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Universidade Federal da Paraíba Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Música
Das Conferências de Anton Webern: Uma Reflexão Estética
Cristóvam Augusto de Carvalho Sobrinho
João Pessoa Agosto / 2008
1
Universidade Federal da Paraíba Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Música
Das Conferências de Anton Webern: Uma Reflexão Estética
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Música, área de concentração em Musicologia e Linha de Pesquisa em Estética, Estilística e Práxis Compositiva.
Cristóvam Augusto de Carvalho Sobrinho
Orientador: Prof. Dr. Ibaney Chasin
João Pessoa Agosto / 2008
3
Dedicatória
A meu pai, Carlos Augusto de Carvalho, in memoriam, pela humana representatividade. “Quando n’algum dia fechar os meus olhos, abra os seus”, dizia, em sua constante semeadura de idéias e conscientização de mundo. A ausência faz-se presente, mas isto é dialético. Porém, ficam a lembrança dos ensinamentos e o exemplo efetivo. À minha amada filha, Letícia Oliveira Augusto de Carvalho, causa de minha alegria. Sua vida é uma dádiva, razão da minha existência...
4
Agradecimentos
Há tanto para agradecer... Quantas importantes contribuições ao longo de minha difícil
jornada...
À minha mãe, Lia, pelo apoio constante.
À minha esposa, Élida, pelos incentivos pessoais.
A Jozemar Lopes, in memoriam, pelos primeiros acordes.
A Luiz Carlos Otávio, pelas orientações realizadas no antigo Teatro Cilaio Ribeiro,
pela semente plantada que germinou.
A Francisco Chagas Fernandes, pelo estímulo musical, pelos auxílios na área
instrumental.
A Guilherme Calzavara de Araújo, pelas determinantes orientações musicais, pelos
ensinamentos na área instrumental.
A Luiz Carlos Durier, pelo incentivo musical.
A Marco Antônio Barcellos, pelo diálogo musical.
À Vólia Simões, pela oportunidade profissional, pelo discreto desvelo.
A Jorge Castor, pela dedicação, compromisso, presteza, em diversas orientações
musicais.
A Albergio Claudino Diniz, pela sensibilidade, pela construção de um conhecimento
para além do instrumento, pela presença efetiva em momentos difíceis.
A Djalma Nunes Marques pelas diversas contribuições musicais.
À Mônica Cury, pela sinceridade e honestidade de ensino.
À Heloísa Muller, pelo compromisso acadêmico em todos os momentos, tanto na
graduação como no mestrado, pela seriedade descontraída no ato do ensino, pela postura
humanista, pelo estímulo pessoal constante.
A José Henrique Martins, pelo incentivo e atenção constantes.
A Ruy Brasileiro, pela seriedade e paciência.
A Eli-Eri, pelo auxílio irrestrito nas aulas de harmonia.
5
A Vianey dos Santos, pelo incentivo acadêmico.
A Jorge Ribbas, pela humana reciprocidade, pois o “apreço não tem preço”.
A Marcello Ferreira, pelos determinantes auxílios em diversos momentos.
A Samuel Cavalcanti, pelo compartilhar de dificuldades, pela presença marcante
durante o mestrado.
A Emerson Cristiano e Fabiano Rodrigues, pelos auxílios técnico-computacionais.
A Humberto Dias, pela presença de espírito.
A Adriano Blattner Martinho, pela efetiva ajuda na pesquisa documental que culminou
na obtenção, em Berlim, do texto original de Karl Kraus e a Eduardo Saad Diniz por ter
vertido à língua portuguesa tão importante documento.
A Ibaney Chasin... que, mesmo diante de minhas enormes insuficiências, propiciou-
me, acima de tudo, tão aspirada possibilidade de crescimento intelectual; por sua humana
postura para muito além de um orientador, pela paciência, pela solicitude, pelo altruísmo, pela
cordialidade dialogal constante, pela generosidade de espírito, pela disposição de
praticamente toda bibliografia. Talvez, sua ajuda tenha superado meu merecimento... Todavia,
o projeto de vida foi efetivamente semeado, plantado... E a continuidade deste processo é o
que mais importa... Que eu possa, então, enquanto forças tiver, crescer espiritual e
intelectualmente, sempre perspectivando as melhores virtudes dignas de um homem. Por tudo
isto, meus sinceros sentimentos de gratidão e respeito.
6
Quem ama de fato a ciência deve, desde a juventude, desejar tão vivamente quanto possível apreender toda a verdade [...] O verdadeiro amigo da ciência não se detém na multidão de aspectos das coisas transitórias, das quais somente pode ter um conhecimento incerto e precário, mas vai além e busca, com vigor e aplicação, penetrar a essência de cada coisa com o elemento da sua alma a que compete fazê-lo; em seguida, tendo-se ligado e unido, por uma espécie de himeneu, à realidade autêntica e tendo engendrado a inteligência e a verdade, atinge o conhecimento do ser e a verdadeira vida, encontra aí o seu alimento e a calma para libertar-se enfim das dores do parto, das quais por nenhum outro meio se poderia livrar?
Platão, A República, livro VI.
7
Resumo
Este estudo realiza uma análise exegética das principais categorias estético-musicais
apresentadas por Anton Webern em suas conferências vienenses de 1932 e 1933. Nelas, o
compositor busca sustentar o sentido e lógica da “música nova”. Webern fundamenta seu
ideário nas correlações música-linguagem e música-natureza, sustentando a dimensão
linguística e natural da música, e, nesse movimento, entende respaldar o surgimento da
“música nova”, resultante, afirma, da evolução da história da música, que é a história da
apropriação progressiva dos sons naturais. Posta essa exegese, a ela se justapõe uma reflexão
sobre a linguagem e outra sobre a mímesis musical. Assim, ao ideário weberniano é articulado
o pensamento histórico-filosófico sobre a música e sua lógica. Justaposição que entende
problematizar os supostos de Webern, ou melhor, tomá-los à luz da história. É nesta
imbricação, então, que essa dissertação flui, buscando enraizar esteticamente o pensamento
weberniano, movimento que se entende como ação fundamental dado que apenas no interior e
a partir da história pode-se compreender a arte.
Palavras-chave: Música-Linguagem, Música-Natureza, Evolucionismo Musical,
Dodecafonismo, Mímesis, Estética.
8
Abstract
This research presents an exegetical analysis of the principals musical-aesthetics categories in
the Anton Webern’s Conferences in which the composer defends the meaning and the logic of
the “new music”. Moreover, Webern fundaments his ideology in the co-relations of language-
music, and nature-music, maintaining the linguistics and natural dimensions of music to
justify the “new music” context and beginning. According Webern’s thinking the “new
music” is a result of the evolution of music’s history called progressive appropriation of the
natural sounds. Adding this exegetic discussion there is some ponders about language and
musical mimesis, so as to, the philosophical and historical thinking about music and its logic
is articulate beside the webernian ideologies under historical points of view. Therefore this
imbrication intends to endorse in an aesthetical way the webernian thinking, in which,
fundamentally, only through history we can comprehend the artistics phenomena.
Keywords: Language-Music, Nature-Music, Musical Evolutionism, Dodecafonism, Mimesis,
Aesthetics.
9
Sumário
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................11
PARTE I
DE UMA ANÁLISE EXEGÉTICA DAS CONFERÊNCIAS DE ANTON WEBERN ...18
1. A relação música-linguagem..............................................................................................20
2. A relação música-natureza ................................................................................................23
2.1. O evolucionismo musical.................................................................................................27
PARTE II
DE UMA APROXIMAÇÃO À CATEGORIA DA LINGUAGEM E À CATEGORIA
DA MÍMESIS MUSICAL ......................................................................................................43
1. A categoria da linguagem ..................................................................................................44
2. A categoria da mímesis musical.........................................................................................50
2.1. Os gregos e a mímesis ......................................................................................................52
2.2. O Renascimento e a questão mimética ..........................................................................59
2.3. Um breve passo rousseauniano e hegeliano ..................................................................69
2.4. Lukács e a mímesis musical ............................................................................................73
CONCLUSÃO
REFLEXÕES QUE SINTETIZAM E PROBLEMATIZAM ............................................78
1. De uma síntese.....................................................................................................................79
2. De questões categoriais.......................................................................................................82
2.1. Uma primeira problematização .....................................................................................83
2.2. Uma segunda problematização ......................................................................................87
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................93
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR................................................................................95
10
ANEXOS ..............................................................................................................................100
1. Die Sprache – Original Alemão......................................................................................101
2. A Língua – Tradução ......................................................................................................105
12
1.
Entre 1932 e 1933, Webern1 proferiu uma série de conferências numa residência
particular em Viena, oportunidade em que expôs suas reflexões e determinações relativas ao
processo de objetivação que comandou e caracterizou o curso da história da música ocidental.
De fato, em última instância, ponha-se desde já, o objetivo destas palestras era fundar e
sustentar o sentido e necessidade da “música nova”, que então ele, a partir e com Schoenberg,
estava criando. O primeiro ciclo de conferências realizou-se entre janeiro e março de 1932,
sob o título O caminho para a composição com doze sons; o segundo, entre fevereiro e abril
de 1933, O caminho para a música nova2.
Nestas palestras, Webern traçou uma série de considerações sobre a lógica e orgânica
da história da música, dando forma a um pensamento que se fundamentou, lato sensu, sobre a
idéia insistentemente reconduzida de que a música vincula-se essencialmente à linguagem e à
natureza. E, no interior desta concepção, e em função dela, sustentou a idéia de evolução
musical, processo musicalmente fundante da arte sonora ocidental que lhe propiciou,
afirmava, um aperfeiçoamento contínuo e incessante no curso dos tempos. Aperfeiçoamento
contínuo, necessário e inexorável cuja culminância histórica ocorreu, precisamente, com o
surgimento da “música nova”, dodecafônica. Em outras palavras, considerou que tal sistema
surgiu e se impôs como estética resposta histórica, como incontornável movimento musical da
história, que se realizou, pois, enquanto progressiva apropriação dos recursos sonoros
ofertados pela natureza. Apropriação esta que significava a própria condição de maturidade
do fazer musical: tal apropriação, crescente, significava passos à maturação artística,
maturação, assim, que se ligava estruturalmente, postulou Webern, à lida liberta com a
sonoridade físico-natural, emancipada de sua condição de dissonância.
De fato, a concepção weberniana acerca do processo evolucionista na arte musical
caracterizou-se como um dos pilares teóricos fundamentais para sua sustentação e justificativa
da denominada “música nova”. Ademais, ao longo das dezesseis conferências que
1 Anton Webern (1883-1945). Compositor vienense. Estudou Musicologia e teve contato com temas de natureza filosófica. Foi discípulo de Arnold Schoenberg e um dos integrantes da comumente denominada segunda escola de Viena, juntamente com Schoenberg e Alban Berg. 2 Estas conferências foram publicadas originalmente sob o título Der Weg Zur Neuen Musik, pela Universal Edition, Viena, 1960. A edição baseou-se no estenograma de Rudolf Ploderer, advogado vienense. Em 1984, tomando-se por base este material editado, Carlos Kater verteu o texto ao português confrontando o resultado de seu trabalho com as principais traduções existentes no sentido de apresentar o genuíno pensamento estético weberniano.
13
conformaram o ciclo, o autor explicitou convicções relativas ao sistema dodecafônico bem
como às respectivas técnicas concernentes. Itere-se – e como não poderia se dar diversamente
em seu pensamento – considerou que este sistema surgiu como momento específico nascido
da evolução da música, evolução esta fundamentada nas leis naturais: nos movimentos e
processos da natureza que propiciaram o domínio sonoro alcançado pelo homem ao longo do
tempo. Vale dizer, o dodecafonismo despontou como uma conseqüência do crescente
processo de apropriação humana dos recursos sonoros existentes na natureza. No ideário de
Webern, tal apropriação significou qualificação musical, uma caminhada em direção a uma
arte mais evoluída, uma arte de maior peso e significado, onde o fazer musical estruturou-se
em função de um movimento progressivo de distanciamento do som gerador através da
conquista de seus harmônicos, o que significa um crescente movimento de exploração e
percepção dos sons inerentes à série harmônica, para Webern, o ponto de partida da
composição. Nesse sentido, segundo o compositor (1984, p. 24), para compreender este novo
sistema musical que o século XX instaurou, o homem tem apenas de “procurar descobrir as
leis segundo as quais a natureza, sob a forma particular do ser humano, é produtiva”.
A partir de tais pressupostos, Webern explicitou sua perspectiva estético-musical, não
apenas com o objetivo de apresentar e justificar as bases técnico-teóricas propriamente ditas
desta música nascente, mas com o intuito de propor a inexorável importância e o inevitável
impacto do sistema dodecafônico na história da música ocidental. Em consonância com esta
propositura, afirmou que a “música nova” surgiu como conseqüência natural do contínuo
processo de incorporação das formantes acústicas do som na teia compositiva. O que
significou, em suma, exploração compositiva, utilização e percepção historicamente
expandida dos sons harmônicos, sendo o ponto culminante deste processo a música
dodecafônica: um momento singular em que os sons mais distantes do som gerador foram
percebidos e naturalmente conquistados como arte. Arte, assim, que se fez plena, completa,
superior.
É, pois, no interior deste universo teórico-musical evolucionista que este estudo
pretende desenvolver-se. Estudo cujo passo inicial, e fundamental, configura e expõe o
suposto estético weberniano pela própria palavra posta nas conferências. De modo que a
presente pesquisa tem como objetivo geral realizar uma análise exegética da letra teórica
weberniana, com o que se entende alcançar efetivamente a lógica estético-musical que funda
seu pensamento. Exegese, pois, entendida como exame do ideário de Webern, o que significa
a determinação, pela investigação da própria orgânica ideal deste compositor, dos
fundamentos de seu pensar e compor. O que implica numa análise categorial da reflexão de
14
Webern, com vistas ao esclarecimento de suas idéias e determinações. Assim, será possível
reconhecer – e examinar – as categorias musicais presentes nas conferências, elucidando-se o
sentido mais concreto da pena do autor. Logo, este trabalho quer extrair e determinar os ideais
que fundamentaram e nortearam Webern em sua teoria e práxis, com o intuito maior de
compreender seus supostos compositivos, compreensão que significa tomar o ideário de um
dos representantes máximos do movimento estético-musical que marcaria profundamente
todo o século XX.
2.
Como mediação à realização desta exegese, duas questões, fundamentalmente, serão
investigadas, tendo em vista que sob estas duas premissas basilares Anton Webern delineou
seu pensamento para ratificar suas perspectivas acerca da música ocidental: as correlações
entre 1) música-linguagem, e, 2) música-natureza. Se assim o é, e desdobrando a questão, a
este estudo cumpre a investigação destas relações no sentido não apenas de clarear o ideário
weberniano – pouco desenvolvido na demonstração destas vinculações –, mas também na
intenção de verificar sua pertinência e sentido histórico-musicais, a partir do que,
rigorosamente, o pensamento de Webern pode ser explicitado.
A análise das questões relativas à linguagem nos proporcionará compreender
criticamente a lógica teórica que funda os princípios de “apreensibilidade” – no sentido de
compreensibilidade –, e “coerência”, que a arte musical dodecafônica possuiria de forma
singular. Nesse sentido, Webern (1984, p. 43, grifos nossos) assinalou que “Tudo o que
ocorreu [na história] se fez nessa direção [da apreensibilidade], e acredito que na nossa época
atingimos um novo grau de coerência, graças ao método de composição, tão polêmico, que
Schoenberg chamou composição com doze sons relacionados somente entre si”. De fato,
como se mostrará, tal afirmação funda o ideário de Webern, ao referir que este teria sido o
objetivo maior dos grandes mestres da música – a aquisição de níveis superiores de
apreensibilidade e coerência musical –, estando tal aquisição presente na composição com
doze sons de forma superior, com um nível de perfeição jamais verificado. Por outro lado, a
análise das questões relacionadas com os fatores naturais nos possibilitará adquirir uma
concepção clara acerca da idéia do evolucionismo musical, enquanto processo resultante da
conquista progressiva dos sons naturalmente ofertados através da série harmônica,
subentendendo realizações musicais cada vez mais sofisticadas e perfeitas ao longo do tempo.
15
Posto este contexto, e a partir dele, importa acentuar e firmar que o caminho
metodológico que se configura como meio à captura do objeto investigado tem como passo
fundamental a análise exegética do texto weberniano, análise esta, reitere-se, que visa
identificar as categorias fundamentais que o sustentam. Em outras palavras, a determinação
do sentido próprio da palavra teórica de Webern constitui a base de nosso caminho
investigativo. E, delineado este passo inicial, e imediatamente a ele vinculado, realiza-se uma
integração ou contextualização das principais premissas webernianas a partir do pensamento
filosófico concernente. De sorte que os princípios teóricos apresentados por Webern são
vinculados às categorias histórico-estéticas mais gerais, relação esta que possibilita um real
conhecimento das conferências em questão, assim se acredita e postula. Ou ainda, a
determinação crítica das premissas estéticas webernianas exegeticamente analisadas – a
relação música-linguagem e música-natureza – realiza-se a partir de sua imersão na história,
isto é, a partir da contribuição de diversos pensadores que trataram acerca das categorias
aludidas nas conferências, como Aristóteles e Mei, Lukács e Gadamer, pensadores, pois, que
aqui se objetivam como ferramentas essenciais à elaboração pretendida, que assim ata
reflexão musical, histórica e estética.
3.
Um ponto – ou questão – deve ser aqui salientado. O texto de Karl Kraus sobre a
linguagem, A Língua – texto que Webern toma como seu referencial teórico – deveria, pois,
ser encontrado, isto é, consultado. Nesse sentido, e por intermédio de um contato pessoal,
tornou-se possível localizar e adquirir o original alemão, hoje na biblioteca de Berlim.
Possibilidade, assim, que coroou com êxito a custosa tentativa de localização deste
documento, busca cujo início, aluda-se oportunamente, data de 2003, quando, ainda na
graduação, o interesse por compreender os supostos teóricos da palavra conferente de Webern
já se insinuava para mim como horizonte possível de investigação.
Assim, a partir deste original realizou-se uma tradução, preliminar, que constitui o
Anexo, tradução que permitiu dimensionar o pulso discursivo de Kraus, e, mediatamente, o
substrato ou orientação do ideário de Webern, isto o que a nós importa de fato. Tradução,
marque-se desde já, que teve de “lutar” contra a intrincada e obscura reflexão krausiana, de
clara indeterminação, que, por esta característica – por uma abstração determinativa –
16
permitiu-nos entrever sua tendência intelectual, a qual aqui se escava de uma argumentação
apenas pontual, pois mais é trabalho futuro de pesquisa, talvez.
Seja como for, e mesmo que não se possa considerar como definitiva a versão em
Anexo, por este passo avança-se intelectualmente no sentido de facultar aos pesquisadores e
interessados em geral uma fonte – intelectual – pelo próprio Webern indicada como
importante. Pelo que se pode firmar, e isto se deve acentuar com força e rigor, que o método
pelo qual este estudo se desdobra tem na tomadia e exegese da palavra concreta de Webern o
centro de sua objetivação. Palavra à qual, ato contínuo, relaciona-se à reflexão histórica e
filosófica, com o que se entende desvelar os sentidos e significados do pensamento
weberniano. Pensamento pouco desdobrado ou denotador por si mesmo, mas que, se tomado,
e então fundado categorialmente, traduz-se, ou ao menos, configura-se em seus pressupostos
estruturais. Eis o método desta investigação, reitere-se: a palavra do autor agarrada per se, em
sua própria concretude, que adquire iluminação no interior de seus próprios fundamentos
categoriais, postos esteticamente.
4.
Diante do exposto, é necessário reconhecer e aqui ressaltar a efetiva importância
estética e artística da temática desta dissertação, seja em função daquele que é seu
protagonista, seja porque tais conferências constituem raro exemplo de um todo coeso que
apresenta o ideal de um compositor contemporâneo. Em verdade, como tais conferências
formulam o substrato do pensamento – dodecafônico – externado por um dos fundadores, a
relevância do objeto investigado aparece de per si. Por outro lado, a palavra teórica do autor
incide sobre problemas de ordem histórica e estética estruturais, o que torna este material
fonte vital à inteligibilidade dos ideais que marcaram o nascimento da “música nova”. Enfim,
e enfaticamente, este estudo assume relevância musicológica porque vincula ao fenômeno
musical sua dimensão histórica, vínculo que, já colocado por Webern, permite elaborar um
exame de fundo do objeto que se toma. Em palavra que sintetiza, a problemática estético-
musical posta por Webern adquire tratamento de base histórica. Ou ainda, Anton Webern
determinou, ao longo de suas conferências, que o necessário movimento progressivo da
música ocidental culminou com o surgimento do dodecafonismo: considerando-se o fato de
que esta música realizou-se enquanto um ponto de inflexão na história da música ocidental –
um momento histórico em que os parâmetros musicais foram reordenados em comparação ao
17
que havia sido feito até então – a objetivação desta pesquisa assume sentido e importância
efetivamente relevantes, pois pretende refletir criticamente acerca da fundamentação e
pertinência histórica das idéias webernianas, historicamente determinantes. Pertinência que
só pode surgir se a esta palavra estética se justapõe a própria história musical em sua
dinâmica. Firme-se: a presente investigação justifica-se musical e academicamente na exata
medida em que entende estabelecer o sentido estético de fundo que norteou um dos principais
compositores do século XX. Assim, e isto se deve igualmente marcar nesta argumentação,
esta pesquisa alimenta a musicologia brasileira com questões de cunho universal. Por isso
mesmo, então, põe-se como instrumento à compreensão dos fenômenos artísticos brasileiros
análogos, fortemente representados pelo grupo Música Viva, por exemplo.
Pesquisa, compendie-se finalmente, armada na e pela articulação entre duas Partes,
que, nesta inter-relação, ensejam o vigamento necessário à projeção da lógica do ideário
weberniano. Na Parte I, efetua-se a exegese textual referida, que resgata e ilumina as
categorias estéticas fundamentais que sustentaram o pensamento weberniano; a Parte II,
naquela enraizada, toma a palavra weberniana histórico-criticamente, buscando explicitá-la
em seu sentido e dimensão reais. Ação que envolve a reflexão categorial sobre a linguagem e
sobre a mímesis, como se verá. Ação pela qual se inicia o movimento crítico-categorial, que
se ancora na letra de pensadores universais, pelos quais se podem alcançar, desdobrando-as,
as categorias musicais que aparecem na letra weberniana apenas, e sempre, de forma
germinal, apenas aludidas pelo compositor, jamais esclarecidas. Criticidade teórica, enfim,
que se concreta na Conclusão, onde se realiza uma problematização categorial acerca do
pensamento estético weberniano. Problematização, em suma, que é busca teórica do
esclarecimento de um pensar. Esclarecimento que, menos conclusivo do que questionador,
menos afirmativo do que reflexivo, entende compreender e denotar o sentido estético de um
ideário. Ideário que, fundamental à arte musical do século XX, deve ser por nós tomado e
compreendido em sua orgânica e pulso, porque influenciou decisivamente o ser e fazer
musicais contemporâneos.
Se assim o é, que a palavra de Webern surja em sua lógica imanente, proposta que esta
dissertação entende delinear dentro de possibilidades modestas que, diga-se claramente ao
final, a marcam. Pesquisa exegético-categorial que deseja entender Webern por aquilo que ele
foi, não por aquilo que o entenderam ou pretenderam que fosse. Se alguma pretensão há neste
estudo, esta, pois, é a de buscar a alma da palavra weberniana, busca que aqui, neste breve
texto, apenas se inicia.
19
Em suas conferências, Anton Webern firmou a concepção, em som claro e inconteste,
que o ápice histórico da música ocidental foi atingido com a realização da “música nova”
através do advento dodecafônico. A sustentação desta perspectiva estética fundou-se em duas
premissas básicas, ou melhor, a partir da argumentação que interligou intrinsecamente 1) a
música à linguagem e 2) a música à natureza. De fato, para Webern, que assim afirma
textualmente, música é linguagem, bem como se funda na natureza, natureza por intermédio
da qual a música se orienta e toma sua seiva construtiva, refira-se desde já.
A partir da correlação música-natureza Webern afirmou categoricamente que a
conquista dos sons, e sua conseqüente realização composicional, caracterizou um processo
evolutivo que conduziu do menor ao maior, do menos musical ao mais musical, do menos
perfeito ao mais perfeito, em contínua evolução crescente. E em função desta concepção
natural-evolucionista justificou o surgimento do dodecafonismo enquanto acontecimento de
maior grandeza, de fato, predeterminado pela história, como se verá. O que significa que
todos os movimentos musicais verificados ao longo do tempo devem ser entendidos como
uma conseqüência desta conquista crescente da gama cromática, conquista progressiva da
naturalidade do som, de sua dimensão física, progressividade que conduziu natural e
indeclinavelmente ao dodecafonismo. De modo que este momento de chegada caracterizou-se
como a conclusão de uma incontornável evolução da música, seu cume estético-histórico.
Atado a esta tese básica, Webern sustentou que música e linguagem são fenômenos
diretamente correlacionados entre si. Firmou, nesse sentido, que os aspectos lingüísticos
aplicam-se imediatamente à arte musical, ou melhor, que a música se põe e comporta como a
linguagem. Assim, para que se possa compreender sua música, dizia, é preciso ter em mente a
lógica da linguagem humana, pois aproximam-se, na medida em que ambas realizam-se por
um discurso que apresenta idéias mais ou menos veladas, pois a língua, pensa Webern, é algo
essencialmente insondável, ou guarda em si uma dimensão humana que a poucos –
pouquíssimos – é verdadeiramente acessível. E, por estranho ou contraditório que possa
parecer, sustentou, posto este argumento, ser sua arte essencialmente apreensível em sentido,
inteligível em plenitude.
Seja como for, ao referir que sua música tem uma apreensibilidade e coerência interna
inauditas, entrecruzando no argumento música e linguagem, vincula tais campos, mas o faz
sem uma argumentação desdobrada, plausível, efetiva. E neste contexto firma que, em
decorrência da necessidade de atingir maiores níveis de expressividade musical, o homem
necessitou adquirir continuamente os recursos naturalmente ofertados, o que se deu por uma
20
seqüência de acontecimentos ordenados e ininterruptos a caminho de realizações musicais
cada vez mais desenvolvidas, evoluídas.
De acordo com a reflexão weberniana, sempre houve o desejo humano de obter
maiores níveis expressivos na música, fato este que contribuiu efetivamente para o processo
de apropriação crescente dos sons presentes na natureza, no som. Aspecto que representou a
catapulta fundamental que demandou e conduziu ao desenvolvimento musical do ocidente,
que atinge o ponto máximo da realização artística com o surgimento do dodecafonismo, ou
onde os sons mais distantes do som gerador puderam ser atingidos e incorporados
musicalmente. Neste modus compositivo, afirma, tornou-se possível efetivar uma obra muito
mais plena, consistente, avançada em relação a toda produção do passado, configurando-se a
lógica dodecafônica, assim, como a expressão musical máxima do ocidente. Então, firme-se,
Webern indica que a real compreensão do desenvolvimento dos acontecimentos histórico-
musicais é passível de alcance a partir e em função do reconhecimento das relações música-
linguagem e música-natureza. Esta é a condição primordial para que se possa apreender a
lógica da música ocidental e seu modus faciendi. Música que, por tal processo natural-
evolucionista, dá forma ou engendra as diferentes formas e gêneros musicais surgidos na
história.
Perquirir o substrato da palavra de Anton Webern é o que arma esta exposição, com o
que se intenta delinear os supostos estético-históricos do autor acerca do surgimento do
dodecafonismo. Na essência do ideário weberniano este estudo agora aspira penetrar, como
seu passo inicial.
1. A relação música-linguagem
Com o objetivo de explicar os principais elementos que propiciaram o surgimento do
sistema dodecafônico, Anton Webern apresentou, já no início da primeira conferência, uma de
suas teses centrais: música e linguagem são fenômenos equivalentes existindo uma associação
direta entre ambos, uma analogia efetiva entre o ser-exatamente-assim destas duas esferas que
se interconectam em função de possuírem uma mesma natureza. Formulando esta relação,
Webern traz à cena Kraus3, que lhe serve de mediação à associação música-linguagem. Assim
considerou:
3 Karl Kraus (1874-1936). Escritor austríaco. A partir de 1911 passa a ser o principal responsável pela redação do periódico vienense Die Fackel – A Tocha –, onde publicou um ensaio sobre a linguagem Nr. 885-887, dezembro de 1932, cujo conteúdo Anton Webern considerou como perfeitamente aplicável à música.
21
Gostaria de referir-me aqui ao ensaio de Karl Kraus sobre a linguagem, publicado no último número do “Die Fackel”. Tudo, nesse texto, pode ser literalmente aplicado à música. Nele, Karl Kraus nos diz como seria importante que as pessoas estivessem familiarizadas com o material que utilizam incessantemente ao longo de suas vidas, assim como são capazes de falar. Ele chega mesmo a dizer, na frase final, a propósito da linguagem: “Que o homem aprenda a servi-la”. Karl Kraus afirma – e prestem bem atenção, pois isso é de extrema importância e devemos estar totalmente de acordo! [...] Precisamos dizer o mesmo! Estamos aqui para falar da música e não da linguagem, mas é a mesma coisa, e podemos desenvolver nosso tema a partir daí. Eis o que diz Karl Kraus: “A conseqüência prática da teoria que se refere à língua e à fala não deveria ser nunca ensinar ao mesmo tempo a linguagem, mas sim aproximar quem aprende da compreensão da forma da palavra, e com isso de um universo cujas riquezas situam-se além do limite das utilidades imediatas. Essa garantia de ganho moral decorre de uma disciplina espiritual que estabelece o grau máximo de responsabilidade diante da única coisa que pode ser impunemente prejudicada – a língua –, e como nenhuma outra é qualificada para ensinar o respeito de todos os valores vitais... Nada seria mais tolo do que supor que é uma necessidade estética que despertamos ou satisfazemos quando pesquisamos a perfeição da linguagem [...] Aproximar-nos dos enigmas de suas regras, dos planos de suas armadilhas, é uma loucura bem melhor do que imaginar que possamos dominá-la”. E não tenhamos a pretensão de aprender para poder dominar: “Aprender a enxergar abismos nos lugares comuns – este seria o dever pedagógico numa nação crescida em pecados...” [...] (WEBERN, 1984, p. 21-22, grifos nossos).
De acordo com esta passagem, segundo Webern, Karl Kraus sugeriu que, muito
embora o homem mantenha contato com a linguagem desde os momentos iniciais da vida, não
atinge o domínio de suas especificidades. Significa que o homem a utiliza apenas para suprir
suas necessidades mais imediatas no ato cotidiano da comunicação, mas não possui o
entendimento real da linguagem que o transportaria para níveis de compreensão muito acima
daqueles que assume na simples comunicação diária.
Vamos tomar o problema. Webern firmou que a capacidade de falar decorre deste
contato permanente com o fenômeno da linguagem, contato este verificado naturalmente
desde o momento em que nascemos. Não obstante, a fala não é a forma superior da
linguagem, a mais profunda e importante humanamente. Então, para que o homem possa
avançar espiritualmente, torna-se necessário que esse domínio da fala – que se põe pela
comunicação cotidiana –, seja maximizado em função do desenvolvimento da compreensão e
familiaridade plena de todos os aspectos inerentes à forma da palavra propriamente dita.
Assim, o recurso da linguagem seria utilizado de forma realmente produtiva, por meio à
aproximação dos seus segredos mais profundos, plenos, quase secretos, que são
compreendidos apenas por aqueles capazes de aproximarem-se do verdadeiro sentido de uma
dada língua. A linguagem humana, pois, não é apenas a comunicação, mas realiza-se numa
22
abstração que a transcende, e nesta esfera assume verdadeiro valor, permitindo ao homem um
domínio dos escuros níveis enigmáticos que a vida encobre, esconde, vela. Domínio a poucos
dado e possível: em última instância, terra do insondável.
[...] Havia perguntado anteriormente: qual poderia ser o interesse de um leigo em conhecer esses elementos [da música], em desvendar “os enigmas de suas regras”? Justamente esse: aprender a descobrir abismos nos lugares comuns! E, isso seria a salvação... estar espiritualmente implicado! [...] Isso de que falamos deve ser uma via para que se aproximem da música; ou melhor, o único sentido de tal discussão é permitir que vocês despertem para o que acontece na música, para o que ela é e, de maneira geral, para o que é a arte (WEBERN, 1984, p. 22-23, grifo nosso).
É neste terreno, precisamente, tomando a linguagem como abstrata metalinguagem,
que Webern ratificou a relação música-linguagem. Retomando: “Estamos aqui para falar da
música e não da linguagem, mas é a mesma coisa” (WEBERN, 1984, p. 22). Nesse sentido,
afirmou que as especificidades da música nova serão compreendidas caso admita-se que, de
fato, música e linguagem são fenômenos totalmente análogos. Ora, se no âmbito da língua
apenas àqueles não subjugados às utilidades imediatas da fala tendem a aproximar-se dos
segredos mais recônditos da linguagem, em decorrência de uma utilização profunda de seus
recursos, o mesmo fato se verificará em relação ao fenômeno musical, posto que linguagem e
música correlacionam-se diretamente. Isto é, apenas àqueles familiarizados, plenamente, com
o material musical naturalmente ofertado que contatam desde os momentos iniciais da vida,
poderão aproximar-se dos segredos da música, estando livres das limitações que lancinam os
outros mortais.
Na concepção weberniana, pois, música é uma linguagem, ou melhor, linguagem e
música possuem uma mesma essência: “O que Karl Kraus, com razão, preza tanto e que
corresponde à teoria da linguagem? As leis da construção musical!” (WEBERN, 1984, p. 34).
Mas linguagem entendida como espaço de sentidos escondidos, de conteúdos indeterminados,
os quais demandam daquele que de fato deseja conhecê-la, um salto para além da significação
imanente da língua, do dizer humano. Se assim o é, a intelecção mais profunda de seu
significado não está na mera palavra dita, da mesma forma que não estará no som em si, na
frase musical ouvida, mas, de algum modo não explicitado por Webern, numa educação do
espírito através da linguagem, que nos possa elevar a patamares de inteligibilidade mais
efetivo, tanto em relação à linguagem, quanto à música. Assim, escutar música supõe de mim,
ouvinte, uma capacidade de apreensão que, cotidianamente, não está em meus domínios.
23
Ainda que, segundo supõe Webern, a “música nova” seja a expressão mais apreensível e
coerente da história da música, enquanto linguagem, configura uma sonoridade que não pode
comunicar imediatamente. Sendo assim, seu sentido mais profundo não está em sua
sonoridade imediata, mas em significâncias veladas que, de mim, demandam outra condição
auditiva ou cultural a qual, in limine, não me pertence e talvez não me seja dado alcançar. Em
suma, se música é linguagem, é um dizer que naturalmente me escapa porque não me
pertence, considerando-se que o homem em relação à linguagem, então à música, necessita
aprender a servi-la!
Numa última referência, reafirmou esta relação agregando ainda, que a música
expressa aquilo que a língua não faz, algo que esta não pode manifestar. Sem dizer o que seria
esse algo, porém, relacionou uma vez mais as duas esferas, repondo a noção de que se de
música ou linguagem se trata, de algo quase inatingível, inexplicável, em seu sentido efetivo
se versa:
Deve ter existido uma razão, alguma necessidade subjacente para que surgisse isto que chamamos música. Qual necessidade? Aquela de dizer alguma coisa, de exprimir algo, uma idéia que não poderia ser expressa de outra maneira que não fosse pelos sons. Não pode ter sido de outra forma. Senão, por que todo este trabalho se se pudesse dizer a mesma coisa através de palavras? É de forma análoga que o pintor também tomou posse da cor. Por meio dos sons tentamos comunicar alguma coisa que não pode ser dita de outra maneira. Nesse sentido a música é uma linguagem (WEBERN, 1984, p. 37, grifos nossos).
2. A relação música-natureza
No interior deste fundamento, Webern introduziu sua segunda premissa musical
basilar, a saber: a música é ato fundado na natureza, pois o som é elemento naturalmente
ofertado. Assim, a música caracteriza-se como movimento gerado a partir e em função do
som em si, ou melhor, na apropriação do som, de sua série harmônica, que se fez
historicamente crescente, lógica que necessariamente abriu para sua concepção evolucionista
da música, como se mostrará em momento adequado. Trata-se, então, de um processo
relacionado com a exploração da série harmônica, série que a música apropriou-se em
ampliação histórica posta a necessidade de uma maior expressão artística: ou seja, à medida
em que os harmônicos mais distantes do som gerador foram atingidos, verificaram-se maiores
possibilidades sonoras, chegando-se a um momento em que níveis muito distantes da série
24
foram conquistados, culminando na utilização do total cromático. E se assim o é, se houve
ampliação dos sons em campo musical, a apreensão desta “música nova” demandou do
ouvinte um nível diferenciado de apropriação e percepção dos sons.
Em claro intento de sustentar sua tese da música natural, vale a expressão, sustentação
que para ele passa pela necessidade de se conhecerem as leis naturais do som, citou Goethe4,
no sentido de adquirir fundamentação teórica para sua premissa. Vejamos:
Por enquanto, gostaria de falar de forma bem geral, e dizer que toda arte, assim como a música, está baseada em leis, e nossa investigação sobre o material musical, como a pretendemos, só pode partir da fundamentação relativa de tais leis. Quero aqui citar algumas frases maravilhosas de Goethe, que servirão de base para tudo o que discutiremos e que têm, ao menos para mim, a força da evidência. Eu as menciono para que as tenhamos constantemente presentes ao longo de nossos encontros. Na introdução de sua “Teoria das Cores” Goethe fala aforisticamente da “impossibilidade de explicar a beleza na natureza e na arte... Queremos descobrir leis... Dever-se-ia conhecê-las”. Embora Goethe considere isso quase impossível, resta a necessidade de “procurar conhecer as leis segundo as quais a natureza universal, sob a forma particular da natureza humana, tende a agir de maneira produtiva e, quando pode, produz efetivamente...” (WEBERN, 1984, p. 23).
E continua seu raciocínio, entendendo promover a correlação de suas idéias com passagens de
Goethe:
E devo citar Goethe uma vez ainda [...] Ele diz [...] “a cor é a expressão das leis da natureza na sua relação com o sentido da visão”. Como entre cor e música não existe uma diferença de essência, mas apenas de grau, pode-se dizer que a música é a expressão das leis da natureza na sua relação com o sentido da audição; basicamente é a mesma coisa que a cor, e tudo que disse sobre ela. Considero isso verdadeiro, e afirmo que, se desejamos discutir aqui sobre música, só poderemos fazê-lo caso reconheçamos e acreditemos que ela é a expressão das leis da natureza na sua relação com o sentido da audição (WEBERN, 1984, p. 25, grifo nosso).
Deve-se marcar aqui, pois, a despeito da precipitada e incompleta interpretação de
Goethe, que o intento weberniano centrou-se em ratificar seu ideal de que todas as discussões
relativas às questões musicais devem ser desenvolvidas, apenas, sob tal perspectiva. Partindo
deste ponto de vista observou que a música deriva-se de leis naturais, portanto, é som advindo
4 Johann Wolfgang von Goethe, 1749-1832, filósofo e artista alemão.
25
da natureza e que a audição de algum modo pode captar. Ao retomar Goethe, com uma
liberdade interpretativa notável, insiste:
As frases de Goethe devem ter mostrado com muita clareza o que quero dizer. Falando mais simplesmente: o ser humano é apenas o receptáculo no qual é versado aquilo que a “natureza universal” deseja exprimir. Vejam, quero dizer mais ou menos o seguinte: assim como o naturalista se esforça em descobrir as leis que são a base da natureza, devemos também procurar descobrir as leis segundo as quais a natureza, sob a forma particular do ser humano, é produtiva. E isso nos leva a considerar que as coisas, que geralmente são o objeto da arte, com as quais ela tem a ver, não são “estéticas”, mas derivam-se de leis naturais e que todas as observações sobre música podem apenas situar-se sob essa perspectiva (WEBERN, 1984, p. 24, grifo nosso).
Repondo e desenvolvendo esta questão central para que se possa entender o
pensamento weberniano. Segundo Webern, a música deriva-se de leis naturais. Logo, o
entendimento do som, isto é, da série harmônica, de seu movimento no curso da história da
música, configura-se como uma condição básica neste processo de conhecimento.
Acreditando que os sons são ofertados pela natureza através da derivação a partir de um som
gerador, refere que é imprescindível para o conhecimento da lógica percorrida pela música em
seu processo de evolução subjacente, o conhecimento de todas as peculiaridades inerentes à
série harmônica, ou a forma como o homem conquistou seus recursos ao longo do tempo. Nas
palavras claras do autor, que não deixam dúvidas:
Qual é o material da música? O som, não é verdade? Portanto é a esse nível que devemos nos situar, pesquisando leis e examinando suas implicações. Não sei até onde vai o conhecimento de todos vocês, mas gostaria de colocar o seguinte: como se chegou a isto que chamamos de música? Como os seres humanos utilizaram o que foi dado pela natureza? Vocês sabem que o som não é um elemento simples, mas composto. Sabem ainda que cada som é acompanhado de sons harmônicos, cuja série na verdade é infinita. É interessante notar como o ser humano valeu-se desse fenômeno dispondo do que lhe era imediatamente necessário para criar uma forma musical, como se serviu desse mistério (WEBERN, 1984, p. 27, grifo nosso).
Para Webern, então, o desconhecimento de tais aspectos do som é fator que impede a
compreensão intelectual das expressões artísticas da modernidade, bem como de qualquer
outro período, o que impede que as pessoas possam captar e apreciar de fato uma idéia
musical. Nas suas palavras: “é importante tratarmos de tais questões, se desejamos apreciar
26
idéias musicais. É estranho como existem poucas pessoas capazes de compreender uma idéia
musical” (WEBERN, 1984, p. 31). Assim, desdobra o compositor, a incapacidade de
apreciação de uma idéia musical detentora de valor artístico constitui um dos motivos através
do qual existem casos em que compositores medíocres são supervalorizados em detrimento de
grandes expoentes da música. Tal fato, pois, é conseqüência de uma apreciação musical
fundada em parâmetros que são extramusicais ou, por assim dizer, extranaturais, não
correlacionados, pois, com os fatores musicais naturais, pelo que a música é em sua essência.
Ao tornar seu discurso mais concreto nomeando períodos e fatos, a relação música-
natureza reafirma-se com muita clareza. De fato, para Webern, se de música se trata, trata-se
de uma operação no coração dos sons, que naturais, alimentaram a história da música em
função de uma maior ou menor aproximação com um determinado som fundamental. No
fundo, este é o segredo da música: uma evolução que, em última instância, traduz-se como
libertação gradual dos sons harmônicos contidos naturalmente no som, que é complexo. Ao
exemplificar, assim configura:
Falando mais concretamente: de onde se origina esse sistema de sons, do qual os seres humanos se valem desde que existem obras musicais? Como tudo isso aconteceu? Bem, pelo que sabemos, a música ocidental – refiro-me a tudo que se conhece desde a música grega até a atual – é fundada sobre certas escalas sonoras que assumiram formas determinadas. Conhecemos os modos gregos, os modos eclesiásticos dos tempos antigos. Como chegamos à construção dessas escalas? Elas são na verdade uma conseqüência dos sons harmônicos. Como vocês sabem, primeiro vem a oitava, depois a quinta, na oitava seguinte a terça e, continuando, a sétima. O que evidenciamos então? Que a quinta é o primeiro som diferenciado que aparece e, portanto, o que tem maior afinidade com o som fundamental. Isso nos permite concluir que esse som mantém uma relação idêntica com um outro fundamental situado uma quinta abaixo. Assim, temos uma espécie de paralelogramo de forças, o “equilíbrio” está garantido, as forças que tendem para cima e as que tendem para baixo se contrabalançam. Eis algo extremamente interessante: o fundamento tonal da música do ocidente nada mais é do que os primeiros sons desse paralelogramo de forças: Dó (sol, mi) – Sol (ré, si) – Fá (dó, lá). Portanto, os sete sons da escala são dados pelos harmônicos desses três sons intimamente próximos e relacionados. Vocês vêem então como esse material é inteiramente fornecido pela natureza. É assim que podemos explicar nossa gama de sete sons, e pode-se supor também que ela se estabeleceu dessa forma (WEBERN, 1984, p. 27-28).
Vale dizer,
Repito: a escala diatônica não foi inventada, foi encontrada. Ela já existia, e sua dedução foi simples e clara: os harmônicos do “paralelogramo de forças” dos três
27
sons vizinhos e aparentados fornecem as notas dessa escala. Assim, são justamente os harmônicos mais importantes, aqueles que estão mais próximos do som de base, que formam a escala diatônica; algo inteiramente natural, nada imaginário [...] A tríade, de cujo desaparecimento se faz tanto alarde, desempenhou um papel muito importante na música até nossos dias. O que é a tríade? A formação compreendendo os dois primeiros harmônicos de nome diferente logo após o som fundamental. É portanto uma reconstrução desses harmônicos, uma imitação da natureza e das primeiras relações originalmente contidas na estrutura sonora (WEBERN, 1984, p. 35-36, grifos nossos).
Para Webern, a música funda então suas raízes na natureza: dela se apropria, ou toma
o material que é seu próprio objeto, o som. Som que, complexo, faz da música eco de si,
música que é um desdobramento contínuo e crescente de suas possibilidades internas. Ao
homem cabe, em última análise, dar movimento a algo que é natural, cabe desenvolver este
som em tudo aquilo que ele contém, desabrochando-o. Desenvolvimento, porém, que se
realiza no interior de uma organização humana, assim como na linguagem. Então, esta
natureza é apropriada como linguagem, o que significa que a música é a linguagem da
natureza. Ou melhor, a natureza é a base da linguagem musical e, se é linguagem, não se
traduz em termos evidentes, imediatos: de fato, o significado da linguagem musical, porque
linguagem, não é aparente, mas abstrato, abstração então que é sua própria condição.
Entretanto, antes de maiores conclusões, sigamos em frente na análise do texto, que, contudo,
já permitiu um primeiro recorte claro em seu intento.
2.1. O evolucionismo musical
Referido de saída: para Webern, toda a história da música revelou a história da
apropriação da escala harmônica do som fundamental. Senão, sem dúvida, sua parte
estrutural. Vejamos.
De acordo com o ideal weberniano, desde os gregos até a música moderna, a música
utilizou os recursos da série harmônica como seu eixo formador. Série que se ampliou numa
evolução que conduziu a música a patamares musicais mais elevados. Em termos explícitos:
“percorramos a evolução ao longo dos séculos, e veremos então o que é realmente a música
nova. Assim, talvez venhamos a saber o que hoje é música nova e música obsoleta”
(WEBERN, 1984, p. 26). Isto é, em palavra que desdobra,
28
Vamos comentar sobre o desenvolvimento da música nova. Para nós, somente os fatos serão pertinentes, não os pontos de vista. O que foi decisivo nesses acontecimentos musicais? Na última vez, tratamos de um dos aspectos: a conquista contínua do material fornecido pela natureza. Analisamos as noções de base: a formação da escala diatônica, a natureza semelhante dos acordes simples e complexos, e vimos ainda que a evolução começou por aquilo que estava mais próximo às mãos. O acorde perfeito é a prova disso: ele é a reconstrução dos harmônicos mais próximos do som fundamental. Em seguida, explorou-se cada vez mais esse material (WEBERN, 1984, p. 41, grifos nossos).
A reflexão é clara: o suposto de que o homem apropriou-se progressivamente dos sons
existentes na série harmônica com vistas à realização musical constitui um evolucionismo
musical. De acordo com esta ótica, todo desenrolar dos acontecimentos estético-musicais
verificados na música configurou um processo gradual em que todos os eventos surgiram em
decorrência de tal apropriação sonora. Este desenvolvimento natural foi determinado
efetivamente, segundo Webern, em função do nível de exploração frente à série harmônica
verificado em cada momento histórico, numa gradação crescente e permanente. Em citação
que se reconduz, posto o novo contexto:
A arte é um produto da natureza universal, sob a forma da natureza humana [...] Agora, falando concretamente: o som é a expressão das leis da natureza na sua relação com o sentido da audição. Examinamos já o material musical e constatamos sua sujeição a leis. Minha intenção é a de que vocês pensem e observem as coisas segundo essa ótica particular. Como já disse, uma nota é um complexo formado por um som fundamental e seus harmônicos. Houve então um processo gradual, no qual a música explorou, um após outro, cada nível desse material composto. Esse foi o caminho: Fez-se recurso primeiramente ao que estava mais próximo e após ao que estava mais distante (WEBERN, 1984, p. 34-35, grifo nosso).
Daí, Webern sugeriu que, diante deste processo, evolucionista, torna-se inconcebível a
criação de composições musicais em que haja uma utilização de sons inerentes aos estágios
anteriores de apropriação da série harmônica, principalmente, em razão de que o nível de
exploração dos recursos naturalmente ofertados atingiu níveis consideráveis na modernidade
culminando, portanto, na realização do sistema dodecafônico:
Nada, portanto, é mais falso que a opinião já antiga e que ainda hoje persiste: “Deve-se compor como antes, sem tantas dissonâncias como agora!”, pois estamos diante de uma apropriação cada vez mais completa do que é dado pela natureza! A série dos harmônicos é praticamente infinita. Diferenciações sempre mais sutis são
29
possíveis, e, desse ponto de vista, não há nada que se possa opor à música de quartos de tom5 e outras semelhantes. A única questão é se a época atual está madura para isso. Mas esse caminho é totalmente válido, está traçado pela natureza do som. Deixemos claro, portanto: o que se ataca hoje é um dado da natureza, assim como aquilo que se fazia antigamente (WEBERN, 1984, p. 35, grifo nosso).
Nesses termos, relacionou evolução e dissonâncias enquanto frutos do avançar da
natureza do som. Logo, todas as relações do som, ao serem apropriadas, libertaram a
dissonância. Consequentemente, novas possibilidades de combinações tornaram-se possíveis
justificando, de per si, o desaparecimento da tríade em pró da totalidade não hierárquica das
combinações sonoras. Ou ainda, em decorrência de que o ouvido humano passou a perceber
os sons intermediários, além daqueles situados no nível mais próximo ao som fundamental,
surgiu uma nova época em que não mais haveria justificativa de se criarem quaisquer
realizações musicais baseadas no sistema tonal e suas respectivas correlações. As
dissonâncias foram compreendidas como elementos naturalmente ofertados, não especiais ou
eventuais, mas material que, alcançado pela história como iguais entre as consonâncias, não
deveriam sofrer esta ou aquela restrição específica. Portanto, os sons alterados deveriam
receber o tratamento musical dos demais elementos da série harmônica. Daí o fato que, na
composição com doze sons, cada som inerente ao total cromático foi tomado individualmente,
não havendo sentido em se valorizarem quaisquer sons em detrimento dos demais, lógica de
apropriação da natureza, das dissonâncias, que significa, marque-se, evolução,
aperfeiçoamento, caminho para frente, “música nova”, enfim:
Acrescentamos algo que, segundo sei foi expresso pela primeira vez por Schoenberg: chamamos consonâncias a esses acordes simples; mas logo chegou-se à conclusão de que os harmônicos mais distantes, denominados então dissonâncias, podiam provocar sensações mais picantes. Precisamos entender bem que consonância e dissonância não se diferenciam essencialmente: existe entre elas somente uma diferença de graus, não de essência. A dissonância é apenas uma etapa posterior na continuidade da série harmônica. Não sabemos realmente aonde conduz essa luta contra Schoenberg, que se funda na acusação de abuso das dissonâncias. Naturalmente isso é um absurdo. Essa é a luta que a música sempre teve de empreender. Essa é a crítica que recai sobre todos aqueles que ousaram ir além. É verdade que, neste último quarto de século, a transgressão foi muito acentuada e de magnitude nunca antes conhecida na história da música – não há menor sombra de dúvidas quanto a isso. De toda maneira, aquele que aceita uma diferença de essência entre consonância e dissonância está errado, pois os sons –
5 Webern parece mencionar que a música de “quartos de tom” fora fruto da época atual, momento em que o homem conquistara toda a série harmônica, o que, firme-se desde já, historicamente não se pode sustentar. Sabe-se que o sistema musical grego já apresentava intervalos inferiores ao pykon, menores do que meio tom, quartos de tom ou aproximados, microtons, etc.
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como eles existem na natureza – contêm neles mesmos todo o universo das possibilidades sonoras, e assim se deu a evolução (WEBERN, 1984, p. 36-37, grifos nossos).
Em outros termos, o caminho natural da música descreveu a conquista dos sons
harmônicos a partir do som fundamental. Sons que foram conquistados pela “música nova”
numa intensidade inaudita tendo modificado o caráter da dissonância: de fato, deixou de
existir, pois todos os sons – em condições igualitárias – realizam-se agora em patamar de
igualdade compositiva. Um processo resultante do esgotamento do canto monódico antigo,
depois a modalidade, que, ao tornar-se bimodal, instaurou a tonalidade ou o sistema de
polarização da tônica. Enfim, no século XX houve uma forma máxima de utilização dos sons
musicais, um passo evolutivo desconhecido na composição. Evolução que, incorporando os
sons naturais à linguagem musical, deu forma à “música nova”, que é expressão do avanço
pleno. Na letra de Webern, que ao falar da superação da tonalidade – vista com certo
simplismo, como uma lógica meramente harmônico-triádica – confirma a reflexão realizada:
Pelo fato de se ter composto cadências cada vez mais ricas, substituído progressivamente os acordes de subdominante, dominante e tônica por outros, e depois alterado ainda estes últimos, a tonalidade acabou sendo levada à explosão. Os acordes substitutos tornaram-se cada vez mais autônomos. Foi possível atingir, aqui e ali, uma outra tonalidade. Quando se passava das teclas brancas às teclas pretas, perguntava-se: Sim, e agora, devo realmente descer de novo? Os acordes substitutos tornaram-se tão predominantes que não houve mais necessidade de retornar à tonalidade principal. É a esse estágio da tonalidade que pertencem todas as obras que Schoenberg, Berg e eu mesmo escrevemos antes de 1908. Por onde se deve caminhar? Devemos realmente retornar às relações da harmonia tradicional? Foi refletindo sobre essas questões que adquirimos a certeza: “Nós não temos mais necessidades dessas relações, nosso ouvido está também satisfeito sem tonalidade”. A época estava simplesmente madura para o desaparecimento da tonalidade. Foi naturalmente um combate muito duro; tinha-se que superar os mais terríveis obstáculos e o medo: “Isso é realmente possível?” Ocorreu então que, aos poucos, compusemos freqüente e conscientemente peças sem a tonalidade definida [...] Sem dúvida, não tem sentido opor-nos contestações “sociais”. Por que as pessoas não entendem isso? Era, de nossa parte, um passo à frente que devia ser dado, um avanço como jamais se observou anteriormente (WEBERN, 1984, p. 109-110, grifo nosso).
No interior de tal pensamento, externou que a música está inserida efetivamente num
processo de evolução. Sendo assim, não se pode espantar a conclusão de que o ponto
culminante desta dinâmica evolutiva do som tenha se caracterizado pela “música nova”:
momento artístico em que a música apresentara-se sob sua melhor forma, isto é, no maior
31
nível de coerência interna possível, significando dizer também que sua apreensibilidade por
parte do ouvinte atingira, igualmente, a melhor condição. Coerência e apreensibilidade que,
para Webern, representam as características fundamentais de uma linguagem musical efetiva,
pois coerência é a condição de dizer, de ser linguagem, o que significa, imediatamente, a
condição de comunicar, o que se traduz pelo nível de apreensão do ouvinte. Vejamos a
questão, que reafirma não apenas a dimensão evolucionista que Webern tem da música, mas
também a idéia de que esta arte organiza-se a partir da natureza.
Webern firmou que o sistema dodecafônico, enquanto estrutura capaz de apresentar uma
idéia musical6 das mais variadas formas – pois não é apenas um ato monódico, mas polifonia,
que necessariamente contém e gera complexidade sonora – atingiu um ponto aspirado ao
longo dos tempos, tendo em vista o nível de coerência de sua orgânica. A partir deste ponto,
supôs que o sistema dodecafônico propiciou um maior nível de apreensibilidade ao ouvinte,
em decorrência de que diversas possibilidades de apresentação de uma mesma idéia musical
foram obtidas e efetivadas. Chegou-se, enfim, ao nível há muito desejado, a uma arte que,
entre as diversas expressões surgidas no transcorrer da evolução musical, configurou “aquilo a
que os mestres da composição musical aspiraram e perseguiram desde que se pensa em
música” (WEBERN, 1984, p. 41). Uma coerência interna, um tecido sonoro onde os
elementos apresentaram-se fortemente correlacionados entre si gerando uma extrema clareza
expositiva das idéias. Tal estrutura musical permitiu uma clara percepção de suas relações
específicas, uma apreensibilidade positiva para àqueles historicamente situados, portanto,
aptos para captá-la. Dado que a possibilidade de tornar uma idéia apreensível está diretamente
relacionada com a forma de apresentação do discurso musical, a compreensão musical estará
preservada na medida em que haja reais níveis de coerência naquilo que se deseja expressar.
Pela sua própria palavra, ao expor claramente o ideal de que a coerência é uma necessidade
musical de fundo:
Algo é dito através dos sons: logo, há uma analogia com a linguagem. Quando desejo comunicar alguma coisa, surge imediatamente a necessidade de me fazer entender. Mas como fazer para me tornar inteligível? Expressando-me o mais precisamente possível. Aquilo que digo deve ser claro. Não posso me perder em considerações vagas. Para isso existe um termo exato: apreensibilidade. O princípio máximo de toda apresentação de idéias é a lei da apreensibilidade. Essa certamente deve ser a lei suprema [...] Então, em sentido figurado, apreensível é aquilo que compreendo de maneira global, cujos contornos posso distinguir [...] O que é então diferenciação? De forma geral, introduzir divisões! Para que servem essas divisões? Para discernir elementos, para distinguir as coisas principais das secundárias. Isso é
6 Webern jamais chegará a dizer o que é uma idéia musical, conquanto afirme que a música a expresse.
32
necessário para o entendimento, e assim também deve-se proceder em música [...] É necessário que haja uma coerência, senão ninguém os compreenderá. Temos aqui um elemento que desempenha um papel especial: A coerência é necessária para tornar uma idéia apreensível (WEBERN, 1984, p. 42-43, grifos nossos).
Segundo Webern, ao longo da história, os grandes compositores sempre objetivaram
atingir níveis cada vez maiores de apreensibilidade e coerência em suas obras. Entretanto,
apenas no momento dodecafônico tais objetivos foram plenamente atingidos, posta uma
coerência incomparável:
Poder-se-ia dizer que, desde que se compõe música, a maioria dos grandes artistas se empenhou em tornar essa coerência cada vez mais clara. Tudo que ocorreu se fez nessa direção, e acredito que na nossa época atingimos um novo grau de coerência, graças ao método de composição, tão polêmico, que Schoenberg chamou “composição com doze sons relacionados somente entre si” [...] A composição com doze sons atingiu em coerência um grau de perfeição jamais verificado anteriormente. É claro que, quando existem relações e coerência em todos os níveis, a apreensibilidade está garantida (WEBERN, 1984, p. 43, grifos nossos).
Com relação à conformação das idéias musicais, isto é, os mecanismos utilizados para
que o espaço musical7 de uma determinada obra fosse utilizado ao máximo possível pelos
compositores, Webern discorreu acerca das características intrínsecas aos recursos monódicos
e polifônicos indicando que sua música caracterizou a síntese dos melhores procedimentos de
cada esfera, sendo regida, fundamentalmente, pelo sentido e estrutura polifônica. Segundo ele,
existe uma distinção qualitativa entre idéias musicais configuradas sob a forma monódica e a
polifônica, tendo em vista que a existência de uma única voz monódica é insuficiente, em
qualquer tempo ou gênero, para a realização da expressividade musical necessária sendo vital,
pois, a utilização de mais vozes no discurso. Em tese, quanto mais vozes maiores
possibilidades de expressão das idéias, constituindo uma realização musical condizente com o
potencial do som em si. Nesse sentido, há uma necessidade crescente de expandir o
preenchimento do espaço sonoro, através da adição de mais vozes além daquela que se faria
monodicamente solitária. Uma necessidade resultante da aspiração por um espaço polifônico,
mediação fundamental para a música dodecafônica. Esta por sua vez, em termos da coerência 7 Termo apresentado por Anton Webern com o objetivo de caracterizar a forma através da qual uma idéia musical se desenvolveria no interior de uma obra. Mesmo que de forma não clarificada, o autor utilizou tal expressão como parâmetro para diferenciar qualitativamente músicas de caráter monofônico, homofônico e polifônico.
33
buscada em todas as vozes, caracteriza-se também como uma música pensada a partir de uma
idéia escalar apresentando, ainda, todas as possibilidades e variações desejadas. Refere
Webern:
Nós queremos, e devemos, falar sobre o espaço que ocupa uma idéia musical. Foi sempre possível e concebível que uma idéia musical fosse expressa por uma monodia [...] Na música ocidental, a monodia existiu regularmente no canto gregoriano. Este é exatamente o momento da história, de onde devemos partir para seguirmos o caminho percorrido. Mas, digamos sem demora, sentiu-se logo a necessidade de não limitar a apresentação de uma idéia musical a uma só voz; buscou-se ampliar os horizontes. Quando diversas partes soam simultaneamente emerge uma dimensão de profundidade; a idéia não é mais expressa por uma única linha, e essa é a natureza da apresentação polifônica. Como entendemos o fato de uma voz ser insuficiente para expressar uma idéia musical, e de diversas outras serem necessárias? Retomemos com mais clareza: muito cedo surgiu a necessidade de fazer intervir uma outra dimensão. Inicialmente as idéias podiam ser apreendidas quando expressas numa só voz; da mesma forma, nasceram mais tarde idéias que esse modo de apresentação era insuficiente para exprimir. Foi necessário ganhar mais espaço, acrescentar outras vozes à primeira [...] A idéia é distribuída no espaço, não está mais contida numa linha apenas – esta não seria suficiente para exprimi-la; somente a união das vozes possibilita a expressão da idéia na sua plenitude (WEBERN, 1984, p. 44-45, grifos nossos).
A real expressão de uma idéia passa, pois, pela polifonia, um amplo espaço do dizer
musical, portanto, detentor de maior profundidade. Assim, o deslocamento do monódico para
o polifônico configurou-se como uma conseqüência natural, mesmo diante da força inerente à
textura monodia-acompanhamento caracterizada por outras expressões musicais como a ópera
e a música folclórica ou popular que, por sua vez, exerceram influência nas estruturas da
música erudita de um modo geral. Mas a polifonia assumiu uma condição vital, sendo assim,
tornava-se inconcebível pensar coerência musical em estrutura não regida pelos fundamentos
polifônicos. Em outras palavras, “Não se acrescentou uma voz por simples capricho [...] uma
necessidade absoluta conduziu seu criador, que não pôde agir de outra maneira” (WEBERN
1984, p. 45). Necessidade que significa a possibilidade do som expandir-se, expressar-se,
dada sua própria multiplicidade, ou a complexidade de que é feito, em outros termos, e
reitere-se, “somente a união das vozes possibilita a expressão da idéia na sua plenitude”
(WEBERN 1984, p. 45).
Numa palavra, a partir do momento em que o homem sentiu a necessidade de
caminhar para um estágio musical mais avançado, no tocante ao conjunto de meios
empregados à composição musical, houve a percepção de que a junção das idéias no sentido
vertical e horizontal corroborava substancialmente para a tarefa de preencher o espaço
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musical. A interação entre tais dimensões, com vistas à ampliação deste dito espaço musical,
lança à polifonia e foi extremamente importante para o processo evolutivo. Nos termos de
Webern (1984, p. 50), que importa citar: após a larga vigência do canto gregoriano “sentiu-se
logo a necessidade de ampliar esse espaço, de apresentar uma idéia musical de tal forma que
ela não fosse mais exclusivamente horizontal, mas possuísse também a profundidade da
polifonia”, que se desenvolve até o surgimento da escola neerlandesa8 e, passado um hiato
contrapontístico histórico, pela realização musical de Bach.
Este hiato esteve atado, lato sensu, mencione-se porque Webern o considera, ao
surgimento da ópera. Um momento em que, mesmo diante do fato de que o contraponto
continuava musicalmente presente, paralelamente o monódico adquiria uma força nova.
Entretanto, tal momento histórico foi considerado por Webern, sem mais, como momento
musical menor. Momento que, tempos monteverdianos, pouco depois se vê reconduzido a um
patamar mais pleno, pelas mãos de Bach, um sintetizador:
Porém nessa época, em que a polifonia se desenvolveu de maneira cada vez mais rica, vemos surgir um outro método de apresentação, relacionado com elementos mais primitivos, com formas de dança e coisas do gênero. O que vemos formar-se, então? Isso nos conduzirá até J. S. Bach, o apogeu que integra ambos os métodos de apresentação. Com base no fato de uma idéia poder ser apresentada polifonicamente, desenvolveu-se um tipo de formas mais populares, as formas de dança, e assim emerge o conceito de “acompanhamento” [...] (WEBERN, 1984, p. 51, grifos nossos).
Esclarecendo esta passagem obscura. Conquanto o monódico seja menor na concepção
de Webern, por requerer um acompanhamento, necessariamente implicou no incremento da
harmonia. Assim, na medida em que a valorização melódica diminuiu a possibilidade
expressiva do som, embutiu, por outro lado, o surgimento de uma harmonia, acompanhadora,
o que significou a apropriação de sons harmônicos, algo absolutamente fundamental para a
evolução que acabaria na “música nova”. Apontou Webern,
[...] O que é isso? O que devemos entender por “acompanhamento”? Não sei se essas coisas já foram tratadas sob este ponto de vista, mas acho importante conduzi-las nessa direção. É sem dúvida curioso que alguém cante, e outra pessoa “acrescente alguma coisa”! Estabelece-se, portanto, uma hierarquia entre elementos principais e elementos secundários, por conseqüência algo de muito diferente da
8 Webern refere-se aos representantes da Escola Franco-Flamenga dos séculos XV e XVI.
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autêntica polifonia. Aqui também a idéia não é explorada numa única melodia, mas reforçam-se certas tendências das funções musicais. Na época que chega até Bach e Haendel – muito embora não se deva confundir! –, devem ter sido determinantes os elementos que tendiam a uma forma de apresentação conferindo prioridade a uma voz. É o período onde vemos uma extraordinária ampliação do domínio sonoro resultante da valorização da harmonia (WEBERN, 1984, p. 51)9.
Não obstante o incremento harmônico, a música monódica é pobre, firmou Webern,
estilo que se o impulsionou, desenvolveu e ampliou, abrindo portas futuras, é estruturalmente
música menor:
À época da polifonia, porém, sucedeu uma outra que inicialmente, de maneira mais rudimentar, se limitou ao retorno da monodia; naturalmente com um “acompanhamento”, uma vez que a polifonia estava admitida, mas sem o emprego dos recursos da polifonia autêntica. É a época em que nasce o estilo homofônico, a época de Monteverdi, do desenvolvimento da ópera, uma época que se restringe a inventar belas melodias para o canto e lhe fornecer um complemento, reduzido ao mínimo necessário, sob a forma de acompanhamento. Esse método de apresentação alcançou seu clímax na escola clássica vienense. É interessante vermos como isso se dissolveu, como retornamos novamente a uma forma de composição mais primitiva, após as extraordinárias realizações do método polifônico. Houve novamente o desejo de concentrar o pensamento musical numa só voz (WEBERN, 1984, p. 51-52, grifos nossos).
Ressalte-se: esta interpretação da história da música vinculou-se ao fato de que
Webern aproximou dodecafonismo e polifonia, na medida em que a nova textura criada
moveu-se por vozes sobrepostas, textura que, livre harmonicamente, teve de ser então
polifônica: meio musical mais abrangente, de fato, expressivo, coerente e apreensível. Não
obstante, referiu que o momento monódico acabou por se transformar, posto o
desenvolvimento do acompanhamento, num fazer de talhe contrapontístico, de sorte que sua
música, filha da polifonia, não podia deixar de ser filha desta monodia que se polifonizou.
“Música nova” que, de outro lado, encerrou em si o alargamento das fronteiras harmônicas,
algo vital para Webern. Alargamento que é evolução, que é som natural ampliado, que é
apreensibilidade definitiva. Na ampla reflexão de Webern, ao ratificar o exposto:
9 Paralelamente a este processo de obtenção da harmonia, Webern introduz a idéia de que a conquista da gama cromática já se evidenciara à época de J. S. Bach.
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Deixemos, pois, bem claro que na música clássica surgiu novamente o desejo de exprimir uma idéia musical numa só linha. Então, porém, aconteceram coisas interessantes: progressivamente o complemento da parte principal, o “acompanhamento” da linha única, adquiriu um significado maior, ocorreu uma transformação paulatina, sem rupturas essenciais; essa transformação provinha do desejo de se obter no acompanhamento da idéia principal uma coerência cada vez maior, e, por conseqüência, de criar relações sempre mais estreitas entre a melodia principal e o acompanhamento. Isso se deu quase imperceptivelmente e resultou no método de apresentação polifônico, a que chegamos hoje. Então, novamente, uma conquista cada vez maior do material! Gostaria de dizer isto de outra forma, numa visão panorâmica: houve uma alternância dos métodos de apresentação; a apresentação das idéias musicais se desenvolveu, seja em uma, seja em várias linhas, e podemos ver como esses dois métodos se interpenetraram cada vez mais estreitamente. O resultado de todo esse esforço é a música de nosso tempo. Não podemos criar, numa época avançada, obras à maneira de épocas antigas, pois já vivemos a evolução da harmonia. No classicismo procurou-se concentrar a idéia inteira numa só linha e complementá-la com um acompanhamento. Como poderíamos compreender, sob este ponto de vista, as obras dos mestres de nosso tempo? Elas são o resultado da fusão desses dois métodos de apresentação (WEBERN, 1984, p. 52-53, grifos nossos).
De fato, e isso deve ser marcado posto o contexto expositivo, Webern considerou
inadmissível a concepção de músicas elaboradas fora daquilo que entende por evolução,
enquanto aspecto musical imanente, à música moderna em particular. Segundo o compositor,
à época do dodecafonismo todas as possibilidades harmônicas foram desenvolvidas e
vivenciadas de acordo com a evolução do som. Webern interpretou o processo musical
histórico exatamente como um movimento contínuo em busca da gama cromática, isto é, com
vistas à aquisição completa dos doze sons: o objetivo histórico da música, consciente ou não.
Sua leitura da história, enfim, caracterizou-se pelo intuito maior em evidenciar um movimento
inexorável de conquista da gama cromática, uma vez que a música, em última instância,
conformou a história da transformação da dissonância em consonância, até sua supressão
final. Nos termos do artista:
Falei da última vez sobre o período e a sentença de oito compassos, mas isso envolvia um problema mais profundo; o pleno florescimento da polifonia foi alcançado pela escola neerlandesa, e vemos mais tarde toda essa polifonia declinar e ser substituída por algo totalmente diferente: a criação de formas nas quais a apresentação das idéias musicais exige uma única linha. É nesse contexto que falamos de tais formas, e eu gostaria de continuar e lhes mostrar de que maneira esse método de apresentação se aperfeiçoou. Pode-se ver que essas formas forneceram a base para toda a construção temática, pois tudo o que ocorreu depois dos grandes clássicos – especialmente em Schumann, Brahms e Mahler –, repousa nelas. Examinamos também dois exemplos do apogeu da polifonia, e constatamos – digamos bem claramente, pois isso será elucidativo também para a música de nosso tempo! – como se conquistou pouco a pouco o domínio sonoro; quer dizer que, na época do estilo polifônico, começa simultaneamente uma evolução do diatonismo ao
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cromatismo – em direção à conquista dos doze sons [...] (WEBERN, 1984, p. 69, grifo nosso).
Desdobrando brevemente esta questão. Segundo Webern, os fatores que ocasionaram a
desestruturação do modalismo foram os mesmos que determinaram o fim do sistema tonal. O
surgimento de notas e acordes estranhos à tonalidade principal fomentou a renúncia da tônica,
gerando um contexto de despolarização tonal. Tal renúncia, por esta introdução crescente e
irrevogável, historicamente predeterminada, pressupõe e desemboca na ampla utilização da
gama cromática que, acirrada em sua manifestação, é “música nova”, ou nova expressividade
artística do som feito dissonância-consonância. Processo que, grosso modo, assim configurou-
se tecnicamente:
[...] Recapitulando: primeiramente se conquistou a escala de sete sons, e essa escala tornou-se a base de estruturas que conduziram além dos modos eclesiásticos. Vemos então duas dessas escalas se distinguirem progressivamente e levar vantagem sobre as demais: elas correspondem aos modos maior e menor atuais. E é notável que foi a necessidade de conclusão, a necessidade de uma nota sensível, que faltava nos outros modos eclesiásticos, que levou à preferência por esses dois modos. Essa sensível foi em seguida transposta para as outras escalas, que se tornaram então idênticas às duas primeiras. Assim, os acidentes deram o golpe de misericórdia ao mundo dos modos eclesiásticos, e nascimento ao mundo dos nossos modos maior e menor. Vejamos agora a mais recente conquista do domínio sonoro! Os modos maior e menor reinaram até nossos dias, mas, desde aproximadamente um quarto de século, existe uma nova música que renunciou à predominância deste “duplo gênero” para constituir uma única escala: a gama cromática. Como se chegou à superação do maior e menor? Os elementos destruidores nasceram, assim como na dissolução dos modos eclesiásticos, dos esforços para se encontrar uma forma singular de conclusão. Os dois casos são, portanto, análogos! Em relação a este desejo de definir exatamente a tonalidade no final de uma peça – na “cadência” – surgiu uma série de acordes de tal natureza que não podiam ser mais relacionados inequivocamente a uma única tonalidade. Surgiram os acordes vagantes, acordes ambíguos, que, a partir de sua utilização no final da peça, foram também introduzidos ao longo de sua extensão. O curso das obras adquiriu assim cada vez mais significados, até que se chegou a um momento onde esses acordes ambíguos predominaram e acabou-se por renunciar totalmente à tônica (WEBERN, 1984, p. 69-70, grifos nossos).
Para Webern, em verdade, os doze sons integravam a práxis barroca, e a intensificação
de seu cromatismo imanente fomentou o processo de autodestruição do sistema tonal. Um
movimento natural e inexorável na medida em que, se de música se trata, do desdobramento
do som fundamental se trata, desdobramento que é a própria lógica da história da música, que
significa a expansão da capacidade do homem de lidar com os sons distantes, transformados,
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enfim, em consonância. E, nesse sentido, Bach seria um prenunciador do dodecafonismo, em
função de que sua música já havia apresentado os doze sons da escala. A diferença entre estes
dois momentos históricos relaciona-se exatamente com o fato de que a textura dodecafônica
aprofunda o domínio do som natural, sendo seu momento culminante, sintetizador. Ao
vincular sobre história da música e o advento do dodecafonismo, Webern refletiu sobre essa
relação, que lhe pareceu fundamentar a “música nova”. Relação que seria a apropriação e
desenvolvimento, pela “música nova”, de três eixos, pode-se assim sintetizar: a dimensão
horizontal-polifônica, a harmônica nascida no tempo da monodia acompanhada e àquela
temática clássica. Então, na acepção de Webern, o dodecafonismo configurou-se enquanto
textura polifônica – trabalhando com um tema ou idéia central – e fundiu-se, ainda, a partir de
uma dimensão harmônica ampliada. Pela sua própria letra, que evidenciou os fundamentos da
“música nova”:
Essas conferências têm o objetivo de mostrar o caminho que conduziu a essa música e de tornar claro que ele devia naturalmente chegar aqui. Eu já havia enfatizado na última vez que não foi apenas o desenvolvimento do domínio sonoro, e sua exploração cada vez maior, que conduziu a essa música, tal como Schoenberg a criou, mas também um outro fator esteve presente: a apresentação das idéias ou tudo que está envolvido neste processo [...] Inicialmente, então, a apresentação das idéias! Como disse outro dia, após a decadência do estilo polifônico da escola neerlandesa, no início do século XVII, todas as aspirações dos compositores se dirigiram à criação de formas suscetíveis de expressar seu desejo de clareza. Isto levou ao desenvolvimento das formas clássicas, que encontraram em Beethoven sua mais pura expressão: o período e a sentença de oito compassos. É um fato consumado, e ninguém pode provar o contrário: tudo que ocorreu após se atribui a essas formas. São as formas através das quais se transmitiram as ideáis principais [...] e um tema de Schoenberg também se baseia nas formas: período e sentença de oito compassos [...] De fato, logo surgiu o esforço de se trabalhar de maneira “temática”, de derivar elementos e formas parciais do tema principal. Gostaria de fazer algumas observações sobre isso: falei do desenvolvimento como sendo a parte da obra reservada especialmente ao “tratamento” temático. Mas o que acontece aqui? O tema é repetido em várias combinações, é apresentado algo no decorrer temático que não é apenas horizontal, mas também vertical – trata-se, então, de uma recorrência do pensamento polifônico. E aqui os clássicos muitas vezes chegaram às formas utilizadas pelos “velhos neerlandeses”: cânon, imitação. Além disso, devo acrescentar ainda que no tempo de Bach, e mesmo em sua obra, desenvolveu-se especialmente uma forma de apresentação: a fuga. Trata-se de uma estrutura que nasceu inteiramente do desejo de criar a mais estreita coerência possível: tudo é derivado do tema [...] Também nos referimos a Bach no que diz respeito ao enriquecimento do espaço sonoro. Pois tudo acontece em Bach: a geração das formas cíclicas, a conquista do domínio sonoro – e o imenso pensamento polifônico! Tanto no plano horizontal como vertical. E aqui devemos lembrar algo! É significativo que a última composição de Bach tenha sido a “Arte da Fuga” – uma obra que se dirige totalmente ao abrstrato, uma música na qual falta tudo aquilo habitualmente indicado pela notação: nenhum signo especificando se é para canto ou instrumentos, nenhuma indicação sobre sua execução. Na verdade, é quase uma abstração – ou, prefiro dizer: a realidade superior! Todas essas fugas estão baseadas num único tema, que é continuamente transformado: um grande volume
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de idéias musicais cujo conteúdo total parte de uma única idéia! O que isso significa? O desejo de coerência máxima. Tudo é derivado de uma coisa apenas, desse tema de fuga! Tudo é “temático”. Depois isso reaparece em formas posteriores, no desenvolvimento da sonata [...] Assim vemos que essa maneira de pensar, que é a nossa também, foi o ideal dos compositores de todas as épocas [...] Desenvolver tudo a partir de uma idéia principal! Eis a coerência mais forte – todas as partes fazem a mesma coisa, como nos neerlandeses, onde o tema era trazido por cada uma das vozes em todas as transformações possíveis, com entradas diferentes e em diversas alturas. Claro, mas sob qual forma? É aqui que entra a arte! Porém a palavra de ordem permanece sempre: temática, temática, temática! (WEBERN, 1984, p. 79-84, grifos nossos).
E assim concluiu, notadamente mostrando o avanço histórico que representou a
“música nova”, não obstante sua raiz.
Nesse sentido, as formas de acompanhamento tornaram-se uma seqüência de figuras contrapostas ao tema principal – o que é justamente uma característica do pensamento polifônico! Portanto o estilo que Schoenberg e sua escola pesquisam é uma nova forma de interpenetração das dimensões horizontal e vertical do material, polifonia que atingiu seus pontos culminantes com os neerlandeses e Bach, e mais tarde com os clássicos. Trata-se sempre desse desejo de deduzir o maior número possível de coisas de uma idéia principal. Assim se apresenta a situação, pois nos valemos ainda das formas clássicas; elas não desapareceram. Todas as formas engenhosas descobertas pelos compositores desse período se encontram também na música nova. Não se trata de uma reconquista ou renascença da arte dos neerlandeses, mas sim de uma nova realização de suas formas, influenciada pelas aquisições dos clássicos; uma fusão das duas coisas. Claro, não se trata também de um pensamento puramente polifônico, trata-se dos dois ao mesmo tempo [...] Tudo isso se manteve. Entretanto, algo se transformou: o desejo de intensificar cada vez mais a coerência e de retornar assim ao pensamento polifônico (WEBERN, 1984, p. 84-85, grifo nosso).
Na palavra corroborante de Schoenberg, que importa tomar:
O segredo dos neerlandeses, inacessível aos profanos, residia essencialmente num conhecimento aprofundado de todas as relações contrapontísticas possíveis entre os sete sons da gama diatônica [...] Mas os cinco sons restantes não tinham nenhuma função em suas regras [...] Muito contrariamente, Bach, que conhecia mais segredos do que os neerlandeses jamais imaginaram, soube ampliar essas regras ao ponto de fazê-las englobar os doze sons da escala cromática. E ele trata esses doze sons de tal maneira que seríamos tentados a fazer dele o primeiro compositor em música com doze sons (WEBERN, NT., 1984, p. 77, grifo nosso)10.
10 Para uma leitura complementar ver SCHOENBERG, Arnold. Composition with 12 Tones. In STEIN, Leonard. Stile and Idea. Los Angeles: University of California Press, 1984.
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Do exposto, pois, que se fundou na própria palavra weberniana, frise-se, pode-se então
extrair que a “música nova” é filha da tradição. Mas filha de natureza ampliada: concebida
numa coerência que incessantemente afirmou-se maior, porquanto arte do som que se
desdobrou em dissonância. Nesse sentido, observou-se claramente a concepção evolucionista:
Como tudo isso aconteceu? As consonâncias originais das tríades se transformaram, por ampliação, em acordes de sétima, em dissonâncias; foi, sobretudo, a condução das vozes que gerou tais acordes. O ouvido foi-se habituando progressivamente com esses agregados harmônicos, que de início apareceram de forma prudente, como formações de passagem ou com preparação, e no final todos esses acordes foram sentidos como naturais e agradáveis [...] Finalmente, porém, a utilização desses acordes de natureza dissonante – através da conquista cada vez mais intensa do campo sonoro e do recurso aos harmônicos mais distantes – fez com que não se presenciasse praticamente nenhuma consonância, durante longos trechos, e por último chegou-se a uma situação onde o ouvido não mais percebia como indispensável a referência à tônica. Quando, de preferência, se retorna à tônica? No final, lógico. Então podemos dizer: “A peça está nesta ou naquela tonalidade”. Houve um tempo, no entanto, onde se retornava à tonalidade apenas no último momento, e onde durante longos trechos a tonalidade não podia ser precisada. “Tonalidade suspensa”. Apenas no final ficávamos sabendo: tudo isso que ouvimos deve ser compreendido desta ou daquela forma. Entretanto, esse fato tornou-se tão freqüente que foi possível, um dia, abandonar a relação com a tônica, pois nada mais era consonante. O ouvido estava satisfeito com esse estado de suspensão (WEBERN, 1984, p. 93-94, grifo nosso).
O homem conseguiu atingir a “música nova”. Uma expressão musical detentora de
níveis de coerência jamais observados: porque coesa tematicamente realizando-se a partir de
um material escalar de base, porque ampla na expressão das idéias musicais porquanto música
polifônica e, sobremaneira, porque filha desenvolvida da natureza do som. O dodecafonismo,
então, é a forma musical superior, a foz da história, a expressão mais plena de um movimento
inexorável que chegou o mais longe, superando evolutivamente estágios pregressos, que o
enraizaram:
Primeiramente quero falar da apresentação das idéias. Abordemos a era mais recente; aqui desejo precisar de que música nova pretendo me ocupar: trata-se da música que se desenvolveu graças a Schoenberg e da técnica de composição criada por ele, que existe há doze anos mais ou menos, e à qual ele mesmo denominou “composição com doze sons relacionados somente entre si”. Essa música é o meu tema, pois todo o resto, na melhor das hipóteses, se aproxima dessa técnica ou ainda se opõe conscientemente a ela, empregando então um estilo que não temos necessidade de estudar, porque não vai além daquilo que a música clássica ofereceu
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e nada mais faz do que desfigurá-la. Muito mais longe foi a música, o estilo que Schoenberg introduziu e de que seus alunos são os continuadores (WEBERN, 1984, p. 79, grifos nossos).
Em suma, a música dodecafônica caminhou com destino à realização da plenitude
sonora, através de uma sucessão de acontecimentos ao longo do tempo que – inevitavelmente
– culminaria numa expressão artística superior e historicamente respaldada. A superação dos
modos maior-menor, em tal contexto, não foi apenas uma superação, foi evolução, ou, a
realização de um sistema mais avançado, em que todos os sons foram tomados
individualmente, na efetivação de uma não hierarquia. Hierarquia que é menor musicalmente,
porque, em última análise, refém da dissonância. Na letra de Webern, que, ao tomar o termo
em raça, desvela sentidos, sentimentos e perspectivas intrínsecos:
Para resumir, eu diria: da mesma maneira que os modos eclesiásticos desapareceram e deram lugar aos modos maior e menor, esses dois por sua vez também desapareceram e deram lugar a uma escala única: a gama cromática. A relação com a tônica – a tonalidade – foi perdida [...] Devido a todos os acontecimentos que já mencionei, essa relação no início perdeu parte de sua necessidade, e finalmente desapareceu por completo. A ambigüidade de um grande número de acordes a tornou supérflua. E, uma vez que o som é a expressão das leis da natureza na sua relação com o sentido da audição, uma vez que surgiram coisas novas, e ainda que as relações desapareceram sem ofender o ouvido, foi necessário que outras leis surgissem, sobre as quais já podemos dizer várias coisas [...] Maior e menor desapareceram. Schoenberg expressa isso pela seguinte analogia: as duas raças deram nascimento a uma raça superior! (WEBERN, 1984, p. 86-87, grifos nossos).
A música, enfim, chegara ao clímax da história! Em termos de coerência não poderia
deixar de ser superior na medida em que o som de per si fora efetivamente conquistado,
dominado, organizado, regrado. Assim, tal realidade determinara maiores níveis de coerência,
lógica, sentido, música. A história da música encontrara seu momento pleno, caracterizando-
se o método compositivo como reflexo daquilo que o som fundamental é e demanda.
Acreditando que tal método repõe a história em patamar de superioridade, Webern assim
referiu:
O que aconteceu? Uma sucessão de doze sons. Sua ordenação não foi fruto do acaso; escolheu-se uma forma particular de série capaz de determinar a composição em todo seu decurso. Os doze sons são organizados numa ordem especial, cuja seqüência está na base de toda a composição. E nessa ordem eles devem se suceder
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sempre! Assim, uma seqüência determinada dos doze sons está onipresente na obra. E agora retornemos aos mestres da segunda escola neerlandesa! Naquela época, construía-se uma melodia a partir da escala de sete sons, relacionando-se sempre a ela. O mesmo ocorre com o método de composição com doze sons relacionados somente entre si, criado por Schoenberg. Nada mais! E por que nos interessou reiterar incessantemente a “mesma coisa”? Buscamos criar coerência, relações entre os elementos, e certamente a coerência máxima ocorre quando todas as vozes enunciam a mesma idéia – a maior coerência imaginável! [...] (WEBERN, 1984, p. 96, grifo nosso).
E concluiu,
[...] Resumamos: falei da estruturação da melodia, do acompanhamento. Os compositores tentaram criar unidade no acompanhamento, trabalhar tematicamente, deduzir tudo de um só pensamento e assim produzir a mais estreita – a máxima – coerência. Hoje tudo é derivado desta seqüência de doze sons, escolhida pelo compositor, e é sobre essa base que se realiza, como antigamente, o trabalho temático. Entretanto, a grande vantagem é que posso tratar o material temático muito mais livremente, pois a coerência me é perfeitamente garantida pela série de base. A idéia é sempre a mesma; apenas as formas sob as quais ela se manifesta é que são diferentes. Isso está muito próximo da concepção que Goethe tinha das leis da natureza e do sentido que existe em todos os eventos naturais e que se manifesta através deles (WEBERN, 1984, p. 96-97, grifos nossos).
Logo, que o ouvinte se habilite a tal sonoridade que, enquanto linguagem – domínio
secreto de sentidos recônditos –, é também a expressão do som enquanto som, da natureza
imanentemente cromática, de uma ambigüidade de estrutura que a faz distante,
incompreensível, insondável em seu significado possível, mesmo para iniciados. Então,
inexoravelmente firmou seu ideário:
E assim chegamos ao final! Uma apreensão cada vez maior do domínio sonoro, e uma apresentação sempre mais clara das idéias! Percorremos esse caminho ao longo dos séculos. Mostrei que a “composição com doze sons relacionados somente entre si” é o resultado natural da evolução da música (WEBERN, 1984, p. 99, grifo nosso).
Música que a serviço da natureza, talvez importe aos homens.
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Nesta Parte, a palavra de Webern é historicamente contextualizada e filosoficamente
tratada. Num primeiro momento, em função do problema da linguagem; depois, a partir da
categoria da mímesis. Assim, busca-se dar concretude à palavra weberniana, improgressiva ou
meramente afirmativa. Este é o escopo aqui pretendido, que, reitere-se, sabe de seu limite
determinativo, mas igualmente sabe tanger questões esteticamente vitais, universais.
1. A categoria da linguagem
Como exegeticamente demonstrado ao início deste estudo, uma das categorias sobre a
qual Webern busca sustentar o sentido e lógica de sua música é a categoria da linguagem.
Nesse sentido, refere explicitamente que música e linguagem são uma e a mesma coisa, ou
seja, assumem condição de reciprocidade entre seus fundamentos e especificidades11.
Não obstante à referência desta relação, Webern cita Kraus sem desdobrar
considerações efetivas em torno de tal temário, deixando velado o significado que à categoria
da linguagem busca atar. Diante desta constatação torna-se, pois, fundamental escavar a
lógica da linguagem, objetivando-se unicamente esclarecer o sentido artístico e a dimensão
estética que Anton Webern cola à sua música. Para tanto, o texto Verdade e Método, de
Gadamer12, substantifica-se enquanto ferramenta essencial em função de sua referencial
importância filosófica no concernente ao problema, e onde a linguagem é entendida, lato
sensu, como esfera cuja significação de fundo escapa ou é interdita ao indivíduo, à
subjetividade. De sorte que tomar-lhe a palavra é ato clarificador, posto que, assim, expõem-
se as considerações de um pensador que se imbrica, em termos gerais, com os supostos
webernianos, iluminando-os necessariamente. No intuito, pois, de jogar luz sobre a letra de
Webern, e, mediatamente, sobre sua música, este estudo toma o caminho linguístico-filosófico
gadameriano.
Reitere-se: o que este espaço teórico visa é, unicamente, tentar estabelecer o
significado mais concreto da linguagem na acepção weberniana. Não se trata aqui, o que seria
algo teoricamente impensável, de tomar em maior profundidade o problema da linguagem,
complexo tema filosófico. Tão somente entende-se pontuar a questão com o objetivo de
distinguir a palavra de Webern, o que pressupõe um momento investigativo necessariamente
pontual e fragmentário. Dito isto, vejamos, brevemente. 11 Cf. p. 21. 12 Hans-Georg Gadamer (1900-2002). Filósofo alemão.
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Gadamer, num passo de especificação categorial, tece uma reflexão que é clara em sua
afirmação: marca o caráter enigmático da linguagem, que, se furtando a uma inteligibilidade
efetiva, nos escapa. Conquanto longo e complexo, é importante dispor todo o argumento:
A ciência da linguagem, como qualquer outra pré-história, representa a pré-história do espírito humano. Mesmo assim, nesse modo de pensar, o fenômeno da linguagem só adquire o significado de um campo de expressão eminente, no qual é possível estudar a essência do homem e sua evolução na história. Por essa via, no entanto, não é possível penetrar nos postulados centrais do pensamento filosófico. Isso porque no pano de fundo de todo pensamento moderno encontrava-se ainda a definição cartesiana de consciência como autoconsciência. Esse inabalável fundamento de toda certeza, o mais certo de todos os fatos, o fato de que conheço a mim mesmo, tornou-se no pensamento da modernidade o parâmetro para tudo que quisesse satisfazer ao postulado de conhecimento científico. Também a investigação científica da linguagem acabou apoiando-se no mesmo fundamento. Tratava-se da espontaneidade do sujeito, a qual possui uma de suas formas de confirmação na energia que forma a linguagem. Por mais fecunda que pudesse ser a interpretação dessa cosmovisão subjacente aos idiomas, feita a partir desse princípio, não é possível entrever o enigma que a linguagem propõe ao pensamento humano. Pois a essência da linguagem comporta igualmente uma inconsciência abissal da mesma [...] (GADAMER, 2004, p. 175-176, grifo nosso).
Ora, a linguagem, firma Gadamer, sem dúvida é esfera intrínseca ao homem forjando-
lhe a mediação comunicativa imediata, a via de acesso a outrem, como também à reflexão,
cotidiana ou científica, comporta em sua essência sua própria inconsciência. Vale dizer, seu
sentido e sua dinâmica não se resolvem ou esgotam-se tão somente no ato do dizer, da
comunicação cotidiana, mas a linguagem implica um enigma, uma obscuridade imanente que
é inseparável e insuperável em seu exercício. A linguagem porta em si um significado
imediato, mas este não lhe esgota, uma vez que sua significação não pode ser captada
efetivamente por um sujeito, posto que esta o transcende ao transcender o próprio sentido do
dizer ou escrever cotidiano. Isto é, seu significado não se revela in essentia, dormindo incerto
na multiplicidade de significações e mutações históricas que uma língua guarda desde sempre
e que não se podem mostrar ao indivíduo. Este, por sua vez, não atina para esta dimensão de
fundo de tal fenômeno incompreendendo, então, a linguagem porque inacessível em sua
orgânica.
A linguagem, verdadeiramente, é esfera portadora de uma universalidade
indeterminada que o indivíduo não resgata por não estar no domínio de sua existência real;
esta, por sua vez, é limitada, porque individual, então a linguagem não lhe pertence. Nas
palavras do filósofo:
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[...] Nesse sentido, a caracterização do conceito de linguagem não é um resultado fortuito e a posteriori. A palavra logos não significa apenas pensamento e linguagem, mas também conceito e lei. A cunhagem do conceito de linguagem pressupõe uma consciência de linguagem. Mas isso é apenas o resultado de um movimento reflexivo, no qual o sujeito pensante reflete a partir da realização inconsciente da linguagem, colocado a uma distância de si próprio. O verdadeiro enigma da linguagem, porém, é que isso jamais se deixa alcançar plenamente. Todo pensar sobre a linguagem, pelo contrário, já foi sempre alcançado pela linguagem. Só podemos pensar dentro de uma linguagem e é justamente o fato de que nosso pensamento habita a linguagem que constitui o enigma profundo que a linguagem propõe ao pensar (GADAMER, 2004, p.176, grifos nossos).
Significa que a linguagem, em certo sentido, é alheia ao indivíduo, conquanto opere
imediatamente na vida. Alheamento, pois, que não deve ser confundido com simples
impossibilidade de significação, mas como limite intelectivo do indivíduo frente ao dito, ao
escrito, à língua. E isso porque a linguagem não é uma esfera que se realize subjetivamente,
ou melhor, como momento subjetivo, individual. Nesse patamar opera na nebulosidade de si,
pois a linguagem independe do indivíduo que a utiliza na medida em que esta lhe preexiste; e
seus significados são essencialmente intangíveis, abstratos aos indivíduos, porque filhos na
complexidade dos tempos, portanto, não se revelam na língua in actu, no diálogo, na
epiderme da palavra. Nos termos de Gadamer:
A própria expressão “uso de linguagem” sugere que existem coisas que ultrapassam a essência de nossa experiência de mundo que se dá na linguagem. Isso dá a impressão de que dispomos de palavras guardadas no bolso da calça, das quais lançamos mão quando precisamos, como se o uso de linguagem estivesse submetido ao arbítrio de quem utiliza a linguagem. A linguagem não depende de quem a usa. Na verdade, uso de linguagem significa também que a língua resiste a ser usada de maneira equivocada. É a própria língua que prescreve o que significa o uso de linguagem. Não se trata de uma mitologização da linguagem, mas de uma exigência da linguagem, que jamais poderá ser reduzida a uma opinião subjetiva individual (GADAMER, 2004, p. 231).
Isto tudo remete, assim, à dimensão genérico-indeterminada da linguagem, dimensão
que é sua própria essência, sinaliza Gadamer. Não se trata, pois, quanto à inteligibilidade da
língua, da maior ou menor preparação intelectual do indivíduo. De fato, a ele está barrada a
consciência real de sua fala, e de outrem, o batimento de talhe filológico da linguagem, que
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não agarra porque não pode agarrar, seja qual for, em última instância, seu nível de
sensibilidade e consciência:
Em todos os nossos pensamentos e conhecimentos sempre já fomos precedidos pela interpretação do mundo feita na linguagem, e essa progressiva integração no mundo chama-se crescer. Nesse sentido, a linguagem representa o verdadeiro vestígio de nossa finitude. A linguagem já sempre nos ultrapassou. O parâmetro para medir seu ser não é a consciência do indivíduo. Não existe consciência individual que pudesse conter sua linguagem. Mas como existe então a linguagem? Com certeza não sem a consciência individual. Mas também não pela mera reunião de muitas consciências individuais. Nenhum indivíduo, quando fala, tem uma verdadeira consciência de sua fala. São muito raras as vezes em que alguém está consciente da linguagem que fala (GADAMER, 2004, p. 178, grifo nosso).
Ou ainda, nos termos quase alegóricos do autor,
a arte e a história recusam-se, segundo seu próprio ser, a serem interpretadas a partir da subjetividade da consciência. Pertencem àquele universo hermenêutico, caracterizado pelo modo de realização e pela realidade da linguagem, que ultrapassa toda consciência individual. Na linguagem, no caráter próprio que ela imprime em nossa experiência de mundo, encontra-se a mediação entre finito e infinito, adequada a nós, como seres finitos. O que nela se interpreta é sempre uma experiência finita, que, apesar disso, jamais se depara com aquela barreira, onde a única coisa que se poderia fazer ainda seria adivinhar algo infinito que se tem em mente, sem poder dizê-lo (GADAMER, 2004, p. 93-94, grifo nosso).
Em outros termos ainda, a linguagem ultrapassa o indivíduo porque é para ele – tenha
ou não consciência disto –, experiência obscura e indeterminada porque jamais real e
concreta. Logo, a linguagem, ocultando-se em sua dinâmica, torna-se fugidia ao homem na
finitude do ato que representa. Ocultação intransponível para o homem concreto, que sem
dúvida comunica-se, mas não penetra nas entranhas da linguagem, sepultadas numa infinitude
que não se vive ou vislumbra, ultrapassando a consciência individual, embora dela sejamos
parte imanente. Ainda com Gadamer,
Se concebermos o fenômeno da linguagem não a partir do enunciado isolado, mas a partir da totalidade de nosso comportamento no mundo, o qual é por sua vez também uma vida em diálogo, poderemos compreender melhor por que o fenômeno da linguagem é tão enigmático, atrativo e fugidio. O dizer é a ação de auto-esquecimento mais radical que podemos realizar como seres racionais. Todo mundo
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já fez a experiência de estar conversando e de repente estacar, sentindo que as palavras fogem no momento em que nelas se fixa a atenção. Isso pode ser ilustrado por um pequeno acontecimento que vivenciei com minha filha pequena: Ela tinha que escrever a palavra “morango” e perguntou como se escreve. Quando lhe disse como fazer, ela observou: “Engraçado, quando a escuto desse modo, já não consigo mais compreender a palavra. É só quando a esqueço que estou de novo nela”. Estar na palavra de modo a não estar diante dela como se estivesse diante de um objeto é por natureza o modo fundamental de todo comportamento na linguagem. A linguagem tem uma força de proteção e ocultamento de si mesma. O que acontece na linguagem é protegido contra o ataque da reflexão, mantendo-se resguardado no inconsciente. Quando percebemos essa essência ocultadora e protetora da linguagem, vemo-nos obrigados a ultrapassar as dimensões da lógica enunciativa e alcançar horizontes mais amplos (GADAMER, 2004, p. 233, grifos nossos).
Numa palavra, clara e concludente,
Aprender a falar não significa ser introduzido na arte de designar o mundo que nos é familiar e conhecido pelo uso de um instrumentário já dado, mas conquistar a familiaridade e o conhecimento do próprio mundo, assim como ele se nos apresenta. Um processo enigmático e profundamente oculto (GADAMER, 2004, p. 176-177, grifo nosso).
E se assim o é, se a linguagem é totalidade de nosso comportamento no mundo, onde
forma-se o dizer, se é conhecimento de si no mundo vivido, sua alma oculta-se,
necessariamente. Ocultação que significa a impenetrabilidade na lógica do gênero humano, na
universalidade da vida que, carregando sentidos múltiplos e contraditórios, contamina a
linguagem destes conteúdos individualmente incomensuráveis. A língua nos supera por seus
sentidos infinitos, indecifráveis, intangíveis à alma, que assim impedida de significados de
fundo, perde-se na singularidade enfraquecida, ou que não se pode transcender.
Posto de chofre, e ora chegamos ao ponto que aqui nos interessa de fato: a música que
é linguagem, que se quer linguagem, ou que se entende enquanto tal é, conscientemente ou
não, arte da impossibilidade expressiva! Logo, a música que é ordenada como linguagem,
construindo uma sonoridade a partir de tal lógica, não pode, portanto, atingir a alma daquele
que a ouve. E na impotência de seu soar, é arte impotente porque não comunicativa, ou
comunicativa apenas na epiderme do ente, do indivíduo. Uma música talhada enquanto
linguagem, na acepção weberniana, é, então, inatingível em seu ser-exatamente-assim,
conscientemente inatingível, pois. E, se arte inatingível, importa dizer, caracteriza-se
enquanto arte que não pode emocionar, mas apenas espantar, incomodar, ferir, sem auferir
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algo que advenha da interioridade d’alma. Uma textura compositiva que se perspectiva
enquanto linguagem, mesmo entendendo-se superior, enfim, sabe-se inatingível em função de
sua genealogia, sua essência geradora, conceitual. Nesse sentido, tal superioridade assume
condição de impossibilidade, logo sonoridade que é som insonoro, amplitude que é mudez de
conteúdo.
Ao firmar que a lógica de sua sonoridade é a lógica krausiana da linguagem, Webern,
então, testemunha sobre a distância humana de um fazer artístico. Enquanto linguagem, a
dificuldade de apreensão musical existe, não porque se é, de algum modo, incapaz de se
perceber e sentir os novos tempos e seus sons, mas, de fato – e, insista-se, o próprio Webern
afirma, talvez sem vislumbrar as conseqüências –, porque não pode comunicar, logo, tocar,
mover, ao menos na intensidade que da arte se demanda. Se efetivamente linguagem, como
sustenta Webern, é, em suma, esfera indeterminada, necessariamente obscura em seu “dizer”,
onde a inacessibilidade é a própria condição de ser dos sons, libertos dos grilhões
consonância-dissonância.
Não deve causar estranheza então, posto este contexto, que Webern não possa
concretamente afirmar acerca daquilo que a música supostamente “diz”. Se linguagem, este
“dizer” é naturalmente abstrato, impenetrável, secreto. Então, em verdade, não está no
indivíduo uma incapacidade de compreensão quanto à “música nova”: esta, como linguagem,
não poderá, jamais, ser efetivamente compreendida, tomada em sua totalidade significante. Se
linguagem como afirma o próprio Webern, é reino de segredos intocáveis.
Que a música weberniana seja ou não uma linguagem, não pode ser aqui tema
investigado, algo que resultaria em outro estudo e dissertação. Porém, e este é o ponto que se
deve marcar, se tomada enquanto tal, como é, Webern assinala a impossibilidade de sua
expressão. Mesmo que recuse tal impossibilidade, ela é inerente à própria teoria que
estabelece e que sustenta sua arte. De sorte que, para Webern, sua música tem uma intrínseca
incomunicabilidade, que ele admite e esconde, aceita e vela, afirma e nega.
Incomunicabilidade que, se negada quando se afirma sua coerência máxima, contudo aparece
nítida quando firma ser linguagem. Seja como for, e contradições webernianas à parte, o que
queremos deixar claro é que, para Webern, sua música é linguagem, o que atesta a impressão
que seu artífice tinha da própria obra: sons da impenetrabilidade, conquanto maximamente
coerentes, onde a alma se perde ao se perceber incapaz.
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2. A categoria da mímesis musical
O movimento teórico que se inicia tem por centro a categoria da mímesis. O que se
pretende é elaborar uma breve argumentação sobre o fato de que, desde o pensamento grego,
a arte musical foi entendida como ato mimético. Mais especificamente, o objetivo deste
percurso é elaborar a determinação de que a música, no curso da história, fora reconhecida
como mimese dos afetos humanos, não como linguagem.
À elaboração deste espaço, tomaremos alguns momentos teóricos e autores
referenciais que sustentarão nossos argumentos, com o que não temos a intenção de sermos
teoricamente exaustivos, embora busquemos ser abrangentes. Isto é, a palavra teórico-
mimética partirá da seara grega, passará por solo renascentista, iluminista, e ainda se arrimará
sobre solo novecentista. Com o que se entende propor que a mímesis ocupa lugar fundamental
no interior da reflexão sobre a arte, musical ou não. Hoje, por razões que aqui não importam
determinar, a dimensão mimética da arte parece perdida, ou ao menos desbotada
teoricamente. Nesse sentido, o reconhecimento de que a arte musical constitui-se por um
movimento mimético cujo objetivo primordial é reproduzir a interioridade humana,
externando-a, é algo teoricamente rarefeito, no mínimo. Significa, assim, que este Capítulo
não apenas pontua o problema da mímesis, mas quer trazer esta discussão categorial para o
centro do debate musical, pois, como se verá, esta categoria é fator central para o
entendimento da música. De fato, assim a reflexão sobre a música a considerou e tratou.
E, refira-se desde já, tendo por centro a categoria da mímesis, compreende-se a música
como uma expressão das paixões da alma. A ação mimética é uma representação dos
sentimentos, da anímica, do sentir humano. Então, se de música se trata, da relação com a
alma humana se trata, como referia Aristóteles, de modo que a esfera da música, antes de mais
nada, é vida afetiva da humanidade, subjetividade in affectu.
Nesse sentido, firme-se desde já, investigar os fundamentos mimético-musicais
significa centrar-se numa reflexão diretamente relacionada com pensamentos estéticos
essencialmente atados ao sentido humanista do fazer musical, para além, pois, da dominante
concepção de que a música é uma linguagem. Outrossim, o exame em torno deste alicerce
teórico representado pela categoria da mímesis assume importância basilar na exata medida
em que nos propiciará alcançar a intelecção dos elementos que fundam a arte dos sons, assim
como entenderam diversos pensadores na historicidade da música ocidental. É oportuno aludir
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que Anton Webern, a despeito deste legado teórico realizado em torno da questão mimética,
não a considera ou mesmo refere.
Reiterando-se, pois importante firmar: nossa aproximação à categoria da mímesis
funda-se sobre o pensar da história da música. Não se parte de uma vontade ou de uma
simples intuição, mas da história enquanto tal, onde música e mímesis sempre relacionaram-se
intensiva e extensivamente. E se assim o é, homem e música estão visceralmente atados, e a
compreensão desta arte passa por sua relação com os afetos da humanidade, digamos assim.
Vale dizer: música é mímesis, materialização sonora dos sentimentos. A música possibilita ao
homem caracterizar efetivamente seu sentir, seu espaço anímico. Ou ainda, a música é um
desnudar da alma, na exata medida em que o ato mimético-musical transpõe em esfera
artística as paixões humanas, aqui entendidas como a matéria-prima da música. De sorte que
se poderia afirmar que de Aristóteles a Lukács, como se intentará demonstrar, a reflexão sobre
a música compreendeu esta sua premissa primária.
Estabelecidos, assim, este pressuposto estético-musical e as linhas fundamentais que
norteiam este tópico, é necessário acrescentar que tal objetivo – tomar em exame a categoria
da mímesis – visa permitir justapor ao pensamento de Webern, analisado no Capítulo anterior,
as tendências teóricas que sustentaram a reflexão sobre a música no curso da história.
Tendências estas que, divergentes, poderão então servir de amparo e impulso à uma reflexão
mais ampla sobre seu ideário e suas conclusões. Pois apenas no interior da vida, de um
contexto objetivo, isto é, somente no interior da história, pode-se alcançar, entender e avaliar
as idéias e pensamentos nascidos no curso da história das artes. Em termos mais concretos,
como entender as idéias e afirmações de Webern fora da história do pensamento sobre a
música? Ora, na medida em que a categoria da mímesis ocupa lugar fundamental no contexto
artístico, ao dispô-la em nosso estudo permitimos uma contextualização do ideário de
Webern. Contextualização que, antes de simplesmente assumir este ou aquele ponto de vista,
optar por esta ou aquela arte ou estética, quer contribuir para a ampliação da reflexão sobre a
música do século XX. Música que, para ser efetivamente agarrada em seu sentido, tem de ser
contextualizada no mundo dos homens, pois ela é produto deste mundo. Mundo, por sua vez,
que entendeu a mímesis como categoria estética fundamental. Assim, ao defrontarmos ao
ideário de Webern o problema da mímesis permitimos uma visualização alargada do
pensamento deste compositor, e, então, cumprimos um papel teórico efetivo, a saber, fazemos
desta dissertação ponto de discussão. Discussão que deve se expandir e amplificar, pois
apenas assim poder-se-á compreender verdadeiramente a dimensão da história da música e de
seus fenômenos, teóricos e artísticos.
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Iniciemos, pois, o percurso mimético, que não poderia não partir de solo grego, solo
instaurador do entendimento da arte como fenômeno mimético, isto é, como imitação
mediata, universal, da vida. Sem a intenção de ir além de um pequeno esboço deste enorme e
complexo problema, que a letra tome Aristóteles.
2.1. Os gregos e a mímesis
Na Poética, Aristóteles reconheceu a importância da mímesis para o processo de
criação artística, depreendendo-se claramente de sua pena teórica que a imitação é o elemento
basilar, a essência do fazer estético, o princípio e télos da arte. Ao tomar a tragédia, centro de
sua tematização na Poética, expressa sempre e reiteradamente que o fazer estético-trágico
pressupõe ou envolve o externo, a vida, isto é, o drama supõe ou implica ação humana. Em
outras palavras, não se trata, na composição teatral, de dar forma a uma configuração
simplesmente extraída da subjetividade do artista, mas, sim, a uma “ação [humana] elevada”.
Nos termos aristotélicos, que aqui justapõem claramente teatro e vida, arte e mímesis:
A tragédia é a representação de uma ação elevada, de alguma extensão e completa, em linguagem adornada, distribuídos os adornos por todas as partes, com atores atuando e não narrando; e que, despertando a piedade e temor, tem por resultado a catarse dessas emoções. Considero linguagem adornada a que tem ritmo, harmonia e canto; e o distribuir-se os adornos por todas as partes significa que algumas são dotadas apenas de verso, enquanto outras servem-se também do canto. A imitação, sendo feita por atores, torna necessariamente o aspecto cênico parte primeira da tragédia; em seguida, vêm o canto e as falas, porque são esses os elementos com que os personagens efetuam a imitação. Por falas entendo o conjunto dos versos; por canto, aquilo cujo sentido é claro a todos (ARISTÓTELES, 2004, p. 43, grifos nossos).
A letra aristotélica é clara: a mímesis é a mediação do acontecimento trágico, ou
melhor, este acontecimento posto pelo palco é a própria tragédia. Vale dizer, e
desdobradamente, “o canto e as falas”, portanto, a poesia, são os elementos que representam
uma ação. Significa que a tragédia é “representação de uma ação elevada”, ou onde os
homens representados são melhores do que aqueles que comumente nos deparamos na vida
cotidiana. Nesse sentido, o teatro trágico nutre-se da ação, isto é, a cena constituída é a
narração dramática de um acontecimento que tem por protagonistas homens, homens em
ação, homens que, por sua ação, engendram uma trama trágica. Assim, disponha-se
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oportunamente, a tragédia promove – ou pode promover – uma compreensão da realidade
humano-social da qual parte e na qual se enraíza. A arte trágica é conscientia dramatis, e é
por isso que a catarse pode surgir como efeito da obra de arte. A catarse, pontue-se, nada mais
é do que o reconhecimento e o sentir do terror e da piedade que uma obra, por ser mímesis –
por ser ação humana, vida humana – pode engendrar. Enfim, o fazer trágico toma seu
substrato da exterioridade, dispondo ao espectador uma ação, ação que buscando concentrar
em si os aspectos fundamentais daquilo que toma como matéria, faz desta matéria ampla vida
humana. Vida que pode ser catártica porque grávida de uma universalidade humana que
orienta aquele que a defronta.
Esta perspectiva, tome-se este pensador por um momento, também pode ser extraída
do pensamento de Platão. Ainda que o filósofo, frente à mímesis, tenha uma posição ambígua,
reconhece que a arte é um ato mimético, que sua figuração projeta verdade humana. Em tom
perguntante assim reflete:
Em que diferem dos cegos os que não possuem o conhecimento da essência de cada coisa, que não têm na sua alma nenhum modelo luminoso nem podem, à maneira dos pintores, vislumbrar o verdadeiro absoluto e, depois de o terem contemplado com a máxima atenção, reportar-se a ele para estabelecer neste mundo as leis do belo, do justo e do bom, se for necessário estabelecê-las, ou velar pela sua salvaguarda, se já existirem? (PLATÃO, 2004, p. 191-192, grifo nosso).
Em rápido desdobramento. Platão, na República, externou certo desprezo em relação
às artes ao considerar a imitação como um procedimento que promove um distanciamento da
realidade concreta, no sentido de que este fazer mimético geraria apenas uma ilusão, um
simulacro daquilo que as coisas são e denotam. Noutras palavras, para Platão a imitação é
uma ação caracterizada fundamentalmente pela simples conformação das matérias do mundo
sensível, consubstanciando-se assim como uma positivação menos qualificada, porque gerada
no sensível e por ele limitada. Sensível produzido em arte que, não ultrapassando este mesmo
sensível, não pode conduzir o homem ao mundo das idéias, mundo este, na reflexão platônica,
que possui a natureza e a verdade do mundo sensível, que é, pois, a verdade do saber e do
homem. Entretanto, ao mesmo tempo, Platão refere-se ao pintor que, em face da ação
imitativa, vislumbra o “conhecimento da essência de cada coisa” e o “verdadeiro absoluto”
por intermédio de “modelos luminosos” que propiciam, então, o estabelecimento de valores
humanos referenciais. Sem adentrar categorialmente por esta problemática platônica, que não
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interfere na determinação sobre a mímesis que se elabora, e significaria avançar sobre terreno
de complexo exame filosófico, o que aqui importa destacar é o fato de que a arte, em terreno
platônico, é, portanto, reconhecida como ato mimético. Pensamento este que indica,
mediatamente, ser a arte um instrumento de orientação do homem, tendo em vista que pode
caracterizar os elementos que se fazem presentes no mundo. Nesse sentido, não obstante a
ambigüidade mencionada, Platão aproxima-se de Aristóteles, percebendo a arte – a pintura,
especificamente – como atividade que se realiza a partir e no interior do sensível, da
realidade, da vida humana.
Mas, retomemos Aristóteles, centro da nossa tematização mimética sobre os gregos
porque o pensador que mais extensiva e especificamente tratou da questão.
Conforme já aludido, a categoria da mímesis foi devidamente reconhecida pela letra
aristotélica como uma reconfiguração dos fatos cotidianos, objetivando-se como um modus
faciendi diretamente vinculado com a orgânica social, modus que tende a aproximar o homem
do real, de sua histórica, ou melhor, da lógica de sua história. Arte que, seja através da
pintura, poesia ou música, evidencia, como bem se verá, a própria essência daquilo que se
busca representar. Na palavra do filósofo, tão clara quanto importante, tão mimética quanto
artística, que ao dispor sobre a tragédia na Poética assim considera:
A mais importante das partes [da tragédia] é a trama dos fatos; pois a tragédia não imita os homens, mas uma ação, a vida, a felicidade (ou a desgraça); ora, a felicidade e a desgraça estão na ação, e a finalidade da vida é uma maneira de agir, não um modo de ser. Em função do caráter são os homens desta ou daquela maneira, mas é em função de suas ações que são felizes ou desafortunados. Assim, os personagens não agem imitando seus caracteres, mas estes caracteres são involucrados por suas ações; de sorte que os fatos e a fábula são o fim da tragédia (ARISTÓTELES, 1973, p. 82, grifo nosso).
Especificamente, e ora adentramos a questão específica da mímesis em campo
musical, Aristóteles é absolutamente transparente ao atar música e mímesis, música e
imitação. Assim reflete sobre as artes, e também sobre a arte dos sons, sobre a arte que não é
mera forma ou abstração, mas, inversamente, que se radica em solo social:
A epopéia, o poema de cunho trágico, o ditirambo e, na maior parte, a arte de quem toca a flauta e a cítara, todas vêm a ser, em geral, imitações. Diferem umas das outras em três aspectos: imitam por modos diferentes, e não o mesmo, ou por objetos diferentes, ou por meios diferentes. Da mesma maneira como alguns imitam
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muitas coisas, expressando-se por traços e por cores (pela arte ou pela prática), assim também acontece nas citadas artes; todas realizam a imitação pelo ritmo, pela linguagem e pela melodia, de modo separado ou combinado. Da melodia e do ritmo valem-se a aulética e a citarística, além de outras, semelhantes, como a siríngica; já a dança se utiliza somente do ritmo, porque os bailarinos, com seus movimentos ritmados, imitam caracteres, emoções e ações (ARISTÓTELES, 2004, p. 37, grifos nossos).
A pena aristotélica é nítida: as diversas formas de representação artística são
imitações, isto é, expressam, refiguram. A música, pois, é ato imitativo, realizando-se
enquanto potência estética quando mímesis, escava-se da reflexão de Aristóteles. E se assim o
é, a pergunta que imediatamente se deve responder é a seguinte: de que mímesis se trata?
Qual a natureza deste movimento? O que a música toma por objeto? Vejamos, então,
naturalmente a partir do pensamento aristotélico, com o que se dá seqüência à determinação
em curso.
Na Política, no livro VIII, Capítulo 5, a determinado passo de suas ponderações sobre
o homem da pólis, sobre orientações e perspectivas educativo-sociais, marca, numa clareza
inquestionável, a natureza da música. Assim escreve:
Nos ritmos e melodias, sobretudo, estão as mimeses mais próximas da natureza real da cólera, da doçura, e também da coragem e da temperança, e de todos os seus contrários, e de outras qualidades morais. Isto os fatos mostram claramente: ao ouvir tais mimeses, a alma muda de estado. E o hábito de se sentir dor ou alegria por tais similitudes está muito próximo daquilo que se sente em face da realidade (ARISTÓTELES, 1989, p. 1340 a).
Ora, e posto de chofre: para Aristóteles a música é uma realização mimética que tem
como matéria a esfera dos sentimentos. A mímesis musical é a positivação, in arte, da esfera
da sensibilidade, música, vale a expressão, é subjetividade que sente, materializando de forma
real, efetiva, concreta, o terreno anímico do homem, o sentir humano. Em termos concretos:
os “ritmos e melodias” nos afrontam com a “cólera” ou a “doçura”, com a “coragem” ou a
“temperança”. Isto é, a música nos dispõe “qualidades morais”, sentimentos, o que se
comprova pelo simples fato de que “o hábito de se sentir dor ou alegria por tais similitudes
[musicais, melódicas] está muito próximo daquilo que se sente em face da realidade”.
Reconhecimento aristotélico – é oportuno citar o passo lukacsiano –, que Píndaro havia
claramente disposto também. Nesse sentido, Georgiades, ao analisar a 12ª Pítica de Píndaro,
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permite não apenas observar que o artista grego corrobora a pena aristotélica, mas, ainda,
perceber que a imitação musical grega não se punha como mera cópia fenomênica de um
afeto cotidiano sentido; de fato, o ato musical pressupunha uma universalização. Ou seja, a
mímesis não se atinha ao empírico sensível, mas o transcendia, na medida em que não se
tratava de dar forma a um sentimento em si específico, mas ao coração deste sentimento,
digamos assim, à natureza mais íntima deste sentir. Na palavra de Georgiades-Píndaro:
Porém esta música, a do aulós, não era a expressão mesma do afeto, senão sua reprodução segundo a arte. A deusa Atenea ficou tão profundamente impressionada pelos lamentos da irmã da Medusa, Euríala, que não pode evitar o desejo de fixá-los. Sentiu a necessidade de dar aquela impressão uma forma fixa, objetiva. Aquela impressão avassaladora, lacerante, do sofrimento expresso como lamento foi “representada” pela música de aulós, ou, por melhor dizer, como sopro de aulós. O lamento se transformou em arte, em capacidade, em sopro de aulós, em música. Atenea teceu, por assim dizer, essa música com os motivos do lamento. Píndaro distingue entre o sofrimento e a contemplação espiritual do sofrimento. Em um, a expressão mesma do afeto, é humano, característica da vida, vida ela mesma. A outra, porém, em que a dor recebe pela obra de arte uma figura objetiva, é divina, libertadora, é ação espiritual (GEORGIADES apud LUKÁCS, 1982, p. 8-9, grifos nossos)13.
Nos termos de Chasin, que marca este sentido generalizador da música:
O sofrimento transubstanciado em música – ou uma música urdida com as fibras do lamento – manifesta rigorosamente, e por si, o deslocamento da arte das vivências imediatas, deslocamento próprio, natural à sua orgânica. De sorte que a mimese sonora rompe a imediatidade da vida para alcançar sua refiguração tipificada, generalizada, e por isso mesmo mais “filosófica”, como entendia Aristóteles (CHASIN, 2004, p. 54).
E, ainda, na consideração de Lukács, com o que se ratifica a reflexão:
Enquanto muitos autores modernos [...] confundem o afeto com sua representação mimética, ou ao menos derivam, simples e diretamente, um do outro, para Píndaro o principal é precisamente o salto qualitativo entre ambos. A exposição mítica se propõe a sublinhar exatamente este salto qualitativo: ao apresentar a mimese da dor como invenção divina, enquanto que a dor, propriamente, é coisa humana, se exclui desde o princípio qualquer confusão, qualquer absorção, do mesmo modo que, por
13 GEORGIADES. Musik und Rhythmik bei den Griechen. Hamburg, 1958, p. 21.
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outro lado, o próprio mito impede toda subjetivação e coloca o “divino” – como mimese, como reflexo do fato vital humano – acima da comum cotidianidade humana (LUKÁCS, 1982, p. 9).
Outro passo aristotélico marca, igualmente, a dimensão mimético-anímica da música.
A música se arma, consubstancia, realiza, pelos afetos, tendo seu sentido e télos diretamente
associado com esta materialização, firma o filósofo. Isto é, e retomando a argumentação,
melodia e ritmos são a manifestação concreta, objetiva, dos sentimentos sentidos: por eles
sentimos nossa alma transfundir-se animicamente, à medida em que os acompanha naquilo
que destilam. Significa que a imitação musical é o revérbero das nossas paixões, dos nossos
espaços anímicos. Assim argumenta e assevera, na Política: as obras musicais
contém em si mesmas, in actu, imitações de caracteres, e isto é evidente, pois mesmo na natureza das simples melodias existem diferenças, de modo que as pessoas, ao ouvi-las, se sentem afetadas de diferentes maneiras e não têm os mesmos sentimentos em relação a cada uma delas; assim, escutam umas com um espírito angustiado e mais retraído, como, por exemplo, o modo chamado mixolídio; outras [melodias], num estado de mente suave e branda, como são as melodias livres; em um estado de equilíbrio e da maior serenidade, outras, como parece ser que o conseguem somente, entre todas, as do modo dórico; enquanto que o modo frígio infunde entusiasmo aos homens. Essas coisas, de fato, tem sido bem determinadas pelos que tem estudado esta forma de educação, já que eles extraem a evidência de suas teorias pelos fatos atuais da experiência. Isso também é perfeitamente aplicável aos ritmos, já que uns têm efetivamente um caráter mais estável e outros um caráter mais emotivo, e entre os últimos uns são mais vulgares em seus efeitos emocionais e outros são mais liberais. Destas considerações se deduz, portanto, que a música tem o poder de produzir um determinado efeito no caráter moral da alma (ARISTÓTELES, 1973, p. 1565-1566, grifos nossos).
A letra é inconteste: “as peças de música contém em si mesmas imitações de
caracteres”, de afeições morais. Logo, caracterizam-se como forma de exteriorização da vida
interior. Os modos gregos, de per si, o revelam. Vale dizer, estes modos, por sua própria
lógica interna, por aquilo que são, remetem a determinados afetos ou sentimentos. E o que
significa presdispor à melancolia senão, rigorosamente, expressar vida anímica? Como
remeter ao “abandono” senão por destilar, provocar, evocar este sentir recolhido? Sentir
recolhido modalmente posto que é música, expressão da alma, interioridade exteriorizada.
Sem a pretensão de desenvolver ou mesmo delinear a questão dos modos gregos, algo
que foge do intuito deste estudo, parece adequado, porém, citar um passo determinativo a
respeito, com o que se conclui a argumentação em curso. Ao citá-lo, e é isto que se deseja,
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confirma-se a determinação de que para Aristóteles os modos nada mais eram do que
expressões de afeições humanas. Isto, na medida em que se ordenavam em função dos
registros sonoros, isto é, se formavam ou estabeleciam em função de sua gravidade, mediania
e agudez. Registros que, per se, expressam espaços anímicos distintos. Neste passo, Doni14,
ao tomar Aristóteles, explicita que cada modo tinha um determinado caráter anímico, e
exatamente por isso vinculava-se a uma específica situação ou condição humano-afetiva. De
sorte que não se podia utilizá-los em qualquer situação ou à revelia de um dado sentido
afetivo: aos coros das tragédias, por sua lógica humana, um determinado modo era mais
adequado, diferente daquele que, por ventura, um personagem heróico poderia dispor. Chasin,
na tomadia de Doni, que por sua vez cita Aristóteles, em longa reflexão que vale tomar na
totalidade, mostra, portanto, que modos e sentimentos atavam-se efetivamente. Assim dispõe:
Um modo “nada mais” é – determina-se – do que um complexo sonoro capaz de manifestar afetos, escolhido a cada caso em função daquilo que se deseja expressar – da natureza da poesia à qual se liga e destina, e cuja região vocal o caracteriza e qualifica na essência. No intento de demonstrar que a melodia dos histriões era diferente daquela que o coro modulava, o historiador florentino [Doni] assim argumentava [no Trattato]: Sabe-se que o ofício dos coristas era muito diverso dos histriões ou atores cênicos. E ao se mostrar que havia diferença entre a melodia daqueles e destes, acredito que facilmente se concluirá que não apenas os coristas cantavam, mas também os atores. Aristóteles, na seção das questões musicais propõe, entre outros, este Problema [no Problemata]: porque os coros da tragédia não cantam no modo hipodórico ou hipofrígio; e então responde [numa passagem que Doni cita no original grego e traduz na seqüência]: “Talvez porque estas duas harmonias, ou modos, não possuam uma melodia flébil, calma, patética, tão necessárias ao coro. Pois a hipofrígia possui um caráter ou maneira ativa, e por isso em Gerione a abertura e o desarmamento foram nela modulados. Mas a hipodórica tem o caráter magnífico, constante, por isso, entre todas as harmonias, é a mais adequada à música dos citaredos, isto é, às cantilenas acompanhadas pela cítara e lira. Música que por suas qualidades é desproporcional ao coro, logo, conveniente aos atores cênicos, que representam os heróis, viventes só entre os antigos e príncipes. Isto é, o povo é constituído de homens comuns, pelos quais é composto o coro. Assim, a este convém um caráter e canto flébil e brando, características propriamente humanas, e que se encontram em outras harmonias, com exceção da hipofrígia, furiosa e báquica. Mas principalmente a mixolídia possui aquelas propriedades [humanas], e por ela se exprimem os afetos passivos, sendo as pessoas débeis mais sofridas do que as fortes. Então, esta convém aos coros, dado que a hipofrígia e hipodórica exprimem um caráter ativo, impróprio ao coro, que é um curador ocioso, pois não oferece outro obséquio a quem lhe assiste do que a simples benevolência”. O que se constata, portanto, e de forma nitente, é que para Aristóteles – e Doni – um modo não se encerra no campo da sonoridade escalar ou se caracteriza basicamente por uma determinada relação intervalar entre suas notas. Ao revés, a articulação entre os sons de um modo consubstancia uma mimese, um mundo humano que o projeta para muito além do universo da pura sonoridade,
14 Giovanni Batista Doni (1595-1647). Filósofo e filólogo florentino. No campo musical, dedicou-se aos estudos da música grega e do teatro dramático italiano nascente. O Trattato della Musica Scenica é um dos seus estudos mais relevantes.
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tornando-o expressão – portanto evocativo – dos espaços da interioridade humana. De sorte que um modo furioso, báquico, agudo, é impróprio ao coro na exata medida em que os homens comuns não se exprimem tipicamente desta forma; antes, sua natureza flébil, lânguida, mortal – humana – os empurra a tons verbais menos incisivos, mais ponderados, menos intensos, mais graves, menos heróicos. E se a música se pretende autêntica, verossímil, educadora, não pode desconsiderar ou negar esta dinâmica objetiva da vida, a qual ordena a modalidade grega (CHASIN, 2004, p. 93-94, grifos nossos).
Numa palavra, para Aristóteles música é mímesis, na exata medida em que a
modalidade nada mais é do que expressividade, pois sons de uma voz, aguda, média e grave.
Voz que, som da interioridade, de per si exterioriza o nosso sentir. Como também o
exterioriza a agudez ou gravidade de um aulós, melodia que nos comove rigorosamente
porque vida afetiva: enfim, “um modo musical grego é, em sua essência, um modo de ser
humano ou heróico, frágil ou viril, vigoroso ou lânguido – em suma, é um modus afetivo,
assim estabelece Aristóteles” (CHASIN, 2004, p. 94).
2.2. O Renascimento e a questão mimética
Arte é mímesis dos afetos. Este reconhecimento teórico marca, igualmente, a pena
teórico-musical do Renascimento, momento em que o ideário grego é capturado e apreendido
pelo seu caráter referencial.
No intento de expor esta determinação, tomaremos a palavra de Girolamo Mei15 e de
Giovanni Batista Doni. Nomes de relevância fundamental na discussão sobre a música
renascentista e grega, e cujos ideários denotam teses e posturas centrais que a Renascença
italiana criara.
Reitere-se, Mei é uma das figuras históricas mais representativas na produção de um
conhecimento sobre as categorias da música grega. E, neste percurso, acaba por dispor sobre a
lógica não apenas desta música, mas porque trata do substrato da música grega, acaba por
configurar um pensamento do qual, por sua universalidade, pode-se escavar a lógica
categorial da música em geral. Tomemos, pois, o pensador florentino e, concentradamente, a
partir do problema que nos interessa: a questão mimética. Questão que aparece de forma clara
15 Girolamo Mei (1519-1594). Filósofo e filólogo florentino. Reconhecido como um importante estudioso da cultura e da lógica musical dos gregos.
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na carta que escreveu a Vincenzo Galilei16, em 1572. De fato, Mei e Galilei mantiveram um
relacionamento epistolar. Deste, apenas as cartas de Mei sobreviveram, publicadas na íntegra
por Claude Palisca. Cartas nas quais a tematização sobre a música grega, mas também sobre a
renascentista, ordena o discurso. É da carta de 1572 – a teoricamente mais extensa – que
fundamentalmente tomamos os passos seguintes.
Logo ao início desta carta de 1572, Mei afirma claramente: “a música dos antigos
[gregos] era tomada como valoroso meio de comover os afetos, o que se encontra em muitas
observações narradas pelos escritores” (MEI apud CHASIN, 2004, p. 12, grifo nosso)17. Ora,
se se tem em conta a afinação filosófica entre Mei e Aristóteles, afinação assumida
integralmente pelo florentino, a palavra meiana, em seu sentido fundamental, surge
imediatamente: a música grega, por ele entendida enquanto referência estética universal, é um
ato mimético no interior dos afetos. Vale dizer, a música, sustentava Mei, era um “meio”,
“valoroso”, para “comover”.
Por esta via conceitual, em nítida vinculação com o legado aristotélico, Mei
reconheceu a música enquanto representação artística cuja finalidade maior era expressar os
afetos. Sendo assim, o sentido da música não deve subsumir-se à ludicidade, mera e
isoladamente, aos prazeres sensitivos, posto que o prazer não é fim, mas meio, meio à
comoção possível. A arte sonora é plasmação dos sentimentos humanos pela via da ação
mimética. Do que se entende que a ação mimético-musical representa uma possibilidade
concreta de dar ao homem, àquele que frui uma obra musical, o espelhamento de si.
Espelhamento que é conhecimento de si, então autoconsciência, de modo que a arte, longe de
configurar-se como instância do simples comprazimento, é esfera que nos pode educar,
mover, porque representa nossa própria sensibilidade, nosso próprio espírito, nossa
interioridade, ou a interioridade de um determinado tempo social, de uma determinada
realidade. Ou ainda, para Mei, a arte musical grega emerge da imitação daquilo que habita na
interioridade do homem e não como expressão que se realiza em função da “suavidade das
consonâncias para contentar o ouvido” (MEI apud CHASIN, 2004, p. 33), como uma
sonoridade efêmera que surge com ímpeto ao mesmo tempo em que se desfaz. É através da
imitação da interioridade que a música desvela-se como arte, portanto, como expressão que se
ata indissoluvelmente com a realidade do homem em determinado tempo histórico. 16 Vincenzo Galilei (aprox. 1520-1591). Músico e teórico florentino, Pai do astrônomo Galileu Galilei. Realizou importantes pesquisas acerca dos gregos atuando decisivamente na produção do pensamento renascentista. Vale dizer, suas reflexões foram fortemente influenciadas pelo filósofo Girolamo Mei. 17 PALISCA, Claude (Coord.). Girolamo Mei (1519-1594): Letters on Ancient and Modern Music to Vincenzo Galilei and Giovanni Bardi, 2.ed., American Institute of Musicology, 1977, p. 223.
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E como Mei sustenta esta determinação? Qual o suposto do reconhecimento de que a
música grega – como, de fato, toda a música – é imitativa? Tentemos delinear este complexo
problema, que aqui não surgirá a não ser em traços gerais.
A determinado momento da carta de 1572 deparamo-nos com uma ponderação de Mei
da qual não se pode descuidar, pois de importância teórica fundamental. A Galilei assim
refere, numa reflexão categorial de fundo:
visto que a música que concerne ao canto gravita em torno das qualidades da voz, e nisto, especialmente, em ser aguda, média ou grave, pareceu-me que deveria ser primordial que a virtude desta arte repousasse seu principal fundamento necessariamente nestas disposições [tímbricas]. E, ademais, não havendo semelhança entre cada uma destas paixões da voz [grave, média, aguda], seria irrazoável que tivessem as mesmas faculdades. De fato, por serem contrárias entre si – nascidas de disposições [humanas e sonoras] contrárias, ocorria, necessariamente, que tivessem propriedades contrárias, as quais, por sua vez, tinham força para produzir reciprocamente efeitos contrários. Visto que a voz foi concedida pela natureza aos seres animados, e ao homem, em particular, para a significação de seus próprios conceitos, era efetivamente racionável que estas suas qualidades diversas – fundamentalmente divergentes umas das outras – fossem adequadas, cada uma por si e distintamente, para expressar afeições determinadas; como também era necessário, ademais, que cada uma exprimisse, comodamente, as suas próprias afeições e não as das outras. De tal modo, que a voz aguda não pudesse exprimir a afeição da média com justeza, e menos ainda a da grave; nem a grave, inversamente, a da média, e menos ainda da aguda; nem a média, tampouco, a afeição da aguda ou grave. Mas, ao revés, que a qualidade de uma, sendo necessariamente àquelas oposta e reversa, surgisse como impedimento à operação da outra (MEI apud CHASIN, 2004, p. 13, grifo nosso).
Ora, o que Mei afirma a Galilei, dentre outros pontos, é que a voz humana expressa, de
per si, paixão humana. Paixões que se expressam ou materializam pelo modus da voz que
fala, pois os diferentes registros da voz – agudo, médio e grave – nada mais fazem do que
exteriorizar o interno, destilando em som aquilo que se sente. Ou seja, as regiões da voz são,
em última instância, regiões anímicas, ou melhor, traduzem, objetivam estas regiões. Na
palavra de Mei,
a voz foi especialmente dada ao homem pela natureza não apenas para que ele manifestasse através de seu simples som, como fazem os animais despossuídos da razão, o prazer e a dor, mas para, na conjuminância com o falar significante, exprimir adequadamente os conceitos da sua alma (MEI apud CHASIN, 2004, p. 31-32, grifo nosso).
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Vale dizer, a voz é meio, é afetividade exteriorizada, pois consubstancia-se enquanto
expressão, ou é o órgão pelo qual se alcança “exprimir adequadamente os conceitos da alma”,
a interioridade. A voz, insiste Mei, é o instrumento “concedido ao homem com suas inúmeras
qualidades especialmente para a perfeita expressão de seus conceitos e afetos” (MEI apud
CHASIN, 2004, p. 33, grifo nosso). Ou nos termos aristotélicos, que reafirmam o dito, “Os
sons da voz são reflexos das afecções da alma” (ARISTOTE, 1994, p. 77). E ainda, em
complementação que vale citar:
A recitação concerne à voz e ao modo pelo qual esta deve ser usada para exprimir cada uma das emoções – quando, por exemplo, deve ser forte, quando fraca, quando média, e ao modo pelo qual a voz deve se servir dos tons – agudo, grave e médio, e quais ritmos devem ser usados em cada caso (ARISTOTELE, 1996, p. 295-7, grifos nossos).
E se assim o é – se pela voz a alma objetiva-se em seu sentir –, a música, que é canto,
isto é, voz cantada, é naturalmente expressão das paixões. Em outros termos, se o canto é voz
que se fez predominante, voz que envolve e toma a palavra, a melodia é mímesis das paixões,
isto é, expressão dos afetos. Em proposição distinta, a arte musical é uma realização fundada
na interioridade posto que a voz, ao tornar-se canto, realiza, necessariamente, uma imitação
dos sentimentos. E o faz porque a voz é anímica exteriorizada, paixões humanas tornadas
som. Paixões estas que musicalmente materializam-se como ação mimética na exata medida
em que uma melodia – vocal ou instrumental (esta porque, lato sensu, é nascida daquela, ou a
toma como protoforma e parte de material musical semelhante) –, por ser então sonoridade,
imediatamente realiza uma mímesis dos afetos, da vida interior, pois voz é sentimento que se
externou.
É este suposto ou reconhecimento que permite a Mei, portanto, referir que a
exteriorização dos sentimentos é o modus faciendi da música grega, e não apenas, saliente-se.
Se de música grega se trata, trata-se de uma orgânica artística categorial cujo sentido e télos
está na representação dos afetos d’alma. Nas palavras concretas, que relacionam intimamente
música grega e afetividade, canto e afeto humano:
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Porque todas as coisas propostas são indubitavelmente verdadeiras, era necessário que a música dos antigos – pois esta fazia sentir, como se lê, afetos tão vigorosos que comoviam – se valesse apenas daquelas propriedades aptas a despertar tais afetos, sem efetivamente misturar a eles qualquer coisa contrária que impedisse ou enfraquecesse seu agir (MEI apud CHASIN, 2004, p. 15, grifo nosso).
Isto é, para Mei, o sentido da música está, exatamente, na possibilidade de engendrar
afetos humanos, de tomá-los, expressá-los, pois a voz – então o canto – é manifestação do
sentir, ou seja, mímesis da vida anímica. Ainda na palavra do filósofo, que vale citar, da qual
se colhe, mediatamente, que o fazer musical grego urdia-se em mímesis, pois o que Mei refere
aqui é que se deve seguir musicalmente os afetos: se os “afetos naturais” dos homens “são
todos de pouco esforço”, a música deve ser “conveniente” a esta lógica, isto é, aos afetos:
é preciso considerar que as paixões e os afetos naturais são todos de pouco esforço, pois nascem de inclinações e princípios contidos em nós, logo, a estes acomodados. Por isso são simples de serem imitados e expressos, conseqüentemente, para comoverem se tem apenas a necessidade de atitudes e disposições convenientes àquilo que são (MEI apud CHASIN, 2004, p. 21, grifos nossos).
Posto todo este contexto exegético, pode-se então afirmar legitimamente que: se de
canto se trata, de voz humana se trata, então de sentimentos humanos! O canto, e não apenas
o grego, realiza-se pela voz, de sorte que Mei aponta a uma determinação categorial de
dimensão universal: canto – voz, que se ampliou, desenvolveu, expandiu, que se fez melodia
– é mímesis dos afetos. Vale dizer, a ação mimética no interior dos afetos humanos é a própria
lógica e forma do ato cantado. Nos termos de Chasin,
Mei delineia uma determinação de valência universal, ainda que não o faça em pinceladas explícitas ou generosamente demonstrativas. A saber: o canto, seja qual for sua ordenação interna ou orgânica sonora, diz respeito à vida humano-afetiva, ao universo da sensibilidade, pois repousa sobre a voz, que é timbre (CHASIN, 2004, p. 46).
É precisamente por isso, então, que Mei pôde asseverar com tanta convicção que a
música grega, da qual nada efetivamente sobreviveu, a não ser comentários e estudos, fosse
um ato mimético. Significa que no ideário de Mei desconsiderar os fundamentos miméticos
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seria desnaturar a música, in limine. E se os gregos lhe eram referência estética, sua música,
assim pensou e buscou provar, não poderia deixar de ser mimética, como seu longo e
importante estudo a respeito, De Modis Musicis Antiquorum, dispõe. Numa última reflexão,
clara e expressiva, humanista e denotadora, mimética, com o que se fecha este momento da
determinação em curso:
Assim, acredito que o fim proposto pelos antigos era este: ao imitarem a própria natureza do instrumento do qual se valiam [a voz humana], e não a suavidade das consonâncias para contentar o ouvido [...], ao exprimirem, então, inteiramente e com eficácia tudo aquilo que o falar desejasse manifestar e significar por meio e ajuda da agudez e gravidade da voz chamada por eles de diastemática – diastemática entendida como aquela voz intervalada e que se acompanha do regulado temperamento do presto e do lento, diversa, pois, da voz contínua, que é a do falar comum –, [ao estabelecerem, portanto, tal orgânica musical, os antigos queriam] pronunciar os termos e locuções segundo suas qualidades, isto é, cada um deles, de per si, em função de sua própria natureza é acomodado a um determinado afeto (MEI apud CHASIN, 2004, p. 33-34, grifos nossos).
Com efeito, tal qual Mei, a pena teórico-musical de Doni é o reconhecimento da
ingênita dimensão mimética do canto. No Trattato della Musica Scenica, ao firmar que a
representação teatral trágica dos gregos demandava música, canto, precisamente quando
situações afetivas surgiam, liga substantivamente música e afeto. Assim considera sobre os
momentos em que sentimentos irrompem no curso de uma cena dramática:
Os afetos veementes são potentes incentivos à música, e quando representados em cena se requer maximamente a melodia. O que pode ser reconhecido na medida em que ao elevarmos naturalmente a voz – como ocorre nos lamentos, ameaças, júbilos, e outras paixões humanas – nos avizinhamos do canto; não sendo este mais do que uma variação de tom, feita ao se soltar a voz com um maior esforço das artérias através de diversos intervalos harmônicos e prolongamentos das vogais. É por isso que se pode observar que os oradores, comumente nas comiserações de seus epílogos, costumam alterar muito a voz, aproximando-se assim das cantilenas. Nesse sentido, Teofrasto18 demonstrou claramente em seus livros de música que de três tipos de afetos (aos quais os outros se reduzem) a música deriva sua origem: da alegria, tristeza e entusiasmo, isto é, furor divino – entendido também enquanto ímpeto generoso. Por isso então se deve adotar a melodia onde afetos símiles são expressos [...] (DONI apud CHASIN, 2004, p. 75-76, grifos nossos)19.
18 372 a.C-287 a.C. Filósofo oriundo de Eressos, Lesbos. Reconheceu o legado aristotélico acerca da música. 19 GORI, Anton Francesco (Org.). Lyra Barberina. vol. II. Fac-similar da edição florentina de 1763. Bologna. Forni, 1974.
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A assertiva doniana é clara: a música se põe – ou deve se pôr – se o sentir dos
personagens ganha predomínio, força, veemência, espaço cênico. Neste caso, quando um
personagem irrompe a partir e no interior de seus sentimentos, a melodia faz-se necessária,
potencializando este afeto, ou melhor, realizando-o. Em outros termos, se a cena implica
afetividade humana, considera Doni, surge a necessidade da música, música, assim, que se
positiva in affectu, pois dos afetos “a música deriva sua origem”. Na letra determinativa, que
reafirma:
[...] De outro lado, o canto cênico sem o condimento do falar patético resulta, como hoje se vê, friíssimo e pouco grato ao ouvido, pois lhe falta aquele incentivo que dá alma à melodia, que fertiliza, como sal fecundo, o terreno, preenchendo a imaginativa do compositor com belos e suaves pensamentos. Assim, não se deve estranhar que os músicos, quando tenham de modular matérias destituídas de algum afeto – como uma simples narração, por exemplo, provem aquela dificuldade que os secretários encontram nas cartas de cumprimento. De fato, o afeto subministra vários conceitos ao compositor, e mais efetivamente se os afetos são transformados em conceitos (DONI apud CHASIN, 2004, p. 76, grifos nossos).
A reflexão não deixa qualquer dúvida: se de afeto se trata, de música se trata. Logo, a
arte dos sons alimenta-se, necessariamente, dos afetos humanos, projetando-os, expressando-
os, tomando-os, in mímesis, dando-lhes força cênica, substância expressiva, movimento que
implica a dilatação da expressão da palavra. Ou ainda, a música expande os afetos da palavra,
ou cênicos, indica Doni, o que significa que o ato sonoro é uma expressão, um sentir, que
exteriorizado pelo canto potencializa-se. Em suma, se a palavra afetiva, veemente, demanda a
melodia, marcado está que esta consubstancia-se enquanto esfera anímica.
Na sustentação deste reconhecimento, Doni, e não poderia ser diferente, parte da voz,
ou daquilo que ela é. Na trilha de Mei, ainda que com diferenças, a pena doniana compreende
que a voz, ou seus registros, expressam os afetos humanos. Isto é, para Doni, as regiões
sonoras manifestam estados de espírito. Cada voz, ao inflectir-se, ao mover-se – ao se fazer,
em relação a si mesma, mais grave ou aguda daquilo que normalmente é –, imediatamente
expressa um sentimento, um pulso anímico. Ou ainda, a gravidade e agudez relativas de cada
voz nada denotam nossa interioridade. Quando Doni refere que “deve-se ter por
verdadeiríssimo que os sons não possuem em si nenhuma qualidade indicativa ou efetiva do
próprio caráter, a não ser quando imitam e representam a voz humana” (DONI apud
CHASIN, 2004, p. 79, grifo nosso), está indicando exatamente esta condição da voz humana.
Vale dizer, as paixões do espírito surgem naturalmente em função das regiões sonoras de uma
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dada voz, o que, de fato, constatamos pela simples experiência cotidiana. Voz, assim, que
irrompe como termômetro, vale aqui a cunhagem da expressão, dos sentimentos anímicos,
posto que explicita as dores, as alegrias, a mansidão, a ira, enfim, reverberando a alma porque
a exterioriza, imita, exprime, revela seu sentir. Na letra doniana, que liga voz e sentimento,
região da voz e expressividade:
a agudez não opera por si nem a tristeza nem a alegria, mas apenas a veemência das paixões em geral. De sorte que aplicada a coisas alegres, isto é, palavras, melodia e ritmo tais, promove maior alegria, e em assuntos tristes, agrega maior tristeza. É bem verdade que para os afetos da simples tristeza ou melancolia o tom grave é mais adequado porque denota languidez e certo torpor. Mas para exprimir uma dor intensa, desespero, lamentos, vozeios, como os de quem lastima a morte de um filho, pai ou irmão, seria um erro usar tons graves (DONI apud CHASIN, 2004, p. 80, grifos nossos).
Num outro passo do Trattato, que importa citar, a reflexão sobre a voz ratifica esta
determinação. Os registros sonoros, firma, possuem a capacidade intrínseca de caracterizar as
paixões. Isto porque tal caracterização realiza-se em função do modus de utilização da voz
que cada indivíduo dispõe face aos acontecimentos da vida, que lhe provocam afetos,
sentimentos determinados. Voz que exprime disposições anímicas variadas dependendo de
sua natural, ou inatural, utilização. Ao exemplificar sentimentos que se podem sentir, e como,
então, a voz se realizaria, Doni relaciona registro e anímica, de sorte que a voz, a partir de si,
ou de suas modulações que a fazem grave ou aguda, destila a subjetividade que sente,
manifesta-a, assim:
Firme-se, ainda, que o grave e o agudo produzem efeito diverso não apenas em função do princípio [vocal apontado], do qual tal diversidade procede. Pois a mesma agudez, que natural numa mulher demonstra então pouca ou nenhuma mudança interna, num homem, onde será imprópria, mostrará transposição do afeto à alegria ou tristeza, dado a matéria tratada. Analogamente, o mesmo nível de gravidade de um tom próprio e natural a um homem, e que assim não exporá dele nenhuma qualidade, numa mulher fará aparecer aqueles afetos que nascem do relaxamento, como langor, preguiça, tristeza, dor, frialdade, temor etc. Mas isso ocorrerá se este tom grave não for natural àquela mulher. Sendo-lhe, a voz terá efeito pleno, denso e viril, e revelará antes alma e conduta viris (como ocorre com algumas mulheres que possuem esta gravidade). Não lhe sendo contudo um tom natural, operará o contrário, e imediatamente se verá o lânguido e fraco, como a voz de um rouco ou enfermo. Ao revés, se o tom agudo for natural a um homem, como nos contraltos, que verdadeiramente são voz feminina, e então não lhe forçar a voz, exprimirá afeto e caráter femininos (DONI apud CHASIN, 2004, p. 80, grifos nossos).
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Posto tal contexto, Doni não poderia não tomar o canto como mímesis dos afetos. E
neste momento exegético esta afirmação não necessita de argumentação demonstrativa. Em
outros termos, Doni, de acordo e no interior do pensamento musical tardo-renascentista,
reconhecia a arte sonora como movimento de configuração da esfera afetiva. Não se tratava –
ou devia tratar-se – da busca de sonoridades que pudessem encantar ou maravilhar, distrair ou
alegrar, mas, sim, de dar forma ao universo anímico, ao mundo da sensibilidade, que através
dos sons exterioriza-se. É precisamente por isso que pode então afirmar que um determinado
modo mais se adapta a um sentimento de langor e outro a um de alegria ou veemência. Na
medida em que os registros da voz evocam ou consubstanciam campos afetivos específicos, e
os modos gregos armavam-se em função destes registros vocais – eram modos, como Mei
reconhecera, que se estruturavam em função de sua posição em relação ao agudo e ao grave20
– como não seriam específicas expressões anímicas? Assim considera e afirma:
Pois, para exprimir alguém que de tanto júbilo ou deleite quase languesça, convém um tom quedo, o hipolídio. Mas para denotar uma alegria viva, ardente, mais condiz um tom agudo e intenso, como o lídio, realmente. Pelo contrário, os afetos de tristeza e dor ou são ligados ao langor e à estupefação, à maneira da podagra fria, convindo-lhes o tom mais grave e calmo do corista, ou se atam à veemência da desesperação, ou a algo similar, referindo-se assim a um tom mais agudo e intenso, que não o corista. Apenas a paixão da ira não se ata nunca a um tom quedo e grave, mas sempre com o agudo e intenso (DONI apud CHASIN, 2004, p. 81-82, grifo nosso).
20 No intuito de apenas pontuar uma questão que aqui não se pode desdobrar, tome-se, não obstante, a palavra de Mei, na carta de 1572, que delineia o problema: “A empresa que há muito persigo é a de tentar reconhecer o que se entendia, entre os antigos, por modo dórico, frígio, e outros, e se eram os mesmos que os modernos chamam de primeiro, segundo, terceiro – até oitavo – tom. Pelo que havia lido não me parecia que assim pudesse ser, e hoje creio ser efetivamente correto afirmar que não eram. Pois o que os modernos chamam de tom não apresenta as mesmas condições que se sabe que os modos antigos tiveram. E ainda que Franchino [Gaffurio], Glareano, e outros grandes engenhos da música moderna tenham querido até mesmo repor os nomes antigos nos nossos modos, buscando assim lhes dar maior credibilidade – chamaram os modos derivados ou plagais ao invés de segundo, quarto, sexto e oitavo, [respectivamente] de hipodórico, hipofrígio, hipolídio e hipomixolídio, e os autênticos de dório, frígio, lídio e mixolódio ao invés de primeiro, terceiro, quinto e sétimo –, capta-se por vivíssimas razões, contudo, que a verdade não é esta. De fato, o que os nossos chamam de tons nada mais são do que simples espécies ou formas diversas do diapasão, da oitava. Distintas umas das outras em termos de agudez ou gravidade somente em função do lugar que ocupam na ordem do sistema – constituição, escala, ou seja lá como se queira chamar – das notas musicais. Ora, junto aos antigos, o tom hipodórico ou hipofrígio, como todos os outros, nasciam ou da mutação de lugar que se fazia do inteiro seguimento das notas, ou dos diapasões ou oitavas, ou de outros sistemas e constituições perfeitos ou imperfeitos [(fragmentários)]. Assim, ao serem mudados de lugar, tornavam-se mais agudos ou mais graves do que naturalmente eram em seu sistema ou constituição normal. O sistema natural, ou comum, onde não havia transposição, os antigos chamavam de tom dório, cujo diapasão ou oitava era aquela mediana contida entre os dois tetracordes disjuntos: isto é, entre a nota chamada pelos antigos de Hypate meson – hoje denominada E la mi [mi3 ou central (primeira linha, clave de sol)], e a nota nete diezeugmenon, pelos modernos denominada e la mi [mi 2, terceiro espaço na clave de fá] (MEI apud CHASIN, 2004, p. 25-26).
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Os modos, pois, firma Doni, são expressões anímicas. Expressão que se faz canto,
canto que é arte dos afetos. Arte que nos defronta o sentir dos homens através da modulação
da voz, que se faz aguda média e grave. Agudez, mediania e gravidade que, articulando a
modalidade, permitem reconhecer que o ato musical ordena-se, consubstancia-se, a partir e
em função não da mera sonoridade, abstrata, mas ao ser sonoridade é mímesis, manifestação
da interioridade. De sorte que Doni, ao referir-se à música grega, ou à renascentista,
determina teoricamente para além deles, na exata medida em que nos dispõe que o canto, por
ser voz, é necessariamente esfera que evoca, firma, estabelece, in arte, aquilo que sentimos.
Na ponderação que conclui:
Considere-se, na mesma pessoa, a variação de entoação. Pois um homem que fala em seu tom natural sem forçar a voz num tom agudo (que chamamos quilio), ou num grave (que não tem nome) demonstra uma postura pousada, calma, constante, um ânimo verdadeiramente estóico, que não se deixa comover por nenhuma paixão. Por isso, e prudentemente, é que os gregos destinaram a este tom (que nós chamamos de corista) o modo dórico, que possui algo de melancólico e grave. Precisamente por isso era natural, e mais estimado pelos dóricos do que por qualquer outra nação grega. Dóricos cuja nação era a mais numerosa, como a mais grave e de hábitos mais severos e incorruptos. De sorte que a este tom convém, dentre as três espécies de melodia [aguda, média, grave], aquela do meio, que chamavam de Hesychastica, isto é, instauradora de calma e tranqüilidade. Mas, se este mesmo homem falar em um tom mais esforçado e intenso, demonstrará veemência de afeto tanto na tristeza quanto na alegria, com aquela diferença acima referida. Nesse sentido, tanto o modo frígio – destinado a exprimir o furor divino, o desdém, o ardor militar, quanto o lídio – apropriado à alegria, ao júbilo, festas e bailes, eram cantados num tom mais agudo e intenso que o corista. E por outro lado ainda, se a mesma pessoa usar de um tom de voz mais grave do que o seu natural, exprimirá certo cansaço, fraqueza, langor, e, entre os afetos, preguiça, temor, uma tristeza fria e dolente, mas não concitada e desesperada. Em tom quedo, porém, cantava-se o modo ou harmonia hipolídia, criticada por Sócrates e depois por Platão (que a chamava de lídia, como de costume naquele tempo) pois não era usada senão para exprimir um comportamento languente vezeiro, ou um prazer exagerado, por inebriamento ou congêneres (DONI apud CHASIN, 2004, p. 80-81, grifo nosso).
Sendo assim,
Numa palavra, e rematando esta questão decisiva: o agudo e grave não guardam ou manifestam sentido por serem agudez e gravidade, mas revelam fundamentalmente sua condição mimética no interior da voz inusual, imoderada, extremada. Pois é precisamente a inaturalidade tímbrica – ou seja, o “uso” efetivo do grave e agudo – que forja e expressa sentimentos, isto é, formas ou estados da subjetividade. Não importa, em última instância, se o agudo é agudo e geneticamente feminino, ou se o
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grave é grave e de origem masculina. Nesta esfera não modelam movimentos ou alterações substantivas do espírito; engendram apenas uma disposição subjetiva corrente – sem qualidades anímicas mais específicas –, portanto inexpressiva. Importa sim, considera Doni, a natureza que estes timbres assumem e manifestam num dizer desnatural. Em outros termos, decisivo é como a fala, nas suas contínuas inflexões, os realiza, porque é neste movimento do dizer que os timbres se objetivam e atuam: afloram a alma ao qualificar a palavra (CHASIN, 2004, p. 101).
2.3. Um breve passo rousseauniano e hegeliano
Se o pensamento grego e o renascentista reconheceram a música como arte mimética,
dois representantes máximos do ideário moderno – Rousseau21 e Hegel22 – igualmente assim
a determinaram. Não se trata de expor de forma mais pausada as idéias destes filósofos,
objetivo que não se poderia almejar. O que aqui se faz é tão somente apontar, a partir de
alguns poucos passos, que estes dois pensadores fundamentais da história ocidental, ao
pensarem sobre a música, propuseram sua dimensão mimético-afetiva. Assim, o objetivo
deste Capítulo – esboçar que no curso da história da música, esta fora predominantemente
reconhecida como arte mimética – consolida-se. Tomem-se, pois, alguns extratos das idéias
musicais destes pensadores.
A música positiva-se numa relação direta com o homem. Trata-se de uma expressão
artística geneticamente vinculada com a categoria da mímesis. Assertiva que nos permite
firmar o pensamento de que a categoria mimético-musical possibilita o expressar da vida, em
face da geração de uma sonoridade que quer dar forma ao espírito. Perspectiva esta que
também foi estabelecida por Rousseau. Ao aproximar música e pintura, a determinado passo
do Ensaio sobre a origem das línguas – no qual se fala da melodia e da imitação musical –, a
pena rousseauniana quanto à dimensão mimética da música não é apenas clara, mas
categórica. Mostrando que música não é simplesmente som, afigura sua lógica, firmando sem
meias palavras seu pulso afetivo, assim:
Como, pois, a pintura não é a arte de combinar algumas cores de um modo agradável à vista, também a música não é a arte de combinar os sons de uma maneira que agrade ao ouvido. Se só fossem isso, tanto uma quanto outra figurariam entre as ciências naturais e não entre as belas-artes. Somente a imitação as eleva até esse grau. Ora, que faz da pintura uma arte de imitação? – O desenho. E da música? – a melodia (ROUSSEAU, 2005, p. 309, grifo nosso).
21 Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Filósofo genebrino. 22 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). Filósofo alemão.
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E num outro momento:
A melodia, imitando as inflexões da voz, exprime as lamentações, os gritos de dor ou de alegria, as ameaças, os gemidos. Devem-se-lhe todos os sinais vocais das paixões. Imita as inflexões das línguas e os torneios ligados, em cada idioma, a certos impulsos da alma. Não só imita como fala, e sua linguagem, inarticulada mas viva, ardente e apaixonada, possui cem vezes mais energia do que a própria palavra. Disso provém a força das imitações musicais e nisso reside o império do canto sobre corações sensíveis (ROUSSEAU, 2005, p. 312, grifos nossos).
Ora, a melodia é resultante de uma imitação in affectu, imitação posta pelas “inflexões
da voz”, firma Rousseau. Vale dizer, é exatamente em função da mímesis dos sentimentos que
a música se faz música. Pensamento rousseauniano, pois, que se alinha ao ideário de
Aristóteles e Mei, dando seqüência histórica a um reconhecimento categorial-musical que
perpassa, portanto, importa firmar com ênfase, toda a história da música. Reconhecimento que
assume também esta configuração:
Enquanto se continuar considerando os sons unicamente pela excitação que despertam em nossos nervos, de modo algum se terá verdadeiros princípios da música, nem noção de seu poder sobre os corações. Os sons, na melodia, não agem em nós apenas como sons, mas como sinais de nossas afeições, de nossos sentimentos. Desse modo despertam em nós os movimentos que exprimem e cuja imagem neles reconhecemos (ROUSSEAU, 2005, p. 315, grifo nosso).
E assume ainda esta outra configuração, que é tão contundente quanto a anterior, pela
qual refere nitidamente que se de uma melodia se trata de afeto se trata, numa clara
aproximação à palavra doniana, como se consegue facilmente perceber:
Com as primeiras vozes formaram-se as primeiras articulações ou os primeiros sons, segundo o gênero das paixões que ditavam estes ou aquelas. A cólera arranca gritos ameaçadores, que a língua e o palato articulam, porém a voz humana, mais doce, é a glote que modifica, tornando-a um som. Sucede, apenas, que os acentos são nela mais freqüentes ou mais raros, as inflexões mais ou menos agudas, segundo o sentimento que se acrescenta. Assim, com as sílabas nascem a cadência e os sons: a paixão faz falarem todos os órgãos e dá à voz todo o seu brilho; desse modo, os versos, os cantos e a palavra têm origem comum. À volta das fontes de que falei, os primeiros discursos constituíram as primeiras canções; as repetições periódicas e
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medidas do ritmo e as inflexões melodiosas dos acentos deram nascimento, com a língua, à poesia e à música, ou melhor: tudo isso não passava da própria língua naqueles felizes climas e encantadores tempos em que as únicas necessidades urgentes que exigiam o concurso de outrem eram as que o coração despertava. Foram em verso as primeiras histórias, as primeiras arengas, as primeiras leis. Encontrou-se a poesia antes da prosa, e haveria de assim suceder, pois que as paixões falaram antes da razão. A mesma coisa aconteceu com a música. A princípio não houve outra música além da melodia, nem outra melodia que não o som variado da palavra; os acentos formavam o canto, e as quantidades, a medida; falava-se tanto pelos sons e pelo ritmo quanto pelas articulações e pelas vozes [...] Uma língua que não tenha, pois, senão articulações e vozes possui somente a metade de sua riqueza; na verdade, transmite idéias, mas para transmitir sentimentos e imagens, necessitam-se ainda ritmos e de sons, isto é, uma melodia (ROUSSEAU, 2005, p. 303-304, grifos nossos).
De tal modo que
As paixões possuem seus gestos, mas também suas inflexões, e essas inflexões que nos fazem tremer, essas inflexões a cuja voz não se pode fugir, penetram por seu intermédio até o fundo do coração, imprimindo-lhe, mesmo que não o queiramos, os movimentos que as despertam e fazendo-nos sentir o que ouvimos (ROUSSEAU, 2005, p. 262, grifos nossos).
Conforme se vê, o ideal mimético foi claramente reconhecido pelo pensamento
rousseauniano. Pensamento este que faz ecoar uma vez mais Aristóteles ao afirmar, pois, que
frente à melodia sentimos mudar nossa alma, que assim acompanha os sentimentos por ela
expostos. Enfim, Rousseau não tem dúvida de que a arte sonora enraíza-se na subjetividade
humana, propondo-a, configurando-a. Configuração que toma o espírito que a defronta, e o
toma precisamente porque é mímesis.
Hegel, por sua vez, ratifica e consolida Aristóteles, Mei, Doni e Rousseau. De fato,
mesmo sem a pretensão insana de expor e explicitar a complexa reflexão musical de Hegel, é
possível aludir à sua orientação básica. Orientação que se dispõe a partir de três breves
momentos reflexivos distintos, mas que se articulam intimamente. Orientação que verte
claramente a determinação do sentido mimético da esfera musical. Vejamos.
Ora, Hegel (1979, p. 373) ao afirmar – em letra tão clara quanto fundamental, tão
hegeliana quanto grega ou renascentista – que “O coração humano e as disposições da alma
constituem a esfera na qual o compositor deve evoluir, e a melodia, essa ressonância pura da
interioridade é a própria alma da música”, não deixa dúvidas quanto à lógica ou substrato do
fazer musical. Isto é, ao compositor cabe trilhar, engendrar, “evoluir” na seara dos afetos, pois
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esta é a natureza da música: “O coração humano e as disposições da alma [a] constituem”. Do
mesmo modo este reconhecimento escava-se do pensamento hegeliano posta a seguinte
reflexão:
O poético da música, a linguagem da alma, que derrama o prazer interior e a dor do ânimo em sons e nesta efusão se eleva suavemente acima da força natural do sentimento, na medida em que faz da comoção [Ergriffensein] atual do interior uma percepção de si mesmo, um demorar livre junto a si mesmo e dá ao coração, desse modo, igualmente a libertação da pressão advinda da alegria e do sofrimento – o livre soar da alma no campo da música é primeiramente a melodia (HEGEL, 2002, p. 315, grifos nossos).
Vale dizer, o que é a música, especificamente a melodia, se não o derrame dos afetos?
O que dispõe a melodia a não ser o “livre soar da alma”? Para Hegel, pois, o ato musical é um
ato no interior do sentir, então, é um ato mimético, ou aquele cujo objeto são os sentimentos
humanos, que a música, pois, elabora em arte. A melodia, vocal ou instrumental, opera
mimeticamente, firma Hegel. Se a melodia instrumental, pontue-se, tende a ser mais abstrata
em sua objetivação anímica do que a melodia vocal – forjada sobre a palavra, que então
contextualiza o mélos, isto é, os sentimentos –, positiva-se outrossim in mímesis, na medida
em que sons instrumentais não apenas pressupõem os registros sonoros, como, lato sensu,
consubstanciam uma modulação cuja lógica avizinha-se das formas vocais. Seja como for, e
isto é o que aqui interessa marcar, Hegel entende a música como esfera mimética, na medida
em que o som humano – que se faz musical – é interioridade que se exterioriza, ou seja,
Mesmo fora da arte, o som, como interjeição, como grito de dor, suspiro ou riso, constitui a expressão imediata e mais viva dos estados de alma e dos sentimentos, aquilo que eu chamaria de os oh! e os ah! da alma. Estamos em presença de uma objetivação da alma por e para si mesma ( HEGEL, 1979, p. 335, grifo nosso).
Numa palavra, o ato musical, inexoravelmente, é expressão do interno, e disto Hegel
não tinha qualquer dúvida.
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2.4. Lukács e a mímesis musical
O último passo de nosso percurso mimético toma a palavra de Lukács23 por
intermédio da qual algumas reflexões sobre a música são extraídas no sentido de fecharmos
um ciclo. Isto é, com Lukács afirmamos que a música entendida como mímesis dos afetos é
algo absolutamente presente no século XX. Não se tratou, assim, de que esta categoria fosse
abandonada ou não reconhecida no curso de nossos tempos. De fato, e ao contrário,
pensadores e pensamentos decisivos na história da humanidade ao tratarem de música sempre
reconheceram o ato musical não como simples e abstrato movimento de sons, subjetivamente
conduzidos, mas, sim, como criação mimética. Vejamos, então, algumas poucas
determinações lukácsianas, com o que se conclui este Capítulo.
No capítulo da Estética que trata da música, numa reflexão onde indica claramente sua
dimensão imitativa, Lukács, ato contínuo, afirma que esta dimensão era plenamente
conhecida pelos gregos. De modo que ao dispormos aqui este passo, não apenas esboçamos o
pensamento lukácsiano sobre a categoria da mímesis, mas corroboramos a determinação
delineada por este estudo de que para os gregos a percepção da música como ato mimético era
efetiva, e central. Assim considera, ao início do capítulo:
Há que se observar ainda – e também como introdução, para complementar historicamente as determinações filosóficas gerais – que a teoria das artes, e especialmente a da música, tem concebido durante milênios, com uma naturalidade que parecia excluir qualquer necessidade de argumentação, como reflexo, precisamente, da vida interior humana [...] Pois a concepção da música como uma particular espécie de mímesis acentua energicamente com uma seguridade dialética nada surpreendente nos gregos, aquilo que, do ponto de vista da mímesis, aparece com a música no mundo das artes, e ao mesmo tempo, e inseparavelmente, o que separa a música das demais artes, o que constitui sua peculiaridade específica. Não havia dúvida para os gregos de que toda a relação humana com a realidade, tanto a científica quanto a artística, se fundava numa refiguração da natureza objetiva de tal realidade [...] Por outro lado, os gregos viram com toda claridade que o objeto mimeticamente reproduzido pela música se distingue qualitativamente dos das demais artes: a vida interior do homem (LUKÁCS, 1982, p. 8, grifos nossos).
Lukács, pois, é categórico ao afirmar que a música é um ato imitativo, estabelecendo,
ademais, que tal reconhecimento é milenar! Para os gregos, algo sabido e posto, de sorte que
23 Georg Lukács (1885-1971). Esteta húngaro. Uma das figuras mais representativas do pensamento filosófico na contemporaneidade.
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Lukács atrela-se a uma determinação histórica por ele reconhecida, determinação que ele
assume e desdobra, pois atina, assim como Aristóteles, Mei, Galilei, Doni, Rousseau e Hegel,
que a sonoridade humana é, antes e acima de tudo, expressão da interioridade. Reafirmando a
reflexão anterior:
Temos partido então da concepção, já dominante em geral na antiguidade grega, de que o objeto da reflexão musical é a interioridade humana, a vida emotiva humana. Aqui tem que iniciar todo intento de concreção [teórica] (LUKÁCS, 1982, p. 16, grifos nossos).
Ou ainda, a arte dos sons é uma expressão do anímico, uma materialização das paixões
humanas, uma reprodução dos sentimentos, seu objeto é vida anímica, isto é,
O meio homogêneo da música pode expressar os sentimentos e as emoções dos homens com uma plenitude sem inibições, com uma pureza sem obscurecer, precisamente porque libera a mímesis da realidade, que tem um pequeno lugar espontaneamente nos sentimentos, de toda sua ambígua vinculação aos objetos (LUKÁCS, 1982, p. 44).
Dinâmica artística esta, escava-se do pensador húngaro, que é plasmação dos
sentimentos humanos concretos, das paixões do homem concreto que existe e sente na
realidade, e não, inversamente, mera projeção de abstrações anímicas tecidas por um
compositor, pontue-se aqui. Ao compositor, nesse sentido, cabe – ou deve caber – interagir
com a vida social, pois é esta, firma Lukács, que produz os sentimentos sentidos; é a vida
social que engendra a vida anímica, porque o homem existe e consubstancia-se, externa e
internamente, nas múltiplas relações que a orgânica social lhe engendra. Ou seja, é na e pela
relação com a vida objetiva, por sua interação com o universo humano-social, que o homem
forma sua interioridade, cultiva suas paixões. Pelo que se pode afirmar que o externo social
nutre decisivamente a vida anímica do homem, provendo e movendo sua interioridade, posta,
pois, pelo fluxo e influxo recíproco entre indivíduo e sociedade. Correspondência entre vida
interior e mundo externo que Lukács marca fortemente: “imediata e originariamente”.
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Imediata e originariamente essa interioridade não existe em absoluto como esfera relativamente independente da vida humana. É um produto da evolução histórico-social da humanidade, e poderemos ver mais adiante que sua conformação e seu desdobramento mostram um preciso paralelismo com a origem e o florescimento da música como arte substantiva (LUKÁCS, 1982, p. 16, grifo nosso).
Ou ainda, deve-se sublinhar,
A vinculação de todo ato emocional ao mundo externo que o desencadeia, o fato elementar de que as reações emocionais humanas estão originária e concretamente vinculadas com a ocasião do mundo objetivo circundante que as desencadeia. Ainda que não tenham por que conter afirmações acerca dos objetos que as suscitam, estão intensamente ligadas a eles quanto a seu conteúdo, sua intensidade etc.; nunca se tem imediatamente um afeto, um sentimento de amor ou de ódio sem mais, sendo sempre amor ou ódio de uma determinada pessoa em uma determinada situação (LUKÁCS, 1982, p. 17, grifo nosso).
Em suma, o ato mimético-musical é uma refiguração da interioridade concreta. A
música é uma ação de reconhecimento humano, vale a expressão, não mera ideação abstrata
de um compositor que se desvincula do solo humano-social, precisamente onde nascem os
sentimentos, que nutrem o ato criativo. Pelo que se pode referir que a música é uma tomadia
da realidade posta no mundo, tendo como vigamento fundamental a caracterização das
paixões humanas, que surgem da relação dos indivíduos com seu meio social. Ou ainda, as
paixões humanas, resultantes da interação com a vida real, conformam o objeto central da arte
dos sons. Arte, pois que é mímesis, assim reconhecida de Aristóteles a Lukács, sublinhe-se.
Na palavra de Chasin, que tomando Monteverdi, sintetiza:
À arte sonora impende, do ponto de vista de sua mais peculiar possibilidade estética, evocar a dimensão subjetiva da vida [...] importa referir que a música sempre substantifica, a despeito de específicas intenções composicionais, espaços da subjetividade humana. Posto distintamente, se um “limite” da música é sua impossibilidade de configurar conceitualmente a vida, nenhuma outra forma artística, porém, sobreleva a intensidade da mimese que lhe é própria: o estuar da subjetividade. Destarte, não foi a prática tardo-renascentista em particular, incluída a pena monteverdiana, que arrojou a arte sonora no sentido de que esta constituísse e evocasse a interioridade humana. Já Aristóteles, em suas reflexões concernentes à música e sua função social, reconhecia que a subjetividade estava no centro desta esfera artística (CHASIN, 2003, p. 19).
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Por fim, posto este contexto, é preciso enfatizar algo que já se podia notar nos
argumentos apresentados: a ação mimético-musical é uma caracterização da dimensão
anímica do homem in essentia. Em outros termos, a música representa a interioridade humana
numa dimensão não meramente fenomênica, mecânica, mas, ao revés, a dispõe numa
universalidade que é sua própria condição mimética. Na letra chasiniana, ao retomar
Aristóteles da Poética:
Não se poderia deixar de atentar e referir contudo, em função do que se entende elaborar teoricamente, que a assertiva aristotélica24 não só vincula de modo visceral a música à vida – confirmando o caráter imitativo do homem e da arte dispostos na Poética, mas também – e o que é ainda mais significativo – distingue a essencialidade da música. Numa propositura clara, Aristóteles diferencia a mimese musical da mera cópia ou reprodução mecânica ou fenomênica na exata medida em que a imitação sonora – observa o autor – se move ou tende à essência, à natureza daquilo que é o seu original ou ponto de partida. Dar forma à essência de um objeto significa inocular, na singularidade que a obra de arte cria e nos antepõe, sua própria tipicidade, isto é, significa efetivar este ser singular enquanto portador e revelador de seu gênero. Operar tal generalização é o que faz da arte algo além de mera reprodução epidérmica, e da mimese instrumento primário na recriação da vida (CHASIN, 2004, p. 52).
Isto é,
Superar o singular, então, é movimento inerente à mimese artística, pois a arte só pode revelar a essência do objeto tomado da vida quando o conforma, avigora e nutre com a substância do seu próprio gênero, quando reconhece e apresenta a natureza que lhe é própria – ou sua generidade. A termo que no pensamento grego como um todo – conquanto inexistia uma univocidade rígida em torno da questão – a mimese não é ou se reduz à cópia fenomênica da porção da vida posta em arte. Assim, a determinação aristotélica de que na arte o singular se supera enquanto tal não dispõe e evoca a negação da vida – de seu ingênito movimento objetivo, de seu modus faciendi; ao revés, demonstra que o estético se orienta à uma específica generalização, à essência, à lógica interna da vida, à natureza que, por necessidade e verossimilhança, a cada caso convém. Numa palavra, Píndaro não dá forma a uma dor específica, concreta, colhida na imediatidade de um acontecimento: mas à música impende naturalmente expressar a própria dor humana, ou os atributos essenciais que a marcam e substantificam num determinado tempo e contexto humanos – isto é o mélos de um aulós, ou uma mimese de um afeto (CHASIN, 2004, p. 54).
24 Cf. p. 54-55.
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Na reflexão que encerra. A mímesis musical materializa, in essentia, as vivências
anímico-humanas, podendo orientar o homem à reflexão acerca de sua vida, de sua realidade.
A música enraíza-se na vida, porque mímesis, assim entendeu a história da música.
Os diversos ideários estético-filosóficos aqui apresentados, mesmo que não tenham
sido expostos de forma mais estendida e detalhada, permitiram perceber, contudo, que a
música é vida interior. Trata-se de um fazer que plasma e externa os sentimentos que se
positivam na vida, de modo que a música pode, in potentia, coadjuvar na formação de nosso
caráter, não servindo, apenas, à ludicidade. A música é substância que verte da alma, posto
que corporifica o pulso anímico do homem. Assim a entenderam grandes correntes
filosóficas, algo que se deve marcar e que não se pode descuidar, porque descuidar disto é
descuidar da própria música, de seu entendimento. Ao menos, é descuidar da história da
reflexão sobre esta arte, e ao se descuidar da história, inexoravelmente descuidamos do
homem, e de seu dever-ser.
Na palavra prefaciadora de Monteverdi25, que abre seu último livro de madrigais;
palavra que bem sintetiza este Capítulo, ou pelo menos ilustra, através da letra de um
compositor, de um artista universal, como a música consubstanciou-se nas mãos daquele que
com sua arte talhou humanisticamente a história da música:
Três são as principais paixões ou afeições da alma. Assim considerei, bem como os melhores filósofos. São elas a ira, a temperança e a humildade ou súplica, como mostra, aliás, a própria natureza da nossa voz, que se faz alta, baixa e mediana; na música, claramente referidas por concitado, mole e temperado. Não pude porém encontrar nas composições do passado exemplos do gênero concitado, apenas do mole e temperado, mesmo que o gênero concitado tivesse sido mencionado por Platão no terceiro livro de Retórica. Sabendo ainda que o que move efetivamente nossa alma são os contrários, e que a finalidade da boa música é mover (como afirma Boécio dizendo: “Musicam nobis esse coniunctam mores vel honestare vel evertere”)26, me dispus com não pouco esforço e estudo a realizá-lo (MONTEVERDI apud CHASIN, 2004, p. 124)27.
Paixões da alma! Paixões postas pela voz! Música!
25 Claudio Monteverdi (1567-1643). Compositor cremonense. Artista envolvido decisivamente com a prática musical do Renascimento tardio, cuja produção teórico-musical é universalmente reconhecida. Protagonista histórico que reconheceu a categoria dos afetos humanos e da imitação como centro da prática artístico-musical. 26 “A música é para nós um constume relaxante que alegra ou abate”. 27 MALIPIERO, Gian Francesco (Org.). Tutte le opere di Claudio Monteverdi. Prefácio do Livro VIII, Wien: Universal Edition, 1926-1942.
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1. De uma síntese
A orgânica da presente pesquisa plasmou-se pelos veios de uma análise exegética do
pensamento musical elaborado por Anton Webern em suas conferências. Análise esta que
possibilitou identificar a propositura weberniana de que a história da música ocidental
resultara de um processo natural-evolucionista, cujo cume finalmente caracterizara-se pelo
surgimento da música moderna, aquela dos doze sons incorporados arquitetonicamente com
plenos direitos recíprocos em que se busca compositivamente uma orgânica articulada em
função do som – da nota – por si e a partir de si28. Nesse sentido, evoque-se o já traçado, o
advento da “música nova” não representara apenas um novo estilo composicional, mas o
ponto de chegada da história, onde a música atingira, enfim, o último grau possível de
elaboração musical, o ponto de maior representação e intensidade artísticas, em razão de que
todos os parâmetros musicais reordenaram-se em prol de uma expressividade sem
precedentes. Momento historicamente alcançado, sublinhe-se, pela progressiva apropriação
dos sons harmônicos do som, culminando, firma Webern, numa arte qualitativamente
superior. Em outras palavras, posta a máxima utilização ou aproveitamento das formantes
físico-acústicas de um som determinado, nascera uma música em sua máxima condição
histórica. Pelo que se gerou um novo fazer, qualitativamente superior em relação à práxis
musical dos períodos anteriores, os quais, portanto, foram considerados como artisticamente
superados, ou melhor, primitivos, pois, em última instância, mais pobres, isto é, não
engendrados pela e na justaposição não hierárquica – ou funcional – de todos os sons da
gama cromática ocidental.
As argumentações webernianas apoiaram-se em duas premissas estético-musicais
claramente afirmadas pelo compositor: 1) música e linguagem são elementos diretamente
correspondentes em sua essência generante; 2) a música relaciona-se diretamente com a
natureza, no preciso sentido de que os processos de produção musical, compositivos, fundam-
se, lato sensu, na apropriação dos sons existentes na série harmônica. Perspectiva esta pela
qual sustentou sua concepção de evolucionismo musical, cujo delineamento, frise-se,
representou sua aspiração estética maior, fato este claramente explicitado nas conferências, e
por sua exegese.
28 A título de reiteração, oportuna: um dos fundamentos da música dodecafônica refere que os sons devem ser tomados individualmente em seu valor absoluto, sem nenhuma vinculação com os demais elementos da série, com o objetivo de evitarem-se sentidos de polarização sobre quaisquer notas. Práxis artística objetivada, conforme o próprio Webern afirmou, no sentido de desarticular, destruir, quaisquer influências advindas do sistema tonal.
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Desdobrando, sucintamente, este campo categorial. Segundo Webern, a história da
música ocidental desenvolvera-se na rota da conquista, gradual e crescente, dos recursos da
série harmônica, processo este que culminara no aparecimento de uma “linguagem” integral,
ou amplamente integradora, dodecafônica. Grosso modo, mas com rigor: se o alvorecer da
música limita-se ao manuseio e integração dos sons, e Bach, distintamente, já esboça uma
totalidade sonora possível, é somente no século XX que este esboço bachiano é superado, ou
seja, que a totalidade faz-se efetividade estética. Vale dizer, com o surgimento de uma
“linguagem musical” superior caracterizada por uma música que é multiplicidade quantitativa
libertadora. A música, pois, no curso histórico potencializou-se gradativamente in sonu, com
o que se tornou possível estabelecer uma práxis musical cada vez mais desenvolvida e
significativa, declara Webern. Isto porque, avalia, a apropriação progressiva dos elementos da
série harmônica representou um elemento de qualificação em arte, posto que assim, entendia o
compositor, aprofundava-se em termos expressivos, pois a arte tecia-se a partir de uma maior
materialidade sonora disponível, ou em função, firme-se, do alargamento das possibilidades
cromático-sonoras. Alargamento este necessário à criação de uma arte mais plena, livre,
porque somente tal materialidade estendida, urdida na liberdade sonora de si, ou na negação
de uma dinâmica relacional fundante, poderia realizar, pensou e expôs Webern, uma arte
efetiva, ou efetivamente musical, fruto, assim, de uma expansão da sonoridade, isto é, de uma
incorporação das alturas atualizada na sua reciprocidade in negatio.
Por outro lado, como seu outro pilar teórico – ou melhor, como o segundo pilar
justificante de sua música –, Webern afirmou que a esfera musical objetiva-se enquanto
linguagem, que sua lógica desta aproxima-se, ou mais rigorosamente, que uma e outra são a
mesma coisa. Partindo-se de tal propositura, ratificou o pensamento de que a linguagem
musical representou o elemento por intermédio do qual o homem – no século XX –
conseguira expressar conceitos e espaços inalcançáveis, inatingíveis à própria linguagem, pois
as palavras tornaram-se inférteis na ação de caracterizar uma “idéia”. A música, de algum
modo – modo este jamais explicitado por Webern, mas apenas aludido em vaga abstratividade
impalpável –, enquanto linguagem fundada na linguagem, ou melhor, linguagem ipsis verbis,
avança efetivamente além da língua, desvelando ao homem aquilo que a verbalidade não
consegue fazê-lo. Vale dizer, e especificando a questão, para Webern, sua música é
linguagem, assemelha-se aos poderes conceituais da língua e assim se ordena, remetendo o
homem aos recônditos subjetivos e/ou objetivos que a própria língua não pode alcançar.
Como linguagem, mas linguagem que pode mais do que a linguagem porque esta tem limites
que a cerceiam ou tolhem, Webern vê seu fazer; e porque linguagem, música necessariamente
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expressiva, comunicativa. Ou ainda, e complementando a reflexão, Webern via sua arte como
uma linguagem que remetia para o indeterminado, para regiões subjetivas que se reservam ou
são inexpugnáveis. Regiões que à língua também seriam próprias, pois a esta, afirmava, eram
intrínsecas regiões “abismais”, “enigmas” de significado, sentidos ocultos, que atiravam o
homem para terras da incerteza, tão necessárias ao espírito. Não obstante, delineava ainda, e
como sempre em pura menção abstrata, a linguagem perdera a possibilidade de os manifestar,
posto, digamos assim, seu prosaísmo utilitarista crescente. Sua música, distintamente,
remeteria a este universo próprio da linguagem, pois linguagem.
Música-linguagem esta, entendia Webern ademais e na esteira desta questão, que seria
substantivamente mais clara que a de tempos anteriores, pois essencialmente reveladora.
Essencialmente reveladora porque intrinsecamente compreensível e inteligível, porquanto
fruto de uma totalidade sonora. Então, a “música nova”, linguagem reveladora que avança
para além da linguagem – avanço este, reafirme-se, que Webern nunca expõe em sua forma
ou lógica –, é intrinsecamente marcada por uma coerência discursiva singular, por uma
clareza que, se não entendida ou captada em seu sentido, é porque aquele que a defronta não
alcançou a possibilidade cultural de entendê-la. Se incompreensível, o é não por defeito
ingênito, mas por incapacidade de uma determinada subjetividade. Música, pois, que
instaurara seu revolucionário potencial comunicativo em função de uma relação diretamente
proporcional à conquista e não hierarquização de todos os recursos da série física do som,
com o que se engendrara uma arte superior, fruto de um longo “caminho” que fora trilhado
pelo homem no transcorrer histórico. Caminho este, pensava, que determinado pela busca da
multiplicidade dos recursos naturais do som, apenas o século XX realizara efetivamente,
século que assim deixara para trás o obsoleto de formas e conteúdos sonoros incipientes, ou,
no mínimo, talhados na própria incompletude ingênita.
E reitere-se, a propósito: a propositura weberniana de que o homem conquistara
progressivamente no evolver da história os elementos da série sonora com vistas à realização
de expressões artístico-musicais cada vez mais elaboradas revela, indubitavelmente, seu ideal
de evolucionismo musical. Evolução esta caracterizada pelo quantum de sons da série
historicamente apropriados. Apropriação que indica qualificação estética. Música, assim, que
se qualificando no curso histórico, consubstancia-se enquanto perene ato evolutivo. Em outros
termos, a conquista dos sons harmônicos é o fundamento da música, o que significa que seu
caminho é um movimento evolutivo, que atinge seu pico com o pleno e irrestrito cromatismo
não funcional, máxima realização musical, último grau possível de sua escalada histórica
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porque neste patamar de completude presumida faz-se discurso absolutamente compreensível
e coerente.
2. De questões categoriais
Ao apresentar suas proposituras acerca da música, Anton Webern apontou para muitos
aspectos estéticos, mas não os esclareceu teoricamente. Indicou, mas não provou, deixando
abertas ou irresolutas importantes questões artísticas. De fato, é preciso dizer sem medo da
polêmica: Webern, do ponto de vista categorial, teórico, é obscuro, abstrato. Afirma, mas não
avança demonstrativamente, refere, mas não desdobra ou comprova, como a exegese
elaborada, evoque-se, mostra por si.
Sendo assim, com o objetivo de adquirir uma determinada inteligibilidade teórica de
seu discurso, nossos esforços direcionaram-se no sentido de clarear, ou ao menos pontuar,
categorialmente, o universo teórico envolvido nas conferências de Webern. Então, a partir da
exegese realizada, justapusemos as idéias básicas sustentadas abstratamente por Webern
quanto à sua música, com o legado histórico. Justaposição esta – entre a palavra weberniana e
a palavra histórica – tracejada dentro dos limites possíveis de uma dissertação: concretamente,
à categoria da linguagem confrontou-se a da mímesis. Ou ainda, defrontou-se a idéia da
música entendida como linguagem com algumas categorias do pensamento musical elaborado
ao longo da história da música, com o que se entendeu dispor as condições para que se
pudesse verificar a existência de verossimilhança na lógica teórica posta por Webern.
Movimento, é preciso ressaltar, que em nenhum momento pretendeu ser resolutivo, mas,
apenas, intentou levantar e expor uma problemática que por sua relevância estética e musical
deveria ser trazida à luz. Frise-se: nossa pretensão não foi a de validar um ou outro conjunto
de idéias, mas indicar que o pensamento weberniano não pode ser entendido imediatamente
como verdade, como univocidade estética, simplesmente porque Webern – um dos
personagens centrais na música no século XX – é seu autor.
E ao assim proceder, ao justapor linguagem e mímesis, chegamos a uma ponderação
importante: o ideário weberniano contrasta fortemente com a história da música, isto é, com
as determinações teoréticas que foram tecidas no curso dos tempos. Tomemos, pois, esta
questão de fundo, com o que se consubstancia o pulso de uma Conclusão que, antes,
problematiza, busca, sem preconceitos ou aderências estéticas imediatas, promover uma
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reflexão musical categorial. Reflexão que aqui avançará ainda na direção da questão da
categoria da evolução, ponto central no pensamento de Webern.
2.1. Uma primeira problematização
Webern firmou o pensamento de que a música assume a dimensão de linguagem.
Entretanto, a tomadia do pensamento histórico-filosófico possibilitou perceber que a
correlação música-linguagem deve ser analisada e/ou assimilada, no mínimo, com cautela.
Ora, e posto sem mais: a música – sonoridade humana – é um movimento que expressa as
paixões, afirmou a história da música, ou melhor, a história do pensamento musical. A música
é mímesis, não linguagem, ou foi assim reconhecida dos gregos a Lukács. E, se mímesis –
essencial imitação dos afetos –, como poderiam seus fundamentos estarem subsumidos à
lógica da linguagem, ou serem linguagem? Ou melhor, como esta arte poderia ser linguagem
se seu modus faciendi pressupõe vida anímica, se a música se põe e desdobra enquanto
movimento mimético no interior das paixões, considerando-se que o som humano é
interioridade objetivada? Vale dizer, os sons musicais exteriorizam sentimentos por sua
própria dinâmica, como antes apontado. Sons que, mimético-evocadores na exata medida em
que materializam artisticamente o que a alma sente, não poderiam se consubstanciar enquanto
linguagem. Dimensão mimética que, de Aristóteles a Hegel, de Mei a Lukács, foi
categorialmente sustentada.
Mas tomemos o problema por um outro ângulo, ainda que ao anterior se articule e o
pode complementar.
Música não é linguagem porque, diferentemente da língua, da palavra, não é esfera
conceitual. Ou seja, ao mundo da sonoridade não cabe expressar o sensível em termos
conceituais, exatamente aquilo que caracteriza a língua, ou a linguagem enquanto tal.
Perspectiva que nos permite afirmar que tal correlação imediata entre música e linguagem é,
de fato, tão somente analógica, não se podendo por ela indicar afinidades estruturais,
porquanto objetivamente inexistentes.
Em termos distintos, linguagem, antes e acima de tudo, subentende palavra, língua,
“contexto”, que, ao expressar conceitualmente alguma coisa, coagula esta coisa em termos
conceituais, algo que a sonoridade, a música, não pode realizar. Irrealizabilidade, contudo,
que não a faz menor frente à linguagem, mas apenas diversa, específica, da mesma forma que
a língua, por não poder expressar os sentimentos como na intensidade própria à música, não
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se faz frente a esta menor. A linguagem é a voz dos objetos e fatos, pois estes não podem
dizer o que são por si próprios; a música, mundo da sonoridade, não possui a capacidade de
ser conceitual, nesse sentido, afasta-se da linguagem enquanto tal, apenas analogicamente
dela aproximando-se.
Em suma, a arte dos sons, sonoridade iletrada – sons de uma voz ou de um
instrumento –, não desvela ou pode desvelar conceitos; distintamente, destila, denota,
manifesta a subjetividade: é, pois, mímesis, ou objetiva-se mimeticamente, expressa a
subjetividade, o sentir daquele que sente. O que não se configura como linguagem, embora
abstratamente a ela evoque, pois a música significa, isto é, comunica algo a alguém. Numa
palavra, e não é porque comunica que se a pode tomar como linguagem, porque a linguagem é
uma forma de comunicação específica, conceitual, verbal. De fato, tudo o que existe pode
comunicar alguma coisa a outrem: um som estridente, um ritmo obstinado e forte gerado por
qualquer instrumento, gestos, olhares etc. Possibilidade esta, porém, que não faz da
gestualidade, ou dos sons – cotidianos ou artísticos – linguagem, tendo em vista que esta
expressa uma idéia, um conceito, e possui uma lógica específica de se objetivar; a música,
com sua própria lógica e forma de ser, expressa, ou transmite, um sentir in mímesis. Isto é,
sentir que se realiza não na forma conceitual, como conceito (embora “frases” – que são
musicais – tomem musicalmente forma), mas como sentir de per si, que se externa:
sentimento que a música nos comunica, pois, enquanto imitatione.
Posto este contexto, é necessário reiterar que a própria argumentação de Webern sobre
a idéia de que música é linguagem não se realizou para além de uma simples afirmação.
Argumentação, pois, não probante; a rigor, nem mesmo longinquamente demonstrativa. Por
outro lado, e é isto o que se quer aqui marcar, a evocação de Kraus permite entrever o quão
nebulosa ou intransparente foi a ideação weberniana sobre o problema da linguagem. Como
se observa pelo Anexo, as reflexões de Kraus realizam-se num patamar intrinsecamente
abstrato: retóricas, jamais demonstrantes, subjetivas, não filosóficas, imputativas, não
analíticas; de fato, insondáveis em seu sentido real. Ou ainda, o texto krausiano – que Webern
toma como referencial teórico para confirmar a lógica de sua música e sustentar a correlação
música-linguagem – urde-se por considerações vagas acerca do fenômeno da linguagem, não
permitindo ou possibilitando uma contextualização categorial que permita vincular
diretamente música e linguagem, que não obstante se afirma. Pelo que não se pode deixar de
sublinhar a dimensão teórica pouco clara de Webern acerca da linguagem e o caráter
indeterminado ou ambíguo de suas reflexões sobre a relação música-linguagem, as quais,
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mesmo assim, influenciaram decisivamente diversas gerações no âmbito da música ocidental,
marque-se aqui.
A título de mera antecipação de um quadro que o Anexo dispõe no todo, antecipação
esta que entende marcar não apenas a insondabilidade de um discurso, mas a dimensão
metafísica que a linguagem assume para Kraus, pois esta, na sua verdade, é recôndito sentido
“moral” que se esconde por trás da palavra, o qual a verdadeira linguagem deveria cultivar,
força moral que Webern, evoque-se aqui, sempre entendeu colar à sua música, linguagem do
insondável:
A utilidade prática da aprendizagem, que toma a língua como fala, não poderia jamais corresponder (à fórmula) – aquele que aprende falar também aprende a língua. Para além disso, a utilidade prática da aprendizagem aproxima-se da compreensão formal da palavra, e a partir dela se lhe permite a apreensão da esfera superior. Essa garantia de um ganho moral abriga-se numa disciplina espiritual, a qual, frente à única violação que poderia restar impune, forja a mais elevada responsabilidade e como nenhuma outra está apta a ensinar o respeito ao bem da vida. Seria imaginável salvaguarda moral mais poderosa do que a dúvida lingüística? (KRAUS, 1932, p. 2).
E se assim pensam Kraus e Webern, a concepção daí nascida representa uma linha
teórica antípoda ao pressuposto mimético da música. Mas reitere-se: não se trata de
estabelecer aqui uma simples contraposição ou refutação ao que Webern entendeu ser a
música, e a sua música. Contrariamente, o que se quer explicitar é a existência de uma linha
de pensamento que se faz historicamente clara e ativa – dos gregos à contemporaneidade – e
que reconheceu a música como esfera anímica, como ação mimética. De sorte que, por este
“confronto”, abrem-se vias à reflexão mais plena da palavra de Webern, pois a ele se justapõe
o pensamento categorial fundamental na história da música, justaposição que incita ao rigor,
ao cuidado determinativo, à reflexão histórica, então, ao coração da arte.
Nesse sentido, e fechando este passo argumentativo, tomamos a palavra de Hegel, que
ata arte e vida, arte e mímesis, pensamento estético que, por sua força categorial e histórica
não pode ser simplesmente desconsiderado, por ignorância interessada:
Despertar a alma: este é, dizem-nos, o fim último da arte, o efeito que ela pretende provocar. Disso nos vamos agora ocupar. Quando sob este aspecto consideramos o fim último da arte, perguntando-nos qual seja a ação que ela deve exercer, pode exercer e efetivamente exerce, logo verificamos que o conteúdo da arte compreende todo o conteúdo da alma e do espírito, que o fim dela consiste em revelar à alma
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tudo o que a alma contém de essencial, de grande, de sublime, de respeitável e de verdadeiro. Oferece-nos a arte, num dos seus aspectos, a experiência da vida real, transportando-nos a situações que a nossa pessoal existência nos não proporciona nem proporcionará jamais, situação de pessoas que ela representa, e assim graças à nossa participação no que acontece a essas pessoas, ficamos mais aptos a sentir profundamente o que se passa em nós próprios. De um modo geral, o fim da arte consiste em pôr ao alcance da intuição o que existe no espírito do homem, a verdade que o homem guarda no seu espírito, o que revolve o peito e agita o espírito humano. Isso é o que compete à arte representar, e fá-lo ela mediante a aparência que, como tal, nos é indiferente desde o momento em que sirva para acordar em nós o sentimento e a consciência de algo de mais elevado. Assim a arte cultiva o humano no homem, desperta sentimentos adormecidos, põe-nos em presença dos verdadeiros interesses do espírito. Vemos que a arte atua revolvendo, em toda a sua profundidade, riqueza e variedade, os sentimentos que se agitam na alma humana, e integrando no campo da nossa experiência o que decorre nas regiões mais íntimas desta alma. Nada do que é humano julgo alheio a mim: eis a divisa que a arte pode receber. Produz a arte todos os seus efeitos mediante a intuição e a representação, sendo-nos completamente indiferente saber de onde provém este conteúdo, se de situações e sentimentos reais, se simplesmente de uma representação que nos é dada pela arte. O importante é que o conteúdo que temos perante nós nos desperte sentimentos, tendências e paixões, e é-nos completamente indiferente que tal conteúdo nos seja dado pela representação ou que o conheçamos por uma intuição que tivemos na vida real. Pode a representação arrebatar-nos, agitar-nos, revolver-nos tão fortemente como a percepção. Todas as paixões, o amor, a alegria, a cólera, o ódio, a piedade, a angústia, o medo, o respeito, a admiração, o sentimento da honra, o amor da glória etc., podem invadir a nossa alma por força das representações que recebemos da arte. Tem a arte o poder de obrigar a nossa alma a evocar e experienciar todos os sentimentos, resultado este em que razoadamente se vê a manifestação essencial do poder e da ação da arte, se não, como muitos pensam, o seu último fim. Utiliza a arte a grande riqueza do seu conteúdo no sentido de, por um lado, completar a experiência que possuímos da vida exterior, e, por outro lado, evocar de um modo geral os sentimentos e paixões que há pouco enumeramos, a fim de que as experiências da vida nos não apanhem insensíveis e a nossa sensibilidade permaneça aberta a tudo quanto ocorre fora de nós (HEGEL, 2005, p. 49-50, grifos nossos).
Ou ainda, no mesmo sentido de que o télos da arte é plasmar-nos a vida humana, mas onde
indica-se também que o homem está perdendo sua sensibilidade, que a está substituindo por
“reflexões”, por pré-conceitos que descarrilham arte e sensibilidade, advertência em nada
ingênua ou despropositada:
O que exigimos a uma obra de arte é que participe da vida, e à arte em geral exigimos que não seja dominada por abstrações como a lei, o direito, a máxima, que a generalidade que exprima não seja estranha ao coração, ao sentimento, e que a imagem existente na imaginação tenha uma forma concreta. Mas como a nossa cultura se não caracteriza por um excesso de vida, como o nosso espírito e a nossa alma já não obtêm satisfação dos objetos animados por um sopro de vida, não é do ponto de vista da cultura, da nossa cultura, que poderemos apreciar o justo valor, a missão e a dignidade da arte. A satisfação que nela procuraram e encontraram outros povos não no-la oferece, a nós, a arte. Nossos interesses e exigências deslocaram-se na esfera da representação, e, para os satisfazer, é preciso recorrer à reflexão, aos pensamentos, às abstrações, a representações abstratas e gerais. Por isso a arte já não
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ocupa o lugar de outrora no que há de verdadeiramente vivo na vida, e sobrepuseram-lhe representações gerais e reflexões (HEGEL, 2005, p. 39, grifos nossos).
A tempo, num último dizer, perguntante: se a música fosse de fato linguagem, e
Webern tivesse assim afirmado uma verdade inconteste, não seria sua arte esfera sem direção
humana real, pois a linguagem não é, no ideário de Webern, o reino de uma indeterminação
fundante, ou o universo onde os sentidos se fazem reservados? De modo que, mesmo em se
aceitando a weberniana dimensão da música como linguagem, de sua palavra escorreria uma
contradição de fundo: se música é linguagem, como então sua arte seria a mais apreensível,
comunicativa, coerente? Então, a questão que se deve buscar responder, questão
absolutamente fundamental, é: seria a música weberniana mimética, possuiria um dever-ser,
um de-onde-para-onde, seria ela não “estranha ao coração, ao sentimento”? Dessa resposta,
complexa, se colheria a essência deste fazer compositivo, algo que é tarefa teórico-musical
ainda não realizada, embora urgente, movimento que traria à tona seu télos compositivo, o
sentido estrutural de uma arte, as entranhas de uma lógica sonora que tomou e marcou todo o
século XX. Mas, tornemos ao centro de nossa argumentação.
2.2. Uma segunda problematização
Ao firmar uma correlação entre música e natureza, Webern assim buscou sustentar que
a apropriação natural dos sons harmônicos determinou a história da música ocidental, com o
que marcou, imediatamente, que a história da música fundou-se num processo evolutivo,
determinação capital à sustentação do valor histórico especial que conferiu à sua própria arte,
como demonstrado. Isto é, se a música fez-se cada vez mais música num processo de absorção
e emancipação gradual dos sons enarmônicos, e a “música nova” apropriou toda a gama,
como não ser esta o ponto mais avançado da história da música, sua realização mais acabada,
na esteira de Bach? De fato, a sustentação do vínculo música-natureza realizou-se como
mediação que justificaria, pela própria história, o sentido e dimensão de sua música,
desaguadouro de um processo evolutivo inexorável.
Mas, e esta questão é fundamental, pode-se sustentar teoricamente que a música
evolui, que ela caminha linearmente do menos para o mais, do menos pleno para o mais
pleno, do primário para o substancial, do inferior para o superior? Se tomarmos a histórica
palavra reflexiva sobre a música, imediatamente deparamo-nos com a categoria da mímesis.
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Então, falar em evolução não seria apenas um contra-senso, mas uma aberração estética!
Vejamos, e sucintamente, porque mais é trabalho para investigações futuras.
O tanger do pensamento acerca da arte musical no fluxo da história permite-nos referir
que as expressões artístico-musicais não resultam de um processo de evolução. Posto sem
mais: se a música é mímesis, o sucesso – ou fracasso – de uma obra, gênero ou estilo está
imediatamente relacionado à sua condição de poder representar de forma efetiva o objeto
anímico que plasma. Em outros termos, se a música vincula-se à vida, ao sentir dos homens,
sua qualidade e êxito estão ligados estruturalmente à sua verdade mimética, à objetivação
efetiva, autêntica, verdadeira, da vida anímica que se toma in mímesis. Não se trata, para que
uma obra e/ou um modus compositivo alcancem efetividade histórica, do enfrentamento
compositivo de um problema meramente sonoro de per si, ou imediatamente técnico ou
formal, mas, primariamente, é sua verdade representativa que condiciona sua substância e
sentido, logo, sua valência histórica. Na reflexão lukácsiana, muito clara em seu conteúdo:
A historicidade dos princípios constitutivos das formações musicais, que com tanta freqüência se descrevem de um modo puramente formal, se deve precisamente a essa dinâmica interna, determinada histórico-socialmente, de seu material emotivo. O conhecimento das conexões resultantes mostra o caminho que leva à compreensão histórica de cada estrutura musical e a via que permite atingir a sua correta estimação estética. Com isso afirmamos o caráter resolutamente histórico da música, tanto do ponto de vista do conteúdo quanto da perspectiva da forma [...] (LUKÁCS, 1982, p. 48, grifo nosso).
A partir da letra de Lukács pode-se, então, dispor a seguinte pergunta, esteticamente
pertinente: como falar em evolução se a música determina-se por seu material emotivo? Ou
melhor, como a música, arte tramada na história, ou cujos “princípios constitutivos” são
históricos – as paixões ou emoções humanas –, pode ser pensada enquanto processo
evolutivo? Assim, ao se admitir tal sentido evolutivo, teria de se admitir também, e
imediatamente, a existência histórica de uma linear, progressiva, pré-determinada, evolução
dos sentimentos, do sentir, algo historicamente insustentável, porque inexistente!
Sem dúvida, os sentimentos expandem-se, modificam-se, humanizam-se, mas isto não
se dá por um movimento histórico progressivo; de fato, há momentos que são humana e
animicamente involutivos em relação a anteriores, de sorte que a vida anímica não se realiza
num unívoco crescendo histórico determinado. Enfim, a música é determinada pela
representação dos sentimentos, de modo que se numa evolução se crê, faz-se ressoar a idéia
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de uma inverossímil evolução contínua e gradual do sentir do homem. Em outras palavras,
que corroboram e ampliam o exposto a partir da lógica que funda o fazer musical:
[...] O fato chegou a ser em nossos dias um dado óbvio e inegável. Pois hoje já conhecemos sistemas musicais antigos, orientais, folclóricos etc., qualitativamente diversos dos nossos, enquanto que, com a vivência da música atonal, temos sido contemporâneos do nascimento de um sistema novo. E aqui – exatamente como nas demais artes – um sistema não supera e suprime os demais, ao modo como na ciência uma teoria mais adequada elimina outra falsa ou menos suficiente; mas, as autênticas obras de arte do sistema tonal conservam sua plena vigência estética. Que a obra apareça como símbolo de uma época determinada, de uma determinada situação histórico-social, que todos os seus detalhes – não só os de sua gênese, como também os de sua eficácia – estejam submetidos a tal mudança, insere a música, assim, e sem alterar sua natureza específica, na série das demais artes. Adorno escreveu: ‘A tese de uma tendência histórica dos meios musicais contradiz a concepção tradicional do material da música. O material se define, pela tradição, de um modo físico, ao sumo acústico-psicológico, como quintaessência dos sons eternamente à disposição do compositor. Porém o material compositivo difere tanto disso quanto difere a linguagem de sua reserva sonora. Não só se estreita ou amplia o material no curso da história. Todos os seus traços específicos são símbolos do processo histórico. E levam tanto mais plenamente a necessidade histórica consigo quanto menos imediatamente são legíveis como caracteres históricos. No momento em que se faz impossível ouvir de um acorde sua expressão histórica, esse acorde exige que tudo que o rodeia tenha em conta suas implicações históricas. Estas converteram em sua natureza. O sentido dos meios musicais não se esgota em sua gênese, porém é inseparável dela’(LUKÁCS, 1982, p. 48-49, grifos nossos).
E se assim o é, falar em superioridade de um sistema musical sobre o outro, como
propõe Webern, é impropriedade determinativa, na exata medida em que “um sistema não
supera e suprime os demais”. Não supera porque de mímesis se trata. Isto é, a mímesis
pressupõe, antes e acima de tudo, como referido, a representação das essências daquilo que se
toma por objeto, de sorte que uma obra de arte musical é consciência anímica de um tempo
histórico determinado. Significa, pois, que ela não é superada historicamente: como
reconhecimento do sentir humano, ela se faz perenidade, ainda que novas formas e conteúdos
necessariamente surjam, modifiquem e superem – frise-se, no sentido de se criarem outras –
práticas artísticas anteriores. A música é exteriorização de uma anímica historicamente
concreta, então, sua orgânica não é superada ou invalidada porque a história engendra novos
gêneros e/ou sistemas: enquanto representação anímica de um tempo específico, enquanto
instrumento adequado à plasmação estética deste tempo, é insuperável se mimeticamente
verdadeira. Na letra hegeliana, que sustenta:
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Sempre a arte foi para o homem instrumento de conscientização das idéias e dos interesses mais nobres do espírito. Foi nas obras artísticas que os povos depuseram as concepções mais altas, onde as exprimiram e as conscientizaram. A sabedoria e a religião concretizaram-se em formas criadas pela arte que nos oferece a chave para decifrar o segredo da sabedoria e da religião dos povos. Religiões há em que a arte foi o único meio que a idéia nascida no espírito utilizou para se tornar objeto de representação (HEGEL, 2005, p. 28-29, grifo nosso).
Ora, a arte é autoconsciência da humanidade. Musicalmente, então, falar em evolução
é desconhecer a própria lógica que estrutura o fazer compositivo. De modo que deste contexto
pode-se depreender, enfim, que a quantidade de sons utilizados numa peça musical – a
utilização da gama cromática – não determina sua superioridade estética, não lhe faz
qualitativamente superior, ou mais intensa, comunicativa, “apreensível”. Ou ainda, afirmar
que o metro da qualidade, digamos assim, que pode avaliar os diversos períodos musicais é a
incorporação da série harmônica não é determinação que se sustente historicamente. Nesse
sentido, aliás, importa aludir ao fato de que o cromatismo e o uso de todas as notas da escala é
algo muito anterior ao século XX: para não ir longe, Bach, Beethoven ou Brahms já
articulavam, num mesmo espaço musical, a totalidade cromática. O que se dá com Webern,
especificamente, é o modo como isso ocorre, a maneira como esta totalidade surge na sua
música, numa autonomia que dissolve consonância e dissonância. Este é o ponto distintivo, e
não o cromatismo em si!
Então, porque este fazer cromático díssono, de per si, teria de ser mais evoluído,
melhor, superior? Nesse sentido, ademais, o ideal weberniano de evolução em arte encerra em
si, queira-se ou não, a idéia de que o porvir histórico está grávido de algo artisticamente
superior. Assim, o passado, a priori, é menor que o futuro, ou se quisermos, Josquin des Prez
seria menor que Monteverdi, que seria menor que Bach, que seria menor que Beethoven, que
seria menor que Wagner. Sustentar esta determinação é alguma coisa que ninguém proporia,
mas isto está latente no pensamento weberniano: vale dizer, se a história da música é a
história de sua evolução, o passado é visto, tendencialmente, como algo menor.
Trata-se de uma visão teoricamente insustentável em cujo fundamento está a idéia de
que a música evoluiu até encontrar, no séc. XX, sua forma mais plena, idéia, então, que se
deve questionar. Questionamento que se deve propor, ainda, pelo fato de que o próprio
Webern não esclareceu suas premissas acerca do surgimento da “música nova”, ou os
princípios sobre os quais esta expressão musical determinou-se. Assim, as interrogações
estéticas sobre seu pensamento e arte não são apenas pertinentes, mas necessárias, posta a
influência destes no curso da música e do pensamento musical do século XX.
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Influência que se deve compreender e mesmo marcar, mas a qual não faz de um
ideário verdade histórica. E se questionar é honesta posição intelectual, creio que fui honesto,
embora lacunar. Lacunas existentes pelas quais, porém, estabeleceu-se um confronto entre
ideários. Confronto que, se não teve a insana pretensão de resolver os estruturais problemas
estéticos aflorados, ao menos possibilitou uma reflexão histórica, instrumento fundamental
para a determinação dos fenômenos estéticos. E se isso se alcançou, acredito que esta
dissertação sirva a propósitos acadêmicos, isto é, por ela a reflexão categorial pôde vingar,
empurrando o saber crítico para frente, e isto é importante.
Se música é mímesis e sentimentos ou linguagem e natureza certamente não se pode
daqui concluir definitivamente, mas, sem dúvida, por intermédio deste estudo percebe-se que
o universo musical guarda em si uma complexidade que não se deve descuidar. Desatender a
isso é desatender à música, à sua verdade. Verdade cujo sentido buscou-se aqui compreender
a partir do pensamento filosófico. Com o que se entende firmar que a pesquisa musical deve
trilhar um caminho rigoroso, distanciando-se de quaisquer dogmatismos estéticos, crenças
compositivas, ideologias, pressuposições e preconceitos, que comprometem sua construção.
Por esta via, então, buscou-se lançar um olhar crítico sobre o pensamento weberniano, isto é,
um olhar que o tomasse no interior da história e das categoriais musicais, entendendo, desta
forma, ir além das formulações fenomênicas de Webern, que, se tomadas acriticamente, como
de costume, antes impedem do que possibilitam o conhecimento de seu ideário e música. Na
educativa palavra platônica, que fundamenta:
O verdadeiro amigo da ciência não se detém na multidão de aspectos das coisas transitórias, das quais somente pode ter um conhecimento incerto e precário, mas vai além e busca, com vigor e aplicação, penetrar a essência de cada coisa com o elemento da sua alma a que compete fazê-lo; em seguida, tendo-se ligado e unido, por uma espécie de himeneu, à realidade autêntica e tendo engendrado a inteligência e a verdade, atinge o conhecimento do ser e a verdadeira vida, encontra aí o seu alimento e a calma para libertar-se enfim das dores do parto, das quais por nenhum outro meio se poderia livrar? (PLATÃO, 2004, p. 198-199, grifo nosso).
Então, que Platão, Aristóteles, Mei, Galilei, Doni, Rousseau, Hegel e Lukács, e tantos
mais, possam nos impulsionar artística e intelectualmente. Impulso que, criticidade e rigor,
soluções e irresoluções, diz respeito à nossa própria vida. Na letra hegeliana, num dizer
derradeiro:
92
O modo de pensar dogmático no saber e no estudo da filosofia consiste na opinião de que o verdadeiro é sabido numa proposição que é um resultado estático, ou numa proposição que é sabida imediatamente [...] Mas a natureza de uma tal verdade embora tenha esse nome, é diferente da natureza das verdades filosóficas. No que diz repeito às verdades históricas, para mencioná-las brevemente, na medida em que é considerado apenas seu puro caráter histórico, concede-se facilmente que elas se referem ao existir singular, a um conteúdo segundo o aspecto da sua acidentalidade e contingência, que são determinações não-necessárias do mesmo conteúdo. Mas mesmo essas nuas verdades [...] não podem ser sem o movimento da consciência-de-si. Para se conhecer qualquer uma delas, muitas comparações devem ser feitas, muitos livros consultados ou, de qualquer maneira, muitas pesquisas empreendidas. Mesmo no caso de uma intuição imediata, somente o seu conhecimento acompanhado de razões será tido por algo que tem valor verdadeiro, conquanto apenas propriamente o resultado puro e simples seja o que finalmente importa (HEGEL, 2005, p. 313, grifos nossos).
93
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105
2. A Língua – Tradução
A tentativa de determinar a língua como forma, ou a tentativa de determiná-la como
comunicação do valor das palavras, ambas participando da matéria por intermédio da
pesquisa, parecem não encontrar denominador comum. Quantos não seriam os universos
envolvidos pela palavra que não se referenciam à auscultação de um verso ou à percussão de
um lugar de emprego da língua! Mas esse não deixa de estabelecer a mesma relação com o
organismo da língua, o qual se diferencia aqui e ali, quer em vivacidade, quer em morbidez; e
essa mesma lei natural, válida para todos os campos da língua, do salmo aos periódicos locais,
que comunica o sentido ao sentido. Nenhum outro elemento constrange a norma, pela qual
uma partícula circunscreve a totalidade lógica, nem desvela o mistério por que as mais
ínfimas aspirações florescem ou desvanecem.
A tendência da moderna lingüística é reconhecer a necessidade criativa que transcenda
as regras. A relação com a essência da língua ainda não foi por elas captadas. Menos ainda
pelas regras tradicionais, às quais se atribui, ainda, a responsabilidade pelos preciosos
registros das formas de deformações do conhecimento essencial.
Seria o que se convencionou enquanto liberdade poética, apenas atrelada à métrica, ou
estaria submetida a agudo regramento? Ou seria ainda uma outra, diversa daquela a que
recorre o emprego da língua, até se deixar subjugar pela regra?
Não se isenta da responsabilidade pela escolha da palavra – a mais árdua de se dar; a
mais modesta que se tem: a nenhum escritor se faculta escapar dessa responsabilidade. Do
contrário, é a compreensão dela que se persegue, embora falte a muitos dos professores de
língua, os quais sempre que possível procuram criar uma gramática psicológica. O pior é que
nem sempre estão aptos a fazê-lo, como os próprios gramáticos, incapazes de elaborar
raciocínio lógico no campo psíquico da palavra.
A utilidade prática da aprendizagem, que toma a língua como fala, não poderia jamais
corresponder (à fórmula) – aquele que aprende falar também aprende a língua. Para além
disso, a utilidade prática da aprendizagem aproxima-se da compreensão formal da palavra, e a
partir dela se lhe permite a apreensão da esfera superior. Essa garantia de um ganho moral
abriga-se numa disciplina espiritual, a qual, frente à única violação que poderia restar impune,
forja a mais elevada responsabilidade e como nenhuma outra está apta a ensinar o respeito ao
bem da vida. Seria imaginável salvaguarda moral mais poderosa do que a dúvida lingüística?
106
Teria ela, essa dúvida, antes de quaisquer pretensões materiais, a ânsia de sobrelevar-se à
condição de genitor do pensamento?
O falar e o escrever modernos, mesmo os dos especialistas, fizeram da língua a
quintessência de decisões frugais, condenadas à era que capta da mídia os acontecimentos e as
experiências, o ser e o valer da língua mesma. A dúvida, como o maior dos talentos da moral
– e que até poderia ficar tributária da língua humana, não fosse a constante negativa –, seria a
válvula de proteção do progresso. O mesmo progresso, o qual se ilude julgando servir à
civilização, com certeza plena conduz-lhe ao próprio ocaso. Acreditar falar alemão, como
uma fatalidade, seria castigar a bênção da humanidade (dotada de uma língua fértil em
pensamentos) com a maldição de viver fora dela; pensar, depois de comunicar, de agir, antes
de colocar-se em dúvida perante a língua. Os falantes dessa língua não fazem uso das
preferências que lhe são próprias, de passar bem pelas dúvidas, pois que encontram espaço
entre suas palavras. Qual não seria o estilo de vida que se proporiam a desenvolver os
alemães, se não se subordinassem à outra ordem que não fosse a língua!
Nada mais fútil presumir que seria uma necessidade estética despertar a ambição da
perfeição lingüística ou libertar-se dela. Igualmente seria impossível aos falantes dessa língua
exercer-lhe domínio, por força da profunda singularidade que lhe caracteriza. Empina-se
contra o persistente e ameaçador perigo de um terreno vulcânico. Já na sua mais acessível
região atinge a idéia de ponto culminante: Pandora; a indecifrável regularidade da adaptação
inusitada ao vaso simbólico, de que sobrevêm as figuras imaginárias:
E aquelas inatingíveis mãos terrenas esticadas enaltecem o escândalo e o desalento. Iludem
persistentemente a multidão, os perseguidos.
Em vez de se julgar capaz de dominá-la, melhor ilusão é aproximar as tramas da
língua das regras lingüísticas, seus planos dos seus perigos. Instruir a enxergar aí o precípuo
onde estão os lugares-comuns, essa seria a missão pedagógica em uma Nação amadurecida no
pecado. Seria a redenção dos bens da vida em face dos bandos do jornalismo e em face das
garras da política. Ocupar-se o ser espiritualmente – tarefa mais viável pelos caminhos da
língua do que por qualquer outra das ciências, as quais se valem da própria língua – é o ganho
de complexidade da vida que reduz o peso de outros fardos.
É recomendável não se chegar ao fim de uma infinitude, que todos têm e se lhes não
obstrui o acesso. “Terra dos poetas e dos pensadores”: sua língua eleva a posse à produção, o
ter ao ser. Pois não há fantasia maior do que a possibilidade de se pensar no seio da própria
107
língua. O que resta ainda em aberto é a representação da externalidade (AuBerhalb), que
abarca a plenitude de uma felicidade virginal. É ela – a língua – a única das quimeras cujo
ludíbrio é infinito, inexaurível e não depaupera a vida. Que o homem aprende a servir!
<a rel="license" href="http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/3.0/br/"><img alt="Creative Commons License" style="border-width:0" src="http://i.creativecommons.org/l/by-nc-nd/3.0/br/88x31.png" /></a><br /><span xmlns:dc="http://purl.org/dc/elements/1.1/" href="http://purl.org/dc/dcmitype/Text" property="dc:title" rel="dc:type">DAS CONFERÊNCIAS DE ANTON WEBERN: UMA REFLEXÃO ESTÉTICA</span> is licensed under a <a rel="license" href="http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/3.0/br/">Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 3.0 Brasil License</a>.
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