria connosco uma ou duas noites e partiria.Discutiríamos questões de negócios, resolveríamos alguns assuntos, escutaríamos a leitura do testamento em torno de umamesa e eu - abarcando a situação num relance - conceder-lhe-ia uma anuidade vitalícia e livrar-me-ia dela.Não aconteceu assim porque me parecia com Ambrose.Não aconteceu assim porque pensava como ele. Quando medirigi ao quarto dela, na sua primeira noite, e, depois debaterà porta, e entrar, inclinei a cabeça levemente por causa dolintel baixo e ela se levantou da cadeira em que se sentava juntoda janela, para me olhar, eu devia ter compreendido então, pela expressão de reconhecimento que exibiu, que não era a mimque via, mas Ambrose. Não Philip, mas um fantasma. Deviater partido naquele momento, feito as malas e desaparecido,regressado ao lugar a que pertencia, à vivenda das persianascorridas, bafienta de recordações, ao jardim formal com terraço e fonte gotejante no centro; regressado ao seu país, ressequido em pleno Verão e brumoso de calor, austero no Invernosob o frio e céu brilhante. Um instinto qualquer devia tê-laprevenido de que se ficasse comigo acarretaria destruição, nãosó para o fantasma que encontrara, mas, em última análise, nofinal, também para ela.Quando me vira de pé na sua frente, acanhado e embaraçado, angustiado de ressentimento pela sua presença, emboraperfeitamente consciente da minha qualidade de anfitrião e dosmeus pés grandes e braços e pernas deselegantes, angulosos,será que pensara "O Ambrose devia ser assim quando jovem;antes do meu tempo. Não o conheci quando tinha este aspecto", e, por isso, decidira ficar?Talvez fosse essa a razão pela qual, quando tive o breve encontro com o italiano Rainaldi, pela primeira vez, também meolhou com o mesmo ar chocado de reconhecimento, dissimulado com prontidão, moveu os dedos na caneta em cima da secretária por uns instantes e acabou por perguntar:- Chegou só hoje? Nesse caso, a sua prima Raquel nãoo viu.O instinto também o prevenira. Mas demasiado tarde.Não se pode voltar atrás na vida. Não há regresso ao passado. Nunca uma segunda oportunidade. Não posso apagar apalavra pronunciada ou o facto consumado, aqui sentado, vivoe em minha própria casa, tal como o infortunado Tom Jenkvnnão podia, suspenso das suas correntes.Foi o meu padrinho Nick Kendall quem, no seu estilo directo e brusco, me disse na véspera do meu vigésimo quintoaniversário (há apenas uns escassos meses, meu Deus, mas umlapso de tempo tão longo!):- Há mulheres, Philip, boas pessoas muito possivelmente,que, sem a mínima culpa própria, provocam uma calamidade.Tudo no que tocam transforma-se em tragédia. Não sei porque te digo isto, mas sinto que o devo fazer.Em seguida, testemunhou a minha assinatura no documento que eu lhe colocara na frente.Não, não se pode voltar atrás. O rapaz que se encontrava

debaixo da janela dela na véspera do aniversário, o mesmo quesurgiu à entrada do seu quarto na noite em que chegou, já nãoexiste, à semelhança da criança que atirou uma pedra a um homem morto num cadafalso para se incutir falsa coragem. TomJenkyn, espécime andrajoso da humanidade, irreconhecível enão chorado, porventura, ao longo de todos estes anos, mecontemplaste com compaixão, enquanto eu percorria o bosqueem direcção ao futuro?Se olhasse para ti, por cima do ombro, não te veria a oscilar nas tuas correntes, mas a minha própria sombra.Capítulo segundoNão me acudia a menor sensação de presságio quandoconversávamos, naquela última noite, antes de Ambrose partirpara a sua derradeira viagem. Nenhuma premunição de que jamais voltaríamos a estar juntos. Decorria o terceiro Outonoem que os médicos lhe haviam ordenado que passasse o Inverno no estrangeiro, e eu habituara-me à sua ausência e a olharpela propriedade até ao seu regresso. No primeiro em que ofez, ainda me encontrava em Oxford, pelo que o seu afastamento pouca diferença exercera em mim, mas no segundo voltei definitivamente e permaneci sempre em casa, que era o queele desejava de mim. Não fiquei com saudades da vida gregáriana Universidade, e na realidade até me congratulei por lhevoltar as costas.Nunca me acudia vontade de estar em parte alguma senãono lar. À parte os tempos do liceu em Harrow e mais tarde emOxford, não vivera em lugar algum excepto naquela casa, ondeme fixara aos dezoito meses, na sequência da morte de meusjovens pais. Ambrose, à sua curiosa maneira generosa, foi dominado pela compaixão por aquele pequeno primo órfão, peloque me foi buscar pessoalmente, como faria em relação a umcachorro, um gato ou qualquer ser frágil e solitárionecessitado de protecção.O nosso lar foi estranho desde o princípio. Ele despediu aminha ama quando eu tinha três anos, porque me batia nas nádegas com uma escova do cabelo. Não me recordo do incidente, mas descreveu-mo mais tarde.- Fiquei furioso quando vi a mulher a zurzir o teu pequeno corpo com as suas enormes e grosseiras mãos por causa deum lapso insignificante, cuja inteligência limitadíssima nãolhepermitia compreender - explicou. - A partir de então, oscorrectivos tornaram-se responsabilidade minha.Nunca tive motivo para o deplorar. Não podia existir umhomem mais imparcial, mais justo, mais simpático, mais plenode compreensão. Ensinou-me o alfabeto da maneira mais simples possível, recorrendo às iniciais de cada imprecação. Apesquisa das vinte e seis letras exigiu não pouco trabalho, maseleconseguiu-o, e advertiu-me de que não devia empregar as palavras que as acompanhavam. Embora invariavelmente cortês,revelava-se retraído perante as mulheres, assim como desconfiado, com o comentário de que provocavam problemas numlar. Nessa conformidade, só admitia pessoal doméstico do sexo

masculino, tribo controlada pelo velho Seecombe, que foramordomo do meu tio.Talvez excêntrico, heterodoxo - a região oeste do paíssempre se caracterizou pelos temperamentos singulares -,mas, apesar das suas opiniões individuais sobre as mulheres eaeducação de rapazes, Ambrose não era maníaco, nem nada dogénero. Desfrutava da simpatia e respeito dos vizinhos e daestima do pessoal. Dedicava-se à caça no Inverno, antes de oreumatismo o atacar, pescava no Verão num pequeno barcoque conservava ancorado no estuário, jantava fora e recebiaamigos quando lhe apetecia, ia à missa aos domingos, emborame olhasse com uma ruga na fronte se o sermão se alongavademasiado, e conseguiu contagiar-me com a paixão para plantar arbustos raros.- É uma forma de criação como outra qualquer - costumava dizer. - Há quem se incline para a reprodução. Eu prefiro ver coisas a desenvolverem-se na terra. Exigem menos denós, e o resultado é muito mais gratificante.Chocava o meu padrinho, Nick Kendall, Hubert Pascoe, ovigário, e outros seus amigos, que costumavam aconselhá-lo acriar raízes na paz doméstica e uma família em vez de rododendros.- Criei um rebento, o que consumiu vinte anos do meuperíodo de vida, ou enriqueceu, conforme o ponto de vistacom que se encare a situação - argumentava, puxando-me levemente a orelha. - Além disso, o Philip é um herdeiro pronto a exercer essas funções, pelo que não se levanta a questãodeter de cumprir o meu dever. Ele se ocupará de o fazer quandoo momento se apresentar. E agora, reclinem-se nas poltronas eestejam o mais confortáveis possível, meus senhores. Comonão há mulheres em casa, podemos pousar os pés na mesa ecuspir na carpete, se nos apetecer.Não fazíamos nada disso, naturalmente. Ambrose era meticuloso em tudo, sem omitir a higiene e asseio, mas encantava-o proferir observações jocosas do género diante do vigário,pobre homem, com um regimento de filhas, e o vinho do Porto circulava em torno da mesa após o jantar de domingo, comAmbrose a piscar-me o olho do seu lugar à minha frente.Parece que ainda o estou a ver, semicurvado, meio refastelado na cadeira - hábito que adquiri dele -, estremecendocom hilaridade silenciosa quando o vigário proferia ahabitual,tímida e ineficiente advertência, após o que, receando ter melindrado o homem, se apressava a mudar de assunto, rumandopara temas em que o clérigo se acharia mais à vontade e esforçando-se por proceder de modo que se sentisse como em suacasa. Eu apreciava sobretudo as suas qualidades quando estudava em Harrow. As férias passavam rapidamente, enquantocomparava as suas maneiras e companhia com as dos garotosirresponsáveis meus condiscípulos e dos professores, circunspectos e arrogantes, destituídos, a meu ver, de toda equalquerhumanidade.- Não te preocupes - recomendava-me, com uma palmada no ombro, antes de eu sair, pálido, de olhos algo húmidos,

para apanhar o comboio de Londres. - É apenas um processode treino, como domar um cavalo: tem de se enfrentar. Quando os teus tempos de colégio terminarem, como aconteceráinevitavelmente, ficarás aqui para sempre e passarei eu atreinar-te.- Treinar-me para quê?- Não és o meu herdeiro? Só isso já é uma profissão.E eu partia, conduzido por Wellington, o cocheiro, paraapanhar o comboio de Londres em Bodmin, não sem me voltar, a fim de ver Ambrose pela última vez, apoiado à bengala,com os cães ao lado, os olhos semicerrados numa expressão decompreensão e cabelo anelado que começava a tornar-se grisalho. E quando ele assobiava aos animais e voltava para dentro,eu engolia o nó na garganta e sentia as rodas da carruagem levarem-me para longe, inevitável e fatalmente, ao longo da passagem de saibro que atravessava o parque, para em seguidatranspor o portão, a caminho do colégio e da separação.No entanto, Ambrose não incluíra a saúde nos seus planos,e quando o colégio e a Universidade ficaram para trás de mim,foi a sua vez de partir.- Dizem-me que, se passo mais um Inverno debaixo destachuva persistente, terminarei os meus dias numa cadeira de rodas - explicou-me. - Tenho de procurar o sol. As praias deEspanha ou o Egipto, qualquer lugar no Mediterrâneo que seja seco e quente. Confesso que não estou muito empenhadoem ir, mas, por outro lado, demónios me levem se vou acabara minha vida paralítico. Aliás, o projecto tem uma vantagem.Trarei plantas que mais ninguém possui. Veremos como se darão no solo da Cornualha.O primeiro Inverno chegou e partiu, assim como o segundo. Ele divertiu-se à sua maneira e não creio que se sentissesó.Regressou acompanhado de uma infinidade de árvores, arbustos, flores e plantas de todas as formas e cores. As caméliaseram a sua paixão. Iniciou uma plantação exclusivamente delase não sei se possuía algum condão especial para o fazer, masfloresceram à primeira tentativa e não se perdeu uma única.Assim se foram sucedendo os meses até ao terceiro Inverno. Desta vez, optou pela Itália. Desejava ver alguns dos jardins de Florença e Roma. Nenhuma dessas cidades era quentenaquela época do ano, porém o facto não o preocupava. Alguém lhe garantira que o ar era seco, embora frio, e nãonecessitava de temer a chuva. Conversámos até tarde, naquele último serão. Nunca se deitava cedo e acontecia com frequênciasentarmo-nos juntos na biblioteca até à uma ou duas da madrugada, umas vezes calados, outras a trocar impressões, ambos com as longas pernas estendidas na nossa frente diante dolume e os cães enroscados aos pés. Referi atrás que não meacudira qualquer premunição, porém agora pergunto-me, aorememorar aqueles dias, se tal não sucedeu com ele. Com efeito, olhava-me com uma expressão de perplexidade meditativa,para de vez em quando desviar a vista para as paredes em volta, onde se encontravam retratos da família, depois para a lareira e em seguida para os cães adormecidos.- Gostava que viesses comigo - declarou subitamente.- Não demorava muito a fazer as malas.

Abanou a cabeça e sorriu.- Estava a brincar. Não podemos ausentar-nos ambos simultaneamente durante meses. Um proprietário rural tem certas responsabilidades, embora nem todos pensem como eu.- Podia acompanhá-lo a Roma - aventurei, excitado coma ideia. - Depois, desde que o tempo não me retivesse, estavade volta pelo Natal.- Não - articulou pausadamente. - Foi apenas uma fantasia de minha parte. Esquece-a.- Suponho que se sente bem... Não tem dores?- Decerto que não. Tomas-me por um inválido? Há meses que não tenho nem vestígios de reumatismo. O pior, meucaro Philip, é o atractivo que o lar exerce em mim. Quandochegares à minha idade, talvez sintas o mesmo.Levantou-se da poltrona e aproximou-se da janela. Afastouos pesados cortinados e contemplou o relvado durante unsmomentos. Fazia uma noite calma e silenciosa. As gralhas haviam recolhido aos poleiros e, por uma vez, até os mochospermaneciam calados.- Ainda bem que eliminámos as passagens e fizemos a relva chegar até aqui - murmurou. - Em todo o caso, podíamos melhorar o aspecto geral se prosseguisse até ao cercadodos póneis. Um dia, tens de mandar aparar os arbustos do outro lado, para haver uma vista do mar.- Eu? - Estranhei. - Porque não o primo?Não respondeu imediatamente.- Tanto faz - acabou por dizer. - Não te esqueças, emtodo o caso.O meu velho perdigueiro, Don, ergueu a cabeça e olhou-o.Vira a bagagem no átrio e pressentira a partida iminente. Levantou-se e foi-se postar ao lado de Ambrose, de cauda baixada. Chamei-o a meia voz, mas ignorou-me. Sacudi a cinza docachimbo no lume. O relógio do campanário badalou. No sector do pessoal doméstico, ouvi a voz rouca de Seecombe a admoestar o ajudante de cozinha.- Deixe-me ir consigo, Ambrose - solicitei.- Não digas disparates, Philip - foi a réplica pronta.- Vai mas é para a cama.Apenas isto. Não voltámos a ventilar o assunto. Na manhãseguinte, durante o pequeno-almoço, transmitiu-me as últimasinstruções sobre o plantio da Primavera e várias coisas quedesejava que eu fizesse antes do seu regresso. Acudiu-lhe o capricho repentino de construir um lago para cisnes numa áreapantanosa do parque junto da entrada do caminho de acessooriental, pelo que necessitaria de iniciar os trabalhos semdemora, se o Inverno contivesse alguns dias sofríveis. O momento da partida surgiu com uma prontidão que nenhum dos doisacolheu com satisfação. O pequeno-almoço terminou às sete,porque ele tinha de sair cedo. Pernoitaria em Plvmouth e partiria de manhã à hora da maré favorável. O barco, uma unidade da marinha mercante, deixá-lo-ia em Marselha, de onde seguiria para a Itália. Fazia uma manhã húmida, de temperaturacortante. Wellington levou a carruagem para a entrada e carregou a bagagem sem demora. Os cavalos mostravam-se irrequietos, ansiosos por iniciar a viagem. Ambrose virou-se paramim e pousou-me a mão no ombro.- Olha por tudo. Não me desapontes.- Isso é um golpe baixo - retruquei. - Que eu saiba,nunca o desapontei.- És muito jovem. Delego em ti uma carga pesada. De

qualquer modo, tudo o que possuo é teu, como sabes.Creio que, se insistisse, me deixaria acompanhá-lo. No entanto, não o fiz. Seecombe e eu ajudámo-lo a subir para a carruagem, com os seus tapetes e bengalas, e depois sorriu-nospela janela aberta.- Pronto, Wellington. Podemos ir.E afastaram-se pelo caminho que comunicava com a estrada, precisamente quando principiava a chover.As semanas sucederam-se mais ou menos como durante osdois Invernos anteriores. Eu sentia a ausência dele, como sempre, mas havia muita coisa para me entreter. Se desejava companhia, visitava o meu padrinho, Nick Kendall, cuja única filha, Louise, era alguns anos mais nova que eu e companheirade infância. Tratava-se de uma moça delicada, despretensiosa ebonita. Ambrose gostava de observar, maliciosamente, queacabaríamos por casar, mas confesso que nunca a encarei comsemelhantes intenções em mente.A primeira carta dele chegou em meados de Novembro,trazida pelo mesmo navio que o deixara em Marselha. A viagem decorrera sem nada de especial a assinalar, com bom tempo, apesar de uma certa agitação do mar na baía da Biscaia.Encontrava-se bem de saúde, bem-humorado, e aguardavacom ansiedade a passagem pelos diferentes pontos de escalaem Itália. Não se atrevera a viajar numa diligência, o que, dequalquer modo, o obrigaria a deslocar-se a Lião, e preferiraalugar uma carruagem, na qual tencionava seguir ao longo da costaem direcção a Florença. Wellington meneou a cabeça aointeirar-se e previu um acidente. Manifestava a firme opinião de quenenhum francês era capaz de conduzir uma carruagem devidamente e todos os italianos revelavam tendência para o roubo. Noentanto, Ambrose sobreviveu à tenebrosa previsão, e a missivaseguinte proveio de Florença. Conservei todas as suas cartas etenho-as neste momento na minha frente. Li-as numerosas vezesnos meses seguintes e manuseava-as com insistência, como se apressão dos meus dedos pudesse extrair-lhes informações maiscompletas do que as fornecidas pelas palavras escritas.Foi perto do final daquela epístola de Florença, onde, segundo parecia, passara o Natal, que aludiu pela primeira vez àprima Raquel.??Encontrei uma nossa parente. Deves recordar-te deme ouvir falar dos Coryn, que possuíam uma vivenda noTamar e acabaram por vendê-la. Um deles casou comuma Ashlev, há duas gerações, como podes verificar naárvore genealógica, e uma descendente desse ramo nasceu e foi criada em Itália por um pai sem dinheiro e mãeitaliana, para vir a desposar um nobre chamado Sangalletti, o qual abandonou este mundo na sequência de umduelo, no estrangeiro, deixando à mulher uma carga dedívidas e uma vivenda enorme e vazia. Não tiveram filhos. A condessa Sangalletti, ou, como insiste em se intitular a minha prima Raquel, é uma mulher sensata, boacompanheira, que decidiu oferecer-se para me mostraros jardins de Florença e, mais tarde, de Roma, pois estaremos na capital na mesma altura.?,Congratulei-me pelo facto de ele ter encontrado uma pessoa amiga e, em particular, alguém capaz de partilhar a suapaixão pelos jardins. Como não sabia absolutamente nada

acerca da sociedade florentina ou romana, eu receara que selhe deparassem poucos, ou mesmo nenhum, compatriotas, masafinal surgira ao menos uma pessoa cuja família viera originariamente da Cornualha, pelo que existia também esse elementocomum.A carta seguinte consistia quase inteiramente em listas dejardins, que, embora não apresentassem o seu melhor aspectonaquela época do ano, pareciam tê-lo impressionado profundamente. Tal como a nossa parente.??Começo a nutrir um afecto especial pela nossa prima Raquel??, escreveu no princípio da Primavera. ??Sinto-me impressionado com o que deve ter sofrido com esseSangalletti. Os Italianos são traiçoeiros por natureza,facto impossível de refutar. Ela é tão inglesa como tu oueu no aspecto e maneiras, e dir-se-ia que ainda ontem vivia junto do Tamar. Não se cansa de me ouvir falar dapátria e de tudo o que tenho para lhe contar. É extremamente inteligente, mas, graças a Deus, sabe quando sedeve calar. Nada de tagarelices, como é vulgar nas mulheres. Indicou-me aposentos excelentes em Fiesole, perto da sua vivenda, e tenciono passar uma boa parte domeu tempo junto dela, sentado no terraço ou a percorreros seus jardins, que são, segundo parece, famosos pelasua concepção e estatuetas, apesar de não me consideraruma autoridade nestas últimas. Ignoro de que vive anossa prima Raquel, mas depreendi das suas palavrasque teve de vender uma grande parte dos bens para pagar as dívidas do marido."Perguntei ao meu padrinho se se recordava dos Coryne respondeu que sim, mas não emitiu uma opinião concreta aseu respeito.- Eram pessoas instáveis, nos meus tempos de adolescente - salientou. - Perderam ao jogo o dinheiro e propriedades, e actualmente a casa, à beira do Tamar, não passa depouco mais que uma herdade em ruínas. Entrou em declíniohá uns quarenta anos. O pai dessa mulher devia ser AlexanderCoryn, que julgo ter desaparecido no continente, segundo filho de um segundo filho. Não sei o que foi feito dele. O Ambrose referiu a idade da condessa?- Não. Só diz que casou muito jovem, mas não quando.Suponho que é de meia-idade.- De qualquer modo, deve ser muito atraente, para lhedespertar tanto entusiasmo - comentou Louise. - Nunca otinha ouvido admirar uma mulher.- Talvez o segredo resida precisamente aí - aventei.- É feia e banal e ele não se sente na obrigação de lhedirigirgalanteios. A hipótese encanta-me.Chegaram mais duas ou três cartas, sem qualquer novidadeespecial. Ambrose acabava de regressar aos seus aposentos depois de jantar com a nossa prima Raquel ou preparava-se parase encontrar com ela. Explicava que havia muito poucas pessoas em Florença capazes de lhe dar conselhos desinteressadossobre os seus assuntos e sentia-se lisonjeado por lhe poderserútil. E Raquel mostrava-se extremamente grata. Não obstanteos seus numerosos interesses, parecia singularmente só. Decerto nunca tivera nada em comum com Sangalletti, e confessava

que toda a vida ansiara por dispor de amigos ingleses. ??Pensoque alcancei algo de positivo, além de adquirir centenas denovas plantas que regressarão a casa comigo??, revelava numa dasmissivas.Seguiu-se um período de silêncio epistolar. Embora nãomencionasse a data do regresso, costumava ser perto do finalde Abril. O Inverno parecera mais prolongado entre nós, comgeada - raramente forte na área ocidental do país - de umaintensidade e persistência excepcionais. Algumas das jovenscamélias dele haviam sido afectadas pela intempérie, e eu acalentava a esperança de que não regressasse prematuramente etivesse de suportar ventos agrestes e chuvas copiosas.Pouco depois da Páscoa, recebi a carta.??Deves estar admirado com o meu silêncio e, paraser franco, nunca esperei vir um dia a escrever-te o que aseguir lerás. A Providência actua das formas mais estranhas. Viveste sempre junto de mim, pelo que decerto teapercebeste da agitação que se me instalou no espíritonas últimas semanas. Na verdade, ??agitação?, talvez nãoseja o termo apropriado. O mais correcto seria falar de??excitação de felicidade??, que se converteu numa certeza. Não tomei uma decisão precipitada. Como sabes,sou demasiadamente um homem de hábitos para alteraro meu modo de vida por um capricho. No entanto,compreendi, há semanas, que não se me deparava outrorumo possível. Encontrei algo que nunca vislumbrara,nem imaginava que existisse. Mesmo agora, ainda mecusta a crer que aconteceu. Os meus pensamentos dirigiram-se para ti com frequência, mas só hoje consegui reunir a calma e coragem suficientes para te escrever. Querocomunicar-te que a tua prima Raquel e eu casámos háduas semanas. Estamos agora em Nápoles, em plena lua-de-mel, e tencionamos regressar a Florença dentro depouco tempo. Não te posso dizer mais do que isto. Nãotraçámos quaisquer planos e nenhum dos dois deseja,para já, viver fora do momento presente.Espero que um dia, não muito distante, a possas conhecer. Eu poderia alongar-me numa descrição pessoalque te aborreceria, a par das suas características noscampos da ternura e bondade, mas prefiro que te certifiques directamente, na ocasião oportuna. Não entendoporque me escolheu de entre todos os homens, um cínico avesso às mulheres, empedernido, por assim dizer.Ela graceja a esse respeito e eu admito a derrota. Aliás,ser derrotado por alguém como a Raquel equivale, decerto modo, a uma vitória. Poder-me-ia considerar vencedor, e não vencido, se não constituísse uma afirmaçãoa todos os títulos presunçosa.Transmite a nova a todos, com as minhas saudades eos cumprimentos dela, e lembra-te, meu caro rapaz, deque este casamento, tardio na vida, não alterará um átomo do afecto que me mereces e até o reforçará, e agoraque me julgo o mais feliz dos homens procurarei fazer

ainda mais por ti do que até aqui, com a ajuda de minhaesposa. Não tardes a escrever e, se achares que o devesfazer, inclui uma palavra de boas-vindas à tua prima Raquel.O teu sempre dedicadoAmbrose. ??A inesperada comunicação chegou por volta das cinco emeia, quando eu acabava de jantar. Por sorte, encontrava-mesó, pois Seecombe entregara-me a correspondência e retirara-se em seguida. Guardei a carta na algibeira e saí para cruzaros campos em direcção ao mar. O sobrinho de Seecombe, queocupava a pequena casa perto da praia, saudou-me. Tinha asredes estendidas na muralha de pedra, para as secar aproveitando os derradeiros raios solares. Respondi com um grunhidoentre dentes, e decerto considerou que a minha atitude nãoprimava pela boa educação. Trepei a umas rochas até alcançarum rebordo estreito sobranceiro à pequena baía, sentei-me,puxei da carta e voltei a lê-la. Se conseguisse experimentaruma ponta de simpatia, de alegria, um simples raio de ternurapelo casal que partilhava um período de felicidade em Nápoles, teria ficado com a consciência aliviada. Envergonhado comigo próprio e irritado com o meu egoísmo, não era capaz denotar a menor sensação de afecto no coração. Conservava-mesentado, aturdido pela amargura, o olhar perdido no mar calmo. Acabava de completar vinte e três anos, mau grado o queme sentia tão só e perdido como acontecera num passado remoto, instalado num banco em Fourth Farm, sem ninguémpara me dispensar amizade e nada na minha frente - apenasum mundo novo de experiência estranha que não desejava.Capítulo terceiroCreio que o que mais me envergonhava era a satisfação dosamigos dele, o verdadeiro prazer pelo seu bem-estar. Os parabéns caíam-me em cima às catadupas, como se me considerassem uma espécie de mensageiro de Ambrose, e no meio de tudo eu tinha de sorrir, inclinar a cabeça e tentar convencê-losde que previra que aquilo acabaria por acontecer. Sentia-mecomo um homem de duas caras, um traidor. O meu primo esforçara-se por me fazer detestar a falsidade, nas pessoas enosanimais, e, de súbito, descobria-me a fingir que não me achavaà beira de uma angústia excruciante.??O melhor que lhe podia ter acontecido.?? Quantas vezesouvi pronunciar estas palavras e tive de as ecoar! Comecei aevitar os vizinhos e regressar a casa através do bosque, paranão enfrentar os rostos ansiosos e línguas aguçadas. Sepassavanas proximidades das herdades ou visitava a aldeia, não haviafuga possível. Bastava que alguém me descortinasse para mecrivar de perguntas ou trocar impressões entusiásticas. Comoum actor indiferente, exibia um sorriso forçado e via-me obrigado a replicar com um calor que me desagradava, como o queo mundo espera que se fale de uma boda. ??Quando voltam???Para isto, não havia resposta senão: ??Não sei. O Ambrose nãodiz. ?,Havia larga especulação sobre o aspecto, idade e natureza

geral da noiva, a que me limitava a replicar: ??É viúva e também adora a jardinagem.¨?As cabeças dos interessados inclinavam-se em aprovação:muito apropriado, não podia ser melhor, a mulher indicadapara ele. Seguia-se então uma fase de comentários maliciosos,aparentemente inofensivos, relativos à interrupção de um longo celibato de quem parecia um solteirão inveterado. A argutaMrs. Pascoe, esposa do vigário, perorou acerca do tópico, como se ao fazê-lo se vingasse de insultos passados sobre o matrimónio.- Como vai ser tudo diferente agora, Mister Ashley! -- proclamava em todas as oportunidades possíveis. - Acabou-se a indiferença pela arrumação em sua casa. E ainda bem.Passará a imperar uma certa organização entre o pessoal doméstico, o que decerto não agradará ao Seecombe, que faziapraticamente o que queria.Neste aspecto, falava verdade. Penso que Seecombe era omeu único aliado, mas eu tinha o cuidado de não enfileirar aseu lado e interrompia-o quando tentava revelar-me o que lheia no íntimo.- Não sei o que dizer, Mister Ashley - murmurava,sombrio e resignado. - Uma senhora cá em casa voltará tudodo avesso e ficaremos sem saber a quantas andamos. Primeirouma coisa, depois outra, e provavelmente ninguém conseguiráagradar-lhe por mais que se esforce. Julgo chegado o momentode me aposentar e ceder o lugar a alguém mais jovem. Talveznão fosse má ideia mencionar o facto a Mister Ambrose, quando lhe escrever.Indicava-lhe que não fosse pateta e Ambrose e eu estaríamos perdidos sem ele, mas abanava a cabeça e continuava aexecutar as suas tarefas com uma expressão grave, sem deixarescapar uma oportunidade para pronunciar uma alusão amargurada ao futuro, à inevitável alteração das horas dasrefeições,modificação profunda na disposição do mobiliário, uma interminável operação de limpeza que se prolongaria da alvoradaao anoitecer sem repouso para ninguém e, como tirada final,até os infortunados cães sofreriam as consequências. Estasprofecias, emitidas em tons sepulcrais, permitiram-me recuperar uma certa medida do perdido sentido do humor, e solteiuma gargalhada pela primeira vez desde que lera a carta deAmbrose.Que quadro pintava o fiel Seecombe! Acudiu-me uma visão de um regimento de empregadas domésticas, munidas depanos e espanadores, atarefadas a eliminar até à última teiadearanha, sob o olhar desaprovador do velho mordomo. A suamelancolia divertia-me, mas quando outros principiaram a afinar pelo mesmo diapasão - a própria Louise Kendall, a qual,por me conhecer bem, devia ter percepção suficiente para dominar os impulsos da língua -, passei a irritar-me.- Ao menos, vai haver novas coberturas para os móveisda biblioteca - declarou alegremente. - As actuais tornaram-se cinzentas com o tempo e uso, mas aposto que vocês nuncarepararam. E flores dentro de casa, o que será um progresso

de monta. A sala de estar cumprirá finalmente as suas funções,pois sempre me pareceu lamentável que não a utilizassem. Calculo que Mistress Ashley a decorará com livros e quadros dasua vivenda em Itália.Continuou a desbobinar o seu rosário, enumerando todauma lista de ??progressos?,, até que perdi a paciência e dissecom certa aspereza:- Com a breca, Louise, deixa o assunto em paz! Estoufarto de tudo isso até à raiz dos cabelos.Interrompeu-se e olhou-me com curiosidade.- Não estarás, porventura, com inveja?- Não sejas pateta.Haveria, sem dúvida, adjectivos menos inconvenientes paralhe dirigir, mas conhecíamo-nos tão bem que a encarava comouma irmã mais jovem, sem lhe conceder respeito especial.A partir daí, não insistiu, e reparei que, quando o estafadotema voltava à baila na conversa geral, me olhava e tentavapassar a outro. O facto mereceu a minha gratidão e fiquei agostar mais dela.Foi o seu pai e meu padrinho, Nick Kendall, que deu a estocada final, inconsciente de que o fazia, naturalmente, nohabitual tom brusco e sem rodeios.- Já efectuaste planos para o futuro, Philip? - perguntou-me, uma noite, quando me apresentei em sua casa parajantar.- Planos? - repeti, sem compreender. - Não.- Ainda é cedo, claro - admitiu -, e suponho que nãoos poderás fazer até que o Ambrose e a esposa cheguem. Perguntei apenas para saber se encaraste a hipótese de procuraruma pequena propriedade nas imediações.- Com que intuito? - Decididamente, custava-me aabarcar o sentido da sua curiosidade.- Bem, a situação alterou-se um pouco, não achas? -- Volveu com desprendimento. - Eles desejarão sem dúvida estar sós. E, se surgir um filho, as coisas não serão iguaispara ti,hem? Penso que o Ambrose não permitirá que sofras com onovo panorama e te comprará qualquer propriedade que escolheres. Existe, decerto, a possibilidade de não terem descendentes, mas, por outro lado, subsiste sempre essa eventualidade. Talvez prefiras construir. Às vezes, resulta maissatisfatóriodo que adquirir uma casa já pronta.Continuou a falar e mencionar locais num raio de cerca detrinta quilómetros susceptíveis de me agradar, e fiqueialiviadoao verificar que não esperava que me pronunciasse imediatamente. O que ele sugeria era tão abrupto e inesperado que euexperimentava dificuldade em raciocinar com clareza, e, naprimeira oportunidade, despedi-me. Sim, tinha inveja. Afinal,Louise devia falar verdade. A inveja de uma criança que se encontrava repentinamente obrigada a partilhar a única pessoa dasua vida com uma estranha.À semelhança de Seecombe, eu vira-me a desenvolver todos os esforços para me adaptar a uma

situação nova e desconfortável. Apagar o cachimbo na presença dela, pôr-me de pé àsua entrada, diligenciar, embora contrariado, participar naconversa, resignar-me aos rigores e tédio da sociedadefeminina. E ver Ambrose comportar-se como um imbecil, até mesentir na obrigação de abandonar o aposento em virtude doprofundo embaraço. Nunca me considerara um intruso. Já nãodesejado, expulso do lar e alojado em qualquer recanto, comoum criado. A aparição de um filho, que chamaria pai a Ambrose, pelo que eu deixaria de ser necessitado.Se tivesse sido Mrs. Pascoe que me chamasse a atenção para semelhante possibilidade, atribuiria o facto a malícia eesquecê-lo-ia. Mas o meu próprio padrinho, um homem reservado e calmo, a expor uma hipótese tão cruel, era diferente.Regressei a casa atormentado pela incerteza e tristeza. Quasenão sabia o que fazer. Deveria traçar planos, como Nick Kendall sugerira? Procurar uma nova residência? Efectuar ospreparativos para partir? Não queria viver em qualquer outrolugar ou possuir outra casa. Ambrose criara-me e educara-mesomente para aquela. Era minha. E dele. Pertencia a ambos.Mas agora tudo se modificara. Recordo-me de vaguear pela vi venda, quando regressei da visita aos Kendall, econtemplá-lacom um olhar novo, e os cães, pressentindo a minha perturbação, seguiam-me, tão inquietos como eu. O meu antigo quartoquando criança, desocupado desde longa data, e agora o localonde a sobrinha de Seecombe se instalava uma vez por semanapara cuidar da roupa da casa, adquiria um novo significado.Vi-o pintado de fresco, e o meu pequeno taco de críquete, queainda se encontrava, debaixo de teias de aranha, numaprateleira entre livros cobertos de pó, deitado fora como mero lixo.Não me ocorrera até então que o aposento continha numerosasrecordações. Agora, desejava recuperá-lo, um oásis de refúgio do mundo exterior. Ao invés, converter-se-ia num lugarestranho, abafado, a cheirar a leite fervido e cobertorespostosa secar, como as salas de casas pequenas que visitava comfrequência, onde viviam crianças. A imaginação mostrava-mas agatinhar pelo chão com gritos agudos e colidir para se magoarem, no meio de uma confusão indescritível. Santo Deus! Estaria tudo aquilo, ou mesmo pior, reservado a Ambrose?Até então, quando pensava na minha prima Raquel - oque só fazia esporadicamente, para afastar em seguida o nomeda mente, como se faz perante uma coisa desagradável -,concebera-a como parecida com Mrs. Pascoe. De traços fisionómicos mais ou menos grosseiros, olhar perscrutador paradetectar o mínimo grão de pó, como Seecombe profetizara, erisadas demasiado agudas, sobretudo quando houvesse convidados para jantar. Agora, assumia novas proporções. Nummomento monstruosa, como a infeliz Molly Bates, membrodo pessoal doméstico, que obrigava as pessoas a desviar avistapor uma questão de delicadeza, e no seguinte pálida eretraída,

coberta com um xaile numa cadeira dominada por uma petulância de inválida, enquanto uma enfermeira permanecia alertapara lhe acudir e, entretanto, misturava medicamentos comuma colher. Num momento, de meia-idade e enérgica, e no seguinte afectada e mais jovem do que Louise, a minha primaRaquel tinha uma dúzia, pelo menos, de personalidades, cadauma mais odiosa que a anterior. Imaginei-a a obrigar Ambrosea ajoelhar para brincar com os filhos encavalitados nas costaseele a submeter-se com humilde graciosidade por ter perdidotoda a dignidade. No entanto, via-a igualmente envolta emmusselina, com uma fita no cabelo, sacudir os caracóis comuma expressão pretensiosa, enquanto Ambrose se reclinavana poltrona a observá-la, um sorriso de pateta a alterar-lhe orosto.Quando, em meados de Março, chegou a carta a anunciarque afinal tinham decidido continuar no estrangeiro durante oVerão, o meu alívio foi tão intenso que me contive com dificuldade de soltar um grito de satisfação. Sentia-me mais traiçoeiro que nunca, mas não o podia evitar.??A tua prima Raquel está ainda tão assoberbada pela resolução dos seus assuntos antes de partir para a Inglaterra quedecidimos, embora contrariados, como deves calcular, protelaro regresso para já??, revelava Ambrose. ??Esforço-me tantoquanto possível, mas as leis italianas diferem radicalmentedasnossas, e é uma carga de trabalhos tentar harmonizá-las. Farto-me de gastar dinheiro, mas faço-o por uma boa causa deque me não arrependo. Falamos de ti com frequência, meu rapaz, e lamento que não estejas connosco.??Prosseguia com perguntas sobre a situação no lar e estadodos jardins, com o habitual fervor de interesse, pelo que semeafigurava que eu devia estar louco para imaginar por um momento que fosse que ele podia mudar.A vizinhança não deixou, evidentemente, de se mostrar desapontada pelo facto de eles não regressarem antes do final doVerão.- Talvez o estado de saúde de Mistress Ashley a impeçade viajar - observou Mrs. Pascoe, com um sorriso malicioso.- Isso não sei - repliquei. - O Ambrose refere na cartaque passaram uma semana em Veneza e voltaram de lá comreumatismo.- Reumatismo? - O sorriso extinguiu-se. - A esposatambém? Que pena... - E, com uma expressão pensativa:- Deve ser mais velha do que eu supunha.Uma mulher apatetada, com o raciocínio orientado invariavelmente para um único rumo. Eu sofrera de reumatismo nosjoelhos aos dois anos de idade. Com dores incomodativas, segundo os meus pais me haviam explicado. Às vezes, quando ahumidade do ar aumentava, ainda me acudiam. Apesar disso,existia alguma similaridade entre os meus pensamentos e os deMrs. Pascoe. A minha prima Raquel envelheceu subitamentevinte anos. Voltava a ter cabelo grisalho, apoiava-se a uma

bengala, e eu via-a, quando não plantava rosas no jardim italiano que me era impossível configurar, sentada a uma mesa, abater impacientemente com a bengala no chão, rodeada pormeia dúzia de advogados que palravam em italiano, enquantoo infortunado Ambrose permanecia resignadamente a seu lado.Porque não regressava ele a casa e a deixava resolver osseus problemas?O meu estado de espírito melhorou, todavia, a partir doinstante em que a noiva afectada cedeu o lugar à matrona idosa, flagelada por lumbago. O quarto das crianças retrocedeupara segundo, ou mesmo terceiro, plano, e a sala converteu-senum boudoir, circundado por cortinados, uma ampla lareiraacesa em pleno Verão e alguém a chamar Seecombe em tom irritado para que trouxesse mais carvão, porque o frio a incomodava profundamente. Readquiri o hábito de cantar quandomontava a cavalo, incitava os cães para perseguirem coelhosjovens, nadava antes do pequeno-almoço, passeava na embarcação de Ambrose até ao estuário se o vento soprava de feiçãoe gracejava com Louise acerca das modas impostas por Londres, quando ela ia lá passar a época do ano apropriada. Aosvinte e três anos, não é preciso muito para que o espíritoassuma um estado quase de euforia. A casa continuava a ser o meular. Ninguém mo arrebatara.Até que, no Inverno, o tom geral das cartas dele se alterou.De modo imperceptível, a princípio, e quase não me dei conta.Porém, ao reler as suas palavras detectei uma aragem de tensão, como que uma nota de ansiedade subjacente que o dominava gradualmente. Depreendi que, em parte, se tratava desaudades de casa. Uma nostalgia da pátria e de bens que lhepertenciam, mas, sobretudo, uma espécie de solidão que meparecia estranha num homem casado havia apenas dez meses.Admitia que o Verão e o Outono tinham sido muito cansativos, e agora o Inverno encontrava-se invulgarmente perto.Embora a vivenda se situasse num ponto elevado, a atmosferaera opressiva, e ele dizia que costumava mover-se de um aposento para outro como um cão antes de uma tormenta, semque, contudo, se registasse qualquer trovão. O ar persistiapesado, e daria a própria alma por uma boa chuvada, ainda quelhe agudizasse o reumatismo. ??Nunca fui atreito a enxaquecas,mas agora acodem-me com frequência?,, escrevia. ??Às vezes,quase me privam da visão. Estou farto de ver o Sol. Não encontro palavras para exprimir as saudades que tenho de ti. Hámuitas coisas para abordarmos, mas não por carta. A minhamulher foi hoje à cidade, e daí a oportunidade que se me depara para traçar estas linhas.,? Era a primeira vez queempregava a expressão ??minha mulher". Até então, mencionara-a como ??Raquel?, ou ??a tua prima Raquel??, pelo que ??minhamulher?? parecia formal e mesmo fria.Nessas epístolas do Inverno, não aludia ao regresso, masmanifestava sempre um desejo apaixonado de conhecer as novidades, e comentava qualquer pequena ocorrência que eu lhecomunicara em cartas anteriores, como se não possuísse outrointeresse.Como não chegassem notícias na Páscoa ou no Pentecostes, comecei a preocupar-me. Falei disso ao

meu padrinho,que aventou a possibilidade de o mau tempo ter atrasado ocorreio. Verificavam-se intensos nevões na Europa Central,pelo que eu não devia contar com a chegada de correspondência de Florença antes de fins de Maio. Havia já um ano queAmbrose casara e dezoito meses que partira para a Itália.O meu alívio inicial pela sua ausência, após o enlace,transformou-se em temor de que jamais voltasse. Era óbvio que umVerão no continente lhe afectara a saúde. Que aconteceriaapóso segundo? Por fim, em Julho, chegou uma carta, breve e incoerente, totalmente imprópria dele. Até a letra, em geralbemlegível, estendia-se no papel como se lhe fosse difícilpegar nacaneta.??Não estou a passar bem?,, reconhecia. ??Deves ter-te apercebido pela minha carta anterior. Em todo o caso, convémguardar silêncio, pois ela vigia-me constantemente.Escrevi-tediversas vezes, mas não há ninguém que me mereça confiança,e a menos que eu próprio saia para enviar estas linhas, há operigo de não te chegarem às mãos. Desde que adoeci, nãoposso ausentar-me para muito longe. Quanto aos médicos, nenhum me proporciona o mínimo alívio. São uma corja dementirosos. O mais recente, recomendado por Rainaldi, temares de assassino, o que não admira, atendendo à sua proveniência. No entanto, eles nem sabem no que se meteram aodesafiar-me, e acabarei por vencê-los." Seguia-se um espaçoem branco e a anteceder a assinatura umas garatujas que nãoconsegui decifrar.Mandei selar o cavalo e fui mostrar a missiva ao meu padrinho, que ficou tão apreensivo como eu.- Dá a impressão de um colapso mental - declarou semhesitar. - Confesso que não me agrada nada. Não é uma cartaprópria e um homem em plena posse das suas faculdades.Deus queira que... - Interrompeu-se e mordeu o lábio inferior.- Deus queira o quê? - perguntei.- O teu tio Philip, pai do Ambrose, morreu de um tumorno cérebro - declarou secamente. - Suponho que não oignoras?Era a primeira vez que ouvia mencionar o facto e disse-lho.- Aconteceu antes de nasceres, claro - acrescentou.- O assunto nunca foi muito ventilado na família. Não sei seessas coisas são hereditárias, e os médicos creio que tambémnão. A medicina não está suficientemente avançada. - Tornoua ler a carta, recorrendo aos óculos. - Existe, sem dúvida,outra possibilidade, extremamente improvável, mas que eu preferiria...- Qual?- Ele estar embriagado quando escreveu isto.Se não tivesse mais de sessenta anos e não fosse meu padrinho, eu não teria hesitado em esbofeteá-lo pelo arrojo da sugestão.- Nunca o vi embriagado - afirmei com veemência.

- Nem eu - admitiu com prontidão. - Limito-me a tentar escolher o menor de dois males. Acho que deves partir para a Itália.- Já tinha decidido fazê-lo, antes de o procurar - anunciei.Regressei a casa, sem a mais remota ideia das providênciasa tomar para empreender a viagem.Não partia de Plymouth qualquer barco que me pudesseser útil, pelo que seria obrigado a seguir para Londres, daípara Dôver, embarcar no paquete para Bolonha e depois atravessar a França, rumo à Itália na diligência usual. Admitindo quenão se verificariam atrasos imprevistos, encontrar-me-ia emFlorença dentro de cerca de três semanas. O meu francês erafraco e o italiano inexistente, mas nada disso me preocupava,desde que pudesse chegar até Ambrose. Despedi-me de Seecombe e do pessoal, com a única explicação de que tencionavaefectuar uma breve visita ao amo, sem todavia mencionar adoença, e parti para Londres numa bela manhã de Julho, coma perspectiva de uma viagem de cerca de três semanas em território desconhecido no meu horizonte.Quando a carruagem enveredava pela estrada de Bodmin,avistei o nosso empregado que costumava ir buscar a correspondência. Indiquei a Wellington que parasse e o rapaz entregou-me a mala. Existia uma possibilidade muito remota de haver nova carta de Ambrose, mas foi o que aconteceu. Separei-adas restantes, devolvi a mala ao rapaz e mandei-o seguir paracasa. Enquanto reatávamos a marcha, extraí a folha de papeldo sobrescrito e aproximei-a da janela para ver melhor.As palavras estavam garatujadas, quase ilegíveis:??Vem depressa, por amor de Deus. Ela acabou por sedesmascarar, Raquel, o meu tormento. Se não me acudiresimediatamente, poderá ser demasiado tarde. Ambrose."Apenas isto. Não havia qualquer data, nem marca no sobrescrito, selado com o anel dele.Conservei-me imóvel, com a folha de papel na mão, consciente de que nenhum poder do Céu ou da Terra me permitiria chegar junto dele antes de meados de Agosto.Capítulo quartoQuando a diligência chegou a Florença e nos largou à entrada da estalagem à beira do Arno, afigurava-se-me que passara toda a vida na estrada. Nenhum viajante que pousasse ospés no continente europeu pela primeira vez se sentiria menosimpressionado do que eu. Os caminhos que percorremos, osmontes e vales, as cidades, francesas ou italianas, onde nosdetivemos para pernoitar, pareciam-me todos iguais. Em toda aparte imperava a sujidade, e o ruído era ensurdecedor. Habituado ao silêncio da vivenda quase vazia - pois o pessoal dormia nas suas instalações junto da torre do relógio -, onde eunão ouvia qualquer som ao longo da noite, à parte o vento nasárvores e o bater da chuva nas vidraças quando a circulaçãoera de sudoeste, a confusão e pandemónio das cidades estrangeiras quase me aturdiam.É verdade que dormi - quem não se deixa vencer pelo sono após longas horas de trepidação na estrada? -, porém ossonhos estavam povoados por todos os ruídos estranhos: o bater de portas, vozes agudas, passos junto da janela, carroçaspesadas que percorriam a rua empedrada e, sempre, cada quarto de hora, o badalar do relógio do campanário. Se me encontrasse no estrangeiro com qualquer outra missão, talvez tudofosse diferente. Poderia então assomar à janela pela manhãcom o espírito despreocupado, observar as crianças descalças abrincar no passeio e até talvez lhes atirasse moedas, enquanto

escutaria os novos sons com fascinação, para à noite passearpelas ruas estreitas e sinuosas com agrado perante um ambiente diferente do habitual. No entanto, a actual situaçãoobrigava-me a encarar tudo com indiferença e até hostilidade. O meuúnico objectivo consistia em entrar em contacto com Ambrose, e o facto de o saber enfermo num país estranho fazia comque a minha ansiedade se convertesse em ódio por tudo o queera estrangeiro, até o próprio solo.A temperatura era quase sufocante. O céu apresentava umatonalidade azul-clara e, enquanto percorria as estradas poeirentas da Toscana, dir-se-ia que os raios solares tinham absorvido toda a humidade da atmosfera. Os vales achavam-secobertos por um tapete pardo e as pequenas povoações encontravam-se desertas, pois os habitantes refugiavam-se debaixodos seus tectos para obviar o calor.O meu primeiro instinto, ao apear-me da diligência emFlorença, enquanto descarregavam a bagagem coberta de pó ea levavam para a estalagem, consistiu em cruzar a rua empedrada e postar-me diante do rio. Sentia-me extenuado e coberto de pó da cabeça aos pés. Nos dois últimos dias, preferirasentar-me ao lado do condutor para não morrer sufocado dentro da pequena cabina, e, à semelhança dos infortunados animais que percorriam a estrada, ansiava por uma paisagem emque a água ocupasse um lugar privilegiado. Agora, tinha-a naminha frente. Não se tratava do estuário azul das proximidades de casa, mas de uma corrente caudalosa acastanhada comoo leito pelo qual circulava, a superfície sulcada de detritos,apesar do que, para a minha imaginação, quase febril de cansaço e sede, representava um espectáculo maravilhoso, comoquem se sente disposto a tragar veneno, desde que lhe mitiguea secura das entranhas.Continuei a contemplar a água em movimento, fascinado,enquanto o sol incidia na ponte próxima, até que, de súbito,atrás de mim, na cidade, soaram as badaladas solenes das quatro horas. O eco foi retomado por outros campanários e osom misturou-se com as águas castanhas do rio.Notei a meu lado uma mulher, com uma criança soluçantenos braços e outra agarrada às saias rasgadas, a qual estendeuamão na minha direcção, os olhos negros dominados por umaexpressão de súplica. Dei-lhe uma moeda, mas tocou-me nocotovelo, murmurando, até que um dos passageiros da diligência, ainda junto desta, lhe dirigiu algumas palavras incisivasemitaliano e ela afastou-se para a ponte de onde viera. Erajovem;pouco mais de dezanove anos, porém os traços do semblantepodiam considerar-se intemporais, perseverantes, como se albergasse no pequeno corpo uma alma velha que se recusava amorrer. Mais tarde, já no quarto que me atribuíram, assomeià pequena varanda sobranceira à praça e vi-a mover-se entre ascarroças, furtivamente, como uma gata a coberto da noite.Lavei-me e mudei de roupa com uma apatia invulgar emmim. Agora que chegara ao termo da viagem, assolava-me

uma espécie de alheamento, e o ânimo que me impelira a efectuar a longa peregrinação parecia ter-se dissipado,substituídopor uma indiferença inexplicável. A própria realidade da folhade papel na minha algibeira perdera toda a substância. Foraescrita há muitas semanas, e tornava-se difícil determinar o quepodia ter acontecido desde então. Talvez ela tivesse levadoAmbrose de Florença, em direcção a Roma ou Veneza, e imaginei-me encafuado de novo na diligência, atrás deles, parapercorrer cidade após cidade ao longo do tórrido país, sem jamais os encontrar, sempre vencido pelo tempo e estradas poeirentas.Por outro lado, as minhas deduções podiam estar erradas,com as cartas escritas apressadamente, e daí a irregularidadedaletra, resultado de uma das partidas a que o Ambrose de outrora se dedicava de vez em quando. Nessa conformidade,apresentar-me-ia na vivenda e descobri-lo-ia a meio de umarecepção, abrilhantada por trepidante música italiana.Desci à praça diante da estalagem. As carroças já não seachavam lá. O período da sesta terminara e as ruas voltavam aestar cheias de gente. Enveredei por elas e perdi-me quaseimediatamente. Rodeavam-me pátios e travessas sombrios, casas altas que dir-se-ia tocarem-se, varandas protuberantes, e,àmedida que as percorria, vislumbrava rostos desconfiados oucuriosos que me acompanhavam com os olhos e expressões desofrimento. Algumas pessoas aventuraram-se a seguir-me,murmurando, como fizera a mendiga com dois filhos de tenraidade, e estendendo as mãos, mas quando eu lhes falava comaspereza, à semelhança do meu companheiro de viagem, retrocediam, apreensivas. Os sinos recomeçaram a atroar os ares edesemboquei numa larga piazza, onde numerosos indivíduos,em grupos, falavam e gesticulavam animadamente, sem o menor elemento de ligação, a meu ver, com os edifícios em redor,austeros e belos, ou com as estátuas que os contemplavamremotamente com olhos cegos ou mesmo com o som dos sinos, que vibravam intensa e lugubremente sob o céu quaseplúmbeo.Chamei uma carrozza que ia a passar e, quando articuleiem tom hesitante as palavras ??Villa Sangalletti?,, o condutorrespondeu algo que não compreendi, embora detectasse o termo ??Fiesole", ao mesmo tempo que inclinava a cabeça e apontava com o chicote. Seguimos pelas artérias estreitasapinhadasde gente, enquanto ele vociferava para o cavalo e as pessoassedesviavam apressadamente. Os sinos calaram-se, todavia o ecopareceu perdurar nos meus ouvidos, solene, sonoro, dobrando, não pela minha missão, insignificante e pequena, nem pelas vidas dos transeuntes, mas pelas almas de homens e mulheres há muito falecidos e pela eternidade.Subimos uma estrada longa e sinuosa em direcção às colinas distantes e deixámos Florença para trás. As casas começaram a rarear e atravessámos uma área pacífica, silenciosa, semo calor sufocante de pouco antes. As construções que agora

nos ladeavam apresentavam um aspecto menos formal, maisacolhedor. Entretanto, a vegetação aumentava, com mais tendência para o verde do que para o castanho das regiõesflageladas pelas temperaturas escaldantes.O condutor deteve a carrozza diante de um portão fechadoembutido num muro alto, voltou-se no banco e olhou-me porcima do ombro.- Villa Sangalletti - anunciou simplesmente. O termo daminha peregrinação.Fiz-lhe sinal para que aguardasse, apeei-me, avancei para oportão e puxei a corrente da sineta a um lado. Ouvi-a retinirno interior da propriedade. O condutor levou a carrozza paraa berma da estrada, saltou do banco e permaneceu junto dela,ao mesmo tempo que enxotava as moscas com o chapéu.O cavalo inclinou-se entre os varais e assumiu a melhor posição possível para recuperar as energias, após a longa eíngremesubida. Como não acudisse ninguém, tornei a puxar a correnteda sineta. Desta vez, registou-se o latido surdo de um cão,queaumentou de intensidade no momento em que se abriu umaporta algures. O grito de uma criança foi abafado, enérgica eirritadamente, por uma voz feminina, e distingui passos que seacercavam. Registou-se o ruído de um ferrolho e o ranger dosgonzos do portão à medida que se abria. Surgiu uma mulhercom ares de camponesa, que me olhou em silêncio.- Villa Sangalletti? - proferi. - Signor Ashley?O cão, preso por uma corrente à entrada de um anexo onde ela decerto vivia, pôs-se a ladrar mais furiosamente queantes. Estendia-se uma alameda à minha frente, ao fundo daqualavistei a villa, com aspecto decrépito e destituída de vida.A mulher fez menção de me fechar o portão na cara, enquantoo animal persistia nos latidos e a criança chorava. O rostodaquela estava inchado, como se sofresse de dor de dentes, econservava a ponta do xaile pousado nele, como que para atenuar o tormento.Transpus o portão e repeti as palavras ??Signor Ashley??.Desta vez, ela estremeceu, como se visse os meus traços fisionómicos pela primeira vez, e pôs-se a falar rapidamente, comuma espécie de agitação nervosa, ao mesmo tempo que gesticulava em direcção à vivenda. De repente, voltou-se e chamoualguém que se encontrava no anexo. Um homem, presumivelmente o marido, apareceu à porta aberta, com uma criançaequilibrada no ombro, reduziu o cão ao silêncio e aproximou-se de mim, enquanto increpava a mulher. Esta prosseguiu atorrente de palavras, das quais distingui ??Ashley?? e??Inglese?,,e foi a vez dele de me olhar com estranheza. Tinha um aspectomenos desagradável que ela - mais asseado e olhos de expressão sincera -, até que a expressão se alterou para profundaapreensão e murmurou algumas palavras para a mulher, a qualdesapareceu no interior do anexo com a criança, para assomar

quase imediatamente, ainda com a ponta do xaile pousada norosto.- Eu falo algum inglês, signore - articulou o homem.- Em que o posso servir?- Procuro Mister Ashley - informei. - Ele e MistressAshley encontram-se na villa?A expressão apreensiva acentuou-se e ele engoliu com nervosismo, antes de perguntar:- É filho de Mister Ashley, signore?- Não - redargui com impaciência. - Sou primo. Elesestão em casa?Meneou a cabeça, mais acabrunhado que nunca.- Nesse caso, vem de Inglaterra e não sabe o que aconteceu? Que posso dizer? É um assunto muito triste, não sei como explicar-lhe. O Signor Ashley morreu há três semanas. Derepente. Uma pena... A condessa fechou a villa, mal o enterraram, e partiu. Há quase duas semanas que não se encontra cá.Ignoramos se voltará.O cão reatou os latidos e ele voltou-se para o mandar calar.Senti o sangue esvair-se do rosto, absolutamente estupefacto. O homem observava-me com pesar e disse algo à mulher,que foi buscar um banco e o colocou a meu lado.- Sente-se, signore - indicou ele. - Lamento. Lamentoprofundamente.Abanei a cabeça, impossibilitado de falar. Não havia nadaque pudesse dizer. O homem, preocupado, dirigiu-se à mulherem tom agreste, para desanuviar a tensão, e virou-se de novopara mim.- Se deseja entrar na villa, eu abro-a. Poderá ver onde oSignor Ashley morreu.Era-me indiferente o que fazia ou aonde ia. A minha mente ainda se achava demasiado aturdida para raciocinar. Ele começou a afastar-se pela alameda, ao mesmo tempo que puxavade umas chaves da algibeira, e acompanhei-o, com as pernassubitamente pesadas como chumbo. A mulher e a criança seguiram-nos.Os ciprestes que nos ladeavam lembravam sentinelas tenebrosas, e a decrépita vivenda, como um sepulcro, aguardava aofundo da alameda. à medida que nos aproximávamos, vi queera grande, com muitas janelas, todas fechadas, e, diante daentrada, o caminho de acesso descrevia um círculo, para ascarruagens poderem inverter a marcha. Estátuas, nos respectivos pedestais, erguiam-se entre os ciprestes. O homem abriu apesada porta com uma das chaves que possuía e fez-me sinalpara que entrasse. A mulher e a criança também vieram e elescomeçaram a subir os estores, passando de aposento a aposento, decerto convencidos de que a entrada da luz me atenuaria aamargura. As dependências comunicavam todas umas com asoutras, grandes e arejadas, com frescos no tecto e chão de pedra, num ambiente vagamente medieval. Numas, as paredeseram lisas, enquanto outras exibiam tapeçarias e, noutraainda,mais escura e opressiva, havia uma longa mesa de refeitóriocircundada por cadeiras monásticas lavradas, com candelabrosenormes em cada extremidade.- A Villa Sangalletti é muito bonita e antiga, signore -- disse o homem. - O Signor Ashley

costumava sentar-se aquiquando o sol era muito forte para ele. Esta era a sua cadeira.Apontou, quase com reverência para uma de espaldar elevado a um lado da mesa. Eu observava tudo como que imersonum sonho. Nada daquilo possuía realidade. Era-me impossível imaginar Ambrose naquela casa ou naquela sala. Nuncapoderia entrar ali com o à-vontade que eu tão bem lhe conhecia, a assobiar e conversar com ar despreocupado. Persistentemente, em ritmo monótono, marido e mulher moviam-se emtorno do aposento para abrir janelas e subir estores. Lá fora,havia um pequeno pátio, uma espécie de claustro quadrangular, aberto ao céu, mas protegido do sol. No centro, via-seuma fonte, com a estátua de bronze de um rapaz, que seguravauma concha nas duas mãos. Atrás da fonte, um laburno entreduas áreas pavimentadas, que produzia uma abóbada de sombra. As flores douradas há muito que tinham murchado e caído no chão poeirento e cinzento. O homem murmurou à mulher, que se dirigiu a um canto do pátio e fez rodar umatorneira. Com lentidão, suavemente, a água começou a jorrarentre as mãos do rapaz.- O Signor Ashley sentava-se aqui todos os dias, para observar a fonte - explicou ele. - Gostava de ver a água. Colocava-se debaixo da árvore. É muito bonita, na Primavera, coberta de flores. A contessa chamava-o do quarto por cima.Apontou para as colunas de pedra da balaustrada. A mulher desapareceu dentro de casa e, momentos depois, apareciana varanda que o marido indicara, depois de subir os estores.Entretanto, a água continuava a jorrar entre as mãos do rapaz.- No Verão, sentavam-se sempre aqui - prosseguiu ohomem. - O Signor Ashlev e a contessa. Comiam ao som daágua da fonte. Era eu que os servia. Trazia dois tabuleiros epousava-os na mesa. - Apontou para a mesa de pedra e duascadeiras que ainda ali se encontravam. - Após o jantar, tomavam a tisana, dia após dia, sempre da mesma maneira.Fez uma pausa e tocou numa cadeira com a mão. Acudiu-me uma sensação de opressão. A temperatura era agradávelno pequeno pátio, fresca quase como numa sepultura, apesardo que a atmosfera dir-se-ia estagnada, como a do interior dacasa antes de ventilada.Pensei em Ambrose em nossa casa. Percorria a propriedadeem mangas de camisa durante o Verão, apenas com a protecção de um chapéu de palha. Revi esse chapéu, puxado para osolhos, enquanto ele se sentava na embarcação e apontava paraalgo ao longe, no mar. Recordava-me de como estendia osbraços, a fim de me puxar para bordo, quando eu nadava nasua esteira.- Sim - volveu o homem, como que para consigo.- O Signor Ashley sentava-se nesta cadeira para olhar a água.A mulher reapareceu, cruzou o pátio e fechou a torneira.A água parou de correr. Tudo ficou imóvel, silencioso.A criança, que estivera a contemplar a fonte de olhararregalado, agachou-se repentinamente e pôs-se a apanhar vagens dolaburno, que em seguida se entreteve a atirar à água da fonte.A mulher ralhou-lhe, puxou-o para a parede e pegou numa

vassoura aí apoiada, com a qual principiou a varrer o pátio.O facto quebrou o silêncio, e o marido tocou-me no braço.- Quer ver o quarto onde o signore morreu? - perguntou com brandura.Possuído pela mesma sensação de irrealidade, segui-o pelaescadaria de acesso ao piso superior. Atravessámos aposentosmenos abundantemente mobilados que os de baixo, e um, virado a norte, sobranceiro à alameda dos ciprestes, achava-sedesnudo como uma cela monástica, à parte a simples armaçãode ferro de uma cama encostada à parede, junto da qual seviam um jarro de água, uma bacia e um biombo. Havia tapeçarias na parede acima da lareira e, num nicho ao canto, encontrava-se uma estatueta que representava uma Virgem ajoelhada, as mãos unidas em prece.Dirigi o olhar para a cama. Os cobertores estavam meticulosamente dobrados aos pés. Duas almofadas, sem fronhas,achavam-se colocadas à cabeceira, sobrepostas.- O fim foi muito rápido - informou o homem, a meiavoz. - É certo que ele estava fraco, muito mesmo, mas aindana véspera se arrastara até ao pátio, para se sentar diante dafonte. A contessa bem lhe recomendou que voltasse para a cama, devido à fraqueza, mas o Signor Ashley não quis escutá-la. E os médicos entravam e saíam constantemente. O SignorRainaldi também veio para o convencer a ter cuidado, mas elereagia com violência, como uma criança. Era aflitivo ver umhomem definhar daquela maneira. Até que, de manhã cedo, acontessa foi chamar-me ao quarto, pois eu tinha passado a dormir cá em casa. Branca como um lençol, exclamou: ??Ele está amorrer, Giuseppe! Pressinto que não passa de hoje!,? Segui-a evi-o na cama, de olhos fechados, ainda a respirar, embora pesadamente, não como se dormisse. Mandámos chamar o médico, mas o Signor Ashley não voltou a acordar. Estava em coma, o sono da morte. Eu próprio acendi as velas com acontessa e, depois de as freiras se retirarem, fiquei a velarocorpo. A violência tinha desaparecido completamente e eleapresentava uma expressão serena. Gostava que o tivesse visto,signore.Notei-lhe os olhos marejados. Desviei a vista e fixei-a na44 ? 45cama. No entanto, não sentia nada. A apatia dissipara-se edeixara-me frio e duro.- A que violência se refere? - acabei por perguntar.- À que surgiu com a febre. Tive de o manter na cama àforça por duas ou três vezes, a seguir aos ataques. Com a violência veio a fraqueza, aqui. - Pousou a mão no estômago.- Tinha muitas dores. E quando elas desapareciam, ficavaaturdido e sonolento, com o espírito a vaguear. Garanto-lheque foi horrível, signore. Horrível ver um homem tão forte incapacitado.Abandonei o quarto frio e desolador e ouvi-o fechar a janela e baixar o estore atrás de mim.- Porque não se fez nada? - persisti. - Os médicos nãolhe podiam aliviar as dores? E Mistress Ashley limitou-se adeixá-lo morrer?- Desculpe, signore? - proferiu, perplexo.- Que espécie de doença era, quanto tempo durou?- Como disse há pouco, o final foi muito rápido, mas

precedido de um ou dois ataques. E, durante todo o Inverno,o signore não se sentia bem; triste, diferente do habitual.Pelomenos, muito diferente do ano anterior. Quando veio viverpara a villa, era feliz, alegre.Ele ia abrindo mais janelas enquanto falava, e saímos paraum espaçoso terraço, com algumas estátuas dispersas. Na extremidade mais distante, havia uma longa balaustrada de pedra, da qual nos aproximámos. Em baixo, via-se um jardim deaspecto formal que exalava o odor de rosas e jasmins e, aolonge, outra fonte, e ainda outra, com degraus de pedra de acessoa cada jardim, até que, ao fundo, se erguia o muro que rodeavatoda a propriedade.Voltámo-nos para oeste, na direcção do sol-poente, queprojectava uma luminosidade suave no terraço e jardins, e afigurou-se-me que pairava uma estranha serenidade que anteriormente não se achava presente.A pedra ainda estava quente debaixo da minha mão, e umalagartixa surgiu de uma greta e rastejou ao longo da parede.- Nas tardes calmas, isto é muito bonito, signore - disseo homem, que permanecia um ou dois passos atrás de mim,como que por deferência. - Às vezes, a contessa mandavaabrir a água das fontes e, nas noites de lua cheia, ela e oSignorAshley vinham para o terraço depois de jantar. O ano passado,antes de ele adoecer.Conservei-me imóvel e silencioso, a contemplar as fontes eos lagos por baixo, com os nenúfares.- Creio que a contessa não voltará - acrescentou o homem, pausadamente. - Isto tornou-se muito triste para ela.Há demasiadas recordações amargas. O Signor Rainaldi disse-nos que a villa vai ser alugada e possivelmente vendida.Estas palavras fizeram-me regressar à realidade. O sortilégio do jardim silencioso dominara-me por um breve momento, com a fragrância das rosas e o clarão do sol-poente, mas oefeito agora extinguira-se.- Quem é o Signor Rainaldi?- Ocupa-se de todos os assuntos da contessa: negócios,questões de dinheiro, tudo. Conhecem-se há muito tempo.Enrugou a fronte e acenou com a mão para a mulher, aqual, com o filho nos braços, cruzava o terraço. A visão desagradava-lhe, pois não deviam estar ali. Ela apressou-se adesaparecer na villa e começou a baixar os estores.- Quero falar com ele - declarei.- Eu dou-lhe o endereço. Fala inglês perfeitamente.Entrámos igualmente e, quando percorria os diversos aposentos em direcção ao átrio, verifiquei que os estores eramfechados, um a um, atrás de mim. Explorei as algibeiras em busca de trocos. Sentia-me uma pessoa anónima qualquer, umturista de visita ao continente, atraído pela curiosidade aumavilla com a possível intenção de a comprar, e não eu próprio,aolhar pela primeira e última vez o lugar onde Ambrose viverae morrera.

- Agradeço-lhe tudo o que fez por Mister Ashley.Com isto, depositei-lhe algumas moedas na mão.- Lamento, signore. - As lágrimas surgiram novamente.- Lamento profundamente.46 ? 47Os últimos estores encontravam-se baixados. A mulher e acriança achavam-se no átrio ao nosso lado e a atmosfera voltara a escurecer, como a entrada de um subterrâneo.- Que aconteceu à sua roupa, bens pessoais, livros, documentos? - inquiri.O homem pareceu embaraçado. Virou-se para a mulher,com a qual dialogou por um momento. Registou-se um vaivém de perguntas e respostas. O rosto dela assumiu uma expressão de ignorância e encolheu os ombros.- A minha mulher ajudou a contessa, antes de partir -- disse ele, voltando-se de novo para mim. - Parece que ela levou tudo. A roupa, livros e outras coisas de Mister Ashleyforam guardados num baú. Não ficou nada na villa.Olhei ambos com intensidade, mas não vacilaram, e compreendi que falavam verdade.- E não fazem a menor ideia do destino de MistressAshley?O homem meneou a cabeça.- Só sabemos que abandonou Florença no dia a seguir aofuneral.Abriu a pesada porta principal e transpu-la.- Onde está sepultado? - perguntei em tom impessoal,como um estranho.- No novo cemitério protestante de Florença, signore,como muitos ingleses que morreram aqui. O Signor Ashleynão se encontra só.Dir-se-ia que pretendia assegurar-me de que Ambrose teriacompanhia e, no mundo das trevas para além da sepultura, receberia consolação de compatriotas seus.Pela primeira vez, não consegui sustentar o olhar do homem. Exibia a expressão de um cão, sincero e dedicado.Voltei-me e, no mesmo instante, ouvi a mulher soltar umaexclamação para o marido. Antes que ele tivesse tempo de fechar a porta, precipitou-se para dentro e abriu uma pesada arca que estava encostada à parede. Regressou com algo na mão,que entregou ao homem, o qual se virou para mim. O rostoapresentava-se descontraído, como que aliviado.- A contessa esqueceu isto. Leve-o, signore, pois é sópara si.Era o chapéu de Ambrose, de abas largas, viradas para baixo. O que ele costumava usar para proteger a cabeça do sol,nos jardins de casa. Não servia a mais ninguém, por ser muitogrande. Senti os olhos ansiosos deles pousados em mim, à espera de que dissesse alguma coisa, enquanto o voltava repetidamente nas mãos.48Capítulo quintoNão me recordo de nada do percurso de regresso a Florença, à excepção de que o Sol se pusera e anoitecera. O crepúsculo não era tão prolongado como em Inglaterra. Nos arbustos que ladeavam a estrada, insectos, porventura grilos,tinhaminiciado os habituais sons monótonos e, de vez em quando, acarrozza cruzava-se com camponeses descalços, com pesadas

cestas às costas.Quando entrámos na cidade, o ar fresco e límpido das colinas circundantes foi de novo substituído pelo calor. Não comoo que fizera durante o dia, ardente, escaldante, mas abafado,proveniente das paredes e chão, que o haviam armazenado aolongo de horas. A lassidão da tarde e a actividade do lapso detempo entre a sesta e o pôr do Sol tinham cedido o lugar auma certa animação. Os homens e as mulheres que percorriamas piazzas e ruas estreitas achavam-se dominados por certa vivacidade, como se acabassem de passar o dia escondidos, adormecidos, nas suas casas silenciosas e agora surgissem comogatos vadios dispostos a explorar a cidade. Os mercados ambulantes estavam superlotados de compradores ruidosos, noque emulavam os vendedores, enquanto outros acudiam à chamada dos sinos e enchiam as igrejas.Paguei ao condutor junto da catedral, na piazza, e entrei,quase sem me dar conta do que fazia, no templo, onde o sacerdote entoava num murmúrio palavras velhas de séculos quenão me era possível entender, até que, de súbito, me apercebida imensidão da perda que acabava de sofrer. Ambrose morrera. Não o tornaria a ver. Deixara-me para sempre. A figura esorriso familiares não voltariam a beneficiar-me com a suapresença. Pensei no quarto frio e ermo onde morrera, na VillaSangalletti e na Virgem no seu nicho, e ocorreu-me a ideia deque quando partira não fazia parte daquele aposento, ou sequer da casa, ou mesmo do país, e o seu espírito regressara aolugar a que pertencia, entre as suas colinas, os seus bosques,no jardim que estimava, rodeado pelo som do mar.Saí da catedral e, na piazza, ao erguer os olhos para o imponente zimbório, lembrei-me pela primeira vez de que nãocomera nada em todo o dia, com a compreensão repentina quesurge após um abalo e tensão profundos. Assim, transferi ospensamentos da morte para a vida e, ao descobrir um localaparentemente sofrível nas proximidades, entrei parasatisfazero apetite, após o que me dispus a procurar o Signor Rainaldi.Giuseppe, o homem que me recebera na villa, escrevera o endereço num pedaço de papel e, esforçando-me por pronunciaras palavras o mais compreensivelmente possível, encontrei acasa, do outro lado da ponte nas cercanias da estalagem, namargem esquerda do Arno, onde havia menos ruído que nocoração de Florença. Viam-se poucas pessoas nas ruas. Asportas achavam-se fechadas e os estores das janelas baixados.Os meus passos ecoavam com algo de sinistro no pavimento.Cheguei por fim ao endereço que me interessava e puxei ocordão da sineta. Um criado abriu a porta passado um momento e, sem perguntar como me chamava, conduziu-me aoprimeiro piso e ao longo de um corredor, ao fundo do qualbateu a uma porta e introduziu-me numa sala. Pestanejei antea luz intensa e súbita e vi um homem numa cadeira junto deuma mesa, que consultava um maço de documentos. Levantou-se à minha entrada e fitou-me com uma expressão decuriosidade. Era um pouco mais baixo do que eu, com cercade quarenta anos, rosto pálido, quase totalmente desprovido

de cor e feições aquilinas. Havia algo de arrogante, desdenhoso, na sua atitude, como de quem manifesta pouca tolerânciapara com os imbecis... ou os inimigos. No entanto, creio queo que mais me atraiu a atenção foram os olhos, negros e encovados, os quais, à primeira vista, deixaram transparecer umaexpressão de reconhecimento, prontamente dominada.- Signor Rainaldi? - perguntei. - Chamo-me PhilipAshley.- Queira sentar-se.A voz era fria e dura e o sotaque italiano pouco vincado.- Deve estar surpreendido de me ver - volvi, instalando-me na cadeira que indicava. - Não sabia que me encontravaem Florença?- Não - admitiu. - Na verdade, não fazia a menorideia.As palavras continham uma inflexão de prudência, que, todavia, se podia dever ao seu fraco domínio da língua inglesa.- Sabe quem sou? - prossegui.- Creio que estou bem elucidado quanto ao grau exactode parentesco. É, salvo erro, primo ou sobrinho do extintoAmbrose Ashley.- Primo - precisei - e herdeiro.Pegou numa caneta e tamborilou com ela no tampo da mesa, como se pretendesse ganhar tempo, ou procurasse uma distracção.- Estive na Villa Sangalletti e vi o quarto onde ele morreu. O empregado, Giuseppe, foi muito atencioso. Forneceu-me todos os pormenores, mas sugeriu que o procurasse, Signor Rainaldi.Seria impressão minha, ou os olhos negros toldaram-se defacto?- Há quanto tempo se encontra em Florença?- Algumas horas. Desde o meio da tarde.- Chegou só hoje? - A mão que segurava a caneta perdeu a tensão. - Nesse caso, a sua prima Raquel não o viu.- Não, com efeito. Giuseppe deu-me a entender que elaabandonou Florença no dia seguinte ao do funeral.- Abandonou a Villa Sangalletti, mas não Florença.- Quer dizer que ainda está na cidade?- Não, agora já partiu. Confiou-me o encargo de alugar avilla. Vendê-la, se possível.Os seus modos eram algo rígidos, como se toda a informação que me revelava tivesse de ser ponderada previamente.- Sabe onde se encontra neste momento? - perguntei.- Não. Partiu quase repentinamente, sem traçar planos.Prometeu escrever quando tomasse uma decisão sobre o futuro.- Está, porventura, em casa de pessoas amigas?- É possível, embora me custe a crer.Acudiu-me a sensação de que, naquele próprio dia, ou navéspera, estivera com ele, o qual sabia muito mais do que confessava.- Decerto compreenderá, Signor Rainaldi, que sofri umforte abalo ao inteirar-me da morte do meu primo através deempregados domésticos. Tenho vivido numa espécie de pesadelo. Que aconteceu? Porque não fui informado de que se encontrava enfermo?Observou-me em silêncio por uns instantes e, por fim,

disse:- Creia que nós também sofremos um abalo profundocom a morte repentina do seu primo. Estava doente, sem dúvida, mas não supúnhamos que fosse tão gravemente. A febrehabitual que afecta muitos estrangeiros no Verão provocara-lhe certa debilidade, e queixava-se com frequência de enxaquecas. A contessa... talvez deva dizer antes MistressAshley...achava-se muito preocupada, além de que ele não se podiaconsiderar um enfermo fácil. Criou animosidade instantâneacontra os nossos médicos, por razões difíceis de determinar.Mistress Ashley ansiava constantemente por sinais de melhoras, pelo que se absteve de lhe escrever, Mister Ashley, paranão o apoquentar sem necessidade, segundo imaginava.- Mas estávamos todos inquietos - retruquei. - Foi porisso que me desloquei a Florença. As cartas que recebi deleobrigaram-me a efectuar a viagem.Tratava-se, provavelmente, de uma diligência arrojada e, decerto modo, irreflectida, mas era-me indiferente. Estendi aomeu interlocutor as duas últimas missivas de Ambrose. Leu-asatentamente, embora a expressão não se alterasse, após o quemas devolveu.- Sim - articulou calmamente, sem a mínima surpresa -,Mistress Ashley temia que ele tivesse escrito algo do género.Só nas últimas semanas, quando começou a mostrar-se reservado e estranho, os médicos recearam o pior e preveniram-na.- Preveniram-na? - ecoei. - De quê?- Da possibilidade de se verificar uma pressão estranha nocérebro. Um tumor, ou excrescência, que aumentava rapidamente de volume, justificativo da sua condição.Não pude evitar um estremecimento. Um tumor? Nessecaso, a suposição do meu padrinho confirmava-se. Primeiro otio Philip e agora Ambrose. Não obstante... Porque continuaria o italiano a observar-me com tanto interesse?- Os médicos declararam que a morte se deveu a umtumor?- Indiscutivelmente. A isso e à intensificação da fraquezaresultante da febre. Assistiram-no dois. O meu e outro que eleindicou. Caso queira, posso mandá-los chamar, para que osinterrogue. Um fala inglês, embora não com fluência.- Não me parece necessário - declarei, pausadamente.Abriu uma gaveta e puxou de uma folha de papel.- Tenho aqui uma cópia da certidão de óbito, assinada pelos dois médicos. Leia-a. Seguiu já outra pelo correio para aCornualha e uma terceira para o testamenteiro do seu primo,Nicholas Kendall, perto de Lostwithiel, também naquela região de Inglaterra.Baixei os olhos para o documento, mas não senti interesseem o ler.- Como soube que Nicholas Kendall é o testamenteirodele?- O seu primo Ambrose tinha uma cópia do testamentoconsigo. Eu próprio a li várias vezes.- Leu o testamento do meu primo? - proferi com incredulidade.

- Naturalmente - admitiu, sem pestanejar. - Na minhaqualidade de administrador dos bens da contessa, de MistressAshley, competia-me tomar conhecimento do testamento domarido. Não há nada de estranho nisso. Ele próprio mo mostrou, pouco depois do casamento. Na verdade, até possuo umacópia. No entanto, não lha devo divulgar. Isso é da alçada doseu tutor, Mister Kendall, que decerto o fará quando regressara Inglaterra.54 ? 55Rainaldi também sabia que o meu padrinho era igualmenteo meu tutor, pormenor que eu desconhecera até àquele momento. Não acontecia com frequência um homem com maisde vinte e um anos ter um tutor, e eu já completara vinte equatro. Em todo o caso, o pormenor carecia de importância.O que me interessava era Ambrose e a sua doença. Ambrose ea sua morte.- Estas duas cartas não são próprias de um homem enfermo ou afectado por perturbações mentais - persisti. - Parecem mais as que escreveria alguém com inimigos, rodeado depessoas que não lhe merecem confiança.Voltou a observar-me em silêncio, por um momento, antesde replicar:- São cartas de um homem mentalmente doente, Ashley.Perdoe-me a franqueza abrupta, mas eu vi-o nas suas últimassemanas e o senhor não. Creia que a experiência não foi agradável para qualquer de nós, em particular para a esposa. Comovê na primeira dessas cartas, ela não o abandonou, e possoconfirmá-lo. Com efeito, não saía do seu lado, dia e noite.Outra mulher recorreria a freiras para cuidar dele. Ao invés,prestou-lhe toda a assistência humanamente possível.- Que veio a não servir para nada - comentei secamente.- Repare nesta passagem final: ??Ela acabou por se desmascarar, Raquel, o meu tormento...?? Que depreende disto, SignorRainaldi?Creio que levantei a voz, arrastado pelo entusiasmo. Eleergueu-se da cadeira e tocou uma sineta. Quando surgiu o empregado, transmitiu-lhe uma ordem e o homem reapareceucom um copo e uma garrafa de vinho.- Então? - insisti, ignorando a oferta.Rainaldi não voltou a sentar-se. Dirigiu-se à secção da salaonde havia várias prateleiras com livros e retirou um.- Está familiarizado com a história da medicina, MisterAshley?- Não.- Encontrará aqui a informação que procura, ou pode interrogar os médicos, cujos endereços lhe fornecerei com todoo gosto. Existe uma afecção especial do cérebro, presentesobretudo quando ocorre um tumor ou excrescência, em que odoente é assolado por visões, ilusões. Imagina, por exemplo,que o vigiam. Que a pessoa mais próxima, a esposa, digamos,se voltou contra ele, lhe é infiel ou procura apoderar-se doseu

dinheiro. Não há amor ou persuasão capaz de neutralizar semelhante suspeita. Se não acredita em mim ou nos médicos decá, consulte compatriotas seus ou leia este livro.Revelava uma segurança, plausibilidade e serenidade semdúvida convincentes. Imaginei Ambrose deitado na cama deferro da Villa Sangalletti, torturado, desesperado, com aquelehomem a observá-lo, a analisar-lhe os sintomas um a um, postado porventura atrás do biombo que eu vira. Era-me impossível determinar se ele tinha ou não razão. Só sabia que odetestava profundamente.- Como se explica que ela não me mandasse vir? - inquiri. - Se Ambrose suspeitava dos seus manejos, porque nãoexigiu a minha presença? Ninguém o conhecia melhor doque eu.Fechou o livro com um som seco e tornou a colocá-lo naprateleira.- É muito jovem, Mister Ashlev.- Que quer dizer com isso? - retorqui, arregalando osolhos, sem compreender aonde pretendia chegar.- Uma mulher apaixonada não renuncia com facilidade.Chame-lhe amor-próprio, tenacidade ou o que quiser. Apesarde toda a evidência em contrário, as emoções delas são maisprimitivas que as nossas. Apegam-se àquilo que desejam enunca se rendem. Nós temos as nossas guerras e batalhas, masas mulheres também sabem combater.Fitou-me friamente com os olhos negros encovados, e concluí que nada mais tinha para lhe dizer.- Se eu estivesse cá, ele não teria morrido - asseverei.Levantei-me e movi-me em direcção à porta. Ele voltou atocar a sineta e o empregado apareceu para me acompanhar àsaída.56 ? 57- Escrevi ao seu tutor, Mister Kendall - informou Rainaldi. - Expliquei-lhe pormenorizadamente tudo o que aconteceu. Necessita de algo mais de mim? Tenciona permanecerem Florença muito tempo?- Para quê? Já nada me retém neste país.- Se deseja visitar a sepultura, dar-lhe-ei um bilhete parao guarda do cemitério protestante. É claro que ainda não houve tempo para colocar uma lápide, mas ela não faltará.Voltou-se para a mesa e escreveu algo num pedaço de papel, que me entregou.- Que dizeres serão inscritos na laje?Deixou transcorrer um momento, como se reflectisse, enquanto o empregado, que aguardava junto da porta aberta, meestendia o chapéu de Ambrose.- Creio que as minhas instruções consistiam em gravar aspalavras ??Em memória de Ambrose Ashley, estimado maridode Raquel Coryn Ashley??, com a data, é claro.Compreendi então que não desejava visitar o cemitério emuito menos a sepultura. Não sentia a mínima vontade de vero lugar onde o tinham enterrado. Eles podiam colocar a lápidee levar flores mais tarde, se quisessem, mas Ambrose nunca osaberia, nem se preocuparia com isso. Estaria comigo na Cornualha, debaixo do seu próprio solo, da sua própria terra.- Quando Mistress Ashley regressar, comunique-lhe que

estive cá - articulei, pausadamente. - Que visitei a VillaSangalletti e vi o quarto onde Ambrose morreu. Pode, também,falar-lhe das cartas que ele me escreveu.Estendeu-me a mão, fria e rígida como ele próprio, continuando a observar-me com intensidade.- A sua prima Raquel é uma mulher impulsiva. Quandopartiu de Florença, levou todas as suas posses. Receio muitoque não volte.Abandonei a casa e tornei a percorrer as ruas estreitas eescuras, com a sensação de que os seus olhos me seguiam. Antesde entrar na estalagem, para tentar dormir, por pouco quefosse, detive-me mais uma vez diante do Arno.A cidade dormia. Aparentemente, eu era noctívago solitário. Até os sinos solenes se achavam reduzidos ao silêncio, eoúnico ruído provinha da água que corria sob a ponte. Pareciaque agora deslizava mais depressa do que durante o dia, comose também tivesse sofrido da indolência provocada pelo calore pudesse finalmente, com o fresco da noite, dar livre curso àsua impetuosidade.De súbito, no meio da corrente, inteiriçado e rodandocom lentidão, com as quatro patas inertes, descortinei o corpo de um cão, que passou debaixo da ponte e desapareceuna escuridão.Fiz então um juramento a mim próprio, na margem doArno.Desenvolveria todos os esforços para infligir as dores e sofrimentos que Ambrose conhecera à mulher que lhos causara,pois não acreditava na versão de Rainaldi. Inclinava-me antespara a verdade daquelas duas cartas que conservava na algibeira. As últimas que ele me escrevera.Um dia, de uma maneira ou de outra, faria a minha primaRaquel expiar o mal que praticara.58Capítulo sextoRegressei a casa na primeira semana de Setembro. As tristes novas haviam-me precedido, pois o italiano não mentiraquando dissera que escrevera a Nick Kendall. Este encarregara-se de informar o pessoal e os caseiros da propriedade. Wellington aguardava-me em Bodmin, com a carruagem. Os cavalos estavam cobertos com crepes, assim como ele e o moço daestrebaria, de expressões solenes.O meu alívio por estar de novo no meu país era tão grandeque por momentos o pesar permaneceu dormente, ou possivelmente a longa permanência na Europa endurecera-me ossentimentos, mas recordo-me de que o meu primeiro instintome obrigou a sorrir ao ver os dois rostos familiares,acariciaros cavalos e perguntar se tudo se encontrava em ordem. Eraquase como se tivesse voltado à adolescência e regressasse dasaulas. No entanto, o velho cocheiro assumia uma atitude rígida, com uma nova formalidade, e o moço de estrebaria abriua portinhola da carruagem com deferência. ??Um triste regressoacasa, Mister Philip", disse Wellington. E quando perguntei por

Seecombe e o resto do pessoal, meneou a cabeça e revelou quese achavam todos amargurados com o sucedido. Acrescentouque não se falava de outra coisa em toda a região desde que apungente nova se tornara conhecida. A igreja estivera enlutadatodo o domingo, assim como a capela da propriedade, porémo golpe mais rude verificara-se quando Nick Kendall lhesanunciara que o amo fora sepultado em Itália e não seriatransladado para a pátria, a fim de repousar no jazigo de família.- Não nos parece certo, Mister Philip - declarou o cocheiro. - E pensamos que o próprio Mister Ashley não concordaria.Não havia nada que eu pudesse responder. Assim, subi para a carruagem, que em seguida se pôs em marcha.Curiosamente, a emoção e fadiga das últimas semanas dissiparam-se à vista da casa. Toda a sensação de tensão me abandonou e, apesar das longas horas na estrada, senti-me descontraído e em paz. Era de tarde e o sol incidia nas janelas daalaoeste e nas paredes cinzentas, enquanto rolávamos através dosegundo portão e subíamos a encosta em direcção à vivenda.Os cães estavam presentes para me saudar, e Seecombe, comum fumo negro no braço direito, como o resto do pessoal, nãopôde conter as lágrimas quando lhe estendi a mão.- Foi uma longa ausência, Mister Philip - soluçou.- Muito longa. E quem nos garantia que não contrairia também a febre maligna?Ele próprio me serviu o jantar, solícito, ansioso pelo meubem-estar, e congratulei-me por não lhe ocorrer fazer perguntas sobre a minha viagem ou a doença e morte de Ambrose,embora não poupasse as palavras para descrever outros pormenores: os sinos tinham dobrado durante um dia inteiro, ovigário mencionara a ocorrência no púlpito e haviam sido oferecidas numerosas coroas de flores. E todo o seu arrazoadoera salpicado de uma nova fórmula: ??Mister Philip?? a cadapasso, em vez de ??menino Philip??. Aliás, eu apercebera-me domesmo pormenor no cocheiro e no moço de estrebaria. Apesar de inesperado, resultava reconfortante.Depois de jantar, subi ao meu quarto, olhei em volta e aseguir desci à biblioteca e passei aos jardins, percorrido poruma estranha sensação de felicidade que nunca imaginei queme ocorreria com Ambrose morto, pois quando abandonaraFlorença atingira o grau mais baixo de solidão e não experimentava qualquer desejo. Enquanto atravessava a Itália e aFrança, acudiam-me imagens obsessivas que não conseguiaafugentar. Via Ambrose sentado à sombra, no pátio da VillaSangalletti, junto do laburno, a observar a fonte; na cela monástica, reclinado em duas almofadas, esforçando-se por respirar. E, sempre no seu campo auditivo, sempre sob as suas vistas, o vulto sombrio e detestado da mulher que eu nunca vira.Tinha numerosos rostos e disfarces, e a designação decontessa,empregada por Giuseppe e Rainaldi, de preferência a MistressAshley, conferia-lhe uma espécie de aura que eu nunca lheatribuíra a princípio, quando a vira como outra MistressPascoe.Desde a minha visita à villa, convertera-se num monstro

em tamanho natural. Tinha olhos tão negros como abrunhos,feições tão aquilinas como as de Rainaldi, e movia-se nosaposentos da húmida e sombria casa sinuosa e silenciosa comouma serpente. Vi-a, quando já não existia uma réstia dealentono corpo dele, recolher todas as suas posses e partir,porventura para Roma ou Nápoles, ou talvez oculta naquela estalagemna margem do Arno, sorridente, atrás dos estores. Essas imagens acompanharam-me até que cruzei o mar e desembarqueiem Dôver. E agora que regressara ao lar, haviam-seextinguidocomo os pesadelos ao romper do dia. E a minha amarguratambém. Ambrose encontrava-se de novo comigo e não eratorturado nem sofria. Nunca estivera em Florença ou sequerem Itália. Dir-se-ia que morrera em casa e fora sepultado aolado dos pais e outros familiares, pelo que a dor seconverteraem algo que me era possível suportar. O pesar persistia, massem vislumbres de tragédia. Eu regressara igualmente ao lugara que pertencia, com a sua fragrância especial que me circundava.Percorri os campos, onde o pessoal procedia à safra. O trigo era carregado em carroças. Quando me viam, eles interrompiam o trabalho e trocávamos algumas palavras. O velhoBilly Rowe, que era caseiro das terras de Barton desde que eume conhecia e sempre me tratara por ??menino Philip??, levou amão ao chapéu quando me aproximei, e a esposa e a filha, queo ajudavam com os outros, saudaram-me igualmente. ??Tínhamos muitas saudades suas??, disse ele. ??Custava-nosprincipiara colheita sem a sua presença. Alegra-nos que tenha voltado."Um ano atrás, eu teria arregaçado as mangas e participado nostrabalhos, mas agora algo me impedia de o fazer, a vaga ideiade que eles não considerariam apropriado.- Também estou contente por ter voltado - afirmei.- A morte de Mister Ashley constituiu uma perda profundapara todos, mas temos de prosseguir a sua obra.Conversámos durante mais alguns minutos, até que chameios cães e reatei o percurso. Ele aguardou que me encontrassepara além da sebe antes de mandar continuar o trabalho.Quando alcancei o cercado dos póneis, a meio caminho entrea casa e os campos ao longo da encosta suave, fiz uma pausa evoltei-me para trás, a fim de contemplar a aprazível paisagem.As espigas de trigo adquiriam uma tonalidade dourada sob osderradeiros raios solares. O mar apresentava-se invulgarmenteazul, quase arroxeado onde cobria as rochas. A frota pesqueiraachava-se ancorada, à espera da hora para o início de mais umafaina. A vivenda encontrava-se agora imersa na sombra e somente o cata-vento no topo do campanário era ainda beneficiado por um pouco mais de luminosidade. Recomecei a caminhar, com lentidão, em direcção à porta aberta.Os estores das janelas estavam levantados, porque Seecombe ainda não ordenara ao pessoal que os baixasse. Havia algode acolhedor no aspecto das ripas recolhidas, com as cortinasa

oscilar levemente, e no pensamento de todos os aposentos pordetrás dessas janelas, que me eram familiares e queridos. Ofumo desprendia-se das chaminés, altas e estreitas. O perdigueiro, o velho Don, demasiado pesado e rígido para me acompanhar e aos cães mais jovens, espreguiçou-se no chão por baixodas janelas da biblioteca e em seguida volveu a cabeça paramim e começou a agitar a cauda lentamente.Acudiu-me, súbita e intensamente, pela primeira vez desdea morte de Ambrose, a ideia de que tudo o que existia à minhavolta me pertencia. Jamais teria de o partilhar com vivalma.Asparedes e janelas, o telhado, o sino que badalou as sete horasnaquele momento, toda a entidade viva da casa eram meus, esó meus. A relva sob os meus pés, as árvores circundantes, osbosques, e até os homens e mulheres que trabalhavam a terrada propriedade, faziam parte da minha herança.Entrei e visitei a biblioteca, postando-me de costas para alareira, as mãos enfiadas nos bolsos. Os cães seguiram-me,co mo era seu hábito, e deitaram-se a meus pés. Seecombe apareceu para perguntar se tinha alguma ordem para Wellington, namanhã seguinte. Necessitaria da carruagem ou preferia que selasse o Cigano para eu dar uma volta? Repliquei que não tencionava dar-lhe quaisquer ordens naquela noite. Eu própriome avistaria com Wellington após o pequeno-almoço, e desejava que me acordassem à hora habitual. Respondeu ??Perfeitamente, senhor??, e retirou-se. O ??menino Philip,?desaparecerapara sempre, substituído por ??Mister Ashley". Era uma sensação estranha. Tornava-me de certo modo humilde e, ao mesmotempo, singularmente orgulhoso. Apercebia-me de uma espécie de confiança e força que até então não conhecera, a par deuma nova euforia. Afigurava-se-me que reagia como um militar a quem acabassem de confiar o comando de um batalhão.O sentimento de posse, amor-próprio, assolava-me como aum major após muitos anos numa posição secundária, guindado a uma situação de responsabilidade nova para ele. Mas, aocontrário de um militar, eu nunca teria de renunciar ao comando. Pertencia-me para toda a vida. Ao abarcar toda a extensão da minha situação, conheci um momento de felicidadeque nunca me visitara no passado. No entanto, à semelhançade todos esses lapsos de tempo, foi de breve duração. Um somqualquer quebrou o encanto: talvez um dos cães se movesse,uma acha se deslocasse no lume ou um empregado percorresseum dos aposentos do piso superior para fechar subitamenteuma janela. Confesso que não me recordo, mas continuo a terbem presente no espírito a emoção estranha, porém aprazível,que me acudiu. Deitei-me cedo e dormi sem um único sonho.O meu padrinho procurou-me no dia seguinte, acompanhado de Louise. Como não havia familiares próximos paraconvocar, e apenas legados a Seecombe e outros empregados,além dos usuais donativos aos pobres da paróquia, e toda apropriedade se me destinava, Nick Kendall leu o testamentoapenas na minha presença, na biblioteca, enquanto Louise passeava pelas imediações. Apesar da terminologia legal, tudo parecia simples e claro. À excepção de um pormenor. Ele era nomeado meu tutor, porque os bens só seriam virtualmente meusquando completasse vinte e cinco anos.

64 ? 65- Ambrose estava convencido de que um jovem não tinhaa mente formada solidamente antes dessa idade - explicou,tirando os óculos, ao mesmo tempo que me entregava o documento para que o lesse. - Podias ter criado um fraco paraa bebida, o jogo ou as mulheres, e a cláusula acerca dos vintee cinco anos representa uma espécie de salvaguarda. Ajudei-oa redigir o testamento quando ainda estudavas em Harrow,e, embora ambos soubéssemos que não se desenvolvera qualquer dessas tendências, ele preferiu manter o estipulado.??Nãoprejudicará o Philip e ensiná-lo-á a ser prudente??, confidenciou-me mais de uma vez. Por conseguinte, não há nada a fazer quanto a isso. Na realidade não te afectará, à parte ofactode teres de me pedir o dinheiro de que necessitares, comosempre aconteceu, durante mais sete meses. O teu aniversárioé em Abril, salvo erro?- Sabe-o perfeitamente, como meu padrinho.- Eras um vermezinho muito engraçado - comentou,com um sorriso. - Olhavas o padre como se pretendesse devorar-te. O Ambrose acabava de sair de Oxford e beliscou-teo nariz para que chorasses, o que indignou a tia, tua mãe. Depois, desafiou o teu infortunado pai para uma regata e remaram do castelo até Lotswithiel, acabando por cair ambos àágua. Nunca sentiste a falta dos teus pais?- Bem, não sei... Confesso que não pensei muito nisso.Nunca desejei outra companhia que não fosse o meu primo.- Os cuidados de uma mãe fazem sempre falta. Falei dissoao Ambrose por diversas vezes, mas nunca me deu ouvidos.Devia ter havido alguém em casa: uma perceptora, uma parente distante. Cresceste ignorante no que se refere a mulheres,e,se vieres a casar, isso há-de reflectir-se na tua companheira,como referi à Louise o outro dia.Interrompeu-se, com uma ponta de embaraço, se porventura o meu padrinho podia exprimir semelhante emoção, como se tivesse dito mais do que pretendia.- Não se preocupe - repliquei com desprendimento.- A minha mulher superará todas as dificuldades quando surgir o momento. Ou melhor, se surgir, o que me parece poucoprovável. Creio que sou demasiado como o Ambrose, e agoracompreendo como o matrimónio o deve ter afectado.Conservou-se silencioso. Em seguida, descrevi a visita àvilla e o encontro com Rainaldi, após o que ele me mostroua carta que este último lhe escrevera. Correspondia mais oumenos ao que eu previra: a revelação, em termos secos, dadoença e morte de Ambrose e da amargura da viúva, a qual,segundo ele, estava inconsolável.- Tão inconsolável - salientei - que partiu como umaladra, no dia após o funeral, levando todos os bens do meuprimo, à excepção do chapéu, de que se esqueceu. Decerto porestar coçado e carecer de todo e qualquer valor.O meu padrinho tossiu discretamente e enrugou a fronte.- Suponho que não lhe invejas os livros e roupa que levou? Francamente, Philip, é tudo o que lhe

resta.- Tudo o que lhe resta? - repeti, perplexo.- Acabo de te ler o testamento e tem-lo na tua frente. É omesmo que redigi há dez anos. Não contém qualquer codiciloacrescentado depois do casamento. Não existe a mínima provisão para a esposa. Durante os últimos meses, esperei recebernotícias dele nesse sentido. É costume em casos similares.Calculo que a ausência no estrangeiro o levou a descurar a possibilidade, e talvez tencionasse introduzir a alteração quandoregressasse. No entanto, a doença alterou a situação radicalmente. Estranho que esse italiano, o Signor Rainaldi, comquem tanto antipatizas, não mencione qualquer pretensão dogénero por parte de Mistress Ashley. Revela um tacto admirável do homem.- Pretensão? - exclamei. - Fala em semelhante hipótese,quando sabemos perfeitamente que foi ela que o conduziu àmorte?- Não sabemos nada do género, e, se pensas continuara referir-te nesse tom à viúva do teu primo, não estoudispostoa escutar-te.Com estas palavras, Nick Kendall levantou-se e começou arecolher os documentos.66 ? 67- Quer dizer que acredita na versão do tumor?- Naturalmente. Temos aqui a carta de Rainaldi e a certidão de óbito assinada por dois médicos. Recordo-me da mortedo teu tio Philip. Os sintomas eram muito similares. Foi exactamente o que receei, quando chegou aquela carta do Ambrosee partiste para Florença. O facto de teres chegado demasiadotarde para lhe poderes prestar qualquer assistência constituiuuma daquelas calamidades que ninguém pode remediar. Pensando bem, talvez nem fosse uma calamidade, mas um acto demisericórdia. Julgo que não desejarias vê-lo sofrer.Contive com dificuldade a irritação que a sua peroração meprovocava, ditada por uma obstinação e cegueira insensatas.- Não chegou a ver a segunda carta - lembrei-lhe. - A querecebi na manhã em que parti para Itália. Ei-la.Voltou a pôr os óculos para ler a missiva em causa, que euconservava sempre comigo. No final, declarou:- Lamento, Philip, mas estas garatujas são insuficientespara alterar a minha opinião. Deves encarar os factos. Estimavas o Ambrose e eu também. Quando morreu, perdi o meumelhor amigo. Sinto-me tão amargurado como tu quandopenso no seu sofrimento mental, talvez ainda mais, porque ovi noutra pessoa. O teu mal é não aceitares a realidade de queo homem que conhecemos, admirámos e amámos não era omesmo na altura da morte. Estava mental e fisicamente enfermo e, por conseguinte, irresponsável pelo que escrevia ou dizia.- Não acredito. Não posso acreditar.- Diz antes que não queres, e nesse caso nada mais temosa dizer sobre o assunto. No entanto, em atenção a ele e a todas as pessoas que o conheceram e

estimaram, aqui, na propriedade e no condado, devo pedir-te que não divulgues o teuponto de vista. Só conseguirias desgostá-las e, se chegasseaosouvidos da viúva, onde quer que se encontre, ficaria com umaideia muito triste a teu respeito e não me surpreenderia quetemovesse um processo por difamação. Se eu fosse o seu representante legal, como Rainaldi parece ser, não hesitaria emfazê-lo.Eu nunca ouvira o meu padrinho exprimir-se com tantaveemência. Tinha razão ao afirmar que estava tudo dito sobreo assunto. Eu aprendera a lição e não voltaria a abordá-lo.- E se chamássemos a Louise? - sugeri. - Suponho quejá se terá cansado de percorrer os jardins. Gostava quejantassem comigo.Ele mostrou-se pouco comunicativo durante a refeição epressenti que ainda estava chocado com o que eu dissera. Entretanto, Louise crivava-me de perguntas sobre as minhas viagens, o que pensava de Paris, da França em geral, dos Alpes,de Florença, e as minhas respostas, embora vagas, serviram para preencher as soluções de continuidade na conversa geral.Não obstante, ela era perspicaz e compreendeu que se passavaalgo de errado. Após o jantar, quando o meu padrinho chamou Seecombe e o pessoal doméstico para lhes anunciar os legados, fomos sentar-nos na sala de estar.- O teu pai está aborrecido - informei, e expus-lhe a situação.Ela observou-me com curiosidade por um momento, a cabeça um pouco inclinada, como era seu hábito, e disse:- Talvez tenhas razão. Creio que o infortunado MisterAshley e a esposa não eram felizes, mas o amor-próprio impediu-o de to revelar por escrito antes de adoecer. Depois,provavelmente tiveram uma briga, os acontecimentos precipitaram-seeenviou-te aquelas cartas. Que disseram os dois empregados italianos acerca dela? Era jovem, de meia-idade, ou quê?- Não perguntei. De resto, não vejo o que isso possa interessar. A única coisa importante é que o Ambrose não confiava nela quando morreu.- Devia sentir-se muito só - murmurou, com uma réstiade amargura.Naquele momento, o afecto que sempre me inspirara aumentou. Talvez por ser jovem, praticamente da minha idade, eparecer possuidora de mais bom senso que o pai.- Devias ter perguntado ao tal italiano, Rainaldi, como elaera - acrescentou. - Eu perguntava, de certeza. Na verdade,68 ? 69seria a primeira coisa que desejaria saber. E o que aconteceraao conde, seu primeiro marido. Não disseste uma vez que tinha perdido a vida num duelo? Isso também se reflecte negativamente na mulher. Era capaz de ter montes de amantes.Essa faceta da minha prima Raquel não me ocorrera. Imaginava-a apenas como uma criatura malevolente, uma espéciede aranha. Apesar da animosidade que me percorria, não pudeevitar um sorriso.- Essa de lhe atribuir amantes é mesmo próprio de umamulher. Punhais num átrio escuro. Escadas secretas. Fiz mal

em não te levar comigo a Florença. Tinhas averiguado muitomais do que eu.Naquele momento, o meu padrinho reuniu-se-nos e nãovoltei a pronunciar-me sobre o assunto. Agora, ele pareciamais bem-humorado. Seecombe, Wellington e os outros decerto se haviam mostrado gratos pelos pequenos legados, e NickKendall, no seu habitual estilo condescendente, sentia-seatingido por isso.- Volta em breve - solicitei a Louise, quando a ajudava asubir para a carruagem. - A tua presença faz-me bem. Gostoda tua companhia.Ela corou e dirigiu um olhar de través ao pai, para observar a reacção das minhas palavras, como se até então não nosvisitássemos com regularidade e frequência. Talvez também estivesse impressionada com a minha nova situação e não tardasse a tratar-me por ??Mister Ashley?,, em vez de Philip. Volteipara dentro, sorrindo com a ideia de Louise Kendall, cujos cabelos eu costumava puxar poucos anos atrás, me olhar respeitosamente, mas em breve me esqueci dela e do meu padrinho,porque tinha muito que fazer em casa após dois meses de ausência.Não contava voltar a ver o meu padrinho nas duas semanasmais próximas, em virtude das numerosas ocupações que exigiam a minha participação, mas ainda não se tinham escoadooito dias quando um seu empregado apareceu, por volta domeio-dia, com uma mensagem verbal de Nick Kendall. Pedia aminha comparência em sua casa, porque se achava impossibilitado de sair devido a um leve resfriado e necessitava de mecomunicar uma novidade.O assunto não se me afigurava urgente, pelo que só compareci na tarde seguinte, sobretudo porque desejava assistiraosderradeiros trabalhos relacionados com a safra.Fui encontrá-lo no seu gabinete, só. Depreendi que Louisefora visitar uma amiga. O meu padrinho exibia uma expressãoestranha - um misto de embaraço e perplexidade, que também me intrigou.- Precisamos de tomar uma atitude e tens de decidir exactamente qual - começou. - Ela acaba de desembarcar emPlymouth.- Quem? - perguntei, embora fizesse uma ideia muitoconcreta.Mostrou-me uma folha de papel que tinha na mão.- Recebi carta da tua prima Raquel.70Capítulo sétimoObservei a letra da carta. Confesso que não sei o que esperava ver. Talvez um estendal de arabescos com floreados caprichosos ou então, pelo contrário, uma série de garatujas. Noentanto, as palavras na minha frente não apresentavam qualquer característica especial, à excepção de pequenos traçosno final de cada uma, o que as tornava um pouco difícil dedecifrar.- Dá a impressão de que não sabe que estamos ao corrente da situação - disse o meu padrinho. - Decerto partiu deFlorença antes de Rainaldi me escrever. Lê e dá-me a tua opinião. Depois revelo-te a minha.Encimava-a o nome de uma estalagem em Plymouth e

apresentava a data de 13 de Setembro.??Prezado Mr. Kendall:Quando o Ambrose me falava do senhor, comoacontecia com frequência, mal sabia eu que o nosso primeiro contacto se revestiria de tanta amargura. Chegueia Plymouth, procedente de Génova, esta manhã, imersaem profunda apreensão e, infelizmente, só.O meu querido faleceu em Florença a 20 de Julho,após um breve período de doença, que, não obstante, serevelou particularmente violenta. Fez-se tudo o que foipossível, porém os melhores médicos a que consegui recorrer revelaram-se impotentes para o salvar. Verificou-se uma recaída de uma febre estranha que o atacou noprincípio da Primavera, agravada por uma pressão no cérebro incubada ao longo dos últimos meses, até que sedeclarou com toda a sua virulência. Foi sepultado no cemitério protestante de Florença, num sector que eu própria escolhi, um pouco afastado das campas inglesas,com árvores em volta, como ele desejaria. Não me referirei à dor e solidão em que o passamento me mergulhou, pois não me conhece, nem pretendo importuná-locom os meus sentimentos pessoais.O meu primeiro pensamento foi para Philip, que oAmbrose tanto estimava e cujo pesar decerto não seráinferior ao meu. O Signor Rainaldi, de Florença, meuparticular amigo e conselheiro, prometeu escrever-lhepara o pôr ao corrente da situação e poder informar Philip, mas não confio muito no serviço postal de Itália paraInglaterra e receei que acabasse por se inteirar através derumores que circulassem em bocas estranhas. Daí a minha visita a este país. Trouxe comigo todos os bens doAmbrose - livros, roupa; em suma, tudo o que ele gostaria que ficasse em sua casa, a qual agora decerto passoua pertencer ao seu jovem primo. Assim, ficar-lhe-ia profundamente grata se me indicasse a melhor maneira delhos fazer chegar às mãos e se devo ou não escrever aPhilip.Abandonei Florença subitamente, em obediência aum impulso, mas quase com satisfação. Sentia-me impossibilitada de continuar lá sem o Ambrose a meu lado.Para já, não tenho quaisquer planos. Após um abalo tãoamargo, necessito de algum tempo para reflectir. Esperava chegar a Inglaterra há mais tempo, todavia uma avariaqualquer não permitiu que o navio iniciasse a viagem deGénova antes. Creio que ainda existem familiares meus,os Coryn, dispersos pela Cornualha, mas como não osconheço pessoalmente não me atrevo a procurá-los. Prefiro permanecer só. É possível que, após uns dias de repouso, siga para Londres e trace então as linhas geraisdo meu futuro.Fico a aguardar instruções suas, Mr. Kendall, sobre odestino a dar aos bens do meu marido.Cordialmente,Raquel Ashley.??Li a carta duas, possivelmente três vezes, e devolvi-a ao

meu padrinho, o qual aguardou que me pronunciasse, masconservei-me calado.- Como vês, ela não quer ficar com nada - acabou pordizer. - Nem sequer um livro ou um par de luvas. É tudopara ti.Continuei imerso em silêncio.- Nem pede para ver a casa - prosseguiu. - A casa queconstituiria o seu lar, se o Ambrose vivesse. Esta viagemtê-la-iam efectuado juntos. Que diferença, hem? Todos os nossosamigos a dar-lhe as boas-vindas e, ao invés, vê-se relegadaparauma estalagem solitária em Plymouth. Pode tratar-se de umamulher agradável ou desagradável, mas na verdade não exigenada. Não obstante, é Mistress Ashley. Embora compreenda oteu ponto de vista, não posso, como amigo do Ambrose e administrador dos seus bens, manter-me indiferente à situação.A sua viúva acaba de chegar, só e sem amigos, pelo que considero meu dever oferecer-lhe o quarto de hóspedes que existenesta casa.Aproximei-me da janela. Afinal, ao contrário do que supusera, Louise não se ausentara, pois avistei-a no jardim,entretida a recolher as flores murchas caídas nos canteiros. Ergueuosolhos, viu-me e acenou. Perguntei-me vagamente se o pai lheteria mostrado a carta de Raquel.- Então, Philip? - perguntou Kendall. - Podes escrever-lhe ou não, como preferires. Suponho que não desejas vê-la e, se ela aceitar o meu convite, decerto não nos visitarásdurante a sua permanência. Em todo o caso, creio que esperaráde ti alguma espécie de mensagem, para agradeceres as coisasquetrouxe. Posso incluí-la, à guisa de pós-escrito, na minhacarta.Voltei-me da janela e olhei-o.- Porque pensa que não a quero ver? Pelo contrário, quero e muito. Se é uma mulher de impulsos, como admite nacarta, e Rainaldi também referiu, não lhe ficarei atrás nesseaspecto. De resto, foi um impulso que me levou a Florença.- Então? - repetiu, enrugando a fronte, com uma expressão desconfiada.75- Quando lhe escrever, diga que Philip Ashley já se achava ao corrente da morte de Ambrose. Visitou Florença na sequência de duas cartas que ele enviou, esteve na Villa Sangalletti, conversou com dois empregados domésticos de lá e como seu amigo e conselheiro Rainaldi, e agora está de regresso.Acrescente que é um homem simples que vive com simplicidade. Possuidor de boas maneiras, pessoa de poucas palavras enada habituado a conviver com mulheres. Se, no entanto, desejar conhecê-lo e à vivenda do falecido marido, a casa dePhilip Ashley encontra-se à disposição da prima Raquel. - Pousei a mão no coração e efectuei uma ligeira vénia.- Nunca imaginei que te veria tão empedernido. Que teaconteceu?- Nada de especial. Apenas isto: à semelhança de um jovem cavalo de guerra, farejo o sangue.

Esqueceu-se de que omeu pai era militar?Dirigi-me ao jardim, à procura de Louise. A sua preocupação era mais profunda que a minha. Peguei-lhe na mão e conduzi-a ao pavilhão de Verão junto do relvado, onde nos sentámos, como conspiradores.- A tua casa não está em condições de receber ninguém, emuito menos uma pessoa como a contessa... como MistressAshley - declarou imediatamente. - Não posso deixar delhe chamar contessa, parece-me mais natural. Já pensaste quehá mais de vinte anos que não vive lá uma mulher? Em quequarto a instalarias? E lembra-te do pó! Não só no andar decima, mas na própria sala, como notei o outro dia.- Isso não interessa - repliquei, com impaciência. - Elaque limpe o pó, se lhe apetecer um ambiente mais imaculado.Quanto menos lhe agradar, mais satisfeito me sentirei. Que seinteire da vida desregrada que o Ambrose e eu levávamos. Nada parecida com o que se passava naquela villa...- Laboras num erro grave, Philip. Não acredito que queiras parecer um labrego, um ignorante, como um campónio.Colocavas-te em desvantagem ainda antes de trocarem umapalavra. Deves ter presente que ela viveu quase sempre nocontinente, em meios requintados, com muitos lacaios, eaposto que trouxe um guarda-roupa variado e elegante, para nãofalar de jóias e outros adereços, chamemos-lhes assim. O teuprimo decerto teceu tantos encómios à casa que ela esperaráver um ambiente admirável, muito semelhante ao da sua villa.Imaginas o efeito negativo que exerceria uma espécie daBabilónia de desarrumação e lixo?- Desarrumação e lixo? - repeti, enxofrado. - É umacasa de um homem, simples e banal, e queira Deus que não semodifique. Tanto o Ambrose como eu nunca nos preocupámos com esses requintes a que te referes.- Desculpa - proferiu, embaraçada. - Não pretendi melindrar-te. Sabes que adoro a tua casa, mas não podes levar amal que diga o que penso sobre a maneira como é assistida.Não há nada de novo desde longa data, não existe o mínimoconforto...Lembrei-me da sala de estar imaculadamente arrumada edecorada onde estivera com o meu padrinho e reconheci paracomigo que não me desagradaria desfrutar de uma atmosferasimilar em minha casa.- Bem, esqueçamos a minha falta de conforto. Agradavaao Ambrose e agora a mim e, durante os dias (poucos, espero)que se conservar connosco, à minha prima Raquel.- És incorrigível - acusou, meneando a cabeça. - SeMistress Ashley corresponde àquilo que julgo, bastar-lhe-áuma olhadela à casa para procurar refúgio em Saint Austell, ouconnosco.- Veremos.- Vais mesmo atrever-te a interrogá-la? - perguntou,olhando-me com curiosidade. - Por onde começarás?Encolhi os ombros.

- Só o saberei quando a vir. Não duvido de que tentarásair-se airosamente da situação. Ou talvez opte por uma tiradaemocional, com uns borrifos de histeria. Não conseguirá impressionar-me. Assistirei impávido e sereno.- Não acredito que recorra a esses meios. Limitar-se-á a76 / 77entrar e assumir o comando. Não esqueças que deve estar habituada a dar ordens.- Em minha casa, garanto-te que não dará uma única.- Coitado do Seecombe! Gostava de lhe ver a cara. Ela écapaz de lhe atirar coisas se não aparecer imediatamente,quando tocar a sineta. Os Italianos são muito arrebatados, como deves saber. Pelo menos, é o que consta.- Ela é apenas parcialmente italiana - lembrei-lhe - e,de qualquer modo, penso que o Seecombe saberá enfrentá-la.Talvez chova durante três dias consecutivos e seja obrigada aficar de cama com reumatismo.Rimos em uníssono, como crianças, embora não me achasse tão despreocupado como pretendia deixar transparecer.O convite fora lançado ao ar como um desafio e começava aarrepender-me, apesar de me abster de o confessar a Louise.E ainda me arrependi mais quando entrei em casa e olhei à minha volta. Reconheci que cometera uma imprudência e, se nãofosse por uma questão de amor-próprio, creio que teria procurado novamente o meu padrinho, para lhe pedir que não incluísse qualquer pós-escrito a meu respeito quando escrevesseà minha prima Raquel.Como deveria proceder com aquela mulher em minha casa? Que lhe diria, que medidas conviria tomar? Se Rainaldi serevelara plausível, ela sê-lo-ia dez vezes mais. O ataquedirectopoderia não resultar, e que dissera o italiano acerca detenacidade e de mulheres que travavam batalhas? Se a viúva se mostrasse agressiva, ordinária mesmo, eu saberia como fazê-la calar. Mas os modos açucarados, insidiosos, com peitos arfantese olhos de expressão angelical estariam ao alcance da minhacapacidade de contra-ataque? Procurei convencer-me disso.De resto, tinham-se-me deparado alguns casos similares emOxford, e sempre lograra triunfar, com o recurso à linguagemclara e contundente, atingindo mesmo, por vezes, as raias dabrutalidade. Na verdade, consideradas todas as ramificações doassunto, estava persuadido de que a confrontação com a minhaprima Raquel se traduziria numa vitória retumbante dos meusmétodos. Mas, para já, havia que cuidar dos preparativos davisita, a fachada de cortesia antes de recorrer às armas.Não fiquei pouco surpreendido quando vi Seecombe acolher a informação sem desagrado. Parecia até que já aesperava.Expliquei-lhe rapidamente que Mrs. Ashley chegara a Inglaterra, com os bens do meu falecido primo, e era possível quenos fizesse uma breve visita, dentro de uma semana. O lábioinferior não se tornou protuberante, como costumava acontecer quando se lhe deparava um problema, e escutou-me comuma expressão grave.- Perfeitamente, senhor - acabou por articular. - Parece-me uma ideia muito acertada e apropriada. O

pessoal terá omaior prazer em dar as boas-vindas a Mistress Ashley.Olhei-o por cima do cachimbo, divertido com a sua pomposidade.- Julgava que eras como eu e não desejavas a presença demulheres cá em casa. Assumiste uma atitude muito diferentequando te comuniquei o casamento de Mister Ashley e que elapassaria a dar-te ordens.Revelou-se chocado, e desta vez o lábio inferior salientou-se de facto do outro.- Não era a mesma coisa - alegou. - Desde então,aconteceu uma tragédia. A pobre senhora enviuvou. MisterAmbrose desejaria que fizéssemos o que pudéssemos por ela,em especial porque... - tossiu discretamente - parece quenão foi minimamente beneficiada com o seu novo estado.Estranhei que estivesse a par do facto e perguntei-lhe comose inteirara.- É do conhecimento geral - esclareceu. - Mister Ashley deixou-lhe tudo, Mister Philip, e absolutamente nada àviúva. De um modo geral, numa família, importante ou não,existe sempre uma provisão para a esposa enlutada.- Estou admirado contigo - admiti. - Não costumasdar ouvidos a mexericos.- Não se trata de mexericos, senhor - asseverou, comdignidade. - O que diz respeito à família Ashley interessa atodos. Nós, servidores da casa, não fomos esquecidos.78 ? 79Acudiu-me uma visão de ele sentado no seu quarto, rodeado, diante de canecas de cerveja, por Wellington, o velho cocheiro Tamlyn e o chefe dos jardineiros, a comentar pormenores do testamento, que eu supunha secretos.- Não houve qualquer esquecimento - declarei, secamente. - O facto de Mister Ashley se encontrar no estrangeiro, e não no seu país, impossibilitou a introdução de novascláusulas. No fundo, convém ter presente que ele não esperavamorrer em Itália. Se expirasse aqui, tudo se passaria demaneira diferente.- Foi o que nós pensámos - murmurou, diplomaticamente.Enfim, que dissessem o que quisessem acerca do testamento.Por outro lado, porém, eu tentava determinar como reagiria senão tivesse herdado a propriedade. A deferência achar-se-iapresente? O respeito? A lealdade? Ou ver-me-ia reduzido aomenino Philip, um parente pobre, com um quarto situadonum recanto das traseiras da casa? Esvaziei o cachimbo, de súbito desagradável entre os lábios. Perguntei a mim próprioquantas pessoas haveria que gostavam de mim e me serviamdesinteressadamente.- Bem, nada mais de momento, Seecombe - declarei.- Se Mistress Ashley decidir visitar-nos, tratarei de teprevenir com a necessária antecedência. A escolha do quarto ficaráao teu critério.- Mas não lhe parece correcto instalá-la nos aposentosque Mister Ashley ocupava? - argumentou, surpreendido.Olhei-o em silêncio, chocado com as suas palavras. Em seguida, receoso de que o meu estado de espírito se reflectisse

no rosto, voltei-o para o lado.- Não vai ser possível, porque tenciono mudar-me paralá. Aliás, era para te ter dito antes, pois tomei a decisão hádois ou três dias.Era falso, pois a ideia acabava de me ocorrer.- Muito bem, senhor. Nesse caso, o quarto azul e o aposento anexo são os mais apropriados para Mistress Ashley.Afastou-se com uma ligeira mesura e entreguei-me a reflexões.Encafuar aquela mulher no quarto de Ambrose constituiriaum autêntico sacrilégio. Afundei-me na minha poltrona usuale mordi o tubo do cachimbo. Sentia-me irritado e revoltadocom a situação. Fora autêntica loucura enviar aquela mensagem por intermédio do meu padrinho e considerar sequer a visita da mulher a minha casa. Em que demoníaca embrulhadame envolvera? E, ainda por cima, havia Seecombe, com as suasideias do que estava certo ou errado.O convite foi aceite. Ela escreveu uma carta a Nick Kendall e não a mim. O que, como o mordomo decerto não deixaria de pensar, estava certo e apropriado. Como eu não aconvidara directamente, a resposta tinha de seguir pelas viascompetentes. Informava que estaria preparada quando fossejulgado oportuno mandá-la chamar. Comuniquei-lhe, maisuma vez por intermédio do meu padrinho, que enviaria a carruagem na sexta-feira.O dia surgiu com excessiva prontidão, chuvoso, fustigadopor vento forte. A situação meteorológica não era inédita,muito pelo contrário, na terceira semana de Setembro, com asmarés vivas. As nuvens negras percorriam o céu velozmente eprometiam chuva intensa antes de anoitecer. Numa palavra, ocenário próprio da região ocidental do país do princípio doOutono. Nada que se parecesse com o que predominava naparte meridional de Itália. Eu enviara Wellington com a carruagem na véspera e ele pernoitaria em Plymouth, para regressar com a minha prima Raquel. Desde que eu anunciara a visita iminente da viúva, instalara-se uma espécie de agitação nacasa. Os próprios cães se apercebiam disso e seguiam-me deaposento para aposento. Seecombe lembrava-me um velho sacerdote que, após anos de abstinência de todas as celebraçõesreligiosas, voltava subitamente a confrontar-se com o ritualesquecido. Movia-se de um lado para o outro, misterioso e solene, com passos abafados - foi ao ponto de comprar um parde pantufas de sola de borracha -, para transferir de lugardiferentes artigos de prata, alguns dos quais eu via pelaprimeiravez. Calculei que se tratava de relíquias dos tempos do meutio Philip. Candelabros enormes, açucareiros, taças e atéuma saladeira - pelo menos, era o que me parecia - cheiade rosas.- Deste em acólito? - perguntei. - Só faltam o incensoe a água benta.Não se lhe alterou um único músculo do rosto enquantorecuava um passo para olhar as ??relíquias??.- Pedi ao Tamlyn que trouxesse rosas do jardim murado.Os rapazes estão neste momento a seleccioná-las nas traseiras.Vamos precisar de flores na sala de estar, no quarto azul e noboudoir.

Enrugou a fronte ao ver o jovem John, ajudante de cozinha, escorregar, e quase cair, sob o peso de mais um par devolumosos candelabros.Os cães olhavam-me, consternados. Um deles foi esconder-se debaixo de um dos longos bancos do corredor. Resolviir para o piso superior. Não me recordava da última vez queentrara no quarto azul. Nunca recebíamos visitas e achava-seligado, na minha memória, ao jogo das escondidas, num passado remoto, quando Louise acompanhava o pai para passaremo Natal connosco. Lembrava-me de penetrar no aposento silencioso e ocultar-me atrás da cama, no meio do pó. Tinha avaga ideia de Ambrose dizer, uma ocasião, que fora ocupadopela tia Phoebe, a qual se mudara para Kent pouco antes defalecer.Não perdurava o mínimo traço dela. Os rapazes, sob a batuta de Seecombe, tinham trabalhado com afinco, e a tia Phoebe fora varrida com o pó dos anos. As janelas estavam abertas,sobranceiras aos jardins, e de manhã o sol incidia nos tapetesassaz coçados. Lençóis de linho, de uma qualidade desconhecida para mim, guarneciam a cama. O lavatório e respectivo jarro teriam estado sempre no quarto de vestir contíguo? E aquela poltrona? Não me recordava deles, mas na verdade tambémnão conservava a menor recordação da tia Phoebe, que setransferira para Kent antes de eu nascer. Enfim, o que servirapara ela teria igualmente de satisfazer as necessidades daminhaprima Raquel.O terceiro aposento, sob a arcada, que completava a suite,fora o boudoir da tia Phoebe, igualmente submetido a umalimpeza meticulosa e de janelas abertas. Havia um retrato deAmbrose na parede por cima da lareira, pintado na sua juventude, de que eu nem conhecia a existência, e ele provavelmenteesquecera-o há muito. Se procedesse do pincel de um autor derenome, encontrar-se-ia no piso térreo com os outros retratosda família. Tratava-se de uma reprodução a três quartos, e eletinha a espingarda debaixo do braço e segurava uma perdizmorta na mão esquerda. Os olhos fitavam em frente, directamente nos meus, e os lábios esboçavam um sorriso. O cabeloera mais comprido do que eu o recordava. O conjunto nãoapresentava nada de extraordinário. Com uma excepção.O rosto parecia-se singularmente com o meu. Vi-me ao espelho e tornei a concentrar-me no retrato. Cheguei à conclusãode que a única diferença residia na inclinação dos olhos, umpouco mais estreitos que os meus, e na cor mais escura do cabelo. No entanto, poderiam tomar-nos por irmãos, quase gémeos. A súbita descoberta da parecença animou um pouco omeu espírito enevoado. Era como se o jovem Ambrose me dirigisse um sorriso tranquilizador e dissesse: ??Estou a teulado. ?? E o Ambrose mais velho também me parecia muito próximo. Por fim, fechei a porta atrás de mim e dirigi-me para aescada.Ouvi o som de rodas no caminho de acesso à casa. EraLouise, na carruagem, com ramos enormes de margaridas-do-outono e dálias no banco a seu lado.- Para a sala - explicou ao ver-me. - Pensei que o Seecombe ficaria satisfeito.O mordomo, que naquele momento cruzava o átrio, com o

batalhão de subordinados, pareceu ofendido e assumiu umaatitude rígida enquanto ela entrava com as flores.- Não merecia a pena incomodar-se, Miss Louise - articulou ele. - Eu já tinha tratado disso com o Tamlyn. Trouxemos flores em quantidade suficiente do jardim murado.- Então, eu faço os arranjos, antes que os teus homenscomecem a partir vasos. Suponho que há vasos? Ou têm estado a colocar as flores em boiões de compota?O semblante de Seecombe podia considerar-se um estudode dignidade penalizada, e considerei prudente impelir Louisepara a biblioteca, cuja porta fechei.- Julguei que ele gostaria que me ocupasse dos preparativos e estivesse presente quando Mistress Ashley chegar - explicou ela em voz baixa. - O pai não me acompanhou porquenão se sentia bem e, com toda esta chuva, achei preferível queficasse em casa. Que dizes? Fico ou não? As flores não passaram de um pretexto.Sentia-me vagamente contrariado pelo facto de ela e o meupadrinho me julgarem tão incompetente, assim como o velhoSeecombe, que trabalhara como um escravo nos últimos trêsdias.- É uma boa ideia, embora desnecessária - repliquei.- Conseguimos perfeitamente dar conta do recado.Mostrou-se desapontada. Era óbvio que ardia de curiosidade por conhecer a viúva. Abstive-me de referir que não tencionava encontrar-me em casa quando chegasse.Louise observou a sala em volta com uma expressão de crítica, mas não emitiu qualquer comentário. Embora decerto seapercebesse de numerosas lacunas, revelava o tacto suficientepara não as mencionar.- Se quiseres, podes ir lá acima ver o quarto azul - indiquei, para descargo de consciência.- O quarto azul? Não é o que dá para nascente, por cimada sala de estar? Então, ela não fica no de Mister Ashley?- Não, pela simples razão de que o ocupo eu.A insistência com que todos estranhavam que a minha prima Raquel não fosse instalada no quarto de Ambrose começava a arrasar-me a paciência.- Se queres mesmo cuidar das flores, pede ao Seecombeos vasos de que precisares - esclareci, dirigindo-me para aporta. - Tenho uma carrada de coisas para fazer lá fora e estarei ausente a maior parte do dia.Começou a pegar nas flores, sem afastar os olhos de mim.- Acho-te enervado.- Enganas-te. Quero meramente estar só.Corou e desviou a vista, ao mesmo tempo que me acudia orebate de consciência que conhecia sempre que magoava alguém.- Desculpa - murmurei, com uma leve palmada no ombro. - Não faças caso do que digo. Agradeço-te teres vindocom as flores e ofereceres-te para ficar.- Quando voltarei a ver-te, para saber novas acerca deMistress Ashley? Deves calcular que anseio por me inteirarde tudo. É claro que, se o meu pai melhorar, apareceremosna igreja, domingo, mas passarei todo o dia de amanhã amatutar...- A matutar em quê? Receias que atire a minha prima Raquel pela janela? Sou capaz disso se me irritar muito. Paradescanso do teu espírito, fica sabendo que amanhã à tarde passarei por tua casa para proceder a um

relato minucioso dasituação. De acordo?- Combinado - assentiu, com um sorriso, e foi à procura de Seecombe e dos vasos.Ausentei-me durante toda a manhã, para regressar cercadas duas da tarde, com fome e sede, após um longo percurso acavalo. Antes de uma refeição de carnes frias e cerveja,inteirei-me de que Louise se retirara. A seguir, entrei nabiblioteca,sentei-me e reflecti que me encontrava só pela última vez.A noite, ela já estaria debaixo do mesmo tecto, naquele aposento ou na sala, uma presença desconhecida e hostil, dispostaa entranhar a sua personalidade em minha casa. Surgia comouma intrusa no meu lar. Eu não a desejava a meu lado. A elaou a qualquer outra mulher, de olhar perscrutador e indiscreto, a insinuar-se na atmosfera, íntima e pessoal, que só a mimpertencia. O ambiente era sossegado e silencioso, e eu fazia84 ? 85parte dele, pertencia-lhe, como Ambrose, no passado e aindaactualmente. Não precisávamos de ninguém para alterar aquietude.Olhei em volta, quase numa despedida, saí de casa e embrenhei-me no bosque.Afigurava-se-me que Wellington não chegaria com a carruagem e a indesejável passageira antes das cinco, pelo quedecidi conservar-me cá fora até depois das seis. Que aguardassema minha aparição para jantar. Seecombe recebera instruçõesbem claras. Se ela vinha faminta, que contivesse a vontade decomer até à chegada do dono da casa. Suscitava-me um prazerespecial imaginá-la sentada, só, na sala de estar, trajada comostentação, cheia de importância, sem ninguém para a receber.Continuei a caminhar ao vento e à chuva, ao longo da alameda onde as quatro estradas se cruzavam e para leste, em direcção ao limite da propriedade; depois, de novo através dobosque para norte, onde se situavam várias herdades, para medeter a trocar impressões com os caseiros, com a única intenção de gastar tempo. Já estava encharcado até aos ossos, masera-me indiferente.Abri a porta do átrio e entrei em casa. Esperava ver malas,baús, montes de caixas e cestas, mas, como habitualmente, nãose me deparou nada de anormal.A lareira da biblioteca fora acesa, porém não havia ninguém. Na sala de jantar, a mesa estava posta para uma pessoa.Cada vez mais perplexo, toquei a sineta para chamar Seecombe.- Então? - inquiri.Exibia a recuperada expressão de auto-importância, e a vozera abafada quando anunciou:- A senhora já chegou.- Isso já eu calculava, visto que são quase sete horas. Nãotrouxe bagagem? Que lhe fizeram?- A senhora trouxe muito pouca coisa. As caixas e osbaús pertenciam a Mister Ambrose e colocámo-los no seu antigo quarto, senhor.- Ah... - Aproximei-me do lume e dei um pontapé numa acha, empenhado em evitar que ele se apercebesse do tremor das minhas mãos. - Onde está Mistress Ashley?- Recolheu ao quarto. Disse que estava cansada e pediu-me que explicasse a sua ausência ao jantar.

Mandei levar-lheum tabuleiro há cerca de uma hora.O esclarecimento produziu-me indiscutível alívio. No entanto, até certo ponto, constituía uma espécie de anticlímax.- Como decorreu a viagem?- O Wellington diz que a estrada estava péssima a partirde Liskeard e soprava vento quase ciclónico. Um dos cavalosperdeu uma ferradura e houve necessidade de efectuar uma paragem num ferreiro, perto de Lostwithiel.- Hum... - Voltei-me de costas para o lume, a fim de asaquecer, assim como as pernas.- Está encharcado, senhor - observou Seecombe. - É melhor mudar de roupa antes que contraia um resfriado.- É o que vou fazer a seguir - prometi, enquanto olhavaem redor. - Onde estão os cães?- Creio que seguiram a senhora ao quarto. Pelo menos, oDon. Quanto aos outros, não tenho a certeza.Continuei a aquecer as costas e as pernas junto da lareira eo mordomo permanecia à entrada, como se esperasse que eureatasse o diálogo.- Bem, vou tomar banho e mudar de roupa - decidi, porfim. - Diz a um dos rapazes que encha a banheira. Jantareidentro de meia hora.Naquela noite, sentei-me sem companhia para jantar, diante dos candelabros acabados de polir e da saladeira de pratacheia de rosas. Seecombe conservava-se atrás da minha cadeira,mas não falávamos. O silêncio devia constituir uma tortura para ele, naquela ocasião especial, pois eu estava ciente decomoansiava por tecer comentários sobre a recém-chegada. Enfim,que contivesse o ímpeto e despejasse depois o saco na sala dopessoal.Quando acabava de comer, John entrou na sala de jantar emurmurou algo ao mordomo, que se acercou de mim e murmurou:86 ? 87- A senhora manda dizer que, se deseja vê-la quando acabar de jantar, terá muito gosto em recebê-lo, senhor.- Obrigado, Seecombe.Quando se retiraram, fiz uma coisa muito rara em mim somente devido a extrema exaustão, após uma longa cavalgada,por exemplo, ou uma caçada particularmente movimentada.Dirigi-me ao aparador e tomei uma generosa dose de brande.A seguir, subi a escada e bati à porta do pequeno boudoir.Capítulo oitavoUma voz fraca, quase inaudível, convidou-me a entrar.Embora tivesse anoitecido e as velas estivessem acesas, oscortinados permaneciam afastados e ela sentava-se junto do peitoril da janela, a contemplar o jardim. Achava-se de costas paramim, as mãos unidas sobre o regaço. Devia supor que era umdos criados, pois não se moveu quando entrei. Don estava deitado diante do lume, o focinho entre as patas, com os doiscães mais jovens a seu lado. Nada fora alterado, não se via

qualquer gaveta aberta da pequena escrivaninha, nem objectosdispersos pelo chão; em suma, nada de comum com a confusão produzida por uma pessoa recém-chegada de uma viagem.- Boa noite - proferi, e a voz pareceu-me tensa e irreal,no pequeno aposento.Ela voltou a cabeça e pôs-se imediatamente de pé, para seaproximar de mim. Desenvolvia-se tudo tão depressa que eunão dispunha de tempo, nem um mero instante para reflectirsobre as centenas de imagens dela que conjurara durante os últimos dezoito meses. A mulher que me perseguira através denoites e dias, pairara sobre as horas conscientes e perturbaraos sonhos achara-se finalmente diante de mim. A minha primeira sensação foi de choque, quase de estupefacção, por sertão baixa. Quase não me chegava aos ombros. Não tinha nadaque se comparasse com a altura e figura de Louise.Trajava de preto, o que lhe absorvia a cor do rosto, e haviarendas em torno da garganta e dos pulsos. O cabelo era castanho, separado ao meio, com um nó baixo atrás, e as feições irrepreensíveis e regulares. As únicas coisas grandes nela resumiam-se aos olhos, que, ao verem-me, se arregalaram emreconhecimento súbito, surpreendidos, como os de uma gazela; do reconhecimento passaram a confusão e desta a dor, quase apreensão. Vi a cor acudir às faces e tornar a desaparecer,ecreio que constituí um abalo tão profundo para ela como vice-versa. Era difícil determinar qual dos dois estava maisnervoso e menos à vontade.89Olhámo-nos - eu para baixo e ela para cima -, e transcorreu um momento antes que quebrássemos o silêncio.Quando o fizemos, foi simultaneamente.??Espero que tenha descansado", foi a minha contribuição,e a sua ??Tenho de lhe pedir desculpa,?. Fez seguir a minhaabertura das palavras ??Sim, Philip, obrigada", após o que seacercou do lume, sentou-se num banco baixo e indicou-me acadeira em frente. O velho perdigueiro, Don, espreguiçou-se,bocejou e, apoiando-se nas patas posteriores, pousou-lhe a cabeça no regaço.- Suponho que este é o Don? - disse ela, afagando-lhe acabeça. - Já fez de facto catorze anos?- Exactamente. O seu aniversário é uma semana antesdo meu.- Encontrou-o num cesto à hora do pequeno-almoço.O Ambrose espreitava atrás do cortinado da sala de jantar, para lhe observar a reacção quando o abriu. Disse-me que nuncaesqueceria a alegria no seu rosto no momento em que retirou atampa e o Don saltou para fora. Você tinha dez anos e era oprimeiro de Abril.Ergueu os olhos e sorriu-me e, não sem uma ponta de embaraço, vi indícios de lágrimas, prontamente extintos.- Tenho de lhe pedir desculpa por não comparecer ao jantar. Efectuou preparativos só para mim, e decerto regressou acasa antes do que desejava. Mas é que me sentia muito cansadae teria sido uma horrível companheira à mesa. Pareceu-mepreferível para si que jantasse sozinho.

Recordei que me fartara de caminhar pela propriedade, para a obrigar a esperar, mas conservei-me silencioso. Um doscães mais pequenos acordou e pôs-se a lamber-me a mão. Puxei-lhe as orelhas com brandura para me concentrar em alguma coisa.- O Seecombe disse-me que estava ocupado e havia muitoque fazer. Não quero que a minha visita inesperada o desviedas suas obrigações. Posso orientar-me por aí sozinha, e atéterei o maior prazer nisso. Espero que por minha causa nãointroduza qualquer alteração na sua rotina de amanha. Desejoapenas dizer uma coisa. Obrigada por me ter convidado, Philip. Calculo que não deve ter sido fácil para si.Levantou-se e aproximou-se da janela para correr os cortinados. A chuva alagava as vidraças, e reflecti que eu talvezdevesse ter tomado a iniciativa de o fazer. Pus-me igualmente depé, não sem algum embaraço, mas era demasiado tarde parame antecipar. Ela voltou para junto do lume e tornámos a sentar-nos.- Foi uma sensação estranha cruzar o parque em direcçãoà casa, com o Seecombe a aguardar-me à entrada. Era uma cena que eu tinha imaginado diversas vezes, e a realidade não sedesviou dela. O átrio, a biblioteca, os quadros nas paredes.O relógio do campanário bateu as quatro horas no momentoem que a carruagem parou diante da porta. Até esse som mepareceu familiar.Eu entretinha-me a puxar as orelhas do cão, sem me atrever a olhá-la.- Ao serão, em Florença, no Verão e Inverno passadosantes de o Ambrose adoecer, costumávamos falar da viagem deregresso ao lar - prosseguiu ela. - Eram os seus momentosmais felizes. Ele falava-me dos jardins, do bosque e do caminho até ao mar. Tencionávamos vir pelo percurso que utilizei,razão pela qual o fiz. Por Génova e Plymouth. E na carruagem conduzida pelo Wellington no resto da viagem. Foiperspicaz e atencioso da sua parte providenciar nesse sentido, Philip.Apesar de me sentir algo desnorteado, consegui recuperaro uso da fala.- Sei que a viagem não foi agradável, e o Seecombe disse-meque tiveram de parar num ferreiro. Lamento o contratempo.- Não me preocupei com isso. Na verdade, até me sentimuito confortável junto do lume, a conversar com o Wellington, enquanto o homem ferrava o cavalo.As maneiras dela revelavam-se agora mais descontraídas.O nervosismo inicial desaparecera, se porventura se trataradisso. Era-me impossível ter a certeza. Acabei por me convencer de que, se alguém estava em falta, era eu, pois sentia-mesingularmente grande e desajeitado num aposento tão pequeno, com a impressão de que a cadeira que ocupava se destinavaa um anão. Não há nada mais contraproducente para uma pessoa se sentir à vontade do que estar sentado com desconforto,e perguntava-me que espécie de figura seria a minha, encolhido na exígua peça de mobiliário, com os pés enormes pousados no chão e os braços compridos suspensos de cada lado docorpo.- O Wellington indicou-me a casa de Mister Kendall e,por um momento, pensei se seria oportuno e cortês ir apresentar-lhe cumprimentos - continuou. -

Mas era tarde, os cavalos estavam extenuados e eu ansiava por chegar... aqui. - Fezuma breve pausa antes de dizer ??aqui??, e ocorreu-me a possibilidade de pretender referir-se a ??casa" e acabar por seconterno último momento. - O Ambrose descreveu-me tudo minuciosamente, desde o átrio a todos os aposentos vazios. Atétraçou um diagrama de tudo, pelo que creio que poderia percorrê-los todos de olhos fechados. - Fez uma breve pausa.- Agradeço-lhe a gentileza de me conceder esta pequena suite, pois era a que utilizaríamos se o destino não pusessetermoabrupto ao nosso casamento. Queria que você se mudasse parao quarto dele, e o Seecombe explicou-me que já se tinha instalado lá. O seu primo ficaria muito contente se soubesse.- Espero que esteja confortável - articulei. - Creio queninguém voltou a ocupar estas instalações desde que uma familiar, a tia Phoebe, que não conheci, as deixou.- Ela enamorou-se de um cura e partiu para Tonbridge, afim de consolar o coração despedaçado. No entanto, o coraçãorevelou-se obstinado e a paixoneta prolongou-se por vinteanos. Nunca lhe contaram a história dela?- Não.Olhei-a dissimuladamente e vi que fitava o lume, com umleve sorriso, provavelmente por pensar nas desventuras românticas da tia Phoebe. As mãos achavam-se pousadas no regaço.Reconheci para comigo que nunca vira mãos tão pequenas numa pessoa adulta. Eram esguias e estreitas, como as de alguémnum retrato pintado por um velho mestre e deixado inacabado.- Que lhe aconteceu, afinal? - perguntei.- O coração recompôs-se, passadas duas décadas, quandoconheceu outro cura. Mas entretanto ela contava quarenta ecinco anos e via o comboio passar sem que tivesse lugar. Resultado: subiu para a última carruagem. Por outras palavras,casou com ele.- O matrimónio foi feliz?- Não. Ela morreu na noite de núpcias... de comoção.Voltou-se e olhou-me, com um trejeito levemente malicioso nos lábios, e de súbito acudiu-me uma visão de Ambrose acontar-lhe a história, como decerto acontecera, encolhido nacadeira, os ombros trémulos, enquanto ela o olhava precisamente com aquela expressão, contendo a vontade de rir. Nãopude reprimir o impulso. Sorri à prima Raquel, e o ar soleneque persistia no seu olhar dissipou-se, enquanto o sorriso sealargava.- Desconfio que acaba de inventar esse desenlace -- acusei-a, arrependido do meu sorriso.- De modo algum. O Seecombe deve conhecer a história.Pergunte-lhe.- Ele não acharia próprio. - Meneei a cabeça com veemência. - E ficaria chocado se soubesse que você ma revelou.A propósito, esqueci-me de perguntar se lhe trouxe algo paracomer.- Trouxe. Sopa, uma perna de frango e uma fatia de pudim. Estava tudo excelente.

- Como decerto já sabe, não há mulheres entre o nossopessoal doméstico. Ninguém para cuidar de si, arrumar-lhe osvestidos no roupeiro, mas apenas o jovem John ou Arthur para lhe preparar o banho.- Prefiro assim. As mulheres falam pelos cotovelos.Quanto aos meus vestidos, apenas trouxe este e mais um. Fiz-me igualmente acompanhar de sapatos resistentes para percorrer as imediações.- Se amanhã chover como hoje, não poderá sair de casa.A biblioteca está bem abastecida, se desejar ler. Não soumuitodado a leituras, mas espero que encontre obras do seu agrado.Os lábios voltaram a comprimir-se num trejeito malicioso,prontamente rectificado com uma expressão grave.- Se me aborrecer, posso entreter-me a arear as pratas.Não esperava ver uma quantidade tão grande. O Ambrose disse mais de uma vez que a proximidade do mar as afectava.Eu juraria pela sua expressão que suspeitava de que o estendal de relíquias provinha de um armário fechado desde longa data e, por detrás do ar circunspecto, me desfrutava.Desviei os olhos. Sorrira-lhe uma vez, mas poder algum domundo me obrigaria a fazê-lo de novo.- Na villa, quando fazia muito calor, sentávamo-nos à sombra, no pátio em que há uma fonte - prosseguiu. - O Ambrose dizia-me que fechasse os olhos e escutasse a água, paraimaginar que era a chuva daqui. Agarrara-se à teoria de que eumirraria no clima britânico, em particular na humidade daCornualha. Chamava-me flor de estufa, própria apenas paraser cultivada por um perito, absolutamente inútil no solo vulgar. Afirmava que eu tinha crescido na cidade e era, portanto,supercivilizada. Recordo-me de, uma ocasião, ter comparecidoà mesa com um vestido novo e ele queixar-se de que tresandava a Roma. ??Assim, morrias de frio, em casa?,, garantiu-me.??Não poderás fugir da flanela e xaile de lã.?, Não me esquecida advertência e trouxe um xaile.Ergui a vista e verifiquei que, com efeito, havia um, pretocomo o vestido, em cima do banco a seu lado.- Em Inglaterra, sobretudo nesta região, dependemosmuito das condições meteorológicas -. expliquei. - Não háoutro remédio, devido à proximidade do mar. A nossa terranão é muito rica para a agricultura, pelo menos como na partenorte do país. Habituado como estou ao que se passa aqui,creio poder afirmar que amanhã surgirá o .sol e você poderádar um bom passeio.- Assim espero. Até perto do farol e ao longo de TwentyAcres e West Hills.- Sabe os nomes das terras de Barton? - estranhei.- Há mais de dois anos que os conheço de cor.Guardei silêncio por um momento, sem me ocorrer coisaalguma, para replicar. Por fim, aventurei em voz rouca:- E terreno áspero para uma mulher.- Trouxe sapatos resistentes.O pé que surgiu de baixo da longa saia afigurou-se-me inadequadamente preparado para uma longa caminhada, pois envolvia-o uma chinela de veludo.- Refere-se a isso?- É claro que não. Tenho calçado mais forte.

Não consegui imaginá-la a calcorrear os campos, por muito que se mostrasse convencida do contrário.- Sabe montar a cavalo?- Não.- Ou equilibrar-se no dorso de um, se alguém tomar conta das rédeas?- Talvez, mas precisaria de me agarrar à sela com ambasas mãos. Não há uma coisa qualquer chamada maçaneta a queuma pessoa se pode segurar?Formulou a pergunta com gravidade, o olhar dominadopor uma expressão solene, mas convenci-me mais uma vez deque me desfrutava.- Não sei ao certo se há por aí alguma sela de amazona -- articulei com relutância. - Hei-de perguntar ao Wellington,embora não me recorde de ver nenhuma na sala dos arreios.- É possível que a tia Phoebe costumasse andar a cavalo -- observou. - Para se distrair, quando perdeu o cura. Seria asuaúnica consolação.Era inútil insistir. Havia algo de subjacente na voz delaqueme intrigava. E o pior é que me vira sorrir. Desviei mais umavez os olhos e disse:- Está bem. Tratarei disso, de manhã. Quer que diga aoSeecombe que vasculhe os armários para ver se ela tambémdeixou ficar um trajo de equitação?- Não creio que precise dele se você me orientar combrandura e eu me agarrar bem à maçaneta.94 ? 95Naquele momento, o mordomo bateu à porta e entrou,com uma chaleira de prata numa bandeja monstruosa, além deum bule e uma caixa do mesmo metal. Era a primeira vez queeu via aqueles objectos e perguntei-me nas entranhas de quearrecadação os teria descoberto. E com que objectivo os trazia? A minha prima Raquel leu a perplexidade nos meusolhos. Por nada deste mundo me atreveria a ferir a susceptibilidade de Seecombe, que pousou a bandeja na mesa com amaior dignidade, mas acudiu-me uma maré crescente de algosemelhante a histeria, pelo que me levantei e aproximei da janela, com o pretexto de observar a chuva.- O chá está servido, minha senhora - anunciou ele.- Obrigada, Seecombe - proferiu ela solenemente.Os cães ergueram-se, fungando e apontando os focinhos aotabuleiro, sem dúvida tão intrigados como eu. O mordomofez estalar a língua e chamou:- Venham comigo, Don e companhia. Acho convenientelevá-los, minha senhora. Podiam derrubar a bandeja.- Pois sim, Seecombe. Talvez tenha razão.Mais uma vez a inflexão maliciosa subjacente. Congratulei-me por estar de costas para ela.- E quanto ao pequeno-almoço, minha senhora? - volveu Seecombe. - Mister Philip costuma tomá-lo na sala dejantar, às oito horas.

- Preferia tomar o meu no quarto. Mister Ashley¨ diziacom frequência que nenhuma mulher está apresentável antesdas onze da manhã. É muito incómodo?- De modo algum, minha senhora.- Então, obrigada e boa noite.- Boa noite, minha senhora. Boa noite, senhor. Vamos,meninos.Fez estalar os dedos, desta vez, e os animais seguiram-no,embora com relutância. Nos momentos imediatos, imperou silêncio, até que ela perguntou quase num murmúrio:- Toma chá comigo? Sei que é um costume da Cornualha.A minha dignidade extinguiu-se. Aliás, mantinha-a comuma tensão quase insuportável. Voltei para junto do lume esentei-me no banco ao lado da mesa.- Vou confiar-lhe um segredo. É a primeira vez que vejoestes apetrechos.- Calculei isso mesmo pela sua expressão, quando o Seecombe entrou. Creio que ele também nunca os tinha visto. Fazem parte de um tesouro enterrado nas caves.- É mesmo costume tomar chá depois do jantar?- Sem dúvida - assentiu. - Na alta sociedade, quandohá senhoras presentes.- Nunca o fizemos aos domingos, quando os Kendall e osPascoe vêm jantar.- Talvez o Seecombe não os considere membros da altasociedade. Confesso que me sinto lisonjeada. Aprecio muito ochá. Você pode comer o pão com manteiga.Isso também constituía uma inovação. Fatias finas de pãoenroladas como pequenas salsichas.- Não compreendo como se lembraram disto na cozinha,mas o sabor é excelente - admiti, tragando uma.- Alguma inspiração repentina, que decerto se repetirá noseu pequeno-almoço. Olhe que a manteiga está a derreter-se.Aconselho-o a chupar os dedos. - Levou a chávena aos lábios, sem afastar os olhos de mim. - Pode acender o cachimbo, se quiser.- No boudoir de uma senhora? - exclamei, estupefacto.- Tem a certeza? Aos domingos, quando Mistress Pascoevem com o vigário, nunca fumamos na sala de estar.- Não nos encontramos na sala de estar e eu não sou Mistress Pascoe.Encolhi os ombros e puxei do cachimbo.- O Seecombe não aprovará. Há-de notar o cheiro, demanhã.- Abrirei a janela antes de me deitar. Desaparecerá com achuva e o vento.- A chuva entrará e estragará a carpete, o que será piorque o cheiro de tabaco.96 ? 97- Seca-se com um pano - retrucou. - É miudinho comoum velhote.- Supus que as mulheres se preocupassem com essas coisas.- E preocupam-se quando não têm mais nada em quepensar.Enquanto chupava o cachimbo, sentado no antigo boudoir

da tia Phoebe, assolou-me subitamente a suspeita de que aquilo não correspondia de modo algum à maneira como tencionara passar o serão. Tivera em mente umas breves palavras corteses, tanto quanto possível glaciais, e uma despedida abrupta,para que a intrusa ficasse perturbada.Observei-a dissimuladamente. Acabara de tomar o chá epousara a chávena e o pires na bandeja. Apercebi-me maisuma vez das suas mãos, esguias, pequenas e muito brancas, eperguntei-me se Ambrose lhes chamaria citadinas. Usava doisanéis, ambos com pedras valiosas, que não pareciam destoardo luto ou da sua própria personalidade. Congratulei-me porter o fornilho do cachimbo para segurar e o tubo para morder,pois faziam-me sentir mais como eu próprio e menos comoum sonâmbulo, aturdido por um sonho. Havia coisas que eudevia fazer e dizer e, ao invés, permanecia ali sentado comoum pateta diante do lume, incapaz de coordenar as ideias.O dia tão temido chegara ao fim e sentia-me impossibilitadode determinar se me resultara vantajoso ou prejudicial. Se, aomenos, ela possuísse alguma semelhança com a imagem que eucriara, saberia melhor como proceder, mas agora que a tinhana minha frente, em carne e osso, as visões anterioresafiguravam-se-me meras fantasias de um espírito alucinado que se haviam fundido umas nas outras e desaparecido nas trevas.Algures, havia uma criatura amargurada, encarquilhada eidosa, rodeada de advogados, uma Mrs. Pascoe mais possante,de voz incisiva e arrogante, uma boneca mimada petulante,uma víbora sinuosa e silenciosa. Mas nenhuma delas se encontrava comigo naquele aposento. A animosidade parecia agorafútil. Com efeito, como podia eu recear alguém que nem mechegava ao ombro e não possuía nada de notável além de umvelado sentido de humor e mãos pequenas? Teria sido poraquela mulher que um homem participara num duelo e outro,moribundo, me escrevera ??Ela acabou por se desmascarar, Raquel, o meu tormento?,? Era como se eu tivesse soprado umabola de sabão no ar e a visse bailar, até que rebentarasubitamente.Tomei nota no meu íntimo para não tornar a beber brandeapós uma caminhada de mais de quinze quilómetros à chuva,pois o álcool embotava os sentidos e dificultava o raciocínio.Decidira combater aquela mulher e ainda nem sequer esboçarauma escaramuça. Que fora que ela dissera acerca da sela da tiaPhoebe?- Está quase a adormecer, Philip - sussurrou. - Querfazer-me o favor de se levantar e ir para a cama?Abri os olhos com um sobressalto. Ela observava-me comcuriosidade, as mãos pousadas no regaço. Pus-me de pé nãosem certa falta de firmeza e quase derrubei a bandeja.- Desculpe, mas deve ter sido do calor do lume - balbuciei. - Em regra, vou estender as pernas para a biblioteca.- Fez hoje muito exercício, segundo julgo.A inflexão parecia inocente, mas... Haveria um segundosentido nas suas palavras? Enruguei a fronte e olhei-a em silêncio. De resto, não sabia muito bem o que poderia dizer.

- Nesse caso, de manhã, se fizer bom tempo, arranja-meum cavalo manso, para poder visitar as imediações? - lembrou.- Pois sim, se está tão empenhada.- Não precisa de se incomodar. Pedirei ao Wellington queme acompanhe.- Não, irei eu. Aliás, não tenho mais nada que fazer.- Ah, mas não pode ser! Esquecíamo-nos de que é sábado. Não costuma pagar ao pessoal nessa manhã? Fica para aparte da tarde.- Com a breca! - Olhei-a assombrado. - Como sabeque costumo pagar ao pessoal na manhã de sábado?Verifiquei com perplexidade crescente e não pouco embaraço que os seus olhos se tornavam subitamente brilhantes ealgo húmidos, como quando se referira ao meu décimo aniversário. E a voz adquiriu uma dureza singular.- Se não adivinha, tem menos discernimento do que eusupunha. Aguarde um momento, por favor. Trouxe uma coisapara si. - Abriu a porta e passou ao quarto azul contíguo, para reaparecer com uma bengala. - é sua. Pode ver e separartudo o resto mais tarde, mas queria ser eu própria a entregar-lhe isto, esta noite.Tratava-se da bengala de Ambrose. A que sempre usara e àqual se apoiava. A da faixa dourada, com uma cabeça de cãode mármore no castão.- Obrigado - articulei impressionado. - Estou-lhe muito grato.Saí e detive-me, com ela nas mãos. Raquel não me deratempo para me despedir. Não notei qualquer som provenientedo boudoir, e afastei-me lentamente pelo corredor em direcçãoao meu quarto. Pensei na expressão dela quando me entregaraa bengala. Uma ocasião, não muito tempo atrás, vira outrosolhos com a mesma expressão de sofrimento. Também continham reserva e orgulho, aliados a idêntica humilhação, à mesma agonia de suplicação. Quando entrava no quarto de Ambrose, agora meu, e examinava a bengala, reflecti que deviaserporque os olhos eram de cor similar e pertenciam à mesma raça. A parte isso, não possuíam nada de comum - a pedinte namargem do Arno e a minha prima Raquel.Capítulo nonoLevantei-me cedo na manhã seguinte, e logo após o pequeno-almoço dirigi-me ao estábulo e chamei Wellington, com oqual visitei a sala dos arreios.Sim, havia cerca de meia dúzia de selas de amazona entrevárias outras, embora eu nunca tivesse reparado nelas.- Mistress Ashley não sabe montar - expliquei. - Interessa-lhe apenas uma coisa para se sentar e agarrar.- É melhor dar-lhe o Salomão - sugeriu o velho condutor. - Talvez nunca tenha transportado uma senhora, mas nãoa fará cair. É o único cavalo pelo qual ponho as mãos no fogo.Salomão fora domado por Ambrose, alguns anos antes, eagora comportava-se sem margem para reparos. As selas deamazona encontravam-se dependuradas num lugar alto da parede, pelo que Wellington teve de chamar o moço de estrebaria, que, com uma escada, as trouxe para baixo. A escolha damais apropriada consumiu longos minutos. Por fim, optámos

por uma cujo único óbice consistia no aspecto pouco atraente.Recomendei que a polissem devidamente, e a prima Raqueljulgaria que acabava de chegar de Londres.- A que horas deseja a senhora partir? - perguntou Wellington.- Pouco depois do meio-dia, suponho. Traz o Salomãopara a entrada e eu próprio a acompanharei.Em seguida, entrei no escritório, a fim de consultar os livros e determinar a quantia que competia a cada um dos meushomens, antes que se apresentassem para receber. A maneiracomo Wellington dissera ??a senhora?? ficara-me atravessada nagarganta. Seria assim que a consideravam? No fundo, talvezfosse uma reacção natural, conquanto eu não deixasse de estranhar a prontidão com que o pessoal da casa parecia ter-se rendido àquela que continuava a afigurar-se-me uma intrusa.A expressão de reverência nos olhos de Seecombe quandocomparecera no boudoir com o chá e o pousara diante dela e,naquela manhã, fora o jovem John que me servira o pequeno-almoço, porque ??Mister Seecombe foi lá acima com um tabuleiro para a senhora" contribuíam para que a minha inquietação se acentuasse. Debrucei-me sobre os livros, esforçando-mepor afastar do pensamento a realidade de que uma mulherdormira debaixo daquele tecto pela primeira vez desde queAmbrose despedira a minha ama. No entanto, não pude deixarde me recordar, com um estremecimento de pavor, que ela memandara quase maternalmente para a cama, no momento emque o sono começava a vencer-me, no boudoir.Quando, por volta do meio-dia, apareceu o pessoal do serviço externo para receber, reparei que o chefe dosjardineiros,Tamlyn, não se encontrava entre os colegas. Indaguei o motivoe fui informado de que se achava algures com ??a senhora,?.Abstive-me de emitir qualquer comentário, paguei-lhes e retiraram-se. No entanto, tinha uma vaga ideia de onde Tamlyn eRaquel podiam estar. E não me equivoquei. Descobri-os numrecanto da propriedade, onde armazenáramos as camélias,oleandros e outras plantas que Ambrose trouxera das suas viagens.Eu nunca fora perito na matéria - delegava essas funçõesem Tamlyn - e agora, ao dobrar a esquina que antecedia o local, ouvi Raquel falar de enxertos e situação mais favorávelemtermos meteorológicos, enquanto o chefe dos jardineiros escutava com a mesma expressão de reverência que eu notaranos olhos de Seecombe e Wellington. Ao ver-me, ela endireitou-se, com um sorriso.- Estou aqui desde as dez e meia - informou. - Procurei-o para pedir autorização, mas como não o encontrei tiveo arrojo de chamar o Tamlyn para me ajudar. Não é verdade?- perguntou, virando-se para ele.- Com certeza, minha senhora - assentiu o interpelado,com olhos de carneiro mal morto.- É que eu trouxe para Plymouth, onde ficaram por nãocaberem na carruagem, mas chegarão por portador especial,todas as plantas que o Ambrose e eu adquirimos nos últimosdois anos. Tenho a lista comigo, com a indicação dos lugares

em que ele as desejava, e pensei que pouparia tempo se trocasse já impressões com o Tamlyn sobre o assunto. Com efeito,talvez tenha partido quando o portador chegar.- Não tem importância - declarei, magnânimo. - Vocêsentendem dessas coisas muito mais do que eu. Continuem,por favor.- Já terminámos, não é assim, Tamlyn? Não se esqueça deagradecer a Mistress Tamlyn o chá que me ofereceu, e esperoque a irritação na garganta lhe passe depressa.- Obrigado, minha senhora - murmurou o chefe dosjardineiros, que em seguida se voltou para mim. - Aprendialgumas coisas esta manhã, Mister Philip - revelou, com umaponta de desafio na voz. - Confesso que nunca espereiaprender nada de uma senhora. Pelo menos, no que se refere àminha profissão. Mistress Ashley sabe de jardinagem muitomais do que eu. Fez-me sentir totalmente ignorante.- Não diga disparates - obtemperou ela. - Só perceboum pouco de árvores e arbustos. Lembre-se de que ainda nãome mostrou o jardim murado. Fica para amanhã.- Quando desejar, minha senhora.Tamlyn ficou entregue às suas plantas e encaminhámo-nospara a casa.- Se tem andado por aí desde as dez da manhã, deve precisar de descansar - observei. - Vou dizer ao Wellington quenão sele o cavalo.- Descansar? Que ideia! Estou ansiosa por dar uma voltaa cavalo e nada me fará desistir. Não quero perder esta manhã sem chuva e com algum sol. É o Wellington que meacompanha?- Não, eu. E previno-a desde já do seguinte: talvez dê lições sobre camélias ao Tamlyn, mas não conseguirá fazer omesmo comigo no que se refere a equitação e agricultura.- Sei distinguir o trigo da cevada - aventurou, em tomaparentemente submisso. - Isso não o impressiona?- Nem um átomo. De resto, não encontrará nem um nemoutro, porque já terminámos a safra deste ano.Quando entrámos em casa, descobri que Seecombe serviraum almoço frio de carne e salada na sala de jantar, com tartesepudins, como se fôssemos sentar-nos para comer. Raquelolhou-me com uma expressão solene, por detrás da qual pressenti uma réstia de malícia.- Você é jovem e ainda não acabou de crescer - salientou. - Coma e esteja grato à Providência. Guarde um pedaçode tarte na algibeira e eu pedir-lho-ei quando estivermos nosmontes. Entretanto, vou lá acima vestir-me apropriadamentepara montar.??Pelo menos?,, cogitei, enquanto atacava a carne fria comconsiderável apetite, ??não exige que a sirvam nem pareceesperar atenções especiais, e possui um espírito de independênciaindiscutível. O único inconveniente é que a minha atitude, queeu tencionava tornar encorajadora de iniciativas, nãoexerce o menor efeito. O meu sarcasmo foi encarado como

jovialidade.,?Eu acabara de comer quando Salomão foi levado para a entrada, e verifiquei que o velho e possante cavalo sofrera umtratamento ímpar na sua existência. Até as ferraduras tinhamsido polidas, atenção que nunca fora concedida ao meu Cigano.Fui comunicar a Seecombe que deveríamos regressar depois das quatro e, quando voltei a sair, Raquel já descera doquarto e estava equilibrada no dorso de Salomão, enquantoWellington lhe ajustava o estribo. Ela mudara de vestido, também de luto, e, em vez de chapéu, cobrira a cabeça com o xaile, preso com um alfinete debaixo do queixo. Naquele momento, conversava com Wellington, de perfil para mim, e, porqualquer razão indeterminada, lembrei-me do que dissera navéspera acerca do comentário jocoso de Ambrose, que a acusara de tresandar a Roma. Julguei compreender ao que se referira. As suas feições recordavam as gravadas numa moeda romana, bem vincadas, porém pequenas. E agora, com o xaile àcabeça, fazia-me pensar nas mulheres que vira ajoelhadas naCatedral de Florença ou dissimuladas às entradas das casas silenciosas. Empertigada na sela, tornava-se difícil acreditarqueera baixa no chão. A mulher que eu considerava banal, à parteas mãos, expressão mutável do olhar e riso que uma vez lhenotara na voz, assumia um aspecto diferente, agora que se encontrava sentada acima de mim. Dir-se-ia mais distante, maisremota e mais... italiana.Ouviu os meus passos e voltou-se - e tudo desapareceu: aexpressão distante que dominara a fisionomia em repouso.Agora, reassumira a aparência inicial.- Está pronta? - perguntei. - Ou tem medo de cair?- Deposito a minha confiança em si e no Salomão.- Muito bem. Vamos.Peguei na brida e partimos para a digressão às terras deBarton.O vento do dia anterior abrandara sensivelmente e o céuapresentava-se agora quase limpo. Pairava uma certa maresiana atmosfera e ouvia-se a rebentação do mar ao longe. Aqueletipo de tempo era frequente no Outono.A nossa peregrinação era de algum modo estranha. Começámos por visitar as terras de Barton, e tive de desenvolveresforços para impedir Billy Rowe e a esposa de nos convidarema entrar em sua casa, para tomar chá.As chamadas terras de Barton formavam uma espécie depenínsula, com os campos do farol na extremidade mais afastada e o mar a constituir baías, a leste e oeste, em cadalado.Como eu referira a Raquel, o trigo fora levado na suatotalidade, pelo que podia conduzir Salomão por onde quisesse, sem orisco de produzir estragos. Chegámos assim às proximidadesdo farol, de onde, virando-se para trás, ela tinha ensejo decontemplar toda a propriedade, limitada, na parte ocidental,pela longa extensão de areal da baía e, cinco quilómetros paraoriente, pelo estuário. A herdade Barton e a própria casa - amansão, como Seecombe lhe chamava - situavam-se numa espécie de pires, porém as árvores

plantadas por Ambrose e omeu tio Philip já apresentavam uma altura e espessura apreciáveis, para proporcionarem mais abrigo ao edifício, e, paranorte, a nova alameda atravessava o bosque e seguia pela encostasuave em direcção à encruzilhada das quatro estradas.Recordando-me da conversa da véspera, tentei testar Raquel acerca dos nomes dos campos de Barton, mas não consegui apanhá-la em falso, pois conhecia-os todos. E a memóriatambém não a traiu quando começou a mencionar as outrasherdades da propriedade, com as identidades de quem asocupavam.- De que acha que o Ambrose e eu conversávamos mais? -- acabou por perguntar quando descíamos da colina do farol para os campos a leste. - Isto era a sua paixão, pelo que o tornei também na minha. Não desejaria que a sua eventual esposafizesse o mesmo?- Como não sou casado, não me posso pronunciar - repliquei secamente. - Em todo o caso, pensei que, como viveusempre no continente, os seus interesses seriam inteiramentediferentes.- E eram, até conhecer o Ambrose.- À excepção da jardinagem.- À excepção da jardinagem - concordou. - Aliás, foiassim que tudo principiou, como ele decerto lhe revelou.O meu jardim na villa era adorável, mas isto... - Fez umapausa e puxou as rédeas, enquanto eu conservava a mão nabrida - isto corresponde ao que sempre desejei ver. É diferente. - Conservou-se silenciosa por uns instantes, com oolhar fixo na baía. - Na villa, quando eu era jovem e recém-casada (não me refiro ao Ambrose), não me sentia muito feliz, pelo que me distraía com as plantas, procedendo a enxertias e outras actividades do género. Li muitas obras daespecialidade, com resultados altamente compensadores. Dequalquer modo, era o que eu supunha e me diziam. Não seiqual seria a sua opinião.Ergui os olhos para a observar. Tinha o perfil voltado parao mar, alheia ao meu exame. Que quereria dizer? Porventura omeu padrinho não lhe comunicara que eu visitara a villa?Acudiu-me uma ponta de desconfiança. Evoquei a sua serenidade da véspera, após o nervosismo inicial, assim como afacilidade com que a conversa se desenrolara, o que, ao recordá-la durante o pequeno-almoço, atribuíra à sua composturasocial e minha apatia por efeito do brande que ingerira.Afigurava-se-me agora estranho que não tivesse feito a menor alusãoà minha visita a Florença e, sobretudo, à maneira singular como me inteirara da morte de Ambrose. Dar-se-ia o caso de omeu padrinho haver omitido essa faceta da situação, para queeu me incumbisse de a elucidar? Amaldiçoei-o intimamentepelo inqualificável gesto de cobardia, embora, ao mesmo tempo, reconhecesse que o cobarde agora era eu. Na noite anterior, com o brande a encorajar-me, não sentiria rebuço em ainformar, mas presentemente o empreendimento apresentava-se-me muito mais difícil. Ela ficaria intrigada por não terfalado antes. O momento era o mais indicado, evidentemente, para anunciar: ??Na realidade, conheço os jardins da VillaSangalletti. Não sabia?" No entanto, Raquel agitou as rédeas e

Salomão reatou a marcha.- Podemos ir até ao moinho e atravessar o bosque para ooutro lado? - perguntou.A oportunidade perdera-se e encaminhámo-nos para casa.Enquanto avançávamos através do bosque, ela emitia comentários ocasionais acerca de árvores, a sequência de colinas ouqualquer outra característica, mas para mim a descontraçãoda tarde dissipara-se, pois, de uma maneira ou de outra,necessitava de lhe falar da minha visita a Florença. De contrário,inteirar-se-ia por intermédio de Seecombe ou do meu padrinho,quando comparecesse para jantar, no domingo. Tornei-me menos comunicativo à medida que nos aproximávamos de casa.- Cansei-o - observou ela. - Tenho permanecido na sela, importante como uma rainha, enquanto você percorre quilómetros, ao estilo de um peregrino. Perdoe-me, Philip, mas afelicidade que sinto fez-me esquecer outras realidades. Nemimagina como estou feliz.- Não estou cansado - repliquei -, e alegra-me que desfrutasse com o passeio.Wellington aguardava-nos e ajudou-a a desmontar. Raquelsubiu ao quarto, a fim de repousar um pouco antes do jantar,e eu sentei-me na biblioteca, enrugando a fronte por cima docachimbo e perguntando-me como demónio lhe falaria de Florença. O pior de tudo era que, se o meu padrinho a tivesseelucidado na sua carta, competiria agora a ela abordar oassunto em primeiro lugar, enquanto eu permaneceria descontraído,à espera do que dissesse. Assim, a iniciativa devia partir demim. Mas mesmo isso careceria de importância especial se setratasse da mulher que eu antevira. Por que tenebrosa razãotinha de ser tão diferente e transtornar os meus planos profundamente?Lavei as mãos, mudei de casaco para jantar e meti na algibeira as duas cartas que Ambrose me escrevera, mas quandoentrei na sala, esperançado em vê-la sentada no sofá ou numapoltrona, encontrei-a deserta. Seecombe, que passava naquelemomento no corredor, informou-me de que ??a senhora?, estava na biblioteca.Agora, que não se sentava na sela acima de mim e se desembaraçara do xaile, parecia ainda mais baixa que anteriormente, mais indefesa. E também mais pálida, o que proporcionava a ilusão de que o luto era mais carregado.- Importa-se que me sente aqui? A sala é encantadora durante o dia, mas agora, à noite, com os cortinados corridos eas velas acesas, este aposento parece mais confortável. Deresto, era onde você e o Ambrose se instalavam sempre.Talvez fosse aquela a minha oportunidade para dizer:??É verdade. Não há nada como isto na villa.,? Ao invés, conservei-me calado, e a aparição dos cães naquele momentoconstituiu uma diversão. Prometi a mim mesmo que falaria aseguir ao jantar, e até lá não beberia vinho do Porto nembrande.À mesa, Seecombe colocou-a à minha direita e ele e Johnincumbiram-se de nos servir. Raquel admirou a ??saladeira??com rosas e os candelabros e conversava com o mordomo, enquanto ele ia velando pelas nossas necessidades e eutranspirava com receio de que ele pronunciasse algo como ??Isso passou-se, minha senhora, quando Mister Philip se encontrava em

Itália??.Foi com profundo alívio que vi a refeição chegar ao fim evoltámos a ficar sós, embora isso me acercasse mais da minhatarefa. Sentámo-nos diante do lume da biblioteca e Raquel puxou de um trabalho de renda de que se fizera acompanhar, enquanto eu observava a destreza das pequenas mãos.- Diga-me o que o preocupa - solicitou, transcorridosalguns minutos. - Sei que tem alguma coisa, pressinto-o.O Ambrose observava que eu possuía um instinto animal paraantever problemas, e é o que me acontece neste momento. Naverdade, noto-lhe algo de diferente desde esta tarde. Dissealguma coisa que o contrariasse?Pronto. A bola fora posta a rolar. Ao menos, proporcionava-me uma jogada fácil.- Não disse nada que me contrariasse, mas proferiu determinadas palavras que me intrigaram - repliquei. - Pode revelar-me o conteúdo da carta que Nick Kendall lhe escreveupara Plymouth?- Com certeza. Agradecia a minha e explicava que ambosconheciam os factos relacionados com a morte do Ambrose, oSignor Rainaldi lhe enviara cópias da certidão de óbito e outros documentos e você me convidava a passar uns dias aqui,até eu traçar planos para o futuro. Sugeria mesmo que seguissepara Pelyn no final da minha visita, o que considerei uma gentileza especial.- Nada mais?- Só isso. Era uma carta muito breve.- Não fazia a mínima alusão à minha viagem ao estrangeiro?- Não.- Então, compreendo. - Senti-me corar com intensidade,enquanto ela voltava a concentrar-se no trabalho de renda.Após uma pausa, acrescentei: - O meu padrinho cingiu-se àverdade ao referir que ele e o pessoal da casa tomaram conhecimento da morte do Ambrose através de Rainaldi. Mas o meucaso foi diferente. Inteirei-me em Florença, na villa, porintermédio dos seus criados.Ergueu a cabeça e olhou-me com curiosidade. Desta vez,não havia vestígios de lágrimas nos olhos, nem sugestão demalícia na expressão. O olhar era perscrutador, e pareceu-meler nele compaixão e censura.- Esteve em Florença? - perguntou. - Quando, háquanto tempo?- Voltei há cerca de três semanas. Fui e vim pela França.Passei apenas uma noite em Florença. A de quinze de Agosto.- De quinze de Agosto? - Apercebi-me da nova inflexãona voz dela, enquanto enrugava a fronte para esquadrinhar amemória, sem dúvida. - Mas eu tinha partido para Génovana véspera. Não é possível.- É possível e verdade - asseverei. - Foi o que aconteceu.O trabalho de renda deslizou-lhe das mãos, e a expressãoestranha, quase de apreensão, reapareceu nos olhos.- Porque não me disse? Porque me deixou permaneceraqui, nesta casa, vinte e quatro horas sem pronunciar umaúnica palavra a esse respeito? Devia ter-mo revelado ontemà noite.- Pensava que sabia, pois pedi ao meu padrinho que a informasse na carta. De qualquer modo, agora

ficou a saber.Uma fibra de cobardia num recanto do meu ser acalentavaa esperança de que o assunto terminasse aí, mas tal não aconteceu.- Você esteve na villa - articulou, como se falasse paraconsigo. - Suponho que conversou com o Giuseppe. Aoabrir o portão e vê-lo, deve ter pensado... - Interrompeu-se,o olhar enevoou-se e voltou a cabeça para o lume. - Explique-me o que aconteceu, Philip.Introduzi a mão na algibeira e os dedos pousaram nascartas.- Havia muito tempo que não tinha notícias do Ambrose,desde a Páscoa ou talvez desde o Pentecostes... Não me recordo da data exacta, mas tenho todas as cartas lá em cima.Estavacada vez mais preocupado, à medida que as semanas passavam.Até que, em Julho, chegou uma. Apenas uma página. Uma série de garatujas, coisa que nem parecia dele. Mostrei-a ao meupadrinho, o qual concordou que eu devia seguir para Florença,como fiz um ou dois dias mais tarde. No momento da partida,veio outra carta, muito resumida e seca. Tenho ambas aqui, nobolso. Quer vê-las?Não respondeu imediatamente. Achava-se de costas para alareira e voltava a olhar-me com curiosidade. Naqueles olhoshavia algo de compulsivo, nem arrogante nem autoritário, masestranhamente profundo, terno, como se dispusesse do poderde detectar e compreender a minha relutância em continuar,consciente do motivo, o que a levava a urgir que prosseguisse.- De momento, não. Depois.Transferi a minha atenção dos olhos para as mãos, unidasna sua frente, aparentemente mais pequenas que nunca, imóveis. Afigurava-se-me mais fácil falar sem a olhardirectamente.- Quando cheguei a Florença, aluguei uma carrozza e dirigi-me para a villa. Acudiu uma mulher a abrir a porta e perguntei pelo Ambrose. Pareceu assustada e chamou o marido, oqual me comunicou que o meu primo tinha morrido e vocêpartido. A seguir, mostrou-me a residência e entrei no quartoonde o Ambrose faleceu. Quando me retirava, ela abriu umaarca, de onde tirou o chapéu dele, que me entregou. Era a única coisa que você se tinha esquecido de levar consigo.Calei-me, sem desviar os olhos dela. Os dedos da mãodireita pousavam na aliança da esquerda e vi que exerciampressão.- Continue - solicitou.- Voltei para Florença. Giuseppe tinha-me dado o endereço de Rainaldi e fui procurá-lo. Pareceu surpreendido de mever, mas recompôs-se com prontidão. Descreveu pormenoresda doença e morte do Ambrose e forneceu-me indicações paravisitar o cemitério protestante, mas não o fiz. Quando ointerroguei sobre o seu paradeiro, Raquel, alegou que o ignorava.Nada mais. No dia seguinte, iniciei a viagem de regresso acasa.Registou-se nova pausa. Os dedos aliviaram a pressão naaliança.

- Posso ver agora as cartas?Extraí-as da algibeira e entreguei-lhas. Volvi os olhos parao lume e ouvi o ruído produzido pelo papel quando ela o desdobrava. Seguiu-se um longo silêncio. Por fim, perguntou:- Só estas duas?- Só estas duas - confirmei.- Disse que não recebeu qualquer outra depois da Páscoaou do Pentecostes?- Exacto.Creio que as leu e releu várias vezes até as saber de cor.Por último, devolveu-mas, ao mesmo tempo que pronunciavaem tom pausado:- Como me deve ter odiado...Ergui os olhos, surpreendido, e afigurou-se-me que ela conhecia todas as minhas fantasias, todos os meus sonhos, e via,um a um, os rostos das mulheres que eu conjurara ao longodaqueles meses. Negar resultaria inútil, e protestar absurdo.As barreiras tinham sido baixadas. Era uma sensação singular,como se estivesse sentado, desnudo, diante dela.- É verdade - murmurei.Era mais fácil, depois de dito. ??Talvez seja assim que umcatólico se sente após a confissão??, reflecti. ??Um pesoretiradodos ombros e substituído por uma impressão de vazio."- Porque me convidou para o visitar?- Para a acusar.- De quê?- Não sei bem. Talvez de desgostar o Ambrose, o que sepoderia considerar homicídio, atendendo ao estado do seu coração.- E depois?- Não tinha traçado planos a mais longo prazo. Queria,sobretudo, fazê-la sofrer. Assistir ao seu sofrimento. Depois,énatural que a deixasse partir.- Seria muito generoso de sua parte. Mais do que eu merecia. Mesmo assim, foi bem sucedido. Conseguiu o que queria. Vigiou-me até à saciedade.Operava-se uma transformação qualquer nos seus olhos.O rosto estava pálido, quase lívido, e imóvel, como até ali.Seeu dispusesse de poderes, ou insensibilidade, para o reduzirapó com o pé, os olhos perdurariam, com as lágrimas que nunca deslizavam para as faces.Levantei-me e cruzei a sala.- É inútil - desabafei. - O Ambrose sempre disse queeu daria um péssimo militar. Não posso fazer fogo a sangue-frio. Por favor, vá lá para cima ou qualquer lugar menosaqui.A minha mãe faleceu numa data que não consigo recordar, enunca vi uma mulher chorar. - Abri a porta, porém ela continuou sentada junto do lume, sem efectuar o mínimo movimento. - Vá lá para cima, prima Raquel.Não sei como a minha voz soava - áspera ou mesmo elevada e ríspida -, mas o velho Don, deitado

no chão, ergueu acabeça, olhou-me, como que intrigado, acabou por se espreguiçar e bocejar e voltou a estender-se diante da lareira. Elamoveu-se finalmente. Baixou a mão e tocou na cabeça do cão.Fechei a porta, peguei nas duas cartas e atirei-as ao lume.- Não servem de nada, uma vez que nos recordamos doque ele escreveu - observou ela.- Posso esquecê-lo, se você também o fizer. O fogo temalgo de limpo. Não subsiste nada. As cinzas não contam.- Se você fosse um pouco mais velho ou a sua vida tivessesido diferente ou ainda se se tratasse de outra pessoa e não oamasse tanto, eu podia falar-lhe destas cartas e do Ambrose.Mas não o farei. Prefiro que me condene. A longo prazo, torna a situação mais fácil para ambos. Se me deixar ficar atésegunda-feira, partirei logo a seguir e não necessitará depensarmais em mim. Embora você não os planeasse assim, a noite deontem e o dia de hoje foram muito felizes. Que Deus o abençoe, Philip.Espevitei o lume com a biqueira da bota e algumas brasasdesprenderam-se.- Não a condeno. Nada funcionou como eu tinha pensado ou planeado. Não posso continuar a odiar uma mulher quenão existe.- Mas eu existo.- Não é a mulher que eu detestava. A questão cinge-se aisso.Ela continuou a afagar a cabeça de Don, que naquele momento a ergueu e apoiou no seu joelho.- Essa criatura que concebeu na mente assumiu formaquando leu as cartas ou antes?Ponderei a pergunta por uns instantes. De súbito, reveleitudo numa torrente de palavras. Para quê guardar algo paramim e deixá-lo apodrecer?- Antes - declarei com firmeza. - Fiquei, de certo modo, aliviado quando as cartas chegaram. Forneceram-me ummotivo para a odiar. Até então, não tinha nada em que me basear, o que me envergonhava.- Envergonhava, porquê?- Porque estou convencido de que não existe nada demais autodestrutivo e nenhuma emoção tão desprezível comoa inveja.- Tinha inveja?...- Sim, agora posso dizê-lo, por muito que me custe. Desde o princípio, quando ele escreveu para anunciar o casamento. É mesmo possível que antes disso houvesse uma espécie desombra, não sei... Todos esperavam ver-me tão encantado co mo eles, e não era possível. Deve parecer-lhe altamente emocional e absurdo que experimentasse semelhante estado de espírito. Como uma criança mimada. No fundo, talvez fosse,sou, isso mesmo. O caso é que nunca conheci nem estimeininguém como o Ambrose.Eu começava a pensar em voz alta, sem me preocupar como que ela considerasse a meu respeito. Traduzia coisas por palavras que até então não admitira a mim próprio.- Não seria também a situação dele? - observou.- Não compreendo.

Retirou a mão da cabeça de Don e, pousando o queixo nasmãos abertas e inclinadas para cima, com os cotovelos nosjoelhos, fixou o olhar no lume.- Tem apenas vinte e quatro anos, Philip, e toda a vida àsua frente, provavelmente muitos anos de felicidades, casadosem dúvida, com a esposa amada e filhos. O seu afecto peloAmbrose nunca diminuirá, mas recuará para o lugar que lhecompete. O amor de qualquer filho por qualquer pai. Não eraesse o caso dele. O matrimónio surgiu demasiado tarde.Pousei um joelho no chão diante da lareira, para acender ocachimbo. Desta vez, não pedi autorização para fumar, por saber que não se importava.- Porquê demasiado tarde? - inquiri.- Tinha quarenta e três anos, há apenas dois, quando chegou a Florença e nos vimos pela primeira vez. Você conhecia oseu aspecto, o modo de falar, as maneiras, o sorriso.Representava a sua vida desde a infância. Mas não podia saber o efeitoque exerceu numa mulher cuja vida não fora feliz e conhecerahomens... muito diferentes.Conservei-me calado, embora julgasse compreender o sentido das suas palavras.- Não sei porque se interessou por mim, mas a verdade éque isso aconteceu. Essas coisas nunca se podem explicar:acontecem. A razão pela qual esse homem veio a amar estamulher, que estranha reacção química no nosso sangue nosatraiu, torna-se impossível de determinar. Para mim, só,ansiosa e sobrevivente de numerosos naufrágios emocionais, surgiucomo um salvador, a resposta a uma prece. Nunca se me deparara uma pessoa forte como ele e, ao mesmo tempo, terna,desprovida de presunção pessoal. Foi uma revelação. Sei o queconstituiu para mim. Mas eu para ele...Fez uma pausa e enrugou a fronte, sem desviar os olhos dolume. Os dedos voltaram a fazer rodar a aliança na mão esquerda.- O Ambrose era como alguém que acorda subitamentede um sono profundo e repara pela primeira vez em todas ascoisas belas do mundo. E nas tristes, também. Na fome e nasede. Tudo aquilo em que nunca pensara nem imaginara queexistisse encontrava-se na sua frente e concentrava-se eampliava-se numa mulher, que quis o acaso, ou o destino, chame-lheo que quiser, que fosse eu. Rainaldi (que ele detestava,diga-sea talhe de foice) afirmou que despertara para mim como algumas pessoas para a religião. Tornou-se obcecado, do mesmomodo. Mas quem mergulha na religião pode entrar para ummosteiro e orar todo o dia perante o altar da Virgem Maria,imagem de barro ou pedra imutável. As mulheres não são as sim, Philip. Os seus estados de espírito variam com os diaseas noites, às vezes até com as horas, como os dos homens.So mos humanos, o que constitui a nossa imperfeição.Não entendi a passagem sobre a religião. Apenas me ocorria o velho Isaías, da Igreja de St. Blazey, que se tornarameto dista e passeava pelos campos, descalço, a predicar.Invocava

Jeová e proclamava que ele e todos nós éramos míseros pecadores aos olhos do Senhor e devíamos acudir às portas de umanova Jerusalém. Na realidade, não vislumbrava como esse estado de coisas se aplicava a Ambrose. No entanto, os católicoseram diferentes, sem dúvida. Raquel devia querer dizer que elea encarara como uma imagem gravada nos Dez Mandamentos.Não te curvarás perante eles, nem os adorarás.- Quer dizer que ele esperava excessivamente de si? -- perguntei. - Colocou-a numa espécie de pedestal?- Não. Eu teria acolhido com satisfação um pedestal, de pois da minha vida rude. Uma auréola pode ser uma coisamuito agradável, desde que consigamos tirá-la, de vez emquando, para nos tornarmos humanos.- Então, que se passou?Suspirou e as mãos deslizaram para os lados do corpo. Parecia repentinamente extenuada. Reclinou-se na cadeira e,pousando a cabeça no espaldar, fechou os olhos.- O facto de encontrar a religião nem sempre melhorauma pessoa. Assim, despertar para o mundo não serviu de nada ao Ambrose. A sua natureza modificou-se.A voz também parecia cansada e estranhamente átona. Erapossível que, se eu falara no confessionário, ela igualmente o.fizera. Continuou reclinada no espaldar e levou a mão à fronte, para pousar os dedos nas pálpebras.- Modificou-se? - estranhei. - Como se lhe alterou anatureza?- Os médicos explicaram-me mais tarde que se deveu àdoença, não o pôde evitar, e qualidades adormecidas até entãotinham acabado por aflorar, através da dor e do medo. Masnunca terei a certeza do que na verdade aconteceu. Nunca mecertificarei do que necessitava de ter sucedido. Algo em mimestimulou essas qualidades. A minha aparição na sua vida representou o êxtase por um breve momento e depois a catástrofe. Você teve razão ao odiar-me. Se o Ambrose não visitasse aItália, talvez continuasse a viver aqui consigo, nestemomento.Não morreria naquela altura.Sentia-me cada vez mais envergonhado, embaraçado, semsaber que dizer.- Podia ter adoecido igualmente - aventurei, como sepretendesse acudir em seu auxílio. - O peso da culpa repousaria agora nos meus ombros e não nos seus.Retirou a mão da fronte e, sem mover a cabeça, olhou-mee declarou:- Ele amava-o muito. Você podia ter sido o seu filho, talo orgulho que lhe consagrava. Era sempre o meu Philip fariaassim, o meu rapaz faria assado. Se teve ciúmes de mim nestesúltimos dezoito meses, estamos quites. Deus sabe como eudispensaria de bom agrado as alusões constantes a seurespeito.Observei-a por um momento e sorri.- Também conjurou imagens?- Quase sem interrupção. ??Aquele menino mimado, sempre a escrever-lhe cartas de que o Ambrose me lê passagens,

mas nunca mostra,?, pensava com frequência. ??Só tem virtudese nenhum defeito. O menino que o compreende, quando eunão consigo. Que possui três quartos do seu coração e todasas atenções, enquanto para mim ficam um quarto e a partepior do seu carácter.?, Oh, Philip... - Interrompeu-se econseguiu tentar um sorriso. - Você fala de inveja, ciúme. A invejade um homem é como a da criança, caprichosa e insensata,sem profundidade. A de uma mulher é adulta, portanto muitodiferente. - Ajeitou a posição da almofada sob a cabeça e empertigou-se. - Acho que já falei demasiado, por uma noite. -- Inclinou-se para a frente e recolheu o trabalho de renda quedeslizara para o chão.- Não estou cansado - repliquei. - Podia continuaraqui horas e horas. Não a falar, entenda-se, mas a escutá-la.- Ainda resta o dia de amanhã.- Porquê só amanhã?- Porque parto na segunda-feira. Vim para passar apenaso fim-de-semana. O seu padrinho convidou-me para uma estada em Pelyn.Parecia-me absurdo, e a todos os títulos injustificado, quese transferisse de poiso tão cedo.- Não necessita de se mudar para lá, quando acaba apenasde chegar - objectei. - Dispõe de muito tempo para visitarPelyn. Ainda nem viu metade da propriedade. Nem queroimaginar o que o pessoal doméstico ou os caseiros pensariam.Ficavam, pelo menos, melindrados.- Acha?- De resto, convém não esquecer o portador das plantas erebentos proveniente de Plymouth. Tem de discutir o assuntocom o Tamlyn. E há as coisas do Ambrose para examinar e separar.- Julgava que era capaz de se encarregar disso sozinho.- Para quê, se o podemos fazer ambos?Levantei-me e estendi os braços acima da cabeça. Em seguida, toquei em Don com a biqueira da bota.- Acorda. São horas de parares de roncar e ires para o canil com os outros. - Espreguiçou-se igualmente e emitiu umaespécie de grunhido. - Madraço. - Volvi os olhos para Raquel e vi que me observava com uma expressão estranha, quasecomo se, através de mim, olhasse outra pessoa. - Que se passa? - perguntei.- Nada. Absolutamente nada. Pode procurar uma vela ealumiar-me até ao quarto?- Está bem. Levarei depois o Don ao canil.Os castiçais encontravam-se à nossa espera em cima da mesa junto da porta. Raquel pegou num e eu acendi a vela.O átrio achava-se às escuras, mas em cima, no patamar, Seecombe deixara luz para o respectivo corredor.- Isto basta - declarou ela. - Posso seguir para o quartosozinha. - Deteve-se por um momento no primeiro degrauda escada, o rosto na sombra. Uma das mãos segurava o castiçal e a outra o vestido. - Já não me odeia?- Não. Não era a você, como lhe expliquei, mas outramulher.- Tem a certeza de que era outra?

- Absoluta.- Então, boa noite. E durma bem.Fez menção de subir, mas pousei-lhe a mão no braço e retive-a.- Um momento - solicitei. - É a minha vez de fazeruma pergunta.- De que se trata?- Ainda tem ciúmes de mim, ou também se tratava de outro homem e nunca de mim?Soltou uma risada e estendeu-me a mão, e, como se encontrava a um nível mais elevado do que eu no degrau, dir-se-iaexistir como que uma graciosidade nova nela de que até entãonão me apercebera. Os olhos pareciam maiores ao clarão incerto da vela.- Aquele menino horrível, mimado e presunçoso? - redarguiu. - Dissipou-se ontem, no instante em que você entrou no boudoir da tia Phoebe. - De súbito, inclinou-se ebeijou-me na face. - O primeiro que lhe dou e, se não lheagradou, finja que não fui eu, mas a outra mulher.Recomeçou a subir a escada, enquanto o clarão da velaproduzia uma sombra, obscura e distante, na parede.Capítulo décimo primeiroObservávamos uma rotina rigorosa aos domingos. O pequeno-almoço era servido mais tarde, às nove, e, às dez e umquarto, a carruagem levava-me, com Ambrose, à igreja, enquanto o pessoal doméstico nos seguia no breque. Terminadaa missa, verificava-se o regresso para almoçar, igualmentemaistarde, à uma. Isto no caso dos empregados, porque a nossarefeição ocorria às quatro, com a presença do vigário e Mrs.Pascoe, possivelmente uma ou duas das suas filhas solteiras e,emgeral, o meu padrinho e Louise. Desde que Ambrose se ausentara, eu não tornara a utilizar a carruagem e preferira oCigano, o que, segundo suspeitava, suscitava alguns comentárioscríticos, embora não compreendesse porquê.Naquele domingo, em honra da minha visitante, transmitiinstruções para que a carruagem fosse preparada como anteriormente, e Raquel, preparada para o evento por Seecombe,quando lhe levou o pequeno-almoço aos aposentos, desceu aoátrio às dez em ponto. Assolava-me uma espécie de descontração desde a noite anterior e afigurava-se-me, ao contemplá-la, que, de futuro, conseguiria dizer-lhe o que quisesse.Nada me conteria - ansiedade, ressentimento ou mesmo amera cortesia.- Uma palavra de advertência - segredei-lhe, depois denos cumprimentarmos. - Na igreja, todos os olhos estarãopostos em si. Os próprios retardatários, que por vezes aproveitam o pretexto para ficar na cama, serão hoje pontuais.Permanecerão de pé nas naves laterais, à espreita da ocasiãoespecial da sua aparição.- Aterroriza-me. O melhor é eu não ir.- Isso representaria uma catástrofe, pela qual nenhum dosdois seria jamais perdoado.Olhou-me com ar solene por uns instantes.- Não sei bem como devo comportar-me - admitiu.- Fui educada segundo a religião católica.

- Guarde essa revelação para si. Os papistas, neste sectordo mundo, só servem para arder no inferno. Pelo menos, é oque me constou. Preste muita atenção a todos os seus movimentos. Observe os meus e imite-os.Naquele momento, a carruagem apresentou-se à entrada.Wellington, devidamente uniformizado, com o moço de estrebaria ao lado, estava inchado de importância como uma pomba-papo-de-vento. Seecombe, por seu turno, de fato domingueiro, postava-se diante da porta com não inferior dignidade.Tratava-se da ocasião de uma vida inteira.Ajudei a minha prima Raquel a subir para a carruagem einstalei-me a seu lado. Ela tinha um manto preto sobre os ombros, e o véu do chapéu encobria-lhe o rosto.- As pessoas desejarão ver-lhe a cara - observei.- Então, vão ter de se contentar com o desejo.- Não está a compreender - insisti. - Nunca tinhaacontecido nada disto nas suas vidas. Pelo menos, há bem unstrinta anos. Os mais velhos recordam-se de minha tia, suponho, e de minha mãe, mas para os mais novos nunca houveuma Mistress Ashley que frequentasse a igreja. Aliás, você deve elucidar-lhes a ignorância. Sabem que vem daquilo a quechamam terras remotas. Podem até imaginar que os Italianossão negros.- Fale mais baixo - murmurou. - Noto pela rigidez dascostas do Wellington que está a ouvir.- Não tenho nada que falar mais baixo, porque o assuntose reveste de importância, e gravidade. Sei como os rumores seespalham. Toda a gente se retirará para o seu almoço de domingo a abanar a cabeça e dizer que Mistress Ashley é de raçanegra.- Levantarei o véu na igreja, mas não antes, quando meajoelhar - transigiu. - Que olhem então, se quiserem, embora me pareça que não o deviam fazer e concentrar antes a atenção no livro de orações.- Uma vedação elevada rodeia os bancos, com cortinas.Uma vez ajoelhada, ficará oculta dos restantes fiéis. Até sepode jogar o berlinde, se se quiser. Era o que eu fazia emcriança.- Conheço a sua meninice praticamente de cor. Sei que oAmbrose dispensou a ama quando você tinha três anos. A idade com que começou a usar calções de rapaz. A maneiramonstruosa como aprendeu o alfabeto. Por conseguinte, nãome admira que jogasse o berlinde na igreja. Surpreende-me éque não fizesse coisas piores.- E fiz, uma ocasião. Levei ratos brancos na algibeira, quese puseram a correr debaixo do banco. Provocaram o terror auma senhora atrás de nós. Desmaiou e tiveram de a levar parao ar livre.- O Ambrose não lhe aplicou o correctivo apropriado?- Nem pensar. Foi ele que os largou no chão.Raquel apontou para as costas de Wellington. Os ombrosassumiam uma posição rígida e as orelhas pareciam ao rubro.- Hoje, vai ter de se portar bem, de contrário abandono aigreja - ameaçou ela.- Se o fizer, pensarão que viu um rato, e o meu padrinho

e a Louise acudirão em seu auxílio. Com a breca! - exclamei,ao mesmo tempo que desferia uma palmada no joelho, consternado.- Que foi?- Passou-me por completo. Prometi deslocar-me de cavalo a Pelyn, ontem, para falar com a Louise, e esqueci-me.É capaz de ter ficado toda a tarde à minha espera.- Não foi muito galante de sua parte. Espero que o chame severamente à pedra.- Atribuir-lhe-ei a culpa a si, o que corresponde inteiramente à verdade. Explicarei que me pediu que a acompanhassena visita às terras de Barton.- Não lho teria pedido se soubesse que devia estar noutrolugar. Porque não me disse?- Porque me esqueci totalmente.- No lugar dela, eu melindrava-me ainda mais com umadesculpa desse género, imprópria para apresentar a uma mulher.- A Louise não é uma mulher, mas uma moça mais jovemdo que eu. Conheço-a desde muito miúda.- Isso não é razão. Possui sentimentos como qualqueroutra pessoa.- Bem, há-de passar-lhe. Vai sentar-se a meu lado à mesae hei-de felicitá-la pela forma como arranjou as flores.- Quais flores?- As de casa. Do seu boudoir e do quarto. Deslocou-se láexpressamente para isso.- Que gentil...- Não confiava na perícia do Seecombe para o efeito.- Penso que é uma atitude que se justifica. Revelou grande intuição e gosto. As minhas preferidas são as do jarrão naprateleira da chaminé do boudoir e os crocos-de-outono juntoda janela.- Confesso que não reparei nessas. Mas de qualquer modo hei-de felicitá-la, e espero que não me peça que descrevaosarranjos.Entreolhámo-nos e rimos, e vi-lhe os olhos sorrir sob ovéu. Porém, meneou a cabeça.Descemos a encosta íngreme, percorremos a alameda e desembocámos na aldeia, em direcção à igreja. Como eu previra,havia uma concorrência pouco vulgar. Eu conhecia a maiorparte das pessoas presentes, mas muitas tinham vindo atraídasapenas pela curiosidade. Verificou-se uma espécie de pressãoentre elas no momento em que a carruagem parou e nos apeámos. Tirei o chapéu e ofereci o braço à minha prima Raquel,como vira o meu padrinho fazer numerosas vezes com Louise.Percorremos o caminho de acesso ao templo, sob os olharesávidos da assistência. Eu receara sentir-me embaraçado e a representar um papel impróprio de mim, mas passava-se exactamente o contrário. Invadia-me uma confiança e orgulho bemfirmes, a par de uma secreta satisfação. Fixava o olhar na minha frente, sem o desviar para a direita nem para a esquerda,e,

à medida que passávamos, os homens descobriam-se e as mulheres efectuavam uma ligeira vénia. Não me recordava de osver proceder assim para comigo uma única vez. Tratava-se, nofundo, de uma ocasião invulgar.Quando transpusemos a entrada, os sinos repicavam e osfiéis já sentados voltaram-se para nos observar. Registou-seum arrastar de pés entre os homens e um ruge-ruge por partedas mulheres. Avançámos pelo corredor central e ocupámos osnossos lugares à frente dos Kendall. Notei que o meu padrinho franzia o sobrolho, com uma expressão pensativa no rosto. Decerto perguntava a si próprio como me comportara nasúltimas quarenta e oito horas. A boa educação impedia-o denos olhar directamente. Louise sentava-se a seu lado, empertigada e quase rígida. Exibia um ar altivo, o que me levou a depreender que estava ofendida comigo. Todavia, quando medesviei para que Raquel me precedesse, a curiosidade dominou-a. Ergueu os olhos para a minha prima e em seguida fitou-me, enquanto arqueava as sobrancelhas, como se formulasse uma pergunta. Fingi que não me apercebia e ocupei omeu lugar. A congregação ajoelhou em prece.A presença de uma mulher a meu lado na igreja produzia-me uma sensação singular. A minha memória retrocedeu até àinfância, quando Ambrose me levou consigo pela primeira veze tive de me pôr de pé num banco para olhar em volta. Euimitava-o, com o livro de orações nas mãos, mas na maioriadas vezes ao contrário, e quando chegava o momento de murmurar os responsos, ecoava os dele sem a mínima ideia do seusignificado. A medida que crescia, contemplava a assistênciajásem o auxílio do banco e, mais tarde, em Harrow, sentava-mede braços cruzados sobre o peito, como o meu primo, e passava pelas brasas se o sermão se alongava. Agora que atingira afase adulta, a ida à igreja tornara-se num período dereflexão.Não, lamento admiti-lo, acerca dos meus defeitos ou omissões, mas dos meus planos para a semana seguinte, o que sedevia fazer nos campos ou nos bosques, o que eu tinha de dizer ao sobrinho de Seecombe na casa de pesca da baía, que ordem esquecida havia para transmitir a Tamlyn. Conservava-mesentado, só, fechado em mim próprio, sem nada ou alguémpara me distrair. Entoava os salmos e proferia os responsos emobediência a um hábito antigo. Naquele domingo, porém, eradiferente. Eu estava consciente dela a meu lado constantemente. As minhas preocupações quanto à sua maneira de se comportar careciam de fundamento. Dir-se-ia que frequentava oserviço religioso da Igreja de Inglaterra todos os domingos.Mantinha-se imóvel, olhos fixos gravemente no vigário, equando ajoelhava fazia-o por completo e não se conservavasentada parcialmente no banco, como Ambrose e eu costumávamos fazer. Tão-pouco voltava a cabeça para um lado e parao outro, à semelhança de Mrs. Pascoe e respectivas filhas, nosector lateral da igreja, onde o sacerdote não as podia ver.Chegado o momento de entoar os hinos, Raquel levantou ovéu e vi-lhe os lábios acompanhar as palavras, embora não asouvisse. Voltou a baixá-lo, ao sentarmo-nos para escutar osermão.Perguntei-me quem teria sido a última mulher a sentar-se

no sector reservado aos Ashley. A tia Phoebe, possivelmente, asuspirar pelo seu cura, ou a esposa do tio Philip, mãe de Ambrose, que eu nunca vira. Talvez o meu pai tivesse estado ali,antes de partir para combater contra os Franceses e perder avida, e a minha mãe, jovem e delicada, que lhe sobreviveraapenas cinco meses, segundo Ambrose me revelara. Na verdade, eu nunca pensara muito neles ou sentira a sua falta, poisomeu primo exercera as funções de ambos. Contudo, agora, aoobservar a minha prima Raquel, detive-me a evocar minhamãe. Teria ajoelhado ali, ao lado de meu pai, as mãos unidasno regaço, para escutar o sermão? E, depois, regressaria acasapara me erguer do berço. Enquanto a voz de Mr. Pascoe ecoava na sala, eu perguntava-me o que teria sentido, ou acontecido, quando me achava nos braços dela. Ter-me-ia acariciado acabeça e beijado a face, para em seguida, com um sorriso deternura, voltar a depositar-me no berço. Lamentei subitamentea minha memória não remontar até tão longe. Porque seriaque as recordações não podiam retroceder no tempo para alémde um certo limite? Eu era um garoto, que corria no encalçode Ambrose e lhe pedia que esperasse por mim. Nada antesdisso. Absolutamente nada...- Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.As palavras do vigário fizeram-me pôr de pé. Não escutarauma única sílaba do seu sermão. E também não traçara planospara a semana seguinte. Limitara-me a permanecer sentado,entregue a divagações e a observar a minha prima Raquel.- Portou-se muito bem - murmurei, pegando no chapéue tocando-lhe no braço -, mas a verdadeira provação vai seragora.- E a sua também - replicou no mesmo tom. - Tem dejustificar o não cumprimento da promessa.Abandonámos a igreja, e cá fora ao sol aguardava-nos umapequena multidão de pessoal da propriedade, conhecidos eamigos, entre os quais a esposa do vigário, Mrs. Pascoe, comas filhas, assim como o meu padrinho e Louise, que se aproximaram, um a um, para as apresentações, quase como se estivéssemos na Corte. Raquel levantou o véu e tomei mentalmente nota para lhe dirigir um comentário sarcástico sobre ofacto,quando nos encontrássemos sós.Enquanto percorríamos o caminho em direcção às carruagens que nos aguardavam, ela propôs-me, diante dos outros,para que eu não pudesse objectar (e verifiquei pela expressãodo olhar e inflexão da voz que o fazia propositadamente):- Não prefere ter a companhia de Miss Kendall na suacarruagem, Philip, e eu seguirei na de Mister Kendall?- Se assim o deseja... - assenti.- Parece-me o mais apropriado - volveu, com um sorriso ao meu padrinho, o qual, com uma vénia, lhe ofereceu obraço.Voltaram-se, como que de comum acordo para a carruagem dos Kendall, pelo que não me restou qualquer alternativa

senão subir para a minha com Louise. Sentia-me como um colegial que acabassem de esbofetear. Wellington fez estalar ochicote no ar e partimos.- Queria pedir-te desculpa daquilo de ontem, Louise -- comecei -, mas tive toda a tarde ocupada. A Raquel quis quea acompanhasse numa visita às terras de Barton, pelo que nãopude esquivar-me. Não houve tempo para te prevenir, de contrário mandava um dos rapazes levar-te um bilhete.- Não tens nada que pedir desculpa. Estive à tua esperamais de duas horas, mas não tem importância. Como fazia umtempo estupendo, aproveitei para encher uma cesta de groselhas.- Foi uma coincidência deplorável. Acredita que lamentoprofundamente.- Calculei que te retivera algo do género e congratulo-mepor não ter sido nada de grave. Conhecedora do teu estado deespírito acerca dessa visita, receei que cometesses algum actoviolento, tivessem um desentendimento mais azedo, e ela viesse bater-nos à porta. Que se passou, afinal? Conseguiste defacto sobreviver até agora sem uma confrontação? Conta-metudo.Puxei a aba do chapéu para os olhos e cruzei os braços sobre o peito.- Que queres dizer com ??tudo,??- Tintim por tintim. O que lhe disseste, como reagiu, etc.Mostrou-se embaraçada com as tuas palavras, ou não deixoutransparecer o menor sinal de culpa?Ela exprimia-se em voz baixa e Wellington não tinha possibilidade de ouvir, apesar do que me sentia irritado e de modoalgum bem-humorado. Escolhera um lugar e altura bizarrospara uma conversa de semelhante natureza e, de qualquer modo, porque se lhe teria metido na cabeça tentar catequizar-me?- Ainda não dispusemos de muito tempo para trocar impressões - aleguei. - Na primeira noite, estava cansada e foi-se deitar cedo. Ontem, deu-lhe para visitar a propriedade. Osjardins de manhã e as terras de Barton à tarde.- Nesse caso, ainda não tiveram uma discussão a sério?- Depende do que entendes por ??a sério,?. Só posso dizerque é uma pessoa muito diferente do que eu esperava. Aliás,tu própria o terás verificado nos breves momentos que estevena tua frente.Conservou-se silenciosa por uns instantes. Abstendo-se dese reclinar no banco como eu, mantinha-se empertigada, asmãos enfiadas no regalo.- Ela é muito bonita - acabou por declarar.Retirei os pés do banco em frente e voltei a cabeça para acontemplar com perplexidade.- Bonita? - ecoei. - Deves estar louca.- De modo algum. Pergunta ao meu pai. Não reparasteque as pessoas arregalaram os olhos quando ela levantou ovéu? Só um homem tão cego em relação às mulheres como tunão se aperceberia.- Que monumental disparate! Talvez tenha uns olhos umpouco fora do vulgar, mas quanto ao resto não sai da banalidade. A pessoa mais banal que conheci até hoje, para ser mais

preciso. Posso dizer-lhe o que quiser, abordar qualquer assunto, sem necessidade de adoptar uma maneira especial de mecomportar na sua frente, e não sinto o menor embaraço em fumar de cachimbo na sua presença.- Pareceu-me teres dito que ainda não dispuseras de tempo para uma conversa mais demorada.- Não exageres. É claro que não nos mantivemos sentados durante o jantar e quando percorremos a propriedade. Poroutro lado, acho natural que as pessoas a olhem com curiosidade. Não esqueças que é Mistress Ashley.- Talvez tenhas razão, mas só em parte. De qualquer modo, mulher vulgar ou não, parece que te causou uma impressão profunda. E de meia-idade, claro. Aparenta uns trinta ecinco anos. Ou acha-la mais jovem?- Não faço a menor ideia, nem me interessa. Nunca mepreocupei com essas coisas. Pela parte que me toca, até podeter noventa.- Deixa-te de patetices. Aos noventa anos, as mulheresnão têm olhos assim, nem aquela frescura de pele. Além disso,traja com gosto. Aquele vestido preto é elegantíssimo, assimcomo o manto. O luto não a desfavorece nada.- Falas como Mistress Pascoe. Nunca te tinha ouvido dizer imbecilidades dessas.- Nem eu a ti. Estamos, portanto, quites. Que modificação em vinte e quatro horas! Enfim, ao menos, uma pessoa vaificar aliviada. O meu pai, que receava derramamento de sangue, depois da vossa última conversa.Congratulei-me com a aparição da longa e íngreme encostada colina, pretexto para me apear e percorrê-la a pé, com omoço de estrebaria, a fim de aliviar o esforço dos cavalos.Queatitude mais extraordinária a assumida por Louise! Em vez dese mostrar aliviada com o facto de a visita da minha prima Raquel se desenrolar de modo satisfatório, parecia contrariada,quase irritada, o que se me afigurava uma maneira singular derevelar amizade. Atingido o topo da colina, tornei a subirparaa carruagem e não voltámos a trocar uma única palavra até aofinal do percurso. Era ridículo, mas se ela não tomava ainiciativa de quebrar o silêncio, eu ainda menos o faria. Não pudedeixar de ponderar que o trajecto no sentido contrário se desenrolara em clima muito mais agradável.Ao invés, os ocupantes da segunda carruagem tinham viajado em ambiente mais cordial, a avaliar pelo seu aspecto.Com efeito, Raquel e Nick Kendall apearam-se sorridentes e aconversar como velhos amigos. Consegui detectar as expressões ??deplorável" e ??o país não admitirá uma coisa dessas??,oque me permitiu concluir que o meu padrinho abordava o seutópico favorito: o governo e a oposição.- Fizeram boa viagem? - perguntou a minha prima, dirigindo-me uma mirada levemente perscrutadora, e eu quase juraria que deduziu das nossas expressões a natureza do diálogoque traváramos.- Perfeita, obrigada - replicou Louise, desviando-se paraque Raquel nos precedesse.No entanto, esta última segurou-lhe o braço e proferiu:

- Suba ao meu quarto, para tirar o chapéu e despir o casaco. Quero agradecer-lhe os belos arranjos de flores.O meu padrinho e eu mal tivéramos tempo para lavar asmãos e trocar meia dúzia de palavras, quando nos vimos rodeados por toda a família Pascoe, e competiu-me a discutívelhonra de escoltar o vigário e filhas nos jardins. Ele era umapessoa inofensiva, mas eu prescindiria sem relutância da presença das raparigas. Quanto à esposa, fora juntar-se às outrasmulheres, como um perdigueiro no encalço da presa. Nuncavira o quarto azul sem as coberturas dos móveis... Por seuturno, as filhas não se cansavam de tecer encómios à minha primaRaquel e considerá-la bonita, à semelhança de Louise. Acolhi,pois, com satisfação a oportunidade para dizer que a achavaatodos os títulos banal, o que suscitou exclamações deprotesto.- De modo algum - articulou Mr. Pascoe, sacudindouma hortênsia com a bengala -, de modo algum. Talvez nãome aventure ao ponto de a julgar excepcionalmente bonita.??Feminina?? parece-me o termo mais adequado.- Mas decerto não seria de esperar que Mistress Ashleyfosse outra coisa - interpôs uma das filhas.- Nem fazes uma ideia da quantidade de mulheres que carecem dessa qualidade - foi a resposta.Pensei em Mrs. Pascoe, com a sua cabeça equina, e apressei-me a indicar as jovens palmeiras que Ambrose trouxera doEgipto, que eles decerto já haviam visto uma centena de vezes,desviando assim, com tacto segundo me pareceu, o rumo daconversa.Quando voltámos para dentro e penetrámos na sala de estar, deparou-se-nos Mrs. Pascoe a informar Raquel, em vozparticularmente alta, como era seu hábito, do problema graveprovocado à sua ajudante de cozinha pelo filho do jardineiro.- O que mais me custa a compreender é onde o fizeram -- confessava no momento em que entrámos. - Ela dorme noquarto da cozinheira e, tanto quanto sabemos, nunca se ausenta de casa.- Não seria na cave? - sugeriu a minha prima.À nossa aparição, o diálogo foi prontamente prosseguidoem tom confidencial. Desde que Ambrose se ausentara, doisanos atrás, eu não conhecera um domingo que passasse tão rapidamente. E mesmo quando se achava presente por vezes arrastava-se penosamente. Como antipatizava com Mrs. Pascoe,as filhas desta lhe eram meramente indiferentes e suportavaLouise por ser filha do seu mais velho amigo, sempre providenciara para desfrutar da companhia do vigário e do meu padrinho, altura em que nós os quatro nos podíamos descontrair. Quando as mulheres os acompanhavam, as horaspareciam dias. Agora, tudo era diferente.Quando o jantar foi servido, com as iguarias na mesa e aspratas areadas, como num banquete, instalei-me à cabeceira,lugar que Ambrose sempre ocupava, com Raquel na extremidade oposta. Esta distribuição proporcionava-me Mrs. Pascoecomo vizinha, mas, por uma vez, não lhe servi de alvo para ashabituais abordagens irritantes. A maior parte do tempo, o seurosto alongado voltava-se para o outro lado da mesa - ria,

comia e até se esquecia de dirigir miradas aceradas ao marido,o vigário, o qual, fora da casca possivelmente pela primeiravezna vida, corado, de olhar ardente, houve por bem pôr-se a citar poetas célebres. Toda a família Pascoe florescia comorosas,e eu nunca vira o meu padrinho tão bem-disposto.Somente Louise se mostrava pouco comunicativa e meditativa. Eu esforçava-me por animá-la, sem resultado. Sentava-serigidamente à minha esquerda, debicava a comida com movimentos automáticos e mantinha uma expressão fixa, como setivesse tragado um berlinde. Enfim, se optara por amuar, queo fizesse sozinha. Achava-me demasiado bem-humorado paraperder tempo com ela. Entretinha-me a escutar e a observarRaquel, empenhada em encorajar o vigário com a sua poesia.??E o jantar de domingo mais fantástico em que participei, edaria tudo para que Ambrose estivesse presente", admitia paracomigo. Quando acabámos de comer e foi servido o vinho doPorto, fiquei sem saber se devia levantar-me, como habitualmente, para abrir a porta, ou conceder a iniciativa a Raquel,nasua qualidade de anfitriã. Registou-se uma pausa nas conversas. De súbito, ela olhou-me e sorriu. Retribuí-lhe o sorrisoem resposta à interrogação sem palavras. Pareceu estabelecer-se um elo de comunicação momentâneo, curioso, estranho,uma sensação nova para mim.Por fim, o meu padrinho perguntou, na usual voz rouca:- Diga-me, Mistress Ashley, o Philip não lhe recorda oAmbrose?Seguiu-se breve silêncio, até que ela pousou o guardanapona mesa e declarou:- A tal ponto que me pergunto se existe alguma diferença.Levantou-se, as outras mulheres imitaram-na e eu cruzei asala de jantar para abrir a porta. Mas quando elas saíram eregressei ao meu lugar, a sensação persistia.Capítulo décimo segundoRetiraram-se por volta das seis da tarde, porque o vigárioainda tinha de ir presidir às vésperas noutra paróquia. OuviMrs. Pascoe convidar Raquel para ir passar uma tarde com eladurante a semana, e cada uma das filhas invocou razões parausufruir de idênticos direitos. Uma queria inteirar-se da suaopinião sobre determinada aguarela, outra pretendia iniciaruma colcha e desejava aconselhar-se acerca da combinação detons e a terceira, que costumava visitar uma anciã inválida naaldeia, insistia em que a acompanhasse, pois a mulher ansiavapor conhecê-la.- Na verdade - disse Mrs. Pascoe, quando cruzávamos oátrio em direcção à porta principal -, há tantas pessoas desejosas de a conhecer, Mistress Ashley, que pode contar comcompromissos nas próximas quatro semanas.- A nossa residência em Pelyn está idealmente situada para efectuar visitas - acudiu o meu padrinho. - Melhor do

que esta. E penso que teremos o prazer da sua companhiadentro de um ou dois dias.Volveu os olhos para mim e apressei-me a sufocar a ideia ànascença, antes que se estabelecesse um compromisso irreversível.- De modo algum. A prima Raquel continuará aqui. Antes de se envolver em quaisquer convites do exterior, tem todaa propriedade para visitar. Começamos amanhã, tomando chánas terras de Barton. As restantes herdades figurarão a seguirno programa. Haveria susceptibilidades melindradas se ela nãofosse saudar cada um dos rendeiros.Vi Louise olhar-me com estranheza, mas não lhe presteiatenção.- Sim, tens razão - concordou o meu padrinho, tambémsurpreendido. - É o mais apropriado. Tencionava propor-mepara a escoltar nessa digressão, mas se desejas fazê-lo retiroacandidatura. - Virou-se de novo para Raquel. - Se, porqualquer razão, se sentir desconfortável aqui (o Philipdecertome perdoará por dizer isto, mas há muitos anos que uma mulher não pisava o chão desta casa, e o atendimento pode, porconseguinte, deixar um pouco a desejar, por falta de prática)ou preferir companhia feminina, estou certo de que a minhafilha a receberá com prazer.- Temos um quarto de hóspedes, no vicariato - anunciou Mrs. Pascoe. - Se, em qualquer altura, se sentir só, Mistress Ashley, lembre-se de que se encontra à sua disposição.- Com certeza, com certeza - apoiou o vigário.- São todos muito amáveis e inexcedivelmente generosos -- replicou Raquel. - Voltaremos a falar disso quando tivercumprido o meu dever aqui. Para já, considerem-me profundamente grata.Seguiu-se a habitual e confusa troca de palavras de despedida, e as carruagens partiram com destinos diferentes.Voltámos para a sala de estar. A tarde escoara-se num clima extremamente agradável, porém congratulava-me por se terem retirado e a casa regressar ao silêncio do costume. Suponho que Raquel raciocinava em termos muito similares,porque se conservou de pé no centro do aposento por um momento, olhou em redor e declarou:- Adoro a tranquilidade de uma sala, após uma reunião.As cadeiras estão fora dos lugares, as almofadas desarrumadas,o ambiente denuncia que os seus ocupantes viveram algumashoras de boa disposição, e uma pessoa sente-se depoissatisfeita por tudo haver terminado, poder descontrair-se e dizer??Voltamos a estar finalmente sós". O Ambrose costumavaafirmar que merecia a pena sujeitarmo-nos ao tédio das visitaspara em seguida experimentar a satisfação da sua partida. Tinha toda a razão.Observei-a em silêncio, enquanto alisava a cobertura deuma poltrona e pousava os dedos numa almofada.- Não precisa de fazer isso - lembrei-lhe. - Seecombe eo seu pessoal ocupar-se-ão de tudo amanhã.- Instinto feminino. Não fique aí especado a olhar paramim. Sente-se e acenda o cachimbo. Divertiu-se?- Muito. - Reclinei-me no sofá. - Não compreendo

porquê, pois costumo achar os domingos aborrecidos. Talvezpor não ser um conversador. A única coisa que tive de fazerhoje foi permanecer sentado e deixá-los falar livremente.- É nisso que uma mulher se pode revelar útil. Faz partedo seu treino. O instinto adverte-a de como deve proceder,seas conversas esmorecem.- Sim, mas você actua com discrição - argumentei.- Mistress Pascoe é muito diferente. Fala interminavelmente,pelos cotovelos, até que uma pessoa tem vontade de soltar umgrito. Um homem nunca tinha oportunidade de se exprimir,nos outros domingos. Não consigo descortinar o que fez paratornar o ambiente tão agradável.- Acha, então, que foi agradável?- Sem dúvida. Já lho disse.- Nesse caso, não perca tempo e case com a sua Louise,para dispor de uma verdadeira anfitriã e não de uma ave de arribação.Endireitei-me no sofá e olhei-a com perplexidade, enquanto ela ajeitava o cabelo diante do espelho.- Casar com a Louise? Não diga tolices. Não quero contrair matrimónio com ninguém. Além disso, ela não é minha,como sugere.- Desculpe, pensava que fosse. Pelo menos, o seu padrinho levou-me a ficar com essa impressão.Sentou-se numa poltrona e pegou no trabalho de renda.Naquele momento, John entrou para correr os cortinados, pelo que me mantive silencioso, embora interiormente espumasse de indignação. Com que direito se permitira o meu padrinho formular semelhante sugestão? Quando voltámos a ficarsós, perguntei:- Que disse ele?- Não me recordo das palavras exactas. No entanto, penso que está convencido de que é uma coisa assente. Quandoregressávamos da igreja na carruagem, referiu que a filhatinhavindo para se ocupar dos arranjos de flores, pois vocêcresceranum ambiente de homens e não entendia desses assuntos.Quanto mais depressa casasse e houvesse uma esposa para velar por si melhor. Acrescentou que a Louise o compreendiamuito bem e vice-versa. Espero que lhe pedisse desculpa pelasua falta de maneiras do sábado.- Sim, pedi, mas o efeito foi aparentemente nulo. Nunca avi tão mal-humorada. A propósito, ela considera-a bonita.E as filhas dos Pascoe afinam pelo mesmo diapasão.- Sinto-me lisonjeada.- Mas o vigário não concorda com elas.- Agora, sinto-me desolada.- Em todo o caso, acha-a feminina. Decididamente feminina.- Em que sentido?- Muito diferente do de Mistress Pascoe, imagino.Desprendeu-se-lhe uma risada de entre os lábios e ergueuos olhos do trabalho.- Como a definiria, Philip?- O quê?

- A diferença na nossa feminidade, a dela e a minha.- Sei lá. É um assunto em que navego na ignorância quasetotal. Só posso dizer que gosto de olhar para si, e para Mistress Pascoe não.- É uma resposta simples e agradável. Obrigada, Philip.Eu poderia afirmar o mesmo acerca das suas mãos. Agra dava-me observá-las. Em contrapartida, as de Mistress Pascoepareciam presuntos mal curados. .- De qualquer modo, isso a respeito da Louise não passade mera fantasia, pelo que é melhor esquecê-lo. Nunca a encarei como minha futura mulher, nem tenciono fazê-lo.- Coitada da Louise...- Considero ridículo do meu padrinho aventar sequer semelhante possibilidade.- Não concordo. Quando dois jovens de sexos opostos eda mesma idade convivem regularmente e gostam da companhia um do outro, é muito natural que um observador pensenum eventual casamento. De resto, a Louise é uma moça muito atraente e inteligente. Daria uma excelente esposa.- Importa-se de não insistir no tema, prima Raquel? -- Fiz uma pausa, enquanto tornava a olhar-me e sorrir. - E outra coisa em que não deve insistir é no disparate de visitartodaa gente, ficar no vicariato, em Pelyn, etc. Que tem a censuraraesta casa e à minha companhia?- Nada, até agora.- Então...- Continuarei aqui até que o Seecombe se farte de mim.- O Seecombe não é para aqui chamado, tal como o Wellington, o Tamlyn ou qualquer dos outros. Sou o dono da casa, e o assunto só a mim diz respeito.- Nesse caso, farei o que me ordenar. Isso também estáincluído no treino de uma mulher.Olhei-a com desconfiança, para ver se sorria, mas concentrara-se no trabalho e não consegui descortinar-lhe os olhos.- Amanhã, elaborarei a lista dos caseiros, por ordem deantiguidade. Serão visitados em primeiro lugar aqueles quetrabalham para a família há mais tempo. Principiaremos pelas terras de Barton, como combinámos no sábado. Partiremos àsduas, todas as tardes, até não haver ninguém na propriedadeque não a conheça.- Muito bem, Philip.- Terá de escrever um bilhete a Mistress Pascoe e às raparigas, para explicar que lhe surgiram outros compromissos.- Tratarei disso logo pela manhã.- Terminadas as visitas ao nosso pessoal externo, deverápermanecer em casa três tardes por semana (às terças-feiras,quintas e sextas, salvo erro), para a eventualidade de alguémdocondado a procurar.- Como sabe que são esses os dias indicados?- Ouvi-os mencionar com frequência pelos Pascoe eLouise.- Muito bem. Aguardo sozinha na sala, ou você faz-mecompanhia?

- Sozinha. Eles virão visitá-la e não a mim. Receber habitantes do condado não faz parte dos deveres de um homem.- Se me convidarem para jantar, devo aceitar?- Não a convidarão. Lembre-se de que está de luto. Sehouver necessidade de promover uma recepção, será aqui. Masnunca mais de dois casais de cada vez.- Existe etiqueta neste recanto do mundo?- Ao diabo com a etiqueta. O Ambrose e eu nunca nossujeitámos a princípios rígidos impostos do exterior. Regíamo-nos pelos nossos próprios.Vi-a curvar mais a cabeça sobre o trabalho, e acudiu-me asuspeita de que o fazia para encobrir o riso, embora não descortinasse a causa da hilaridade, pois não pretendia serengraçado.- Seria impertinência excessiva de minha parte pedir-lheque me fornecesse uma lista das regras em vigor? - aventurou, transcorrido um momento. - Uma espécie de código deconduta. Poderia estudá-lo enquanto aguardava a primeira visita. Custar-me-ia efectuar um faux pas social, segundo a suaóptica, e incorrer em desagrado.- Pode dizer o que lhe apetecer a quem quiser - expliquei. - A única coisa que lhe peço é que o faça aqui, na salade estar. Nunca permita que entrem estranhos na biblioteca,seja com que pretexto for.- Porquê? Que acontecerá na biblioteca?- Eu estarei lá. Com os pés pousados na cornija da lareira.- Às terças, quintas e sextas também?- Às quintas não. Nesse dia, vou ao banco da aldeia.Aproximou o trabalho do clarão das velas para examinara combinação de cores, após o que o dobrou e pousou a seulado.Lancei uma olhadela ao relógio. Ainda era cedo. Tencionaria ela recolher já ao quarto? Invadiu-me uma sensação de desapontamento.- Depois de o condado completar as suas visitas, queacontecerá?- É obrigada a retribuir as visitas, sem uma única excepção. Tomarei as providências necessárias para que a carruagemesteja à sua disposição todas as tardes, às duas horas.Perdão,todas não. Só às terças, quintas e sextas-feiras.- E vou sozinha?- Vai sozinha.- Que tenho de fazer às segundas e quartas?- Às segundas e quartas? Deixe-me ver... - Reflecti rapidamente, mas a minha imaginação não revelava espírito de colaboração. - Sabe desenhar ou cantar? Como as meninas Pascoe. Podia entreter-se a cantar às segundas e desenhar oupintar às quartas.- Não desenho nem canto, e receio que esteja a preparar-me um programa de lazer para o qual não me sinto minimamente preparada. Se, em vez de ficar à espera de que o condado me procurasse, eu o visitasse com o objectivo de dar liçõesde italiano, agradar-me-ia muito mais.Levantou-se e apagou as velas do seu lado, enquanto eu meerguia igualmente do sofá.

- Mistress Ashley a dar lições de italiano? - articulei,fingindo-me horrorizado. - Que desgraça para o nosso venerado nome! Só as solteironas dão lições, quando não têm ninguém que as sustente.- E que fazem as viúvas que se encontram em circunstâncias similares?- As viúvas? - proferi, sem reflectir. - Bem, voltam acasar o mais depressa possível, ou então vendem as jóias.- Pois não tenciono fazer nem uma coisa nem outra. Prefiro dar lições de italiano.Com uma leve palmada no meu braço, encaminhou-se paraa porta, enquanto me desejava as boas-noites por cima doombro.Senti um calor desconfortável nas faces. Que demónio foraeu dizer? Falara sem pensar na sua condição, esquecendo-mede quem ela era e do que acontecera. Envolvera-me no divertimento da conversa com a minha prima como fazia com Ambrose no passado, em consequência do que dera livre curso àlíngua. Voltar a casar. Vender as jóias. Que ficaria a pensardemim?Como lhe devia ter parecido pateta, insensível e desprovido de um mínimo de maneiras! O calor propagou-se ao pescoço e, no sentido contrário, às raízes dos cabelos. Inferno emaldição! Não adiantaria pedir desculpa. Só serviria para incrementar a importância do caso. Era preferível não insistir eacalentar a esperança de que tombasse no esquecimento. Congratulava-me por não haver testemunhas, como, por exemplo,o meu padrinho, para me chamar à parte e verberar a falta, ausência mesmo, de tacto. Ou, pior, a cena podia ter-se passadoà mesa, sob as vistas de Seecombe. Voltar a casar. Vender asjóias. Que influência maligna me teria dominado o espírito?Depois daquilo, dificilmente conseguiria dormir. Passaria anoite às voltas na cama, ao mesmo tempo que, repetitivamente, escutaria a réplica dela, pronta como o relâmpago: ??Poisnão tenciono fazer nem uma coisa nem outra. Prefiro dar lições de italiano.?,Chamei o velho Don e saí por uma porta lateral, a fim depercorrer as imediações. À medida que caminhava, a minhaofensa afigurava-se-me cada vez mais grave, em vez de se reduzir em volume. Ordinário, irreflectido, cabeça vazia... Poroutro lado, qual o verdadeiro significado das palavras dela?Seria possível que dispusesse de pouco dinheiro e houvesse fortepercentagem de verdade no que dissera? Mrs. Ashley a dar lições de italiano? Evoquei a sua carta ao meu padrinho, enviada de Plymouth, segundo a qual tencionava seguir para Londres depois de um breve período de repouso. Recordei-meigualmente do que Rainaldi dissera sobre a sua necessidade devender a villa de Florença. Ao mesmo tempo, tinha presenteno espírito que Ambrose não lhe deixara nada em testamento.Tudo, até ao último péni, na sua propriedade me pertencia.Lembrei-me também dos rumores entre o pessoal doméstico.Nenhuma cláusula respeitante à viúva. Que pensariam, na salacomum, nas habitações dos rendeiros, em todo o condado, seMrs. Ashley decidisse dar lições de italiano?Dois ou três dias atrás, não me teria preocupado com a situação. A outra mulher produto da minha excitada imaginaçãopoderia morrer merecidamente de fome. Mas agora não. Tudo

se alterara. E radicalmente. Impunha-se que algo fosse feitopara o remediar, e eu não tinha a menor ideia do quê. De modo algum podia discutir o assunto com ela. A simples ideiaobrigou-me a corar de novo, de vergonha e embaraço. De repente, com uma sensação de alívio, recordei-me de que o dinheiro e a propriedade ainda não eram legalmente meus, o quesó aconteceria à data do próximo aniversário, dentro de seismeses. Por conseguinte, o caso achava-se fora das minhasmãos. A responsabilidade incidia no meu padrinho. Era administrador da herança e meu tutor. Competia-lhe, pois, abordara minha prima Raquel e elaborar qualquer espécie de provisãopara ela. Decidi procurá-lo nesse sentido na primeira oportunidade. De resto, o meu nome não necessitava de figurar noque se combinasse. Podia conferir-se-lhe o aspecto de um trâmite legal que, de qualquer modo, viria a consumar-se, emobediência a um costume do país. Estava encontrada a solução. Graças a Deus que me acudira. Lições de italiano... Quevergonhoso e inconcebível!Voltei para dentro menos acabrunhado, embora ainda nãotivesse esquecido a gaffe originária. Tornar a casar, venderasjóias... Preparava-me para transpor a porta, quando ouvi umavoz abafada na escuridão:- Costuma percorrer o bosque à noite?Era Raquel, sentada, às escuras, junto da janela aberta dasala azul. O meu erro acudiu-me à mente em toda a sua extensão, e agradeci aos Céus o facto de ela não me poder ver orosto.- Às vezes, quando tenho alguma preocupação.- Isso significa que alguma coisa o preocupa neste momento?- Exacto. Cheguei a uma conclusão grave, entre o arvoredo.- Pode saber-se em que consiste?- Concluí que você tinha toda a razão em antipatizar comigo, antes de me ver, e considerar-me presunçoso e mimado.Sou tudo isso, e pior.Ela inclinou-se para a frente e pousou os braços no peitoril.- Nesse caso, os passeios no bosque fazem-lhe mal e assuas conclusões pecam por estupidez.- Prima Raquel.- Sim?Mas eu não sabia como apresentar o pedido de desculpa.As palavras que tão facilmente me haviam acudido na sala deestar para dizer disparates achavam-se arredias agora quedesejava rectificar o lapso. Conservei-me diante da janela imóvel,calado e envergonhado. De repente, vi-a voltar-se, estender osbraços para dentro, tornar a debruçar-se e atirar-me algo, queme atingiu no rosto e caiu no chão. Agachei-me para o recolher. Era uma flor da sua jarra, um croco-de-outono.- Não seja tonto, Philip. Vá-se deitar.Fechou a janela e correu os cortinados. Curiosamente, aperturbação abandonou-me, assim como o peso na consciênciaresultante do lapso cometido, e experimentei uma espécie deeuforia.

Não tive possibilidade de me deslocar a Pelyn na primeiraparte da semana, devido ao programa que elaborara para visitar os caseiros. De resto, não poderia invocar o pretexto deprocurar o meu padrinho sem levar Raquel para conversarcom Louise. No entanto, a oportunidade surgiu na quinta-feira. Chegou o portador de Plymouth, com as plantas que aminha prima trouxera de Itália e, mal Seecombe a informou dofacto (na altura eu acabava de tomar o pequeno-almoço), tratou de se vestir e descer apressadamente, o xaile em torno dacabeça e preso sob o queixo, disposta a dirigir-se ao jardim.Como a porta da sala de jantar estava aberta, eu vi-a passar efui cumprimentá-la.- Se bem entendi, o Ambrose disse-lhe que nenhuma mulher merecia que lhe olhassem para a cara antes das onze damanhã - observei. - Por conseguinte, que faz cá em baixo àsoito e meia?- O portador acaba de chegar e, às oito e meia da últimamanhã de Setembro, não sou uma mulher, mas uma jardineira.O Tamlyn e eu temos muito que fazer.Tinha um aspecto alegre e feliz como uma criança na iminência de receber um brinquedo novo.- Vão contar as plantas? - insisti.- Contá-las? Não. Quero ver quantas sobreviveram à viagem e quais convém dispor na terra imediatamente. O Tamlynignora-o, mas eu sei. Não há pressa, no caso das árvores, embora convenha dar uma olhadela a tudo, para descargo deconsciência.Notei que calçara luvas coçadas, em absoluta discordânciacom o resto da indumentária, impecável.- Não me diga que vai esgaravatar na terra! - observei,perplexo.- Com certeza que vou. Venha ver. Trabalharei mais depressa que o Tamlyn e os seus homens. Não me espere paraalmoçar.- E à tarde? - protestei. - Esperam-nos em Lankelly eCoombe.- Mande preveni-los de que a visita fica adiada. Não mecomprometo com nada ou ninguém quando há plantações aefectuar. Até logo.Acenou-me em despedida e saiu.- Prima Raquel! - chamei da janela da sala de jantar.- Que mais temos? - perguntou por cima do ombro.- O Ambrose enganou-se no que disse acerca das mulheres.Às oito e meia da manhã, têm um aspecto muito satisfatório.- Ele não se referia às oito e meia, mas às seis e meia, enoquarto e não cá fora.Voltei-me para dentro, com uma gargalhada, e vi Seecombejunto de mim, de lábios comprimidos. Com uma expressão dedesaprovação, aproximou-se do aparador e fez sinal ao jovemJohn para que levantasse a mesa do pequeno-almoço. Havia,ao menos, uma coisa boa naquele dia dedicado às plantações.

A minha presença não seria necessária. Assim, alterei o meuprograma para a manhã, dei instruções para que selassem oCigano e, às dez horas, encontrava-me na estrada a caminhode Pelyn. Fui encontrar o meu padrinho no escritório da residência e, sem qualquer preâmbulo, expus o motivo da visita.- Compreende, pois, que se tem de fazer alguma coisa,e sem demora - concluí. - Se chegasse ao conhecimentode Mistress Pascoe que Mistress Ashley tenciona dar liçõesde italiano, o facto espalhava-se por toda a região em menosde vinte e quatro horas.Como eu previra, Nick Kendall mostrou-se altamente chocado e penalizado.- Nem pensar numa coisa dessas. O assunto reveste-se,evidentemente, de certa delicadeza. Preciso de reflectir paratentar descobrir a solução mais conveniente.Comecei a impacientar-me. Estava familiarizado com aforma prudente como abordava as questões legais e sabia quecismaria no caso durante dias.- Não há tempo a perder - volvi. - O padrinho não conhece a prima Raquel tão bem como eu. É muito capaz deperguntar a um dos caseiros: ??Conhece alguém que gostassede aprender italiano??? Imagine uma coisa dessas e diga-me emque situação ficaríamos. Aliás, já me chegaram rumores aosouvidos, através do Seecombe. Toda a gente sabe que não lhefoi deixado nada em testamento. Por conseguinte, a situaçãotem de ser rectificada sem demora.Exibiu uma expressão meditativa, ao mesmo tempo quemordia a caneta.- Aquele conselheiro italiano não disse uma palavra sobreas circunstâncias dela. É pena eu não poder trocar impressõescom ele sobre o assunto. Não temos meios para determinar aextensão do rendimento pessoal dela ou o que ficou acordadonesse sentido em resultado do seu casamento anterior.- Julgo que se destinou tudo ao pagamento das dívidas deSangalletti. Recordo-me de o Ambrose mencionar o facto nassuas cartas. Foi uma das razões pelas quais eles não vierampara a Inglaterra o ano passado: a resolução dos problemas financeiros dela. Pode muito bem dar-se o caso de não ter umpéni de seu. Impõe-se que se faça alguma coisa, e hoje mesmo.O meu padrinho pôs-se subitamente a arrumar a papeladaem cima da secretária.- Congratulo-me por teres mudado de atitude - declarou, olhando-me por cima dos óculos. - Confesso que estavamuito desconfortável antes da chegada da tua prima. Pareciasdisposto a tratá-la com rudeza e não fazer nada por ela, o queteria causado escândalo. Ao menos, agora parece que ouviste avoz da razão.- Estava equivocado - admiti, secamente. - Podemosesquecer tudo isso.- Nesse caso, enviarei uma carta a Mistress Ashley e outra ao banco, em que explicarei as nossas intenções. O planomais conveniente afigura-se-me ser o depósito trimestral, numa conta que abrirei em nome dela. Quando se mudar para

Londres, ou qualquer outro lugar, a respectiva delegação receberá instruções para o efeito. Dentro de seis meses, quandocompletares vinte e cinco anos de idade, poderás ocupar-tepessoalmente do assunto. Passemos agora à quantia envolvida.Quanto sugeres?Reflecti por um momento e indiquei um número.- É muito generoso da tua parte, Philip. Duvido que elanecessite de tanto. Para já, em todo o caso.- Não sejamos mesquinhos, com a breca! Ou procedemoscomo o Ambrose faria ou então mais vale estarmos quietos.- Hum... - grunhiu, inscrevendo algo no bloco de apontamentos. - Espero que fique contente - acrescentou. - Compensá-la-á de algum desapontamento que o testamento lheprovocasse.Não havia dúvida de que a mente legal era dura e insensível. O meu padrinho dedicava-se a cálculos complexos para seinteirar de quanto se podia gastar sem provocar um romboimportante na herança. Naquele momento, odiei o dinheirosolenemente.- Despache-se e escreva a carta, para a levar comigo -- indiquei. - De caminho, posso passar pelo banco e entregar aque lhe diz respeito. Assim, a minha prima Raquel poderáefectuar levantamentos imediatamente.- Não acredito que ela esteja em situação financeira tãoaflitiva como se pode depreender das tuas palavras. Passas deum extremo ao outro. - Suspirou e pegou numa folha de papel em branco. - Não se enganou quando disse que eras parecidíssimo com o Ambrose.Aproximei-me para ter a certeza de que escrevia o que meinteressava. Não mencionava o meu nome. Referia-se somenteà herança. Os ??administradores" dos bens deixados por Ambrose tinham decidido estabelecer um legado para ela, divididopor quantias pagas trimestralmente.- Se não te queres envolver pessoalmente no assunto, émelhor não levares tu a carta - advertiu. - O Dobson temde ir para os teus lados, esta tarde, e pode encarregar-sedisso.O assunto assumirá assim um aspecto mais verosímil.- ?ptimo - aprovei. - E eu visitarei o banco. Obrigado, padrinho.- Não te esqueças de falar à Louise, antes de saíres. Creioque está algures por aí.Eu teria prescindido perfeitamente de cumprimentá-la, emvirtude da impaciência que me dominava, mas não me podiaesquivar. Fui encontrá-la na saleta contígua ao escritório.- Pareceu-me ter ouvido a tua voz - declarou. - Viestepara passar o dia connosco? Prova este bolo ou come uma peça de fruta. Deves estar com fome.- Obrigado, mas tenho de me retirar imediatamente. Vimapenas para trocar impressões com o teu pai sobre um assuntolegal.- Ah, compreendo... - murmurou, enquanto a expressãojovial se toldava e reassumia o aspecto do domingo anterior.- Como está Mistress Ashley?- A minha prima Raquel está bem e muito ocupada. As

plantas que trouxe de Itália chegaram esta manhã e elainsistiuem dispô-las no jardim com o Tamlyn.- Admira-me que não ficasses em casa a ajudá-la.Tornava-se-me difícil interpretar a atitude da moça, mas anova inflexão da voz resultava particularmente irritante. Recordei-me do seu comportamento nos velhos tempos, quandofazíamos corridas no jardim e, de um momento para o outro,sem motivo aparente, estacava, sacudia a cabeça emolduradapelos caracóis, dizia ??Não quero brincar mais,? e olhava-mecom a mesma expressão obstinada.- Sabes perfeitamente que não entendo nada de jardinagem - repliquei. E acrescentei maliciosamente: - O mau humor ainda não te passou?- Mau humor? - repetiu, empertigando-se e corando.- Não percebo ao que te referes.- Percebes, sim. Estiveste de trombas todo o domingo.Via-se à distância. Nem sei como as filhas dos Pascoe não comentaram o facto.- As filhas dos Pascoe, como todos os outros, deviam tera atenção concentrada noutra coisa.- Em quê, pode-se saber?- Como deve ser fácil para uma mulher com experiênciado mundo, como Mistress Ashley, manobrar um jovem comotu a seu bel-prazer!Dei meia volta e retirei-me apressadamente, receoso de quenão conseguisse dominar a vontade de a esbofetear.Capítulo décimo terceiroQuando me encontrei de novo em casa, depois de percorrer a estrada desde Pelyn e cruzar a aldeia, devia ter cobertouns trinta quilómetros. Detivera-me para tomar um copo decidra no bar da estalagem, mas não comera nada, pelo que meachava positivamente faminto às quatro da tarde.Na realidade, o relógio do nosso campanário acabava de asbadalar quando me dirigia para o estábulo, onde quis o infortúnio que Wellington, e não o moço de estrebaria, se encontrasse naquele momento.- Isto assim não pode ser, Mister Philip - articulou, meneando a cabeça ao ver o Cigano coberto de espuma de transpiração, enquanto eu desmontava com uma sensação de culpa.- Sabe perfeitamente que o animal pode resfriar-se se aquecerdemasiado, e trá-lo transformado numa caldeira. Não está emcondições de perseguir raposas, se porventura se dedicou a semelhante actividade.- Se tivesse estado a perseguir raposas, não usava esta indumentária nem tentaria apanhá-las com as mãos - retorqui,agastado. - Não digas disparates, homem. Fui a casa de Mister Kendall e no regresso dei uma volta maior do que pretendia. De qualquer modo, não creio que aconteça nada de malao Cigano.- Oxalá que não - grunhiu, começando a passar as mãospelos flancos do cavalo.Entrei em casa e refugiei-me na biblioteca. O lume estavaaceso, mas não havia vestígios da minha prima Raquel, peloque chamei Seecombe.- Onde está Mistress Ashley?- A senhora entrou pouco depois das três, após ter estadoa trabalhar lá fora com os jardineiros desde que o senhor

saiu.O Tamlvn encontra-se agora comigo na sala comum do pessoal. Diz que nunca tinha visto nada assim. A senhora é umaautêntica autoridade na matéria. Uma maravilha, segundo ele.- Deve estar exausta.- Também tive esse receio e sugeri que fosse descansar,mas nem quis ouvir falar nisso. ??Diga aos rapazes que tragamágua quente. Quero tomar um bom banho", foram as suas palavras. ??De caminho, lavarei a cabeça." Propus que a minhasobrinha a ajudasse, mas recusou com firmeza.- Depois, que me preparem também um banho. Tive umdia esgotante. E morro de fome. Quero jantar cedo.- Muito bem, Mister Philip. As cinco menos um quarto?- Sim, se achas que é possível.Subi ao quarto a assobiar, para me instalar na banheira fumegante diante da lareira. Os cães seguiram-me, provenientesdos aposentos de Raquel. Haviam-se acostumado totalmente àsua presença e acompanhavam-na a toda a parte. O velho Donaguardava-me no topo da escada e agitava a cauda de contentamento.- Olá, amigo. És-me infiel, sabias? Trocaste a minha companhia pela de uma senhora.Lambeu-me a mão com a língua áspera e olhou-me com ohabitual ar submisso.Não tardaram a vir encher a banheira, e foi agradável permanecer sentado na água quente e lavar-me lentamente, aomesmo tempo que assobiava com notável desafinação. Quandome secava com a toalha, vi que havia uma jarra com flores emcima da mesa-de-cabeceira. Era a primeira vez que alguém selembrava de me distinguir com aquela gentileza. Seecombe nãotomaria semelhante iniciativa, e o restante pessoal ainda menos. Só podia ter sido a minha prima Raquel. A presença dasflores contribuiu para me acentuar a boa disposição. Por muito tempo que ela tivesse consagrado à jardinagem, ainda lhesobrara o suficiente para se lembrar de mim. Vesti-me parajantar, enquanto continuava a assobiar. Por fim, atravessei ocorredor e bati à porta do boudoir.- Quem é? - perguntou Raquel.- Eu, o Philip. Vim avisá-la de que hoje jantamos maiscedo. Estou faminto e você também, suponho, a avaliar pelosrumores que circulam. Que demónio esteve a fazer com oTamlyn para precisar de tomar banho e lavar a cabeça?A resposta foi precedida de uma risada divertida.- Abrimos subterrâneos, como as toupeiras.- Enterraram-se até aos cabelos?- Estava cheia de terra. Já tomei banho e agora seco o cabelo. Julgo-me suficientemente apresentável e até me pareçocom a tia Phoebe. Pode entrar.Abri a porta e entrei no boudoir. Ela encontrava-se sentadano banco diante do lume e, por instantes, quase não a reconheci, de tal modo estava diferente, sem o luto. Envolvia-a umroupão branco e tinha o cabelo puxado para o alto da cabeça,em vez de meticulosamente separado ao meio.Decidi para comigo que nunca vira ninguém tão pouco parecido com a tia Phoebe ou qualquer outra

tia.- Sente-se - convidou. - E não faça uma cara tão assombrada.Fechei a porta atrás de mim e ocupei uma poltrona, enquanto dizia:- Desculpe, mas nunca tinha visto uma mulher de roupão.- É o trajo com que costumo tomar o pequeno-almoço.O Ambrose chamava-lhe roupão de freira. - Ergueu os braços e começou a colocar ganchos no cabelo. - Aos vinte equatro anos de idade, é altura de assistir a uma agradávelcenadoméstica, como a da tia Phoebe a arranjar o cabelo. Está embaraçado?Cruzei os braços sobre o peito, tracei a perna e continuei aobservá-la.- Nem por sombras - asseverei. - Apenas surpreendido.Tornou a rir sem interromper a aparentemente delicada ecomplicada tarefa, que, não obstante, completou em poucosminutos.- Faz isso todos os dias e em tão pouco tempo? - perguntei, admirado.- Tem muito que aprender, Philip. Nunca viu a sua Louise cuidar do cabelo?- Não, nem quero ver - apressei-me a replicar, com a recordação súbita das palavras de despedida da moça quando meretirava de Pelyn.Raquel soltou nova risada e largou um gancho em cima domeu joelho.- Uma recordação. Ponha-o debaixo do travesseiro e observe a expressão do Seecombe de manhã, durante o pequeno-almoço. - Passou do boudoir ao quarto contíguo, mas deixou a porta aberta. - Pode continuar aí sentado e levantar avoz para conversar comigo, enquanto me visto.Dirigi uma mirada furtiva à pequena escrivaninha, para verse havia algum sinal da carta do meu padrinho, mas não descortinei nada. Talvez a tivesse no quarto. Era possível quedecidisse não a mencionar e considerasse o assunto de interesseexclusivo de ambos. Pelo menos, eu acalentava essa esperança.- Onde esteve todo o dia? - perguntou, do quarto.- Tive de ir à vila tratar de uns assuntos - informei,consciente de que não necessitava de aludir ao banco.- O tempo passou-se agradavelmente, com o Tamlyn e osjardineiros. Foram pouquíssimas as plantas que não se aproveitaram. Mas ainda há muito para fazer: limpar o solo deervas daninhas, abrir uma passagem entre os canteiros, etc.Dentro de menos de vinte anos, pode dispor de um jardim dePrimavera que a Cornualha em peso virá admirar.- Sim, era essa a intenção do Ambrose.- No entanto, a plantação exige cuidados especiais, que senão podem deixar ao sabor do acaso e do Tamlyn. Ele esforça-se com dedicação, mas os seus conhecimentos na matéria sãolimitados. Porque não se interessa você mais pelo jardim?- Não possuo a bagagem necessária. Aliás, o Ambrose tinha plena consciência disso.- Deve haver alguém que o possa ajudar. Podia, porexemplo, mandar vir um perito de Londres.Abstive-me de replicar. Não desejava chamar um perito deLondres. Tinha a certeza de que ela dispunha de conhecimentos mais do que suficientes.Naquele momento, bateram à porta do boudoir e assomou

a cabeça do mordomo.- Que há, Seecombe? - perguntei. - O jantar estápronto?- Não, senhor. O Dobson acaba de chegar com um bilhete de Mister Kendall para a senhora.Senti o coração cair-me aos pés. O miserável decerto efectuara uma paragem num botequim do caminho, para se apresentar tão tarde. Agora, ver-me-ia forçado a assistir,enquantoRaquel lia a mensagem. Ouvi Seecombe bater à porta abertado quarto e entregar a carta.- Vou esperar por si lá em baixo, na biblioteca - anunciei.- Não, deixe-se estar. Já falta pouco e poderemos descerjuntos. A carta é de Mister Kendall. Talvez se trate de umconvite para visitarmos Pelyn.Entretanto, o mordomo desaparecera no corredor e, levantando-me, lamentei não poder seguir-lhe o exemplo. Sentia-mesubitamente enervado. Não transpirava o mínimo som doquarto azul. Ela devia estar a ler a carta. Pareceu escoar-seuma eternidade. Por último, surgiu à porta de comunicação,com a missiva aberta na mão. Achava-se devidamente trajadapara jantar. Talvez fosse o contraste da tez com o luto que afazia parecer tão pálida.- Que andou a fazer? - inquiriu, numa inflexão diferente, tensa mesmo.- A fazer? - ecoei. - Nada. Porquê?- Não minta, Philip, que não é capaz.Conservei-me imóvel diante do lume, preocupado em fixara vista em qualquer lugar menos nos olhos acusadores dela.- Esteve em Pelyn - acrescentou. - Foi lá para se avistar com o seu tutor.Tinha razão. Eu era o pior dos mentirosos. Pelo menos, noque lhe dizia respeito.- E depois? - balbuciei.- Convenceu-o a escrever esta carta.- Não fiz nada do género - aleguei, engolindo em seco.- Ele escreveu-a espontaneamente. Tínhamos uns assuntos atratar e aconteceu virem à baila vários pormenores legais...- E você disse-lhe que a sua prima Raquel tinha decididodar lições de italiano, não foi?- Não exactamente - protestei em voz débil.- Devia ter compreendido que estava a brincar consigo.Não pude deixar de reflectir que, se fora mera brincadeira,porque se mostrava tão enxofrada comigo?- Nem imagina o que fez - volveu. - Obriga-me a estarprofundamente envergonhada. - Acercou-se da janela, decostas para mim. - Se pretendia humilhar-me, não podia terescolhido uma maneira mais eficiente.- Não compreendo porque tem de ser tão orgulhosa.- Orgulhosa? - Voltou-se e olhou-me com uma expressão quase furiosa. - Como se atreve a chamar-me isso?Agora, encontrava-me literalmente embasbacado, sobretudo porque uma pessoa que, momentos antes, gracejara comigose apresentava irritada a um grau inconcebível. De repente,descobri que o nervosismo me abandonava. Avancei para ela eestaquei a dois passos.

- Insisto em chamar-lhe orgulhosa. Vou mesmo mais longe e considero-a horrivelmente orgulhosa. Sou eu que corro orisco de me humilhar e não você. Não foi a brincar que anunciou a intenção de dar lições de italiano. A afirmação surgiucom demasiada prontidão para se tratar de um gracejo. Disse-ocom absoluta sinceridade.- E se o disse? - retrucou, com uma expressão de desafio. - Há algo de vergonhoso no facto de dar lições deitaliano?- De um modo geral não, mas a situação muda de aspectono seu caso. Mistress Ambrose Ashley a dar lições deitalianoé vergonhoso, reflecte-se no marido, que se absteve de a incluir no testamento. E eu, Philip Ashley, seu herdeiro, nãoopermitirei. Receberá esse rendimento até ao último péni,primaRaquel, e quando for levantar o dinheiro ao banco queira terpresente no espírito que não provém da propriedade, nemdo herdeiro da mesma, mas do seu falecido marido, Ambrose Ashley.À medida que falava, apoderava-se de mim uma cólera nãoinferior à dela. Demónios me levassem se permitiria que qualquer criatura pequena e frágil me acusasse de a humilhar e,ainda mais, recusasse o dinheiro que lhe pertencia por direitopróprio.- Entendeu o que acabo de lhe dizer? - perguntei.Por instantes, pensei que me agrediria. Manteve-se imóvel,como que petrificada, a olhar para mim. De súbito, os olhosmarejaram-se e precipitou-se para o quarto, cuja porta fechouruidosamente. Desci à sala de jantar, toquei a sineta ecomuniquei a Seecombe que duvidava de que Mrs. Ashley comparecesse para comer. Em seguida, verti clarete num copo e sentei-me à cabeceira da mesa. ??Com que então, é assim que asmulheres se comportam!??, reflecti. Nunca me sentira tão enfurecido e esgotado. Longos dias ao ar livre, a trabalhar com opessoal na época da colheita; discussões com os caseiros atrasados no pagamento da renda ou envolvidos em desavençascom vizinhos que eu tinha de solucionar - nada disso secomparava com cinco minutos perante uma mulher cuja boadisposição se convertera, num mero instante, em aberta hostilidade. A arma final consistiria sempre nas lágrimas? Porqueelas conheciam perfeitamente o efeito no sexo oposto? Servi-me novamente do clarete. Quanto a Seecombe, na expectativaatrás de mim, desejava-o a quilómetros dali.- A senhora está indisposta? - acabou por perguntar.Eu podia ter-lhe explicado que a senhora estava menos indisposta do que furiosa e provavelmente tocaria a campainha atodo o momento, a fim de pedir a Wellington que a transportasse na carruagem para Plymouth.- Não, mas ainda não acabou de secar o cabelo. É melhordizeres ao John que lhe leve qualquer coisa no tabuleiro.Depreendi que era àquilo que os homens se expunhamquando casavam. Portas fechadas estrondosamente e depois silêncio. Jantar sem companhia. Por conseguinte, o apetite,

estimulado pelas numerosas horas ao ar livre, descontração nabanheira e antevisão do prazer de um serão calmo junto da lareira, passado em diálogo intermitente, a observar as mãosbrancas e pequenas a moverem-se com eficiência no trabalhode renda, tinha forçosamente de se extinguir. Com que euforiame vestira para jantar, atravessara o corredor, batera à portadoboudoir e a encontrara sentada diante do lume, envolta numbelo roupão branco, com o cabelo puxado para o topo da cabeça! Com que facilidade havíamos partilhado a boa disposição, numa espécie de intimidade que proporcionava uma aurade beatitude à perspectiva do serão a sós! E agora, desterradona sala de jantar, com um bife que me suscitava tanto apetitecomo se fosse um pedaço de sola. E que estaria ela a fazer?Encontrar-se-ia deitada na cama? Achar-se-iam as velas apagadas, os cortinados corridos e o quarto imerso na escuridão?Ou a agressividade ter-se-ia dissipado e permanecia sentada noboudoir, de olhos secos, a comer com voracidade, para impressionar Seecombe? Era-me impossível determiná-lo. Nem meinteressava. Ambrose não se equivocava quando afirmava queas mulheres constituíam uma raça à parte. Para já, uma coisaera certa: eu nunca casaria...Terminado o jantar, fui sentar-me na biblioteca. Acendi ocachimbo, estendi as pernas à minha frente e preparei-me paraa sonolência pós-refeição, que se pode revelar agradável ecalmante em circunstâncias normais, mas naquela altura careciade todo o atractivo. Habituara-me à presença dela na poltronadiante de mim, os ombros voltados ligeiramente para que a luzincidisse no seu trabalho, com o velho Don aos pés, porémagora o seu lugar parecia singularmente vazio. Enfim, ao diabocom tudo aquilo, com a possibilidade de uma mulher poderperturbar o final de um dia. Levantei-me, procurei um livro naestante e folheei-o. Creio que adormeci, porque quando erguios olhos o relógio da parede indicava quase nove horas. Chegara, pois, o momento de ir para a cama e dormir. Não merecia a pena continuar a pé, com o lume apagado. Levei os cãespara o canil - o tempo mudara e chovia, com vento forte -,tranquei as portas e subi ao meu quarto. Preparava-me paracolocar o casaco no espaldar da cadeira, quando vi um bilhete,apoiado à jarra de flores em cima da mesa-de-cabeceira. Desdobrei-o e verifiquei que era de Raquel.??Caro Philip: se lhe for possível, agradecia que perdoasse a minha grosseria desta noite. É a todos os títulos imperdoável comportar-me assim em sua casa. Não tenhoqualquer justificação, salvo que não estou inteiramenteem mim nos últimos tempos e a emoção persiste muitoperto da superfície. Escrevi ao seu tutor para lhe agradecer a carta e aceitei a oferta pecuniária. Foram ambos extremamente generosos. Boa noite, Raquel.??Voltei a lê-lo e guardei-o na algibeira. Poderia concluir-seque o orgulho fora dominado, juntamente com a irritação? Ossentimentos dissolver-se-iam com as lágrimas? A aceitação dodinheiro tirava-me um peso dos ombros. Com efeito, previranova visita ao banco, com mais explicações e anulação das ordens anteriores, a que se seguiriam reuniões com o meu padrinho, argumentações e um desenlace que se traduziria com apartida da minha prima Raquel para Londres, onde se sustentaria dos proventos que as lições de

italiano lhe proporcionassem.Ter-lhe-ia custado muito escrever aquelas linhas? O saltodo orgulho para a humildade? Desagradava-me admitir o factode que tivera de proceder assim. Pela primeira vez desde a suamorte, descobri-me a atribuir a Ambrose a culpa do que acontecera. Podia perfeitamente ter tomado providências para assegurar o futuro da esposa. Uma doença súbita e morte imprevista aconteciam a qualquer pessoa. Decerto sabia que, assim,deixava Raquel ao sabor da nossa comiseração e mesmo danossa caridade. Uma simples carta endereçada ao meu padrinho evitaria tudo aquilo. Acudiu-me a visão de ela sentada noboudoir da tia Phoebe a redigir aquele bilhete. Perguntei-mese ainda lá se encontraria ou já se deitara. Hesitei por um momento e atravessei o corredor até à arcada junto dos seus aposentos.A porta do houdoir estava aberta, mas a do quarto fechada.Bati a esta última e, por uns instantes, obtive o silênciocomoúnica resposta, até que ela perguntou:- Quem é?Abri e entrei, sem me identificar previamente. O quartoestava imerso na escuridão, e o clarão da minha vela revelou-me que as cortinas da cama se achavam entreabertas e os contornos dela sob o edredão.- Acabo de ler o seu bilhete - informei. - Queria agradecer-lhe e desejar as boas-noites.Pensei que se soergueria e acenderia a vela do castiçal damesa-de-cabeceira, mas não o fez. Conservou-se deitada, a cabeça pousada na almofada, atrás das cortinas.- Queria também que soubesse que não tive a menor intenção de armar em paternalista - acrescentei. - Acredite,por favor.A voz proveniente detrás das cortinas era singularmentecalma e abafada:- Nunca me passou pela cabeça que tivesse. - Fez umabreve pausa. - Não me preocuparia ter de dar lições de italiano. Não possuo qualquer preconceito a esse respeito. O quenão pude suportar foi você dizer que se reflectiria negativamente no Ambrose.- E é verdade - reiterei -, mas deixemos isso agora.- Foi extrema gentileza e bondade de sua parte ir a Pelynavistar-se com o seu padrinho. Deve ter-me julgado inconcebivelmente ingrata. Nunca me perdoarei semelhante atitude.Notei que se achava sinceramente emocionada e acudiu-meuma sensação penosa na garganta e no estômago.- Preferia que me batesse a vê-la chorar - murmurei.Ouvi-a mover-se na cama, procurar um lenço e assoar-se.O gesto e o som, tão vulgares e simples, verificados atrás dascortinas, tornaram a sensação ainda mais aguda.- Aceito a mesada, ou como lhe quiser chamar, Philip,mas não posso abusar da sua hospitalidade para além desta semana. Na próxima segunda-feira, se não vir inconveniente,abandonarei esta casa, possivelmente rumo a Londres.Estas palavras produziram-me como que um abalo.- Londres? Porquê? Com que objectivo?- Vim passar apenas uns dias e já excedi o período que

me impusera.- Mas ainda não conhece toda a gente. Não fez tudo oque se esperaria de si.- Que importa? No fundo, parece tudo inútil.A inflexão da voz alterara-se ao ponto de não parecer asua, como se carecesse de vida.- Supus que lhe agradava percorrer a propriedade e visitaros caseiros. Nas vezes que o fizemos juntos parecia contente.E hoje, ao proceder à plantação com o Tamlyn... Não passavade simulação e limitava-se a manifestar delicadeza?Não respondeu imediatamente, até que articulou pausadamente:- Às vezes, penso que lhe falta toda e qualquer compreensão.Talvez fosse verdade. Sentia-me acabrunhado e magoado, epreocupava-me pouco com o resto.- Muito bem - acedi. - Se quer partir, faça-o. Suscitarácomentários, mas paciência.- Estava convencida de que suscitaria mais se ficasse.- Se ficasse?! Que quer dizer com isso? Não compreendeque pertence aqui por direito próprio e, se o Ambrose nãofosse tão imprevidente, seria o seu lar?- Meu Deus! - exclamou, subitamente irritada. - Porque outra razão julga que vim?Eu tornara a cometer uma gaffe. Inconsciente e desprovidode facto, dissera tudo o que não devia. Sentia-me exasperado eaproximei-me da cama, afastei as cortinas e contemplei-a. Encontrava-se reclinada na almofada, as mãos unidas sobre o peito. Usava algo de indefinido devido à penumbra, branco, comrendas em torno do pescoço como uma sobrepeliz, o cabelosolto atado sobre a nuca com uma fita, o que me fez pensarem Louise quando criança. O facto impressionou-me e, aomesmo tempo, produziu certa surpresa: parecia curiosamentejovem.- Não sei porque veio ou a meta de tudo o que fez. Possoconsiderar-me um ignorante a seu respeito e das mulheres emgeral. A única coisa de que tenho a certeza é que a suapresença me agrada e não quero que parta. Acha isto complicado?Levou as mãos ao rosto, num gesto quase defensivo, comose receasse que a agredisse.- Acho - assentiu. - Muito.- Nesse caso, é você que o complica e não eu.Cruzei os braços sobre o peito e olhei-a, assumindo umaserenidade que estava longe de sentir. Não obstante, de certomodo, desfrutava de uma posição vantajosa, dadas as circunstâncias. Não compreendia como uma mulher de cabelo solto,o que a tornava numa jovem, podia estar encolerizada.Vi os olhos marejarem-se. Enquanto ela procurava no espírito um pretexto plausível, uma nova razão para partir,acudiu-me uma inspiração repentina.- Disse esta tarde que devia chamar um perito de Londrespara se ocupar do jardim. Sei que era também a intenção doAmbrose. Acontece que não conheço nenhum e, de qualquermodo, enlouqueceria de irritação se tivesse um indivíduo desses à minha volta. Se você sente alguma atracção por isto, sabendo o que representava para ele, continuará cá por uns meses, a fim

de tratar do assunto.O tiro atingiu o alvo. Raquel fixou o olhar na sua frente,enquanto movia os dedos em torno da aliança. Como eu tiveraoportunidade de observar, tratava-se de um gesto instintivosempre que estava preocupada. Aproveitei a vantagem momentânea para prosseguir:- Nunca consegui, e o Tamlyn tão-pouco, diga-se de passagem, entender os planos que o Ambrose costumava traçar.O chefe dos jardineiros tem-me consultado com frequência arespeito de dúvidas que não sou capaz de esclarecer. Se vocêficasse (nem que fosse apenas durante o Outono, época maisapropriada para a plantação), seria uma grande ajuda.- Penso que deve pedir a opinião ao seu padrinho - sugeriu, continuando a mover os dedos na aliança.- Ele não tem nada a ver com isto. Julga-me um colegialinconsciente? Existe somente um factor a considerar: saber sevocê deseja ficar. Se quiser realmente partir, não a podereiimpedir.- Porque me pergunta isso? - proferiu em voz curiosamente submissa. - Sabe que quero ficar.Como podia eu saber, santo Deus, se ela deixara transparecer precisamente o contrário?- Nesse caso, adiará a partida por uns tempos, para cuidardo jardim? É ponto assente e não voltará com a palavra atrás?- Sim, ficarei por uns tempos.Tive dificuldade em me abster de sorrir. O seu olhar exibiauma expressão grave e acudiu-me o receio de que, se o fizesse,ela mudasse de ideias. Contentei-me, pois, com celebrar otriunfo intimamente.- Muito bem. Sendo assim, desejo-lhe uma boa noite.E quanto à sua carta para o meu padrinho? Quer que a façaseguir?- Já a entreguei ao Seecombe.- Nesse caso, deixou de estar zangada comigo?- Não estava zangada consigo, Philip.- Pareceu-me o contrário. Receei mesmo que me agredisse.- Às vezes, é tão estúpido... - murmurou, depois de meolhar em silêncio por um momento. - Um dia, sou muito capaz de o fazer. Venha cá. - Aproximei-me e o meu joelhocontactou com o edredão. - Incline-se. - Segurou-me o rosto entre as mãos e beijou-me. - Agora, vá-se deitar como umbom rapaz e durma bem. - Impeliu-me para fora das cortinas, que uniu.Quase cambaleei, com o castiçal na mão, enquanto abandonava o quarto, eufórico e aturdido simultaneamente, comose tivesse exagerado o consumo de brande, e afigurou-se-meque a vantagem que julgara ter sobre ela se perdera por completo. O aspecto de jovem indefesa e a sobrepeliz haviam-meiludido. Não deixara de ser mulher um único instante. Apesardisso, sentia-me contente. O mal-entendido dissipara-se e aminha prima Raquel prometera ficar. Não houvera mais lágrimas.Em vez de ir imediatamente para a cama, tornei a entrar nabiblioteca, a fim de escrever duas ou três linhas ao meupadrinho, para lhe assegurar que tudo correra bem. Não necessitavade se inteirar do serão mais ou menos tempestuoso que acabávamos de atravessar. Depois, introduzi a missiva num sobrescrito e levei-a para a mala da correspondência que se

encontrava no átrio e seguiria pela manhã.Como era hábito, Seecombe deixara-a em cima da mesa,com a chave ao lado. Quando a abri, tombaram-me na mãoduas cartas, ambas do punho de Raquel. Uma destinava-se aNick Kendall, como ela me dissera. A segunda exibia o nomee o endereço de Rainaldi, em Florença. Enruguei a fronte poruns instantes e voltei a colocá-las na mala. Porque não haviaaminha prima de escrever a um amigo? Nada mais natural ecompreensível. No entanto, enquanto subia em direcção aomeu quarto, assolava-me a suspeita, indefinida sem dúvida, deque me ludibriara.No dia seguinte, quando desceu e fui ter com ela ao jardim, Raquel parecia tão contente e despreocupada como senunca se tivesse registado o mínimo atrito entre nós. A únicadiferença na sua atitude para comigo era que se mostrava maisatenciosa e cordial. Implicava menos, ria comigo e não de mime pedia-me a opinião sobre a plantação das flores, não em virtude de conhecimentos na matéria, que não possuía, mas tendo em conta o meu prazer futuro quando as contemplasse.- Proceda como lhe parecer melhor - indiquei. - Mande os homens alterar tudo radicalmente, se quiser, porque souuma nulidade na matéria.- Mas desejo que o resultado lhe agrade, Philip. Tudo istopertence-lhe e um dia será dos seus filhos. Suponha que introduzo alterações que depois não lhe agradam, já sem possibilidade de remediar o mal?- Hão-de me agradar, estou certo. E pare de falar dosmeus filhos, pois estou firmemente decidido a permanecer solteiro.- O que representa uma atitude essencialmente egoísta euma estupidez da sua parte.- Discordo. Creio que, mantendo-me solteiro, evitareimuitas preocupações.- Nunca pensou no que perderá?- Tenho a não muito vaga impressão de que as vantagensdo matrimónio não correspondem totalmente ao que se apregoa. Se é ternura e conforto que um homem procura, e algo debelo para contemplar, pode obter tudo isso em sua própria casa, se a estima o suficiente.Soltou uma gargalhada tão ruidosa que Tamlyn e os jardineiros ergueram a cabeça para nos olhar com perplexidade.- Um dia, quando se apaixonar, recordar-lhe-ei essas palavras - advertiu ela. - Ternura e conforto fornecidos porparedes frias, aos vinte e quatro anos. Francamente, Philip! -- E a *hilaridade repetiu-se.Quanto a mim, não descortinava o mínimo motivo pararir, e repliquei:- Compreendo perfeitamente ao que se refere. Sucedeapenas que nunca senti qualquer inclinação nesse sentido.- Vê-se com clareza. Deve ser o despedaçador de coraçõesda região. Coitada da Louise...Mas não estava disposto a deixar-me arrastar para uma discussão acerca de Louise ou uma dissertação sobre o amor e ocasamento. Interessava-me muito mais vê-la trabalhar no jardim.O mês de Outubro apresentava-se excepcionalmente benigno e, nas primeiras três semanas, praticamente não choveu,

pelo que Tamlyn e os seus homens, sob a orientação de Raquel,puderam adiantar os trabalhos de forma notável. Conseguimosigualmente arranjar tempo para visitar todos os caseiros dapropriedade, o que lhes proporcionou grande satisfação, como euprevira. Conhecia-os desde a infância e procurava-os com regularidade, consciente de que me competia fazê-lo. Tratava-se,todavia, de uma experiência nova para a minha prima, quecrescera em Itália num sistema de vida muito diferente. Assuas maneiras eram impecáveis e produziram-me particular satisfação. Fazia as perguntas apropriadas e dava as respostasconvenientes. Por outro lado - pormenor que mais contribuiu para a aceitação de que foi alvo -, dir-se-ia achar-sefamiliarizada com todos os seus problemas e meios necessáriospara os solucionar. ??Juntamente com os conhecimentos de jardinagem, sou entendida em ervas medicinais??, esclareceu. ??EmItália, é vulgar estudarem-se essas coisas.?? E forneciaindicações sobre a maneira mais eficaz de debelar, ou mesmo pôrtermo, aos seus achaques.- Imagino que está a antever o que acontecerá - observei. - Vão tomá-la pela parteira do distrito. Prepare-se paraser chamada a meio da noite para trazer bebés ao mundo.- Também existe uma tisana para isso, feita de folhas deamoreira e cardos - replicou. - Se uma mulher a tomar durante os seis meses anteriores ao parto, terá a criança semdor.- Isso é bruxaria. Elas não aceitariam um tratamento dessa natureza.- Que disparate! Porque hão-de as mulheres sofrer desnecessariamente?Por vezes, à tarde, procuravam-na, como eu previra. E revelava-se tão eficiente com a ??nobreza?,, segundo aterminologia de Seecombe, como com a plebe. Não tardei a inteirar-mede que ele vivia nas suas sete quintas, por assim dizer.Quandoas carruagens paravam à nossa porta, às terças ou quintas-feiras, às três horas da tarde, encontrava-se à espera noátrio.Ainda trajava de luto, mas a jaqueta era nova, reservada paraessas ocasiões. O infortunado John tinha a seu cargo a missãode introduzir os visitantes e confiá-los ao seu superiorhierárquico, o qual, com passos lentos e solenes, os precedia em direcção à sala de estar, cuja porta abria para anunciar osnomes,como numa recepção formal. Antes disso, discutia com Raquela possibilidade de uma ou outra pessoa aparecer e fornecia-lheum breve resumo da história da respectiva família até ao momento presente. De um modo geral, acertava na profecia dequem viria, e nós perguntávamo-nos se haveria algum métodode enviar mensagens de uma casa para outra através das instalações do pessoal doméstico para proporcionar as informaçõesnecessárias, como os tambores dos selvagens na floresta. Porexemplo, Seecombe comunicava a Raquel que tinha a certezade que Mrs. Tremayne mandara aprontar a carruagem para atarde de quinta-feira e levaria consigo a filha casada, Mrs.

Gough, e a solteira, Miss Isobel, e a minha prima devia precaver-se quando se dirigisse a esta última, porquanto a jovemsofria de uma deficiência na fala. Ou então, que, em determinadaterça-feira, a velha Lady Penryn decerto apareceria, porquecostumava visitar a neta nesse dia, a qual vivia apenas aquinzequilómetros de nós, e Raquel devia abster-se de aludir a raposas na sua frente, porque a anciã sofrera um susto profundoprovocado por um daqueles animais pouco antes do nascimento do filho mais velho e o rapaz adquirira o estigma sob aforma de um sinal congénito no ombro esquerdo.- Durante todo o tempo em que ela esteve cá, tive de meesforçar por evitar que a conversa abordasse o tema da caça -- explicou-me Raquel, mais tarde. - Apesar disso, parecia empenhada em não falar de outra coisa. Foram momentos particularmente difíceis.Havia sempre um ou outro episódio relacionado com asvisitantes com que me acolhia quando eu regressava a casa, depois de vir pelo bosque, a fim de não me cruzar com elas. Aspessoas e respectivas vidas revestiam-se sempre de um interesse especial, e costumava dizer, ante as minhas objecções:??Istoé tudo muito diferente da sociedade em Florença. Sempre desejei conhecer os hábitos da vida no campo, em Inglaterra.Agora, começo a fazer uma ideia. E cada vez me agrada mais."- Não concebo nada de mais monótono do que discutirgeneralidades com alguém, em Florença ou na Cornualha -- observei uma ocasião.- Você é um caso perdido e acabará por se tornar numhomem de vistas estreitas, que só pensará em nabos e couves.Às vezes, afundava-me numa poltrona da sala e pousava asbotas enlameadas no banco, para a provocar, mas se o factolhe desagradava nunca o deixava transparecer.- Vá, conte-me o último escândalo da aldeia - solicitava-lhe noutras alturas.- Para quê, se sei que não lhe interessa? - replicava.- Porque gosto de a ouvir falar.Por conseguinte, antes de subir ao quarto para se vestir para o jantar, regalava-me com os mexericos da região: os últimos casamentos e mortes, os bebés de nascimento iminente,etc. Raquel parecia desfrutar mais com uma conversa de vinteminutos com uma desconhecida do que se se tratasse de umaamizade de tempos imemoriais.- Como eu suspeitava - informou -, você constitui odesespero de todas as mães num raio de oitenta quilómetros.- Como assim?- Não se digna olhar para as suas filhas. Um homem tãoalto, apresentável e disponível em todos os aspectos... ??Porfavor, Mistress Ashley, convença o seu primo a conviver mais."- E qual é a sua resposta?- Que você encontra toda a ternura e distracção de quenecessita dentro destas quatro paredes. Pensando melhor- acrescentou -, a frase talvez não esteja devidamente construída. Preciso de ter mais cuidado com a língua.- É-me indiferente o que lhes diz, desde que não envolvaum convite. Não tenho o mínimo desejo de procurar a filha de

ninguém.- As apostas concentram-se pesadamente na Louise. Sãonumerosas as vozes convencidas de que ela acabará por caçá-lo. A terceira Miss Pascoe também ocupa um lugar cimeironos prognósticos.- Com a breca! - bradei, escandalizado. - Belinda Pascoe? Preferia casar com a Katie Searle, que ganha a vida alavarroupa. Aqui para nós, prima Raquel, devia fazer um esforçopara me proteger. Porque não diz a essas almas caridosas quesou um lobo solitário e passo o tempo a escrevinhar versoslatinos? Creio que isso bastaria para as desencorajar.- Nada as desencorajará. A ideia de que um jovem e bem-parecido homem solteiro prefere a solidão e a poesia latinasóserviria para lhe conferir um aspecto mais romântico. Essascoisas estimulam o apetite.- Então, que o satisfaçam noutro lugar. O que mais meintriga é as mentes das mulheres desta parte do mundo (talvezseja o mesmo em todos os lados) só se concentrarem no matrimónio.- Pouco mais têm em que pensar. As possibilidades de escolha são muito limitadas. Eu própria não escapo, pode crer, eforneceram-me uma lista de viúvos disponíveis. Há um par doreino que vive no Oeste da Cornualha e reúne as condiçõesideais: cinquenta anos, herdeiro, com as duas filhas casadas.- Não me diga que é o velho Saint Ives? - articulei, abismado.- Esse mesmo. Uma pessoa encantadora, segundo me asseguraram.- Uma pessoa encantadora, hem? Ao meio-dia já está bêbado como um cacho e frequenta os caminhos solitários atrásdas serviçais. Billy Rowe, das terras de Barton, teve uma sobrinha a trabalhar em casa do Saint Ives, e um dia ficou tãoapavorada que fugiu sem ter tempo de levar a bagagem.- Quem é que está agora a acreditar em mexericos? Coitado do homem... Se tivesse uma esposa, não necessitava defrequentar os caminhos solitários atrás das serviçais. É claroque tudo dependeria da companheira.- Seja como for, com esse é que você não casa - declareicom firmeza.- Porque, ao menos, não o convida para jantar? - sugeriu, os olhos dominados por uma expressão solene que euaprendera a interpretar como malícia. - Podíamos promoveruma festa, Philip. As moças mais bonitas para si e os viúvosmais favorecidos pela fortuna para mim. Mas creio que já escolhi. Se, um dia, me decidir, optarei pelo seu padrinho, Mister Kendall. Tem uma maneira desassombrada de falar quemuito aprecio.É possível que ela o fizesse propositadamente, mas mordi oanzol e explodi:- Não acredito que fale a sério! Casar com o meu padrinho? Mas ele tem quase sessenta anos e é raro não estar resfriado ou sofrer de qualquer outra coisa.- Isso significa que não encontra em sua casa o calor econforto que existem nesta.Compreendi então que tentava desfrutar-me e rimos em

uníssono, mas mais tarde, ao ponderar o assunto, invadiu-meuma ponta de desconfiança. Não subsistiam dúvidas de que omeu padrinho se mostrava extremamente cortês nas suas visitas dominicais, e eles pareciam dar-se muito bem. Tínhamosjantado em casa dele duas ou três vezes e revelara atençõesqueeu lhe desconhecia. Mas havia dez anos que enviuvara e decerto não acalentava a ideia fantástica de tentar a sorte juntodaminha prima Raquel. De qualquer modo, ela não o aceitaria.A ideia indignou-me. A minha prima Raquel em Pelyn? A minha prima Raquel, Mrs. Ashley, convertida em Mrs. Kendall?Simplesmente monstruoso! Se um objectivo tão presunçosocruzava o espírito do velho, apressar-me-ia a cancelar os convites para o jantar de domingo. Por outro lado, isso representaria a interrupção de uma rotina de numerosos anos. Impossível, portanto. Assim, o costume tinha de se manter, mas, navez seguinte, quando ele, sentado à direita de Raquel,inclinouligeiramente a cabeça para ela e, de súbito, soltou uma gargalhada e disse ??Excelente, excelente!??, perguntei-me que temaestariam a abordar e porque riam tanto juntos. ??Trata-se demais um ardil de mulher??, reflecti. ??Assumir uma atitude quepermita as conclusões mais obscuras. ??Raquel sentava-se em perfeito à-vontade, durante o jantarde domingo, bem-humorada, com o meu padrinho à sua direita e o vigário à esquerda, ambos aparentemente munidos detópicos inesgotáveis para alimentar a conversa, e, sem motivoaparente, tornei-me meditativo e silencioso, como Louise fizera naquele primeiro domingo, e o nosso sector da mesa lembrava uma reunião de quacres. Ela fixava o olhar no seu pratoe eu no meu e, de repente, ergui a vista e surpreendi BelindaPascoe com os olhos cravados em mim, o que me acabrunhouainda mais, ao recordar os rumores a nosso respeito que circulavam na região. O nosso silêncio obrigava Raquel a maiores esforços, numa tentativa para o neutralizar, pelo que ela,omeu padrinho e o vigário procuravam exceder-se mutuamente,citando versos de autores célebres, enquanto o meu acabrunhamento se intensificava, embora em parte me congratulassecom a ausência de Mrs. Pascoe, graças a uma indisposição passageira. Louise não interessava. Não era obrigado a conversarcom ela.No entanto, quando todos se retiraram, Raquel chamou-me à pedra:- Quando recebo os seus amigos, conto com um certoapoio de sua parte, Philip. Que aconteceu? Passou todo otempo com uma cara horrível, sem dirigir uma única palavraàs suas vizinhas, coitadas. - E meneou a cabeça, num gestode desaprovação.- Reinava tanta alegria no vosso lado, que me pareceudesnecessário contribuir. Todos aqueles disparates sobre "Amo-te" em grego... E o vigário a proclamar que ??o prazer do meucoração?, soava melhor em hebraico!- E é verdade. A expressão brotou-lhe suavemente dos lábios e fiquei muito impressionada. O seu padrinho prometeu

mostrar-me o promontório do farol ao luar. Diz que é um cenário inesquecível.- Escusa de contar com isso - determinei. - O farol situa-se na minha propriedade. Há uma antiga olaria, de data indefinida, na propriedade dele. Que lhe mostre isso. O acessoestá coberto de cardos e espinhos.- Confesso que não compreendo o que se passa consigo.Está a perder o sentido do humor.Deu-me uma palmada amigável (proteccionista?) no ombroe seguiu para o quarto. Era isso o que mais me enfurecia numamulher. A última palavra tinha de lhe pertencer sempre, deixando o interlocutor imerso em indignação ou, pelo menos,perplexidade. Segundo parecia, uma mulher nunca se equivocava. Ou, se laborava em erro, manipulava-o em seu proveitoe conferia-lhe um aspecto diferente. Referia-se a um eventualpasseio ao luar com o meu padrinho, ou qualquer outra expedição com a mesma escolta - uma visita ao mercado de Lostwithiel, por exemplo - e perguntava-me, imperturbável, sedevia usar o novo chapéu que encomendara a um estabelecimento de Londres e chegara por portador especial ou um véude malha mais larga que permitia uma melhor observação dorosto. E se eu amuava, replicando que me era indiferente mesmo que ocultasse as feições com uma máscara, exibia um sorriso malicioso.Mais tarde, sós na biblioteca, sem a presença ou proximidade de Seecombe, a atitude alterava-se ligeiramente. Não meencarava com uma expressão divertida e manifestava, porexemplo, a intenção de confeccionar uma cobertura para a minha cadeira do escritório. Depois, serenamente, sem modos oupalavras irritantes, fazia-me perguntas sobre o meu dia - comquem estivera, o que fizera -, pelo que todo o meu amuo seesvaía. Entretanto, a situação não deixava de me intrigar.Paraquê começar por me espicaçar e depois esforçar-se por metranquilizar? Dir-se-ia que as alterações do meu estado de espírito lhe proporcionavam prazer, embora a causa escapasse àminha compreensão. Só sabia que no primeiro caso experimentava profundo desconforto e no segundo felicidade epaz.Perto do final do mês, o bom tempo terminou. Choveuininterruptamente durante três dias, o que não permitiu a continuação dos trabalhos de jardinagem, as minhas digressõesa cavalo ou (e ainda bem) as visitas das terças equintas-feiras.Foi Seecombe quem sugeriu aquilo que, inconscientemente,nós protelávamos: o exame aos bens de Ambrose. Abordou oassunto numa manhã em que Raquel e eu nos encontrávamosatrás dos vidros da janela da biblioteca, entretidos a contemplar a chuva torrencial.- O escritório para mim e o dia metida no boudoir parasi - decretei. - Que contêm as caixas acabadas de chegar deLondres? Mais vestidos para escolher, provar e devolver?- É tecido para cortinados - explicou ela. - Creio que avisão da tia Phoebe carecia de discernimento. O quarto azulacabou por se tornar cinzento. E a colcha da cama apresentapicaduras de traças, mas não diga nada ao Seecombe. A traçados anos. Também tenciono renová-la.

Foi naquele momento que Seecombe entrou e, ao ver-nosinactivos, propôs:- Dada a inclemência do tempo, achei que os rapazes podiam proceder a uma limpeza extraordinária. O seu quarto carece de atenção especial, senhor. Mas eles não podem fazer nada enquanto os baús e caixas de Mistress Ashley inundarem ochão.Dirigi uma mirada de través à minha prima, receoso de quea falta de tacto do mordomo a melindrasse, mas verifiquei,surpreendido, que reagia satisfatoriamente.- Tem toda a razão, Seecombe. Os rapazes não podemproceder à limpeza do quarto até que as caixas sejam esvaziadas. Já adiámos a tarefa demasiado. Que diz, Philip?- Concordo, se é esse o seu desejo. Manda acender o lume, Seecombe, e quando o quarto estiver devidamente aquecido subiremos.Creio que ambos procurávamos ocultar um ao outro o quepensávamos, e introduzimos uma espécie de jovialidade nanossa atitude e conversa. Ela estava empenhada, por minhacausa, em não denunciar apreensão. E eu, igualmente desejosode lhe poupar aborrecimentos, exteriorizava uma euforia emabsoluto estranha ao meu temperamento. A chuva fustigava asjanelas do meu antigo quarto e surgira uma camada de humidade no tecto. O lume, que não era aceso desde o Inverno anterior, ardia com um crepitar que parecia alheio ao ambiente.As caixas achavam-se alinhadas no chão, à espera de que asabrissem e, no topo de uma, via-se o familiar rótulo azul-escuro, com o monograma ??A.A.?, em largas maiúsculas, aum canto. Acudiu-me subitamente à memória que a depositarasobre os joelhos dele, no dia em que partira na carruagem.Raquel quebrou o silêncio que se estabelecera:- Começamos pelo baú da roupa?Exprimia-se em tom propositadamente duro e prático, eestendi-lhe as chaves que confiara a Seecombe, à chegada.- Como queira - repliquei.Introduziu a chave apropriada na fechadura, fê-la girar elevantou a tampa. O seu velho roupão encontrava-se em cima.Eu conhecia-o bem - era de seda espessa vermelho-escura.Os chinelos também estavam aí, alongados e abaulados.¨Olhei-os pensativamente, e foi como um regresso ao passado.¨ Lembrava-me de, certa manhã, ele entrar no meu quarto, quandose barbeava, o rosto coberto de espuma. ??Sabes uma coisa; rapaz? Estive a pensar...,? A seguir, passara ao seu, onde agoranos encontrávamos. Com o roupão e chinelos acabados de expor. Raquel retirou-os do baú e, em tom suave, perguntou:- Que lhes faremos?- Não sei. É a si que compete decidi-lo.- Usava-os, se eu lhos oferecesse?Era estranho. Eu ficara com o seu chapéu. Com a sua bengala. Com a jaqueta de caça provida de protecção de cabedalnos cotovelos que Ambrose deixara em casa, quando partirapara a sua derradeira viagem. E não sentia a menor relutânciaem usá-los. No entanto, aquelas outras coisas - o roupão e oschinelos - infundiam-me a impressão de que abríramos a urna e o víamos morto na nossa frente.- Não me parece.Conservou-se silenciosa. Pousou-os na cama e a seguir

extraiu um fato leve, que ele decerto vestira no clima maisquente. Não me era familiar, porém ela devia conhecê-lo bem.Estava amarrotado de permanecer tanto tempo no baú, e colocou-o ao lado dos outros objectos, murmurando algo que mepareceu ser: ??Precisa de ser engomado.?? De repente, começoua tirar o resto rapidamente e amontoá-lo em cima da cama,quase sem o olhar.- Penso que, se nada disto lhe interessa, Philip, o pessoal,que o estimava, talvez o aceite. Você saberá melhor do que euo que deve dar e a quem.Suponho que não via o que fazia. Extraía as peças de vestuário do baú numa espécie de frenesim, enquanto eu a observava com curiosidade.- E o baú? - acabou por perguntar. - Um baú é sempreútil. Serve-lhe para alguma coisa? - Olhou-me e a voz tremeulevemente.De repente, encontrou-se nos meus braços, a cabeça pousada no meu peito.- Oh, Philip, perdoe-me - sussurrou. - Devia tê-lo deixado tratar disto com o Seecombe. Foi loucura minha vir cáacima.Era curioso. Como abraçar uma criança. Ou um animal ferido. Toquei-lhe no cabelo e pousei a face na sua cabeça.- Acalme-se, não chore - proferi no mesmo tom. - Vápara a biblioteca. Ocupo-me disto sozinho.- Não. Foi uma manifestação de fraqueza de minha parte.Uma estupidez. É tão penoso para si como para mim. Queria-lhe tanto...Movi os lábios pelo seu cabelo. Era uma sensação estranha.E ela parecia tão pequena, colada a mim...- Não me importo - assegurei-lhe. - Um homem é capaz de tratar destas coisas. Para uma mulher, é mais difícil.Vápara baixo, por favor, Raquel.Afastou-se um pouco e secou as lágrimas com o lenço.- Já me sinto melhor. Não voltará a acontecer. E retirei aroupa, o mais íntimo dele. Se se encarregar de a distribuirpelopessoal, ficar-lhe-ei grata. E guarde para si aquilo quedesejar.Nunca receie usá-lo, que não me importarei.As caixas com os livros encontravam-se mais perto da lareira. Peguei numa cadeira, ofereci-lha, para que seinstalassejunto do calor, ajoelhei diante dos outros baús e abri-os, umaum.Estava esperançado em que não tivesse reparado - eu próprio quase não me dera conta - de que a tratara pela primeiravez por Raquel e não por prima simplesmente. Confesso quenão sei como aconteceu. Julgo que foi porque, tendo-a nosbraços, parecera muito mais pequena do que eu.Os livros não possuíam o toque pessoal do vestuário. Havia velhas obras favoritas que eu conhecia e sempre o acompanhavam nas viagens, que Raquel me ofereceu para ter junto da

cama. Depararam-se-me igualmente os botões de punho, o relógio e a caneta, que também insistiu que aceitasse. Algunsvolumes eram-me totalmente estranhos, todavia ela explicou-mos: um fora adquirido em Roma, por um preço de ocasião,apesar de se tratar de uma primeira edição, outro em Florença,e descreveu o local da compra e o vendedor. Entretanto, à medida que falava, afigurava-se-me que a tensão se dissipara comas lágrimas vertidas. Pousámo-los no chão e fui buscar um espanador, com que lhes limpou o pó. De vez em quando, lia-me uma passagem de um e esclarecia que agradava particularmente a Ambrose, ou mostrava-me uma ilustração.Quando chegámos a uma obra com gravuras de disposiçãode jardins, salientou que nos seria útil, levantou-se dacadeira elevou-a para junto da janela, a fim de aproveitar a luz dodia.Abri outro livro ao acaso, e um pedaço de papel caiu deentre as folhas. Vi que continha a caligrafia de Ambrose e pareceu-me parte de uma carta, retirada do contexto geral e esquecida.??É uma doença, sem dúvida. Ouvi falar dela com frequência, como a cleptomania ou qualquer outra moléstia, e decerto lhe foi transmitida pelo devasso do pai,Alexander Coryn. Não posso determinar há quantotempo é vítima de semelhante anomalia. Talvez desdesempre. Em todo o caso, explica grande parte do que atéagora me intrigava. Uma coisa é certa, meu rapaz: já nãoposso, ou, melhor, já não me atrevo a deixá-la tomarconta da minha bolsa, sob pena de me conduzir à penúria e a propriedade sofrer as consequências. é imperiosoque previnas o Kendall, se porventura... ?,A frase não fora concluída e o texto não estava datado.A letra parecia normal. Naquele momento, Raquel regressouda janela e amarfanhei o papel na mão.- Que tem aí? - perguntou.- Nada de especial.Atirei-o ao lume. Ela viu-o arder, enquanto as palavrasmanuscritas se deformavam e desapareciam, pasto das chamas.- Era a letra do Ambrose - articulou. - Que dizia? Tratava-se de uma carta?- Uns apontamentos quaisquer, sem interesse - declarei,esperançado em que não reparasse no calor que me acudia àsfaces.Peguei noutro volume e ela imitou-me. Continuámos aamontoá-los no chão, mas agora estabelecera-se um pesado silêncio entre nós.Capitulo décimo quintoCompletámos a separação dos livros cerca do meio-dia.Seecombe enviou John e o jovem Arthur ao primeiro andar,para saber se havia alguma coisa para transportar, antes deirem almoçar.- Deixa ficar a roupa na cama e arranja um pano para acobrir, John - indiquei. - Precisarei do Seecombe para meajudar a embrulhá-la, mas mais tarde. Para já, leva este montede livros para a biblioteca.- E estes para o boudoir, Arthur, por favor - disse Raquel.Eram as primeiras palavras que pronunciava desde que eu

queimara o pedaço de papel.- Posso guardar os de jardinagem no meu quarto, Philip? - acrescentou.- Com certeza. Aliás, são todos seus, como sabe.- De modo algum. O Ambrose desejaria os outros na suabiblioteca.Endireitou-se, alisou o vestido e entregou o espanador aJohn.- Há uma refeição fria na sala de jantar, minha senhora -- informou ele.- Obrigada, John, mas não me apetece comer.Hesitei, postado junto da porta aberta, depois de os doisrapazes saírem com os volumes.- Acompanha-me à biblioteca, para ajudar a arrumar oslivros? - acabei por perguntar.- Acho que não.Pareceu disposta a acrescentar algo, mas não o fez e afastou-se em direcção ao seu quarto.Almocei sem companhia, com o olhar perdido na chuva intensa através da janela da sala de jantar. Não merecia a penatentar sair, porque não poderia fazer nada. Seria preferívelquecompletasse a tarefa de separar a roupa de Ambrose, com aajuda de Seecombe, o qual decerto ficaria satisfeito por oconsultar. A que se destinaria aos diferentes caseiros deveriaserescolhida cuidadosamente para que ninguém se melindrasse.Desse modo, estaríamos ocupados toda a tarde. Embora meesforçasse por pensar exclusivamente nisso, o estranho pedaçode papel persistia em se intrometer nas minhas cogitações.Que fazia entre as páginas daquele livro e há quanto tempo seencontraria lá esquecido? Seis meses, um ano, mais tempo?Teria Ambrose iniciado uma carta para mim que nunca chegara ao seu destino ou haveria outros pedaços de papel, pertencentes à mesma missiva, entre as páginas de diferentes volumes? Aquelas palavras deviam ter sido traçadas antes da suadoença, pois a letra revelava-se firme e bem legível. Porconseguinte, no Inverno ou Outono anterior. Acudiu-me uma ponta de embaraço. Que direito me assistia de tentar explorar opassado, entregar-me a conjecturas sobre uma carta que nuncame chegara às mãos? Não me dizia respeito, e começava a deplorar tê-la encontrado.Seecombe e eu passámos a tarde a separar a roupa, que eleacondicionava em embrulhos, enquanto eu escrevia bilhetesexplicativos que os acompanhariam. Sugeriu que fossem entregues pelo Natal, o que me pareceu boa ideia, decerto do agrado dos caseiros. Quando terminámos, voltei à biblioteca paracontinuar a arrumar livros nas estantes. Descobri-me a moveras folhas de cada um, antes de o colocar na prateleira, aomesmo tempo que experimentava uma sensação de embaraço, como se cometesse um pequeno delito. ??...como a cleptomania,ou qualquer outra moléstia...". Porque recordava em particular essas palavras? Que quereria Ambrose dizer?Peguei num dicionário e procurei o vocábulo ??cleptomania??: ??Tendência irresistível para o roubo em pessoas nãotentadas a fazê-lo por necessidade." A acusação dele não eraessa,mas de esbanjamento, extravagância. Como podia esta última

constituir uma doença? Era totalmente impróprio de Ambrose, o mais generoso dos homens, acusar alguém de semelhantehábito. No momento em que restituía o dicionário ao seu lugar, a porta abriu-se para dar passagem à minha prima Raquel.Fiquei tão perturbado como se me tivesse surpreendido a assaltar a lata das bolachas à socapa.- Acabei agora mesmo de arrumar os livros - expliquei,e perguntava-me se a minha voz lhe soava tão falso como amim.- Estou a ver - proferiu, indo sentar-se diante do lume.Notei que já se vestira para o jantar, o que me deixou perplexo, pois não me apercebera de que fosse tão tarde.- Também separámos a roupa. O Seecombe foi muitoprestável. Achámos preferível, se você não se opuser,distribuí-la pelo Natal.- Sim, ele falou-me disso há instantes e concordo plenamente.Conquanto não soubesse determinar se se devia à minhaatitude ou à dela, detectei um certo constrangimento entrenós.- Não parou de chover em todo o dia - observei.- Pois não - articulou a meia voz.Baixei os olhos para as minhas mãos, cheias de pó dos livros.- Se me dá licença, vou lavar-me e mudar de roupa para ojantar.Subi ao quarto e quando voltei ao piso térreo o jantar estava na mesa. Ocupámos os nossos lugares em silêncio. Seecombe, em obediência a um hábito antigo, interrompia a nossaconversa com frequência, durante a refeição, quando tinha algo para comunicar, e naquela noite, perto do final, perguntoua Raquel:- Já mostrou a Mister Philip as novas coberturas, minhasenhora?- Ainda não tive tempo - respondeu ela. - Mas se lheinteressa vê-las, posso fazê-lo quando acabarmos de comer.Diga ao John que as leve para a biblioteca.- Coberturas? - estranhei. - De quais se trata?- Não se recorda? Disse-lhe que as tinha encomendadopara o quarto azul.- Ah, tem razão!- Nunca tinha visto outras iguais, senhor - interpôs Seecombe. - Não deve haver nenhuma mansão nestas redondezas com algo que se lhes compare.- Não esqueçamos que o tecido é importado da Itália -- salientou ela. - Só há uma loja em Londres onde se pode encontrar, segundo me indicaram em Florença. Quer de facto veras coberturas, Philip, ou não lhe interessam?Dirigiu-me a pergunta com um misto de esperança e ansiedade, como se desejasse conhecer a minha opinião, mas temesse que me aborrecesse.- Com certeza que quero - assenti, corando, sem compreender porquê. - Terei o maior prazer.Levantámo-nos da mesa e dirigimo-nos à biblioteca. Seecombe seguiu-nos e, momentos depois, ele e John reuniam-se-nos com as coberturas, que estenderam sobre os móveis.O mordomo não se equivocara. Dificilmente se encontrariam outras iguais em toda a Cornualha. Eu próprio não viraquaisquer que se assemelhassem, mesmo em Oxford ou Londres. Eram numerosas. Brocados deslumbrantes e sedas de cores mais discretas. Na realidade, apresentavam certasimilaridade com as que se podiam observar num museu.

- São de alta qualidade, senhor - declarou em voz baixa,como se estivesse numa igreja.- Sugiro este azul para as cortinas da cama, o tom maisescuro e ouro para os cortinados e tecido acolchoado para acolcha - disse Raquel. - Que lhe parece, Philip? - Olhou-me com ansiedade, enquanto eu não sabia como responder.- Não lhe agradam?- Pelo contrário, agradam-me muito, mas - tornei a sentir que corava - não serão muito caras?- Lá caras são de certeza, como qualquer artigo de qualidade, mas durarão muitos anos. Estou convencida de que oseu neto e até o bisneto poderão dormir no quarto azul, comesta colcha na cama, rodeados por estes cortinados. Não é verdade, Seecombe?- Sem dúvida, minha senhora.- A única coisa que interessa é saber se gosta ou não,Philip.,- É claro que gosto.- Nesse caso, as coberturas pertencem-lhe. São uma oferta minha. Pode levá-las, Seecombe. Tratarei de escrever àlojade Londres para comunicar que ficamos com elas.O mordomo e John enrolaram o tecido e levaram-no.Pressenti que os olhos de Raquel se fixavam em mim e, paraos evitar, puxei do cachimbo e acendi-o com maior lentidãodo que habitualmente.- Passa-se alguma coisa - murmurou. - De que setrata?Tornava-se-me difícil responder sem a melindrar, mas reuni coragem suficiente para declarar:- Não devia dar-me presentes destes. São muito dispendiosos.- Representam a ínfima parte do que tem feito por mim.A sua voz era suave, quase implorativa, e apercebi-me deuma expressão de mágoa no olhar.- É extrema gentileza de sua parte, mas acho que não odevia ter feito.- Deixe ser eu a decidi-lo. Quando o tecido for aplicado,ficará encantado com o efeito.Na verdade, sentia-me embaraçado e desconfortável, e nãopor desejar oferecer-me algo, o que se me afigurava generoso eimpulsivo de sua parte, que eu aceitaria sem hesitar no diaanterior. Mas agora, depois de ler o infernal pedaço de papel,assolava-me a dúvida de que o que ela pretendia fazer por mimredundasse em sua desvantagem, e, ao assumir uma atitudemais ou menos passiva, envolvia-me em qualquer coisa quenão entendia totalmente.- Aquele livro sobre jardinagem vai ser-nos muito útil -- disse ela após uma pausa. - Já não me lembrava que o tinhaoferecido ao Ambrose. Não deixe de observar as ilustrações.É claro que algumas não servem para aqui, mas outras podemadaptar-se perfeitamente. Um caminho empedrado, por exemplo, sobranceiro ao mar através dos campos e, do lado oposto,um jardim imerso na água, como havia nas villas de Roma queeu costumava visitar.

Não sei como o consegui, mas surpreendi-me a perguntar-lhe com aparente desprendimento:- Viveu sempre em Itália?- Exacto. O Ambrose não lhe disse? A família de minhamãe era de Roma, e o meu pai, Alexander Coryn, tinha dificuldade em criar raízes num lugar. Não suportava a Inglaterra,e creio que não se dava muito bem com os seus familiares daCornualha. Preferia a vida em Roma, e ele e a minha mãe pareciam feitos um para o outro. Mas levavam uma existênciaprecária, sempre com dificuldades materiais. Eu suportava-aem criança, mas à medida que crescia a realidade tornou-se-meinsustentável.- Já não vivem?- Não. O meu pai morreu quando eu tinha dezasseisanos. A minha mãe e eu vivemos sós durante cinco anos. Atéque casei com Cosimo Sangalletti. E foram cinco anos terríveis, a saltitar de cidade para cidade, nem sempre com umaideia concreta de onde viria a refeição seguinte. A minha juventude não foi um mar de rosas, Philip. Domingo passado,quando jantávamos juntos, não pude deixar de pensar comofora diferente da de Louise.Por conseguinte, casara aos vinte e um anos. A mesma idade de Louise actualmente. Especulei mentalmente em comoteria vivido com a mãe até que conhecera Sangalletti. Talvezdessem ambas lições de italiano, como agora Raquel seprontificara a fazer.- A minha mãe era muito bonita, diferente de mim, excepto na cor da pele. Alta, quase corpulenta. E, à semelhançade grande parte das mulheres do seu tipo, tornou-se subitamente desleixada, perdeu a formosura e engordou. Congratulei-me por o meu pai já não viver para assistir à metamorfoseea muitas das coisas que ela (e eu, diga-se de passagem) fez.Embora se exprimisse com naturalidade, sem azedume, eureflectia que, no fundo, a conhecia muito pouco e mal. Cha mara menina protegida ou algo do género a Louise, o que cor respondia à verdade, e acudiu-me subitamente a ideia de quese me podia aplicar o mesmo. Com vinte e quatro anos, à par te os que passara em Harrow e Oxford, a única coisa do mundo que sabia limitava-se à propriedade que me circundava.Quando uma pessoa como a minha prima Raquel se transferiade um lugar para outro, trocava um lar por um segundo e depois por um terceiro, casava e a seguir pela segunda vez, comose sentiria? Fecharia o passado atrás de si como uma porta enão voltaria a pensar nele ou seria assolada por recordaçõesconstantes?- Ele era muito mais velho que você? - aventurei-me aperguntar.- O Cosimo? Apenas um ano. Foi apresentado a minhamãe em Florença, pois ela sempre desejara conhecer os Sangalletti. Ele levou um ano a decidir-se entre as duas, até queelaperdeu a beleza, coitada, e, simultaneamente, o interessedele.Mas suponho que o Ambrose lhe descreveu tudo por carta.A história não é das mais agradáveis.

Estive quase a replicar: ??Ele mostrou-se mais reservado doque você supõe. Se havia alguma coisa que o magoava ou chocava, fingia que não existia, que não acontecera. Nunca me falou da sua vida antes de casarem, à excepção de queSangallettiperdeu a vida num duelo." Ao invés, não aludi a um únicodesses pormenores. E cheguei repentinamente à conclusão deque não queria inteirar-me de nada referente ao primeiro marido, à mãe e à vida em Florença. Desejava fechar a porta atudo aquilo. E trancá-la.- Sim, ele escreveu-me a mencionar tudo isso.Suspirou e ajeitou a almofada a que apoiava a cabeça.- Parece que foi há muito tempo. A jovem que suportouaqueles anos era outra pessoa. Aguentei quase dez anos de vida em comum com Cosimo Sangalletti. Não quereria voltar àjuventude, ainda que me oferecessem o mundo. Mas é claroque a minha posição pode estar influenciada por preconceitos.- Fala como se tivesse noventa e nove anos.- Para uma mulher, quase os tenho. Já cumpri trinta ecinco.Olhou-me, com um leve sorriso.- Julgava-a mais velha.- Aceito como um cumprimento aquilo que a maioria dasmulheres encararia como um insulto. Obrigada, Philip. - Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, inquiriu: - Que continha realmente o pedaço de papel que queimou esta manhã?A brusquidão do ataque apanhou-me desprevenido. Olhei-asem conseguir proferir palavra e engoli em seco.- Qual papel? - acabei por replicar.- Sabe perfeitamente ao que me refiro. O que tinha sidoescrito pelo Ambrose e você queimou para que eu não o lesse.Decidi que meia-verdade era preferível a uma mentira. Embora sentisse o calor acudir-me às faces, enfrentei-lhe oolhar.- Creio que era parte de uma carta que me escrevera.Mostrava-se simplesmente preocupado com as despesas. Eramapenas duas ou três linhas e não me recordo bem das palavrasexactas. Queimei-a porque receei que você ficasse triste se alesse.Verifiquei com alívio que a expressão dela perdia parte datensão. As mãos, cujos dedos pousavam nos anéis, baixarampara o regaço.- Só isso? Estava tão intrigada... Não conseguia compreender. - Fez uma pausa, enquanto eu agradecia aos Céuso facto de ter aceitado a explicação. - Aquilo a que chamavaas minhas extravagâncias constituía sempre motivo de preocupação para o Ambrose. Admira-me que não lhe falassedisso mais vezes. A vida na Itália diferia radicalmente da queconhecera aqui, e nunca conseguiu aclimatar-se. Sei do fundodo coração que guardava ressentimento contra a existência queeu tivera de suportar antes de nos conhecermos. Pagou todasaquelas horríveis dívidas.Não me pronunciei, mas enquanto a observava sentia a ansiedade dissipar-se. A meia-verdade resultara eficiente, e ela

agora exprimia-se quase com desprendimento.- Era muito generoso nos primeiros meses - prosseguiu.- Não imagina o que isso significava para mim, Philip. Dispunha finalmente de alguém em quem podia confiar e, sobretudo, amar. Creio que me daria tudo o que lhe pedisse. Foipor isso que, quando adoeceu... - Interrompeu-se e o olharenevoou-se. - Foi por isso que me custou tanto assistir àtransformação que sofreu.- Quer dizer que deixou de ser generoso?- Não, continuou a sê-lo, mas de uma maneira diferente.Comprava-me coisas (presentes, jóias), como se tentasse submeter-me a um teste. Mas se lhe pedia dinheiro para uma necessidade da casa, algo de que não podíamos prescindir, recusava-mo. Olhava-me com uma expressão de desconfiança,perguntava para que o queria, se o destinava a alguém. Acabeipor ter de procurar Rainaldi e solicitar-lhe o suficiente parapagar ao pessoal.- O Ambrose inteirou-se disso?- Inteirou-se. Nunca simpatizara com o Rainaldi, masquando descobriu que eu recorrera a ele foi o fim. Proibiu-mede voltar a admiti-lo na villa. Custa-me confessar isto, mastinha de me ausentar de casa furtivamente, quando ele repousava, para ir pedir-lhe o dinheiro de que necessitava para acasa. -- Gesticulou e levantou-se. - Deus é testemunha de que nãodesejava revelar-lhe isto.Aproximou-se da janela, afastou o cortinado e olhou achuva com uma expressão pensativa.- Porquê?- Porque queria que o recordasse como era aqui. Há o retrato dele nesta casa. O seu Ambrose era aquele. Deixe-o permanecer assim. Os seus últimos meses foram meus, e não osquero partilhar com ninguém. Consigo menos do que comqualquer outra pessoa.E eu não o queria partilhar com ela. Desejava que fechassetodas aquelas portas pertencentes ao passado, uma a uma.- Sabe o que aconteceu? - persistiu, virando-se da janelae fitando-me. - Fizemos mal em abrir aqueles baús. Devíamos tê-los deixado como estavam, sem tocar nos objectos quelhe pertenceram. Pressenti-o no instante em que abrimos oprimeiro e vi o roupão e os chinelos. Libertámos algo que atéentão não se encontrava connosco. Uma espécie de sentimentoamargo. - Empalidecera e entrelaçava os dedos na sua frente.- Não me esqueci das cartas que atirou ao lume e arderam.Tentei não voltar a pensar nelas, mas hoje, desde que abrimosa bagagem, foi como se as tivesse voltado a ler.Levantei-me e conservei-me de costas para a chaminé, semsaber o que lhe dizer, enquanto ela percorria o aposento emcadenciado vaivém.- O Ambrose escreveu que eu o vigiava - continuou.- Sem dúvida que o fazia, receosa de que se molestasse de algum modo. Rainaldi aconselhou-me a recorrer às freiras doconvento para me ajudarem, mas recusei, de contrário ele suporia que se destinavam a espiá-lo. Chegara ao ponto de nãoconfiar em ninguém. Às vezes, até recusava receber os médicos, apesar de se revelarem pacientes e

compreensivos. Depois,pediu-me que despedisse os empregados domésticos, um a um,até que só ficou o Giuseppe. Nesse confiava inteiramente. Dizia que tinha olhos de cão...Interrompeu-se e voltou o rosto para o outro lado. Recordei-me do empregado que me recebera à entrada da villa e doseu desejo de me poupar sofrimento. Era estranho que Ambrose também acreditasse naqueles olhos sinceros e fiéis. E eusó vira o homem uma vez.- Não interessa evocar tudo isso agora - declarei.- Não adianta nada ao Ambrose e apenas serve para a torturar. Pela parte que me toca, o que aconteceu entre vocês nãome diz respeito. Pertence tudo ao passado e deve ser esquecido. A villa não era o lar dele. Nem o seu, Raquel, quando casaram. O seu lar é aqui.- Às vezes - murmurou, detendo-se na minha frente -,parece-se tanto com ele que me assusta. Vejo os seus olhos,com a mesma expressão, cravados em mim, e é como se não tivesse morrido e tudo o que suportei reaparecesse para novaprovação. Não conseguiria aguentar aquele clima de suspeita,dia após dia, noite após noite.Enquanto ela falava, eu conjurava uma imagem clara daVilla Sangalletti. Revia o pequeno pátio e o laburno com o aspecto que decerto apresentaria na Primavera, a cadeira em queAmbrose se sentava e a bengala a seu lado. Notava o silênciodo local, aspirava o ar húmido, observava a fonte gotejante.E, pela primeira vez, a mulher que olhava para baixo, da varanda, não constituía um produto da minha imaginação e eraRaquel. Contemplava Ambrose com a mesma expressão implorativa, de sofrimento, de súplica. Senti-me de súbito muitovelho, assolado por um novo vigor que não compreendia.Obedecendo a um impulso, estendi-lhe as mãos.- Venha cá, Raquel.Cruzou o aposento e pousou as suas nelas.- Não existe qualquer clima de suspeita nesta casa -- acrescentei. - Ela pertence-me. A suspeita que uma pessoaacalenta parte com ela quando morre. A roupa foi toda dividida por embrulhos, que se guardaram. Já não tem nada de comum connosco. Doravante, você vai recordar o Ambrose damesma maneira que eu. Conservaremos o seu velho chapéu nocabide do átrio. E a bengala, com as outras, no respectivo lugar. Passou a pertencer aqui, Raquel, como ele no passado e euactualmente. Fazemos os três parte de tudo isto. Compreende?Olhou-me em silêncio por um momento, sem retirar asmãos das minhas.- Compreendo - sussurrou.Sentia-me curiosamente comovido, como se tudo o que fazia e dizia tivesse sido planeado para meu uso exclusivo, aomesmo tempo que uma voz débil me segredava: ??Nunca poderás regressar a este momento. Nunca... nunca...,? Continuámos de mãos unidas, e ela acabou por perguntar:- Porque é tão bondoso para mim, Philip?Lembrei-me de que, de manhã, quando chorara, repousaraa cabeça sobre o meu coração, e eu beijara-lhe o cabelo. Agora, ansiava por que a cena se repetisse. Mais do que tudoneste mundo. Mas desta vez a minha prima não vertia lágrimas nem

apoiava a cabeça no meu peito. Limitava-se a permanecerdiante de mim, com as minhas mãos entre as suas.- Não sou bondoso para consigo - asseverei. - Pretendo apenas que se sinta feliz.Desprendeu as mãos, pegou no castiçal para recolher aoquarto e, antes de sair, proferiu:- Boa noite, Philip, e que Deus o abençoe. Um dia, épossível que venha a conhecer a felicidade que eu outrora experimentei.Ouvi os seus passos na escada e sentei-me, para fixar osolhos no lume da biblioteca. Afigurava-se-me que, se subsistiaalguma amargura na casa, não provinha dela, nem de Ambrose, mas consistia numa semente alojada no meu coração, deque nunca lhe falaria. O velho pecado da inveja que supunhasepultado e esquecido voltava a achar-se presente. Contudo,agora não invejava Raquel, mas Ambrose, a pessoa que até então mais amara no mundo.Completámos a separação dos livros cerca do meio-dia.Seecombe enviou John e o jovem Arthur ao primeiro andar,para saber se havia alguma coisa para transportar, antes deirem almoçar.- Deixa ficar a roupa na cama e arranja um pano para acobrir, John - indiquei. - Precisarei do Seecombe para meajudar a embrulhá-la, mas mais tarde. Para já, leva este montede livros para a biblioteca.- E estes para o boudoir, Arthur, por favor - disse Raquel.Eram as primeiras palavras que pronunciava desde que euqueimara o pedaço de papel.- Posso guardar os de jardinagem no meu quarto, Philip? - acrescentou.- Com certeza. Aliás, são todos seus, como sabe.- De modo algum. O Ambrose desejaria os outros na suabiblioteca.Endireitou-se, alisou o vestido e entregou o espanador aJohn.- Há uma refeição fria na sala de jantar, minha senhora -- informou ele.- Obrigada, John, mas não me apetece comer.Hesitei, postado junto da porta aberta, depois de os doisrapazes saírem com os volumes.- Acompanha-me à biblioteca, para ajudar a arrumar oslivros? - acabei por perguntar.- Acho que não.Pareceu disposta a acrescentar algo, mas não o fez e afastou-se em direcção ao seu quarto.Almocei sem companhia, com o olhar perdido na chuva intensa através da janela da sala de jantar. Não merecia a penatentar sair, porque não poderia fazer nada. Seria preferívelquecompletasse a tarefa de separar a roupa de Ambrose, com aajuda de Seecombe, o qual decerto ficaria satisfeito por oconsultar. A que se destinaria aos diferentes caseiros deveriaserescolhida cuidadosamente para que ninguém se melindrasse.Desse modo, estaríamos ocupados toda a tarde. Embora meesforçasse por pensar exclusivamente nisso, o estranho pedaçode papel persistia em se intrometer nas minhas cogitações.Que fazia entre as páginas daquele livro e há quanto tempo se

encontraria lá esquecido? Seis meses, um ano, mais tempo?Teria Ambrose iniciado uma carta para mim que nunca chegara ao seu destino ou haveria outros pedaços de papel, pertencentes à mesma missiva, entre as páginas de diferentes volumes? Aquelas palavras deviam ter sido traçadas antes da suadoença, pois a letra revelava-se firme e bem legível. Porconseguinte, no Inverno ou Outono anterior. Acudiu-me uma ponta de embaraço. Que direito me assistia de tentar explorar opassado, entregar-me a conjecturas sobre uma carta que nuncame chegara às mãos? Não me dizia respeito, e começava a deplorar tê-la encontrado.Seecombe e eu passámos a tarde a separar a roupa, que eleacondicionava em embrulhos, enquanto eu escrevia bilhetesexplicativos que os acompanhariam. Sugeriu que fossem entregues pelo Natal, o que me pareceu boa ideia, decerto do agrado dos caseiros. Quando terminámos, voltei à biblioteca paracontinuar a arrumar livros nas estantes. Descobri-me a moveras folhas de cada um, antes de o colocar na prateleira, aomesmo tempo que experimentava uma sensação de embaraço, como se cometesse um pequeno delito. ??...como a cleptomania,ou qualquer outra moléstia...". Porque recordava em particular essas palavras? Que quereria Ambrose dizer?Peguei num dicionário e procurei o vocábulo ??cleptomania??: ??Tendência irresistível para o roubo em pessoas nãotentadas a fazê-lo por necessidade." A acusação dele não eraessa,mas de esbanjamento, extravagância. Como podia esta últimaconstituir uma doença? Era totalmente impróprio de Ambrose, o mais generoso dos homens, acusar alguém de semelhantehábito. No momento em que restituía o dicionário ao seu lugar, a porta abriu-se para dar passagem à minha prima Raquel.Fiquei tão perturbado como se me tivesse surpreendido a assaltar a lata das bolachas à socapa.- Acabei agora mesmo de arrumar os livros - expliquei,e perguntava-me se a minha voz lhe soava tão falso como amim.- Estou a ver - proferiu, indo sentar-se diante do lume.Notei que já se vestira para o jantar, o que me deixou perplexo, pois não me apercebera de que fosse tão tarde.- Também separámos a roupa. O Seecombe foi muitoprestável. Achámos preferível, se você não se opuser,distribuí-la pelo Natal.- Sim, ele falou-me disso há instantes e concordo plenamente.Conquanto não soubesse determinar se se devia à minhaatitude ou à dela, detectei um certo constrangimento entrenós.- Não parou de chover em todo o dia - observei.- Pois não - articulou a meia voz.Baixei os olhos para as minhas mãos, cheias de pó dos livros.- Se me dá licença, vou lavar-me e mudar de roupa para ojantar.Subi ao quarto e quando voltei ao piso térreo o jantar estava na mesa. Ocupámos os nossos lugares em silêncio. Seecombe, em obediência a um hábito antigo, interrompia a nossaconversa com frequência, durante a refeição, quando tinha algo para comunicar, e naquela noite, perto do final, perguntoua Raquel:

- Já mostrou a Mister Philip as novas coberturas, minhasenhora?- Ainda não tive tempo - respondeu ela. - Mas se lheinteressa vê-las, posso fazê-lo quando acabarmos de comer.Diga ao John que as leve para a biblioteca.- Coberturas? - estranhei. - De quais se trata?- Não se recorda? Disse-lhe que as tinha encomendadopara o quarto azul.- Ah, tem razão!- Nunca tinha visto outras iguais, senhor - interpôs Seecombe. - Não deve haver nenhuma mansão nestas redondezas com algo que se lhes compare.- Não esqueçamos que o tecido é importado da Itáliasalientou ela. - Só há uma loja em Londres onde se pode encontrar, segundo me indicaram em Florença. Quer de facto veras coberturas, Philip, ou não lhe interessam?Dirigiu-me a pergunta com um misto de esperança e ansiedade, como se desejasse conhecer a minha opinião, mas temesse que me aborrecesse.- Com certeza que quero - assenti, corando, sem compreender porquê. - Terei o maior prazer.Levantámo-nos da mesa e dirigimo-nos à biblioteca. Seecombe seguiu-nos e, momentos depois, ele e John reuniam-se-nos com as coberturas, que estenderam sobre os móveis.O mordomo não se equivocara. Dificilmente se encontrariam outras iguais em toda a Cornualha. Eu próprio não viraquaisquer que se assemelhassem, mesmo em Oxford ou Londres. Eram numerosas. Brocados deslumbrantes e sedas de cores mais discretas. Na realidade, apresentavam certasimilaridade com as que se podiam observar num museu.- São de alta qualidade, senhor - declarou em voz baixa,como se estivesse numa igreja.- Sugiro este azul para as cortinas da cama, o tom maisescuro e ouro para os cortinados e tecido acolchoado para acolcha - disse Raquel. - Que lhe parece, Philip? - Olhou-me com ansiedade, enquanto eu não sabia como responder.- Não lhe agradam?- Pelo contrário, agradam-me muito, mas - tornei a sentir que corava - não serão muito caras?- Lá caras são de certeza, como qualquer artigo de qualidade, mas durarão muitos anos. Estou convencida de que oseu neto e até o bisneto poderão dormir no quarto azul, comesta colcha na cama, rodeados por estes cortinados. Não é verdade, Seecombe?- Sem dúvida, minha senhora.- A única coisa que interessa é saber se gosta ou não,Philip.,- É claro que gosto.- Nesse caso, as coberturas pertencem-lhe. São uma oferta minha. Pode levá-las, Seecombe. Tratarei de escrever àlojade Londres para comunicar que ficamos com elas.O mordomo e John enrolaram o tecido e levaram-no.Pressenti que os olhos de Raquel se fixavam em mim e, paraos evitar, puxei do cachimbo e acendi-o com maior lentidãodo que habitualmente.- Passa-se alguma coisa - murmurou. - De que setrata?Tornava-se-me difícil responder sem a melindrar, mas reuni coragem suficiente para declarar:

- Não devia dar-me presentes destes. São muito dispendiosos.- Representam a ínfima parte do que tem feito por mim.A sua voz era suave, quase implorativa, e apercebi-me deuma expressão de mágoa no olhar.- É extrema gentileza de sua parte, mas acho que não odevia ter feito.- Deixe ser eu a decidi-lo. Quando o tecido for aplicado,ficará encantado com o efeito.Na verdade, sentia-me embaraçado e desconfortável, e nãopor desejar oferecer-me algo, o que se me afigurava generoso eimpulsivo de sua parte, que eu aceitaria sem hesitar no diaanterior. Mas agora, depois de ler o infernal pedaço de papel,assolava-me a dúvida de que o que ela pretendia fazer por mimredundasse em sua desvantagem, e, ao assumir uma atitudemais ou menos passiva, envolvia-me em qualquer coisa quenão entendia totalmente.- Aquele livro sobre jardinagem vai ser-nos muito útil -- disse ela após uma pausa. - Já não me lembrava que o tinhaoferecido ao Ambrose. Não deixe de observar as ilustrações.É claro que algumas não servem para aqui, mas outras podemadaptar-se perfeitamente. Um caminho empedrado, por exemplo, sobranceiro ao mar através dos campos e, do lado oposto,um jardim imerso na água, como havia nas villas de Roma queeu costumava visitar.Não sei como o consegui, mas surpreendi-me a perguntar-lhe com aparente desprendimento:- Viveu sempre em Itália?- Exacto. O Ambrose não lhe disse? A família de minhamãe era de Roma, e o meu pai, Alexander Coryn, tinha dificuldade em criar raízes num lugar. Não suportava a Inglaterra,e creio que não se dava muito bem com os seus familiares daCornualha. Preferia a vida em Roma, e ele e a minha mãe pareciam feitos um para o outro. Mas levavam uma existênciaprecária, sempre com dificuldades materiais. Eu suportava-aem criança, mas à medida que crescia a realidade tornou-se-meinsustentável.- Já não vivem?- Não. O meu pai morreu quando eu tinha dezasseisanos. A minha mãe e eu vivemos sós durante cinco anos. Atéque casei com Cosimo Sangalletti. E foram cinco anos terríveis, a saltitar de cidade para cidade, nem sempre com umaideia concreta de onde viria a refeição seguinte. A minha juventude não foi um mar de rosas, Philip. Domingo passado,quando jantávamos juntos, não pude deixar de pensar comofora diferente da de Louise.Por conseguinte, casara aos vinte e um anos. A mesma idade de Louise actualmente. Especulei mentalmente em comoteria vivido com a mãe até que conhecera Sangalletti. Talvezdessem ambas lições de italiano, como agora Raquel seprontificara a fazer.- A minha mãe era muito bonita, diferente de mim, excepto na cor da pele. Alta, quase corpulenta. E, à semelhançade grande parte das mulheres do seu tipo, tornou-se subitamente desleixada, perdeu a formosura e

engordou. Congratulei-me por o meu pai já não viver para assistir à metamorfoseea muitas das coisas que ela (e eu, diga-se de passagem) fez.Embora se exprimisse com naturalidade, sem azedume, eureflectia que, no fundo, a conhecia muito pouco e mal. Chamara menina protegida ou algo do género a Louise, o que cor respondia à verdade, e acudiu-me subitamente a ideia de quese me podia aplicar o mesmo. Com vinte e quatro anos, à par te os que passara em Harrow e Oxford, a única coisa do mundo que sabia limitava-se à propriedade que me circundava.Quando uma pessoa como a minha prima Raquel se transferiade um lugar para outro, trocava um lar por um segundo e depois por um terceiro, casava e a seguir pela segunda vez, comose sentiria? Fecharia o passado atrás de si como uma porta enão voltaria a pensar nele ou seria assolada por recordaçõesconstantes?- Ele era muito mais velho que você? - aventurei-me aperguntar.- O Cosimo? Apenas um ano. Foi apresentado a minhamãe em Florença, pois ela sempre desejara conhecer os Sangalletti. Ele levou um ano a decidir-se entre as duas, até queelaperdeu a beleza, coitada, e, simultaneamente, o interessedele.Mas suponho que o Ambrose lhe descreveu tudo por carta.A história não é das mais agradáveis.Estive quase a replicar: ??Ele mostrou-se mais reservado doque você supõe. Se havia alguma coisa que o magoava ou chocava, fingia que não existia, que não acontecera. Nunca me falou da sua vida antes de casarem, à excepção de queSangallettiperdeu a vida num duelo." Ao invés, não aludi a um únicodesses pormenores. E cheguei repentinamente à conclusão deque não queria inteirar-me de nada referente ao primeiro marido, à mãe e à vida em Florença. Desejava fechar a porta atudo aquilo. E trancá-la.- Sim, ele escreveu-me a mencionar tudo isso.Suspirou e ajeitou a almofada a que apoiava a cabeça.- Parece que foi há muito tempo. A jovem que suportouaqueles anos era outra pessoa. Aguentei quase dez anos de vida em comum com Cosimo Sangalletti. Não quereria voltar àjuventude, ainda que me oferecessem o mundo. Mas é claroque a minha posição pode estar influenciada por preconceitos.- Fala como se tivesse noventa e nove anos.- Para uma mulher, quase os tenho. Já cumpri trinta ecinco.Olhou-me, com um leve sorriso.- Julgava-a mais velha.- Aceito como um cumprimento aquilo que a maioria dasmulheres encararia como um insulto. Obrigada, Philip. - Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, inquiriu: - Que continha realmente o pedaço de papel que queimou esta manhã?A brusquidão do ataque apanhou-me desprevenido. Olhei-asem conseguir proferir palavra e engoli em seco.- Qual papel? - acabei por replicar.- Sabe perfeitamente ao que me refiro. O que tinha sido

escrito pelo Ambrose e você queimou para que eu não o lesse.Decidi que meia-verdade era preferível a uma mentira. Embora sentisse o calor acudir-me às faces, enfrentei-lhe oolhar.- Creio que era parte de uma carta que me escrevera.Mostrava-se simplesmente preocupado com as despesas. Eramapenas duas ou três linhas e não me recordo bem das palavrasexactas. Queimei-a porque receei que você ficasse triste se alesse.Verifiquei com alívio que a expressão dela perdia parte datensão. As mãos, cujos dedos pousavam nos anéis, baixarampara o regaço.- Só isso? Estava tão intrigada... Não conseguia compreender. - Fez uma pausa, enquanto eu agradecia aos Céuso facto de ter aceitado a explicação. - Aquilo a que chamavaas minhas extravagâncias constituía sempre motivo de preocupação para o Ambrose. Admira-me que não lhe falassedisso mais vezes. A vida na Itália diferia radicalmente da queconhecera aqui, e nunca conseguiu aclimatar-se. Sei do fundodo coração que guardava ressentimento contra a existência queeu tivera de suportar antes de nos conhecermos. Pagou todasaquelas horríveis dívidas.Não me pronunciei, mas enquanto a observava sentia a ansiedade dissipar-se. A meia-verdade resultara eficiente, e elaagora exprimia-se quase com desprendimento.- Era muito generoso nos primeiros meses - prosseguiu.- Não imagina o que isso significava para mim, Philip. Dispunha finalmente de alguém em quem podia confiar e, sobretudo, amar. Creio que me daria tudo o que lhe pedisse. Foipor isso que, quando adoeceu... - Interrompeu-se e o olharenevoou-se. - Foi por isso que me custou tanto assistir àtransformação que sofreu.- Quer dizer que deixou de ser generoso?- Não, continuou a sê-lo, mas de uma maneira diferente.Comprava-me coisas (presentes, jóias), como se tentasse submeter-me a um teste. Mas se lhe pedia dinheiro para uma necessidade da casa, algo de que não podíamos prescindir, recusava-mo. Olhava-me com uma expressão de desconfiança,perguntava para que o queria, se o destinava a alguém. Acabeipor ter de procurar Rainaldi e solicitar-lhe o suficiente parapagar ao pessoal.- O Ambrose inteirou-se disso?- Inteirou-se. Nunca simpatizara com o Rainaldi, masquando descobriu que eu recorrera a ele foi o fim. Proibiu-mede voltar a admiti-lo na villa. Custa-me confessar isto, mastinha de me ausentar de casa furtivamente, quando ele repousava, para ir pedir-lhe o dinheiro de que necessitava para acasa. -- Gesticulou e levantou-se. - Deus é testemunha de que nãodesejava revelar-lhe isto.Aproximou-se da janela, afastou o cortinado e olhou achuva com uma expressão pensativa.- Porquê?- Porque queria que o recordasse como era aqui. Há o retrato dele nesta casa. O seu Ambrose era

aquele. Deixe-o permanecer assim. Os seus últimos meses foram meus, e não osquero partilhar com ninguém. Consigo menos do que comqualquer outra pessoa.E eu não o queria partilhar com ela. Desejava que fechassetodas aquelas portas pertencentes ao passado, uma a uma.- Sabe o que aconteceu? - persistiu, virando-se da janelae fitando-me. - Fizemos mal em abrir aqueles baús. Devíamos tê-los deixado como estavam, sem tocar nos objectos quelhe pertenceram. Pressenti-o no instante em que abrimos oprimeiro e vi o roupão e os chinelos. Libertámos algo que atéentão não se encontrava connosco. Uma espécie de sentimentoamargo. - Empalidecera e entrelaçava os dedos na sua frente.- Não me esqueci das cartas que atirou ao lume e arderam.Tentei não voltar a pensar nelas, mas hoje, desde que abrimosa bagagem, foi como se as tivesse voltado a ler.Levantei-me e conservei-me de costas para a chaminé, semsaber o que lhe dizer, enquanto ela percorria o aposento emcadenciado vaivém.- O Ambrose escreveu que eu o vigiava - continuou.- Sem dúvida que o fazia, receosa de que se molestasse de algum modo. Rainaldi aconselhou-me a recorrer às freiras doconvento para me ajudarem, mas recusei, de contrário ele suporia que se destinavam a espiá-lo. Chegara ao ponto de nãoconfiar em ninguém. Às vezes, até recusava receber os médicos, apesar de se revelarem pacientes e compreensivos. Depois,pediu-me que despedisse os empregados domésticos, um a um,até que só ficou o Giuseppe. Nesse confiava inteiramente. Dizia que tinha olhos de cão...Interrompeu-se e voltou o rosto para o outro lado. Recordei-me do empregado que me recebera à entrada da villa e doseu desejo de me poupar sofrimento. Era estranho que Ambrose também acreditasse naqueles olhos sinceros e fiéis. E eusó vira o homem uma vez.- Não interessa evocar tudo isso agora - declarei.- Não adianta nada ao Ambrose e apenas serve para a torturar. Pela parte que me toca, o que aconteceu entre vocês nãome diz respeito. Pertence tudo ao passado e deve ser esquecido. A villa não era o lar dele. Nem o seu, Raquel, quando casaram. O seu lar é aqui.- Às vezes - murmurou, detendo-se na minha frente -,parece-se tanto com ele que me assusta. Vejo os seus olhos,com a mesma expressão, cravados em mim, e é como se não tivesse morrido e tudo o que suportei reaparecesse para novaprovação. Não conseguiria aguentar aquele clima de suspeita,dia após dia, noite após noite.Enquanto ela falava, eu conjurava uma imagem clara daVilla Sangalletti. Revia o pequeno pátio e o laburno com o aspecto que decerto apresentaria na Primavera, a cadeira em queAmbrose se sentava e a bengala a seu lado. Notava o silênciodo local, aspirava o ar húmido, observava a fonte gotejante.E, pela primeira vez, a mulher que olhava para baixo, da varanda, não constituía um produto da minha imaginação e eraRaquel. Contemplava Ambrose com a mesma expressão implorativa, de sofrimento, de súplica. Senti-me de súbito muito

velho, assolado por um novo vigor que não compreendia.Obedecendo a um impulso, estendi-lhe as mãos.- Venha cá, Raquel.Cruzou o aposento e pousou as suas nelas.- Não existe qualquer clima de suspeita nesta casa -- acrescentei. - Ela pertence-me. A suspeita que uma pessoaacalenta parte com ela quando morre. A roupa foi toda dividida por embrulhos, que se guardaram. Já não tem nada de comum connosco. Doravante, você vai recordar o Ambrose damesma maneira que eu. Conservaremos o seu velho chapéu nocabide do átrio. E a bengala, com as outras, no respectivo lugar. Passou a pertencer aqui, Raquel, como ele no passado e euactualmente. Fazemos os três parte de tudo isto. Compreende?Olhou-me em silêncio por um momento, sem retirar asmãos das minhas.- Compreendo - sussurrou.Sentia-me curiosamente comovido, como se tudo o que fazia e dizia tivesse sido planeado para meu uso exclusivo, aomesmo tempo que uma voz débil me segredava: ??Nunca poderás regressar a este momento. Nunca... nunca...,? Continuámos de mãos unidas, e ela acabou por perguntar:- Porque é tão bondoso para mim, Philip?Lembrei-me de que, de manhã, quando chorara, repousaraa cabeça sobre o meu coração, e eu beijara-lhe o cabelo. Agora, ansiava por que a cena se repetisse. Mais do que tudoneste mundo. Mas desta vez a minha prima não vertia lágrimas nemapoiava a cabeça no meu peito. Limitava-se a permanecerdiante de mim, com as minhas mãos entre as suas.- Não sou bondoso para consigo - asseverei. - Pretendo apenas que se sinta feliz.Desprendeu as mãos, pegou no castiçal para recolher aoquarto e, antes de sair, proferiu:- Boa noite, Philip, e que Deus o abençoe. Um dia, épossível que venha a conhecer a felicidade que eu outrora experimentei.Ouvi os seus passos na escada e sentei-me, para fixar osolhos no lume da biblioteca. Afigurava-se-me que, se subsistiaalguma amargura na casa, não provinha dela, nem de Ambrose, mas consistia numa semente alojada no meu coração, deque nunca lhe falaria. O velho pecado da inveja que supunhasepultado e esquecido voltava a achar-se presente. Contudo,agora não invejava Raquel, mas Ambrose, a pessoa que até então mais amara no mundo.Capítulo décimo sextoNovembro e Dezembro passaram com extraordinária rapidez, ou ao menos assim me pareceu. Usualmente, à medidaque os dias se tornavam mais curtos e as condições meteorológicas se agravavam, quando havia pouco que fazer no exteriore anoitecia às quatro e meia da tarde, os serõesafiguravam-se-me monótonos. Como nunca fora grande amante de leituras eprofessava escassa inclinação para a vida social, pelo que nãoiaà caça com vizinhos nem aceitava convites para jantar, ansiavapelo novo ano, com a perspectiva de um tempo menos agrestee dias mais longos. E a Primavera chega cedo na área ocidental. Surgem as primeiras flores ainda antes do primeiro de Janeiro. No entanto, aquele Outono escoou-se sem monotonia.As árvores despiram-se, as terras de Barton apresentavam um

aspecto acastanhado e barrento, devido às chuvas, enquanto ovento soprava com intensidade. Porém, eu não encarava nadadaquilo com acabrunhamento.Raquel e eu estabelecemos uma rotina que raramente variava e nos satisfazia. Quando o tempo o permitia, ela passava asmanhãs com Tamlyn e os jardineiros, aos quais transmitia instruções sobre a plantação, ou a observar a construção do caminho empedrado, que exigira o recurso a mão-de-obra exterior,enquanto eu percorria a propriedade para me inteirar das necessidades dos caseiros, ou visitava as áreas mais distantesonde também possuía terras. Encontrávamo-nos ao meio-dia etrinta para uma breve refeição, em geral fria. Como se tratavada hora do almoço do pessoal, nós próprios nos servíamos.Era a primeira vez que a via nesse dia, pois costumava tomar opequeno-almoço no seu quarto.Quando me encontrava no exterior e ouvia o relógio docampanário bater as doze badaladas, seguidas quase imediatamente da sineta que convocava o pessoal para almoçar, invadia-me uma excitação crescente e dir-se-ia que as palpitaçõesdo coração se aceleravam.Aquilo a que me dedicava parecia de súbito destituído deimportância, e conduzia o Cigano para casa com impaciência,como se receasse que o mínimo atraso me obrigasse a comersem companhia. A reacção não diferia se me encontrava no escritório. A carta importante, por vezes urgente, era prontamente relegada para segundo plano e abandonada, em favor dapartida imediata para as imediações da sala de jantar.Raquel costumava chegar primeiro, para me dar as boas-vindas e os bons-dias. Acontecia com frequência pousar umgalho novo ao lado do meu talher, que eu colocava na botoeirada lapela, ou então havia um licor novo para provar, confeccionado com algumas das suas ervas, de que parecia conhecerdezenas de receitas. Algumas semanas depois da sua vinda,Seecombe segredou-me, um dia, que o cozinheiro a consultavapara receber ordens, razão pela qual o nível da alimentação seelevara notavelmente.- A senhora não queria que Mister Ashley soubesse, porrecear que considerasse presunção de sua parte - confidenciou-me o mordomo.Achei graça e não disse nada a Raquel, mas às vezes, só para observar o efeito, comentava:- Não sei o que se passa ultimamente na cozinha. O cozinheiro e respectivos ajudantes estão a tornar-se autênticoschefs franceses.Ao que ela perguntava, com uma expressão inocente:- Acha tudo mais satisfatório que dantes?Agora, já todos a tratavam por ??senhora??, e eu não me importava. Ao invés, até me agradava e infundia uma espécie deorgulho.Após o almoço, a minha prima costumava ir repousar ou,se era terça ou quinta-feira, eu mandava aparelhar a carruageme Wellington levava-a a retribuir visitas. Em algumasocasiões,se tinha assuntos a tratar para os mesmos lados, acompanhava-a durante uma parte do caminho. Ela esmerava-se semprecom o aspecto geral e escolhia os trajos mais irrepreensíveis,embora virtualmente todos o fossem.

- Deixo-a entregue aos seus mexericos - observava eu,maliciosamente, no momento da separação. - Gostava de mepoder transformar numa mosca e pousar a um canto das salasque visita, para poder ouvir.- Porque não vem comigo? O convívio só lhe faria bem.- Nem pensar. Pode contar-me tudo durante o jantar.Conservava-me na estrada até que a carruagem desapareciaao longe, enquanto um lenço assomava à janela, num gesto dedespedida trocista. Não a voltava a ver até ao jantar, àscincoda tarde, e as horas intermédias escoavam-se, para mim, comuma lentidão enervante. No regresso, entrava em casa pelo lado dos estábulos, para me certificar de que tudo se encontravaem ordem naquele sector. Raquel repousava sempre um poucoantes de se apresentar à mesa. Por meu turno, eu tomava banho, mudava de roupa e descia à biblioteca, onde a aguardava.A minha impaciência acentuava-se, à medida que as cinco horas se aproximavam, e em regra deixava a porta aberta para lheouvir os passos.Primeiro, surgiam os sons produzidos pelos cães e a seguiro ruge-ruge do vestido ao longo dos degraus. Creio que era omomento que mais apreciava em todo o dia. O murmúrio dotecido provocava-me um choque de antecipação, uma tal sensação de expectativa que quase não sabia o que fazer ou dizerno momento em que ela aparecia à entrada do aposento.Envolvia-a uma suavidade nova ao clarão das velas que nãose achava presente durante o dia. Dir-se-ia que a claridadematinal e as primeiras sombras da tarde se empenhavam em lherealçar todos os atributos, como se, sem isso, alguns pudessempassar despercebidos. Agora, havia mais cor nas faces e no cabelo, uma maior profundeza nos olhos, e todos os seus movimentos, independentemente da sua finalidade, se revestiam deuma graciosidade fácil, fascinante.Seecombe anunciava o jantar e nós transferíamo-nos para aoutra sala, a fim de ocuparmos os lugares habituais - eu à cabeceira da mesa e ela à minha direita -, e afigurava-se-me quefora sempre assim e não havia nada de novo na situação, nadade estranho.A excitação não se atenuou com o rolar das semanas - talvez até aumentasse -, pelo que me descobria a inventar pretextos para me conservar nas imediações da casa, durante alguns minutos, e dispor de uma oportunidade suplementar de aver.Se nos cruzávamos, antes de partir para uma das suas visitas ou a caminho do jardim, sorria-me e exclamava, surpreendida: ??Que o traz por cá a estas horas?", o que me obrigava arecorrer à imaginação para encontrar uma justificação plausível. Quanto ao jardim, a minha aversão dos tempos de Ambrose convertera-se em profundo interesse, e debruçava-mecom entusiasmo sobre o andamento da construção do caminhoempedrado e aprovava todas as sugestões de Raquel na matéria; creio mesmo que, se propusesse uma réplica do Foro Romano na propriedade, eu não hesitaria em tomar as providências necessárias para que o empreendimento se iniciasse comprontidão.Não nos reuníamos sempre na biblioteca. Às vezes, ela pedia que a acompanhasse ao boudoir da tia Phoebe, onde abríamos livros de jardinagem e estendíamos os projectos dos melhoramentos no

chão. As minhas funções de anfitrião eram-lheentão transferidas, sem que isso me causasse a mínima contrariedade. Passámos a prescindir das formalidades. Seecombenão nos interrompia - não sem tacto apreciável, a minha prima convencera-o a dispensar a solenidade do chá servido numtabuleiro de prata - e ela preparava tisana para ambos, queafirmava constituir um costume continental, de efeitos muitomais satisfatórios para a pele e os olhos.Aquelas horas pós-jantar escoavam-se com deplorável rapidez, e eu acalentava sempre a esperança de que ela seesquecesse de mas perguntar, porém o malfadado relógio do campanário intervinha invariavelmente para perturbar a paz.??Não sabia que era tão tarde", costumava Raquel dizer, levantando-se e começando a fechar os livros.Eu compreendia que aquilo era o sinal para as despedidas.O próprio ardil de permanecer junto da porta em derradeiratroca de palavras resultava inútil. Tinham badalado as dez horas e eu devia retirar-me. Por vezes, estendia-me a mão paraque a beijasse, enquanto noutros casos me oferecia a face. Namaioria das ocasiões, todavia, dava-me uma palmada no ombro, como faria a um cachorro de estimação. Não voltou aacercar-se de mim ou segurar-me o rosto entre as mãos, comofizera naquela noite em que se encontrava deitada. Eu nãoprocurava nem acalentava a esperança de que isso se repetisse,mas quando me despedia, atravessava o corredor em direcçãoao meu quarto, subia os estores, contemplava o jardim silencioso e ouvia o murmúrio distante da rebentação do mar nabaía aos pés do bosque, sentia-me singularmente só, comouma criança no final de um dia feriado.A tarde, que se desenrolara paulatinamente, hora após hora, em ansiedade febril, terminara. Dir-se-ia que passaria umaeternidade até que voltasse. E tanto a minha mente como ocorpo não se achavam preparados para repousar. Outrora, antes de Raquel surgir, eu costumava dormitar diante do lume,no Inverno, após o jantar, e depois, espreguiçando-me e bocejando, recolhia ao quarto, aliviado por me afundar na cama edormir até às sete da manhã. Agora, era o inverso. Apetecia-me caminhar toda a noite. Ou conversar até ao romper da alva. O primeiro caso resultaria ridículo e o segundoimpossível.Por conseguinte, refastelava-me numa cadeira junto da janelaaberta e fumava e olhava o jardim. Por vezes, eram duas horasda madrugada antes que me deitasse, sem que tivesse feito outra coisa além de meditar em nada de concreto e desperdiçar operíodo de silêncio.Em Dezembro, formaram-se as primeiras geadas com a luacheia, e as minhas noites de vigília adquiriram uma qualidademais fácil de suportar. Continham uma espécie de beleza, friae límpida, que me envolvia o coração e obrigava a arregalar osolhos, maravilhado. Observado da minha janela, o extenso relvado mergulhava no prado e este prosseguia até ao mar, tudoembranquecido pela geada e pelo luar. As árvores circundantesapresentavam-se negras, imóveis e silenciosas. De vez em

quando, assomava um coelho, que mordiscava a relva e regressava à toca, e, de repente, ouvi o som inconfundível de umaraposa, que precedeu a aparição de um corpo peludo e alongado. Mais tarde, tornei a detectar o grito, embora já longe.Perguntei-me se Raquel estaria a dormir no quarto azul ou, comodiz, deixava a janela aberta. O relógio que me mandara para acama às dez badalou as duas da madrugada, e reflecti que merodeava uma riqueza de pormenores belos que podíamos terpartilhado.As pessoas que não importavam podiam aceitar o mundomonótono. No entanto, aquilo na minha frente não era omundo, mas encanto, e todo meu. Ora, não o desejava sópara mim.À semelhança de um cata-vento, eu oscilava entre fases deexultação e excitação e um nível mais baixo por vezes deapatiae depressão, quando, ao recordar-me da sua promessa de seconservar em minha casa apenas durante um breve período,especulei sobre quanto tempo mais seria. Se, por exemplo, aseguir ao Natal, se viraria para mim e anunciaria: ??Bem,Philip,na próxima semana sigo para Londres.?? A fase de mau tempopusera termo aos trabalhos no jardim, e pouco mais se conseguiria fazer até à Primavera. O terraço poderia ser terminado.Porém, graças ao plano, o pessoal estaria em condições decontinuar sem a assistência de Raquel. Assim, qualquer dia eladecidiria partir e eu não disporia de um pretexto para areter.Outrora, quando se encontrava em casa, Ambrose ofereciaum jantar aos caseiros na véspera do Natal. Eu interrompera ohábito, nos últimos Invernos da sua ausência, pelo que, quando regressava das viagens, promovia a refeição em meados doVerão. Agora, eu decidira reatá-lo, ainda que fosse apenasporque Raquel estaria presente.Na minha infância, a ocasião constituíra o ponto alto domeu Natal. Os homens costumavam trazer um abeto de dimensões apreciáveis com cerca de uma semana de antecedênciae colocá-lo na sala longa por cima da cocheira, onde o jantarse celebraria, e eu devia ignorar a sua existência. Mas quandonão havia ninguém nas proximidades, esgueirava-me até lá para o admirar. Só comecei a ajudar a decorá-lo nas minhas primeiras férias de Natal de Harrow. A promoção foi espectacular e nunca me sentira tão orgulhoso. Quando garoto,sentara-me ao lado de Ambrose, à cabeceira da mesa, todavia aalteração da minha posição valeu-me o lugar de honra de umamesa separada.Agora, dei mais uma vez ordem aos lenhadores para abateruma árvore satisfatória e acompanhei-os para a escolher. Entretanto, Raquel mostrava-se encantada com os preparativos.Nenhuma outra celebração lhe poderia agradar mais. Mantinha contacto permanente com Seecombe e o cozinheiro, visitava a copa com regularidade e até mandou chamar duas jovens das terras de Barton para se dedicarem aos trabalhos depastelaria, sob as suas vistas, bem entendido. Imperava a

excitação, e o mistério, diga-se de passagem, pois eu insistira emque não visse a árvore e, em contrapartida, ela decretou queeusó saberia em que consistiria a ementa quando me sentasse àmesa.Chegavam encomendas para ela, que eram despachadas para os seus aposentos. Quando eu batia à porta do boudoir, ouvia o ranger de papel e, uma eternidade mais tarde, segundome parecia, mandava-me entrar. Encontrava-a ajoelhada nochão, de olhos brilhantes e faces coradas, com uma coberturaestendida sobre vários objectos dispersos na carpete, e recomendava-me que não olhasse.Eu regressava à infância, à velha febre de, em camisa dedormir, assomar, em bicos dos pés, ao topo da escada, para escutar o murmúrio de vozes em baixo e Ambrose surgir repentinamente da biblioteca e rir-se de mim. ??Volta para a cama,mariola, ou levas um par de açoites!??Havia uma coisa que me provocava particular ansiedade.Que ofereceria a Raquel? Passei um dia em Truro, de visita alivrarias em busca de um livro sobre jardinagem, mas não encontrei nada de interessante. De resto, as obras que elatrouxera de Itália eram melhores do que qualquer que eu pudesse encontrar. Além de mais, não fazia a menor ideia do género depresente que poderia agradar a uma mulher. O meu padrinhocostumava comprar tecido para um vestido, quando ofereciaalgo a Louise, porém Raquel só trajava de luto. Recordei-mede uma ocasião em que a filha de Kendall se mostrara encantada com um medalhão que ele comprara em Londres. De súbito, acudiu-me a solução.Devia haver alguma jóia valiosa entre as pertencentes à família susceptível de agradar à minha prima, as quais eramguardadas num cofre do banco. Eu não fazia a menor ideia dasua natureza. Lembrava-me apenas vagamente de, uma ocasião,ter acompanhado Ambrose numa visita ao estabelecimento, ondeme mostrara um colar e explicara, sorrindo, que pertencera ànossa avó e a minha mãe o usara no dia do casamento, mas sónessa ocasião, como um empréstimo, pois o meu pai não se situava na linha directa de sucessão e, num futuro distante, seme comportasse devidamente, ele permitiria que o oferecesse aminha mulher. Agora, como eu tinha plena consciência, tudoo que se encontrava no banco pertencia-me. Ou pertenceria,dentro de três meses.É claro que o meu padrinho saberia que jóias se achavamno cofre, mas deslocara-se a Exeter em serviço e sóregressariana véspera do Natal, para cujo jantar ele e Louise estavamconvidados. Decidi, por conseguinte, visitar o banco e pedirpara as ver.Mr. Couch recebeu-me com a habitual cortesia no seu gabinete sobranceiro ao porto e escutou atentamente a minhapretensão.- Suponho que Mister Kendall não terá nada a objectar? -- perguntou por fim.- Decerto que não - repliquei com impaciência. - Issosubentende-se.O que não correspondia à verdade, mas aos vinte e quatro

anos, a poucos meses dos vinte e cinco, pedir autorização aomeu padrinho para uma coisa tão insignificante afigurava-se-me absurdo. E irritava-me.Mr. Couch mandou buscar as jóias, que se encontravamem caixas seladas. Ele quebrou o selo e, depois de estender umpano no tampo da secretária, pousou-as nele, uma a uma.Eu não imaginara que se tratava de uma colecção tão valiosa. Havia anéis, pulseiras, brincos, medalhões, alguns pertencentes a conjuntos. No entanto, enquanto os contemplava,sem me atrever a tocar-lhes, recordei-me, com desapontamento, que Raquel estava de luto e não usava jóias de cor. Se lheoferecesse, por exemplo, o conjunto de pulseira, medalhão eanel de safiras, serviria apenas para o guardar numa gaveta.Finalmente, Mr. Couch abriu a última caixa e extraiu delaum colar de pérolas de quatro voltas com um único diamanteno fecho, que reconheci imediatamente. Tratava-se do queAmbrose me mostrara.- Gosto dele - declarei. - É a melhor peça de toda acolecção. Lembro-me de o meu primo Ambrose mo mostrar.- As nossas opiniões não coincidem. Eu inclinar-me-iaantes para os rubis. No entanto, o colar de pérolas reveste-sede características especiais. A sua avó, Mistress Ambrose Ashley, usou-o na Corte de Saint James. Depois, a sua tia, Mistress Philip, ofereceu-lho, quando os bens passaram para asmãos do seu tio. Vários membros da família o usaram no diade casamento, entre os quais a sua própria mãe. Julgo mesmoque foi a última. O seu primo Ambrose nunca permitiu queabandonasse o condado, quando se realizavam enlaces noutrolugar. - Mr. Couch pegou nele e aproximou-o da janela, paraque a claridade do dia incidisse nas pérolas imaculadas. - Naverdade, é belo. E há vinte e cinco anos que ninguém o usa.Estive presente no casamento de sua mãe. Era uma mulher linda e o colar assentava-lhe maravilhosamente.Estendi a mão e peguei nele para o contemplar.- Quero levá-lo - anunciei, e depositei-o na caixa.O meu interlocutor hesitou.- Não sei se será uma decisão prudente, Mister Ashley. Sese perdesse ou extraviasse...- Não se perderá nem extraviará - asseverei secamente.Não pareceu convencido, e tratei de me retirar sem demora, antes que lhe acudisse algum argumento de peso para medissuadir.- Se está preocupado com o que o meu tutor possa dizer,tranquilize-se - acrescentei. - Explicar-lhe-ei tudo quandoregressar de Exeter.- Oxalá que sim, embora eu preferisse que estivesse presente. É claro que em Abril, quando tomar legalmente posseda herança, não haverá inconveniente, mesmo que leve toda acolecção e lhe dê o destino que entender, embora eu não aconselhasse semelhante decisão.Despedi-me dele, desejei-lhe um bom Natal e segui paracasa, particularmente satisfeito comigo próprio. Não encontraria melhor presente para Raquel, mesmo que vasculhasse todoo país. As pérolas eram brancas, graças a Deus. E estabeleciauma espécie de elo o facto de a minha mãe ter sido a últimapessoa a usá-las, como não deixaria de salientar à minha prima. Agora, podia encarar a perspectiva

do Natal com toda aserenidade.Faltavam dois dias. Fazia bom tempo, a geada matinal nãoera forte e tudo, parecia prometer ausência de chuva para anoite do jantar. A medida que a data se aproximava, o pessoalmostrava-se excitado, e na manhã da véspera do Natal, pedi aSeecombe que me ajudasse a decorar a árvore com os rapazes.O mordomo assumiu as funções de mestre-de-cerimónias.Conservava-se um pouco afastado de nós, a fim de observarmelhor o conjunto, e transmitia instruções se algum pormenornão lhe parecia totalmente satisfatório.Por fim, declarou, com uma expressão solene:- Creio que atingimos a perfeição, Mister Philip.O início do jantar estava marcado para as cinco da tarde.Os Kendall e os Pascoe seriam os únicos transportados emcarruagens. Os restantes viriam de breque ou coche ou mesmoa pé, os que viviam mais perto. Eu inscrevera os respectivosnomes em rectângulos de papel, que colocara na mesa para indicar os lugares. Quem tivesse dificuldade em ler, ou não soubesse, recorreria a outros convivas mais esclarecidos nesseparticular. Havia três mesas. Eu ocuparia a cabeceira de uma, comRaquel na outra extremidade. O lugar de honra da segundacompetiria a Billy Rowe, das terras de Barton, e o da terceiraaPeter Johns, de Coombe.Segundo o costume vigente, reuniam-se todos na sala longa, pouco depois das cinco, e em seguida nós fazíamos a nossaaparição. No final do jantar, Ambrose e eu distribuíamos ospresentes da árvore, sempre dinheiro para os homens e xailespara as mulheres e embalagens com comida para todos. Ospresentes nunca variavam. A mínima alteração na rotina teriachocado toda a gente. Naquele Natal, porém, eu pedira a Raquel que me ajudasse a proceder à distribuição.Antes de me vestir para o jantar, eu mandara levar-lhe aoquarto o colar de pérolas. Mantivera-o no estojo, mas juntara-lhe um breve bilhete:??A minha mãe foi a última a usá-lo. Agora, pertence-lhe, Raquel. Quero que o ponha esta noite, e sempre.Philip.??Os Kendall e os Pascoe não nos procurariam na residência,pois, em obediência à tradição, seguiriam directamente para asala onde o jantar se realizaria e conversariam com oscaseiros,como medida preliminar para dissipar algum eventual constrangimento. O pessoal doméstico também se encontraria lá.Por fim, desci ao piso térreo e aguardei na sala de estar.Percorria-me um certo nervosismo, porque nunca tinha dadoum presente a uma mulher. Podia acontecer tratar-se de umainfracção à etiqueta, que só permitia oferecer flores, livrosouquadros. E se se irritasse, como acontecera com a atribuiçãoda mesada, e encarasse o meu gesto como um insulto? Erauma hipótese alarmante, e os minutos que se escoavam umatortura crescente. De repente, ouvi os seus passos na escada.

Desta vez, os cães não a precediam, pois haviam sido encerrados no canil.Aproximava-se com lentidão, o ruge-ruge familiar cada vezmais perto. A porta estava aberta e ela entrou e deteve-sediante de mim. Trajava de negro, como eu previra, mas o vestidoera novo. Os ombros achavam-se expostos. O cabelo encontrava-se puxado mais para cima do que habitualmente, com asorelhas descobertas. Rodeava-lhe o pescoço o colar de pérolas,única jóia que usava, num contraste peculiar com a pele bronzeada. Eu nunca a vira tão radiosa e, aparentemente, feliz.Afinal, Louise e os Pascoe tinham razão. A minha prima era bonita.Conservou-se imóvel por um momento, a observar-me, atéque me estendeu as mãos e proferiu: ??Philip.?? Acerquei-medela. Parei na sua frente. Colocou os braços à minha volta epuxou-me para si. Havia lágrimas nos seus olhos, mas naquelanoite não me provocavam preocupação. Ergueu as mãos para aminha nuca e pousou os dedos no cabelo.Por último, beijou-me. Não como nas ocasiões anteriores.E, enquanto a abraçava, eu reflectia: ??Não foi com saudadesdo lar, de doença no sangue ou de febre cerebral, mas por istoque o Ambrose morreu.¨?Retribuí-lhe o beijo. O relógio do campanário badalou ascinco horas. Raquel não me disse nada, nem eu a ela. Estendeu-me a mão e encaminhámo-nos para a sala longa por cimada estrebaria, cujas janelas estavam brilhantementeiluminadas.Para imergirmos na atmosfera alegre e nos apresentarmos perante os rostos ansiosos.Capítulo décimo sétimoTodos se levantaram quando entrámos. As cadeiras foramimpelidas para trás, houve um arrastar de pés e as vozes atenuaram-se, enquanto todas as cabeças se voltavam para noscontemplar. Raquel imobilizou-se à entrada por uns instantes,e admiti a possibilidade de ela não contar com uma presençatão numerosa. De súbito, viu a árvore de Natal na extremidade oposta da sala e soltou uma exclamação de prazer. A pausafoi quebrada e brotou um murmúrio de simpatia e satisfaçãode todas as bocas.Dirigimo-nos para os respectivos lugares às cabeceiras dasmesas e Raquel sentou-se. Eu e os outros imitámo-la e seguiu-se a actividade usual em semelhantes circunstâncias. Eu tinhaà minha direita Mrs. Billy Rowe, das terras de Barton, trajadairrepreensivelmente, e notei que Mrs. Johns, de Coombe, àminha esquerda, a olhava com uma expressão de censura.O meu desejo de observar o protocolo impedira-me de terpresente no espírito que se achavam de relações cortadas desdelonga data, devido a qualquer divergência a meu ver banal,embora elas pensassem sem dúvida de maneira diferente. Decidi, pois, esforçar-me por intervir diplomaticamente se se gerasse algum atrito. O sector da cozinha comportara-se à alturada sua fama, e as variadas e abundantes iguarias e bebidascontribuíam para o clima jovial e cordial que não tardou a predominar.Já começáramos a comer (e a beber), quando me apercebide que cada um de nós tinha um pequeno embrulho junto dotalher, endereçado

na caligrafia regular e clara de Raquel.Dir-se-ia que todos nos demos conta ao mesmo tempo e, por umbreve momento, o repasto foi esquecido, enquanto os envoltórios eram retirados. Mantive-me na expectativa, antes dedesembrulhar o meu, consciente, com uma contracção nocoração, do que ela fizera. Dera um presente a todos os convidados e incumbira-se pessoalmente de os embrulhar e incluirum bilhete. Nada de espectacular ou particularmente dispendioso, mas, não obstante, uma lembrança que não podia deixarde agradar aos destinatários. Estava explicado o misteriosoranger de papel que eu detectara do outro lado da porta doboudoir.Só me concentrei na minha quando os outros voltaram adebruçar-se sobre os pratos. Retirei o invólucro em cima dosjoelhos, abaixo do nível da mesa, para ser o único a inteirar-me de que se tratava. Era uma corrente de ouro para o chaveiro, com um disco que continha as iniciais P.A.R.A. e a data. Conservei-a nas mãos por uns instantes e acabei porguardá-la furtivamente na algibeira do colete. A seguir, erguios olhos para Raquel e sorri, após o que peguei no copo numgesto significativo, que se apressou a imitar. Como me sentiafeliz, meu Deus!O jantar prosseguiu, ruidoso e alegre. Em dada altura, alguém a meio da mesa começou a cantar, em breve secundadopor vários outros. Mrs. Johns de Coombe confidenciou-meque as minhas pestanas eram demasiado longas para um homem, e tratei de lhe reabastecer o copo de cidra.Por fim, recordando que Ambrose escolhia o momentoapropriado com precisão meticulosa, bati com o cabo da facano tampo e estabeleceu-se silêncio.- Os que desejarem e necessitarem podem ir lá fora e voltar em seguida. Dentro de cinco minutos, Mistress Ashley e eudistribuiremos os presentes da árvore. Muito obrigado, senhoras e senhores.O movimento em direcção às portas correspondeu ao queeu calculava. Com um sorriso nos lábios, vi Seecombe incorporar-se no volumoso grupo. Os que ficaram impeliram asmesas e cadeiras para junto das paredes. Após a distribuiçãodos presentes da árvore e a nossa retirada, aqueles que aindasesentissem com energias suficientes, ignorando o peso no estômago e a leveza na cabeça, entregar-se-iam à dança, possivelmente até por volta da meia-noite. Aproximei-me do pequenogrupo que se encontrava em redor da árvore: o vigário, Mrs.Pascoe, com as três filhas, e um cura, o meu padrinho eLouise, com excelente aspecto, embora algo pálida. Apertei-lhesamão e Mrs. Pascoe, expondo os dentes, proferiu:- Excedeu os seus próprios recursos. Nunca me senti tãobem numa reunião desta natureza. As moças estão positivamente extasiadas.De facto, pareciam extasiadas, com um único cura a dividirpelas três.- Ainda bem que lhe agradou - repliquei, e virei-me para Raquel, que me acompanhara. - Está contente?- Que acha? - Os nossos olhares cruzaram-se e sorriu.

- A tal ponto que contenho as lágrimas de alegria com dificuldade.Voltei-me para o meu padrinho.- Feliz Natal. Como encontrou Exeter?- Fria - grunhiu. - Fria e triste.A sua atitude quase se podia considerar abrupta. Conservava uma das mãos atrás das costas e os dedos da outra cofiavamo bigode. Perguntei-me se algo ocorrido durante o jantar lhedesagradara. A cidra teria jorrado com abundância excessivapara o seu gosto? De repente, notei que fixava o olhar em Raquel e, mais especificamente, no colar que lhe rodeava o pescoço. Quando viu que me apercebera, desviou a vista. Por instantes, senti-me regressado a Harrow, com o professor adescobrir a cábula debaixo do compêndio de latim. No entanto, acabei por encolher intimamente os ombros. Eu era PhilipAshley, de vinte e quatro anos a quem ninguém do mundo,nem mesmo o meu padrinho, podia ditar ordens, sobre o destinatário dos presentes de Natal ou qualquer outra coisa. Nãome surpreenderia que a intrometida Mrs. Pascoe lhe tivesse soprado ao ouvido. E daí talvez não, pois decerto desconhecia aexistência do colar. Todavia, Louise dera-se conta, sem margem para dúvidas. Vi os seus olhos azuis desviarem-se momentaneamente para Raquel e comprimir os lábios.Os convivas regressaram ruidosamente à sala. Rindo, murmurando, acotovelando-se, aproximaram-se da árvore, enquanto Raquel e eu ocupávamos uma posição estratégica paraproceder à operação seguinte. Em seguida, inclinei-me para ospresentes e, lendo os nomes em voz alta, fui-os passando à minha prima, que se encarregava de os entregar aosdestinatários,no meio de um vendaval de palavras de agradecimento.No final, transcorridos cerca de trinta minutos, retrocederam para um dos lados da sala e aguardaram aquilo que sabiamque se seguiria. Deixei escoar-se um momento e, no meu tommais solene e cordial, desejei-lhes um feliz Natal. Como umcoro bem ensaiado, replicaram:- Um bom Natal para si e para Mistress Ashley.Depois, Billy Rowe sugeriu com ardor ??Três vivas pelo generoso e simpático par!,?, e as paredes pareceram estremecerpor uns momentos. Observei que as lágrimas tinham acabadopor vencer e assomar aos olhos de Raquel e meneei a cabeça.Sorriu, pestanejou para as repelir e estendeu-me a mão.Repa rei que o meu padrinho nos olhava com gravidade e, em novoregresso aos tempos de estudante, embora a atitude íntimafosse indesculpável, cogitei: "Se não te agrada, mete-o no...",Porúltimo, puxei a mão de Raquel para o cavado do meu braço eencaminhámo-nos para a residência.Alguém, provavelmente o jovem John, levara bolos secos euma garrafa de vinho para a sala de estar, mas estávamos demasiado cheios para comer ou beber mais. Verifiquei, todavia,que o cura não resistia à tentação e se servia de um dos primeiros. Depois de todos instalados, Mrs. Pascoe, decerto vinda ao mundo para não permitir que a harmonia perdurasse pormuito tempo, virou-se para Raquel e disse:- Perdoe-me, Mistress Ashley, mas não posso resistir aemitir um comentário. Que belo colar de pérolas! Não tive

olhos para outra coisa desde que cheguei.A minha prima sorriu e pousou os dedos nas pérolas.- Sim, orgulha qualquer mulher que o use.- E com forte razão - interveio o meu padrinho. - Valeuma pequena fortuna.Creio que somente Raquel e eu nos apercebemos do seutom de voz. Ela olhou-o, intrigada. Em seguida dirigiu-meuma interrogação muda e preparava-se para dizer algo, quandoanunciei:- Creio que as carruagens acabam de chegar.A seguir, postei-me à entrada do aposento. A própria Mrs.Pascoe, em geral cega e surda às minhas sugestões deretirada,compreendeu que a recepção chegara ao fim.- Vamos, meninas. Devem estar cansadas e aguarda-nosum dia trabalhoso. A família de um clérigo não conhece ummomento de repouso no dia de Natal.Acompanhei a família Pascoe à porta. Por sorte, a minhaprevisão resultou acertada, e a carruagem deles aguardavadiante da entrada. O cura aproveitou o transporte einstalou-seentre duas das jovens. A dos Kendall surgiu quase imediatamente. Regressei à sala e encontrei-a deserta, à excepção domeu padrinho.- Onde estão elas? - perguntei.- A Louise e Mistress Ashley foram lá acima, mas nãotardam. Congratulo-me com esta oportunidade para trocaruma palavrinha contigo.Aproximei-me da chaminé e, de costas para o lume, inquiri:- De que se trata?Não respondeu imediatamente, algo embaraçado.- Não tive ensejo de falar contigo, antes de partir paraExeter, de contrário abordaria então o assunto - acabou pordeclarar. - A verdade é que recebi uma informação do bancoa todos os títulos preocupante.??O colar??, reflecti. No entanto, o assunto só a mim diziarespeito.- De Mister Couch, suponho?- Exacto. Informou-me de que Mistress Ashley já excedeu a sua conta bancária em várias centenas de libras.Experimentei uma sensação de frio, apesar da proximidadedo lume. Olhei-o em silêncio por instantes, até que a tensãoirrompeu e senti um ardor desconfortável nas faces.- Sim? - limitei-me a articular.- Confesso que não compreendo. Ela não deve ter muitasdespesas aqui. Vive como tua hóspede e as suas necessidadesdecerto são poucas. A única explicação que me ocorre é queenvia dinheiro para fora do país.- É uma mulher muito generosa, como sem dúvida já reparou - argumentei, esforçando-me por ignorar o palpitar intenso do coração. - Um presente para cada um de nós não seconsegue com um punhado de xelins.- Várias centenas de libras chegam e sobejam para comprar uma carrada deles. Não ponho em

dúvida a generosidadedela, mas só os presentes não justificam esses levantamentosavultados.- Decidiu gastar dinheiro com a casa. Entre outras coisas,adquiriu tecido para redecorar o quarto azul. Temos de tomarisso em consideração.- Talvez, mas subsiste o facto de que a quantia que estipulámos conceder-lhe cada trimestre já atingiu o dobro, quaseo triplo. Que vamos decidir para o futuro?- Duplicar, triplicar, a soma inicial. Tudo indica que nãoera suficiente.- Mas isso é absurdo - insistiu. - Mulher alguma quevivesse como ela aqui poderia desejar gastar tanto.- Pode ter dívidas que ignoramos. Credores de Florençaque exigem o pagamento. O assunto não nos diz respeito.Quero que aumente o quantitativo e salde o excesso do dinheiro levantado.Olhou-me com incredulidade e uma ponta de animosidade,mas eu desejava o assunto resolvido com prontidão. Entretanto, apurava os ouvidos para tentar detectar passos na escada.- Outra coisa, Philip. Procedeste mal ao retirar aquele colar do banco. Deves compreender que faz parte da colecção,da herança, e não te assiste o direito de dispor dele.- Pertence-me - retorqui. - Posso dispor do que é meucomo me aprouver.- Ainda faltam três meses para poderes falar assim.- Ora! - Gesticulei com desprendimento. - Três mesespassam depressa. Não acontecerá nada de mal ao colar em poder dela.- Gostava de estar tão seguro disso como tu.A implicação subjacente a estas palavras fez-me explodir.- Que demónio está a insinuar? Receia que o venda?Por um momento, conservou-se silencioso, enquanto co fiava o bigode.- A viagem a Exeter permitiu-me ampliar os meus conhecimentos acerca da tua prima Raquel.- Que diabo quer dizer com isso?Desviou os olhos para a porta e concentrou-se de novoem mim.- Encontrei casualmente uns velhos amigos, pessoas quenão conheces e viajam muito. Passam o Inverno em Itália eFrança há vários anos. Segundo afirmaram, conheceram a tuaprima quando estava casada com o primeiro marido, Sangalletti.- E daí?- Eram ambos personagens de fama pouco recomendável.Devido a extravagâncias desregradas e um modo de vida demasiado livre. O duelo em que Sangalletti perdeu a vida deveu-se à presença de outro homem. Os meus amigos garantemque quando se inteiraram do casamento de Ambrose Ashlevcom a condessa Sangalletti ficaram horrorizados e predisseramque lhe esbanjaria a fortuna em poucos meses. Felizmente, talnão aconteceu. Ele morreu antes que ela o conseguisse. Lamento, Philip, mas essas informações deixaram-me desolado.- Não o julgava tão crédulo a histórias de viajantes.Quem são essas pessoas, afinal? Como se atrevem a repetirmexericos sobre acontecimentos de há dez anos? Aposto que

não o fariam diante da Raquel.- Deixemos isso, de momento. A minha principal preocupação é o colar. Por muito que me custe e na qualidade deteu tutor ainda durante três meses, vejo-me obrigado a pedir-te que exijas a sua devolução. Voltarei a guardá-lo no cofre-forte do banco, juntamente com o resto das jóias.Comecei a percorrer o aposento em excitado vaivém, quasesem saber o que fazia.- A devolução do colar? - bradei. - Como quer que lhepeça uma coisa dessas? Ofereci-lho esta noite, como prenda deNatal. É a última coisa do mundo que me aventuraria a fazer.- Nesse caso, fá-lo-ei eu.Detestei repentinamente aquele velho obstinado, com a suaindiferença pelos sentimentos alheios.- Demónios me levem, se o permitir!- Então, Philip! - persistiu, com ares paternalistas. - Ésmuito jovem e impressionável, e compreendo perfeitamenteque quisesses oferecer um objecto de estimação a tua prima.Mas as jóias de família são algo mais do que isso.- A Raquel tem o direito a elas. Deus sabe que se alguémtem o direito de as usar é ela.- Se o Ambrose vivesse, com certeza, mas não agora. Ficarão na posse de tua esposa, quando casares. E isso é muitodiferente. Esse colar possui uma significação própria, que alguns dos caseiros mais velhos presentes esta noite no jantartalvez recordem. Um Ashley, aquando do casamento, permiteà esposa que o use, nesse dia, como único ornamento. Trata-sede uma superstição de família com que as más-línguas da região se deliciam. É deplorável e daquelas coisas de que osmexeriqueiros se alimentam. Estou convencido de que a tuaprima, na sua actual situação, é a última pessoa a desejarsemelhante ocorrência.- Os convidados desta noite pensarão, se porventura ficaram em condições de pensar seja o que for, que o colar fazparte dos objectos pertencentes a Raquel. Afigura-se-me totalmente absurdo que o simples facto de o usar suscite mexericos.- Não é a mim que compete decidi-lo. Decerto não tardarei a inteirar-me, se circularem comentários cáusticos. No entanto, tenho de ser firme num aspecto, Philip. O colar deveregressar ao cofre-forte do banco. Ainda não te pertence e nãotinhas o mínimo direito de o retirar de lá sem a minha autorização. Repito, portanto: se não exigires a sua devolução aMistress Ashley, eu próprio o farei.Na intensidade da nossa argumentação, não ouvíramos oruge-ruge dos vestidos na escada. Agora, era demasiadotarde.Raquel aparecera à entrada, com Louise a seu lado.Permaneceu imóvel por um momento, a cabeça voltada para o meu padrinho, que, postado no meio da sala, me olhavacom intensidade.- Não pude deixar de ouvir o que diziam. Peço-lhes quenão fiquem embaraçados por minha causa. Foi muito gentil daparte do Philip deixar-me usar o colar esta noite, e MisterKendall tem todo o direito de exigir que o devolva.

Levou as mãos ao pescoço, abriu o fecho e fê-lo deslizarpara a palma da mão.- Por que demónio tem de fazer uma coisa dessas? -- protestei.- Por favor, Philip... - murmurou.Entregou as pérolas ao meu padrinho, que teve ao menos odecoro de se mostrar embaraçado, embora igualmente aliviado.Vi Louise olhar-me com compaixão e desviei a vista.- Obrigado, Mistress Ashley - disse ele. - Como devecompreender, este colar faz parte da herança que me foi confiada, e o Philip não tinha o direito de o retirar do banco.Cometeu um acto estouvado, irreflectido. Mas os jovens são casmurros.- Compreendo perfeitamente e sugiro que não se falemais no assunto - redarguiu Raquel. - Quer que procure algo para o envolver?- Não, obrigado. O meu lenço é suficiente. - Puxou-oda algibeira do peito e depositou o colar no meio, com cautelainfinita. - E agora, a Louise e eu vamos despedir-nos. Obrigado pelo excelente jantar, Philip, e desejo a ambos um felizNatal.Não respondi. Encaminhei-me para o átrio e aguardei junto da porta, para em seguida ajudar Louise a subir para a carruagem, sem uma palavra. Ela exerceu pressão na minha mãoem sinal de simpatia, mas achava-me demasiado indignadopara a retribuir. O meu padrinho entrou atrás da filha e partiram.Regressei à sala de estar em passos lentos e vi que Raquelse mantinha de pé, com o olhar fixo no lume. O seu pescoçoparecia desnudo sem o colar. Conservei-me com os olhos cravados nela, silencioso, irritado e exasperado. Ao ver-me, estendeu os braços e aproximei-me. O meu coração achava-sedemasiado cheio para que pudesse dizer algo. Sentia-me comoum garoto de dez anos, e não seria necessário muito para mefazer chorar.- Não se preocupe, Philip - murmurou numa inflexãode ternura que lhe era peculiar. - Orgulho-me de ter usado ocolar, ainda que fosse uma única vez.- Eu queria que o usasse e guardasse para sempre. Demónios levem o meu padrinho!- Não diga essas coisas, por favor.Estava tão enfurecido e alucinado que me apetecia visitar obanco naquele instante, forçar o cofre-forte e retirar todasasjóias da herança, para as oferecer à minha prima. Narealidade,desejava oferecer-lhe o mundo inteiro.- A noite ficou completamente estragada - articulei.- Todo o Natal. Tudo.- É como uma criança que me procurou de mãos vazias -- observou com uma risada.Recuei um passo e contemplei-a.- Não sou uma criança. Faltam três meses para completarvinte e cinco anos. A minha mãe usou esse colar no dia do casamento, e a minha tia e a minha avó antes dela. Não compreende que eu desejava vê-lo também no seu pescoço?Pousou-me as mãos nos meus ombros e beijou-me.- E eu estava muito contente e orgulhosa por isso. Quisque o usasse porque sabe que, se tivesse casado aqui e não emFlorença, o Ambrose mo ofereceria no dia da cerimónia.Conservei-me calado. Ela dissera, algumas semanas atrás,

que eu carecia de percepção. Agora, eu poderia dizer o mesmoa seu respeito. Momentos depois, despediu-se e foi-se deitar.Introduzi a mão na algibeira e pousei os dedos na correntede ouro que me oferecera. Aquilo ao menos era só meu.Capitulo décimo oitavoO nosso Natal foi alegre. Raquel providenciou nesse sentido. Visitámos as herdades da propriedade e distribuímos aroupa que pertencera a Ambrose. E, sob cada tecto, fomosobrigados a comer uma fatia de tarte ou de pudim, pelo queao fim da tarde estávamos demasiado cheios para jantar.Depois de regressarmos a casa, como se eu tivesse retrocedido no tempo duas dezenas de anos, ela indicou-me que fechasse os olhos e, rindo, dirigiu-se ao boudoir e reapareceucom uma pequena árvore, que me depositou nas mãos. Ornamentara-a com uma imaginação fantástica, numa reproduçãoem miniatura dos presentes pendurados, e compreendi que ofizera por mim, para que esquecesse o drama da véspera deNatal e o fiasco do colar. Mas eu não podia esquecê-los. Nemperdoar. E, a partir daquela data, estabeleceu-se uma profundafrieza entre mim e o meu padrinho. Como se não fosse suficientemente deplorável que tivesse dado ouvidos a mexericos,repisara o pormenor técnico de que só poderia dispor da herança dentro de três meses. Até lá, necessitaria de obter asuaautorização em tudo o que se lhe relacionasse. Que interessavaque Raquel gastasse mais do que prevíramos? Não passávamosdificuldades por causa disso. Tanto Ambrose como o meu padrinho desconheciam o estilo de vida em Florença. Mesmoque ela se revelasse um pouco extravagante, constituiria umcrime? Quanto à sociedade, não a podíamos julgar. Kendallpermanecera toda a existência num clima doméstico mais oumenos espartano e, como Ambrose nunca se preocupara emgastar muito consigo próprio, tomara como ponto assente queesse estado de coisas continuaria depois de a herança passarpara as minhas mãos. Na verdade, as necessidades que meacudiam não se podiam considerar exorbitantes, mas a actualmesquinhez do meu padrinho provocava-me uma indignaçãoque encorajava a fazer vingar o meu ponto de vista e despender o dinheiro que me pertencia como me aprouvesse.Ele acusara Raquel de esbanjar a mesada. Nesse caso, podia acusar-me de dispêndios irresponsáveis com a minha casa.Decidi que, após o Ano Novo, introduziria melhoramentos napropriedade que seria minha. Mas não apenas nos jardins.A pavimentação do caminho prosseguiria, assim como a escavação e preparação do terreno junto dele, que se converteriano jardim aquático, copiado da gravura do livro de Raquel.Estava igualmente resolvido a reparar a casa. Afigurava-se-me que não me podia contentar com as visitas mensais do pedreiro da propriedade para proceder a pequenos consertos.Chegara o momento de efectuar obras de maior envergadura,sobretudo no capítulo da erosão provocada pela intempérie aolongo dos anos.Antes de o mês de Janeiro terminar havia cerca de vintehomens a trabalhar, tanto no exterior como dentro de casa, estes últimos para se incumbirem

da decoração. Entretanto, divertia-me secreta e antecipadamente com a ideia da cara que omeu padrinho faria quando lhe apresentasse a factura.Aproveitei-me da situação para suspender as visitas semanais e jantar de domingo. Assim, evitava a presença regulardos Pascoe e dos Kendall e nunca me avistava com o meu padrinho, o que constituía parte da minha intenção. Ao mesmotempo, encarreguei Seecombe de fazer circular o rumor, graçasàs suas vias de comunicação habituais, de que Mistress Ashleynão podia receber as visitantes habituais, até nova ordem.Nessa conformidade, vivemos ao estilo dos eremitas, duranteaqueles dias de Inverno e princípios da Primavera, não semparticular satisfação. O boudoir da tia Phoebe, como Raquelinsistia em lhe chamar, tornara-se o nosso local de habitação.Aí, no final do dia, ela sentava-se a ler ou a fazer renda eeuentretinha-me a observá-la. Desde o incidente do colar de pérolas na véspera do Natal, apoderara-se dela uma nova brandura de atitude, que, embora profundamente agradável, porvezes se tornava difícil de suportar.Creio que Raquel não fazia a menor ideia do efeito emmim. Aquelas mãos, pousadas por um momento nos meusombros ou a tocar-me a cabeça numa carícia, quando passavajunto da cadeira em que me sentava, enquanto falava do jardimou de qualquer assunto prático, aceleravam-me as palpitaçõesdo coração de forma desordenada. Observar-lhe os movimentos constituía um prazer infinito, e às vezes perguntava a mimpróprio se se levantava propositadamente por saber que osmeus olhos a acompanhavam com persistência. Pronunciava omeu nome numa inflexão muito sua quando se me dirigia. Emcriança, sempre desejara que fosse Ambrose em vez de Philip,porém agora congratulava-me por tal não acontecer. Quandoos operários instalaram a nova canalização para escoamento daágua da chuva do telhado e afixaram uma placa com as iniciaisP.A. e a data por baixo, a anteceder o leão que formava o brasão de minha mãe, invadiu-me um orgulho estranho, como seacabasse de contribuir de algum modo para o futuro. Raquel,que se encontrava a meu lado, murmurou:- Nunca o imaginei orgulhoso, Philip, até este momento,e ainda o estimo mais por isso.Sim, sentia-me orgulhoso... mas a sensação era acompanhada de um vazio desconfortável.Os primeiros dias da Primavera surgiram envoltos numamescla de tormento e prazer. Os melros e os tentilhõescantavamjunto das nossas janelas ao romper do dia e interrompiam-nos osono, o que representava tema obrigatório da conversa quandonos encontrávamos. Os raios solares visitavam-na em primeirolugar e a mim mais tarde, quando me vestia. Antes de abandonar o quarto, assomava à janela para contemplar o cenárioaprazível, que todos os dias parecia renovado.Certa manhã, Seecombe procurou-me para comunicar queum dos caseiros, Sam Bate, retido na cama devido a doença decerta gravidade, pedia que o visitasse, pois tinha algo de importante para me entregar. Aparentemente, tratava-se de uma

coisa demasiado valiosa para confiar a um portador. Por conseguinte, à tarde, segui pela alameda que desembocava na encruzilhada das quatro estradas, em direcção a casa do enfermo.Fui encontrá-lo sentado na cama, com um dos casacos quepertencera a Ambrose, oferecido pelo Natal, em cima dacolcha.- Lamento vê-lo doente, Sam - declarei. - Que tem?- A mesma tosse persistente que me visita todas as Primaveras, senhor. Já era velha conhecida do meu pai e acabará porme acompanhar à cova, como lhe aconteceu a ele.- Não diga disparates, homem. Isso são histórias para assustar incautos.- Gostava de me convencer disso - articulou, meneandoa cabeça. - Há males que nos são transmitidos pelos pais.Lembre-se de Mister Ambrose e do pai dele. Uma doença cerebral vitimou ambos. Não se podem combater os meios empregados pela Natureza. Vi suceder o mesmo entre o gado.Não repliquei, enquanto estranhava que ele estivesse aocorrente do tipo de enfermidade que vitimara Ambrose, poiseu não o revelara a ninguém. Era incrível como os rumores sepropagavam na região.- Tem de dizer a sua filha que procure Mistress Ashley,para que lhe dê um xarope para a tosse - acabei por recomendar. - Ela possui larga experiência dessas coisas. ?leo deeucalipto é um dos seus remédios.- Assim farei, Mister Philip, assim farei, mas primeiroquero resolver o assunto da carta, razão pela qual lhe pediqueviesse - declarou, baixando a voz.- Qual carta?- No dia de Natal, o senhor e Mistress Ashley tiveram agentileza de nos oferecer roupa que pertencera ao nossofalecido patrão. Ora, o casaco que vê aqui, em cima da cama, foi-me então entregue. Achei o presente tão valioso que não tivecoragem de o usar e guardei-o no armário. No entanto, quando adoeci e fiquei retido em casa, resolvi vesti-lo, mais parame proteger do frio que outra coisa, o que aconteceu ontem.Foi então que encontrei a carta.Fez uma pausa, introduziu a mão debaixo da almofada eretirou-a com um pequeno embrulho.- Creio que não se deram conta dela, porque havia umrasgão no forro por onde deslizou. Quando me apercebi disso,peguei num canivete para alargar a abertura e retirei acarta.Aqui a tem, senhor. E-lhe endereçada pelo punho de MisterAmbrose. Reconheci a letra perfeitamente. A descoberta abalou-me, como se se tratasse de uma mensagem do Além.Entregou-ma e verifiquei que de facto se tratava da caligrafia de Ambrose e me era dirigida.- Procedeu como devia - assenti, impressionado.- Obrigado.- Não me agradeça, por favor. Fiquei preocupado ao pensar que esteve aí esquecida durante todos estes meses. Daí arazão pela qual preferi entregar-lha pessoalmente, em vez deenviar a minha filha à mansão.Tornei a agradecer-lhe, guardei a carta na algibeira e conversámos de assuntos banais por uns

minutos, até que meretirei. Uma intuição inexplicável levou-me a pedir-lhe queguardasse segredo da ocorrência, ao que aquiesceu com prontidão.Não regressei a casa imediatamente e decidi efectuar umpasseio pela propriedade, como Ambrose gostava de fazersempre que se lhe deparava uma oportunidade. Num pontoisolado raramente visitado, mandara colocar uma laje de granito explicando, com uma ponta de gravidade não totalmenteisenta de sarcasmo, que o local lhe serviria de sepultura,preferindo-o ao jazigo de família.Não podia adivinhar nem prever que os seus restos mortaisnão jazeriam ali nem entre os outros Ashley já falecidos, masno cemitério protestante de Florença.Agora, conservei-me imóvel por uns momentos, conscientede que tinha de tomar uma decisão penosa. Entretanto, o aspecto inicial do dia deteriora-se gradualmente e a temperaturadescera, enquanto nuvens espessas avançavam do horizonte e ovento aumentava de intensidade.Sentei-me ao lado da laje, tirei a carta da algibeira epousei-ano joelho, com o endereço voltado para baixo. No verso dosobrescrito havia o lacre em que Ambrose apusera o seu anel.O conteúdo não era volumoso. Apenas uma carta, que eu nãodesejava abrir. Não consigo explicar que força me desencorajava de o fazer, que instinto cobarde me impelia a ocultar a cabeça na areia como um avestruz. Ambrose morrera e o seupassado fora sepultado com ele. Eu tinha a minha vida paraorganizar e seguir. Existia a possibilidade de a missivaconternovos elementos sobre o outro assunto que eu resolvera esquecer. Se o meu primo acusara Raquel de se dedicar a extravagâncias, decerto me atribuiria agora as mesmas tendências,se vivesse.Mas, não ler a carta... Como classificaria esse meu gesto?Se a rasgasse sem me inteirar do conteúdo, condenar-me-ia?Sopesei-a pensativamente. Ler ou não ler... Desejava ardentemente que a decisão não me competisse a mim. À semelhançade um garoto que deseja que faça bom tempo no dia do seuaniversário, eu suplicava a Deus que o sobrescrito não contivesse nada de preocupante, e acabei por abri-lo. A cartaestavadatada de Abril do ano anterior, pelo que fora escrita trêsmeses antes da morte.??Meu caro rapaz:Se as minhas cartas têm sido pouco frequentes, issonão significa que não pense em ti. Tens permanecido naminha mente, nos últimos meses, talvez mais do quenunca. Mas uma carta pode extraviar-se ou ser lida porestranhos, e não quero que tal aconteça. Por conseguinte, não tenho escrito, ou quando o fiz abordei assuntosbanais. Tenho estado doente, com febre e fortes enxaquecas. Agora, sinto-me melhor, embora não possa prever por quanto tempo. A febre pode reaparecer, assimcomo a dor de cabeça, e nessas fases não sou responsávelpelos meus actos ou palavras. Disto não subsiste a menor dúvida.

Ainda não estou certo da causa. Atravesso um período de extrema tensão, meu caro rapaz. Escrevi-te no Inverno, salvo erro, mas adoeci pouco depois e não me recordo do que aconteceu à carta. Posso muito bem tê-ladestruído no período de desorientação que se seguiu.Julgo que te falava do defeito dela, que tanta preocupação me produziu. Ignoro se é ou não hereditário, maspenso que sim, e estou convencido de que a perda donosso filho, nos primeiros meses da gravidez, a afectoude modo irreparável.Pela parte que me toca, tenho-te a ti e sinto-me consolado. Mas, no caso da mulher, os efeitos são mais profundos. Ela tinha traçado planos e projectos, como devescalcular, e, no momento em que o médico lhe anunciouque não poderia voltar a engravidar, a sua atitude alterou-se radicalmente. O esbanjamento de dinheiro tornou-se progressivo e detectei-lhe uma tendência para adissimulação, para a mentira, completamente contráriaà sua natureza terna de quando casámos. À medida queos meses se sucediam, apercebi-me de que cada vez sevoltava mais para o homem que mencionei em cartas anteriores, um tal Signor Rainaldi, amigo e, segundo creio,advogado dos Sangalletti, a fim de se aconselhar, e nãopara mim, seu marido. Creio que a ama desde longa data, ainda em vida de Sangalletti, e agora que o estado deespírito dela se modificou, não posso afirmar a inexistência de reciprocidade do afecto. Regista-se uma névoano seu olhar, uma inflexão na voz, quando o nome deleé mencionado, que me desperta a mais terrível das suspeitas.Porventura em virtude de ter sido criada por paispouco enérgicos e da vida que se viu obrigada a conhecer antes e mesmo durante o primeiro casamento, cadavez me convenço mais de que o seu código de comportamento difere do nosso. Assim, os laços do matrimóniotalvez não sejam sagrados. Suspeito (tenho mesmo quasea certeza) de que ele lhe dá dinheiro. Lamento ver-meforçado a reconhecer que, actualmente, o vil metal constitui a única via de acesso ao seu coração.Há ocasiões em que ela parece no seu estado normal,ao ponto de quase me convencer de que atravessei umpesadelo e despertei nos primeiros tempos do nosso casamento. De repente, porém, com uma palavra ou umgesto, tudo regressa ao mesmo. Se saio ao terraço e a encontro a conversar com Rainaldi, calam-se subitamente,o que me redobra as suspeitas. Certa vez em que fiqueisó com ele, aludiu ao meu testamento, que vira por ocasião do casamento, e comentou que, se morresse, deixaria a minha mulher sem recursos. Achava-me ao correntedo facto e já redigira outro em que corrigia a omissão, oqual assinaria, com as testemunhas exigidas por lei, seme convencesse de que a tendência para o dispêndio desregrado de dinheiro era temporária e não profundamenteenraizada.Quero salientar, a propósito, que o novo documentolhe atribuiria a casa e a propriedade apenas enquanto vivesse, pelo que transitariam para ti por sua morte, com a

cláusula de que a administração de tudo permanecerianas tuas mãos.Mantém-se por assinar pela razão que acabo de expor.Repara que foi Rainaldi quem me fez perguntas sobre o testamento e chamou a atenção para as omissões.Ela abstém-se de me falar no assunto. Mas trocarão impressões a esse respeito? Que dirão um ao outro quandonão estou presente?Esta questão do testamento ocorreu em Março. Reconheço que estava adoentado, com dores de cabeça excruciantes, e a abordagem do assunto por parte de Rainaldi pode dever-se ao facto de supor que eu morreria.Talvez fosse isso, e não o abordem entre si. Não disponho de meios para o averiguar. Surpreendo-a com frequência a olhar-me com uma expressão estranha.E quando a abraço, dá a impressão de que tem medo.Mas de quê ou de quem?Há dois dias, e esta é a razão principal da presente,sofri novo acesso febril, como o que me prostrou emMarço. O ataque é repentino. Acodem-me dores e náuseas, que passam rapidamente a uma enorme excitaçãocerebral, a qual me suscita uma tendência irresistível paraa violência, impedindo-me de permanecer de pé. Em seguida, surge um desejo intolerável de dormir, pelo quecaio no chão ou na cama, consoante o lugar onde me encontro. Não me recordo de o meu pai sofrer de nada dogénero. Das dores de cabeça e certa irritação sem dúvida,mas nunca os outros sintomas.Diz-me o que tudo isto significa, Philip, meu carorapaz, única pessoa no mundo em quem posso confiar,e, se puderes, procura-me. Não digas nada a Nick Kendall. Ou a quem quer que seja. E, sobretudo, não escrevas a responder. Limita-te a vir.Há uma ideia que me domina e não permite um instante de paz. Pretenderão envenenar-me?Ambrose. ?,Guardei a carta no sobrescrito pensativamente, mas não arasguei. Escavei debaixo de uma das extremidades da laje eocultei-a aí, dentro do porta-moedas. Em seguida, alisei aterracom a mão e afastei-me. Entrei em casa pelas traseiras, e Seecombe, ao ouvir-me, surgiu da sala do pessoal, com uma expressão consternada.- Ainda bem que chegou, senhor. A senhora tem estado aperguntar por si. O Don sofreu um acidente e ela está muitopreocupada.- Um acidente? - repeti. - Que aconteceu?- Caiu-lhe em cima uma pedra enorme do telhado. Comosabe, senhor, ele tornou-se um pouco duro de ouvido ultimamente e costuma estender-se ao sol junto da janela dabiblioteca. Creio que foi atingido no dorso e não pode mover-se.Precipitei-me para a biblioteca. Raquel encontrava-se ajoelhada no chão, com a cabeça de Don pousada no regaço.- Mataram-no - murmurou, erguendo os olhos paramim. - Está moribundo. - Porque tardou tanto? Se se encontrasse em casa, isto não teria acontecido.As suas palavras soavam como um eco de algo há muitoesquecido na minha memória. No entanto, não conseguia determinar de que se tratava. Seecombe,

que me seguira, deixou-nos sós. As lágrimas que inundavam os olhos de minha primadeslizavam pelas faces.- O Don era seu amigo de infância. Cresceram juntos.Não suporto vê-lo morrer.Ajoelhei por meu turno junto do animal e descobri quenão pensava na carta enterrada debaixo da laje de granito ouno infortunado Don moribundo, deitado entre ambos, o corporígido e imóvel, mas apenas numa coisa. Pela primeira vez desde que entrara em minha casa, a mágoa de Raquel era por mime não por Ambrose.Capítulo décimo nonoConservámo-nos junto de Don ao longo do serão. Eu ao sentara-me para jantar, porém Raquel recusara-se a comer.O cão morreu pouco antes da meia-noite. Levei-o e envolvi-onum cobertor, para o sepultar na plantação, na manhã seguinte. Quando regressei à biblioteca, encontrei-a deserta. Subiaoboudoir e vi-a sentada diante da chaminé, com o olhar fixo nolume.- Creio que não sofreu - murmurei, sentando-me a seulado e pegando-lhe nas mãos. - Duvido que sentisse dores.- Quinze longos anos, o garoto de dez, que abriu o seubolo de aniversário - proferiu a meia voz. - O episódioacudiu-me várias vezes ao espírito quando mantinha a cabeçadele pousada no regaço.- Dentro de três semanas, haverá mais um aniversário -- lembrei. - Completarei vinte e cinco anos. Sabe o que acontecerá nesse dia?- Devem conceder-se todos os desejos, como a minhamãe costumava dizer, quando eu era jovem. Que desejará,Philip?Não respondi imediatamente. Fixava os olhos no lume, como ela.- Só o saberei quando a data chegar. - Fiz uma pausa,enquanto a mão dela, branca e imóvel, com os habituais anéis,se mantinha pousada na minha. - Quando atingir os vinte ecinco anos, o meu padrinho deixará de ter poderes sobre a herança. Será minha, para a utilizar como quiser. Poderei oferecer-lhe o colar de pérolas e as outras jóias guardadas nobanco,Raquel.- Não as aceitaria. Devem continuar lá, para a sua esposa,quando casar. Sei que, por enquanto, não tenciona contrairmatrimónio, mas acabará por mudar de ideias.Eu sabia perfeitamente o que desejava dizer-lhe, mas nãome atrevia. Ao invés, inclinei a cabeça para lhe beijar a mãoelevantei-me.- Deve-se apenas a um erro o facto de elas não serem suashoje. E não só as jóias, mas tudo. Esta casa, o dinheiro, apropriedade. Você sabe-o perfeitamente.Mostrou-se perturbada. Desviou os olhos do lume e reclinou-se na cadeira. Os dedos começaram a mover-se em tornodos anéis.- Não há necessidade de discutir isso - argumentou.

- Se ocorreu um erro, já me habituei a ele.- Talvez, mas eu não.Postei-me de costas para a chaminé e olhei Raquel com firmeza. Descobrira o que podia fazer e ninguém conseguiria impedir-me.- Que quer dizer com isso? - perguntou, ainda com aexpressão perturbada no olhar.- Não interessa, de momento. Sabê-lo-á dentro de três semanas.- Daqui a três semanas, após o seu aniversário, partirei.Acabava de pronunciar as palavras que eu esperava ouvir.No entanto, agora que se me formara um plano no espírito,poderiam carecer de importância.- Porquê?- Já cá estou há demasiado tempo.- Diga-me uma coisa - solicitei. - Se o Ambrose tivessefeito um testamento em que lhe deixava a propriedade e bensdurante a sua vida, com a cláusula de que eu os administrariaem seu nome, que faria?Os olhos voltaram a fixar-se no lume.- Que faria? Não compreendo.- Viveria aqui? Expulsar-me-ia?- Eu, expulsá-lo de sua própria casa? Como é possívelque me faça uma pergunta dessas, Philip?- Nesse caso, ficaria? Viveria nesta casa e, de certo modo,empregar-me-ia? Continuaríamos debaixo do mesmo tecto,como agora?- Suponho que sim. Confesso que nunca pensei nisso.A situação seria, porém, diferente. Não é possível estabeleceruma comparação.- Diferente em que sentido?- Como lhe posso explicar? - Gesticulou com as mãos.- Não vê que a minha posição é, mesmo assim, insustentável,devido à minha condição de mulher? O seu padrinho seria oprimeiro a concordar comigo. Embora não se pronunciasse,estou certa de que reconhece que chegou a altura de eu partir.Tudo se modificaria se a casa fosse minha e você, no sentidoque refere, meu empregado. Eu como Mistress Ashley e vocêo meu herdeiro. Afinal, é Philip Ashley e eu uma mera parentedependente da sua bondade. Existe um oceano de diferençaentre as duas situações.- Exactamente.- Então, não falemos mais no assunto.- Continuaremos a falar, porque se reveste de supremaimportância. Que aconteceu ao testamento?- Qual testamento?- O que o Ambrose redigiu e não chegou a assinar, emque lhe deixava a propriedade e bens.Notei que lhe perpassava pelos olhos uma névoa de ansiedade.- Como sabe que ele existe? Eu nunca toquei no assunto.Reflecti que uma mentira serviria de desculpa e apressei-mea proferi-la.- Sempre supus que haveria um testamento, embora semassinatura e, portanto, sem validade legal. Vou mesmo mais

longe e admito que o tem cá, entre as suas coisas.Tratava-se de um disparo ao acaso, mas acertou no alvo.Os seus olhos desviaram-se instintivamente, por um instantefugaz, para a escrivaninha ao canto e voltaram a pousar emmim.- Que pretende obrigar-me a dizer?- Apenas a confirmação da sua existência.Hesitou e acabou por encolher os ombros.- Pois bem, existe, mas não altera nada. Não chegou a serassinado.- Posso vê-lo?- Para quê?- Por uma razão de natureza pessoal. Julgo que podeconfiar em mim.Tornou a olhar-me, agora mais demoradamente. Achava-seperturbada, sem margem para dúvidas, e, segundo me pareceu,apreensiva. Por fim, levantou-se, encaminhou-se para a escrivaninha e, hesitante, olhou-me mais uma vez.- A que propósito veio isto, assim de repente? - perguntou. - Porque não podemos deixar o passado em paz? Prometeu-me que assim seria, naquele dia, na biblioteca.- E você prometeu que ficaria - contrapus.Mostrar-mo ou não, a escolha era dela. Pensei na que eu fizera, aquela tarde, junto da laje de granito. Decidira ler acarta, indiferente às consequências. Agora, era a sua vez detomaruma decisão.Puxou de uma pequena chave a abriu uma gaveta da escrivaninha, da qual extraiu uma folha de papel, que me estendeu.- Leia, se está tão empenhado.Aceitei o documento e acerquei-me do candelabro. A letraera na verdade de Ambrose, bem legível e firme, mais do quena carta que eu lera naquela tarde. Estava datada de Novembro do ano anterior, quando havia sete meses que ele e Raqueltinham casado. Encimavam-no o título últimas vontades etestamento de Ambrose Ashley?,. O conteúdo correspondiaexactamente ao que era referido na missiva. A propriedade ebens destinavam-se a Raquel, enquanto vivesse, após o quepassariam ao mais velho dos filhos que eles tivessem, e, nasuainexistência, seria eu o beneficiado, com a cláusulaespecíficade que a administração dos mesmos ficaria a meu cargo até àmorte dela.- Posso copiá-lo? - inquiri.- Faça o que quiser. - Apresentava-se pálida e apática,como se tudo lhe fosse indiferente. - O assunto pertence aopassado, Philip. Não adianta repisá-lo agora.Sentei-me à escrivaninha e peguei numa folha de papel ecaneta para reproduzir os dizeres, enquanto ela se sentava,com uma expressão meditativa.Eu sabia que necessitava de obter confirmação de tudo o

que Ambrose me revelava na carta e, conquanto detestasse cada uma das palavras que tinha de pronunciar, reuni coragemsuficiente para a interrogar. Continuei a escreverpersistentemente, embora a cópia do testamento constituísse mais umpretexto do que outra coisa para não ter de a olhar.- Vejo que o Ambrose apôs a data de Novembro passado - observei. - Faz alguma ideia do motivo por que escolheu esse mês para redigir um novo testamento? Vocês tinhamcasado em Abril.A resposta tardou a surgir, e compreendi subitamente oque um cirurgião devia sentir quando inspeccionava uma costura no corpo que tardava a sarar.- Não sei porque o fez em Novembro, pois nenhum denós pensava na morte nessa altura. Muito pelo contrário. Foi operíodo mais feliz dos dezoito meses que vivemos juntos.- Sim, ele referia-se a isso numa carta - admiti, puxandode nova folha de papel.- O Ambrose falou-lhe disso? Mas pedi-lhe que não o fizesse, com receio de que você não compreendesse e se sentisse, de certo modo, despeitado, o que, de resto, seria natural,eele prometeu guardar segredo.Exprimia-se em voz átona, sem a mínima emoção. Era possível, afinal, que quando o cirurgião inspeccionasse a costuraopaciente referisse vagamente que não tinha dores. Na carta enterrada sob a laje, Ambrose dizia: ??No caso da mulher, osefeitos são mais profundos.??- E o testamento acabou por não ser assinado - comentei.- Exacto. Ele deixou-o como o vê neste momento.Acabei de escrever. Dobrei o documento e a cópia que acabava de completar e guardei-os no bolso interior do casaco,onde, naquela tarde, estivera a carta, antes de a enterrar. Emseguida, aproximei-me da cadeira, ajoelhei e, rodeando Raquelcom os braços, apertei-a com ternura - não como se fosseuma mulher, mas uma criança.- Porque foi que o Ambrose não assinou o testamento? -- Mantinha-se imóvel, sem contudo deixar transparecer contrariedade com o meu gesto. Somente a mão que pousara no meuombro acentuou levemente a pressão. - Diga-me, por favor.A voz que respondeu era débil, distante, um simples murmúrio ao meu ouvido.- Ignoro-o, pois não voltámos a abordar o assunto. Noentanto, penso que, quando se inteirou de que eu não podiater filhos, perdeu a confiança em mim. Dissipou-se uma espécie de fé, embora ele nunca tivesse consciência disso.Tornei a evocar a carta enterrada, que continha aquela mesma acusação por outras palavras, e perguntei-me como erapossível que duas pessoas que se amavam tivessem um conceito tão errado uma da outra e acabassem, com uma amarguracomum, por se separar gradualmente. Devia existir algo na natureza do amor entre um homem e uma mulher que os conduzisse ao tormento e à suspeita.- Você foi, pois, infeliz?- Infeliz? - ecoou. - Que lhe parece? Quase enlouqueci.Imaginei-os sentados no terraço da villa, com a sombraominosa entre ambos, originada apenas pelas suas próprias dúvidas e temores, e afigurava-se-me que as sementes remontavam a um passado indefinido que nunca conseguiriam determinar. Era

possível que, inconsciente desse rancor, Ambroseacalentasse suspeitas acerca da vida dela com Sangalletti eantesdele, censurando-a pela existência que não partilhara, e Raquel, com igual ressentimento, receasse que a perda do amorse devia à impossibilidade de engravidar. Afinal, elacompreendera-o muito pouco. E vice-versa. Eu poderia divulgar o conteúdo da carta, mas não serviria de nada. A incompreensão estava demasiado entranhada.- Foi, portanto, devido a um erro que o testamento ficoupor assinar e esquecido?- Chame-lhe erro, se quiser. Agora, já não faz diferença.Mas a atitude dele alterou-se pouco depois, assim como o seupróprio temperamento. Começaram as dores de cabeça, quequase o cegavam e conduziram à beira da violência, uma ouduas ocasiões. Eu perguntava-me até que ponto era a causada quilo e estava com medo.- Não tinha amigos?- Apenas o Rainaldi, que nunca se inteirou do que eu lherevelei esta noite.Eu compreendia que Ambrose não confiasse naquele rostoduro e olhos perscrutadores. Em todo o caso, como se explicava que ele, o marido, se mostrasse tão inseguro de si? Umhomem decerto sabia quando uma mulher o amava. Por outrolado, talvez nem sempre fosse possível determiná-lo.- Quando o Ambrose adoeceu, você não voltou a convidar o Rainaldi a visitá-los?- Não me atrevia. É difícil, para quem não estava presente, compreender como o seu primo se modificou, e prefiro nãolho dizer. Por favor, Philip, não me faça mais perguntas.- Ele suspeitava de si... de quê?- De tudo. Infidelidade e coisas piores.- Que pode haver pior que a infidelidade?De súbito, levantou-se, encaminhou-se para a porta eabriu-a.- Nada, nada neste mundo. E agora deixe-me só.Aproximei-me com lentidão e detive-me na sua frente.- Desculpe. Não a queria irritar.- Não estou irritada.- Foi a última vez que lhe fiz perguntas. Prometo-lho solenemente.- Obrigada - murmurou.A palidez acentuara-se, juntamente com uma expressãotensa, e a voz era fria.- Tinha uma razão para as fazer - acrescentei. - Conhecê-la-á dentro de três semanas.- Não exijo uma razão. A única coisa que lhe peço nestemomento é que saia.Não me beijou nem estendeu a mão. Inclinei-me numa levevénia e afastei-me. Não obstante, poucos momentos antes,permitira que ajoelhasse a seu lado e a cingisse. Porque mudara de atitude tão bruscamente? Se Ambrose conhecia mal asmulheres, eu conhecia-as pior. Aquela ternura tão inesperada,que apanhava um homem desprevenido e o elevava aos píncaros do êxtase e, de repente, sem motivo aparente, projectavapara a posição apagada que ocupara. Que espécie de raciocínio, confuso e indirecto, cruzava a

mente delas para lhes enevoar o discernimento? Que ondas de impulsos lhes varriam oser e arrastavam para a cólera e indiferença, ou então para agenerosidade inesperada? Nós éramos sem dúvida diferentes.Com a nossa compreensão embotada, movíamo-nos mais devagar, enquanto elas, imprevisíveis e instáveis, se deixavamtransportar por ventos de fantasia.Na manhã seguinte, quando desceu, a sua atitude não diferia da dos outros dias - atenciosa e cordial -, sem qualqueralusão à nossa conversa da véspera. Enterrámos Don na plantação, num sector à parte, onde principiava o caminho das camélias, e construí um pequeno círculo de pedras em volta dasepultura. Não falámos do meu décimo aniversário, em queAmbrose mo oferecera, nem do vigésimo quinto que se aproximava a passos largos. Todavia, no dia seguinte, mandei selaro Cigano e dirigi-me para Bodmin, onde procurei um advogado chamado Wilfred Tewin, que se ocupava de grande partedos assuntos do condado, mas nunca dos referentes aos Ashley, porque o meu padrinho costumava tratar com causídicosde Saint Austell. Expliquei-lhe que me levava à sua presençauma questão de particular urgência e confidencialidade e desejava que redigisse um documento em termos legais que mepermitisse transferir todos os meus bens e a propriedade paraas mãos da minha prima, Raquel Ashley, a partir do dia um deAbril, data em que passariam a pertencer-me.Mostrei-lhe o testamento que Ambrose não assinara e esclareci que a ausência do seu nome se devia unicamente àdoença súbita que o acometera, seguida da morte. Indiqueique incluísse no meu documento praticamente tudo o que eledeterminara no seu, em especial a parte referente àtransmissãoda propriedade e bens. Se eu morresse, passaria tudo paraunsprimos afastados que viviam em Kent, mas somente após o falecimento de Raquel, e nunca antes. Tewin apercebeu-se comprontidão do que eu desejava e, segundo me pareceu, comonão nutria simpatia digna de menção pelo meu padrinho- principal motivo por que eu o procurara -, congratulava -se por ver uma incumbência tão importante nas suas mãos.- Pretende introduzir alguma cláusula relativa à salvaguardadas terras? - perguntou. - Do modo como o rascunho está redigido, Mistress Ashley poderá vender os hectares quedesejar,o que não me parece prudente se o senhor quer que tudo sejatransmitido aos seus herdeiros.- Sim - assenti pausadamente -, é conveniente figurarum parágrafo que proíba a venda. O mesmo se aplica à casa,evidentemente.- Suponho que há jóias e outros bens pessoais... Que decide a esse respeito?- Serão dela, para lhes dar o destino que entender.Leu o rascunho em voz alta e não descortinei a mínimaomissão.- Falta uma coisa - salientou de repente. - Não há

qualquer cláusula referente à eventualidade de Mistress Ashlevvoltar a casar. '- É pouco provável que tal venha a acontecer.- Mesmo assim, penso que a possibilidade deve ser contemplada. - E olhou-me na expectativa, com a caneta suspensa sobre o papel. - A sua prima é ainda relativamente jovem,segundo julgo saber. Nessa conformidade, o facto tem de serconsiderado.Lembrei-me de súbito, numa ocorrência monstruosa, dovelho Saint Ives e dos comentários que Raquel proferira ironicamente.- Na eventualidade de novo casamento - anunciei apressadamente -, a propriedade e os bens voltam para a minhaposse. Quero que isto fique bem claro.- E deseja o documento pronto, na sua forma legal, até aodia um de Abril?- Exacto. É o meu aniversário. Nessa data, passa tudo aser meu, sem qualquer excepção. Ninguém poderá apresentara mínima objecção.- Procede com uma generosidade admirável - declarou,sorrindo. - Vai ceder tudo no momento em que passa a pertencer-lhe.- Nunca me pertenceria se o meu primo Ambrose Ashleyassinasse esse testamento.- De qualquer modo, duvido que algo do género se tenhafeito até hoje. Pelo menos, que eu saiba. Deseja, sem dúvida,que o assunto não seja ventilado antes dessa data...- Nem uma palavra. Insisto no maior sigilo.- Muito bem, Mister Ashley. Agradeço ter-me honradocom a sua confiança. Estarei sempre à sua disposição paraqualquer assunto legal que deseje.Antes de me retirar, prometeu que o documento me seriaentregue a trinta e um de Março.Segui para casa, com uma sensação penosa no coração. Aomesmo tempo, perguntava-me se o meu padrinho teria umataque apopléctico quando se inteirasse da novidade. No fundo, era-me indiferente. Não lhe desejava qualquer mal, umavez liberto da sua jurisdição, mas reconhecia que invertera asituação quase com perfeição. Quanto a Raquel, agora não poderia transferir-se para Londres e abandonar a propriedade.O argumento que invocara na noite anterior deixaria de ter validade. Se objectasse à minha presença na casa, instalar-me-ianum dos anexos e procurá-la-ia diariamente para receber ordens. Acompanharia Wellington, Tamlyn e os outros e aguar daria que me chamasse, de chapéu na mão. A euforia que mepercorria fazia com que tudo me parecesse belo.Quando regressei, após uma digressão pelos campos, ameio da tarde, avistei uma mala-posta imobilizada à entrada.Tratava-se de um facto invulgar, pois as pessoas que visitavam Raquel costumavam utilizar as suas próprias carruagens.A viatura achava-se coberta de pó, como se acabasse de efectuar um longo percurso, e não consegui identificá-la, assimcomo ao cocheiro. Segui para os estábulos, porém o rapaz queacudiu para tomar conta do Cigano não se achava mais elucidadodo que eu sobre o visitante ou visitantes, e Wellington ausentara-se.Não vi ninguém no átrio, mas quando avançava em silêncio para a sala de estar ouvi vozes, do outro

lado da portafechada. Decidi subir ao meu quarto pela escada de serviço nastraseiras, em vez de utilizar a principal. Começava aencaminhar-me para lá, quando a porta da sala se abriu e Raquel,sorridente, saiu para o corredor. Parecia particularmente bem-disposta. Na realidade, eu não me recordava de a ver tãoeufórica.- Ah, chegou, Philip! - exclamou. - Importa-se decumprimentar este meu visitante, que veio de muito longe expressamente para nos ver?Pegou-me no braço e levou-me, não sem relutância deminha parte, para dentro. Avistei um homem sentado juntodo lume, que ao ver-me se levantou e aproximou de mão estendida.- Sei que não me esperava e quero desde já apresentardesculpas. Em todo o caso, eu tão-pouco o esperava quandonos encontrámos pela primeira vez.Era Rainaldi.Capítulo vigésimoNão sei se deixei transparecer os meus sentimentos com aclareza que revelavam no meu coração, mas penso que sim,porque Raquel começou a falar apressadamente, para explicarao italiano que eu passava a maior parte do tempo ao ar livreenão tinha hora certa de regressar.- O Philip trabalha mais arduamente que o seu pessoal -- concluiu - e conhece cada centímetro quadrado da sua propriedade melhor do que ninguém.Conservava a mão no meu braço, como se pretendesse exibir-me perante o visitante, mais ou menos no estilo de umaprofessora que apresenta um aluno pouco comunicativo.- Permita-me que o felicite pela admirável propriedadeque possui - disse Rainaldi. - Não me surpreende que a suaprima Raquel lhe criasse tanto afecto. Nunca a tinha visto tãocontente. - Os olhos perscrutadores e inexpressivos desviaram-se para ela e concentraram-se de novo em mim. - O ardaqui deve ser mais conducente ao repouso do espírito e docorpo do que o de Florença.- A minha prima é oriunda da área ocidental do país -- repliquei. - Limitou-se a regressar ao lugar a que pertence.Sorriu, se se podia falar assim da leve contracção dasfaces,e dirigiu-se a Raquel.- Tudo depende do laço de sangue que é mais forte.O seu jovem parente esquece-se de que a sua mãe era romana.E, diga-se de passagem, cada vez se parece mais com ela.- Apenas nas feições e não na figura ou carácter - retrucou ela. Virou-se para mim. - O Rainaldi diz que se instalaráem qualquer estalagem que lhe indicarmos, mas não concordo.Decerto não existe inconveniente em que fique connosco, nãoé assim?Experimentei uma sensação de revolta, mas reconheci quenão me podia opor.- Sem dúvida. Vou transmitir instruções nesse sentido,imediatamente, e mandarei embora a mala-posta, uma vez que

deixa de necessitar dela.- Trouxe-me de Exeter - explicou Rainaldi. - Vou pagar ao cocheiro e dizer-lhe que recorrerei de novo aos seuspréstimos quando regressar a Londres.- Há muito tempo para decidir isso - declarou Raquel.- Uma vez que veio, deve ficar connosco alguns dias, parapoder ver tudo. Além disso, temos muitos assuntos paraanalisar.Afastei-me, a fim de providenciar para que preparassemum quarto, e em seguida subi a escada com lentidão, para medirigir ao meu, tomar banho e mudar de roupa para o jantar.Da janela, vi Rainaldi surgir à entrada para pagar aococheiro,após o que olhou em volta, como se avaliasse as potencialidades da propriedade. Acudiu-me a sensação de que, num simples relance, determinava a quantia que a madeira das árvorespoderia proporcionar, e até o vi examinar as figurasesculpidasna porta. Raquel reuniu-se-lhe e ouvi-os conversar e rir,antesde voltarem para dentro.Estava meio tentado a permanecer no quarto e pedir a Johnque me levasse o jantar num tabuleiro. Se eles tinham tantopara dizer um ao outro, a minha presença só serviria de empecilho. Por outro lado, dada a minha qualidade de anfitrião, aausência representaria uma descortesia. Assim, tomei banhosem pressa, vesti-me, desci a escada com relutância e fui encontrar Seecombe e John atarefados na sala de jantar, que nãovoltáramos a utilizar desde que sofrera algumas reparações nasparedes e no tecto. Avistei as melhores pratas em cima da mesa, juntamente com todos os apetrechos especiais destinadosaos hóspedes.- Não havia necessidade de todo este aparato - observeiao mordomo. - Podíamos ter comido na biblioteca.- Ordens da senhora - articulou ele com uma ponta dedignidade melindrada.Acendi o cachimbo e fui dar uma volta pelas imediações.O final de tarde primaveril ainda proporcionava luz suficientee o crepúsculo só surgiria dentro de uma hora, pelo menos.No entanto, as velas já estavam acesas na sala, com ascortinasainda não corridas, assim como as do quarto azul, e vi Raquelmover-se de um lado para o outro diante da janela. Passaríamos o serão no boudoir, se estivéssemos sós, eu a congratular-me intimamente com o que conseguira em Bodmin e ela adescrever em que empregara o dia. Assim, não haveria nada desimilar. Ruído na sala de estar, animação na de jantar,diálogoentre eles sobre assuntos que me não diziam respeito e, a sobrepor-se a tudo isso, a sensação instintiva de repulsa que ohomem me produzia, de que a sua presença não se devia a ummero acaso, mas a um objectivo bem definido. Saberia Raquelque ele chegara a Inglaterra e a visitaria? Todo o prazer daminha digressão a Bodmin se dissipara. Voltei para dentro, acabrunhado e cheio de pressentimentos

tenebrosos. O italianoachava-se só na sala de estar, de pé próximo do lume. Trocarao fato da viagem pela indumentária própria para jantar e examinava o retrato da minha avó numa das paredes.- Um rosto encantador, de olhos belos e tez irrepreensível - comentou. - Pertence a uma família bem-parecida.O retrato em si não possui valor especial.- É provável que não - concedi. - Os Lely e os Knellerencontram-se na escada, se deseja dar-lhes uma olhadela.- Reparei neles quando descia. O Lely está bem situado,mas o Kneller não. Devo acrescentar que este último não revela o seu melhor estilo, mas foi executado num dos seus momentos mais floridos. Possivelmente terminado por um discípulo. - Eu mantinha-me calado, à escuta dos passos deRaquel nos degraus. - Em Florença, pouco antes de partir,consegui vender um Furini da sua primeira fase para Raquel,pertencente à colecção Sangalletti, agora infelizmentedispersa.Uma peça extraordinária. Costumava estar pendurado na parede da escada da villa, onde a luz do dia incidia no ângulomaisfavorável. Suponho que não reparou nele quando esteve lá.- É natural que não - articulei vagamente.Raquel surgiu à entrada. Usava o mesmo vestido da véspera de Natal, mas notei que cobrira os ombros com um xaile,com o que me congratulei. Moveu os olhos de um para o outro, como se quisesse deduzir das nossas expressões a naturezado diálogo que mantínhamos.- Estava a explicar ao seu primo que tive a sorte de vender a Madonna de Furini - disse Rainaldi. - Mas foi penanão o poder conservar...- Já estamos habituados - volveu ela. - Muitos dos tesouros não puderam ser preservados.Não pude deixar de me insurgir intimamente por ouvi-laempregar o plural em semelhante contexto.- Conseguiu vender a villa? - perguntei quase bruscamente.- Ainda não - replicou Rainaldi. - Na verdade, é esse,em parte, o motivo da minha visita. Estamos mais inclinadospara a alugar por um período de três ou quatro anos. Seriamais vantajoso, e o aluguer não representa um acto tão definitivo como vender. A sua prima pode querer voltar para Florença. Aliás, foi o seu lar durante muitos anos.- Para já, não tenciono regressar - declarou Raquel.- Talvez, mas veremos.Os olhos do homem seguiam-na enquanto ela se movia pela sala, e eu implorava-lhe mentalmente que se sentasse, paraque ele não o pudesse fazer. Ofereci-lhe uma cadeira, masignorou-a.- Imagine que o Rainaldi se encontrava em Londres háuma semana e não mandou dizer nada. Nunca fiquei tão surpreendida em toda a vida como no momento em que o Seecombe anunciou que acabava de chegar. Acho que foi ummauzão em não me prevenir.Raquel sorriu-lhe e ele limitou-se a encolher os ombros.- Pensei que a surpresa da minha aparição repentina lhe

daria maior prazer - observou. - O imprevisto pode seragradável ou o inverso, consoante as circunstâncias. Recorda-se daquela vez em Roma, quando o Cosimo e eu aparecemosno momento em que se vestia para uma recepção em casa dosCastelucci? Ficou visivelmente aborrecida connosco.- Mas tinha motivo para isso - redarguiu ela com umarisada. - Se já o esqueceu, não lho recordarei.- Não, não o esqueci. Até me lembro da cor do seu vestido. Parecia ambarino. O Benito Castelucci enviara-lhe flores.Vi o bilhete que as acompanhava, embora o Cosimo não sedesse conta.Seecombe assomou à porta para anunciar o jantar, e Raquelencabeçou o pequeno cortejo em direcção à outra sala, ainda arir e evocar ocorrências em Roma com Rainaldi. Eu nunca mesentira tão melancólico e deslocado. Continuaram a falar depersonalidades e lugares e, de vez em quando, ela estendia-mea mão por cima da mesa, como a uma criança, e proferia:- Tem de nos desculpar, Philip. Há muito tempo que eunão via o Rainaldi.Uma ou duas vezes, dialogaram em italiano. Ele dizia-lhealgo, de súbito procurava o termo que lhe escapava e, comuma vénia na minha direcção, exprimia-se no seu idioma. Raquel respondia com palavras que me eram estranhas, mais rapidamente do que quando falávamos inglês, e nessas ocasiõestornava-se mais animada e também mais dura, de certo modo,com uma energia que não me agradava totalmente.Afigurava-se-me que não se sentiam no seu meio próprio àminha mesa e deveriam achar-se antes noutro lugar, em Florença ou Roma, num ambiente requintado de sociedade. Nãodeviam estar ali, com Seecombe à sua volta em gestos deferentes, porém não esmerados como os de um nível mais elevado,e um dos cachorros a circundá-los com desconfiança. Conservava-me afundado na minha cadeira e, uma vez por outra, estendia a mão para as nozes e esmagava-as entre os dedos, paraaliviar a tensão.No final da refeição, quando saboreávamos vinho do Portoou brande, Rainaldi acendeu um charuto e olhou-me com umaexpressão de tolerância, enquanto eu puxava do cachimbo.- Dá-me a impressão de que em Inglaterra todos os homens fumam cachimbo - observou. - A ideia consiste emque facilita a digestão, mas ouvi dizer que deteriora ohálito.- Como beber brande, que pode deteriorar o discernimento - retorqui.- Se nos dá licença, Philip - disse Raquel, levantando-se -, o Rainaldi e eu precisamos de discutir vários assuntos,além de que ele trouxe documentos que tenho de assinar. Parece-me preferível fazê-lo lá em cima, no boudoir. Vai terconnosco mais tarde?- Não creio. Tenho umas cartas para escrever, além deque andei todo o dia por aí e apetece-me ir para a cama cedo.Dou-lhes desde já as boas-noites.Abandonou a sala de jantar e ele seguiu-a. Instantes depois, eu ouvi-os subir a escada. Continuava sentado, quandoJohn apareceu para levantar a mesa.

Resolvi então dar uma volta nas proximidades da casa. Viluz no boudoir, mas os cortinados estavam corridos. Agoraque se encontravam sós, podiam exprimir-se livremente emitaliano. Raquel devia sentar-se na cadeira baixa diante dolume e Rainaldi a seu lado. Ponderei se ela aludiria à nossaconversa da noite precedente e à minha leitura e cópia do testamento. Que lhe aconselharia ele e que documentos trouxerapara assinar? Terminada a parte consagrada aos negócios, passariam a trocar impressões sobre pessoas e locais que ambosconheciam? Raquel prepararia tisana para lhe oferecer, comofazia comigo, e em seguida mover-se-ia pelo aposento, paraque Rainaldi a pudesse contemplar? Especulei acerca da horaa que ele se despediria e iria para a cama e se ela lheestenderiaa mão. O italiano permaneceria um momento junto da porta,retardando o mais possível a separação, como era meu hábito?Ou, pelo facto de o conhecer bem, ela permitiria que ficasseaté mais tarde?Percorri a nova passagem empedrada até perto da praia, equando o relógio do campanário deu as dez badaladas, recordei que era a hora a que costumávamos despedir-nos. Passar-se-ia o mesmo com Rainaldi? Retrocedi até à orla do relvadoe fixei o olhar na janela. A luz do houdoir continuava acesa.Aguardei demorada e pacientemente, sem que a situação se alterasse. Entretanto, a temperatura baixara e eu tinha as mãose os pés frios. Às onze, segundos depois de o relógio voltar abadalar, a luz apagou-se finalmente, e surgiu a do quartoazul.Hesitei por um momento e, obedecendo a um impulso, transferi-me para a área diante da ala ocidental da casa e ergui osolhos para a janela de Rainaldi. Acudiu-me profundo alívio.A luz também estava acesa. Lobriguei o leve clarão amareladoatravés de uma nesga nos cortinados.Entrei e subi a escada em direcção ao meu quarto. Acabavade despir o casaco, tirar a gravata e pousá-los no espaldar deuma cadeira, quando detectei o ruge-ruge do vestido dela nocorredor e em seguida uma leve pancada na porta. Apressei-me a abrir e vi-a na minha frente, completamente vestida, semfaltar o xaile sobre os ombros.- Venho dar-lhe as boas-noites - murmurou.- Obrigado. Desejo-lhe o mesmo.Baixou os olhos para os meus pés e notou a lama nos sapatos.- Onde esteve todo este tempo?- Às voltas por aí.- Porque não veio ao boudoir, para a tisana habitual?- Não me apetecia.- É muito pateta, se me permite que lho diga. Ao jantar,portou-se como um colegial merecedor de meia dúzia de chibatadas.- Lamento.- Sabe perfeitamente que o Rainaldi é um velho amigo.Como deve compreender, tínhamos muito que conversar.- É por se tratar de um velho amigo que o deixa permanecer no boudoir até às onze?- Já era tão tarde? Confesso que não me apercebi.

- Quanto tempo o teremos entre nós?- Depende de si, Philip. Se se comportar com correcção eo convidar, talvez fique três dias. Mais não é possível, poistemde regressar a Londres.- Já que me pede que o convide, tenho de o fazer.- Obrigada. - De repente, a expressão dos olhos suavizou-se e descortinei a sugestão de um sorriso no canto dos lábios. - Porque procede assim? Em que pensava quando andava às voltas por aí?Eu podia ter respondido centenas de coisas. Que Rainaldinão me merecia a mínima confiança, detestava a sua presençaem minha casa e queria que esta voltasse ao que era anteriormente, apenas com Raquel a fazer-me companhia. Ao invés,sem motivo aparente, salvo que me repugnava tudo o que foraabordado naquela noite, inquiri:- Quem é esse Benito Castelucci que lhe ofereceu flores?Soltou uma risada e, erguendo os braços, rodeou-me opescoço.- Um sujeito idoso, muito gordo, cujo hálito tresanda acharutos... e eu amo-o demasiado, Philip.E, com estas inesperadas palavras, retirou-se.Não duvido de que adormecera vinte minutos depois denos separarmos, enquanto eu ouvia o relógio do campanáriobadalar até às quatro horas. Por fim, imergi no intranquilosono da madrugada, que se torna mais pesado ao romper do dia,altura em que fui acordado às sete por John, como habitualmente.Rainaldi ficou connosco não três, mas sete dias, durante osquais não encontrei qualquer razão para rever a minha opiniãoa seu respeito. Creio que o que mais me desagradava era a atitude de tolerância para comigo. Exibia um semi-sorriso cadavez que me olhava, como se me considerasse uma criança quenão convinha contrariar. Impus a mim mesmo a ausência àsrefeições do meio-dia, e quando regressava a casa e entrava nasala, à tarde, pouco depois das quatro, encontrava-os juntos,a conversar no seu inevitável italiano, mas interrompiam-se àminha aparição.- Ah, o trabalhador regressou! - gostava Rainaldi de dizer, instalado na minha poltrona preferida, demónios o levassem. - E enquanto percorre os seus vastos hectares e verificase os arados penetraram suficientemente na terra, você e eu,Raquel, calcorreamos muitas centenas de quilómetros em pensamento. Não saímos em todo o dia senão para desentorpeceras pernas no novo caminho empedrado. A meia-idade tem assuas compensações.- A sua presença é-me perniciosa - volveu ela. - Desdeque chegou, tenho descurado todas as minhas obrigações. Nãofaço visitas nem assisto à plantação. O Philip acabará por meacusar de negligência.- Não tem estado inactiva - discordou Rainaldi. - Percorremos tantos quilómetros imaginariamente como o seu jovem primo em terreno firme. A juventude inglesa manifesta adeplorável tendência para martirizar o corpo até à exaustão.Eu pressentia o seu sarcasmo - a cenoura à frente da cabeça do jumento -, e a forma como Raquel acudiu em meuauxílio ainda me irritou mais.

- Hoje é quarta-feira, dia da semana em que o Philip ficano escritório imerso em contas. Tem uma excelente cabeça para os números e sabe exactamente o que gasta. Não é verdade?- Nem sempre - corrigi. - Hoje, por exemplo, assisti àreunião dos juízes de paz em representação de um vizinho efiz parte do júri do julgamento de um indivíduo acusado deroubo. Foi-lhe atribuída uma multa e saiu em liberdade.Rainaldi observava-me, com o mesmo ar de tolerância.- Um jovem Salomão, além de jovem agricultor - comentou. - Inteiro-me constantemente de novos talentos.O seu primo não lhe lembra o retrato do Baptista de Del Sarto, Raquel? A mesma arrogância e inocência numa mescla enternecedora.- É possível - admitiu ela. - Confesso que não tinha reparado. Quanto a mim, parece-se apenas com uma pessoa.- Sim, com essa também, mas não subsistem dúvidas deque os traços de Del Sarto estão igualmente presentes. Umdia, tem de o arrancar dos seus hectares e mostrar-lhe o nossopaís. As viagens expandem a mente, e eu gostaria de o ver vaguear por uma galeria ou uma igreja.- O Ambrose aborrecia-se com ambas e duvido que oPhilip se sentisse mais impressionado. - Raquel voltou-se para mim. - Viu o seu padrinho entre os juízes de paz? Gostavade levar o Rainaldi a visitá-lo, em Pelyn.- Sim, estava lá e manda-lhe cumprimentos - declarei.- Mister Kendall tem uma filha encantadora. - Dirigiu-se de novo ao italiano. - Um pouco mais jovem que oPhilip.- Uma filha? Nesse caso, o seu jovem primo não está totalmente isolado da sociedade feminina juvenil.- Longe disso. - Exibiu um sorriso. - Num raio de cinquenta quilómetros, todas as mães têm os olhos postos nele.Olhei-a com intensidade, o que só serviu para que o sorriso se alargasse, e, ao passar junto de mim, a caminho do quarto a fim de mudar de roupa para o jantar, deu-me uma palmada no ombro, em obediência ao seu enfurecedor hábito.??O gesto da tia Phoebe??, como eu o classificara, o que a encantara como se se tratasse de um elogio.Quando ficámos sós, Rainaldi disse:- Foi muito generoso de sua parte e do seu padrinho concederem uma mesada a Raquel. Escreveu-me a revelar-mo,profundamente sensibilizada.- Era o mínimo que se podia fazer por ela.Exprimia-me num tom que esperava fosse desencorajadorde ulterior troca de impressões, pois não estava disposto acomunicar-lhe o que aconteceria dentro de três semanas.- Como talvez não ignore, à parte essa mesada, ela nãodispõe de outros meios de subsistência, salvo aquilo que lheposso enviar de vez em quando. A mudança de ares fez-lhemuito bem, mas penso que não tardará a sentir a falta da convivência, como acontecia em Florença. É essa a verdadeira razão pela qual tento desencorajá-la de vender a villa. Os laçossão muito fortes.Não respondi. Se eram muito fortes, a ele se deviam. Comefeito, Raquel não fizera a menor alusão a laços até que Rainaldi chegara. Perguntei-lhe qual seria a

extensão da suafortuna pessoal e se lhe enviaria dinheiro seu e não apenas do produto do que vendia da herança Sangalletti. Ambrose achava-sedentro da razão ao não confiar nele. Mas que ponto fraco deRaquel a obrigaria a mantê-lo como conselheiro e amigo?- É claro que seria mais sensato acabar por vendê-la e Raquel alugar um pequeno apartamento em Florença, ou entãomandar construir uma pequena vivenda em Fiesole. Tem muitos amigos que não desejam perder o contacto, entre os quaiseu próprio.- No nosso primeiro encontro em Itália, disse que ela erauma mulher impulsiva - lembrei-lhe. - Decerto continuará asê-lo e viverá onde lhe aprouver.- De acordo, mas a natureza dos seus impulsos nem sempre a conduziu à felicidade.Depreendi que pretendia implicar que o casamento comAmbrose constituíra um desses impulsos, assim como a vindadela para Inglaterra, cujo resultado ainda se lhe apresentavapouco claro no espírito. Exercia influência na minha prima,porque lhe administrava os bens, e era esse poder que talvezacabasse por levá-la a regressar a Florença. Convenci-me deque se situava aí o fulcro da sua visita, acompanhado dainsistência na tecla de que a mesada que eu propusera e já vigoravanão bastaria para a sustentar indefinidamente. Ora, eu possuíaum trunfo importante, que ele ignorava. Dentro de três semanas, Raquel tornar-se-ia independente de Rainaldi para toda avida. Quase me apetecia rir, porém a antipatia que o homemme provocava. era mais forte que a hilaridade.- Deve ser estranho para si, com a educação que recebeu,ver-se de repente com uma mulher em casa por muitos meses -- insistiu, observando-me com curiosidade. - Não se sente embaraçado?- Pelo contrário. Acho a situação extremamente agradável.- Em todo o caso, é um prato forte para um jovem inexperiente como você. Consumido numa dose tão abundante,pode provocar uma indigestão.- Prestes a completar vinte e cinco anos, sei exactamente adieta que me convém.- O seu primo Ambrose também pensava assim, aos quarenta e três, mas verificou que laborava em erro.- Trata-se de um aviso ou de um conselho?- Das duas coisas, se encarar as minhas palavras da maneira apropriada - asseverou, levantando-se. - Se me permite, vou vestir-me para o jantar.Calculei que constituía o seu método de introduzir umacunha entre mim e Raquel - lançar uma palavra de advertência, pouco venenosa em si, mas suficientemente carregada paraempestar a atmosfera. Se sugeria que devia ter cuidado comela, que insinuaria a meu respeito? Alegaria que não passavade um moço ingénuo e impressionável sem préstimo, nos seustête-à-tête no boudoir? Pelo menos, dera provas convincentesde que a imaginação para inventar argumentos não lhe escasseava.- O óbice dos homens muito altos - observou certa ocasião - consiste na tendência fatal para se curvarem. - Eu encontrava-me debaixo da bandeira da porta da sala e inclinava acabeça para dizer algo a Raquel. - Além disso, os mais fortes

acabam por engordar.- O Ambrose não era gordo - apressou-se ela a salientar.- Não fazia tanto exercício como aqui o nosso amigo. Aslongas cavalgadas, caminhadas a pé e natação contribuem paradesenvolver as partes erradas do corpo. Notei-o com frequência, e quase sempre entre os Ingleses. Nós, em Itália, temosossos mais pequenos e levamos vidas mais sedentárias. Porconseguinte, mantemos a linha. Por outro lado, abusamos menos da carne e dos farináceos. Quanto aos doces... - Esboçouum gesto de desdém. - Este rapaz não se faz rogado. Vi-odevorar uma tarte inteira, ontem ao jantar.- Está a ouvir, Philip? - Raquel voltou-se para mim.- Ele considera que come de mais. - Dirigiu-se ao mordo mo, que se conservava a uma distância respeitosa. - Temos deracionar a comida a Mister Philip, Seecombe.- Espero bem que não, minha senhora. - A estupefacçãodo homem era inequívoca. - Comer menos do que come seria prejudicial para a saúde. Não podemos esquecer que é muito possível que ainda esteja a crescer.- Que ideia! - exclamou o italiano. - Se ainda estivessea crescer aos vinte e quatro anos, haveria motivos parasuspeitar de alguma perturbação glandular grave.Sorveu o brande com uma expressão meditativa, sem desviar os olhos de mim, até que quase me supus com dois metros e meio de altura e duas centenas de quilogramas depeso,exibido nas feiras numa jaula.- Suponho que goza de boa saúde... - acrescentou.- Teve alguma doença grave em criança que possa explicar essa altura?- Não me lembro sequer de ter estado doente - assegurei-lhe.- Isso, em si, também é causa de preocupação. Os quenunca conheceram uma enfermidade são os primeiros a baquear quando a Natureza os ataca. Não é verdade, Seecombe?- Talvez, senhor - articulou o interpelado. - Confessoque não sei.Mas quando abandonava a sala, vi que me dirigia uma mirada de dúvida, como se notasse indícios de um ataque de varíola.- Este brande devia ter ficado a envelhecer pelo menosmais trinta anos - prosseguiu Rainaldi. - Estará em condições de ser consumido quando os filhos do jovem Philip atingirem a maioridade. - Virou-se para Raquel. - Lembra-sedaquela noite na villa em que você e o Cosimo receberam praticamente Florença em peso, e ele insistiu em que nos apresentássemos trajados de dominós e mascarilhas, como num carnaval veneziano? E a sua chorada mãe portou-se de formareprovável com o príncipe não-sei-quantos. Lorenzo Ammanati, salvo erro.- Com esse não foi de certeza, porque se concentrava inteiramente em mim.- Que noites de loucura... Éramos todos incrivelmente jovens e totalmente irresponsáveis. Prefiro a calma e a moderação de agora. Calculo que nunca promovem reuniões desse tipo em Inglaterra... O clima não o permite, evidentemente. Emtodo o caso, o nosso amigo Philip decerto acharia divertidovestir-se de dominó e percorrer o bosque atrás de Miss Kendall.- Estou convencida de que a Louise ficaria encantada -- disse Raquel, comprimindo os lábios num trejeito malicioso.Resolvi deixá-los sós, e passaram imediatamente a exprimir-se em italiano, a voz dele interrogativa

e a delasorridenteem resposta à pergunta, e compreendi que falavam de mim eporventura também de Louise, além dos rumores que circulavam acerca de um eventual casamento. Por quanto mais tempocontinuaria ele em minha casa? Quantos dias e noites mais teria eu de suportar a sua presença?Por fim, no último dia da sua visita, o meu padrinho eLouise compareceram para jantar. O serão desenrolou-se demodo satisfatório, ou assim pareceu. Vi Rainaldi esmerar-sepor tratar Nick Kendall com razoável cortesia e os três - elese Raquel - formaram um grupo, o que me proporcionou aoportunidade de entreter Louise. De vez em quando, apercebia-me dos olhares indulgentes que o italiano nos dirigia e, adada altura, ouvi-o murmurar: ??Os meus cumprimentos pelasua filha e o seu afilhado. Formam um par encantador.,? Louise também se inteirou e não pôde deixar de corar.Depois do jantar, Raquel anunciou:- Espero visitar Londres em breve. Se nos encontrarmoslá - acrescentou, dirigindo-se a Louise -, pedir-lhe-ei queme mostre os lugares mais interessantes, porque não conheçoa cidade.O meu padrinho aproveitou a oportunidade para perguntar:- Tenciona, pois, deixar-nos? Devo reconhecer que suportou perfeitamente os rigores do Inverno na Cornualha.Creio que achará Londres mais divertida. - Voltou-se paraRainaldi. - Ainda estará lá?- Os assuntos que tenho de tratar na capital tomar-me-ãoalgumas semanas, mas se ela me procurar colocar-me-ei naturalmente à sua disposição. Conheço Londres razoavelmente.Espero que o senhor e a sua filha nos concedam o prazer dejantar connosco quando a visitarem.- Teremos o maior prazer. Londres é muito agradável naPrimavera.Apetecia-me chocalhar-lhes as cabeças umas contra as outras pela certeza com que falavam de um eventual encontro,mas era o emprego do plural por parte de Rainaldi que maisme irritava. O seu plano não se tornava difícil dediscernir.Atrair Raquel a Londres, entretê-la enquanto levava a caboosseus misteriosos assuntos, e por último tentar persuadi-la aregressar a Itália. E o meu padrinho, pelas suas própriasrazões,encorajaria o projecto.Mal sabiam eles que eu congeminara um esquema para osludibriar. O serão foi-se escoando, com numerosas expressõesde boa vontade de todas as partes, e Rainaldi aproveitou osúltimos vinte ou mais minutos para celebrar um colóquio comNick Kendall, sem dúvida para destilar novas gotas do venenode que parecia possuir uma reserva inesgotável.Quando os Kendall se retiraram, não voltei à sala. Segui

para o quarto, cuja porta deixei entreaberta para ouvir Raquele Rainaldi subir a escada, o que tardou a acontecer. Soaram asbadaladas da meia-noite e ainda continuavam lá em baixo.Aventurei-me a assomar ao patamar para escutar e detectei omurmúrio das suas vozes. Apoiando-me ao corrimão, desci atémeio da escada, descalço. Acudiram-me recordações da infância. Procedera assim quando Ambrose tinha convidados parajantar. Assolava-me agora o mesmo sentimento de culpa. Asvozes persistiam interminavelmente. Mas as minhas tentativaspara as escutar careciam de objectivo válido, pois exprimiam-se em italiano. De vez em quando, captava o meu nome e odo meu padrinho. Trocavam impressões acerca dele ou demim, ou mesmo de ambos. A inflexão de Raquel continhauma urgência que se me afigurava estranha, enquanto a deRainaldi dava a entender que a interrogava. Perguntei-me, comrepulsa súbita, se o meu padrinho falara a este último dosseus amigos viajantes de Florença e, por seu turno, o italiano ainformara. Como fora inútil a minha educação em Harrow e oestudo de latim e grego! Duas pessoas conversavam em italiano na minha própria casa, discutindo assuntos porventura importantes para mim, e eu não conseguia entender uma únicapalavra, à parte a alusão ao meu nome.Estabeleceu-se um silêncio repentino. Nenhum deles falava. Não me chegava aos ouvidos o mínimo movimento. E seRainaldi tivesse avançado para ela, que o beijara como fizeracomigo na véspera do Natal? Acudiu-me uma tal vaga de ódiocontra o homem que quase abandonei toda a prudência e descia escada a correr para abrir a porta. Por fim, tornei a ouviravoz de Raquel e o ruge-ruge do vestido e vislumbrei o clarãoda sua vela. A longa sessão chegara ao seu termo. Eles iam recolher aos respectivos quartos. E, como a criança de outrora,regressei ao meu em bicos dos pés.Ouvi Raquel passar no corredor em direcção à sua suite,enquanto ele seguia noutro sentido para os seus aposentos.Provavelmente, eu nunca saberia de que tinham falado duranteaquelas horas, mas pelo menos era a última noite que Rainaldidormia sob o meu tecto e a partir do dia seguinte ver-me-ialiberto de um peso cada vez mais opressivo. Na manhã imediata, quase não conseguia tragar o pequeno-almoço, devido àansiedade em vê-lo partir. Ouvi o rodado da mala-posta no caminho de acesso à casa, e Raquel surgiu devidamente trajadapara se ocupar do jardim, a fim de se despedir dele.O italiano pegou-lhe na mão e beijou-a. Desta vez, numaatitude de cortesia para comigo, seu anfitrião, exprimia-se eminglês.- Não se esqueça de escrever para informar dos seus pla nos. Quando estiver disposta a partir, encontrar-me-á à suaespera, em Londres.- Não traçarei quaisquer planos antes do dia um deAbril - retrucou ela, que olhou por cima do ombro e mesorriu.- Mas é o aniversário do seu primo - observou Rainaldi,

enquanto subia para a mala-posta. - Espero que ele passe umdia divertido e não se empanturre de tartes. - Depois de instalado, assomou à janela, para me dizer: - Deve achar bizarrofazer anos numa data tão especial. O dia das mentiras! No entanto, com vinte e cinco anos, talvez se considere demasiadovelho para pensar nisso.Fez sinal ao cocheiro e o veículo pôs-se em marcha, nãotardando a transpor o portão.- Não sei se fiz mal em não o convidar para vir cá passaresse dia connosco - murmurou Raquel. De súbito, com umsorriso repentino que me enterneceu, pegou na primavera queusava no vestido e colocou-a na botoeira do meu casaco. -- Portou-se muito bem nestes sete dias. E eu descurei os meusdeveres. Está contente por nos encontrarmos de novo sós? -- E, sem aguardar resposta, encaminhou-se para a plantaçãocom Tamlyn.Capítulo vigésimo primeiroAs restantes semanas de Março escoaram-se muito rapidamente. Em cada dia que surgia eu sentia maior confiança nofuturo, acompanhada de uma euforia crescente. Raquel pareciapressentir o meu estado de espírito e partilhava-o.- Nunca vi ninguém tão entusiasmado com um aniversário - comentou. - Você lembra-me uma criança que acha omundo mágico ao despertar. Significa assim tanto para silibertar-se de Mister Kendall e dos seus cuidados? Duvido que pudesse arranjar um tutor mais generoso e competente. Que planeia para essa data?- Nada de especial, à parte o facto de ter de lhe lembrar oque me disse o outro dia. Devem conceder-se todos os desejosao celebrador de um aniversário.- Apenas até aos dez anos de idade - salientou. - Nunca depois.- Está a ser injusta - protestei. - Não mencionou qualquer estipulação acerca da idade.- Se tenciona efectuar um piquenique junto do mar oudar um passeio de barco, não o acompanharei. Ainda não estamos na época própria para visitar a praia e, quanto a subirpara uma embarcação, mete-me mais medo do que montar a cavalo. Convide antes a Louise.- Não convidarei a Louise, nem iremos a parte algumaimprópria da sua dignidade.Na realidade, não me detivera a planear os eventos para odia em causa. Limitara-me a decidir que ela encontraria os documentos no tabuleiro do pequeno-almoço, e o resto ficariaentregue ao sabor do acaso. Havia outra coisa que tambémnão queria deixar de fazer. Lembrei-me das jóias guardadas nobanco e amaldiçoei-me por ainda as não ter ido buscar. Impunha-se, pois, que celebrasse duas reuniões prévias. Uma comMr. Couch e a outra com o meu padrinho.Comecei por Mr. Couch. Calculei que os embrulhos seriam demasiado volumosos para levar no Cigano, mas nãoqueria mandar preparar a carruagem, com receio de que Raquel se inteirasse e exprimisse o desejo de se deslocar àaldeia.De resto, a minha utilização daquele meio de transporte constituía uma raridade em mim. Por conseguinte, desloquei-me a

pé, depois de recomendar ao moço de estrebaria que me fossebuscar mais tarde no breque. Quis o infortúnio que, à primeira vista, parecesse que todas as pessoas conhecidas tinham escolhido aquela manhã para fazer compras na povoação, peloque necessitei de mudar de rumo com frequência para não darde cara, por exemplo, com Mrs. Pascoe e as filhas. Tive mesmo de entrar na estalagem Rose and Crown antes das onzehoras da manhã, a fim de me esquivar à esposa do vigário daparóquia vizinha, que acabava de surgir ao fundo da rua eavançava na minha direcção.Por último, encontrei-me em lugar seguro, entre as quatroparedes do banco, onde Mr. Couch me recebeu com a cordialidade habitual.- Desta vez, quero levar tudo - anunciei, sem qualquerpreâmbulo.Olhou-me com perplexidade e perguntou:- Pretende transferir a sua conta para outro estabelecimento bancário, Mister Ashley?- Nada disso - tranquilizei-o. - Refiro-me às jóias.Amanhã, cumpro vinte e cinco anos de idade e tornam-se minha propriedade legal. Desejo tê-las comigo quando acordar.Decerto me considerou excêntrico ou, pelo menos, umpouco transtornado.- Quer dizer que pretende satisfazer um capricho só nesse dia? Se a memória não me atraiçoa, fez algo do género navéspera do Natal. O seu tutor, Mister Kendall, veio devolver ocolar imediatamente.- Não se trata de um capricho, Mister Couch. Quero asjóias em casa, na minha posse. Não me ocorre outra maneirade ser mais claro.- Compreendo. - Fez uma pausa. - Bem, espero quetenha um cofre ou, ao menos, um lugar seguro para as guardar.- Isso é comigo. Agradecia que as mandasse buscar. Lembre-se de que não é apenas o colar, desta vez, mas toda a colecção.Pela sua expressão, dir-se-ia que pretendia extorquir-lhealgo de sua exclusiva propriedade.- Muito bem. Vai demorar um pouco ir buscá-las ao cofre-forte e embrulhá-las com as precauções convenientes. Setem algumas voltas a dar...- Nenhuma - cortei. - Aguardarei aqui.Reconheceu que não lucraria nada em protelar o penosomomento da separação, pelo que transmitiu as instruções necessárias. Eu munira-me de algo para levar as jóias - uma cesta de verga utilizada em casa para as couves -, e Mr. Couchestremeceu de repulsa quando os preciosos objectos nos seusestojos foram acondicionados nela.- Teria sido preferível deixar-me enviar-lhas da maneiraapropriada - articulou a meia voz. - Dispomos de um transporte seguro para casos desta natureza.Imaginei os comentários que a presença do referido transporte, devidamente identificado, suscitaria à entrada de minhacasa. Afigurava-se-me mais adequada a cesta das couves levadano breque.- Não se preocupe, Mister Couch. Não lhes aconteceránada.Abandonei o banco profundamente satisfeito com o êxito

da diligência... e caí virtualmente nos braços de Mrs. Pascoe,com a respectiva prole.- Santo Deus, Mister Ashley! - exclamou. - Nunca o vitão carregado - acrescentou, apontando para a cesta, que eutransportava ao ombro.Segurei-a com uma das mãos e tirei o chapéu com a outra.- Surpreendeu-me num dos meus dias tenebrosos - repliquei, sem me desconcertar. - As minhas finanças encontram-se tão em baixo, que necessito de vender couves a MisterCouch e restante pessoal do banco. As reparações a que mandei proceder em casa quase me deixaram na penúria, pelo quetenho de transaccionar os meus produtos agrícolas na aldeia.Fitou-me boquiaberta, enquanto as filhas arregalavam osolhos com expressões de incredulidade.- Infelizmente - acrescentei -, as couves que trago aquidestinam-se a outro cliente, de contrário teria o maior prazerem vender-lhas. De futuro, quando precisar de legumes na reitoria, lembre-se de mim.Afastei-me para procurar o breque no local previamentecombinado, enquanto reflectia que toda a região não tardaria ainteirar-se de que Philip Ashley, além de ser excêntrico,alcoólico e louco, estava reduzido à miséria.Regressámos pela alameda, entrei em casa pela porta deserviço, guardei a cesta no guarda-fato do meu quarto, que fechei à chave, e voltei a descer para almoçar.Se estivesse presente, Rainaldi fecharia os olhos e estremeceria de repulsa ao ver-me devorar uma lauta refeição, que impeli com uma quantidade apreciável de cerveja.Raquel esperara por mim, mas, supondo que eu não almoçaria em casa, resolvera comer e recolhera ao quarto, segundorevelava no bilhete que me deixou. Por uma vez, não me senticontrariado com a sua ausência, pois receava que a satisfaçãoPelo êxito da missão se tornasse visível com clareza no meurosto.Assim que me levantei da mesa, voltei a ausentar-me, agoraa cavalo, em direcção a Pelyn. Levava na algibeira o documento que o advogado, Mr. Tewin, me enviara, como prometera,por mensageiro especial. Acompanhava-me igualmente o testamento. As perspectivas referentes ao encontro não se podiamconsiderar agradáveis, mas nada me dissuadiria do objectivoque me impusera.Nick Kendall encontrava-se em casa e no escritório.- Olá, Philip. Embora com algumas horas de antecedência, desejo-te um aniversário feliz e que se repita ao longodosanos.- Obrigado e aproveito a oportunidade para lhe agradecerigualmente o afecto que sempre manifestou por mim e peloAmbrose, além da competência como tutor.- Funções que terminam amanhã - observou com umsorriso.- Sim. Ou melhor, hoje, à meia-noite. E como não o quero arrancar da cama a essa hora, desejo que testemunhe a minha assinatura num documento que entrará em vigor nessepreciso momento.

- Hum... - grunhiu, pegando nos óculos. - Que espéciede documento.Extraí o testamento da algibeira.- Em primeiro lugar, gostava que lesse isto. Não me foientregue espontaneamente, mas só após alguma discussão. Hámuito que suspeitava da sua existência.Entreguei-lho. Ele equilibrou os óculos no nariz e leu-oem silêncio.- Está datado, mas não assinado - observou.- Exacto. No entanto, reconhece a letra do Ambrose?- Sem dúvida. O que não compreendo é porque não otestemunhou e mo enviou. Aliás, eu esperava um testamentodeste género quando casou, como te disse na altura.- Não foi assinado porque adoeceu e esperava voltar paracasa a todo o momento e entregá-lo então. Posso garantir-lho.Pousou o documento na secretária e suspirou.- Bem, temos de nos render à evidência. São coisas queaconteceram noutras famílias. Infelizmente para a viúva, nãopodemos fazer mais do que já fizemos por ela. Um testamentosem assinatura não tem valor.- Eu sei, e ela está ciente disso. Como há pouco referi, foiapenas graças a forte persuasão que lhe arranquei estedocumento. Tenho de o devolver, mas existe uma cópia.Guardei o testamento original e entreguei-lhe a cópia queefectuara.- E agora? - perguntou. - Veio à luz algo mais?- Não. Simplesmente, a consciência indica-me que tenhoestado a desfrutar de algo que por direito não me pertence.O Ambrose tencionava assinar este testamento, mas a morte,ou antes, a doença em primeiro lugar, impediu-o. Quero queleia um documento que preparei. - E passei-lhe para as mãosas disposições redigidas por Tewin, em Bodmin.Leu-o lenta e atentamente, a expressão a toldar-se gradualmente, e só passados longos momentos tirou os óculos e fixouo olhar em mim.- A tua prima Raquel tem conhecimento disto?- Absolutamente nenhum - asseverei. - Nunca, por palavras ou atitudes, exprimiu a mínima ideia relacionada com oque menciono aí ou as minhas intenções. Está profunda e inteiramente inocente da decisão que tomei. Não sabe sequerque me encontro aqui ou lhe mostrei o testamento. Como aouviu dizer há umas semanas, pretende partir para Londresem breve.Empertigou-se na cadeira, sem desviar os olhos de mim.- Estás absolutamente decidido a seguir este rumo?- Sem a menor hesitação.- Decerto te apercebes de que pode conduzir a abusos, hápoucas salvaguardas e o total da fortuna, que mais tarde tepertencerá e aos teus herdeiros, pode ser dissipado...- Sim, estou resolvido a correr o risco.Meneou a cabeça e voltou a suspirar. Por fim, levantou-se,aproximou-se da janela e concentrou-se de novo em mim.

- O conselheiro dela, esse tal Signor Rainaldi, está ao corrente deste documento?- De modo algum.- Foi pena não me teres dito nada, Philip. Podíamos analisar a situação e eu talvez te convencesse a encará-la deoutromodo. De qualquer maneira, trocaria impressões com ele, queme pareceu uma pessoa sensata. Naquela noite, tive oportunidade de lhe falar da minha preocupação sobre o excesso de levantamentos dela. Admitiu que a extravagância sempre constituíra um dos seus defeitos e conduzira a problemas, não sócom o Ambrose, mas também com o primeiro marido, Sangal letti. Deu-me a entender que ele, Rainaldi, era a únicapessoacapaz de lidar com a tua prima.- Estou-me nas tintas para o que lhe deu a entender. Antipatizo com o homem e penso que se serve desse argumentopara seu interesse pessoal. Acalenta a esperança de aconvencera voltar para Florença.O meu padrinho olhou-me em silêncio por uns segundos.- Desculpa fazer-te uma pergunta de natureza pessoal,mas conheço-te desde que vieste ao mundo, pelo que julgoque me assiste esse direito. Não é verdade que estástotalmenteperdidinho, como se costuma dizer, pela tua prima?Senti um calor incomodativo nas faces, mas sustentei a suamirada incisiva.- Não compreendo aonde pretende chegar. ??Perdidinho??é um termo fútil e a todos os títulos hediondo. Respeito a minha prima Raquel mais do que qualquer outra pessoa que conheço.- Era para te falar disto antes. Começam a circular comentários pouco agradáveis sobre a sua permanência prolongada em tua casa. Irei mesmo mais longe, para te garantir quenão se aborda outro tema nos mexericos locais.- Que continuem a abordá-lo. A partir de amanhã, as línguas viperinas disporão de mais palha para saborear. Atransferência da propriedade e fortuna não poderá manter-se secreta.- Se a tua prima tem algum discernimento e quer conservar o auto-respeito, partirá para Londres ou pedir-te-á quevásviver para outro lugar. A actual situação é perniciosa paraambos.Conservei-me silencioso. Só me interessava uma coisa: queele assinasse o documento.- É claro que, a longo prazo, só existe uma saída para osmexericos - acrescentou. - E, segundo este documento, apenas uma maneira de evitar a transferência da propriedade. Elavoltar a casar.- Acho extremamente improvável.- Suponho que não te ocorreu propores-lhe casamento tupróprio?O calor no rosto acentuou-se.- Não me atreveria, pois estou certo da sua recusa.- Nada disto me causa satisfação, Philip. Oxalá ela nunca

tivesse posto os pés em Inglaterra. Infelizmente, é demasiadotarde para perder tempo com lamentações dessa natureza.Muito bem, assina lá isto, e prepara-te para enfrentar asconsequências.Peguei na caneta e apus o meu nome no documento, enquanto ele me observava com uma expressão grave.- Há mulheres, de índole irrepreensível possivelmente,que precipitam as calamidades, embora não acalentem semelhantes intenções. Tudo aquilo em que tocam converte-se emtragédia. Não sei porque te digo isto, mas sinto que devo prevenir-te. - Fez uma pausa para assinar como testemunha.- Vais falar à Louise?- De momento, não. Se estão ambos livres, porque nãoaparecem amanhã lá em casa, para jantar e brindar pela minhasaúde, no dia do meu aniversário?- Ainda não tenho a certeza de estarmos disponíveis -- declarou, após breve hesitação. - De qualquer modo, mandarei avisar-te mais tarde.Compreendi que não tencionava comparecer, mas tinha relutância em declinar abertamente o convite. No entanto, encarara o assunto da transferência muito melhor do que eu previra, sem admoestações violentas, nem sermões intermináveis,mas decerto me conhecia o suficiente para reconhecer que oefeito resultaria nulo. Em todo o caso, a sua preocupação econtrariedade eram notórias. Por outro lado, congratulava-mepor não ter feito a menor alusão às jóias da família. A descoberta de que estavam escondidas na cesta da hortaliça no meuguarda-fato poderia ter constituído a gota de água que fariatransbordar o copo.Regressei a casa tendo presente no espírito a euforia queme dominava na ocasião anterior em que o fizera, depois devisitar o advogado Tewin, em Bodmin, prontamente destruídaao descobrir Rainaldi à chegada. Agora, não se me deparariaqualquer visitante do género. Nas últimas três semanas, a Primavera instalara-se na região e a temperatura era cálida comoem Maio. Todavia, à semelhança de todos os profetas do tempo, os meus caseiros abanavam a cabeça e prediziam calamidades. Surgiriam geadas tardias, que comprometeriam o êxito dascolheitas. Penso, porém, que, naquele último dia de Março, eupermaneceria impávido mesmo que se verificasse um flagelodaquela natureza, ou até uma inundação ou abalo de terra.O Sol descia para o horizonte além da baía a oeste, incendiava o céu limpo e escurecia a água, e a Lua despontava acimadas colinas a leste. Reflecti que era assim que um homem sedevia sentir quando imerso num estado de elevada embriaguez, aquele completo abandono à hora que passava. Eu via ascoisas não como que através de uma névoa, mas com a clarezado ébrio absoluto. O parque, quando comecei a percorrê-lo,exibia toda a graciosidade de um conto de fadas e o própriogado disperso apresentava-se-me como animais encantados,possuidores de uma beleza especial. Apesar de tudo aquilo meser familiar desde a infância, revestia-se agora de uma novamagia.Embora tivesse comido de mais ao almoço para ter agora

fome, estava com sede e bebi água fresca do poço no pátio.Gracejei com o pessoal que fechava as portas das traseiras eos estores. Todos sabiam que o dia seguinte era o do meu aniversário. Em dado momento, desapareceram na sala comum eregressaram com um embrulho. John, aparentemente nomeadoseu porta-voz, entregou-mo, com estas palavras:- Isto é oferecido por todo o pessoal, senhor. Não conseguimos conter a impaciência até amanhã.Era um estojo com cachimbos, que decerto lhes custara osalário de um mês. Apertei-lhes a mão e afirmei que tencionava comprar um conjunto similar na minha próxima visita aBodmin ou Truro, o que contribuiu para lhes acentuar a satisfação. Na realidade, só utilizava o cachimbo que Ambrose meoferecera quando completara dezassete anos, mas de futurodevia tomar a precaução de recorrer àqueles, sob pena de osdesapontar.Quando entrei na sala de jantar, depois de tomar banho emudar de roupa, encontrei Raquel à minha espera.- Cheira-me a travessura - observou imediatamente.- Passou todo o dia fora de casa. Que andou a magicar?- Não é de sua conta, Mistress Ashley.- Ninguém lhe pôs a vista em cima desde o pequeno-almoço. Tive de almoçar sozinha.- Devia ter ido comer com o Tamlyn. A mulher dele éuma excelente cozinheira.- Esteve na aldeia?- Por acaso, estive.- Viu alguém conhecido?- Vi - admiti, contendo a vontade de rir. - MistressPascoe e as filhas, as quais ficaram muito chocadas com a minha aparência.- Como assim?- Levava uma cesta ao ombro e disse-lhes que andava avender hortaliça.- Isso é verdade, ou visitou a Rose and Crown e bebeucidra em excesso?- Não é verdade que vendia hortaliça nem estive na Roseand Crown.- Então, explique-se melhor.Não estava disposto a elucidá-la e sentei-me à mesa, comum sorriso.- Creio que, quando a Lua estiver alta no céu, irei nadarum pouco, depois de jantar. Sinto-me invadido por toda aenergia do mundo, assim como por toda a inclinação paraa aventura.Olhou-me com uma expressão pensativa.- Se quer passar o aniversário na cama com cataplasmasno peito e tomar xarope a todas as horas, sob as vistas, nãominhas, mas do Seecombe, previno-o, vá nadar, que não tentarei impedi-lo.Estendi os braços acima da cabeça e emiti um suspiro deprofunda satisfação. Em seguida, pedi autorização para fumar,que ela me concedeu.- Olhe o que os rapazes me ofereceram. - Mostrei-lhe oestojo dos cachimbos. - Não conseguiram conter a impaciência até amanhã.- É tão criança como eles. - Fez uma pausa e acrescentou a meia voz: - Não sabe o que o Seecombe

lhe prepara.- Julgo que faço uma ideia - repliquei no mesmo tom.- Viu-o?Assentiu, com uma inclinação de cabeça.- Está perfeito, com a sua melhor jaqueta, a verde, e tudoo resto. Foi pintado pelo genro, que mora em Bath.Após o jantar, passámos à biblioteca, mas eu não mentiraquando dissera que sentia toda a energia do mundo. Achava-me em tal estado de exultação que não conseguia permanecerquieto na cadeira, ansioso por que a noite terminasse esurgisse o novo dia.- Parece-me conveniente que vá espairecer, Philip - acabou Raquel por sugerir. - Corra até ao farol e volte, se achasuficiente para se curar. De qualquer modo, desconfio que enlouqueceu.- Se isto é loucura, quero ficar assim para sempre. Nuncasupus que a demência pudesse proporcionar tanto prazer.Beijei-lhe a mão e saí. Fazia uma noite agradável para caminhar, silenciosa e calma. Segui em direcção ao farol, emboranão a correr, como ela indicara. A lua cheia iluminava a baíaeparecia partilhar do meu segredo.Avistei um clarão para os lados das terras de Barton, acimado prado, e quando alcancei o promontório do farol, com asbaías a espraiarem-se em cada um dos meus lados, verifiqueique se tratava das luzes de povoações ao longo da costa ocidental, assim como das do nosso porto, a leste. Se fazia umanoite agradável para caminhar, não o era menos para nadar, enenhuma ameaça de eventuais cataplasmas ou xaropes me impediriam de o fazer. Desci pelas rochas num dos meus pontosfavoritos e, rindo para comigo daquela loucura particularmente sublime, mergulhei na água. Afinal, estava gelada. Sacudi-me como um cachorro, tentando dominar o chocalhar dosdentes, e regressei ao local de partida após uns escassosquatrominutos, a fim de me vestir apressadamente.Loucura? Muito pior que isso. No entanto, era-me indiferente, e a euforia persistia.Enquanto empreendia o regresso a casa, o luar produziasombras caprichosas e algo sinistras do meu corpo. Avançandoentre as árvores do bosque, no ponto em que o caminho se dividia em dois - um em direcção à passagem ao longo dos cedros e o outro pela pavimentada de construção recente -,acudiu-me às narinas o cheiro inconfundível de uma raposanas proximidades, mas não vislumbrei nada indicativo da suapresença.Já perto de casa, ergui os olhos para a janela de Raquel.Estava aberta, mas não consegui determinar se conservava a velaacesa ou a apagara. Consultei o relógio. Faltavam cinco minutos para a meia-noite. Acudiu-me subitamente ao pensamentoque, se o pessoal não pudera conter a impaciência para me entregar a prenda de anos, eu também não aguardaria pelo diaseguinte para dar à minha prima a sua. Recordei-me de Mrs.Pascoe e das couves, e a propensão para as medidas impulsivasintensificou-se. Encaminhei-me para debaixo da janela doquarto azul e chamei-a. Pronunciei o seu nome três vezes antes de obter resposta. Ela assomou

finalmente, envolta no roupão branco de freira.- Que quer? Estava quase a adormecer.- Importa-se de protelar o sono por uns minutos? Desejava dar-lhe uma coisa. O embrulho que Mistress Pascoe estava muito interessada em ver.- Não tenho a curiosidade dela. Deixe isso para de manhã.- Tem de ser agora.Entrei pela porta lateral, subi ao meu quarto e voltei adescer, com a cesta de hortaliça na mão, a cujas pegas atei umlongo troço de cordel. Tinha igualmente comigo o documento,que guardei na algibeira do casaco. Raquel continuava à espera, na janela.- Que tem nessa cesta?- perguntou em voz baixa. - Sese trata de alguma das suas brincadeiras, não estou dispostaaaturá-la. Não me diga que escondeu aí caranguejos ou lagostins!- Mistress Pascoe julgava que eram couves. De qualquermodo, garanto-lhe que não morde. Pegue na ponta do cordel. -- Atirei a extremidade solta à janela. - Agora, puxe, mas comambas as mãos, porque a cesta pesa um pouco.Ela obedeceu e aguardei que a recolhesse. Por último, levou-a para dentro e seguiu-se um silêncio.Transcorrido um momento, Raquel reapareceu e olhou para baixo.- Não confio em si, Philip. Os embrulhos têm formas esquisitas. Estou certa de que o que contêm morde.Em vez de responder, comecei a subir pela trepadeira quese estendia ao longo da parede, até que alcancei a janela.- Tenha cautela, de contrário cai e fractura a espinha -- advertiu. No instante imediato, encontrava-me no quarto, comum pé no sobrado e a outra perna no peitoril. - Tem a cabeçamolhada! Mas não está a chover.- Fui nadar, como lhe tinha dito. Desembrulha os pacotes, ou prefere que o faça eu?Havia uma única vela acesa. Ela encontrava-se descalça etremia de frio.- Ponha qualquer coisa por cima - recomendei.Retirei a colcha da cama, coloquei-lha sobre os ombrose em seguida ergui-a e depositei-a entre os cobertores.- Desconfio que enlouqueceu por completo - murmurou.- Nada disso. Acabo unicamente de completar vinte ecinco anos. Escute. - Levantei a mão para impor silêncio, enquanto o relógio do campanário badalava a meia-noite. - Isto, pode lê-lo quando lhe apetecer - expliquei, pousando odocumento na mesa-de-cabeceira, ao lado do castiçal. - Masquero dar-lhe o resto já.Coloquei os embrulhos em cima da cama, rasguei os envoltórios e verti o conteúdo dos estojos no cobertor. Registou-seuma pequena chuva de safiras e esmeraldas, com o colar de pérolas e as pulseiras.- Tudo isto é seu - anunciei.Num êxtase de loucura, peguei nas jóias e larguei-as sobre ela.- Agora, tenho a certeza de que perdeu o juízo, Philip!Que fez?Em vez de replicar, peguei no colar e apertei-lho em tornodo pescoço.- Tenho vinte e cinco anos, como o relógio acaba de confirmar. Terminou o impedimento que até agora vigorava. Tudoisto lhe pertence, repito. Se eu possuísse o mundo, também

lho ofereceria.Nunca tinha visto tanta perplexidade e assombro concentrados numa pessoa. Moveu os olhos alternadamente para asjóias e para mim por uns instantes, e em seguida, talvez porque me via rir, abraçou-me subitamente e soltou uma risada.Continuámos abraçados, como se se tivesse deixado contagiarpela minha loucura e a alucinação irreprimível da demênciapertencesse a ambos.- Era isto que planeava ao longo das últimas semanas?- acabou por perguntar.- Era, e tencionava servir-lhe as jóias com o pequeno-almoço. Mas à semelhança dos rapazes e o estojo dos cachimbos, não consegui esperar.- E eu que não tenho nada para si, além de um alfinete degravata! É o seu aniversário, e você cobre-me de vergonha.Existe alguma outra coisa que deseje? Diga-me, e tê-la-á.Sejao que for.Olhei-a, com os rubis e as esmeraldas à sua volta e o colarde pérolas ao pescoço, e de repente a hilaridade abandonou -me ao recordar o que este último significava.- Sim, uma - aquiesci. - Mas não merece a pena pedi-la.- Porquê?- Porque me puxava as orelhas e mandava para a cama.- Diga-me o que é - sussurrou, acariciando-me a face.Não sei como um homem pede uma mulher em casamento. Há, em geral, um pai envolvido, cujo consentimento deveser obtido em primeiro lugar. Ou, na sua ausência, um período de namoro e uma longa conversa prévia. Ora, nada disto seaplicava a qualquer de nós. Era meia-noite e nunca severificara a mínima alusão ao amor e casamento entre ambos. Eu podia dizer-lhe, sem rodeios: ??Amo-a, Raquel. Quer ser minhamulher??? Recordei-me daquela manhã no jardim, quando sereferira ironicamente à minha aversão a semelhante situaçãoeeu replicara que bastava o meu lar para me reconfortar.- Expliquei-lhe uma ocasião que tinha toda a ternura econforto de que necessitava dentro destas quatro paredes -- lembrei-lhe.- Não me esqueci.- Estava enganado. Compreendo agora o que me falta.Tocou-me com os dedos a fronte, o lobo da orelha e aponta do queixo.- Sim? - murmurou. - Está assim tão certo disso?- Mais certo do que de qualquer outra coisa do mundo.Fitou-me com intensidade. Os olhos pareciam mais escurosao clarão da vela.- Naquela manhã mostrou-se muito seguro, e obstinado.O conforto das casas... - Com uma risada, estendeu a mãopara apagar a vela.Quando me encontrava no relvado, ao nascer do Sol, antesde o pessoal se levantar e descer para subir os estores edeixar

entrar a luz do dia, perguntei-me se algum homem antes demim teria sido aceite em casamento em circunstâncias tão singulares. Pouparia muito tempo de namoro se tal acontecesse.Até então, o amor, com todos seus meandros, não figurara nocenário das minhas preocupações. Estivera convencido de queos homens e as mulheres deviam proceder como lhes aprouvesse. Fora cego e surdo e permanecera imerso num sono letárgico. Agora, tudo isso se dissipara.O que aconteceu naquelas primeiras horas do meu aniversário perduraria. Se houve paixão, já a esqueci. Se existiuternura, ainda se alberga em mim. Continuarei persuadido de queuma mulher, ao aceitar o amor, não tem qualquer defesa. Talvez seja esse o segredo que possuem para nos unir a elas. Manifestam reservas a esse respeito até ao fim.Nunca o saberei, por me faltar um termo de comparação.Ela foi a minha primeira e última.Capítulo vigésimo segundoRecordo-me de a casa despertar para o sol e ver o disco rubro despontar acima das árvores que ladeavam o relvado.O orvalho fora forte e o tapete verde apresentava umatonalidade prateada, como que afectado pela geada. Um melro começou a cantar, seguido de um tentilhão, e em breve todo ocoro primaveril dominava a atmosfera. O cata-vento foi oprimeiro a ficar sob a acção dos raios solares. No topo datorredo campanário, apontou para noroeste e imobilizou-se, enquanto a fachada da casa principiava igualmente a ser iluminada.Entrei e subi ao meu quarto, onde puxei uma cadeira parajunto da janela e contemplei o mar. A minha mente achava-sevazia, desprovida de pensamentos, o corpo sereno. Não acudiaqualquer problema à superfície, nenhuma ansiedade tentavaabrir caminho das profundezas ocultas para alterar a pazbeatífica. Era como se todas as coisas da vida tivessem sidoresolvidas e o caminho à minha frente se encontrasse desimpedido.Os anos passados não contavam para nada. Os vindourosconstituíam uma mera continuação de tudo o que eu agora sabia e possuía. Assim seria para todo o sempre, como o ámenque culminava uma litania. No futuro, só haveria isto: Raquele eu. Um homem e a esposa numa existência unicamente sua,com a casa a conter-nos e o mundo fora das nossas portas adesenrolar-se despercebido. Dia após dia, noite após noite,enquanto vivêssemos. Recordava-me pelo menos disso do livrode orações.Fechei os olhos, e ela surgiu imediatamente a meu lado, ecreio que adormeci, porque quando descerrei as pálpebras osol incidia na janela aberta e John entrara, para dispor aminharoupa no espaldar da cadeira e trazer a água quente, sem queme apercebesse. Fiz a barba, vesti-me e desci para tomar o pequeno-almoço. Depois, assobiei aos cães e saí, em direcção aojardim, onde colhi todas as camélias em botão que vi e coloquei-as na cesta, a mesma em que transportara as jóias na véspera, após o que voltei para dentro e subi ao quarto de Raquel.Estava sentada na cama, a contas com o pequeno-almoço,e, antes que tivesse tempo de protestar e correr os

cortinados,verti-lhe o conteúdo da cesta em cima, cobrindo-a, e aos cobertores, de camélias.- Bom dia, mais uma vez - proferi. - Quero recordar-te que o meu aniversário continua.- Aniversário ou não, é costume bater à porta antes deentrar. Desaparece.A dignidade tornava-se difícil, com as camélias no seu cabelo e ombros e a caírem na chávena e no pão com manteiga,mas consegui exibir uma expressão grave e transferi-me para ocanto mais distante do quarto.- Desculpa, mas desde que me habituei a entrar pelas janelas, tornei-me distraído acerca das portas. Na verdade, asboas maneiras abandonaram-me.- É melhor saíres, antes que o Seecombe venha buscar otabuleiro. Creio que ficaria chocado se te visse aqui, com ousem aniversário.Aquelas palavras constituíram um balde de água fria nomeu encantamento, mas reconheci que havia nelas uma certalógica. Talvez fosse arrojado de minha parte invadir osaposentos de uma mulher que tomava o pequeno-almoço, mesmoque em breve se tornasse minha esposa, pormenor que Seecombe desconhecia.- Saio já. Perdoa-me. Apenas queria dizer uma coisa.Amo-te.Antes de me retirar, notei que já não usava o colar de pérolas. Devia tê-lo tirado depois de eu sair, de madrugada, alémde que as jóias haviam sido guardadas. No entanto, no tabuleiro do pequeno-almoço, encontrava-se o documento que eu assinara no dia anterior.Seecombe aguardava-me no átrio, com um embrulho algovolumoso.- É uma data especial, Mister Philip. Permita-me que lhedê os parabéns e deseje muitissimas repetições deste dia.- Muito obrigado, Seecombe.- Isto não passa de uma ninharia. Uma pequena recordação dos numerosos anos dedicados à família. Espero que nãose sinta ofendido, nem tomasse qualquer liberdade ao suporque o aceitaria como uma prenda.Retirei o envoltório do embrulho e deparou-se-me o rostodele, de perfil. Porventura pouco favorecido, mas inconfundível.- É uma bela prenda - declarei com gravidade. - Tãobela, na verdade, que a pendurarei em lugar de honra juntodaescada. Arranja-me um martelo e pregos.Puxou o cordão da sineta com dignidade, para incumbirJohn da tarefa, e colocámos o retrato na parede à saída dasalade jantar.- Acha que a parecença me presta justiça, senhor? - perguntou. - Ou o artista terá conferido dureza excessiva às feições, em particular ao nariz? Confesso que não estou totalmente satisfeito.- A perfeição num retrato é impossível - assegurei-lhe.- Quanto a mim, considero-o inteiramente satisfatório.- Nesse caso, é a única coisa que interessa.Apetecia-me anunciar-lhe imediatamente que Raquel e eutencionávamos casar, tal a alegria que me assolava, mas contive-me devido a uma ponta de

hesitação. O assunto era demasiado solene e delicado para lho divulgar de rompante, etalvezconviesse que o fizéssemos juntos.Dirigi-me ao escritório, com a vaga intenção de trabalhar,mas a única coisa que fiz foi sentar-me à secretária e olharvagamente na minha frente. Continuava a ver Raquel, reclinadanas almofadas, a tomar o pequeno-almoço, com os botões decamélias dispersos à sua volta. A paz do nascer do Soldissipara-se do meu espírito e reaparecera o estado febril da noiteanterior. Cogitei que, quando estivéssemos casados, não me afastaria da sua presença com tanta facilidade. Tomaríamos opequeno-almoço juntos. Acabar-se-ia a primeira refeição dodia na sala de jantar sem companhia. Iniciaríamos uma novarotina.Soaram dez badaladas no relógio do campanário e pegueinum maço de facturas, para as pousar em seguida, após o queencetei uma carta a um magistrado, mas não fui além da primeira linha. Não me acudiam palavras que formassem um sentido coerente, e ainda faltavam duas horas para o meio-dia,altura em que Raquel desceria do quarto. O caseiro de Penhale,Nat Bray, procurou-me com uma história complicada e confusa de algumas cabeças de gado que tinham invadido as terrasde Trenant, mas a culpa era do vizinho, que não conservava avedação em bom estado, enquanto eu assentia com movimentos de cabeça ocasionais, quase sem prestar atenção, porqueRaquel já se devia encontrar no jardim, a trocar impressõescom Tamlyn.Por fim, interrompi-o e despedi-me, e, vendo que pareciadescoroçoado, indiquei-lhe que passasse pela sala comum dopessoal e tomasse uma cerveja com Seecombe, esclarecendoque não me ocupava de assuntos formais por ser dia do meuaniversário e me considerar o mais feliz dos homens.Depois, assomei à janela e chamei um dos empregados dacozinha, a fim de lhe recomendar que preparasse uma refeiçãofria para dois, porque me apetecia subitamente estar a sós comRaquel, ao sol, sem o ambiente circunspecto da sala de jantar,após o que me dirigi aos estábulos, para comunicar a Wellington que desejava o Salomão selado para a senhora.Não o encontrei, e apercebi-me igualmente da ausência dacarruagem. Um dos moços, que varria o chão, não se mostroumuito elucidativo:- A senhora mandou aparelhar a carruagem pouco depoisdas dez horas, mas não sei aonde foi. Talvez à aldeia.Tornei a entrar em casa e chamei Seecombe, que todavianada pôde acrescentar além de explicar que Wellington levara acarruagem para a entrada, pouco depois das dez, onde Raqueljá se achava à espera. Era a primeira vez que ela saía demanhã,e a minha euforia desceu repentinamente vários furos. Tínhamos todo o dia à nossa frente, e não fora nada daquilo que euplaneara.Esforcei-me por aguardar calmamente o desenrolar dos

acontecimentos. O meio-dia chegou e soou a sineta para o almoço do pessoal. A cesta do piquenique encontrava-se a meulado e o Salomão selado. Mas a carruagem não apareceu. Finalmente, às duas, levei o cavalo para os estábulos e indiqueiao moço que o desselasse. Atravessei o bosque em direcção ànova alameda, com a excitação matinal totalmente dissipada econvertida em apatia. Mesmo que ela regressasse naquele momento, seria demasiado tarde para pensar num piquenique,pois o calor do sol de Abril extinguir-se-ia às quatro horas.Quase atingira a extremidade da alameda, em Four Turnings, quando vi a carruagem transpor o portão. Fiquei à espera, a meio do caminho, que os cavalos se aproximassem, e,ao avistar-me, Wellington puxou as rédeas e o veículo imobilizou-se. O peso do desapontamento, tão opressivo durante asúltimas horas, dissipou-se ao ver Raquel, que indicou ao cocheiro que reatasse a marcha comigo sentado na sua frente.Envolvia-a a capa negra e tinha o véu baixado, pelo quenão me era possível descortinar-lhe as feições.- Andava à tua procura desde as onze horas - declarei.- Onde estiveste?- Em Pelyn, para falar com o teu padrinho.Todas as preocupações e perplexidades, sepultadas nas profundezas, acudiram ao primeiro plano do meu espírito e, comum brusco pressentimento, perguntei-me que poderiam elesfazer, em conjunto, para aniquilar os meus planos.- Para quê? - insisti. - Que necessidade tinhas de lhefalar com tanta urgência? Ficou tudo resolvido há muito tempo.- Não entendo bem o que queres dizer com ??tudo??.A carruagem sofreu um solavanco numa cova, e a minhaprima estendeu a mão enluvada para se segurar à correia a seulado. Como parecia remota, sentada na minha frente, de luto,o rosto oculto pelo véu, a um mundo de distância da Raquelque me apertara ao coração!- O documento - expliquei. - Estás a pensar nisso.Não é possível alterá-lo. Tenho a idade legal, e o meu padrinho não pode fazer nada. Foi assinado, selado e testemunhado. É tudo teu.- Sim, agora compreendo. O fraseado era algo confuso equis certificar-me do que significava.Ainda a voz distante, fria, desprendida, enquanto nos meusouvidos e memória persistia a outra, a que me sussurrara àmeia-noite.- É tudo claro para ti agora?- Muito claro.- Nesse caso, nada mais há a dizer sobre o assunto?- Nada - assentiu.Não obstante, subsistia uma ponta de dúvida no meu coração. Desaparecera toda a espontaneidade, a alegria e sorrisosque havíamos partilhado quando lhe dera as jóias. Demónioslevassem o meu padrinho se tivesse dito alguma coisa que amelindrara.- Levanta o véu - pedi-lhe.Por um momento, não se moveu. Em seguida, ergueu osolhos para as costas largas de Wellington e o moço a seu lado

no banco do cocheiro. O primeiro fez estalar o chicote, a fimde acelerar as passadas dos cavalos no ponto em que as sinuosidades da alameda terminavam, substituídas por uma longarecta.Raquel levantou o véu, e os olhos que me fitaram não eramsorridentes como eu esperara, ou marejados de lágrimas comoreceara, mas firmes e serenos, de alguém que tratara de um negócio e o resolvera a seu contento.Sem razão visível e, até certo ponto, frustrado, queria queos seus olhos fossem como os vira ao nascer do Sol. Afigurara-se-me, por mera insensatez porventura, que se devera aofacto de conservarem a mesma expressão que os ocultara de trás do véu. Tal não acontecia, porém. Ela decertoenfrentaraassim o meu padrinho, do outro lado da secretária noescritório dele, calma, determinada e prática, enquanto eu aesperavaem casa, atormentado pela dúvida.- Não voltei mais cedo porque eles insistiram em que fi casse para almoçar, e não pude recusar - informou. - Tinhastraçado algum plano?Volveu o rosto para o cenário que deslizava diante da janela, e perguntei a mim próprio como era possível que conseguisse assumir uma atitude como se fôssemos duas pessoasque se haviam encontrado por mera casualidade, quando narealidade dominava com dificuldade o desejo de a apertar nosbraços. Tudo se modificara desde a véspera. No entanto, elanão deixava transparecer que fosse assim.- Tinha de facto traçado um plano - admiti -, mas jánão interessa.- Os Kendall jantam hoje em casa de uns amigos, mas noregresso irão ver-nos. Creio que as minhas relações com aLouise melhoraram. Pelo menos, não me tratou com tantafrieza.- Ainda bem. Gostava que fossem amigas.- Na verdade, continuo convencida de que ela te convémperfeitamente.Soltou uma risada, que eu não secundei. Parecia-me injustotecer comentários mais ou menos sarcásticos escolhendo Louise como um dos alvos. Com efeito, eu não desejava o mínimomal à rapariga e esperava que encontrasse o marido mais apropriado.- Penso que o teu padrinho não simpatizava particularmente comigo, mas no final do almoço as nossas relações erammuito mais cordiais. A tensão atenuou-se e o diálogo passou adesenrolar-se com facilidade. Combinámos voltar a encontrar-nos em Londres.- Em Londres? - estranhei. - Continuas decidida a partir para lá?- Com certeza. Porque não?Não respondi. De facto, tinha todo o direito de ir paraLondres, se lhe apetecia. Devia haver lojas que pretendiavisitar, compras a fazer, em especial agora que dispunha de maisdinheiro, mas... Porque não aguardaria algum tempo, até quepudéssemos efectuar a viagem juntos? Precisávamos de discutir várias coisas, porém eu hesitava em abordá-las. Acudia-me agora, com todo o seu impacto, algo em que até então nãopensara. Havia nove meses que Ambrose falecera. O mundo

não aprovaria o nosso casamento antes de meados do Verão.Com o romper do dia tinham surgido problemas ausentesdo horizonte à meia-noite, e eu não estava interessado emencará-los.- Não regressemos a casa imediatamente - propus.- Vamos dar uma volta pelo bosque.- Pois sim.Parámos junto da casa do guarda da propriedade, no vale,apeámo-nos e indiquei a Wellington que seguisse para casacom a carruagem. Enveredámos por um dos caminhos à beirade um ribeiro, que corria do topo de uma colina, e Raquel colheu algumas primaveras, enquanto voltava a aludir ao temadeLouise, dizendo que tinha uma inclinação natural para osjardins e, se escutasse os conselhos adequados sobre a matéria,poderia tornar-se numa autêntica autoridade. Todavia, a filhado meu padrinho podia dedicar-se à jardinagem até ao dia doJuízo Final, pela parte que me tocava, pois eu não sugeriraopasseio no bosque para trocar impressões sobre ela.Retirei-lhe as primaveras da mão, pousei-as no chão, estendi a capa debaixo de uma árvore e convidei-a a sentar-se.- Não estou cansada - replicou. - Passei mais de umahora sentada na carruagem.- E eu estive sentado mais de três, à porta de casa, ansioso por que chegasses.Descalcei-lhe as luvas, beijei as mãos, coloquei o seu chapéu e véu entre as flores e tornei os beijos extensivos aorosto.- Era este o meu plano, que estragaste ao almoçares comos Kendall. . .- Suspeitava disso, e foi a principal razão por que aceiteio convite. .- Prometeste não me negar nada no dia do meu aniversário.- A indulgência tem limites.Contudo, eu não descortinava nenhum. Voltava a sentir -me feliz, com toda a ansiedade dissipada.- Se o guarda costuma passar por aqui, pode surpreender -nos e ficaremos embaraçados - acrescentou.- Ele ainda ficaria mais quando lhe pagasse o salário nosábado. Ou ocupar-te-ás também disso? Passei a ser o teuservo, mais ou menos como o Seecombe, a aguardar ordens.Pousei a cabeça no seu regaço e ela fez deslizar os dedosentre o meu cabelo. Fechei os olhos e desejei que o momento seprolongasse eternamente.- Estranhas que não te tenha agradecido - observou.- Notei a tua expressão perplexa na carruagem. Não há nadaque eu possa dizer. Sempre me julguei impulsiva, mas tu aindao és mais. Vou necessitar de algum tempo para abarcar toda adimensão da tua generosidade.- Não fui generoso - asseverei. - Limitei-me a repor averdade da situação. Deixa-me beijar-te, mais uma vez. Tenhode me desforrar das horas de solidão à tua espera.Seguiu-se um breve silêncio, que ela acabou por quebrar:

- Aprendi, pelo menos, uma coisa. Não voltar a passearno bosque contigo. Deixa-me levantar.Ajudei-a a pôr-se de pé e, com uma vénia, entreguei-lhe asluvas e o chapéu. Em seguida, ela abriu a bolsa, extraiu umpequeno embrulho e retirou o envoltório.- Aqui tens a minha Prenda de aniversário, que já te deviater dado. Se soubesse que herdaria uma fortuna, a pérola seriamaior. - Prendeu o alfinete na minha gravata. - E agora, estou autorizada a regressar a casa?Estendeu-me a mão, e recordei-me de que não almoçara, oque contribuíra para criar um apetite devorador para o jantar.Recomeçámos a caminhar - eu a pensar em frango assado ebacon e na noite que se avizinhava -, até que se nos deparoua laje de granito sobranceira ao vale, que, embora eu otivesseesquecido, nos aguardava ao fundo da passagem. Fiz mençãode me desviar para o arvoredo, a fim de a evitar, mas era demasiado tarde. Raquel já a vira e, largando-me a mão, imobilizou-se, os olhos fixos nela.- Que é aquilo parecido com uma sepultura?- Uma simples laje de granito - apressei-me a replicar,com simulada indiferença. - Uma espécie de marco de referência. O caminho entre as árvores é menos íngreme. Vamos.- Aguarda um momento. Quero vê-la de perto. Nunca tinha passado por aqui.Acercou-se e olhou-a com curiosidade. Vi os lábios moverem-se enquanto lia os dizeres, com apreensão crescente. Talvez fosse impressão minha, mas pareceu-me que estremecia e aleitura se prolongava mais do que o necessário. Por fim, voltou para junto de mim, mas desta vez não me deu a mão. Nãoemitiu qualquer comentário sobre a laje, porém esta erguia-seentre nós como uma barreira. Não pude deixar de me lembrardo porta-moedas que continha a carta enterrado debaixo dapedra. O silêncio da minha companheira provava que estavaemocionada. ??Se eu não falar agora, neste momento, a laje degranito opor-se-á sempre entre nós??, reflecti. ??Com o rolardos anos, as suas dimensões aumentarão.??- Fazia tenções de te levar aí - expliquei, numa voz queme pareceu pouco natural. - Era a vista que o Ambrose preferia em toda a propriedade. É a razão da pedra colocada nesselugar.- Mas não fazia parte dos teus planos do aniversário mostrar-ma - redarguiu numa inflexão dura, que quase não reconheci.- Pois não - aquiesci a meia voz.O resto do caminho foi percorrido em silêncio e, uma vezem casa, ela seguiu directamente para o quarto.Tomei banho e mudei de roupa, já sem a mínima euforia- apático e acabrunhado. Que demónio nos conduzira à lajede granito, que lapso de memória? Raquel não sabia, como eu,que Ambrose costumava passar horas naquele local, sorridentee apoiado à bengala, com uma expressão de nostalgia por detrás do olhar divertido. A laje de granito, alta e orgulhosa,receberia a substância do próprio homem que as circunstânciasnão tinham permitido que morresse no seu lar e, ao invés, ficara sepultado a muitas centenas de quilómetros, no cemitérioprotestante de Florença.

Tratava-se de uma sombra na minha noite de aniversário.Ao menos, ela ignorava a existência da carta, do que jamaisse inteiraria, e eu perguntava-me, enquanto me vestia parajantar, que outro demónio me impelira a enterrá-la naquele lugarem vez de a queimar, como se possuísse o instinto de um animal que voltaria um dia para a retirar do esconderijo. Esquecera todo o seu conteúdo. Dominara-o a doença quando a escrevera. Atormentado, desconfiado, com as asas da morte tãopróximas, não contara com as suas palavras. De súbito, comose bailasse diante de mim na parede, revi a frase em quereferiaque o dinheiro constituía o único caminho de acesso ao coração de Raquel.As palavras brotaram do espelho quando me detive na suafrente para me pentear. Continuavam presentes no momentoem que colocava na gravata o alfinete que ela me oferecera.Acompanharam-me ao longo da escada e à sala de estar e passaram da escrita para a voz dele, a salientar: ??...o únicocaminho de acesso ao coração de Raquel.??Quando apareceu para jantar, ela usava o colar de pérolas,como que num gesto de perdão, um tributo ao meu aniversário. No entanto, por estranho que parecesse, o facto de ousar,em vez de a aproximar de mim, tornava-a mais distante. Naquela noite, eu teria preferido ver-lhe o pescoço sem aqueleornamento.Sentámo-nos à mesa, com Seecombe e John incumbidos denos servir as variadas iguarias próprias de um jantar deaniversário. Conversámos, rimos e brindámos numerosas vezes, mas,no fundo, eu pressentia que se tratava de mera fachada daparte de ambos em virtude de não nos encontrarmos sós, emcuja eventualidade mergulharíamos em profundo e tenebroso silêncio.Acudiu-me uma espécie de desespero imperioso para queme tornasse jovial, eufórico mesmo, e a única solução para isso consistia em beber sem restrições e insistir em encherigualmente o copo de Raquel. Na noite anterior, eu caminhara atéao farol, alegre, excitado, como que imerso num sonho. Agora, apesar de, nas horas intermédias, ter despertado para ariqueza do mundo inteiro, também ficara ciente das sombrasque me rodeavam.Levemente aturdido, eu observava-a do outro lado da mesa, via-a rir por cima do ombro para Seecombe, e afigurava-se-me que nunca estivera tão atraente. Se conseguisse recuperaraboa disposição das primeiras horas daquele dia, a serenidade ea paz, e mesclá-las com os momentos deliciosos entre as primaveras, sob as árvores altaneiras, voltaria a sentir-mefeliz.E Raquel igualmente. E conservaríamos aquela disposição parasempre, preciosa e sagrada, a fim de a transportarmos para ofuturo.Seecombe tornou a encher-me o copo, e parte das sombrasatenuou-se, as dúvidas reduziram-se. ??Quando estivermos sós,tudo correrá bem e perguntar-lhe-ei esta noite mesmo se podemos casar em breve, dentro de semanas, um mês o máximo??, reflecti. Ansiava por comunicar a todos que ela manteria

o seu actual apelido.Continuaria a ser Mrs. Ashley, mas esposa de Philip Ashley.Creio que nos conservámos sentados até tarde, pois aindanão abandonáramos a mesa quando ouvimos o ruído de rodasde uma carruagem no caminho de acesso à casa. Soou a sinetada porta e os Kendall foram introduzidos na sala de jantar,onde nos mantínhamos entre a confusão de restos da sobremesae garrafas de vinho. Levantei-me, com pouca firmeza devo reconhecer, e puxei duas cadeiras para a mesa, com o meu padrinho a protestar que já tinham jantado e haviam passado porminha casa apenas para me dar os parabéns.Seecombe trouxe copos para ambos, e vi Louise, de vestidoazul, olhar-me com uma expressão interrogativa, sem dúvidaconvencida de que eu bebera em excesso. Tinha razão, mas ofacto não ocorria com frequência e, de resto, ela devia habituar-se à ideia de que não lhe competia criticar os meusactos.E, de caminho, o pai devia igualmente inteirar-se disso.Impunha-se que, de uma vez por todas, pusesse termo aos seusplanos de um eventual casamento entre nós.Voltámos a sentar-nos e estabeleceu-se imediatamente animada conversa entre os três, enquanto eu permanecia silencioso na minha extremidade da mesa, quase sem lhes prestar atenção, mais preocupado com a revelação que estava decidido afazer.Por fim, Nick Kendall virou-se para mim, de copo na mão,e brindou:- Aos teus vinte e cinco anos, Philip. Uma longa vida,cheia de felicidades.O trio concentrou-se em mim e, não sei se devido ao vinhoque ingerira ou à euforia, considerei que o meu padrinho eLouise eram amigos nos quais podia confiar, enquanto Raquel,a minha amada, de olhos marejados, exibia um sorriso de encorajamento.O momento não podia, pois, ser mais oportuno. ComoSeecombe e John não se achavam presentes, o segredo ficariaencerrado entre nós os quatro.Levantei-me, agradeci as felicitações e, pegando no copo,anunciei:- Também quero fazer um brinde. Desde esta manhã, julgo-me o mais feliz dos homens. Desejo que o padrinho e aLouise bebam em homenagem a Raquel, minha futura esposa.Esvaziei-o e olhei-os, sorridente. Ninguém se moveu. Divisei perplexidade na expressão do meu padrinho e, volvendoo olhar para Raquel, notei que o sorriso desaparecera e mecontemplava, o rosto convertido numa máscara glacial.- Enlouqueceste, Philip? - perguntou.Pousei com mão trémula, na borda da mesa, o copo, queresvalou para o chão, onde se desfez em vários pedaços. Sentio coração palpitar desordenadamente. Não conseguia afastaros olhos do rosto duro, que empalidecera.- Lamento - articulei, por fim. - Precipitei-me ao mencionar o evento. Mas não esqueças que é o meu aniversário eeles são os meus melhores amigos.Segurei-me à mesa para conservar o equilíbrio, ao mesmo

tempo que me apercebia de um latejar nos ouvidos. Raquelparecia não abarcar a situação. Desviou os olhos de mim e fixou-os no meu padrinho e em Louise.- Receio que o aniversário e o vinho subissem à cabeça doPhilip. Desculpem-lhe a atitude de colegial e esqueçam-na, sepuderem. Estou certa de que pedirá perdão quando recuperara sensatez. Passamos à sala de estar?Levantou-se e abriu caminho em direcção à porta. Continuei imóvel, de pé, o olhar perdido nos restos da refeição,semqualquer sensação, com uma espécie de vácuo onde se deviaencontrar o coração. Aguardei uns minutos e, com passos incertos, antes que Seecombe e John reaparecessem para levantara mesa, encaminhei-me para a biblioteca e sentei-me na escuridão, diante da lareira, onde ardiam algumas escassas brasas,sem que as velas tivessem sido acesas. Através da portaentreaberta, ouvia o murmúrio de vozes na sala. Apertei a cabeçaagitada entre as mãos e senti o gosto azedo do vinho na língua. Se permanecesse ali, na penumbra, talvez recobrasse oequilíbrio mental e o aturdimento se dissipasse. A bebidaconstituía a causa da minha precipitação. Em todo o caso,porque se mostrara ela tão escandalizada - era o termo adequado - com o que eu dissera? Podíamos ter pedido ao meupadrinho e a Louise que guardassem segredo. Decerto nãomanifestariam dificuldade nem relutância em compreender.Conservei-me sentado, à espera de que se retirassem. Por último - parecia que transcorrera uma eternidade, mas duvidoque fosse mais de uma dezena de minutos -, as vozes aumentaram gradualmente de intensidade e transferiram-se para oátrio. Ouvi Seecombe abrir a porta, dar-lhes as boas-noites eem seguida trancá-la, após o que soou o ruído do rodado dacarruagem.Entretanto, o meu cérebro desanuviara-se um pouco. Mantive-me à escuta e detectei o ruge-ruge do vestido de Raquel.Aproximou-se da porta entreaberta da biblioteca, parou porum instante e afastou-se. Quando distingui os seus passos naescada, segui-a, para a alcançar à entrada do corredor do primeiro piso, onde se detivera para apagar as velas do patamar.Olhámo-nos por um momento em silêncio, ao clarão oscilante.- Pensava que tinhas ido para a cama - murmurou.- Aconselho-te a fazê-lo, antes que produzas mais estragos.- Agora que eles se retiraram, perdoas-me? Acredita quepodes confiar nos Kendall. Não divulgarão o nosso segredo.- Assim espero, porque não estão ao corrente. Fazes-mepensar numa criada de quarto que se refugia no sótão com umcolega. Conheci situações embaraçosas no passado, mas estaultrapassa tudo o admissível.Conservava a expressão glacial que não era sua.- Não parecias embaraçada ontem à meia-noite. Prometeste, e não estavas contrariada. Não hesitaria em me retirarimediatamente, se mo ordenasses.- Mas que te prometi eu?

- Casar comigo, Raquel.Ela tinha o castiçal na mão e ergueu-o, para que a chamame iluminasse bem o rosto.- Atreves-te a afirmar que prometi casar contigo? Acusei-te, diante dos Kendall, de teres enlouquecido, e cada vez meconvenço mais disso. Sabes perfeitamente que não te fiz qualquer promessa do género.Arregalei os olhos de incredulidade. Não fora eu que enlouquecera, mas ela. Senti-me invadido por um calor intensonas faces.- Perguntaste o que desejava para o meu aniversário.A única coisa que me interessava, e continua a interessar, eraque casasses comigo. Que mais poderia desejar?Não respondeu. Persistiu com o olhar cravado em mim,incrédula, perplexa, como se escutasse um idioma estrangeiroimpossível de traduzir ou compreender, e apercebi-me subitamente, com angústia e desespero, de que era o que aconteciaentre nós: tudo o que ocorrera não passara de um equívoco.Ela não entendera o que lhe pedira à meia-noite, nem eu, nomeu cego deslumbramento, o que me dera, pelo que aquiloque se me afigurara uma afirmação de amor constituía algo dediferente, sem significado, a que atribuíra a sua própriainterpretação.Se se sentia embaraçada, que diria eu, ao reconhecer quecometera um erro tão clamoroso a meu respeito?- Vou formular o pedido em linguagem clara - decidi.- Queres casar comigo?- Nunca, Philip - replicou, com um gesto largo, comoque para pôr termo definitivo ao assunto. - Considera estaresposta irrevogável. Se acalentavas alguma esperança, lamento-o profundamente. Não tive a menor tenção de te induzirem erro. Boa noite.Deu meia volta para se afastar, mas segurei-lhe a mão comfirmeza.- Não me amas, nesse caso? Foi tudo uma comédia? Porque não me disseste a verdade, ontem à noite, e mandaste sairdo quarto?Os olhos tornaram a denunciar perplexidade, como se eutivesse aludido a um facto incompreensível. Éramos dois estranhos, sem o mínimo elo comum. Ela provinha de outras terras, de outra raça.- Atreves-te a recriminar-me pelo que aconteceu? Quisapenas agradecer-te. Tinhas-me oferecido as jóias.Creio que abarquei naquele instante tudo o que se tornaraclaro aos olhos de Ambrose. Compreendi o que vira nela e pelo que ansiara e nunca obtivera. Entendi o tormento, a mágoae o abismo que se cavara entre ambos, cada vez mais profundo. Os olhos de Raquel, tão negros e diferentes dos nossos,fitavam-nos, sem compreender. Ambrose encontrava-se a meulado, na sombra, à margem do oscilante clarão da vela. Nóscontemplávamo-la, torturados, sem esperança, enquanto nosretribuía a mirada com uma expressão acusadora. O seu rostotambém era estrangeiro, na penumbra, pequeno e estreito, aface de uma moeda. A mão que eu segurava já não irradiava

calor. Fria e frágil, os dedos debatiam-se para se soltar e osanéis cravavam-se-me na palma. Larguei-a e, ao fazê-lo, desejei tornar a pegar-lhe.- Porque me olhas assim? - murmurou. - Que mal tefiz? A tua expressão alterou-se.Tentei determinar intimamente que mais tinha para dar. Eladispunha da propriedade, dinheiro e jóias. E possuía a minhamente, corpo e coração. Restava apenas o meu nome, e já ousava. Não faltava nada. A menos que fosse o medo. Retirei-lhe o castiçal da mão e pousei-o na mesinha no topo da escada. Em seguida, rodeei-lhe o pescoço com os dedos e ficouimpossibilitada de se mover, limitando-se a observar-me, deolhos esgazeados. Dir-se-ia que tinha uma ave assustada entreas mãos, a qual, com o intensificar da pressão, bateria asasaspor um momento e morreria, alcançando assim a liberdade.- Nunca me abandones - proferi entre dentes. - Juraque nunca, mas mesmo nunca, o farás.Tentou mover os lábios para responder, mas não conseguiu, em virtude da pressão dos dedos. Aliviei-a até a soltar,eela recuou, ao mesmo tempo que levava a mão à garganta. Havia dois vergões avermelhados, um de cada lado do colar depérolas.- E agora, casas comigo? - insisti.Não respondeu e continuou a retroceder, ao longo do corredor, sem desviar os olhos do meu rosto, a mão ainda pousada na garganta. Vi a minha sombra na parede, uma coisamonstruosa destituída de forma e substância. Raquel acaboupor desaparecer sob a arcada e ouvi a porta fechar-se e achaverodar na fechadura. Entrei no meu quarto e, ao descortinar aminha imagem no espelho, detive-me de olhos arregalados. Sópodia ser Ambrose o homem que se encontrava na minhafrente, a fronte perlada de transpiração e faces esvaídas detodaa cor. Por fim, movi-me e voltei a ser eu, de ombros encurvados, braços desajeitados e demasiado compridos, hesitante, oPhilip que se permitira uma loucura de colegial. Raquel pediraaos Kendall que perdoassem e esquecessem.Abri a janela, mas não havia luar e chovia com intensidade.O vento agitou os cortinados, que atingiram o bloco-calendário em cima da prateleira da chaminé e o atiraram aochão. Agachei-me para o recolher, arranquei a folha de cima,amarrotei-a e atirei-a ao lume. O dia das mentiras chegaraao fim.De manhã, quando me sentei à mesa para tomar o pequeno-almoço e fixei o olhar na fúria dos elementos através dajanela, Seecombe entrou com um bilhete numa salva de prata.Ao vê-lo, o meu coração experimentou um sobressalto. Talvezse tratasse de um pedido para a procurar no quarto. Mas nãoera de Raquel, como verifiquei pela caligrafia, mais volumosaearredondada. Provinha de Louise.- O moço de Mister Kendall acaba de o trazer - informou o mordomo. - Ficou a aguardar a resposta.

Desdobrei o papel e li:??Caro Philip: Tenho estado muito preocupada com oque se passou ontem à noite. Creio que compreendoo que sentiste, mais do que o meu pai. Lembra-te de quesou, e sempre serei, tua amiga. Esta manhã, tenho de medeslocar à aldeia. Se precisas de alguém com quem conversar, podemos encontrar-nos no adro da igreja, porvolta do meio-dia. Louise.??Guardei-o na algibeira e pedi a Seecombe que fosse buscarpapel e uma caneta. O meu primeiro instinto, como sempreante a sugestão de um encontro com quem quer que fosse e,mais especificamente, naquela manhã, consistiu em escreverumas palavras de agradecimento e recusar a sugestão. No entanto, quando o mordomo reapareceu com o que lhe pedira,tinha mudado de ideias. A noite em claro e a agonia da solidãoque me assolava faziam ansiar por companhia. Por conseguinte, tracei meia dúzia de palavras em que prometia comparecerno local e hora propostos.- Depois de entregares isto ao portador, diz ao Wellington que sele o Cigano às onze horas.Terminado o pequeno-almoço, encerrei-me no escritório,dei seguimento às facturas por saldar e completei a carta queiniciara na véspera. Agora, afigurava-se-me mais fácil. Umasecção do meu cérebro funcionava de um modo quase impessoal: tomava nota dos factos e números e armazenava-os parautilização posterior, em obediência à força do hábito.Concluído o trabalho, encaminhei-me para os estábulos, disposto aafastar-me apressadamente da casa e de tudo o que representava para mim. Não segui pela alameda através do bosque, comas suas recordações da véspera; cruzei o parque em direcção àestrada.O mau tempo, que se mantivera ausente em Fevereiro eMarço, surgira finalmente. Nuvens densas e negras cruzavamo céu a intervalos cada vez menos espaçados, para despejaremaguaceiros diluvianos, com fortes rajadas de vento, enquanto omar apresentava ondulação alterosa. Nat Bray, de quem medesembaraçara tão precipitadamente na véspera, conservava-sejunto do portão quando passei e deu-me os bons-dias com umgesto respeitoso, porém o som da sua voz não me chegou aosouvidos.Havia pouca gente nas ruas quando desci a colina e entreina aldeia, e as pessoas que se aventuravam moviam-se apressadamente, indicando que só uma necessidade imperiosa as obrigaria a exporem-se à fúria dos elementos. Deixei o Cigano àentrada da Rose and Crown e encaminhei-me para a igreja.Louise encontrava-se abrigada à entrada e transpusemos a pesada porta. O silêncio e paz que imperavam constituíam umcontraste tranquilizador depois da implacável intempérie doexterior, embora pairasse um leve cheiro a mofo e subsistisseausual temperatura baixa. Fomos sentar-nos junto da figura jacente de mármore do meu antepassado, com os filhos lacrimosos a seus pés, e ponderei quantos Ashley estariam dispersospela região, uns ali, outros na minha própria paróquia, e comotinham amado, sofrido e depois prosseguido o seu caminho.

O instinto impelia-nos a falar em surdina, em virtude daquietude que nos envolvia.- Há muito tempo que ando preocupada contigo - explicou ela. - Desde antes do Natal, mas não me atrevia a tocar no assunto. De qualquer modo, não farias caso.- Não havia necessidade - repliquei. - Tudo correumuito bem até ontem à noite. A culpa foi minha, pelo quedisse.- Não o dirias se não acreditasses que correspondia à verdade. Houve logro desde o princípio e foste preparado paraele, antes de ela aparecer.- O logro só ocorreu nas últimas horas. Se me equivoquei, sou o único culpado.Novo aguaceiro torrencial sacudiu as janelas do lado sul dotemplo e a escuridão no interior acentuou-se.- Porque veio ela? - volveu Louise. - Porque percorreuuma distância tão grande para te atormentar? Não foi o sentimentalismo ou a curiosidade que a trouxe. Chegou à Inglaterra e à Cornualha com um objectivo bem definido.Olhei-a com estranheza, mas a sua expressão revelava amaior simplicidade, sem qualquer malícia.- Não compreendo.- Ficou com o dinheiro. Era esse o plano que tinha emmente antes de iniciar a viagem.Um dos professores de Harrow explicara-nos, uma ocasião, que a verdade era uma coisa intangível, invisível, queporvezes se nos deparava sem que a reconhecêssemos, descoberta,e compreendida apenas pelos idosos perto da sua morte ou, àsvezes, pelas pessoas muito puras, muito jovens.- Enganas-te - objectei. - Não sabes nada a seu respeito. É uma mulher impulsiva e emocional, com fases imprevisíveis e estranhas, mas nada mais. Foi um impulso que a levou avir de Florença e a emoção que a reteve cá. Ficou porque sesentia feliz e tinha o direito de permanecer aqui.Olhou-me com compaixão e pousou a mão no meu joelho.- Se fosses menos vulnerável, ela não teria ficado. Procuraria o meu pai, tentaria chegar a um acordo razoável epartiria. Interpretaste mal as suas intenções desde oprincípio.Levantei-me e reflecti que aguentaria melhor se Louise tivesse agredido Raquel com as suas próprias mãos, cuspido nacara ou tentado arrancar-lhe os cabelos. Seria uma atitudeprimitiva e animal. Representaria uma luta leal. Mas aquilo, nosilêncio da igreja, com o alvo dos seus comentários ausente,constituía calúnia pura e simples, quase blasfémia.- Não quero continuar a escutar-te - declarei. - Desejava o teu conforto e simpatia. Se não os tens para metransmitir, paciência.- Não compreendes que tento ajudar-te? - Pôs-se igualmente de pé e segurou-me o braço. - És tão cego a tudo quenão merece a pena insistir. Se não está na natureza deMistressAshley traçar planos com meses de antecedência, porque temenviado a sua mesada para o estrangeiro, semana a semana,

mês a mês, ao longo do Inverno?- Como o sabes?- O meu pai tem meios para se inteirar. São coisas quenão se podiam ocultar entre Mister Couch e ele, na sua qualidade de teu tutor.- Muito bem. Admitamos que o fez. Ela nunca me ocultou que tinha dívidas em Florença. Os credores pressionavam-na cada vez mais.- De um país para outro? Achas possível? Duvido. Nãoserá mais plausível inferir que esperava reunir um fundo avultado para o seu regresso e passou cá o Verão por saber que aherança ficaria legalmente nas tuas mãos no dia do vigésimoquinto aniversário, que foi ontem? Depois, com as funções detutor do meu pai extintas, podia sugar-te o dinheiro a seubel-prazer. Só que não houve necessidade de se esforçar tanto,pois ofereceste-lhe tudo.Custava-me a crer que uma moça que conhecia desde a infância e me merecia inteira confiança possuísse um espíritotãocáustico e se exprimisse - esta era a faceta mais difícil desuportar - com tanta lógica e senso comum, para deitar virtualmente por terra uma mulher como ela.- É a mente legal do teu pai que fala pela tua boca, ou tuprópria?- Conheces a reserva dele. Aliás, pouco me revelou sobreo assunto. Sei traçar conclusões daquilo que vejo.- Embirraste com ela desde o primeiro dia - acusei.- Num domingo, salvo erro, na missa. Regressaste connoscopara jantar e não disseste uma palavra, sentada à mesa, empertigada e altiva. Decidiste antipatizar com ela desde oprincípio.- E tu? - contrapôs. - Esqueceste o que disseste a seurespeito antes de chegar? Lembro-me perfeitamente da animosidade que lhe dispensavas. E com boas razões.A porta lateral rangeu, para dar passagem à mulher da limpeza, Alice Tabb, de vassoura em punho. Olhou-nos furtivamente e desapareceu atrás do púlpito, porém a sua presençaachava-se consciente nos nossos espíritos e a solidãoterminara.- É inútil, Louise, não me podes valer. Somos amigos delonga data, mas se continuarmos a conversar acabaremos pornos detestar.Olhou-me em silêncio por uns instantes e soltou-me o braço.- Ama-la assim tanto?Voltei o rosto para o outro lado. Era mais jovem do queeu, uma rapariga, pelo que não podia compreender. Ninguémpoderia, à excepção de Ambrose, que morrera.- Que encerra o futuro para vocês? - persistiu.Os nossos passos ecoavam, enquanto seguíamos pelo corredor central. O aguaceiro que alagara as janelas terminouquase bruscamente e os raios solares, algo tímidos, iluminarama cabeça de São Pedro por uns instantes.- Propus-lhe casamento - informei. - Fi-lo uma vez emais tarde outra. E continuarei a propor-lho. Aí tens o meufuturo.Transpusemos a porta da igreja e detivemo-nos à entrada.

Um melro, indiferente ao tempo instável, cantava empoleiradonuma árvore próxima e um rapaz de um talho, com um sacoàs costas, chapinhava no chão molhado no cumprimento de algum recado.- Quando foi a primeira? - quis saber Louise.O cenário de ternura voltou a acudir-me ao pensamento,com o clarão das velas e a atmosfera de intimidade. De repente, tudo se dissipara à nossa volta. Só restáramos Raquel eeu.Quase como numa paródia à meia-noite, o relógio do campanário emitiu as doze badaladas do meio-dia.- Na manhã do meu aniversário.Aguardou que soasse a última, quase ensurdecedora sobreas nossas cabeças.- Que respondeu?- Desentendemo-nos. Julguei que aceitava, quando narealidade recusava.- Tinha lido o documento?- Não. Leu aquela carta. Mais tarde, na mesma manhã.Avistei o breque dos Kendall, com o cocheiro, diante daigreja. Quando viu a filha do patrão à entrada, o homem ergueu o chicote e desceu do banco. Louise apertou a capa à suavolta e puxou o capuz para a fronte.- Nesse caso, ela não perdeu muito tempo com a sua leitura e procurar o meu pai.- Não compreendia bem as expressões empregadas.- Mas ficou ciente quando se retirou de Pelyn. Lembro-me perfeitamente de o meu pai lhe dizer, ao despedirmo-nos:??A cláusula sobre um novo casamento poderá parecer-lhe umpouco dura. Deve continuar viúva, se deseja conservar a fortuna.,? Ela sorriu e respondeu: ??Corresponde inteiramente aomeu desejo.??O cocheiro acercou-se com o guarda-chuva aberto antesque Louise abandonasse a protecção da entrada da igreja, poisprincipiara mais um aguaceiro.- Essa cláusula foi introduzida para salvaguarda da herança - expliquei - e impedir o seu esbanjamento por um estranho. Se ela casasse comigo, não se aplicaria.- Aí é que te enganas. Se vocês casassem, voltava tudo para o teu poder. Aposto que não tinhas pensado nisso.- E daí? - argumentei. - Partilharia o dinheiro até aoúltimo péni com ela. Não acredito que recusasse casar comigodevido à cláusula que referes. É isso que pretendes sugerir?Embora o capuz dissimulasse o rosto, os olhos cinzentosobservaram-me com uma expressão grave.- Uma mulher casada não pode enviar dinheiro do marido para fora do país, nem regressar à terra de origem. Não sugiro coisa alguma.O cocheiro levou dois dedos ao chapéu e segurou o guarda-chuva sobre a cabeça dela. Segui-a até ao breque e ajudei-aa instalar-se.- Não te ajudei em nada e julgas-me dura e implacável -- murmurou. - Às vezes, uma mulher vê com mais clareza queum homem. Perdoa-me se te magoei. Apenas desejo que voltesa ser como outrora. - Virou-se para o cocheiro. - Voltemospara Pelyn, Thomas.

Mantive-me imóvel por uns momentos e fui sentar-me napequena sala da Rose and Crown. Louise falara verdade ao dizer que não me ajudara. Procurara-a em busca de conforto enão o obtivera. Apenas factos frios e duros, alterados até àdistorção. Tudo o que dissera se revestiria de sentido na mentedeum advogado.Eu sabia perfeitamente como o meu padrinho pesava ascoisas na sua balança, sem permitir a mínima interferência docoração. A filha não podia evitar a herança da sua visão rigorosa e lógica das situações.Eu estava mais bem inteirado do que ela do que ocorreraentre mim e Raquel. Rainaldi dissera que ela era uma mulherimpulsiva. Em virtude de um desses impulsos, permitira queeu a amasse. E, graças a outro, repelira-me.Ambrose achava-se ao corrente disso. E compreendera.Tanto para ele como para mim, não poderia existir outra mulher ou outra esposa.Conservei-me longamente na sala fria da Rose and Crown.O dono serviu-me carneiro assado frio e cerveja, embora nãome apetecesse comer. Mais tarde, encaminhei-me para o cais eolhei pensativamente a ondulação que se desfazia nos degrausde pedra. As embarcações de pesca oscilavam nas suas amarras, e um homem despejava com uma lata a água do fundoda sua.As nuvens ameaçadoras continuavam a sulcar o céu, cadavez mais baixas, e as árvores da margem oposta achavam-seenvoltas em neblina. Se eu pretendia regressar a casa semficarencharcado até aos ossos e o Cigano sem um resfriado, convinha que o fizesse antes que o tempo se agravasse. Agora, nãose via virtualmente vivalma nas ruas. Subi para a sela,enveredei pela encosta da colina, alcancei Four Turnings e seguipelaampla alameda. Cerca de uma centena de metros adiante, o cavalo começou a coxear, pelo que decidi apear-me e levá-lo pelas rédeas, para não o sobrecarregar com o meu peso.O vapor desprendia-se do vale pantanoso numa nuvembranca e apercebi-me de súbito, com um arrepio, de que estivera longamente exposto ao frio, desde que me sentara naigreja com Louise e depois na sala sem aquecimento da Roseand Crown. Decididamente, vivia num mundo diferente do davéspera.Prossegui em frente pelo caminho que tomara com Raquel.As nossas pegadas ainda eram visíveis, onde estivéramos a colher primaveras. O percurso parecia interminável, sobretudocom o Cigano a coxear, e a chuva introduzia-se no colarinhoda minha camisa para me enregelar as costas.Quando cheguei a casa, sentia-me demasiado cansado paradar as boas-tardes a Wellington e limitei-me a confiar-lhe asrédeas sem uma palavra, deixando-o a olhar-me com perplexidade. Depois do que se passara na véspera, só me apetecia beber água, mas como tinha frio e estava encharcado considereique um pouco de brande contribuiria para me restituir partedo calor perdido. Assim, entrei na sala de jantar, onde Johnpunha a mesa. Pedi-lhe que fosse buscar um cálice e, enquanto

não reaparecia, vi que havia três talheres. Quando regressou,perguntei:- Temos convidados?- Miss Pascoe, que está cá desde a uma hora. A senhorapassou por lá da parte da manhã, pouco depois de o senhorsair, e voltou com ela. Veio para ficar.- Miss Pascoe veio para ficar? - estranhei.- Sim, senhor. Miss Mary, a que ensina catecismo aos domingos. Temos estado atarefados a preparar-lhe o quarto cor-de-rosa. Ela e a senhora encontram-se no boudoir neste momento.Continuou a pôr a mesa e eu dirigi-me ao primeiro piso,sem me preocupar mais com o brande. Havia um bilhete coma letra de Raquel, na mesa do meu quarto. Abri-o e verifiqueique não continha qualquer forma de endereço nem data.??Pedi à Mary Pascoe que ficasse comigo para me fazercompanhia. Depois do que aconteceu ontem, não querocontinuar sozinha contigo. Podes ir ter connosco aoboudoir, se quiseres, antes e após o jantar. Fico-te gratase revelares um pouco de cortesia. Raquel."Ela não podia estar a exprimir-se com sinceridade. Aquilonão podia ser verdade. Quantas vezes nos tínhamos rido à socapa das filhas dos Pascoe, e muito em particular dalogorreicaMary, uma edição mais jovem, mas não menos fastidiosa, damãe. Eu admitia que Raquel a convidasse para nos divertirmosà sua custa, porém os termos do breve bilhete não permitiamdepreender que a situação contivesse a menor parcela de divertimento.Assomei ao corredor e vi que a porta do quarto cor-de-rosa estava aberta. Não havia engano possível. Aproximei-mee deparou-se-me a lareira acesa, roupas e diversos objectos deuso pessoal. Ao mesmo tempo, detectei vozes na suite de Raquel. Era, pois, aquele o meu castigo. Mary Pascoe fora defacto convidada para estabelecer uma divisão entre mim e aminha prima, a fim de não podermos voltar a estar juntos.A minha primeira reacção consistiu num acesso de cóleraque quase me impeliu a puxar a rapariga pelo braço e conceder-lhe cinco minutos para desaparecer daquela casa. Como seatrevera Raquel a convidá-la, graças a um pretexto tão inconcebível e insultuoso? Estaria, por conseguinte, condenadoa suportar a presença de Mary Pascoe na biblioteca, na sala deestar, no boudoir, juntamente com a sua interminável loquacidade?Avancei para o boudoir, com a roupa encharcada, poucodisposto a perder tempo com a substituição por outra menosdesconfortável. Raquel sentava-se na cadeira habitual, comMary Pascoe a seu lado no banco, concentradas num pesadovolume de ilustrações de jardins italianos.- Ah, estás de volta? - proferiu a primeira. - Escolhesteum dia pouco convidativo para passear a cavalo. A carruagemquase foi varrida para fora da estrada pelo vento, quandovisitei a reitoria. Como vês, temos a sorte de contar a Mary comohóspede. Já se instalou e estou encantada com a sua presença.A visada emitiu uma breve risada aguda.

- Fiquei tão excitada, quando a sua prima me foi buscar,Mister Ashley! Deixei as minhas irmãs verdes de inveja. Confesso que me custa a crer que estou aqui. E como é agradávelesta atmosfera do boudoir! Ainda mais do que lá em baixo.A sua prima diz que costumam passar os serões nesta sala. Jogam cribbagel? Eu adoro. Se não sabem jogar, ensino-lhes.- O Philip não aprecia os jogos de azar - informou Raquel. - Prefere estar sentado e fumar em silêncio. Jogaremosnós, Mary.Volveu os olhos para mim, por cima da cabeça da rapariga.Não, não se tratava de uma brincadeira. A expressão do olharindicava que procedera com particular deliberação.- Posso falar contigo a sós? - perguntei com certa brusquidão.- Não vejo a menor necessidade. Podes dizer o que quiseres diante da Mary.- Não me quero intrometer. - A filha do vigário pôs-sede pé com prontidão. - Vou para o meu quarto.- Deixe a porta aberta, para me ouvir se eu a chama -- recomendou Raquel, com o olhar hostil cravado em mim.- Com certeza, Mistress Ashley.- Porque fizeste isto? - inquiri, mal nos encontrámos sós.- Sabe-lo perfeitamente. Expliquei-o no bilhete.' Jogo de cartas de três ou quatro pessoas. (N. do T.)- Quanto tempo vai ela ficar?- O que eu desejar.- Não aguentas a sua companhia mais de vinte e quatrohoras. Não tardará a endoidecer-te, e a mim também.- Enganas-te. Mary Pascoe é uma moça atenciosa e inofensiva. Não falarei com ela se não me apetecer conversar.Aomenos, sentirei uma certa segurança nesta casa. De qualquermodo, as coisas não podiam continuar como estavam, sobretudo após a tua explosão à mesa. O teu padrinho disse-o poroutras palavras ao retirar-se.- Que disse exactamente?- Que circulavam rumores indesejáveis acerca da minhapermanência aqui, os quais se agravariam com as tuas ideiasmatrimoniais a meu respeito. Quem sabe a quantas pessoas asterás revelado... A presença da Mary Pascoe porá termo a ulteriores mexericos. Esforçar-me-ei por providenciar nessesentido.Seria possível que a minha atitude da véspera tivesse originado uma alteração tão profunda, um antagonismo tão horrível?- Isto não pode ser decidido numa conversa momentâneae com as portas abertas. Suplico-te que me deixes falarcontigoa sós, depois do jantar, quando ela recolher ao quarto.- Ameaçaste-me, ontem à noite. Uma vez foi suficiente.De resto, não há nada a esclarecer. Podes retirar-te, sequiseres. Ou ficar e jogar cribbage com a Mary. - E baixou osolhos para o livro de jardinagem.Abandonei o boudoir, consciente de que não havia maisnada a fazer. Era, pois, aquele o meu castigo pelo breve momento da véspera, em que lhe rodeara o

pescoço com os dedos. O acto, instantaneamente deplorado, era imperdoável.A recompensa achava-se bem clara, na minha frente. A cóleraabandonou-me subitamente, substituída por uma sensação dedesespero. Que fizera eu, meu Deus?Poucas horas antes, tínhamos sido felizes. A euforia davéspera do meu aniversário desaparecera, dissipada pelo meugesto irreflectido. Quando me encontrava na Rose andCrown, admitira a possibilidade de a relutância de Raquel emse tornar minha esposa se atenuar e extinguir mesmo, transcorridas algumas semanas. E, se tal não fosse possível,paciência, desde que pudéssemos estar juntos, apaixonados, como namadrugada do dia dos meus anos. Quase me sentira esperançado quando regressava a casa. No entanto, a presença da estranha, de uma terceira pessoa, comprometia tudo de uma forma virtualmente irremediável. Fechei-me no quarto e, poucodepois, ouvi as vozes delas aproximarem-se da escada e o ruge-ruge dos vestidos nos degraus. Era mais tarde do que eusupunha, e já deviam estar vestidas para jantar. Reconheci quenão conseguiria enfrentá-las. Teriam de comer sós. De resto,eu não tinha apetite e percorria-me um frio desagradável. Talvez estivesse a chocar um resfriado, e conviria que me conservasse no quarto. Toquei a sineta e indiquei a John que apresentasse as minhas desculpas, mas não compareceria à mesa eiria deitar-me imediatamente. Como calculava, a minha decisão suscitou certa preocupação entre o pessoal, e Seecombenão tardou a aparecer com uma expressão apreensiva.- Não se sente bem, Mister Philip? Permita-me que sugira um banho de mostarda e um grogue bem quente. É o resultado de andar por aí com este tempo.- Não é preciso nada, obrigado. Estou apenas cansado.- Convinha que comesse alguma coisa, senhor. Temos vitela assada e tarte de maçã. As senhoras encontram-se na salade estar à sua espera.- Não, Seecombe. Nada. A noite passada, dormi mal. Demanhã, estarei fino.- Vou informar a senhora. Imagino como ficará preocupada.A ideia de permanecer no quarto talvez me proporcionassea oportunidade de ver Raquel a sós, pois havia apossibilidadede, após o jantar, aparecer para se inteirar do meu estado.Despi-me e enfiei-me na cama. Era óbvio que de facto meresfriara. Os lençóis pareciam húmidos de tão frios, peloqueos retirei e introduzi-me entre os cobertores. Mais tarde,ouvi-as entrar na sala de jantar e, após um longo intervalo, denovona de estar, sempre imersas em animado diálogo.Pouco depois das oito, apercebi-me de que subiam a escada. Soergui-me na cama e coloquei o casaco por cima dos ombros. Ela talvez escolhesse aquele momento para me visitar.Apesar dos cobertores, os arrepios de frio persistiam, agoraacompanhados de uma forte dor de cabeça.Aguardei com ansiedade, mas ela não apareceu. Calculeique se encontravam no boudoir. Ouvi as nove, dez e onze badaladas no campanário. Convenci-me então definitivamente deque não viria. Ignorar-me devia constituir a sequência do meu

castigo.Levantei-me e assomei ao corredor. Elas haviam recolhidoaos respectivos aposentos, pois ouvi Mary Pascoe mover-se noquarto cor-de-rosa e, de vez em quando, uma tosse seca irritante para aclarar a garganta, mais um hábito que adquirira damãe.Acerquei-me do quarto de Raquel, pousei a mão no puxador e fi-lo girar. A porta não se abriu. Ela trancara-a. Batilevemente. Não obtive resposta. Regressei lentamente ao meuquarto e deitei-me, frio como o gelo.Recordo-me de me vestir pela manhã, mas não de Johnaparecer para me chamar ou de qualquer outra coisa, à parte arigidez no pescoço e dor de cabeça excruciante. Fui sentar-meatrás da secretária, no escritório. Não escrevi qualquer cartanem recebi ninguém. Pouco depois do meio-dia, Seecombeanunciou-me que as senhoras estavam à minha espera para almoçar. Quando repliquei que não tencionava comer, aproximou-se e olhou-me com ar apreensivo.- Está doente, Mister Philip? Que tem?- Não sei.Pegou-me na mão por um momento. Em seguida, afastou-se e ouvi-o cruzar o pátio apressadamente.Momentos volvidos, a porta abriu-se de novo, para darpassagem a Raquel, acompanhada de Mary Pascoe e do mordomo.- O Seecombe diz que estás doente - proferiu a primeira. - Que se passa realmente?Olhei-a em silêncio. Nada do que acontecia tinha a menorrelação com a realidade. Quase nem me dava conta de que estava no escritório. Julgava-me no meu quarto, a tiritar na cama, como acontecera ao longo de toda a noite.- Quando a mandas para casa? - perguntei em voz débil.- Não farei nada para te molestar. Dou-te a minha palavra dehonra.Pousou-me a mão na fronte, examinou-me os olhos e voltou-se rapidamente para Seecombe.- Chame o John e levem Mister Ashley para a cama. Antes, porém, diga ao Wellington que mande alguém prevenir omédico.Eu só via as faces pálidas e os olhos dela e, por cima doseuombro, deslocada no ambiente, Mary Pascoe, que me fitavacom perplexidade. Em seguida, nada. Apenas a rigidez e a dor.De novo na cama, dei-me conta de que Seecombe baixavaos estores, para mergulhar o quarto na escuridão pela qual euansiava. Era possível que a ausência de luz atenuasse a dorinsuportável. Não conseguia mover a cabeça na almofada, comose os músculos do pescoço estivessem presos num torno. Sentia mão dela na minha e repeti:- Prometo não te molestar. Manda a Marv Pascoe paracasa.- Não fales - advertiu, em voz baixa. - Limita-te a estar quieto e calado.O quarto estava cheio de murmúrios. A porta a abrir-se, afechar-se e a tornar a abrir-se. Passos suaves e arrastados.Nesgas de luz do corredor e sempre o sussurro geral, segundo meparecia, em torno do delírio que decerto me assolava, como se

a casa estivesse repleta de gente, com hóspedes em cada quarto, em número muito superior às capacidades de alojamento,enquanto Raquel se movia entre eles para os distribuir do modo mais apropriado e eu repetia: ??Manda-os embora!??Por fim, descortinei o rosto arredondado do Dr. Gilbert,que me observava através dos óculos. Tudo indicava que também fazia parte dos convidados. Tratara-me da varicela emcriança e não me recordava de o ter voltado a ver senão esporadicamente.- Com que então, foste tomar banho no mar à meia -noite, hem? Podia ter-te dado para pior... - Olhou-me, meneando a cabeça, como se eu fosse um irresponsável, e cofioua barba.Fechei os olhos, por causa da luz, e ouvi Raquel dizer-lhe:- Tenho experiência suficiente deste tipo de febre paranão me enganar. Vi crianças morrer disto em Florença. Ataca aespinha dorsal e depois o cérebro. Faça alguma coisa, porDeus...Afastaram-se e o coro de murmúrios recomeçou, seguidodo som de rodas no caminho de acesso, indicativo da partidade uma carruagem. Mais tarde, distingui uma respiração pertodas cortinas da cama. Compreendi então o que acontecera.Raquel seguira para Bodmin, a fim de tomar o transporte paraLondres, e deixara Mary Pascoe em minha casa, para me vigiar. Seecombe e John também se haviam ausentado. Ficaraapenas ela.- Saia, por favor - articulei. - Não preciso de ninguém.Uma mão aproximou-se para pousar na minha fronte.A mão de Mary Pascoe, que repeli. Mas insistiu e gritei-lheque me deixasse em paz. No entanto, exerceu pressão, fria edura como o aço, para me transmitir a sensação glacial ao rosto, imobilizando-me como um prisioneiro. De súbito, ouviRaquel sussurrar-me ao ouvido:- Não te movas, querido. Isto alivia-te a cabeça. Melhorarás, a pouco e pouco.Tentei desviar-me e não consegui. Mas afinal não partirapara Londres?- Não me deixes - balbuciei. - Promete que não medeixarás.- Prometo. Estarei sempre junto de ti.Descerrei as pálpebras, mas não consegui vê-la, porque oquarto se achava de novo imerso na penumbra. A configuração era diferente da dos aposentos que eu conhecia - longo eestreito como uma cela. A cabeceira da cama rija como o ferro. Havia uma vela acesa algures, atrás de um biombo. Numnicho, na parede oposta, divisei uma madonna ajoelhada.- Raquel... Raquel... - chamei em voz trémula.Ouvi passos apressados, uma porta a abrir-se, e uma mãopousava na minha, enquanto ela murmurava:- Estou contigo.Tornei a fechar os olhos.Encontrava-me numa ponte, junto do Arno, e jurava destruir uma mulher que nunca vira. As águas caudalosas rolavamsob a ponte, e Raquel, a pedinte, acercava-se de mãos vazias.Estava desnuda, com o colar de pérolas em torno do pescoço.

De repente, apontou para o rio, e Ambrose deslizou debaixoda ponte, as mãos unidas sobre o peito. Distanciou-se,arrastado pela corrente, seguido, lenta, majestosamente, as patas erguidas com rigidez, do corpo do cão morto.A primeira coisa de que me apercebi foi que a árvore diante da minha janela estava coberta de folhas. Olhei-a,perplexo.Quando me metera na cama, apenas principiavam a despontar.Era um fenómeno muito estranho. A dor de cabeça desaparecera, assim como o torpor de todo o corpo. Depreendi quedormira muitas horas, possivelmente um dia ou mesmo mais.Uma pessoa perdia a noção do tempo quando adoecia.Afigurava-se-me que vira o Dr. Gilbert diversas vezes, comoutro homem, um desconhecido. Sempre com o quarto mergulhado na penumbra. Agora, havia claridade. Notei uma sensação incómoda nas faces e depreendi que necessitava urgentemente de me barbear. Levei a mão ao queixo e estremeci deincredulidade, pois tinha barba. Fixei o olhar na mão e não mepareceu a minha. Era branca e esguia, com unhas de comprimento invulgar em mim. Voltei a cabeça e vi Raquel sentada,junto da cama - na sua própria cadeira do boudoir. Não sedeu conta de que a observava. Concentrava-se num trabalhode renda e usava um roupão que não lhe conhecia - preto,como todo o seu vestuário, mas de mangas mais curtas, acimados cotovelos, como que para se defender do calor. O quartoencontrar-se-ia assim tão quente? As janelas estavam abertas.E a lareira apagada!Tornei a levar a mão ao queixo. A barba tinha um toqueagradável. De súbito, soltei uma gargalhada e ela ergueu a cabeça.- Philip... - murmurou.Acto contínuo, ajoelhou a meu lado e rodeou-me com osbraços.- Deixei crescer a barba - articulei.Voltei a rir, incompreensivelmente divertido com a situação, e a hilaridade transformou-se em tosse. Sem perda de uminstante, Raquel aproximou um copo dos meus lábios e obrigou-me a beber parte do conteúdo, após o que me reclinoucuidadosamente na almofada.O gesto fez vibrar uma corda na minha memória. Duranteum longo lapso de tempo, houvera uma mão, com um copo,que me obrigava a beber, no meio dos meus obscuros sonhos.Eu atribuíra-a a Mary Pascoe e repelira-a. Agora, conservavao olhar fixo em Raquel e estendia-lhe a minha. Segurou-a eexerceu pressão. Fiz deslizar o polegar ao longo dos vasoscapilares azuis que se salientavam sempre no dorso da sua epousei-o nos anéis. Mantivemo-nos assim em silêncio por longos minutos.- Sempre a mandaste para casa? - acabei por perguntar.- A quem?- A quem havia de ser? Mary Pascoe.Ouvi-a conter o alento e vi que o sorriso desaparecera,substituído por uma expressão grave.- Partiu há cinco semanas - murmurou. - Mas deixemos isso agora. Tens sede? Preparei-te uma bebida fresca de

limas, vindas de Londres.Ingeri alguns sorvos do refresco, que tinha sabor agradável em comparação com o medicamento que ela me obrigaraa tomar.- Devo ter estado doente - admiti.- Ias morrendo.Fez menção de se retirar, mas opus-me. Roguei-lhe que medescrevesse os pormenores. Acudia-me a curiosidade de alguém que dormira durante anos e despertava para descobrirque o mundo seguira a sua marcha natural sem ele.- Se queres que eu reviva todas estas semanas de ansiedade, estou disposta a satisfazer-te a curiosidade - explicou.- De contrário, não o farei. Sim, estiveste muito doente. Contenta-te com isto para já.- Que tive?- Não morro de admiração pelos vossos médicos ingleses.No continente, chamamos-lhe meningite, que parece ser des conhecida aqui. O facto de continuares vivo pode considerar -se quase um milagre.- O que me salvou?- Creio que foi a tua resistência equina e certas coisas queos obriguei a fazer-te - declarou, com um sorriso, exercendopressão na minha mão. - A punção na espinha dorsal paraextrair o fluído foi apenas uma das mais simples. Além disso,introduziram-te no sistema circulatório um soro a que eleschamaram veneno. O que interessa é que sobreviveste.Recordei-me dos cordiais que ela preparara para alguns caseiros que haviam adoecido ao longo do Inverno e de que adesfrutara, chamando-lhe parteira e boticária.- Como se explica que saibas tanto disso?- Aprendi com a minha mãe. Os Florentinos possuem conhecimentos profundos na matéria.Estas palavras fizeram-me vibrar outra corda da memória,mas não consegui identificá-la. Raciocinar envolvia, por enquanto, um esforço considerável. De momento, contentava-mecom permanecer na cama e a mão de Raquel pousada na minha.- Porque está aquela árvore coberta de folhagem?- É natural na segunda semana de Maio.Custava-me compreender que tivesse estado de cama tantassemanas, além de que não me lembrava dos eventos que mehaviam conduzido a ela. Raquel zangara-se comigo, por razõesque de momento me escapavam, e convidara Mary Pascoe paralhe fazer companhia. Tinha a certeza absoluta de que casáramos na véspera do meu aniversário, embora não me acudisseuma visão clara da igreja, nem da cerimónia, à parte o factodeNick Kendall e Louise serem as únicas testemunhas, sob asvistas de Alice Tabb, a mulher da limpeza. Recordava-me deestar muito feliz. E, de repente, sem qualquer motivo aparente, desesperado. Por último, doente. Mas tudo regressara ànormalidade. Eu não morrera e decorria o mês de Maio.- Acho que tenho forças suficientes para me levantar -- anunciei.- Nem penses. Dentro de uma semana talvez te sentesnuma cadeira, ali ao pé da janela, para vermos até que pontoas

pernas aguentam o peso do corpo. Mais tarde, darás um passeio até ao boudoir. Lá para o fim do mês, ajudar-te-emos adescer a escada, para te sentares ao ar livre. Veremos.Com efeito, a sequência das minhas melhoras correspondeu às previsões dela. Nunca me sentira tão incapacitado como na primeira vez em que me sentei na borda da cama e pousei os pés no chão. O quarto começou a oscilar à minha volta.Seecombe e John ladearam-me, enquanto me considerava tãofraco como um recém-nascido.- Com a breca, minha senhora, ele cresceu! - exclamouo mordomo, com uma consternação tão profunda que não pude conter uma gargalhada.Instantes depois, via-me no espelho, magro e pálido, debarba castanha, como um apóstolo.- Estou quase tentado a percorrer o distrito como pregador oficial da doutrina de Cristo - resmunguei. - Tenho acerteza de que converteria milhares de almas. - Voltei-me para Raquel. - Que te parece?- Prefiro-te de cara rapada - respondeu, gravemente.- Traz-me os apetrechos de barbear, John.No entanto, no final da operação, pressenti que perderaparte da dignidade e ficara de novo reduzido à condição de colegial.Aqueles dias de convalescença foram na verdade agradáveis. Raquel encontrava-se sempre a meu lado. Conversávamospouco, porque descobri que isso me cansava mais do que tudoo resto e produzia indícios da temível dor de cabeça. O queme agradava em particular era sentar-me junto da janela abertae assistir às evoluções dos cavalos, que Wellington exercitavano relvado. Quando as pernas começaram a revelar maior firmeza, transferi-me para o boudoir, onde tomávamos as refeições,sob as vistas de minha prima, que me cuidava como a enfermeiradiplomada mais experiente. Uma ocasião, observei-lhe que seria a única culpada se estivesse destinada a ocupar-se de ummarido enfermo no resto da vida. Olhou-me com uma expressão estranha e pareceu na iminência de replicar, masconteve-see mudou de assunto.Recordava-me de que, por qualquer razão de momentopouco clara, o nosso enlace fora ocultado ao pessoal da casa,porventura para deixar escoarem-se doze meses desde a mortede Ambrose. Talvez ela receasse que me mostrasse indiscretodiante de Seecombe, pelo que me abstive de insistir. Dentro deum par de meses, poderíamos anunciá-lo ao mundo e, até lá,tentaria conter a impaciência. Creio que cada dia a amava maise ela revelava-se atenciosa e terna como nunca nos distantesmeses de Inverno.A primeira vez que desci a escada e saí para o ar livre fiquei surpreendido com o que fora feito durante a minha doença. O caminho pavimentado estava concluído, e o local ondese situaria o novo jardim achava-se devidamente preparado.De momento, ainda havia alguns operários que procediam aostrabalhos finais, e a larga escavação apresentava um aspectoalgo ominoso até que se procedesse à plantação definitiva.Tamlyn escoltou-me com orgulho, na visita ao jardim antigo, onde se viam numerosas flores, num variegado conjunto

de cores.- Teremos de transferir algumas, antes da próxima época -- esclareceu. - Ao ritmo a que se reproduzem, as sementes podem ser impelidas pelo vento e matar o gado. - Estendeu amão para um dos laburnos, plantas a que se referia, e indicouas vagens cheias de pequenas sementes. - Um fulano do outro lado de Saint Austell morreu por ter comido várias.Lembrei-me subitamente da árvore no pequeno pátio davilla italiana e da mulher que pegara na vassoura para varrerasvagens do chão.- Havia uma planta destas em Florença, onde MistressAshley vivia - declarei.- Sim? Bem, segundo me disseram, quase todas as plantasse dão bem naquele clima. Deve ser um lugar maravilhoso.Compreendo o desejo da senhora de voltar para lá.- Não creio que acalente essa intenção.- Oxalá, embora não seja o que me constou. Parece queaguardava que o senhor se restabelecesse para regressar.Reflecti que era incrível o que se podia inventar através demeros mexericos, e decidi que o anúncio do nosso casamentoconstituiria a única maneira de lhes pôr termo. Não obstante,hesitava em abordar o assunto com Raquel. Tinha a vaga ideiade que, no passado, se registara uma divergência a esserespeito, que a irritara.Naquela tarde, quando nos sentávamos no boudoir e eu tomava a habitual tisana, em conformidade com o hábito quecontraíra, antes de me deitar, aventurei-me a dizer:- Circulam novos rumores.- Acerca de quê, desta vez?- Da tua intenção de voltar para Florença.Não respondeu imediatamente e tornou a baixar os olhospara o trabalho de renda.- Há muito tempo para decidir essas coisas - acabou porreferir. - Primeiro, tens de recuperar totalmente a saúde eenergias.Fitei-a, intrigado. Afinal, Tamlyn não estava totalmenteequivocado. A ideia de regressar a Florença pairava num recanto da mente dela.- Já vendeste a villa?- insisti.- Ainda não, nem faço tenções disso ou mesmo de a alugar. Agora que as coisas se alteraram, disponho de meios paraa manter.Não repliquei. Embora não quisesse contrariá-la, a perspectiva de ter duas residências não me sorria particularmente.Na realidade, detestava a própria imagem da villa que se mantinha bem nítida no espírito e supunha que Raquel tambémacabara por odiar.- Queres dizer que quererias passar lá o Inverno? - perguntei, por fim.- É possível, ou a parte final do Verão. Mas por ora nãomerece a pena preocuparmo-nos com isso.- Tenho estado inactivo por muito tempo. Acho que nãodeixaria a propriedade sem assistência durante o Inverno, nemgostaria de me ausentar.

- Acredito. Com efeito, eu própria não partiria, a menosque ficasses a cuidar de tudo. Poderias visitar-me naPrimaverae eu mostrar-te-ia Florença.A doença devia ter-me tornado de compreensão lenta,pois nada do que ela dizia se revestia do menor sentido ousensatez.- Visitar-te? É assim que sugeres que passemos a viver,separados durante longos meses de cada vez?Pousou o trabalho e olhou-me. A expressão constituía ummisto de ansiedade e impaciência.- Escuta, Philip querido. Como disse, não desejo abordaro futuro neste momento. Acabas de sair de uma doença grave,perigosa mesmo, e afigura-se-me desaconselhável planear ascoisas com muita antecedência. Prometo não te abandonar antes do teu restabelecimento total.- Mas que necessidade tens de partir? Agora, pertencesaqui. É este o teu lar.- Também tenho a villa, muitos amigos e uma vida, emItália, diferente desta, bem sei, mas a que estou acostumada.Encontro-me em Inglaterra há oito meses e começo a ansiarpor voltar a mudar de ares. Sê razoável e tenta compreender.- Talvez esteja a ser egoísta - concedi. - Não tinha pensado nesse aspecto da questão. - Precisava de me habituarà ideia de que ela desejaria dividir o seu tempo entre os doispaíses, em cuja eventualidade eu teria de fazer o mesmo e começar a procurar um indivíduo de confiança para dirigir as actividades da propriedade. A hipótese de nos separarmos era,evidentemente, inadmissível. - O meu padrinho deve conhecer alguém - acrescentei na sequência do raciocínio.- Alguém para quê?- Para se ocupar disto, durante a nossa ausência.- Não me parece necessário. Duvido que te ausentes pormais de algumas semanas. Em todo o caso, talvez te apeteça ficar mais tempo. Florença é admirável na Primavera.- Ao diabo com a Primavera! - bradei. - Acompanhar-te-ei na data que decidires, qualquer que seja.A ansiedade e a impaciência reapareceram no rosto dela.- Deixemos isso por agora. Passa das nove e nunca te deitaste tão tarde. Queres que chame o John, ou consegues desembaraçar-te sozinho?- Não chames ninguém. - Levantei-me da cadeira comlentidão, pois ainda sentia os membros incomodativamentefracos, aproximei-me dela, ajoelhei e rodeei-a com os braços.- Contigo tão perto, custa-me suportar a solidão do meuquarto. Não poderemos anunciar-lhes em breve?- Anunciar o quê?- Que somos casados.Estremeceu levemente e permaneceu rígida em seguida.Dir-se-ia que se convertera numa estátua.- Meu Deus... - murmurou. Por fim, pousou as mãosnos meus ombros e olhou-me com intensidade. - Que queresdizer com isso, Philip?Senti um latejar algures na cabeça, como um eco da dorque me flagelara durante semanas. Acentuou-se gradualmente,acompanhado de uma impressão de medo.

- Se informarmos o pessoal, poderei ficar contigo, porquesomos casados e... - Interrompi-me ao ver-lhe a expressãodos olhos.- Mas nós não somos casados, Philip querido.Pareceu-me que algo explodia dentro do meu crânio.- É claro que somos. Aconteceu no dia do meu aniversário. Não acredito que te esquecesses.Mas quando acontecera? Em que igreja? Quem fora o sacerdote celebrante? O latejar intensificou-se e vi as paredesemóveis oscilar à minha volta.- Diz-me que é verdade - urgi.Compreendi, de súbito, que se tratava de uma fantasia todaa felicidade que me pertencera na imaginação das últimas semanas. O sonho terminara.Afundei a cabeça no seu regaço, sacudido por soluços. Aslágrimas nunca me tinham acudido com tanta facilidade, nemmesmo em criança. Raquel acariciava-me a cabeça, sem proferir palavra. Por fim, consegui dominar a comoção e reclinei-me na cadeira, exausto. Ela trouxe-me algo para beber e sentou-se no banco junto de mim. As sombras do crepúsculoestival pairavam em redor. Os morcegos emergiam dos esconderijos entre as vigas do telhado e descreviam círculos dianteda janela.- Era preferível que me tivesses deixado morrer - murmurei.Suspirou e pousou-me a mão na face.- Se falas assim, também me destróis. Sentes-te infelizagora, porque ainda estás fraco. Mais tarde, quando recuperares as forças, nada disto te parecerá importante. Reatarás astuas actividades normais. Poderás nadar na baía ou passear nobarco.O tom da sua voz indicou-me que tentava convencer-se asi própria e não a mim.¨ - E que mais? - perguntei, agastado.- Sabes perfeitamente que és feliz aqui. Tudo isto representa a tua vida, e assim continuará a ser. Ofereceste-me apropriedade, mas considerá-la-ei sempre tua.- Queres dizer que trocaremos correspondência entre aItália e a Inglaterra, mês após mês, ao longo do ano.Dir-te-ei:??Querida Raquel, as camélias estão em flor." E tu responderás: "Querido Philip, alegra-me sabê-lo. O meu roseiral também está a desabrochar satisfatoriamente.," Será esse o nossofuturo?Imaginei-me à porta de casa, numa manhã após o pequeno-almoço, à espera do rapaz com o correio, perfeitamenteciente de que não haveria carta alguma e porventura apenasuma factura de Bodmin.- É natural que eu venha todos os anos pelo Verão, parame certificar de que tudo corre bem - aventurou.- Como as andorinhas, que só aparecem numa época doano, na Primavera, e partem na primeira semana de Setembro -- comentei.- Já sugeri que me visitasses na Primavera. Há muitas coisas que te agradarão em Itália. Só lá estiveste uma vez, e emcircunstâncias especiais. De resto, conheces muito pouco domundo em geral.

Ela fazia-me pensar numa professora primária que tentavaconvencer um aluno mais renitente. Talvez fosse dessa maneiraque me encarava.- Aquilo que vi levou-me a detestar tudo. Que pretenderias que fizesse? Que visitasse uma igreja ou um museu, deguia turístico na mão? Conversasse com desconhecidos paraenriquecer o meu vocabulário? Prefiro ficar em casa a contemplar a chuva.Exprimia-me com azedume, mas não o podia evitar. Raquel tornou a suspirar, como se tentasse, em vão, procurar umargumento para provar que tudo estava bem.- Volto a dizer que, quando te sentires melhor, mais forte, o futuro terá um aspecto diferente aos teus olhos. Nada sealterou radicalmente do que era. Quanto ao dinheiro... - Deteve-se e olhou-me.- Qual dinheiro?- O da propriedade. Será tudo solucionado da maneiramais satisfatória. Disporás do suficiente para dirigir osnegócios sem prejuízos, enquanto eu levarei o necessário para forado país. Os trâmites estão em estudo neste momento.Podia ficar com tudo, até ao último péni, pela parte queme dizia respeito. Aliás, que tinha tudo aquilo a ver com osmeus sentimentos por ela? Mas ainda não acabara de desfiar oseu rosário.- Deves continuar a promover os melhoramentos que julgares convenientes. Sabes perfeitamente que não me oporei anada, nem precisas de me enviar a relação das despesas, porque confio em ti. De qualquer modo, em caso de dúvida, poderás recorrer ao teu padrinho. Dentro de pouco tempo, tudote parecerá como se encontrava antes de eu vir.A escuridão do crepúsculo acentuara-se e quase não conseguíamos ver-nos.- Acreditas realmente nisso? - perguntei.Não respondeu imediatamente. Procurava uma justificaçãopara a minha existência, a fim de a juntar às que já expusera.No entanto, não havia nenhuma, como ela sabia muito bem.- Tenho de acreditar - declarou, estendendo-me a mão -,de contrário não encontraria paz de espírito.Ao longo dos meses que nos conhecíamos, dera muitasrespostas às perguntas, sérias ou não, que eu lhe fizera. Umashaviam sido acompanhadas de sorrisos ou risadas e outras evasivas, porém todas continham um leve toque feminino a ornamentá-las. Aquela era directa finalmente, proveniente do coração, sem o mínimo desvio. Devia julgar-me feliz, possuidor depaz de espírito. Eu abandonara a terra da fantasia, para elaocupar o meu lugar. Por conseguinte, duas pessoas não podiam partilhar um sonho. Excepto na escuridão, como nos domínios da simulação. Cada figura tornava-se, então, um fantasma.- Volta para lá, se queres, mas não já - propus. - Concede-me mais algumas semanas para reter na memória. Não souum viajante e tu és o meu mundo.Esforçava-se por evitar o futuro e procurar uma evasão.Mas quando a abraçava tudo se modificava - a fé desapareciae, com ela, o primeiro êxtase.Capítulo vigésimo quintoNão voltámos a falar da partida dela. Tratava-se de um papão, relegado para o olvido por ambos. Na sua intenção, eu

tentava mostrar-me despreocupado e ela procedia do mesmomodo para comigo. O Verão chegara e em breve regressei aomeu estado normal - pelo menos, aparentemente -, emborapor vezes a dor de cabeça reaparecesse, não com toda a intensidade, mas incomodativa, repentina e sem motivo plausível.Abstinha-me de tocar no assunto - para quê? Não se devia a esforços físicos excessivos, pois só se manifestava semeentregava a reflexões. Os problemas mais simples apresentadospelos caseiros faziam com que se estabelecesse uma espécie denévoa na minha mente, e achava-me impossibilitado de tomaruma decisão.Na maioria dos casos, porém, acontecia por causa dela. Euolhava-a em silêncio, quando nos sentávamos cá fora, depoisdo jantar, pois o tempo que fazia em Junho permitia que permanecêssemos ao ar livre até tarde, e, de repente, perguntavaamim próprio o que se passava na sua mente, enquanto tomavaa habitual tisana com uma expressão pensativa. Ponderaria, noíntimo, durante quantas semanas, dias ou horas teria de continuar a suportar aquela vida de solidão? Pensaria, com alíviocrescente: "Para a semana, agora que ele se encontra bem, poderei finalmente partir"?A Villa Sangalletti, em Florença, assumia agora, aos meusolhos, outra configuração e atmosfera. Em vez da escuridãoem que a vira imersa na minha única visita, apresentava-se-meprofusamente iluminada, com todas as janelas bem abertas. Osdesconhecidos a quem ela chamava amigos moviam-se de umasala para outra; havia alegria, risadas e murmúrios de conversas animadas. Pairava sobre o local uma espécie de esplendor.Ela detinha-se um momento junto de cada grupo de convidados, sorridente e à vontade, senhora do seu domínio. Eraaquela a vida que conhecia, amava e compreendia. Os mesespassados comigo constituíam um mero interlúdio. Agora, regressaria finalmente ao lar a que pertencia. Imaginei achegada,com Giuseppe e a mulher a escancararem os portões da propriedade, para dar passagem à carrozza e, depois, Raquel apercorrer todos os recantos da villa de que estivera longamente ausente. Muitos dias e noites futuros que já não me pertenceriam.De súbito, pressentia que eu a observava e perguntava:- Que tens, Philip?- Nada - limitava-me a responder.E, quando uma sombra lhe cruzava o rosto - de dúvida,apreensão -, sentia-me como que um peso sobre os seus ombros. Para ela seria preferível que se afastasse de mim. Eutentava consumir as energias, como dantes, na orientação dasactividades da propriedade, nas tarefas comuns do dia-a-dia, masjá não tinham o mesmo significado. E se as terras de Barton setornassem áridas por falta de chuva? Ser-me-ia indiferente.E se o nosso gado conquistasse prémios na feira? Representaria isso uma glória? No ano passado, talvez. Agora, todavia,tratar-se-ia de um triunfo vazio.

Apercebia-me com clareza de que perdia popularidade aosolhos daqueles que me consideravam seu patrão. "Ainda estáfraco, Mister Ashley, depois de uma doença tão prolongada",comentou Billy Rowe, o agricultor de Barton, com um mundode desapontamento na voz. Passava-se o mesmo com todos osoutros. O próprio Seecombe aludiu ao facto.- Não parece estar a restabelecer-se como devia, MisterPhilip. Ainda ontem à noite falámos disso na sala comum."Que se passa com o patrão?", dizia o Tamlyn. "Vejo-o pálidocomo um fantasma e parece alheio a tudo o que o rodeia". Recomendo-lhe um bom tónico pela manhã. Ou mesmo um copo de marsala para revigorar o sangue.- Diz-lhe que se preocupe com o trabalho - retruquei.- Sinto-me perfeitamente bem.A rotina do jantar de domingo, com os Pascoe e os Kendall, ainda não fora reatada, felizmente para mim. Creio que,quando adoeci, Mary Pascoe regressou à reitoria com históriasde que eu enlouquecera. Surpreendi-a a olhar-me dissimuladamente, na igreja, a primeira vez que assisti à missa após adoença. E toda a família me observava com uma espécie de comiseração.O meu padrinho e Louise visitavam-me, assumindo atitudes pouco usuais neles, uma mescla de jovialidade e compaixão, como as dispensadas a uma criança após uma enfermidadeprolongada, e pressenti que haviam sido advertidos para nãoabordar qualquer assunto susceptível de me causar apreensão.Assim, sentávamo-nos na sala como quatro desconhecidos. NickKendall sentia-se desconfortável e arrependido de ter comparecido, embora o dever lho impusesse, enquanto a filha, graçasa um instinto inexplicável possuído pelas mulheres, sabia oque acontecera, mas esforçava-se por não o deixar transparecer. Raquel dominava a situação, como sempre, e mantinha aconversa no ritmo apropriado. A exposição da feira, o iminente casamento da segunda filha dos Pascoe, a temperatura elevada que persistia, a perspectiva de uma remodelação do Governo - tudo isto eram temas fáceis de explorar.Mas, e se falássemos das coisas em que realmente pensávamos?"Abandone a Inglaterra sem demora, antes que se destrua asi e ao rapaz", articularia sem dúvida o meu padrinho."Ama-la mais do que nunca. Noto-o nos teus olhos", istoda parte de Louise."Tenho de os impedir a todo o custo que amargurem oPhilip", de Raquel.E de mim: "Retirem-se e deixem-me só com ela".Ao invés, apegávamo-nos à cortesia e mentíamos. Todosrespirávamos fundo no final das visitas e, enquanto os viaafastarem-se na carruagem, lamentava não poder erigir uma vedação intransponível em volta da propriedade, como nos contosde fadas da infância, para impedir a vinda de importunos e calamidades.Dava-me a impressão, embora não se pronunciasse nessesentido, de que ela planeava os primeiros passos da partida.Surpreendi-a, mais de uma ocasião, a examinar os livros da biblioteca, como costumam fazer as pessoas ao escolherem osvolumes que tencionam levar. Outra vez, vi-a sentada à escrivaninha entretida a pôr os seus documentos pessoais em ordem, enchendo o cesto de papéis de cartas rasgadas e atandoos restantes com fitas coloridas. No entanto, interrompia-se à

minha entrada no boudoir, ia sentar-se na cadeira habitual epegava no trabalho de renda, mas eu não me deixava iludir.Tratava-se na verdade de preparativos para a separação final.Afigurava-se-me que o aposento parecia mais desnudo queno passado. Faltavam pequenas coisas insignificantes. O factofez-me remontar à infância, antes de partir pela primeira vezpara o colégio. Seecombe procedera a uma limpeza geral nomeu quarto de recreio: arrumara os livros e outros objectosque me acompanhariam e separara o resto, que eu não voltariaa utilizar, para as crianças da propriedade. Era como se meprivasse definitivamente de um passado feliz. Agora, partedessa atmosfera pairava no boudoir de Raquel. O xaile, quecostumava achar-se pousado no espaldar da sua cadeira e brilhava pela ausência, tê-lo-ia dado a alguém, porque não o necessitaria num clima mais quente? A caixa de costura, igualmente desaparecida, encontrar-se-ia no fundo de um baú? Porenquanto, não havia sinais de preparação da bagagem. Issoconstituiria o indício final. Passos pesados no sótão, osrapazes a descer a escada com as volumosas caixas. Nessa altura,eu ficaria ciente do pior e aguardaria, resignado ou não, oinevitável desenlace. Outro factor significativo consistia nassuassaídas matinais, coisa que nunca fizera até então. Alegava quetinha de efectuar uma ou outra compra e tratar de assuntos nobanco. Eram explicações plausíveis, embora me parecesse quepara tal bastaria uma única deslocação à aldeia. No entanto,asausências verificaram-se por diversas vezes, até que não mepude conter e observei:- Deves ter muitas compras a efectuar e assuntos a resolver no banco.- São coisas que se atrasaram com a tua doença.- Tens-te encontrado com alguém nas ruas da aldeia?- Não, ninguém em particular... Não, minto. Cruzei-mecom Belinda Pascoe e o cura com o qual vai casar. Mandaram-te cumprimentos.- Mas estiveste ausente toda a tarde - insisti. - Compraste todo o recheio das lojas?- Que curioso e indiscreto me saíste! Não posso utilizar acarruagem quando me apetece, ou receias que canse demasiadoos cavalos?- Porque não vais antes a Bodmin ou a Truro? Encontrarás aí lojas mais bem abastecidas.Reflecti que, se as minhas perguntas a incomodavam, assuas actividades deviam obedecer a alguma intenção inconfessável.Na vez seguinte que pediu a carruagem, Wellington não sefez acompanhar do moço. Este queixava-se de dores nos ouvidos e fui encontrá-lo nos estábulos com uma expressão angustiada.- Pede à senhora que te dê um pouco de um óleo qualquer que tem para esse fim - recomendei-lhe.- Já o fiz, e ela prometeu aplicar-me gotas quando voltasse. Acho que apanhei isto ontem, no cais, onde soprava ventofrio.- Que foste fazer ao cais?- Estivemos muito tempo à espera da senhora, e o Wellington, que ficou à entrada da Rose and Crown, deixou-me irver os barcos no porto.

- Nesse caso, a senhora andou às compras durante toda atarde? - estranhei.- Não, senhor. Estava na sala da Rose and Crown, comosempre.Olhei-o com incredulidade. Raquel na Rose and Crown?Estaria a tomar chá com o dono e a esposa? Por um momento,pensei em aprofundar o interrogatório, mas acabei por mudarde ideias. Era muito possível que o rapaz estivesse a darlargasà imaginação. De qualquer modo, não podia deixar de reconhecer que cada vez me ocultavam mais coisas. Dir-se-ia quetodo o pessoal se unira numa conspiração de silêncio contramim. Estaria Raquel tão ávida de companhia que necessitavade a procurar na aldeia? Consciente da minha aversão às visitas, alugaria a sala da Rose and Crown por uma manhã ouuma tarde e convidaria pessoas para a procurarem aí? Quandoregressou, limitei-me a perguntar-lhe se passara uma tardeagradável, e respondeu que sim.No dia seguinte, não pediu a carruagem. Durante o almoço, declarou que precisava de escrever umas cartas e depoisrecolheu ao boudoir. Por meu turno, informei-a de que tinha deme deslocar a Coombe para falar com o agricultor de lá, o quecorrespondia à verdade. Contudo, continuei em frente, até àaldeia. Era sábado e, em virtude do bom tempo, as ruas achavam-se particularmente concorridas, mas não vi ninguém conhecido. As pessoas de "qualidade", como Seecombe lhes chamava, nunca visitavam a povoação à tarde e jamais ao sábado.Aproximei-me da muralha do porto, perto do cais, e vi alguns rapazes a pescar numa embarcação. Pouco depois, remaram até aos degraus e saltaram para terra. Reconheci um deles:o ajudante do barman na Rose and Crown, que levava quatroou cinco percas de dimensões razoáveis numa cesta.- Nada mau - observei. - São para o jantar?- Não são para mim, mas hão-de recebê-las com agrado,na pousada.- Agora, servem percas com a cidra?- Não, senhor. O peixe é para o cavalheiro da sala. Ontem, servimos-lhe salmão do rio.Um cavalheiro na sala? Extraí algumas moedas de prata daalgibeira.- Espero que te pague bem o trabalho. Aqui tens, para ti.Quem é ele?- Não sei como se chama, mas ouvi dizer que é italiano.Com estas palavras, afastou-se a correr. Consultei o relógio. Passavam alguns minutos das três. O cavalheiro italianodecerto jantaria por volta das cinco. Dirigi-me ao alpendreonde Ambrose guardava a sua embarcação. Puxei-a para a água,saltei para dentro e comecei a remar para o largo, onde aguardei, a curta distância do cais.Havia vários indivíduos que se moviam dos barcos ancorados no canal para terra e vice-versa, mas não repararam emmim ou então tomaram-me por um pescador. Lancei o peso àágua, pousei os remos e concentrei-me na entrada da Rose andCrown. A entrada para o bar situava-se na rua lateral, mas elenão a utilizaria. Se viesse, preferiria a porta principal. Àscinco

menos um quarto, vi a mulher do proprietário emergir da salae olhar em volta, como se procurasse alguém. Aparentemente,o visitante estava atrasado para o jantar e o peixe já seencontraria cozinhado. Ouvi-a dirigir-se a um homem que se achavajunto das embarcações amarradas aos degraus, mas não consegui distinguir as palavras. Ele respondeu algo, virou-se eapontou para o porto. Ela assentiu com uma inclinação de cabeça evoltou para dentro. Por fim, às cinco menos dez, vi um barcoacercar-se do cais. Impelido por um jovem de compleição robusta, tinha todo o aspecto dos que os forasteiros costumavamalugar para percorrer o porto.Descortinei um homem de chapéu de abas largas sentadojunto da popa. Uma vez nos degraus, ele desembarcou, deu algumas moedas ao jovem, após breve discussão, e encaminhou-se para a Rose and Crown. Antes de entrar, fez uma pausa,olhou em redor, como se pretendesse atribuir um preço a tudoo que via, e tirou o chapéu. Por último, transpôs a porta. EraRainaldi.Puxei o peso que fazia de âncora, levei a embarcação parao alpendre, atravessei a aldeia e iniciei o regresso a casa emandamento acelerado. Creio que cobri os seis quilómetros emquarenta minutos. Raquel estava na biblioteca à minha espera.O jantar ainda não fora servido, em virtude do meu atraso.Quando me viu, levantou-se, ansiosa.- Até que enfim! Estava preocupadíssima. Onde estiveste?- A remar, no porto. Faz um tempo excelente para passearna água. Está-se muito melhor aí do que encafuado na Roseand Crown. - A expressão chocada que lhe acudiu aos olhosera tudo o que eu necessitava para a prova definitiva. - Descobri o teu segredo. Não merece a pena continuares a mentir. - Fiz uma pausa, no momento em que Seecombe assomou à porta para perguntar se podia servir o jantar. - Sim,imediatamente. Não mudarei de roupa.Cravei o olhar nela, sem mais uma palavra, e passámos àsala de jantar. O mordomo cumulava-me de atenções por pressentir que havia algo de anormal na atmosfera. Debruçava-sesobre mim como um médico e recomendava-me que provassedeterminadas iguarias.- Exagerou o dispêndio de energias, senhor - asseverou.- Isto assim não pode ser. Ainda acaba por voltar a cair decama.Desviou os olhos para Raquel, em busca de uma confirmação que não surgiu. Mal chegámos ao fim do jantar, em quequase não tocáramos na comida, ela levantou-se e seguiudirectamente para cima. Quando alcançou a porta do boudoir, tê-la-iafechado na minha cara, mas antecipei-me e entrei. A expressãochocada reapareceu-lhe no olhar enquanto se afastava de mime retrocedia em direcção à lareira.- Há quanto tempo está o Rainaldi hospedado na Roseand Crown?- Isso é comigo.- E comigo também. Responde.Creio que compreendeu que não conseguiria dissuadir-meou embalar com novas fábulas, pois capitulou.

- Muito bem. Há duas semanas.- Porque voltou?- Porque lhe pedi. Porque é meu amigo. Porque precisavada sua opinião e, consciente da tua antipatia, não o podiaconvidar a ficar nesta casa.- A opinião para quê?- Não é da tua conta. Pára de te comportares como umacriança e mostra um pouco de compreensão.Congratulava-me por a ver perturbada. Significava que aapanhara em falso.- Pretendes que compreenda as tuas dissimulações? Nãotens parado de me mentir nas duas últimas semanas, e escusasde tentar negá-lo.- Se o fiz, não foi com prazer. Pensei apenas na tua tranquilidade. Odeias o Rainaldi. Se soubesses que me encontravacom ele, esta cena surgiria mais cedo, quando ainda não recuperaras energias suficientes para a enfrentar. Terei devoltara passar pelo mesmo, meu Deus? Primeiro com o Ambrose eagora contigo!Tinha as faces lívidas e tensas, mas era-me impossível determinar se se devia a medo ou cólera. Entretanto, mantinha-me com as costas apoiadas à porta fechada e olhava-a com intensidade.- Sim, odeio o Rainaldi, como o Ambrose o odiava. E comrazão.- Qual?- Está apaixonado por ti. E tem estado desde há anos.- Que incrível disparate... - Pôs-se a percorrer o aposento em vaivém, entre a lareira e a janela, as mãos unidas à suafrente. - É um homem que se manteve sempre a meu lado,em todas as provações. Nunca teceu juízos errados a meu respeito nem tentou ver-me de um modo diferente do que sou.Conhece os meus defeitos e fraquezas e não os condena, aceitando-me por aquilo que valho. Se não me apoiasse ao longodos anos das nossas relações absolutamente platónicas, e deque nada sabes, estaria perdida, sem possibilidade desalvação.O Rainaldi é meu amigo. O meu único amigo.Fez uma pausa e olhou-me com uma expressão de desafio.Tratava-se, sem dúvida, da verdade, ou, pelo menos, tão distorcida na sua mente que assumia esse aspecto. Todavia, nãoinfluía minimamente na minha opinião sobre Rainaldi. Na realidade, ele já possuía parte da sua recompensa, como Raquelacabava de me revelar. O resto surgiria com o tempo. No próximo mês, no próximo ano, mas não deixaria de aparecer. O homem dispunha de um poço de paciência. Porém, eu não; nemAmbrose.- Manda-o embora para a sua terra - sugeri.- Irá, quando for oportuno, mas se eu o necessitar ficará.Quero mesmo prevenir-te de que, se tornas a ameaçar-me, otrago para esta casa, como meu protector.- Não acredito que te atrevesses.- Porque não? A casa é minha.

Eclodia a inevitável batalha. As suas palavras constituíamum desafio que eu não podia enfrentar. O seu cérebro de mulher funcionava de uma maneira diferente do meu. Toda a argumentação era justa, todas as arremetidas contundentes. Só aforça física a podia desarmar. Avancei um passo, mas correupara junto da chaminé e pousou a mão no cordão da sineta.- Deixa-te estar aí, ou chamo o Seecombe. Queres cobrir-te de vergonha diante dele, quando lhe disser que tentasteagredir-me?- Não tencionava agredir-te. - Voltei-me e abri a porta.- Chama-o, se desejares, e explica-lhe tudo o que se passouentre nós. Se vai haver violência e vergonha, que seja emlargaescala.Olhámo-nos com animosidade, em silêncio, por um longomomento. Por último, largou o cordão, mas não me movi. Deolhos marejados, fitou-me e articulou:- Uma mulher não pode sofrer duas vezes. Já passei portudo isto. - Levou a mão à garganta. - Até os dedos em volta do pescoço. Compreendes agora?Desviei os olhos por cima da sua cabeça, para o retrato naparede, onde o rosto juvenil de Ambrose era o meu. Ela vencera ambos.- Sim, compreendo. Se precisas de te encontrar com oRainaldi, chama-o aqui. Prefiro isso a vê-lo clandestinamentena Rose and Crown. - Voltei-lhe as costas e dirigi-me para omeu quarto.No dia seguinte, ele compareceu para jantar. Raquel enviara-me um bilhete à hora do pequeno-almoço, a fim de pedirautorização para o convidar, sem dúvida esquecida da atitudede desafio da véspera ou limitando-se a ignorá-la até nova decisão, com a aparente intenção de restaurar a minha posição.Em resposta, informei que transmitiria as ordens necessárias aWellington para o ir buscar com a carruagem, e o italianochegou às quatro e meia da tarde.Aconteceu encontrar-me, só, na biblioteca, e, graças a umlapso do mordomo, foi introduzido lá e não na sala de estar.Levantei-me e dei-lhe as boas-tardes. Parecia totalmentedescontraído e estendeu-me a mão.- Espero que esteja totalmente restabelecido - proferiu. - Na verdade, acho-o com melhor aspecto do que as circunstâncias me levaram a crer. Todas as informações que recebi a seu respeito eram pessimistas. A Raquel estava muitopreocupada.- Com efeito, sinto-me bem.- A felicidade dos jovens - volveu, com uma expressãosonhadora. - Quanto não vale ter bons pulmões e uma digestão excelente, responsáveis pelo desaparecimento dos traços dadoença em poucas semanas! Aposto que já percorre os camposa cavalo todos os dias. Em contrapartida, nós, a sua prima eeu, mais velhos, precisamos de evitar toda a tensão. Pessoalmente, considero a sesta a meio da tarde essencial para ameia-idade.Indiquei-lhe uma cadeira, que aceitou, para em seguidasorrir, enquanto olhava à sua volta.- Ainda não há alterações. Talvez a Raquel tencione deixar

tudo como está, para criar ambiente. Muito me alegra. Odinheiro pode ser despendido melhor noutras coisas. Ela contou-meque, desde a minha visita anterior, se efectuaram várias obrasna propriedade. Quero vê-las antes de conceder a aprovação.Considero-me uma espécie de administrador, para equilibrar asituação.Puxou de um charuto e acendeu-o, sem parar de sorrir.- Escrevi-lhe uma carta, em Londres, depois de vocêtransferir a posse dos bens, mas a sua doença impediu-me delha enviar. Quase tudo o que continha posso repetir agora nasua presença. Limitava-me a agradecer-lhe, em nome da Raquel, e assegurar que providenciaria para que não ficasse prejudicado com a transferência. Pretendo, de resto, vigiar deperto todas as despesas. - Expeliu uma nuvem de fumo azulado e fixou o olhar no tecto. - Este lustre não foi escolhidocom muito gosto. Em Itália, conseguiria muito melhor. Tenhode recomendar à Raquel que tome nota desses pormenores.Telas de autores conhecidos e mobiliário e acessórios dequalidade constituem bons investimentos. Quando chegar o momentode lhe devolver a propriedade, verificará que duplicámos ovalor.No entanto, isso situa-se num futuro distante. Nessa altura,você decerto já terá filhos. Ela e eu não passaremos de velhosalquebrados em cadeiras de rodas. - Soltou uma gargalhadacondescendente e conservou o sorriso. - A propósito, comoestá a encantadora Miss Louise?Repliquei que estava convencido de que se encontrava bem.Enquanto o observava, com o charuto entre os dedos, reflectiaque tinha mãos assaz delicadas para um homem. Possuíamuma espécie de qualidade feminina que não correspondia aoresto da sua pessoa, e o volumoso anel, no dedo mindinho,achava-se deslocado.- Quando regressa a Florença? - perguntei.- Depende da Raquel - redarguiu, sacudindo a cinza quecaíra no casaco. - Vou voltar para Londres, a fim de arrumaruns negócios em suspenso, e depois sigo para a Itália antesdela, para preparar a villa e o pessoal para o seu regresso, ouespero e viajaremos juntos. Decerto está ao corrente de que pretende tornar a instalar-se lá...- De facto, estou.- Satisfaz-me verificar que não tentou pressioná-la paraque ficasse. Sei que, com a doença, se tornou dependente dela.Por outro lado, a Raquel queria evitar-lhe todo o tipo deamargura. Mas, como lhe vinquei com clareza, você agora éum homem e não um adolescente desamparado. Se porventuranão consegue apoiar-se nas pernas com firmeza, tem de aprender a fazê-lo. Não concorda?- Em absoluto.- As mulheres, em particular a Raquel, procedem sempreao sabor das suas emoções. Nós, homens, mais frequentemente, embora nem sempre, em obediência à razão. Alegra-me verque se tornou uma pessoa sensata. Na Primavera, quando nosvisitar em Florença, terei oportunidade de lhe mostrar algunsdos nossos tesouros históricos. Garanto-lhe que não ficará desapontado. - E tornou a soprar fumo para o tecto.

- Quando diz "nos", emprega o pronome no sentido real,como se a cidade lhe pertencesse, ou trata-se de uma fórmulalegal?- Perdoe-me, mas estou tão habituado a agir em nome daRaquel, mesmo a pensar por ela, de tantas maneiras, que nunca consigo dissociar-me totalmente da ideia, pelo que insistono emprego desse pronome pessoal. Disponho, aliás, de bonsmotivos para crer que virei a fazê-lo de um modo mais íntimo.Mas isso - concluiu com um gesto largo - está nas mãos dosdeuses... Ah, aí a temos!Pôs-se de pé e imitei-o, no momento em que Raquel entrou e lhe deu as boas-vindas em italiano, estendendo a mãopara que a beijasse. Devido a causas indeterminadas - talvezfosse a forma como trocavam olhares e sorrisos durante o jantar -, senti avolumar-se uma espécie de náusea no meu íntimo.A comida que tragava não me sabia a nada. A própria tisana,que ela preparou para os três no final da refeição, tinha umsabor amargo fora do habitual. Deixei-os sentados no jardim esubi ao meu quarto. Ainda não dera meia dúzia de passosquando os ouvi passarem a exprimir-se em italiano. Ocupei acadeira junto da janela, onde permanecera nos primeiros diasde convalescença, com Raquel a meu lado, e foi como se todoo mundo se tivesse tornado maligno. Não logrei reunir coragem para voltar a descer e despedir-me do homem. Ouvi acarruagem deter-se à entrada e partir, pouco depois, sem memover dali. Mais tarde, Raquel subiu a escada e bateu levemente à minha porta. Não respondi. Abriu-a, entrou e pousou-me a mão no ombro.- Que tens agora? - A voz parecia envolta num suspiroprolongado, como se tivesse atingido os limites da paciência.- Ele não podia ter sido mais atencioso e cordial. Que defeitolhe encontraste hoje?- Nenhum.- Fala-me sempre muito bem de ti. Gostava que o ouvisses. Se fosses menos difícil de aturar, menos ciumento...Correu os cortinados, porque começava a escurecer, e o próprio gesto denunciava a impaciência que a dominava. - Tencionas ficar aí encolhido na cadeira até à meia-noite? Em casoafirmativo, envolve-te num cobertor, ou apanhas um resfriado.Quanto a mim, estou exausta e vou-me deitar.Tocou-me levemente na cabeça e retirou-se. Não era umacarícia. O movimento superficial de quem afaga uma criançaque se comportou mal, a pessoa adulta demasiado enfastiadapara insistir em lhe ralhar.Naquela noite, a febre reapareceu. Não com a intensidadeanterior, mas suficiente para me incomodar. De manhã, descobri que não conseguia permanecer de pé com firmeza e, depoisde vomitar, assolado por fortes arrepios, voltei para a cama.Foram chamar o médico, e perguntei a mim próprio se se repetiria o tormento de poucas semanas atrás. Ele diagnosticouqualquer anomalia no fígado e deixou ficar os medicamentosque se lhe afiguraram apropriados. Mas quando Raquel se sentou ao lado da cama, à tarde, pareceu-me que o rosto exibia amesma expressão de desconfiança da véspera. Imaginei o quepensava: "Voltará tudo ao princípio? Estarei condenada a fazer

de enfermeira eternamente?" Mostrou-se mais brusca comigoao dar-me o medicamento, e, quando tive sede, não pedi queme alcançasse o copo, com receio de lhe desagradar.Fazia-se acompanhar de um livro, que não lia, e a sua presença na cadeira à cabeceira da cama dir-se-ia conter uma censura silenciosa.- Se tens alguma coisa para fazer, não percas tempoaqui - acabei por dizer.- Que havia de querer fazer?- Falar com o Rainaldi.- Partiu.A informação produziu-me uma alteração no palpitar docoração. Uma espécie de euforia. A doença foi imediatamenterelegada para segundo plano.- Regressou a Londres?- Não. Embarcou ontem em Plymouth.O meu alívio foi tão intenso que tive de virar o rosto paraolado, a fim de evitar que se apercebesse e ficasse maisirritada.- Supunha que ainda tinha assuntos a resolver em Londres.- Pois tinha, mas decidimos que o podia fazer por correspondência. Aguardam-no outros mais urgentes em Itália. Soube que havia um navio que partia à meia-noite e aproveitou.Estás mais satisfeito?Rainaldi abandonara o país - na verdade, achava-me satisfeito. Mas não com o plural que ela empregara. No fundo, eusabia porque partira: para prevenir o pessoal doméstico davilla para preparar o regresso da dona da casa. Era essa a urgência que o aguardava. As minhas possibilidades de êxito esvaíam-se a passos agigantados.- Quando o seguirás? - perguntei.- Depende de ti.Reconheci para comigo que poderia continuar a fingir-medoente - queixar-me de dores em várias partes do corpo edeixar ao médico o trabalho de determinar uma possível causa.Ganharia assim mais um par de semanas. E depois? A bagagem seguiria para Plymouth, a cama do quarto azul seria coberta como durante todos os anos antes de ela chegar, e silêncio.- Se fosses menos rancoroso e cruel, estes últimos diaspodiam ser felizes - observou com um suspiro.Estaria a ser rancoroso? E cruel? Custava-me a crer. Parecia-me, ao invés, que a atitude hostil lhe pertencia. Nãohaviasolução possível. Procurei-lhe a mão e não a retirou. No entanto, ao beijá-la, continuava a pensar em Rainaldi.Naquela noite, sonhei que me dirigia à laje de granito evoltava a ler a carta que enterrara. O sonho era tão intensoque não se dissipou com o despertar e persistiu durante toda amanhã. Levantei-me e senti-me com forças suficientes paradescer ao piso térreo, como habitualmente, cerca do meio-dia.Por muito que me esforçasse, não conseguia dominar o desejode a ler de novo. Não me recordava do que dizia a respeito deRainaldi. Necessitava de saber, sem margem para dúvidas, oque Ambrose revelava acerca dele. À tarde, Raquel recolheu

ao quarto para descansar e aproveitei para satisfazer acuriosidade. Percorri a passagem empedrada, embora contrariado comigo mesmo pelo que tencionava fazer. Uma vez diante da laje, ajoelhei, escavei a terra com as mãos até sentir ocontactodo porta-moedas, agora pegajoso, porque uma lesma o escolhera para habitação durante o Inverno. Sacudi-a com um piparote e extraí a carta amarrotada. Os dizeres estavam algoapagados, mas perfeitamente legíveis. Li-a do princípio aofim.A primeira parte mais apressadamente, embora fosse estranhoque a doença de Ambrose, devida a uma causa diferente, apresentasse sintomas similares à minha."À medida que os meses se sucediam, apercebi-me deque cada vez se voltava mais para o homem que mencionei em cartas anteriores, um tal Signor Rainaldi, amigoe, segundo creio, advogado dos Sangalletti, a fim de seaconselhar, e não para mim, seu marido. Creio que aama desde longa data, ainda em vida de Sangalletti, e,agora que o estado de espírito dela se modificou, nãoposso afirmar a inexistência de reciprocidade de afecto.Regista-se uma névoa no seu olhar, uma inflexão na voz,quando o nome dele é mencionado, que me desperta amais terrível das suspeitas.Porventura em virtude de ter sido criada por paispouco enérgicos e da vida que se viu obrigada a conhecer antes, e mesmo durante, do primeiro casamento,cada vez me convenço mais de que o seu código de comportamento difere do nosso. Assim, os laços de matrimónio talvez não sejam sagrados. Suspeito (tenho mesmo quase a certeza) de que ela lhe dá dinheiro. Lamentover-me forçado a reconhecer que, actualmente, o vil metal constitui a única via de acesso ao seu coração."Ei-la, a frase que eu não esquecera, e persistia nos meussonhos. Na parte em que o papel estivera dobrado, a letra eraindistinta, até que voltei a detectar o nome "Rainaldi":"Se saio ao terraço e a encontro a conversar com Rainaldi, calam-se subitamente, o que me redobra as suspeitas.Certa vez em que fiquei só com ele, aludiu ao meu testamento, que vira por ocasião do casamento, e comentouque, se morresse, deixaria a minha mulher sem recursos.Achava-me ao corrente do facto e já redigira outro emque corrigia a omissão, o qual assinaria, com as testemunhas exigidas por lei, se me convencesse de que a tendência para o dispêndio desregrado de dinheiro era temporária, e não profundamente enraizada.Quero salientar, a propósito, que o novo documentolhe atribuiria a casa e a propriedade apenas enquanto vivesse, pelo que transitariam para ti por sua morte, com acláusula de que a administração de tudo permanecerianas tuas mãos.Mantém-se por assinar pela razão que acabo de expor.Repara que foi Rainaldi quem me fez perguntas sobre o testamento e chamou a atenção para as omissões.Ela abstém-se de me falar no assunto. Mas trocarão impressões a esse respeito? Que dirão um ao outro quandonão estou presente?

Esta questão do testamento ocorreu em Março. Reconheço que estava adoentado, com dores de cabeça excruciantes, e a abordagem do assunto por parte de Rainaldi pode dever-se ao facto de supor que eu morreria.Talvez fosse isso e não o abordem entre si. Não disponhode meios para o averiguar. Surpreendo-a com frequênciaa olhar-me com uma expressão estranha. E quando aabraço, dá a impressão de que tem medo. Mas de quê oude quem?Há dois dias, e esta é a razão principal da presente,sofri novo acesso febril, como o que me prostrou emMarço. O ataque é repentino. Acodem-me dores e náuseas, que passam rapidamente a uma enorme excitaçãocerebral, a qual me suscita uma tendência irresistível paraa violência, impedindo-me de permanecer de pé. Em seguida, surge um desejo intolerável de dormir, pelo quecaio no chão ou na cama, consoante o lugar onde me encontro. Não me recordo de o meu pai sofrer de nada dogénero. Das dores de cabeça e certa irritação, sem dúvida, mas nunca os outros sintomas.Diz-me o que tudo isto significa, Philip, meu carorapaz, única pessoa no mundo em quem posso confiar,e, se puderes, procura-me. Não digas nada a Nick Kendall. Ou a quem quer que seja. E, sobretudo, não escrevas a responder. Limita-te a vir.Há uma ideia que me domina e não permite um instante de paz. Pretenderão envenenar-me?Ambrose."Desta vez não voltei a guardá-la no porta-moedas. Rasguei-aem numerosos pedaços, que enterrei no chão, em diferentes lugares. Quanto ao porta-moedas, parcialmente apodrecido pelahumidade, parti-o em dois e ocultei-o entre a vegetação dobosque. Por fim, regressei a casa. Afigurou-se-me uma espéciede pós-escrito da carta o facto de que, quando me preparavapara entrar, Seecombe recebia a mala do correio, que um dosrapazes fora buscar à aldeia. Abri-a e, entre as poucasmissivasque se me destinavam, havia uma para Raquel, com o carimbode Plymouth. O endereço achava-se traçado na caligrafia inconfundível de Rainaldi. Creio que, se o mordomo não estivesse presente, a teria confiscado. Assim, limitei-me aindicar-lhe que a entregasse à destinatária.Ironicamente, quando a procurei, um pouco mais tarde, aagressividade parecia ter-se-lhe dissipado, substituída pelaternura de outrora. Estendeu-me os braços, sorridente, e perguntou como me sentia, abstendo-se, porém, de aludir à carta queacabava de receber. Durante o jantar, interroguei-me se o conteúdo teria contribuído para a sua nova atitude e imaginei quese trataria de uma epístola recheada de palavras de amor. Apesar de redigida em italiano, decerto haveria, aqui e ali,termosque eu compreenderia, pois Raquel ensinara-me algumas frasesnaquele idioma. De qualquer modo, ficaria inteirado, atravésda introdução, do grau das relações que mantinham.- Estás muito calado - observou em dado momento.- Sentes-te bem?- Sinto-me - repliquei. - Muito bem. - E baixei os

olhos para o prato, não fosse ler-me o pensamento e depreender o que tencionava fazer.Terminada a refeição, subimos ao boudoir. Ela preparou atisana, como de costume, e pousou as respectivas chávenas namesinha a meu lado. Em cima da escrivaninha encontrava-se acarta de Rainaldi, parcialmente coberta por um lenço. Osmeus olhos foram atraídos para aí, fascinados. Porventura umitaliano, ao escrever à mulher amada, manteria um estilo formal? Ou, ante a perspectiva da separação de algumas semanas,depois de um lauto repasto, voltar-se-ia para a indiscrição epermitir-se-ia a liberdade de derramar amor no papel?- Conservas o olhar fixo num lado da sala, como se vissesum fantasma - acusou Raquel. - Que se passa contigo?- Nada.E, pela primeira vez, menti, enquanto ajoelhava junto dela,fingindo uma urgência de conforto e amor, para que as suasdúvidas se dissipassem e esquecesse a carta e a deixasse emcima da escrivaninha.Mais tarde, depois da meia-noite, quando me convenci deque dormia, ao passar diante da porta do seu quarto everificarque não se filtrava luz pela frincha inferior, voltei aoboudoir.O lenço continuava no mesmo lugar, todavia a carta desaparecera. Inspeccionei a lareira, mas não descortinei vestígios decinzas. Abri a gaveta da escrivaninha e depararam-se-me papéis meticulosamente arrumados e nada mais. Restava apenasum compartimento fechado à chave ao fundo do móvel, ladeado por outros abertos. Puxei do canivete e introduzi a lâminaum pouco acima da fechadura, numa tentativa para alargar oespaço intermédio, o que me permitiu descortinar uma pontade papel branco. Entrei no quarto de Raquel, peguei no molhode chaves da gaveta da mesa-de-cabeceira e experimentei amais pequena. Ajustava-se perfeitamente e a fechadura nãoofereceu resistência. Retirei um sobrescrito, mas verifiqueicom desapontamento que não se tratava da carta de Rainaldi.Continha vagens e sementes, que me deslizaram para a mão ese espalharam pelo chão. Eram muito pequenas e verdes.Olhei-as pensativamente e recordei-me de que vira outrasiguais, assim como as vagens. Pareciam-se muito com as queTamlyn me mostrara no jardim e também cobriam o chão dopátio da Villa Sangalletti, que a mulher de Giuseppe varrera.Tratava-se de sementes de laburno, venenosas para o gado... e para os homens.Tornei a colocar o sobrescrito no compartimento da escrivaninha, que tranquei. Em seguida, guardei o molho de chavesna mesa-de-cabeceira e regressei ao meu quarto, sem olhar para Raquel, que dormia profundamente.Creio que estava mais calmo do que em qualquer outromomento das últimas semanas. Aproximei-me do lavatório e,entre o jarro de água e a bacia, vi os dois frascos de medicamentos que o Dr. Gilbert me prescrevera. Esvaziei-os na janela, peguei no castiçal e desci à cozinha. O pessoal há muitoque se deitara. Em cima da mesa, junto do lava-loiça, encontrava-se o tabuleiro com as duas chávenas de que bebêramos a

tisana. Eu sabia que, a maioria das vezes, John as deixava porlavar até à manhã seguinte, como na realidade voltara aacontecer. O depósito da bebida achava-se bem visível no fundo deambas. Examinei-o à luz da vela e não notei qualquer diferença. Pousei o dedo em cada um - primeiro da chávena dela edepois da minha - e levei-o aos lábios. Existiria uma levedistinção no sabor? Tornava-se difícil determiná-lo. Dava a impressão de que o depósito da minha era ligeiramente mais espesso, mas não o poderia jurar. Por fim, abandonei a cozinha evoltei para o quarto.Despi-me lentamente, imerso em cogitações, e deitei-me.Não me assolava cólera ou medo. Apenas compaixão. Considerava Raquel sem responsabilidade do que fizera, possessa domal. Subjugada pelo homem ao qual não podia resistir, carente, devido ao peso das circunstâncias e de possíveis meios emque se movera no passado, de um sentido sólido da moral, revelava-se capaz, por instinto e impulso, daquele acto final.Euqueria salvá-la de si própria e não sabia como fazê-lo. Tinhaaimpressão de que Ambrose se encontrava a meu lado e eu voltava a viver nele, ou ele em mim. A carta que escrevera e eureduzira a pedaços achava-se agora concretizada.Eu admitia que ela, à sua estranha maneira, amara ambos,mas tornáramo-nos dispensáveis. Qualquer coisa diferente daemoção cega encontrava-se, afinal, na raiz dos seus actos.Talvez fosse duas pessoas, cada uma das quais tinha fases de predominância. Na realidade, não o podia afirmar. Louise diriaque ela fora sempre a segunda. Que, desde o princípio, cadapensamento, cada movimento, se revestia de certa premeditação. Em Florença, com a mãe, após a morte do pai, principiaraentão, ou ainda antes, a maneira de viver? Sangalletti, mortonum duelo, que nunca fora para mim ou para Ambrose nadamais do que uma sombra sem substância, também teria sofrido? Louise não deixaria de se inclinar para a afirmativa.Insistiria em que, desde o primeiro encontro com Ambrose, doisanos atrás, planeara casar com ele, por dinheiro. E quando nãoobtivera o que pretendia, planeara a sua morte. Assim raciocinava a mente legal. E Louise não lera a carta que eu rasgara.Qual seria a sua posição se o tivesse feito?O que uma mulher fez uma vez sem ser detectada, poderepetir com a mesma naturalidade. E desembaraçar-se de maisum fardo.Enfim, a carta fora rasgada, e ela, ou qualquer outra pessoa, não teria possibilidade de se inteirar do conteúdo. Deresto, este último preocupava-me pouco agora. Não me mereciatanta importância como a parte final da que Ambrose escrevera, considerada por Rainaldi, assim como por Nick Kendall, omero produto de um cérebro enfermo. "Ela acabou por sedesmascarar, Raquel, meu tormento."Eu era o único ciente de que essas palavras correspondiamà verdade.Voltava, pois, ao ponto de partida. À ponte junto do Arno,

onde fizera um juramento. Em última análise, um juramentotalvez fosse algo que não podia ser repudiado, tinha de sercumprido no momento oportuno. E esse momento chegara...O dia seguinte era domingo. À semelhança de todos os domingos do passado, desde que ela se instalara em minha casa, acarruagem conduziu-nos à igreja. Fazia um tempo excelente,próprio dos píncaros do Verão. Raquel usava um novo vestidopreto e chapéu de palha e fazia-se acompanhar de um pára-sol.Sorridente, deu os bons-dias a Wellington e a Jim e ajudei-a asubir para o seu lugar. Quando me sentei a seu lado e começámos a atravessar o parque, pousou a mão na minha.Eu pegara-lhe muitas vezes, apaixonado. Sentira a sua delicada pequenez, movera os anéis em torno dos dedos, vira asveias azuladas, tocara nas unhas bem cuidadas. Agora, pousadana minha, observava-a, pela primeira vez, destinada a um fimdiferente. Via-a pegar nas vagens de laburno, extrair assementes, esmagá-las e friccioná-las na palma. Recordei-me de, umaocasião, lhe dizer que tinha umas mãos belas, e ela, com umarisada, replicar que era a primeira pessoa a reconhecê-lo."Têma sua utilidade", acrescentara. "O Ambrose costumava dizer,quando me ocupava do jardim, que eram mãos de operária."Alcançámos a encosta íngreme e o peso concentrou-se nasrodas da retaguarda da carruagem. Raquel tocou-me no ombrocom o seu e murmurou:- Dormi tão profundamente esta noite que nem te ouvisair. - E olhou-me, com um sorriso significativo.Embora me tivesse iludido durante muito tempo, eu sentia-me o maior mentiroso dos dois. Não consegui sequer replicar e, para manter a mentira, segurei-lhe a mão com maisfirmeza e voltei a cabeça para o outro lado.A areia apresentava uma tonalidade dourada na baía ocidental e a água da baixa-mar reflectia os raios solares. Acarruagem enveredou pela alameda que conduzia à aldeia e àigreja.Os sinos repicavam e as pessoas juntavam-se em torno da entrada, à espera de que nos apeássemos e as precedêssemos. Raquelsorria e inclinava-se levemente para todos os lados. Avistámosos Kendall e os Pascoe, além dos vários caseiros, enquanto nosencaminhávamos para o nosso lugar, sob os acordes do órgão.Ajoelhámos em oração por um breve momento. Os rostosafundados nas mãos. "Que estará ela a dizer ao seu deus, seporventura acredita em algum?", pensei. "Agradecer-lhe-á oêxito de todas as suas maquinações? Ou porventura suplicamisericórdia?"Por fim, sentou-se e abriu o livro de orações. A sua expressão era calma e feliz. Eu desejava odiá-la, comoaconteceradurante muitos meses antes de a conhecer. No entanto, somente conseguia experimentar aquela estranha e terrível compaixão.Levantámo-nos quando o vigário entrou, e o serviço religioso começou. Recordo-me perfeitamente do salmo que entoámos naquela manhã: "Aquele que operar o embuste nãohabitará na minha casa; aquele que proferir mentiras não permanecerá à minha vista." Os lábios

dela moviam-se com as palavras, e a voz era suave e baixa. E quando o vigário subiu aopúlpito para pronunciar o sermão, pousou as mãos no regaçoe preparou-se para o escutar, enquanto os olhos, graves e concentrados, se erguiam para contemplar o orador, que principiou a dissertar sobre o tema: "É terrível cair nas mãos doDeus vivo."Os raios solares penetravam pelos vitrais e incidiam nela.Observei os rostos rosados das crianças da aldeia, que bocejavam, ansiosas por que o sermão chegasse ao fim, e moviam ospés com impaciência, aprisionados nas botas dominicais e desejosos de recuperar a liberdade no relvado, descalços, parareatarem as brincadeiras. Lamentei ardentemente, por um breve momento, não poder voltar àquela idade, inocente, comAmbrose, em vez de Raquel, a meu lado."Há uma colina verdejante ao longe, atrás das muralhas deuma cidade." Não sei porque cantámos este hino naquele dia.Talvez tivesse havido algum festival relacionado com as crianças da povoação. As nossas vozes elevavam-se com clareza, eeu não pensava em Jerusalém, como decerto se pretendia demim, mas apenas numa sepultura abandonada no cemitérioprotestante de Florença.Quando o coro se retirou e nos encaminhávamos para asaída, Raquel segredou-me:- Acho que devíamos convidar os Kendall e os Pascoe para jantar, como antigamente. Passou muito tempo desde a última vez, e são capazes de estar ofendidos.Reflecti por um momento e assenti com uma breve inclinação de cabeça. A presença deles ajudaria a transpor o abismoquese cavara entre nós, e, entretida a conversar com osconvidados,habituada ao meu silêncio, ela disporia de poucas oportunidades de olhar para mim e estranhar a minha reserva. À entradada igreja, os Pascoe não necessitaram de insistência por partede Raquel, ao contrário dos Kendall, que opuseram certa resistência.- Terei de os deixar logo após o jantar, mas a carruagemvoltará lá para recolher a Louise - explicou o meu padrinho.- Mister Pascoe tem de celebrar as vésperas - interpôs aesposa do vigário. - Podemos, pois, levá-la.Encetaram animada troca de impressões para coordenar aoperação dos transportes e apercebi-me de que o capataz dosoperários que trabalhavam na construção do caminho empedrado e jardim aquático, aguardava, de chapéu na mão, parafalar comigo.- Queria alguma coisa? - perguntei.- Peço desculpa, Mister Ashley, mas ontem não o encontrei, para o prevenir. Se passar pelo caminho empedrado, nãoutilize a ponte que estamos a construir sobre o novo jardim.- Porquê?- Trata-se de uma estrutura provisória, até procedermos àconsolidação, segunda-feira de manhã. O piso parece sólido,mas não aguentaria o peso de uma pessoa. Se alguém passassepor aí, arriscava-se a cair lá em baixo e fracturar a espinha.- Obrigado. Não me esquecerei.

Verifiquei que os outros tinham chegado a um entendimentoe, como no primeiro domingo, que agora parecia perdido numpassado remoto, separámo-nos em três grupos: Raquel e o meupadrinho seguiram na carruagem deste último e Louise e eu naminha, enquanto os Pascoe subiam para o seu breque. Decertoque a ocorrência se verificara diversas vezes no tempo intermédio, todavia, quando começámos a subir a colina e me apeeipara reduzir o peso, pensei na primeira, cerca de dez mesesatrás, naquele domingo de Setembro. Eu irritara-me com a atitude de Louise, calada e altiva, quase arrogante, e não lheligara a importância devida desde então. Contudo, ela não se mostrara melindrada e continuara a distinguir-me com a suaamizade. Quando chegámos ao topo da colina e tornei a sentar-me a seu lado, perguntei:- Sabias que as sementes do laburno são venenosas?- Sim, ouvi falar disso - admitiu, olhando-me com estranheza. - O gado que as come morre. E as crianças também.porque perguntas? Perdeste reses nas terras de Barton?- Até agora não, mas o Tamlyn sugeriu, o outro dia, quetransferíssemos as árvores da plantação para o campo, por causa do perigo que representa a queda das sementes no chão.- Parece-me uma ideia útil. O meu pai perdeu um cavalo,há anos, devido a um descuido desses. A morte ocorre rapidamente e não há nada a fazer.Interroguei-me sobre como reagiria se lhe falasse da minhadescoberta da noite anterior. Olharia para mim, horrorizada, echamar-me-ia louco? Custava-me a crer. Quase tinha a certezade que acreditaria. No entanto, o lugar não era o mais apropriado, com Wellington e Jim ao alcance das nossas palavras.Voltei-me para trás e vi que as outras carruagens nos seguiam a certa distância.- Preciso falar contigo, Louise. Quando o teu pai se retirar, inventa um pretexto qualquer para ficar.Fitou-me com perplexidade, mas não acrescentei qualqueresclarecimento.Quando Wellington imobilizou a carruagem à entrada decasa, desci e estendi a mão à minha companheira. Enquantoaguardávamos os outros, admiti para comigo que podia perfeitamente ser aquele outro domingo, em Setembro. Raquel sorria como então. Conversava animadamente com o meu padrinho, e afigurou-se-me que tinham enveredado de novo pelapolítica. Naquele domingo, embora me sentisse atraído paraela, era uma estranha para mim. E agora? Julgava conhecê-lademasiado bem - o seu melhor e o pior. Até os motivos dosseus tenebrosos actos, porventura intrigantes para elaprópria,começavam a despir-se do mistério inicial. Já não logravaocultar-me nada, Raquel, o meu tormento...- Parece que voltámos aos bons tempos - declarou quandonos juntámos no átrio. - Estou muito contente por teremvindo.Abraçou virtualmente todo o grupo com o olhar e encabeçou o pequeno cortejo em direcção à sala de estar, a qual, como sempre, apresentava o seu melhor aspecto no Verão, comas janelas abertas, as hortênsias japonesas viçosas nos seusvasos e reflectidas nos espelhos das paredes. Sentámo-nos, eSeecombe serviu fatias de bolo e vinho.

- Estão eufóricos por causa de um pouco de sol - disseRaquel com uma risada. - Para mim, não é nada. Em Itália,temos tempo assim nove meses por ano. - Fez uma pausa.- Vou fazer as honras da casa. Deixa-te estar sentado, Philip,que continuas a ser meu paciente.Verteu vinho em copos, que distribuiu. O meu padrinho eo vigário levantaram-se, protestando, porém ela rejeitou-oscom um gesto. Quando se aproximou de mim, fui o único quese negou a beber.- Não tens sede? - perguntou.Abanei a cabeça. Não voltaria a ingerir uma única gotaservida por ela. Com um leve encolher de ombros, pousou o copo notabuleiro e foi sentar-se com Mrs. Pascoe e Louise, no sofá.- Suponho que, nesta época do ano, em Florença o caloré quase insuportável, mesmo para si - observou o vigário.- Nunca tive dificuldade em suportá-lo. Os estores mantêm-se baixados durante a maior parte do dia, o que conservaas casas frescas. Uma pessoa adapta-se ao clima em que vive.Como quem sai à rua no período mais quente sabe ao que searrisca, aproveitamos para dormir a sesta. Na VillaSangalletti,há um pequeno parque virado a norte, onde praticamentenunca dá o sol. Contém um lago e um repuxo, que ponho afuncionar se o calor aperta. A água a correr produz um efeitocalmante. Na Primavera e Verão, nunca me sento noutro lugarda casa.Com efeito, na Primavera, podia ver as vagens do laburnoincharem e converterem-se em flores, as quais constituíam umcanopo para o rapaz desnudo que se erguia acima do lago e segurava a concha entre as mãos. Por seu turno, as flores acabariam por murchar e cair e, quando os píncaros do Verão chegassem à villa, como acontecia agora entre nós, embora commenor intensidade, as vagens rebentariam e espalhariam as sementes pelo chão. Raquel assistira a tudo isso, sentada no pequeno pátio, com Ambrose a seu lado.- Eu adorava visitar Florença - disse Mary Pascoe, arregalando os olhos e sonhando só Deus sabia com que estranhamagnificência.Raquel voltou-se para ela e replicou:- Então, deve fazê-lo no próximo ano, e ficará comigo.Aliás, o convite é extensivo a todos.Estas palavras provocaram um coro de exclamações e perguntas, assim como expressões pesarosas. Tinha de partir tãocedo? Quando voltaria a Inglaterra? Quais eram os seus planos?- Ainda não sei quando partirei nem quando voltarei.Costumo obedecer a impulsos repentinos e não a datas estipuladas com antecedência.Vi o meu padrinho olhar dissimuladamente para mim, cofiando o bigode, e em seguida fitar as biqueiras dos sapatos.Imaginei o que lhe cruzava o espírito. "Quando ela partir,voltarás a ser o que eras." A tarde foi-se escoando serenamente.Às quatro, sentámo-nos à mesa para jantar. Fiquei mais umavez à cabeceira e Raquel na extremidade oposta, com NickKendall e o vigário de cada lado. Houve de novo conversasanimadas, risos e até poesia. Entretanto, conservava-me pouco

comunicativo, quase totalmente silencioso, sem perder de vistao rosto da minha prima. Anteriormente, fizera-o com fascinação, por se tratar de uma situação inédita para mim. A sequência da troca de palavras, a mudança de tópico, a inclusão detodas as pessoas presentes representava algo que nunca viraumamulher pôr em prática, pelo que constituía autêntica magia.Agora, achava-me familiarizado com todos os ardis. A abordagem de um tema, o murmúrio por detrás da mão ao vigário e arisada de ambos, ao que o meu padrinho se inclinava para afrente e perguntava "Que foi que disse, Mistress Asley?" e aréplica pronta dela, com uma ponta de mordacidade, "O vigáriodepois conta-lhe",, enquanto este último, corado e importante,considerando-se um humorista, embarcava numa história quea sua família não conhecia. Um pequeno jogo que ela apreciava, e éramos todos, com os nossos cândidos hábitos da Cornualha, fáceis de manipular e ludibriar.Ponderei se, em Itália, a sua tarefa seria mais difícil, edecidi que não. Simplesmente, a sua companhia naquele país adaptava-se mais ao seu temperamento. E com Rainaldi sempredisponível para a ajudar, exprimindo-se no idioma que ela melhor dominava, a conversa desenrolava-se na Villa Sangalletticom mais animação do que jamais acontecera na minha monótona mesa. Por vezes, Raquel gesticulava para clarificar a suamaneira de falar rápida. Eu apercebera-me de que quando falava com Rainaldi em italiano ainda o fazia mais. Naquela tarde,interrompeu Nick Kendall numa afirmação qualquer e tornoua fazê-lo. Em seguida, enquanto aguardava a resposta, os cotovelos pousados levemente na mesa, conservara as mãos imóveis. Tinha a cabeça voltada para ele, como que para escutarmelhor, pelo que, do meu lugar à cabeceira da mesa, eu podiaobservá-la de perfil. Assim, era sempre uma estranha. As feições irrepreensíveis gravadas numa moeda. Morena e reservada, uma estrangeira à entrada de um aposento, de xaile à cabeça e mão estendida. Mas de frente, quando sorria, nunca erauma estranha. A Raquel que eu conhecia e amara.O meu padrinho terminou a história. Seguiu-se uma pausae silêncio. Agora treinado para interpretar todos osmovimentosdela, eu observava-lhe os olhos, que se fixaram em Mrs. Pascoeedepois em mim.- Vamos para o jardim?Levantámo-nos, e o vigário puxou do relógio de bolso,suspirou e anunciou:- Por muito que me custe, tenho de me despedir.- Eu também - declarou o meu padrinho. - O meu irmão que vive em Luxilyan está doente e prometi ir vê-lo. Masa Louise pode ficar.- Como somos só três, abandonemos as formalidades -- propôs Raquel. - Venham para o boudoir. - Sorrindo aLouise, precedeu-nos em direcção à escada. - Você vai provara minha tisana. Mostrar-lhe-ei o método que emprego. Se oseu pai alguma vez sofrer de insónias, é o remédio indicado.Entrámos no boudoir e sentámo-nos, eu junto da janela,enquanto Louise ocupava o banco e Raquel iniciava os preparativos da tisana.

- À maneira inglesa, se é que existe, do que duvido, usa-se cevada descascada - explicou a minha prima. - Eu trouxe ervas secas de Florença, para enriquecer o sabor. Se lheagradar, dar-lhe-ei algumas quando partir.Louise levantou-se do banco e acercou-se.- A Mary Pascoe garantiu-me que você sabe o nome detodas as ervas e curou os caseiros e familiares destapropriedade de numerosas indisposições. Antigamente, as pessoas sabiam mais dessas coisas do que agora. No entanto, algumasdas mais velhas ainda conseguem eliminar verrugas e certaserupções cutâneas.- Eu elimino mais do que verrugas - redarguiu Raquel,rindo. - A utilização de ervas para fins medicinais é muitoantiga. Aprendi-a com a minha mãe. Obrigada, John - agradeceu ao rapaz, que entrara com uma chaleira de água a ferver.- Em Florença, costumava preparar a tisana no meu quarto edeixá-la repousar. Fica melhor assim. Depois, íamos para o pátio, ligávamos o repuxo, sentávamo-nos e, enquanto saboreávamos a tisana, a água jorrava para o lago. O Ambrose era capazde passar horas a observá-lo. - Verteu parte da água em ebulição no bule do chá. - Estou a pensar em trazer de lá, apróximavez que visitar a Cornualha, uma estatueta igual à que tenhono lago. Necessitarei de a procurar, pois não sei bem onde aguardei, mas acabarei por encontrá-la. Poderemos colocá-la nomeio do jardim que está em vias de acabamento. Que achas?- Virou-se para mim, sorridente, enquanto movia a tisanacom a mão esquerda.- Aprovo - respondi secamente.- O Philip carece de todo e qualquer entusiasmo - indicou a Louise. - Ou concorda com tudo o que digo ou é-lheindiferente. Às vezes, penso que os meus esforços aqui... onovo arranjo das flores no jardim, o caminho empedrado... nãopassam de mera perda de tempo. Creio que se contentaria comvegetação rasteira e uma passagem lamacenta.Passou a chávena a Louise, que a aceitou e voltou a sentar-se no banco. A seguir, encheu outra e aproximou-se da janela,onde me encontrava, mas sacudi a cabeça.- Não queres a tisana? Mas faz-te bem, sobretudo paradormires descansado. É a primeira vez que a recusas.- Bebe-a por mim - retruquei.- A minha já está noutra chávena - volveu, com um encolher de ombros. - Gosto de a deixar repousar mais tempo.Esta vai-se perder. É pena.Debruçou-se no peitoril junto de mim e verteu a bebida.Ao retroceder, pousou a mão no meu ombro e notei o odorque tão bem conhecia. Não era perfume, mas a essência da suapessoa, a textura da pele.- Não te sentes bem? - perguntou em voz baixa, paraque Louise não ouvisse.Se tudo o que sabia e todos os sentimentos pudessem apagar-se, solicitar-lhe-ia que conservasse a mão em contacto como meu corpo. Se esquecesse a carta rasgada, as sementes fechadas à chave num compartimento da

escrivaninha, o mal, a duplicidade... A mão moveu-se do ombro para o queixo, ondepermaneceu por instantes numa breve carícia, que, por se encontrar entre mim e Louise, passou despercebida.- O meu amuado... - sussurrou.Olhei acima da cabeça dela e vi o retrato de Ambrose naparede do lado da lareira. Os seus olhos fixavam-se directa mente nos meus, na juventude e inocência. Não respondi e elaafastou-se de mim para pousar a minha chávena vazia no tabuleiro.- Que lhe parece? - perguntou a Louise.- Creio que precisaria de algum tempo para me habituarao sabor.- Acredito que não agrade a toda a gente. De qualquermodo, é um excelente sedativo para os espíritos inquietos.Esta noite, todos dormiremos bem. - Sorriu e bebeu comlentidão.Conversámos durante algum tempo - ou antes, quemconversou foram elas -, até que Raquel se levantou, e propôs:- Agora que arrefeceu um pouco, vamos dar uma voltapelo jardim?Dirigi uma mirada a Louise, que se conservou silenciosa, ealeguei:- Prometi mostrar à Louise o mapa antigo da propriedadede Pelyn, que descobri o outro dia. Os limites estão assinalados com a maior nitidez e provam que a velha fortaleza da colina faz parte dela.- Nesse caso, vou passear sozinha. - E encaminhou-separa o quarto azul, enquanto cantarolava em surdina uma melodia qualquer.- Não saias daqui - recomendei a Louise.Desci ao escritório, pois na verdade existia um mapa antigoque eu conservava entre os meus papéis, algures. Encontrei-onuma pasta de cartolina e, quando cruzava o pátio para regressar ao primeiro piso, avistei Raquel, que saía para oanunciadopasseio. Estava de cabeça descoberta, mas segurava o pára-solnuma das mãos.- Não me demoro - informou. - Vou só até ao terraço.Quero ver se a estatueta ficaria bem no novo jardim.- Tem cuidado - adverti.- Com quê?Deteve-se na minha frente, o pára-sol aberto pousado noombro. Usava um vestido preto, como habitualmente, comrendas brancas em redor do pescoço. Não parecia muito diferente da primeira vez que a vira, dez meses atrás, com a diferença de que agora estávamos no Verão. O odor da relva aparada recentemente pairava na atmosfera. Uma borboleta esvoaçou sobre as nossas cabeças e perdeu-se entre as plantas. Ospombos arrulhavam entre as árvores para além do relvado.- Com o sol - especifiquei. - Ainda queima.Soltou uma gargalhada e afastou-se. Vi-a cruzar o relvado esubir os degraus de acesso ao caminho empedrado.Voltei para dentro, subi a escada rapidamente e entrei noboudoir, onde Louise me aguardava.- Preciso da tua ajuda - articulei, ofegante. - Disponhode pouco tempo.

- De que se trata? - perguntou, levantando-se, curiosa.- Lembras-te da nossa conversa na igreja, há várias semanas? - Assentiu com uma inclinação de cabeça e prossegui:- Tinhas razão e eu não, mas isso não interessa agora. Precisode confirmar as minhas suspeitas. Penso que ela tentou envenenar-me e fez o mesmo ao Ambrose.Calei-me por um momento, enquanto Louise arregalava osolhos, horrorizada.- De momento não vem para o caso como o descobri,mas a pista pode encontrar-se numa carta de Rainaldi - acrescentei. - Vou revistar aquela escrivaninha para a localizar.Seique aprendeste um pouco de italiano com a professora defrancês e, com os nossos esforços conjugados, havemos de atraduzir.Acto contínuo, acerquei-me do móvel e iniciei as pesquisas, mais minuciosas que na véspera à luz da vela.- Porque não preveniste o meu pai? - quis saber Louise.- Se ela é culpada, podia acusá-la com maior veemência doque tu.- São precisas provas - lembrei-lhe.Depararam-se-me papéis e sobrescritos cuidadosamente arrumados, facturas que talvez alarmassem o meu padrinho, seas visse, mas careciam de significado para mim, na minha febrepara descobrir o que procurava. Voltei a tentar a sorte nocompartimento que continha o pequeno pacote. Desta vez,não se achava fechado à chave. Abri-o e verifiquei que se encontrava vazio. O sobrescrito desaparecera. O facto poderiaconstituir uma prova adicional, porém a minha tisana tinha sido deitada fora. Continuei a abrir compartimentos e gavetas,enquanto Louise assistia de fronte enrugada.- Devias ter esperado - persistiu. - Falavas com o meupai e ele tomava medidas legais. Assim, procedes como um ladrão vulgar.- A vida e a morte não se compadecem com medidas legais - repliquei. - Alto! Que é isto?Mostrei-lhe uma folha de papel, com nomes. Uns em inglês, outros em latim e outros, ainda, em italiano.- Não tenho bem a certeza, mas creio que é uma lista deplantas e ervas. A letra não está muito clara. - Examinou osdizeres, enquanto eu prosseguia as pesquisas. - Sim, deve tratar-se das ervas e remédios dela. Mas há uma secção em inglêsque dá a impressão de descrever a reprodução de plantas. Espécies e mais espécies. Montes delas.- Procura o laburno.Obedeceu e, após um momento, anunciou sem entusiasmo:- Sim, está aqui, mas não adianta nada.Arranquei-lhe a folha das mãos e li a passagem que o indicador dela assinalava:"Laburnum Cytisus. Oriundas do Sul da Europa, estasplantas podem reproduzir-se rápida e abundantemente.As sementes devem ser depositadas em canteiros ou onde as plantas ficarão definitivamente. Na Primavera, emMarço, por exemplo, podem transplantar-se para culturas do tipo viveiro, para conservação eficiente até setransferirem para as culturas definitivas."Seguia-se a indicação de onde Raquel obtivera os elementos: The Nezv Botanic Garden. Editado,

para John Stockdaleand Company, por T. Bousley, Bolt Court, Fleet Street, 1812.- Não diz nada sobre veneno - declarou Louise.Continuei a revistar a escrivaninha, até que encontrei umacarta do banco, em que reconheci a caligrafia de Mr. Couch.Apressei-me a lê-la, sem o mínimo rebuço."Prezada Senhora: Agradecemos a devolução da colecção de jóias Ashley, as quais, em conformidade com assuas instruções, por se ausentar do país dentro em breve,permanecerão ao nosso cuidado até que o seu herdeiro,Mr. Philip Ashley, possa tomar posse delas.Atentamente,Herbert Couch.", Voltei a introduzi-la no sobrescrito, subitamenteangustia do. Apesar da influência de Rainaldi, um rebate deconsciêncialevara-a àquele derradeiro acto., Não se me deparou mais nada de interesse, depois de esquadrinhar todos os recantos do móvel. Raquel destruíra acarta ou tinha-a consigo. Perplexo e frustrado, voltei-meparaLouise.- Não está aqui.I - Viste debaixo do mata-borrão?Na verdade, pousara-o inconscientemente na cadeira aoiniciar as pesquisas e não me preocupara mais com ele.Examinei-o e, entre duas folhas brancas, avistei o sobrescritoproveniente de Plymouth, que ainda continha a carta. Extraí-acomprontidão e entreguei-a a Louise.- Vê se consegues decifrá-la.Desdobrou o papel e restituiu-mo.- Podes ler tu. Não está em italiano.O texto não era muito longo. Rainaldi prescindira das formalidades, como eu previra, mas não da maneira queimaginara. Indicava as onze horas da noite, sem qualquerpreâmbuloclássico:??Como se tornou mais inglesa do que italiana, escrevo-lhe no seu idioma adoptivo. Passa das onze e largamosà meia-noite. Farei tudo o que me pede em Florença, etalvez até mais, embora duvide de que você o mereça.A villa estará preparada para a receber, assim como opessoal doméstico, quando finalmente resolver arrancardaí. Aconselho-a a não retardar muito a partida. Nuncative grande confiança nos seus impulsos do coração eemoções. Se não se decidir a deixar o rapaz, traga-o. Noentanto, advirto-a de que reprovo firmemente semelhante medida. Tenha cuidado consigo e creia-me sempre seudedicado amigo, Rainaldi."Li as estranhas linhas segunda vez e passei-as a Louise.- Prova o que suspeitavas?

- Não - murmurei, pensativamente.Devia haver algo de errado no meio de tudo aquilo. Decerto faltava alguma coisa: um pós-escrito, numa folha suplementar, que ela ocultara noutro lugar. Tornei a examinar o mata-borrão, sem resultado. Apenas continha uma folha de papeldobrado. Tratava-se de uma caricatura de Ambrose. As iniciaisa um canto eram indecifráveis, mas supus que fora traçada poralgum amigo ou artista italiano, pois continha o nome "Florença" e estava datada de Junho. Depreendi que fora executadapouco antes da morte do meu primo e pude observar que envelhecera consideravelmente desde que o vira pela última vez.Havia vincos profundos em torno dos olhos, que apresentavam uma expressão quase esgazeada, como se lhe pairasse umasombra sobre os ombros e receasse olhar para trás. Dir-se-iaque pressentia a iminência de uma calamidade. Embora osolhos pedissem devoção, também imploravam piedade. Abaixodo desenho, ele próprio inscrevera uma citação em italiano:"Para a Raquel. Non rammentare che le ore felici. Ambrose."- Só há mais isto - comuniquei a Louise. - Que significam os dizeres?Leu-os em voz alta, reflectiu por um momento e disse pausadamente:- Recorda apenas as horas felizes. - Devolveu-mo, juntamente com a carta de Rainaldi. - Ela nunca to mostrou?- Não.Olhámo-nos por instantes, em silêncio, até que aventurou:- Julgas possível teres-te enganado? Refiro-me ao veneno.Como vês, não existe a mínima prova.- Nem existirá nunca.Guardei o desenho e a carta na escrivaninha.- Nesse caso, não a podes condenar - salientou Louise.- Tanto pode ser inocente como culpada. É-te impossível fazer seja o que for. Na primeira hipótese, se a acusares,nuncate perdoarás. A culpa recairá então em ti e não nela.Abandonemos este aposento e vamos para a sala. Estou arrependidadeter colaborado nesta diligência insensata. - Virou-se paramim, que olhava o relvado pela janela. - Vê-la?- Não. Há quase meia hora que saiu.Cruzou o boudoir e olhou-me com estranheza.- Porque estás com essa voz tão tensa? Porque manténs oolhar fixo nos degraus de acesso à passagem empedrada? Háalguma novidade?Desviei-a e encaminhei-me para a porta.- Sabes onde fica a corda na plataforma atrás do campanário utilizada ao meio-dia para chamar o pessoal para o almoço? Vai lá e puxa-a com força.- Para quê? - perguntou, intrigada.- Porque é domingo, toda a gente está por aí dispersa eeu talvez precise de ajuda.- Ajuda? - repetiu, cada vez mais perplexa.- Alguém pode ter sofrido um acidente. A Raquel.Olhou-me horrorizada.- Que fizeste? - balbuciou, apreensiva.

Dei meia volta e abandonei o aposento.Desci a escada apressadamente e enveredei pelo caminhoempedrado, sem que vislumbrasse o menor sinal de Raquel.Os dois cães encontravam-se junto de um monte de pedrassobranceiro ao abismo de pelo menos duas dezenas de metros.Um deles, o mais jovem, aproximou-se de mim. O outro permaneceu no mesmo lugar. Avistei as pegadas dela no solobrando e o pára-sol, ainda aberto, a um lado. De súbito, osino do campanário começou a dobrar prolongadamente, parase transmitir sem dúvida a longa distância, em virtude de setratar de uma tarde calma e silenciosa.Acerquei-me da beira do precipício, ao fundo do qual onovo jardim atingira a fase de acabamento. Parte do esqueletoda ponte ficara suspensa, grotesca e horrível, como uma escadaoscilante. O resto tombara nas profundezas.Desci até onde ela jazia, entre os destroços de madeira epedras soltas. Peguei-lhe nas mãos e conservei-as entre as minhas. Notei o frio glacial que as envolvia.- Raquel - murmurei, ansioso. - Raquel...Os cães começaram a latir, sem todavia conseguirem abafaro som do sino. Ela abriu os olhos e fixou-os em mim. Primeiro com uma expressão de dor, como me pareceu. Depois, deespanto. Por último, pensei que me reconhecia. Mas equivocava-me mais uma vez. Chamou-me Ambrose. Continuei a segurar-lhe as mãos, até que expirou.Antigamente, costumavam enforcar homens em Four Turnings.Mas agora já não.O Autor e a ObraDaphne du Maurier, segunda filha do famoso actor e empresário teatral Sir Gerald du Maurier e neta de George duMaurier, apreciado artista bonecreiro, nasceu em Londres, a 13de Maio de 1907. Iniciou a sua carreira com artigos de críticaliterária e pequenas narrativas, tendo vindo a lume, em 1931,oseu primeiro romance, The Loving Spirit, mas foi com A Pousada da Jamaica (1936) que alcançou o sucesso junto do público. Mais tarde, em 1938, escreveu Rebeca, o romance que aconsagrou, traduzido em mais de vinte línguas e adaptado aocinema por Alfred Hitchcok. Aliás, muitos dos seus romances,perpassados por ambientes de novela gótica, tiveram versõescinematográficas: A Prima Raquel (1951), A Pousada da Jamaica, Os Pássaros, Aquele Inverno em Veneza.Entre os seus livros mais conhecidos, salientam-se aindaA Enseada do Francês (1941), O Voo do Falcão (1965) e A Casa na Praia (1969).Daphne du Maurier escreveu também peças de teatro, pequenas novelas, uma biografia de Branwell Bronté e dois estudos interessantes da sua família, Gerald (1934), e The DuMauriers (1937). Morreu em Par, na Cornualha, a 19 de Abrilde 1989.

***

fim