De caboclo à índio

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DE CABOCLO A NDIO JOS AUGUSTO LARANJEIRAS SAMPAIO

DE CABOCLO A NDIO: Etnicidade e organizao social e poltica entre povos indgenas contemporneos no nordeste do Brasil; o caso Kapinaw Jos Augusto Laranjeiras Sampaio

guisa de apresentao

Por: Maria Rosrio de Carvalho

Este texto, elaborado h duas dcadas e meia como projeto de pesquisa para a Unicamp, no mbito da qual o seu autor cursava o mestrado, obteve uma bolsa-prmio

Este ensaio foi originalmente apresentado em 1986 como projeto de pesquisa ao curso de Mestrado do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), tendo ento obtido "bolsa-prmio" de pesquisa desse programa. Em 2001 atualizei algumas informaes legislativas e etnogrficas, quase sempre em notas de rodap. Por fim, em 2011, fiz pequenas modificaes de carter estilstico apenas. Bacharel em Cincias Sociais (Antropologia) pela Ufba. Professor de Antropologia na Uneb (Universidade do Estado da Bahia). Membro da coordenao do curso de Licenciatura Intercultural em Educao Escolar Indgena (Liceei) da Uneb. Secretrio do Conselho Diretor e scio fundador da Ana (Associao Nacional de Ao Indigenista). Pesquisador associado do Leme e do Pineb (Programa de Pesquisa Povos Indgenas no Nordeste do Brasil, Ufba).

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criada por essa instituio para os melhores projetos de pesquisa apresentados ao final da realizao das disciplinas, assim como logrou a aprovao de uma bolsa junto FAPESB, usufruindo de ambas, respectivamente, em 1986-1987 e 1987-1988. Esse xito preliminar se estenderia pela dcada seguinte, inaugurando uma nova fase nos estudos sobre os povos indgenas no Nordeste. As dissertaes ento produzidas ao abrigo do Programa de Pesquisas sobre Povos Indgenas do Nordeste Brasileiro (PINEB), criado por Pedro Agostinho e sediado, desde 1971 (sob a denominao preliminar de Projeto de Pesquisa sobre Populaes Indgenas da Bahia), no Departamento de Antropologia e Etnologia da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal da Bahia, foram por ele muito inspiradas, o que lhe d um carter de texto-formador. Indito at agora, em boa hora o editor dos Cadernos do Leme, Rodrigo Azeredo Grnewald, decidiu public-lo, o que constitui um testemunho adicional da sua fora entre antroplogos que compartilham o interesse pelo contexto etnogrfico do nordeste. O jovem leitor que no o leu e, portanto, por ele no se deixou inspirar, haver de indagar se um texto escrito em 1986, e sobre temtica particularmente permevel a determinaes de variadas ordens, ter resistido ao do tempo. Estou segura que sim, e tentarei, ao longo desta deliberadamente sucinta apresentao, explicitar a minha posio. Dois aspectos se me afiguram especialmente relevantes neste projeto/ensaio, cujo propsito, claramente enunciado em seu longo e descritivo ttulo, duplo, i.e., tratar da etnicidade e da organizao poltica de povos contemporneos no nordeste brasileiro, tomando como eixo-condutor a sua transformao histrica (de caboclo a ndio) e estreitando o foco para se deter pouco mais no caso do povo Kapinaw. Um duplo movimento, pois, em que o geral d lugar ao particular ou especfico, um informando ao outro de modo complementarmente relacional, mediante o concurso da histria, na diacronia e sincronia. Se a especificidade do contexto etnogrfico investigado revela-se na diacronia, as suas peculiaridades deixam-se surpreender na sincronia, como parece enfatizar o autor, nas primeiras linhas. Especificidade (histrica) e peculiaridade (cultural) constituem os dois aspectos acima referidos que sero tematizados ao longo do ensaio, no obstante a nfase incida sobre o primeiro. O caso peculiar, assim apreendido, no corre o risco, to frequente, de ser tomado como extico ou decorrente de uma ao meramente instrumental por parte dos agentes sociais. Por outro lado, um outro aspecto a ser destacado decorre do deslocamento terico que ele opera em relao abordagem culturalista que, sob vrios ngulos, guiou, em larga

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medida, os estudos produzidos entre as dcadas de 1970-1980, entre os quais se inclui a minha prpria dissertao de mestrado sobre os Patax de Barra Velha/Porto Seguro-BA, muito inspirada nas formulaes de Roberto Cardoso de Oliveira sobre a frico intertnica (Os Patax de Barra Velha: seu subsistema econmico, 1977). necessrio lembrar, todavia, que a pretenso de Cardoso de Oliveira ao lanar mo dessa abordagem, cujo foco o sistema de relaes sociais, as relaes de conflito/poder estabelecidas, era reduzir a fora da perspectiva culturalista. Nesse sentido, como o prprio autor enfatizou, muito genuinamente, no foi por outra razo que ele utilizou o conceito de frico intertnica e no o de aculturao1 (Problemas e Hipteses relativos Frico Intertnica In: A Sociologia do Brasil Indgena,1972. p. 85-129. De fato, a noo de frico intertnica visava descrio da situao de contato dos povos j includos em sistemas intertnicos constitudos ou em processo de constituio, ao passo que a noo de potencial de integrao caractersticas do sistema intertnico (econmicas, sociais e polticas) passveis de serem consideradas como as responsveis pela integrao (p. 89) asseguraria ao pesquisador efetuar o prognstico. Mediante a avaliao conjunta do grau de dependncia indgena dos recursos econmicos no indgenas; da capacidade dos grupos em contato (indgenas e regionais) para a mobilizao com vistas a determinados fins; e dos meios escolhidos para atingir tais fins (p. 88-97) seria possvel prever a integrao dos ndios ao contexto regional. H, pois, uma correlao entre sistemas intertnicos mais integrados e sociedades indgenas mais dependentes dos contextos regionais, o que permitir ao autor apreender a determinao do mercado sobre as organizaes indgenas, em razo mesmo de ele se apresentar como um grande obstculo para o seu desenvolvimento (idem, p. 139). Guga Sampaio preconizar que se os apreenda, de modo sistemtico, atravs da mobilizao poltica que eles desenvolviam, e continuam a desenvolver, nos planos interno e externo, para o que utilizavam, e continuam a utilizar, os smbolos indgenas considerados mais eficazes para o estabelecimento da sua distino em face dos no ndios. Entre esses smbolos destacavam-se, tal como ainda hoje, os rituais, sob as modalidades Ouricouri, Prai, Tor ou Particular e, sobretudo, o uso ritual da jurema. Estudos subsequentes salientariam a especial fora ritual na mobilizao tnica dos povos indgenas no nordeste. Mais no digo para no retirar do leitor o direito de proceder s suas prprias descobertas e avaliaes atravs da fonte efetivamente autorizada, o autor, a quem sado,1

Afinal, nessa dcada de setenta a oposio sociedade/cultura, entre outras distines Durkheimianas, havia sido erradicada pela antropologia Lvi-Straussiana.

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uma vez mais, pelo arrojo e rigor demonstrados na elaborao deste projeto/ensaio, tanto na seleo e apropriao das fontes bibliogrficas quanto das formulaes produzidas.

Salvador, 31 de dezembro de 2011 Maria Rosrio de Carvalho Profa. Associada, Depto. de Antropologia, FFCH-UFBA

Uma antropologia poltica dos indgenas do nordeste?

Por: Joo Pacheco de Oliveira

Alguns textos devem ser lidos como unidade pois o autor neles colocou um reconhecvel ponto final. As remisses ao contexto histrico onde foram produzidos parecem suprfluas, mera curiosidade. Outros respondem a inquietaes mltiplas e constituem snteses provisrias em uma trajetria mais rica, pontuada por desafios e lutas. So, como diria Pierre Bourdieu, atos de combate, que expressam uma dimenso bem diversa do fazer sociolgico. Na contramo do ponto final, neles o autor se esmera em colocar vrgulas, deixar portas entreabertas, dialogar e inspirar-se permanentemente com novas demandas e questes. O trabalho De Caboclo a ndio: etnicidade e organizao social e poltica entre povos indgenas contemporneos no nordeste do Brasil: o caso Kapinaw, de Jos Augusto Laranjeira Sampaio, que o LEME ora disponibiliza aos leitores contemporneos, deve a meu ver ser lido com mais fecundidade nesta segunda sintonia. uma leitura prazerosa, um texto erudito que investe no levantamento de fontes histricas e bibliogrficas at ento pouco frequentadas pelos antroplogos, uma ampla gama de referncias tericas at aquele momento bem pouco conhecidas e citadas nos estudos sobre indgenas do nordeste. Destacase sobretudo o esforo do pesquisador efetivamente empenhado em ouvir os indgenas e tom-los como sujeitos histricos, refletindo sobre as suas criaes (ao invs de naturalizlos ou exotiz-los, como ainda era a perspectiva dominante no Brasil). Muito se pode aprender com este texto! Seria uma tarefa inesgotvel e mesmo insana recuperar os seus muitos mritos e buscar aplic-los a debates recentes. O que posso fazer nesta breve nota introdutria, tocar

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em pontos que me aproximam bastante do seu autor em termos de postura intelectual e poltica, seja naquele contexto de produo do texto seja em ocasies posteriores em que as nossas trajetrias se entrecruzaram. So aspectos que podem surpreender ao leitor atual e, espero, possam ajud-lo a percorrer ao reverso, no como histria mas como arqueologia, os vinte e cinco anos que nos separam da elaborao deste texto. O leitor atual certamente buscar uma unidade terica de referncia. Ou seja, a partir de que matrizes disciplinares (para recuperar aqui uma expresso de Roberto Cardoso de Oliveira) o autor constitui seu objeto e prope as questes antropolgicas a investigar? Embora dialogue amplamente, a sua anlise no se inscreve de maneira alguma em escolhas anteriores e ento facilmente acessveis. Tais alternativas seriam: a) a tradio dos estudos culturalistas (onde a categoria de aculturao imperava por dcadas); b) os trabalhos mais sociolgicos (baseados na noo de frico intertnica); ou c) as analises baseadas no mtodo estruturalista (na poca ainda iniciantes no Brasil e circunscritas aos trabalhos de Roberto da Mata). em uma direo bem diversa que se move Sampaio (1986), debatendo com diversos autores ingleses e norteamericanos (como Victor Turner, Marc Swartz, Richard Adams e Raymond Fogelson) que a partir de duas coletneas do final dos anos 60 e de outra na dcada seguinte, foram com certa frequncia agrupados sob o rtulo de antropologia poltica 2. O uso mais sistemtico dessa bibliografia na ps-graduao no Brasil iniciou-se com um curso oferecido no PPGAS/Museu Nacional, em 1978, ministrado por Otvio Velho e por mim (ento como professor assistente e doutorando). O programa incorporava no entanto outras preocupaes (ausentes naquelas coletneas), conectando a disciplina de antropologia poltica no Brasil aos trabalhos dos africanistas ingleses (Evans-Pritchard e Fortes) e mais especialmente a chamada escola de Manchester (sobretudo Max Gluckman) bem como aos estudos sobre etnicidade (Fredrik Barth). Nos anos seguintes vrias vezes este curso foi ministrado no MN, inspirando trabalhos de pesquisa no necessariamente relacionados com indgenas (inclusive vrios destes so citados por Sampaio em sua alentada bibliografia, prpria de um leitor voraz e meticuloso). Eu alternava esta disciplina com o curso que oferecia sobre relaes intertnicas, enquanto Otvio Velho seguia em outras direes. Foi esta a abordagem que norteou a minha monografia sobre os Ticunas, tese de doutorado defendida somente em 1986, publicada em 1988, mas terminada de fato em 1984. Neste ano convite de Mariza2

Vide Swartz,Marc; Turner, Victor; and Tuden, A. (Eds) Political Anthropology, 1966; Swartz, Marc Local level politics, 1969, Fogelson, Raymond & Adams, Richard - Political Anthropology, 1978).

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Correa, ento coordenadora da ps-graduao da UNICAMP, eu dei um curso naquela instituio, quando vim a ali conhecer Guga (permito-me cham-lo assim, pois aqui entra em cena no apenas o autor, mas o homem em sua trajetria). Aprendi com ele muito sobre os ndios do nordeste, seja nas discusses durante os seminrios seja em conversas informais. A nica ocasio em que lidara anteriormente com dados e estudos dessa procedncia fora no mbito de um estudo comparativo sobre os indgenas enquanto uma modalidade de campesinato de fronteira, em texto citado por Guga (como manuscrito) e que de fato no cheguei a publicar. Em movimento simultneo Guga comeava a sistematizar suas fontes de informao sobre os ndios da Bahia (advindas da ANAI-BA e do PINEB/UFBA, onde se beneficiava do convvio com Pedro Agostinho e Rosrio Carvalho), pensando incorpor-las a partir de uma experincia de campo (que faria em Pernambuco, com os Capinaws). O mote porm da antropologia poltica (ao menos na verso abrasileirada) estava, acho eu, bastante visvel no projeto de pesquisa que concluiu dois anos depois. O mesmo vis analtico pode ser encontrado no trabalho de Adalberto Rizzo de Oliveira, seu colega de turma, em monografia muito posterior, de doutoramento sobre os ndios Canellas (MA), agora tambm em vias de publicao. Dez anos depois do curso na UNICAMP, em 1994, voltei a debater mais extensamente com Guga e colegas de ANAI e PINEB durante um perodo que estive na UFBA como professor-visitante, ministrando a disciplina relaes intertnicas. Estimulado pela qualidade das pesquisas ali em andamento propusemos um GT na ANPOCS onde vieram a cruzar-se pela primeira vez os estudos de coletividades indgena do nordeste com os ento iniciantes estudos sobre quilombolas. Alm das demandas prticas sobre os antroplogos laudos judiciais e relatrios de identificao de terras havia uma forte importante convergncia terico-bibliogrfica nestes estudos, o que antecipava um importante debate futuro sobre identidades tnicas e modalidades de reconhecimento. A comunicao apresentada por Guga, reelaborando o seu material Capinaw, foi um destaque deste GT, sendo recomendado para publicao na RBCS (o que acabou acontecendo em 1996, em uma editada pela ANPOCS). O uso do termo antropologia poltica progressivamente se esgarou3, a nfase nos anos 90 deslocando-se crescentemente para a etnicidade (pensada segundo a perspectiva

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No prprio Museu Nacional a linha de pesquisa que nos ltimos 15 anos tem lecionado esta disciplina de estudos sobre a antropologia da poltica, referida sobretudo ao prof. Moacir Palmeira e aos trabalhos do

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de Barth, como parte de uma antropologia do conhecimento). O exemplo mais articulado desta nova direo ser uma coletnea da qual Guga no participou (por estar envolvido no momento em outras pesquisas), mas na qual se inclua o trabalho de sua colega Sheila Brasileiro sobre os Kiriri (objeto de sua dissertao de mestrado na UFBA). Intitulada A Viagem da Volta: etnicidade, poltica e reelaborao cultural no nordeste indgena, tal coletnea tve sua primeira edio em 1999, uma 2a. edio acontecendo em 2004. O leitor atual pode estranhar a extenso (103 pgs), a extensa bibliografia (cerca de 30 pgs), a slida base de conhecimentos que precede ao projeto de pesquisa, assim como as hipteses arrojadas e inovadoras formuladas. A classificao do texto como um projeto de pesquisa se reporta menos a caractersticas encontrveis hoje em projetos de pesquisa do que a uma estratgia conjuntural do autor. Em uma breve visita que fiz a Salvador em 1986 Guga me entregou uma verso deste texto, comentando que era o trabalho final do curso na UNICAMP (que na realidade ainda no enviara). Fiquei surpreso e muito satisfeito ao deparar-me com o excelente resultado. Volto metfora da vrgula e do ponto final. Mesmo dando pblico este projeto de pesquisa, to rico mas ao mesmo tempo to distante (a ponto de nos propiciar reunir alguns dados fragmentrios para uma arqueologia dos estudos sobre os ndios do nordeste), Guga continua a ser uma referncia imprescindvel para os estudos e polticas relativas aos indgenas do nordeste, uma figura importante nos debates atuais sobre laudos e percias antropolgicas, um analista arguto e atualizado no debate sobre polticas pblicas, direitos e mobilizaes indgenas. com tal amplitude e a disposio em enfrentar desafios cada vez maiores que devemos debater os padres profissionais de trabalhos dos antroplogos brasileiros, numa conjuntura onde h crescentes presses para uma especializao entre os domnios da antropologia, bem como para sua separao das suas repercusses e responsabilidades sociais.

Joo Pacheco de Oliveira, Professor Titular de Etnologia do Museu Nacional - UFRJ Rio de Janeiro dezembro de 2011

NUAP. As minhas entradas de curso tem sido outras, como Antropologia Histrica, Antropologia do Colonialismo e Antropologia do Territrio.

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DE CABOCLO A NDIO: Etnicidade e organizao social e poltica entre povos indgenas contemporneos no nordeste do Brasil; o caso Kapinaw

Jos Augusto Laranjeiras Sampaio

"Antigamente ns era conhecido por 'caboclo'... De 'caboclo' passou para 'ndio'." (Josias Patrcio, conselheiro e ex-cacique kirir entrevista em Mirandela, Bahia, maio de 1979).

I.

Por uma investigao sistemtica de processos tnicos em segmentos sociais indgenas no serto do nordeste do Brasil

Introduo

Desde meados da dcada de setenta do sculo XX se tem observado um nmero crescente de casos de tenso social e de conflito agrrio envolvendo segmentos indgenas e parcelas da sociedade regional no Nordeste do Brasil, bem como uma crescente mobilizao dos primeiros no sentido de fazer valer, perante o Estado e a sociedade nacional, os direitos pertinentes sua condio tnica. Tais situaes, frequentemente noticiadas tanto pela imprensa regional quanto pela grande imprensa nacional1, sem duvida no se constituem em um fenmeno particular ao Nordeste mas sim em uma parcela da mobilizao que, em igual perodo, vem atingindo, ainda que em nveis e de formas diversos, amplos segmentos dos povos indgenas no Brasil, e que, por sua vez, se articula com fatos e mudanas sociais e polticas que dizem respeito ao Estado e sociedade nacionais.

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Uma boa sntese destes noticirios na primeira metade dos anos oitenta pode ser obtida na publicao anual "Povos Indgenas no Brasil" (Aconteceu, 1981 a 1985). Veja-se tambm, em igual perodo, o jornal "Porantim", especialmente os nmeros de 42 a 46 (1982), 52/53 e 57 (1983), 61, 65 e 67 (1984) e 76 a 79 (1985). As publicaes da Comisso Pr-ndio (1979, 1981, 1982 e 1983) informam e discutem algumas das questes polticas e legais que interessam diretamente aos ndios no Nordeste. Alguns dos trabalhos informativos e, ou, analticos sobre a situao destes povos poca so: Ana-Bahia (1980 e 1985), Antunes (1984), Beltro (1980), Carvalho (1982b, 1984 e 1988), Carelli (1984), CONDEPE (1981), Dallari e Dantas (1980), Figueiredo (1981), Lea (1981), Magalhes (1980), Reesink (1983), Rocha Jnior (1982 e 1983) e Sampaio (1984).

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Por outro lado, o envolvimento crescente desses Estado e sociedade naquilo que se tem correntemente denominado, um tanto inconvenientemente, "a questo indgena" pode ser assinalado, no dito perodo, a partir da promulgao do Estatuto do ndio (Lei 6001 de dezembro de 1973), da criao, no mbito da Igreja Catlica, do Conselho Indigenista Missionrio (Cimi), em 1972, e do surgimento de vrias associaes de "apoio ao ndio" em diversos estados a partir de 1978. Por sua vez, os prprios povos indgenas passariam a constituir, j ao final daquela dcada, associaes indgenas de carter multitnico, com a criao, em 1980, da Unio das Naes Indgenas (UNI), certamente um marco nesse processo. O que parece dar um carter especfico e at certo ponto surpreendente aos movimentos indgenas no Nordeste est relacionado com a prpria histria e com as caractersticas culturais atuais destes povos, essas sim, sem dvida, peculiares. Com cerca de, em mdia, trezentos anos de contato intenso com a civilizao europia, sem falar - exceo dos Fulni- - outra lngua que no o Portugus, e fenotipicamente muito assemelhados, quando no indiferenciveis, da populao regional envolvente, com a qual se encontram, tambm, profundamente envolvidos econmica e culturalmente, configurariam um caso extremo do que os estudiosos do "contato intertnico" no Brasil costumavam classificar como "ndio integrado", segundo qualquer das variantes da noo de "integrao" e suas correlatas em perspectivas tericas diversas2. Deste modo, certamente compreensvel que, com mais nfase que em outras situaes, o movimento dos ndios no Nordeste se caracterize por um grande esforo poltico de articulao interna e externa e pelo acento e pela elaborao simblicos e ideolgicos intensos em torno dos atributos culturais identificveis como indgenas, com preocupaes

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Sobre os ndios no Nordeste diz Galvo (1959):

"Populao estimada em 5.500 ndios. A maior parte vive integrada na populao regional, registrando-se considervel mestiagem e perda de elementos culturais tradicionais, inclusive a lngua." (Galvo, 1959: 225) J Amorim (1975) diz: "(...) imersos em sistema monetrio de natureza capitalista (...) aqueles indgenas encontram-se integrados economia da regio." (Amorim, 1975: 4) E, "decorridos quase cinco sculos de contato com o 'homem branco', os indgenas daquela regio configuram, segundo penso, caso-limite no processo de integrao do ndio sociedade brasileira." (Idem: 5) Veja-se tambm Schaden (1967), Ribeiro (1970), Cardoso de Oliveira (1960, 1964 e 1967) e Cardoso de Oliveira e Faria (1969), para a discusso de "integrao" e categorias afins como "aculturao" e "assimilao" e suas aplicaes a diversos casos no Brasil.

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muito ntidas em delimitar fronteiras sociais e em estabelecer distines perante a sociedade nacional de modo a marcar suas especificidades enquanto entidades sociais e tnicas diferenciadas. Voltarei adiante a estes processos. Por enquanto, gostaria apenas de referir que eles atingem no apenas as etnias historicamente conhecidas e bem identificadas na regio, assistidas desde pelo menos meados do sculo XX pelo governo federal, como os Fulni-, Pankarar, Kirir e Potigwra; mas tambm grupos at ento considerados extintos Patax, Karapot3 e sobretudo outros que adotam denominaes tnicas desconhecidas na literatura, como Kapinaw, Tingw-Bot, Pankarar, Was, cujos "aparecimentos"

provocaram, num primeiro momento, tanto surpresa quanto desconfiana quanto sua "autenticidade", seja por parte de segmentos da sociedade e dos poderes pblicos regionais, seja por parte da prpria agncia indigenista federal, a Fundao Nacional do ndio (Funai)4, apesar de levantamentos histricos bastante simples poderem confirmar a pertinncia da "indianidade" em todos os casos5. A emergncia destes povos, bem como o carter particular do contexto indgena regional no qual ela se insere, certamente coloca questes tericas e polticas de relevncia. Com efeito, os poucos autores que se interessaram em estudar estes povos no sculo XX antes dos anos 70 em geral concordam em ressaltar seja sua "obstinada resistncia" em permanecer indgenas apesar da quase inviabilidade disto6, seja a iminncia inevitvel da sua dissoluo e incorporao completa aos estratos inferiores da sociedade nacional7.

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A "extino" destes grupos pode ser verificada em Nimuendaju (1946) e em Ribeiro (1970). Conforme, por exemplo, Pierson (1981) e Motta & Mello (1982) para o caso kapinaw, e a matria "As Concepes de Indianidade do Coronel Zanoni" (Aconteceu, 1982:82-83) para o caso Tingw-Bot. 5 Veja-se, por exemplo, o caso Kapinaw, tratado adiante e em Carvalho (1982b), ou trabalhos do prprio mbito administrativo da agncia governamental sobre estas etnias como Magalhes (1980) e Beltro (1980), ou ainda Sampaio (1984). 6 Por exemplo, Bandeira (1926: 20), Oliveira (1937: 173), Hohenthal Junior (1954: 94, 1960a e 1960 b). Este ltimo autor diz: "O que surpreendente que, a despeito da passagem de quatrocentos anos de dominao cultural europia, essas pequenas comunidades indgenas ainda sobrevivem, particularmente tendo em vista o fato de que elas foram, por tantos anos, sujeitas a muitas perseguies pelos colonos brancos do local, especialmente durante o hiato entre o fim da Junta das Misses e o estabelecimento da Diretoria Geral dos ndios, tambm entre a extino desta diretoria e a chegada do Servio de Proteo aos ndios na regio. Estamos assim diante de um caso verdadeiro de persistncia cultural, que peleja contra foras sempre superiores,e cuja situao, analisada mais profundamente,ser com certeza de interesse para historiadores e antroplogos." (Hohenthal Junior, 1960a: 59) 7 Por exemplo, Trujillo Ferrari (1957), em suas concluses a respeito dos Karir de Colgio, diz: "As consideraes acima, (...) tm por finalidade apontar que o sentido de agrupamento tribal est se dissolvendo e confundindo-se na configurao geral da sociedade local de Porto Real do Colgio." (Trujillo Ferrari, 1957: 82). Encontram-se consideraes semelhantes relativas a outros casos em Amorim (1971) e mesmo em Silva (1978).

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Escrevendo j em 1970, Ribeiro diz, aps breve relato da situao nos diversos grupos ento melhor conhecidos, que: "(...) assim viviam os seus ltimos dias os remanescentes dos ndios no litorneos do Nordeste que alcanaram o sculo XX" (Ribeiro, 1970: 56). Mas diz tambm:

"Eis o que restou no sculo XX dos ndios do interior do Nordeste, simples resduos, ilhados num mundo estranho e hostil e tirando dessa mesma hostilidade a fora de permanecerem ndios. Pelo menos to ndios quanto compatvel com sua vida diria de vaqueiros e lavradores sem terra, engajados na economia regional." (Idem: 57). Vale ressaltar que esta ideia de situao limite tambm, como se ver, bastante recorrente na literatura, ainda que se apresente sob perspectivas diversas de analise. O mesmo acontece com relao sempre referida importncia do papel diferenciador da hostilidade. Numa primeira tentativa de estudar os povos atuais na regio enquanto um conjunto etnolgico, e empenhado na formulao de um modelo de campesinato indgena, Amorim, identificando o processo de concentrao da propriedade fundiria com uma crescente presso sobre os territrios indgenas j insuficientes - apesar das garantias legais e proteo estatal, ressalta em uma perspectiva que me parece bastante limitada quanto posio do Estado na questo - e a consequente tendncia proletarizao dos ndios, conclui que tal situao implicaria, ou melhor, j estaria implicando, na "perda da identidade tnica" (Amorim, 1975: 1), j que esta se acha profundamente vinculada posse de um territrio grupal - as "reservas" - e possibilidade da manuteno de uma economia camponesa8.

Que as presses sobre os ndios e seus territrios, identificadas por Amorim no inicio dos anos setenta e mesmo por autores anteriores como Oliveira (1937)9 para no se falar tambm na farta documentao histrica - estejam sendo acompanhadas, no plano da etnicidade, no pela sua "perda" mas por uma revitalizao e por reelaboraes bastante8

"These tribal groups have been reached by a progressive proletarization process, in proportion to the insufficiency of the 'reserves' in allowing the independent work of all their group. It means that it will became necessary to sell manpower to the white man, the only way to assure the indispensable acquisition of money. Together with this it will gradually occur the loss of ethnic identity that still exists, since the ones who are forced to look for a job outside their tribal setting should disguise themselves in order not to be stigmatized by the various prejudices against the indians." (Amorim, 1975: 17). 9 Ver especialmente pginas 178 a 180.

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efetivas que, sem dvida, no deixam de reafirmar uma estreita vinculao dessa etnicidade com uma "territorialidade"10, o que me parece se constituir no aspecto central a ser tratado no sentido de uma compreenso mas exata do que ocorre, ou tende a ocorrer, com grupos tnicos em tais situaes, bem como da prpria etnicidade enquanto fenmeno social, ou do seu alcance como categoria de analise em contextos sociais pluritnicos ou pluriculturais11. De fato, de onze grupos com cerca de 13.000 indivduos assistidos por postos indgenas da agncia governamental em 197512, tinha-se, apenas dez anos depois, na faixa compreendida entre o Norte da Bahia e o Piau, dezessete povos etnicamente diferenciados, em igual nmero de reas e postos indgenas13, com uma populao de cerca de 27.000 pessoas14. Alm desses, haviam ento outros grupos cuja persistncia tnica j se podia vislumbrar por fontes e relatos diversos, pelo menos dois dos quais - os Karapot de Alagoas e os Tapeba do Cear - j viviam processos reivindicatrios com vistas ao seu "reconhecimento oficial" pelo Estado15. Os seis povos reconhecidos pela Funai em 1985 e que no o eram ate muito recentemente - Pankarar na Bahia, Xok em Sergipe, Tingw-Bot e Was em Alagoas e Kapinaw em Pernambuco - eram j indiretamente conhecidos de alguns estudiosos,

principalmente atravs de ligeiras referncias a eles em Oliveira (1937) e, ou, em Hohenthal Junior (1954 e 1960a), que deles obtiveram informaes junto a outros grupos indgenas. Vale ressaltar que, dentre estes, alguns se encontravam j totalmente proletarizados, sem possuir, poca da deflagrao dos seus movimentos de reivindicao tnica em fins da dcada de setenta, qualquer parcela de territrio minimamente significativa em termos econmicos, caso dos Tingw-Bot em Alagoas e dos Xok em Sergipe. O que interessa aqui propor , pois, a investigao sistemtica da produo e reproduo de uma conscincia tnica social e politicamente orientada - uma etnicidade

10 11

Conforme Carvalho (1984 e 1988).

Penso aqui, entre outros, enquanto pontos de referncia para estas preocupaes, nas importantes contribuies de estudos de caso como os de Cohen (1969), Barth (1984) e Carneiro da Cunha (1985).12

Conforme Amorim (1975: 2). Eram apenas 5.500 pouco mais que quinze anos antes segundo Galvo (veja-se a nota 2 acima). 13 Funai (1983), Aconteceu (1984 e 1985). 14 "Porantim", nmero 79, de setembro de 1985. 15 Quinze anos aps este escrito original, em 2001, h, na referida regio, trinta e trs povos indgenas com uma populao de aproximadamente 70 mil ndios e habitando trinta e sete territrios indgenas (Ana, 2001).

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(Barth, 1969; Cohen, 1969; Carneiro da Cunha, 1979) - entre os povos indgenas que vivem hoje na faixa de Serto do Nordeste brasileiro. Pretendo aqui caracterizar os indgenas na regio como uma unidade etnogrfica e poltica historicamente constituda, tomando nessa perspectiva o conjunto de prticas polticas e culturais nas formas variveis em que se apresentam em cada caso especifico. Tratarei, a ttulo de breve ilustrao, de um destes casos, o dos ndios Kapinaw, no serto oriental do estado de Pernambuco. Penso, por outro lado, que a partir de uma tal perspectiva de unidade histrica regional, se poder estender mais consequentemente a investigao etnogrfica a casos diversos em particular, tendo em vista a proposio preliminar de algumas generalizaes como, por exemplo, para o caso dos segmentos sociais indgenas em situao ou em processos contemporneos de "emergncia" tnica e poltica. A partir de etnografias mais completas e da discusso das produes analticas parciais se poder ento propor a formulao de modelos mais gerais que possam dar conta dos processos e estruturas organizacionais e simblicos que revestem o fenmeno da etnicidade no referido contexto indgena regional. A elaborao do tema central de investigao, tal como aqui concebido, exige, tanto com relao ao contexto regional tratado quanto aos seus casos particulares, e pensando em um mesmo sentido em que Barth (1984) ou Carneiro da Cunha (1985), tanto um aprofundamento histrico que permita compreender a gnese de suas situaes atuais, quanto avaliao de suas posies estruturais perante contextos sociais significativos mais abrangentes, tais como as determinaes do campo socioeconmico regional ou local tomando aqui o serto como unidade sociogeogrfica relevante - os movimentos indgenas nos planos regional e nacional, o indigenismo oficial em suas diretrizes e prticas etc. A relao entre o problema terico proposto - a constituio de identidades tnicas, ou de etnicidade, no mbito de determinados processos sociais, seus componentes e determinantes polticos, sociais e simblicos16 e a escolha dos povos indgenas no Nordeste como sujeitos de investigao, no , como j se poder antever pelo exposto acima, ocasional. Sem dvida, a afirmao tnica uma preocupao constante e um componente organizacional angular na vida social desses povos e disto provm uma rica e

16

Penso aqui, basicamente, na "dupla gnese" de que fala Carneiro da Cunha: "(...) nos processos de identificao tnica assistimos a uma dupla e indissocivel gnese: a formao de uma cultura (...) e a constituio simultnea da comunidade que se pauta por ela, a qual, para ser mais precisa, essa cultura serve de peso e de medida" (Carneiro da Cunha, 1985: 206).

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intensa elaborao poltica e simblica cuja compreenso ser certamente frtil e elucidativa a respeito destes processos, bem como desses povos, de suas lutas atuais e passadas e das expectativas com relao ao futuro que orientam as suas praticas. Entendo que justamente a ausncia de um maior interesse de investigao, e a correspondente insuficincia terica no sentido da compreenso destes processos tnicos e da sua contextualizao, que est na base da falncia de algumas notrias - e em geral funestas - avaliaes do futuro de diversas "situaes de contato" envolvendo sociedades indgenas no Brasil, como as contidas em etnografias como as de Wagley e Galvo (1949), Laraia e Da Matta (1967) e Amorim (1971), necessariamente revistas pelos seus autores e, mais que isto, pelos prprios fatos. Alm disso, inegvel que os ndios do Nordeste e sua identificao tnica tm estado no epicentro de polmicas questes polticas e legais levantadas, quase sempre, por iniciativa do prprio indigenismo oficial como, no supra referido contexto do final dos anos setenta e incio dos oitenta, a "questo da emancipao" (Comisso Pr-ndio, 1979) e a tentativa, igualmente "emancipatria", de estabelecimento de "Critrios de indianidade" ("Porantim" 38, 1982; Carneiro da Cunha, 1983). Em um pas em que tanto na legislao17 quanto na "conscincia nacional" (Cardoso de Oliveira, 1965; Rocha, 1984; Sampaio, 1988) o ndio ainda concebido antes como o "silvcola" distante18, h uma srie de questes jurdicas e polticas apenas ensejadas por debates como os aqui referidos, e para as quais um melhor entendimento da situao das etnias indgenas contemporneas no Nordeste do Brasil certamente ter muito a contribuir. Penso aqui especialmente, e num momento de redefinies da prpria sociedade nacional, na importncia que deve ter hoje a discusso da plurietnicidade desta sociedade19; discusso que s tem sentido na medida em que se considere os segmentos indgenas como parcelas etnicamente diferenciadas mas amplamente participativas nesta sociedade. No cabem aqui, pois, nem a imagem cada vez mais distanciada do real do "silvcola", que se mantm diferenciado apenas em funo do prprio distanciamento social; nem a do seu oposto lgico e tambm cada vez menos sustentvel no real, o "ndio assimilado", esta canhestra formulao terica que busca a conceituao formal de "no-ndio" ou de "ex17

Refiro-me aqui em especial ao "Estatuto do ndio", de 1973. A Constituio Federal de 1988 alteraria, em seus artigos 231 e 232, significativamente esta perspectiva. 18 E bem ao contrrio do que tende a ocorrer em outros pases americanos. 19 Para uma abordagem das discusses a respeito de sociedades plurais ou multitnicas veja-se MayburyLewis (1984) e a, especialmente para o caso dos ndios no Brasil, Cardoso de Oliveira (1984). Para outros casos de presena indgena em sociedades nacionais na Amrica Latina, veja-se, dentre outros, Primov (1980), Gmez Quiones (1982) e Varesi (1982).

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ndio", algo prximo da ideia nativa de "caboclo", um personagem concebido como "integrado", inclusive no sentido em que a ele, embora marginal, no se deve reconhecer nem se legitimar - pretenses de distintividade tnica. Aqui, mais uma vez, a compreenso da situao dos ndios no Nordeste e de sua mobilizao poltica atual reveste-se de uma relevncia cientfica e pragmtica destacvel. ndios no serto: um esboo histrico

Se o sculo XVI foi marcado pelo contato entre o colonizador e as diversas tribos tup que dominavam o litoral nordestino, no sculo seguinte, quando esses se encontravam j quase que completamente dizimados pelas epidemias e guerras havidas principalmente no governo de Mem de S (1557-1572) e com a maior parte da sua populao sobrevivente nas capitanias da Bahia, Ilhus e Pernambuco escravizada ou reduzida em aldeias missionrias em rpido declnio (Hemming, 1978; Leite, 1945), foi a vez dos ndios do Serto. A penetrao nessa vasta rea foi feita de incio principalmente a partir da Baa de Todos os Santos e atravs de numerosas boiadas conduzidas pelos grandes sesmeiros, dentre os quais se destacaram, pelo seu poder, os d'vila, senhores da Casa da Torre20. Hemming (1978) sintetiza bem o que foi ou, melhor, o que hoje sabemos da histria do Serto no sculo XVII:

"Once cattle moved into an area they displace human beings. The Tapuia tribes were forced to surrender their homes and huntinggrounds to provide grazing for these imported animals. Thomas More wrote in 'Utopia: These placid creatures, which used to require so little food, have now apparently developed a raging appetite, and turned into man-eaters. Fields, houses, towns, everything goes down their throats'. The native resistance to this cattle invasion was one of the most important stages in the conquest of the Brazilian Indians. It was also the worst recorded, as always, there is nothing from the Indian side. The natives left no written record and no one recorded their version of the fighting. Most of the tribes displaced by the cattle have disappeared." (Hemming, 1978: 346) Na trilha das boiadas seguiram os missionrios. J na segunda metade do sculo XVII fundaram-se misses jesuticas na rota das boiadas, entre a capital da colnia e o rio

20

H uma boa histria desta dinastia por Calmon (1939).

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So Francisco e, em seguida, muitas mais s margens desse rio, de jesutas, capuchinhos e franciscanos (Leite, 1945; Primrio, 1937; Willeke, 1974; Regni, 1988). Os conflitos entre sesmeiros e religiosos do a tnica deste perodo, com intervenes de ambas as partes junto ao Governo Geral e Coroa. O Frei Martin de Nantes, um dos protagonistas desses episdios, deixou um interessante relato desses e de sua poltica (Nantes, 1707). H tambm uma vasta documentao acerca deles nos arquivos das ordens (Regni, Willeke e, principalmente, Leite, ops. cits.) 21. Um desfecho parcial dessa situao marcado pelos alvars rgios de 1700 (23 de novembro) e 1703 (22 de maio)22

que determinam que "a cada misso se d uma lgua de

terra, em quadra, para instalao de ndios e missionrios" ("Informao...", 1749: 393), e que cada uma seja composta de pelo menos cem casais. Certamente essa legislao, que deve ter contribudo para o processo de concentrao de populao e de etnias indgenas dispersas, no ps fim s disputas territoriais, do mesmo modo que a questo intimamente relacionada da liberdade dos ndios no se encerrou, mas foi se transfigurando paralelamente copiosa legislao a esse respeito nos sculos XVII e XVIII (Leite, 1945; Hemming, 1978; Beozzo, 1983). A importncia daqueles alvars, entretanto, permanece at hoje. Com base neles e em documentos posteriores a eles associados fundamentam-se historicamente - e, at certo ponto, tambm juridicamente - os direitos e as pretenses territoriais de boa parte dos povos atuais na regio (Dallari e Dantas, 1980; Baumann, 1982; Reesink, 1983b e 1984). Enquanto as boiadas se expandiam na capitania da Bahia, ao norte do So Francisco os colonizadores e suas misses restringiam-se ainda zona da mata quando da ocupao holandesa de 1630. Na verdade, apenas no inicio daquele sculo haviam se estabelecido as primeiras fortificaes coloniais no territrio dos Potigwra, nos locais das atuais capitais dos estados de Paraba, Rio Grande do Norte e Ceara23. Os holandeses desarticularam as misses j existentes na costa (Leite, 1945) mas, por outro lado, mais preocupados com registros que os portugueses, deixaram importantes relatos e iconografia sobre alguns povos indgenas do Serto, com alguns dos quais foram os

21

Seria interessante comparar os relatos desses historiadores missionrios com relao a estas disputas que envolveram diferentemente as principais ordens - e, do mesmo modo, comparar esses com o relato - que quase no os menciona - do historiador dos sesmeiros (Calmon, 1939). Infelizmente faltam-nos relatos na perspectiva da terceira parte envolvida. 22 Transcritos em "Informao..." (1749: 393-4 e 384 respectivamente). 23 As prolongadas guerras entre os portugueses e os Potigwra so bem conhecidas, por exemplo em Gouva (1590). Veja-se tambm Hemming (1978, captulo 8).

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primeiros a contatar pacificamente24. Deles provm quase tudo do pouco que hoje se sabe sobre os Otxukayana (que em geral aparecem como Jandu ou Tarariy nas fontes lusitanas), aliados seus que dominavam os vales do Apodi e do Piranhas e que, como outros povos que tiveram contatos pacficos com os "flamengos" - Payak, Ik etc. - foram dizimados aps a restaurao de 1654 por paulistas como Domingos Jorge Velho, especialmente importados para tal. Serafim Leite faz a importante e interessante observao de que a partir da restaurao que surge, nos documentos da Companhia de Jesus, o termo "caboclos", com referncia aos falantes da"lngua geral", aldeados na zona da mata e que haviam lutado ao lado dos portugueses, e em distino aos "ndios bravos", os "Tapuia" do Serto (Leite, 1945) 25. Para o sculo XVII e incio do XVIII dispe-se, com relao ao Serto, alm dos holandeses, apenas de pequenas obras missionrias com algum interesse etnogrfico relativas a povos da famlia lingustica Karir do vale do So Francisco (Nantes, 1707; Nantes, 1709) e Norte da Bahia (Mamiani, 1698 e 1699)26

. Merece meno ainda o relato

de Mascarenhas (1716) sobre os Prok do So Francisco. Dos historiadores missionrios27, apenas Serafim Leite reproduz documentos de interesse etnogrfico, como a carta do Padre Manuel Correia (1693) a respeito do ritual do Varakidz, aparentemente praticado por diversos grupos, karir ou no (Leite, 1945: 276-8 e 298-9), alm de fazer vrias referncias ao que h de mais importante em Cronistas da Companhia como Vasconcelos (1663) e Vieira. Para o perodo anterior a 1630, entretanto, no h nada de significativo. Os cronistas que produziram to boas descries dos Tupinamb na Bahia de Todos os Santos (Cardim, 1625; Soares de Souza, 1587) e no Maranho (Abbeville, 1614; vreux, 1614) trazem apenas informaes imprecisas e muitas vezes fantasiosas sobre os "Tapuias".24

Os principais relatos da poca disponveis em portugus so os de Laet (1633), Herckmann (1639), Marcgrave (1648), Beck (1649), Baro (1651), Barlu (1659) e Nieuhof (1682). Quanto iconografia, refiro-me principalmente s telas de Albert Eckhout. 25 Um cronista annimo do sculo XVIII reserva as ltimas linhas do seu extenso relato para definir as "Qualidades de pessoas de que se compe o Pays": "Brancos - Pretos - Mulatos, que so filhos de brancos com negras. Caryz, que so filhos de ndia com negro, que tambm lhe chamam mestios. Mamelucos, que so filhos de ndia com branco. Tapuyas, so os naturais da terra, que vivem no serto, e no falam uma lngua geral, seno cada nao a sua particular. Caboclos, so os que moram na costa, e falam lngua geral. A estes naturais comum o nome de ndios, tanto aos que vivem na costa, como no serto. Caribocas, so filhos de mulato com negra, e tambm do o mesmo nome aos filhos de mamelucos com negra, e no serto chamam a estes salta-atrs" ("Informao...", 1749: 484). 26 Tem-se em Rodrigues (1948) um bom exemplo de aproveitamento etnolgico dessas obras. 27 Alm dos j citados, tambm em Rwer (1942), Calderon (1970) e outros, encontramos algumas informaes sobre os aldeamentos missionrios e as prticas dos seus dirigentes.

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O sculo XVIII, poca de plena vigncia da Junta das Misses nas Capitanias da regio ("Informao...", 1749; Hohenthal Junior, 1960a; Beozzo, 1983), marca o apogeu e a decadncia dessas misses que, tendo chegado a vrias dezenas, sobretudo ao longo do curso do submdio So Francisco, esto j depopuladas e em muitos casos abandonadas quando da expulso dos jesutas em 1756 (Leite, 1945), e muito mais da por diante. o perodo da pesada legislao integracionista do Marqus de Pombal, que certamente se constitui na fase mais crtica para a sobrevivncia dos aldeamentos indgenas no Serto. Entre meados do sculo XVIII e as dcadas iniciais do XIX produziram-se algumas importantes descries cartogrficas da regio, como "Informao..." (1749), Couto (1757), Caldas (1759), Vilhena (1802), Menezes (1814), Aires do Casal (1813), entre outras; algumas bastante minuciosas e todas unnimes em referir a "decadncia" e o "atraso" das recm-criadas vilas de "ndios mansos" ou de "caboclos" e, em muitos casos, a convivncia e miscigenao destes com populao no indgena. O mesmo se observa com relao s poucas aldeias-vilas visitadas ou referidas pouco depois por Spix e Martius (1823). tambm desta poca o ltimo relato conhecido a respeito da reduo de ndios no Serto (Frescarolo, 1802), os quais viviam ento na rea extremamente rida da Serra Negra, Pernambuco. Desse modo, j no incio do sculo XIX, praticamente no havia mais "ndios" mas apenas "caboclos" no Serto. No inicio do perodo imperial so criadas, em cada uma das provncias, as Diretorias de ndios, com diretores nomeados para cada aldeia. Em seguida, a nova Lei de Terras do Imprio, de 21 de outubro de 1850, que "(...) manda incorporar aos prprios nacionais as terras dos ndios que j no vivem aldeados mas dispersos e confundidos na massa da populao civilizada" (Figueiredo, 1981: 130), provocou o que deve ter sido, no plano oficial, a primeira grande questo de definio tnica na regio e vrias aldeias perderam as suas terras. At o final do sculo todas as diretorias haviam sido extintas, o que equivalia afirmao oficial da inexistncia de ndios na regio nordestina, excetuando-se os grupos ainda isolados nas matas do Sul da Bahia28. As possibilidades de reconstituio de uma histria indgena do Serto no podem ainda ser completamente avaliadas (Sampaio, 1985b). Entre meados dos sculos XIX e XX houve grande interesse de estudiosos, principalmente da prpria regio, em proceder a esta

28

Evidentemente no incluo aqui a provncia do Maranho que, em termos etnogrficos e da histria indgena, no identificada com o Nordeste.

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investigao, ainda que muitas vezes em obras de carter mais geral29, mas a produo resultante quase sempre imprecisa, impressionista, pouco sistemtica e pouco ou mal referida s fontes primrias. Apesar disso, alguns destes trabalhos ainda contm as melhores pistas disponveis para que se possa aprofundar o estudo atravs de outras fontes como, por exemplo, no que diz respeito rea do Cear e do Piau. Quanto a trabalhos mais recentes e mais rigorosos no levantamento e anlise da documentao, podia-se considerar satisfatria, at meados da dcada de oitenta do sculo XX, apenas a produo relativa pequena rea correspondente ao atual estado de Sergipe, graas principalmente aos trabalhos de Dantas (1973, 1976, 1984), mas tambm aos de Figueiredo (1981) e Mott (1974). Na Bahia, alm de alguns levantamentos preliminares da documentao, o trabalho ento apenas comeava (por exemplo, Paraso, 1984), o mesmo ocorrendo em Alagoas (Antunes, 1984), e no Piau (Mott, 1985). Nas demais reas praticamente nada havia sido feito. Entretanto, um dos resultados significativos dos trabalhos citados a demonstrao da possibilidade de se trabalhar, pelo menos no que diz respeito ao sculo XIX, com documentao produzida pelos prprios ndios, como cartas, peties etc. Sabemos hoje que o serto nordestino pr-colonial foi habitado por uma diversidade muito grande de etnias. Ainda que seja muito difcil avaliar a extenso dessa diversidade, ela contrasta flagrantemente com a relativa uniformidade dos grandes grupos Tup da costa a leste (Tupinamb, Tupinikm, Kaet, Potigwra), falantes da mesma "lngua geral", e dos Timbira e Akw, grandes grupos de lngua j dos cerrados a oeste. Nimuendaju (1946) refere nada menos que oitenta diferentes etnnimos na rea situada entre as duas zonas referidas, isto , no serto propriamente dito a caatinga e em suas faixas de transio para a mata costeira, o agreste, e para o cerrado, os cocais; com grande concentrao no curso do baixo e do submdio So Francisco. O nvel das informaes relativas a esses etnnimos extremamente varivel e, consequentemente, tambm o a sua confiabilidade. No plano lingustico, pode ser identificada a grande famlia Karir, seguramente majoritria em grande parte da regio, e quatro das suas lnguas Kpea, Dzubuku, Kamur e Sapuy chegaram a ser especificadas e parcialmente descritas (Lowie, 1946). A incluso nessa famlia de lnguas de grupos como os Kanind e Ik foi tentada por autores29

Alencastre (1857), Thberge (1869), Joffily (1892), Studart (1896), Jorge (1901), Bezerra (1902), Pereira da Costa (1909), Barros (1923), Studart Filho (1926 e 1931), Pinto (1938), Pompeu Sobrinho (1939), Costa Jnior (1942), Bezerra (1950) etc.

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como Pinto (1935-8), mas parece no haver dados suficientes para tal. Alm disso, sabe-se da filiao de duas lnguas da regio a famlias cujas demais lnguas conhecidas esto todas ao Sul: a dos Masakar com a famlia Kamak e a dos chamados Pimenteiras com a dos Botocudos, em ambos os casos ainda com base em Martius (1867). Pesquisas ainda mais recentes com a nica lngua ainda falada, o Yaath dos Fulni-, permitem localiz-la de forma isolada no tronco Macro-J (Rodrigues, 1982). O parco material contemporaneamente disponvel sobre o Xukur, o Xok e o Pankarar no permite nada de conclusivo30. De qualquer modo, parece que diferentes pequenos grupos humanos foram pressionados para a zona semirida das caatingas medida em que os Tup avanavam pelas matas costeiras (Mtraux, 1927). O avano daqueles para o oeste, rumo s melhores terras do cerrado, teria sido, por sua vez, impedido pela presena majoritria dos J centrais. Vista nessa perspectiva, podemos pensar que a presumvel diversidade cultural e lingustica do Serto j comportava um embrio de unificao, no mnimo em termos ecolgicos, reforada pela coexistncia de vrios grupos no vale do submdio So Francisco (Nimuendaju, 1946; Hohenthal Junior, 1960a e 1960b) uma faixa mais propcia a uma agricultura mais intensiva antes mesmo que as misses e as boiadas viessem reforar a concentrao e a miscigenao, constituindo historicamente esta unidade. De fato, grande parte dos ndios no Nordeste hoje concentra-se ainda na rea de influncia do baixo e submdio So Francisco, apesar de muitos terem tido que abandonar as suas margens buscando reas de refgio nos brejos ou altos de serras prximos, casos, dentre outros, dos Pankarar, Pankarar, Atikm e Kambiw. Dentre as dezessete etnias acima referidas em meados dos anos oitenta31, incluem-se duas no propriamente sertanejas, os Potigwra e os Was, situados na zona da mata, mas que, apesar de sua ascendncia Tup segura no primeiro caso e bastante presumvel no segundo mantm hoje, como historicamente, estreita relao com os demais grupos aqui considerados32.

30

Um levantamento lingustico realizado na regio na dcada de cinquenta (Meader, 1974) demonstra bem o quanto os informantes podem ser criativos para tentar satisfazer a grande curiosidade de seus inquiridores e fazer juiz aos seus prstimos, e tambm o quanto problemtico o sentido cientfico disto. 31 Bem como dentre as trinta e trs existentes ao se iniciar o terceiro milnio. 32 Excluem-se, por outro lado, desse total, os grupos indgenas no Sul da Bahia - em especial os Patax do Monte Pascoal e os diversos povos reunidos j no sculo XX na reserva Caramuru-Paraguau e hoje conhecidos como Patax H-H-He - os quais, embora crescentemente relacionados aos povos aqui tratados em seus movimentos polticos e tnicos, tm percurso histrico e bases ambientais muito diversas (ver, respectivamente, Carvalho, 1977b e Paraso, 1982), e se localizam muito longe do eixo delineado pelo curso do baixo e submdio So Francisco, em torno do qual se articulam, ainda hoje, os ndios no Nordeste.

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O conhecimento dos povos indgenas no serto no sculo XX

No sculo XX, aps a criao do Servio de Proteo aos ndios (SPI), instalaram-se progressivamente, at a extino do rgo em 1967, nove Postos Indgenas na regio, a comear pela criao, no final dos anos vinte, do Posto Indgena Dantas Barreto para os Fulni- de guas Belas, Pernambuco. Em quase todos os casos a participao de religiosos e de intelectuais foi decisiva (Dmaso, 1931; Mello, 1929; Rosalba, 1976)33

. No h,

entretanto, pelo menos nos registros melhor conhecidos, destaque para a participao indgena nestes processos de mobilizao por reconhecimento tnico e por assistncia pelo Estado. Com exceo dos Fulni-, que desde fins do sculo XIX tm despertado a ateno de lingustas e estudiosos regionais (Branner, 1887; Mello, 1929; Oliveira, 1931; Pompeu Sobrinho, 1935; Boudin, 1949; Pinto, 1956 e Hernndez Daz, 1983), o conhecimento dos indgenas contemporneos no Nordeste era praticamente inexistente at os anos cinquenta34 quando, sobretudo em consequncia da grande pesquisa coordenada por Donald Pierson sobre o vale do So Francisco (Pierson, 1959), alguma ateno lhes dada e alguns trabalhos so realizados, dando conta sobretudo dos Xukur (Hohenthal Junior, 1954)35

,

Karir-Xok (Trujillo Ferrari, 1956 e 1957 e Hohental Junior, 1960a) e Pankarar (Pinto, 1958 e Hohenthal Junior, 1960a). O estudo desses grupos, entretanto, no aprofundado posteriormente e destes trabalhos apenas Hohenthal Junior (1954) e Pinto (1958) fornecem etnografias minimamente satisfatrias. Apenas na dcada de setenta aparecem monografias sobre os povos da Bahia: a de Bandeira (1972) sobre os Kirir, um trabalho descritivo mas bem complementado por uma interpretao dos seus dados em Carvalho (1977a), e as de Reesink (1978) sobre os Kaimb, e de Nssaro Nasser (1975) e Elizabeth Nasser (1975) sobre os Tux sobretudo no que diz respeito a economia e relaes intertnicas.36

, competentes

33

A conferncia pronunciada por Carlos Estvo de Oliveira no Recife em 1937 (Oliveira, 1937), e repetida alguns anos aps no Museu Nacional no Rio de Janeiro, pode ser considerada um marco nesta mobilizao. Destacaram-se tambm neste sentido o jornalista Mrio Mello e o Padre Alfredo Dmaso em Pernambuco, e o Padre Renato Galvo na Bahia. 34 Tinha-se ento basicamente o relato de visitas de Oliveira (1937). Os curtssimos artigos escritos por Lowie e Mtraux para Steward (1946) so quase que apenas histricos e classificatrios e do uma boa ideia da limitao do conhecimento a respeito dos grupos que ento se costumava chamar de "remanescentes indgenas". 35 Para os Xukur veja-se tambm Mello (1935). 36 Dados sobre os Tux tambm em Hohenthal Junior (1960a) e Carvalho (1982c).

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H ainda da poca uma descrio dos Xukur-Karir de Alagoas (Antunes, 1973) e o j referido trabalho de Amorim (1971) sobre os Potigwra da Paraba, teoricamente afinado com as idias ento hegemnicas a respeito de contato intertnico no Brasil e empenhado em uma compreenso modelar do campesinato indgena, mas etnograficamente bastante limitado37. Dentre os onze povos com postos indgenas implantados antes de 1980, no havia, at aquela dcada, qualquer estudo de possvel carter acadmico sobre os Atikm e sobre os Kambiw do Serto de Pernambuco. Acerca desses e de outros povos em Pernambuco merece referncia o levantamento realizado pela Coordenao de Desenvolvimento do Estado de Pernambuco (Condepe),em 1981, ao que tudo indica em ateno a perspectivas de "estadualizao" da assistncia a ndios passveis de "emancipao". A bibliografia ento disponvel sobre os povos "emergentes" era, como se poderia supor, quase inexistente, excetuando-se o caso Pankarar, j melhor conhecido (Soares, 1976; Rocha Jnior, 1983; Sampaio, 1984; Luz, 1985). Para os demais dispunha-se ento no mximo de alguns bons relatrios administrativos como os de Beltro (1980) para os Was, e Magalhes (1980), para os Truk.

O movimento tnico dos povos indgenas no nordeste

J me referi ao movimento indgena que tomou forma entre os anos setenta e oitenta no Nordeste. Evidentemente, esse movimento, a rigor, no comeou nesta poca. Praticamente todos os autores citados referem conflitos entre "brancos" e ndios e registram diversas iniciativas desses para garantir os seus direitos, inclusive bem antes da criao dos postos. Duas ordens de fatores, entretanto, parecem ter contribudo, em um plano externo s prprias comunidades indgenas, para modificar, quela poca, a natureza e a amplitude destas iniciativas. Em primeiro lugar, parece ter havido um sensvel aumento dos canais e das facilidades de comunicao entre estes povos e a sociedade nacional, fazendo com que a temtica indgena chegasse mais facilmente imprensa e opinio pblica. Em segundo lugar e principalmente, mas em parte decorrente do anterior, passou a haver uma articulao bem mais intensa entre os diversos povos, inclusive a nvel inter-regional. A nvel regional, as assembleias de lderes indgenas, organizadas pelo Cimi, passam a ocorrer com

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Para o conhecimento ento disponvel acerca dos Potigwra veja-se tambm Moonen (1975).

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frequncia e, em seguida, as prprias organizaes indgenas encarregam-se de promovlas38. Nesse mbito, o nvel das preocupaes tambm mudou. Embora as aspiraes de cada etnia com relao garantia de seus territrios e a outras questes ligadas ao atendimento das necessidades de suas comunidades permanecessem num lugar central, elas passam ento a aparecer sempre vinculadas, nos discursos e avaliaes crticas de lderes indgenas, a um quadro de referncia bem mais amplo. O seguinte trecho da carta-convite enviada pelo cacique xok aos demais povos da regio para a Assembleia Indgena de 1985 d bem uma ideia do que aqui se diz:

"Achamos o momento desta assemblia muito importante para ns porque esto acontecendo muitas mudanas nas leis que apiam os ndios e por isto achamos que devemos discutir estas coisas: a) UNI (Unio das Naes Indgenas); b) Assembleia Nacional Constituinte; c) Reforma Agrria; d) Funai" (Apolnio Xok, julho de 1985). Tambm no plano interno ocorrem mudanas sensveis. J me referi ao "esforo de organizao poltica", o qual se traduz sobretudo pela redefinio e valorizao de funes como as de "cacique" e "paj" e dos "conselhos tribais", e por um maior controle dos grupos sobre os seus prprios limites, pressionando a definio de indivduos e segmentos em situaes tnicas limtrofes ou pouco definidas39, estimulando as alianas internas entre os grupos de famlia atravs, por exemplo, dos mutires e roas comunitrias, e desencorajando fortemente os velhos laos de parceria econmica e social, como o compadrio, com setores da sociedade regional, especialmente aqueles poltica e economicamente dominantes. Todos esses processos transparecem no plano religioso em prticas rituais coletivas e regulares, caracterizadas pela incorporao pelos "mestres", ou outros especialistas socialmente definidos, de entidades sobrenaturais, os "encantados", que frequentemente podem tambm ser definidos como ancestrais. Tal propiciado por danas e cantos acompanhados pelo som de maracs e com trajes e outros aparatos especficos, nos quais aparecem profusamente elementos simblicos identificados como indgenas plumas, arcos e flechas, colares, fibras e que so acompanhados do uso, em grande quantidade, de tabaco

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A primeira dessas assembleias ocorreu em 1983 na "aldeia" Kirir (Rocha Jnior, 1983) e a segunda em setembro de 1985 na "aldeia" Xok na Ilha de So Pedro, Sergipe (conforme adiante). 39 Um processo muitas vezes estimulado tambm pelo estado nacional, preocupado em delimitar a sua administrao e interessado tambm no controle poltico dessas fronteiras.

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e da ingesto da jurema, bebida alucingena preparada com a entrecasca da juremeira (Oliveira, 1937; Hohenthl Junior, 1954; Pinto, 1956; Martins, 1985). Esses rituais, chamados "ouricuri", "prai", "tor" ou "particular", comportam diversas variaes de etnia para etnia, mantendo, porm, o essencial das caractersticas descritas. Alis, o uso ritual da jurema certamente um elemento privilegiado na autodefinio tnica destes grupos em seu conjunto, j que s eles, e todos eles, o praticam. A importncia desses rituais nos movimentos referidos pode ser atestada por sua revalorizao em muitos dos grupos e, mais, por sua adoo por parte de outros que no os realizavam, como os Kirir e os Atikm, alm de todos aqueles que aqui chamamos de "emergentes". Para estes, tais prticas se apresentam, com frequncia, como condio necessria e em grande medida auto-imposta para o seu "reconhecimento" tnico. De fato, o sentimento de "ser ndio" apreendido no discurso desses povos passa frequentemente pela participao nestes rituais; e ainda que, na verdade, em alguns casos, apenas parcelas relativamente reduzidas das comunidades efetivamente o faam, esse sentimento de participao transfere-se sua totalidade. Por outro lado, os emprstimos rituais, assim como os lingusticos tomados, por exemplo, ao Yaath, so elementos a mais de identificao entre os diversos povos do Nordeste, sem prejuzo, entretanto, das suas individualidades, inclusive em funo da intensa reelaborao ritual e simblica. Como diz Carvalho:

"(...) tais rearranjos tm lugar no mbito de um projeto coletivo que os circunscreve a todos, povos indgenas no Nordeste. o campo da luta poltica que torna possvel tal projeto, inicialmente projetos individualizados a nvel de cada identidade especifica, que vo se alargando como se fora em atendimento a certas exigncias histricas que s tornam possvel alcanar a 'unidade' na 'diversidade'" (Carvalho, 1982a: 12). Certamente muito h ainda a ser compreendido com relao a esses processos de identificao tnica e organizao poltica, e o que fiz aqui foi apenas descrever os seus aspectos mais visveis. As determinaes socioeconmicas e polticas a nvel regional e local, a dinmica das relaes de clientelismo e, ou, hostilidade com os segmentos regionais, o valor econmico e simblico atribudo pelas partes aos territrios em disputa, o jogo de presses e acordos e a subordinao com relao ao rgo governamental tutelar, os meandros das relaes internas entre os diversos grupos familiares cujos poder e prestgio so postos em cheque nestes processos, a constituio e o papel das lideranas, a elaborao Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, n 2, p. 88 191. Jul./dez. 2011. 111

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ideolgica e simblica em torno dos rituais e a institucionalizao destes face aos outros sistemas religiosos presentes no campo etc. so outros tantos aspectos inegavelmente importantes que merecem maior investigao e que, certamente, assumem configuraes variveis nos diversos casos. H, enfim, o caso dos grupos "emergentes" que tm vivido todos esses processos geralmente de forma bem mais intensa e crtica. Evidentemente o movimento tnico empreendido por estes ltimos tambm no comeou "de repente". A sua existncia enquanto segmentos sociais etnicamente diferenciados parece, na verdade, nunca ter deixado de ser ntida no plano local, e a oposio que sempre mantiveram com relao aos segmentos no indgenas a esse nvel atesta bem a vigncia anterior da sua afirmao tnica, at que a articulao regional dos diversos povos indgenas, o agravamento da situao fundiria, a esperana depositada no "reconhecimento" e, seguramente, uma srie de outras variveis ligadas aos aspectos referidos acima, dessem oportunidade expresso dessa afirmao em um movimento com outra dimenso. Um fato bastante recorrente nos processos de emergncia tnica indgena no Nordeste na poca aqui tratada a presena de vinculaes mais estreitas e historicamente marcadas desses povos "emergentes" com outros j "reconhecidos": dos Pankarar com os Pankarar atravs da extinta aldeia missionria de Curral dos bois, dos Truk com os Tux atravs da descendncia comum dos Prok e das misses dos "Rodelas", dos Kapinaw com os Xukur e Kambiw pela proximidade e por referncias histricas comuns etc. De resto, os seis povos reconhecidos, aps alguns anos de luta, em meados dos anos oitenta, e mais os dois ento em processo de emergncia mais recente, j referidos, no eram, evidentemente, de modo algum, os nicos dos quais se esperasse que pudessem empreender a uma tal "emergncia". Era j bastante sabida a existncia, no Serto, de vrias comunidades rurais distintas que, como nos casos referidos, situam-se em reas de antigos aldeamentos missionrios, ou nas proximidades desses, e que so, de algum modo, historicamente referidas a esses aldeamentos, nas quais a identidade indgena permanece, diramos, como que no ar. Referindo-se populao indgena no Nordeste poca, Carvalho diz:

"Este nmero, (...) tende a crescer tendo em vista fortes indcios que do conta da existncia de outras populaes, consideradas 'caboclas' pelos regionais, e que provavelmente Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, n 2, p. 88 191. Jul./dez. 2011. 112

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tendero a desencadear um movimento de afirmao de sua identidade tnica, semelhana do que ocorreu mais recentemente com os Pankarar (Bahia), Tingw-Bot e Wasu (Alagoas) e Kapinaw (Pernambuco)" (Carvalho, 1982a: 1). A prpria Funai demonstrava, ento, ainda que com preocupaes diversas, uma compreenso similar dos fatos na regio, o que seria expresso, por exemplo, em um radiotelegrama "urgente confidencial", dirigido sede do rgo em Brasllia pelo seu Delegado Regional no Recife poca da ecloso do caso dos Kapinaw:

"Face recentes ocorrncias grupos se dizem descendentes indgenas, rea esta DR [Delegacia Regional] e possibilidade processo tornar-se rotineiro virtude grande nmero caboclos todo Nordeste, peo V.S. laudo antropolgico situao grupo se intitula Capinau cidade Buque este Estado (...). Acrescento, alm dos 10 Postos Indgenas desta DR, apenas para os quais foi feita programao financeira, esta unidade j conta mais cinco grupos: Truk, Carri-Shoc da Ilha de So Pedro, Wau, Pankar e Capinaw. Aguardo brevidade possvel orientao esse Departamento sobre assunto" (Arajo, 1980). Quanto gnese desses movimentos, entretanto, Insistiria que esta deva ser investigada em seus casos particulares40 antes de qualquer possvel generalizao. Do quanto fica aqui dito, pretendo que afirmaes aparentemente conclusivas como "o tor ou o prai reafirma a identidade tnica", ou "a disputa pela terra a base dos movimentos tnicos indgenas no Nordeste", ou ainda "a etnicidade representa um vnculo organizacional poderoso", sirvam apenas para identificar questes gerais e orientar o percurso a ser trilhado nas investigaes. Sem dvida bom contar com essas idias, sabendo-se da sua devida dimenso explicativa. Na verdade, nem mesmo a questo fundiria se apresenta de maneira to uniforme quanto parece, pois, por detrs da invarivel presena de conflitos, h situaes diversas quanto existncia de demarcaes, aceitao destas pelas partes, sua homologao, a presena e a quantidade de invases, o estatuto histrico e legal das terras, sua extenso e

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Tentei, neste sentido, em Sampaio (1984), uma abordagem preliminar do caso dos Pankarar e as concluses parciais apontavam uma grande diversidade de fatores, desde a estrutura fundiria local e o carter do poder poltico municipal, at a construo das grandes hidreltricas de Paulo Afonso, uma maior presena do governo federal na regio e o forte fluxo migratrio para So Paulo, e consequente acumulao e incipiente hierarquizao econmica na rea, como alguns dos deflagradores de uma intensa polarizao tnica, de resto historicamente sempre presente, ainda que com graus e situaes variadas de "latncia".

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valor econmico, a qualidade dos solos, a densidade demogrfica etc.41, o que faz com que, tambm com relao a este aspecto, cada caso assuma uma configurao particular. Se, entretanto, se tomar a presena efetiva de movimentos tnicos ou no e o "reconhecimento" ou no pelo Estado nacional anteriormente a 1980 ou seja, at uma poca em que passa a haver maior transparncia dos movimentos como duas variveis especialmente significativas, se pode chegar proposio de quatro situaes bsicas no que diz respeito posio de diferentes povos indgenas face ao contexto tnico e poltico regional: 1) povos "tradicionalmente reconhecidos" mas com mobilizao tnica e reivindicatria intensa; 2) povos "tradicionalmente reconhecidos" com presena pouco significativa de mobilizao tnica de carter poltico organizacional ou reivindicatrio; 3) povos no "reconhecidos" pelo Estado Brasileiro at a dcada de oitenta e com presena marcante de mobilizao do tipo acima referido; 4) povos no "reconhecidos" e que afirmam muito tenuemente uma identidade etnicamente diferenciada, no a acionando com maior expresso poltica. Tendo em vista o contexto de poca aqui tratado meados da dcada de oitenta podiam ser identificados, no primeiro caso, os Kirir (Bahia), os Potigwra (Paraba), os Pankarar (Pernambuco), os Xukur-Karir (alagoas) etc.; no segundo os Xukur e os Kambiw (Pernambuco); no terceiro evidentemente todos os ento "emergentes", j "reconhecidos" (Pankarar, Xok, Tingw-Bot, Was e Kapinaw) ou no (Karapot, Tapeba); e no quarto grupos como os Trememb do litoral oeste do Cear (Seraine, 1956; Novo, 1976), os Akro no Piau, os Arikob no oeste da Bahia, os Payaku de Carabas no Rio Grande do Norte (Cabral de Carvalho, 1964)e certamente muitos outros42.

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Para balanos e avaliaes criticas da situao dos territrios indgenas no Nordeste, veja-se a srie de publicaes "Povos Indgenas no Brasil" (Aconteceu). 42 Como no se trata de proceder, aqui, a uma classificao exaustiva, deixo de identificar, como pertencentes ao primeiro ou ao segundo grupos, cinco dos povos "reconhecidos" antes de 1980, a saber: os Kaimb e os Tux na Bahia, os Karir-Xok em Alagoas e os Atikm e Fulni- em Pernambuco; este ltimo povo constituindo-se, de resto, em uma situao tnica especial dada a presena de uma lngua prpria. Por outro lado, conforme dito na nota 15 acima, h, em 2001, outros dezesseis povos indgenas perfeitamente identificados na regio aqui tratada. Desses, oito esto j "reconhecidos" pelo Estado em 2001 e outros oito ainda no. So eles: Povos j "reconhecidos": Pankar e Kantarur na Bahia, Karapot e Jeripank em Alagoas, Tapeba, Trememb, Pitaguar e Jenippo-Kanind no Cear. Povos ainda no "reconhecidos": Tumbalal na Bahia, Kalank e Karuaz em Alagoas, Pipip em Pernambuco - estes uma "dissidncia tnica" dos Kambiw - Kanind, Tabajra, Potigwra do Cear e as comunidades indgenas na cidade de Crates no Cear, sem dvida o estado em que o processo aqui tratado se fez mais intenso nos ltimos quinze anos.

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Dentre os quatro tipos propostos, dedico aqui ateno especial, enquanto situaes para investigaes em torno do tema da etnicidade, aos casos do terceiro tipo, dada intensidade, nesses, do processo de identificao tnica, entendido aqui como a produo de uma "cultura" e, simultaneamente, da "sociedade" que porta e se pauta por essa cultura (conforme Carneiro da Cunha, 1985). No plano poltico, a ateno a esses casos possibilita, ainda, o acompanhamento dos processos de "reconhecimento" tnico, podendo-se surpreender aqui, inclusive, os procedimentos em torno da implantao efetiva da tutela do Estado sobre estes segmentos sociais indgenas, com todas as alteraes vida de suas comunidades que isso tende a provocar, inclusive quanto aos parmetros de definio e aos limites tnicos. Descrevo a seguir, em linhas gerais e a ttulo de ilustrao, conforme dito, um desses casos de "emergncia tnica", o dos Kapinaw, que me parece de especial interesse pelo pouco conhecimento histrico acumulado sobre esse povo anteriormente ecloso do seu movimento tnico se comparado a outros povos em situao semelhante pelas relativas rapidez e autonomia na ascenso desse movimento pouco mais articulado justamente com os povos menos envolvidos, poca, com movimentos tnicos indgenas no Nordeste, os Xukur e os Kambiw e, por fim, pela diversidade de nveis de identificao tnica entre as comunidades formadas, no presente, pelo conjunto da populao historicamente referida ao aldeamento missionrio original, Macacos; nveis esses orientados, basicamente, por diferentes graus de envolvimento na situao de disputa fundiria subjacente ao processo de emergncia, a qual atingiu mais diretamente uma dessas comunidades, a do stio Mina Grande, com cerca de trezentos indivduos e cinquenta famlias (Vicente et al., 1985).

Kapinaw

"Em 23.01.80, a 3 DR [Delegacia Regional] informou ao DGO [Departamento Geral de Operaes] atravs do RDG [radiograma] n 106/3 DR, o comparecimento dos senhores Jos Antonio dos Santos e Pedro Manuel dizendo-se remanescentes de um grupo indgena 'KAPINAW', localizado no municpio de Buque PE. Informaram na oportunidade: 1) ser o grupo composto de 500 pessoas aproximadamente; 2) possurem documento de doao das terras, assinado pelo Imperador D. Pedro II e Princesa Isabel em 30.07.1874; 3) a existncia de um antigo cemitrio; 4)que a imprensa estava divulgando amplamente o assunto. Solicitaram a designao de antroplogo para verificar o grupo" (Pierson, 1981: 1). Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, n 2, p. 88 191. Jul./dez. 2011. 115

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Este foi o primeiro contato dos Kapinaw com o Estado Brasileiro. De fato, o "Dirio de Pernambuco" da data do supra referido "comparecimento" anunciava, em manchete, que "Paj pede proteo contra fazendeiros". Alguns dias antes, o primeiro dos indivduos mencionados, o paj, havia sido mais uma vez preso pela Polcia, no municpio de Buque, a mando de um conhecido grileiro de terras local Zuza Tavares "testa de ferro" de um grande empresrio do Recife Romero Maranho ambos empenhados em tomar dos ndios o stio Mina Grande, uma rea de 1.600 hectares onde viviam ento 48 de suas famlias (Pierson, 1981). Cinco dias depois, a Funai responderia, de Braslia, consulta de sua DR no Recife afirmando "desconhecer a existncia de aldeamento em Buque" e que "os ndios Kapinaw so considerados extintos no Brasil mas existem no Peru" (apud Pierson, 1981). De qualquer modo, uma funcionria do rgo seria enviada rea no ms seguinte e o seu relatrio (Pierson, 1981), datado de doze meses depois, nada diz de conclusivo a respeito da "deteco tnica" a que se havia proposto, referindo nada ter encontrado sobre os Kapinaw no Arquivo Publico em Recife ou no do Museu do ndio no Rio de Janeiro. Prope, por outro lado, a criao de um Grupo de Trabalho para efetuar novas investigaes. O relatrio traz em anexo a cpia de um registro de doao imperial de 1874, concedendo uma gleba de terra aos "ndios de Macaco". Esse define os limites da propriedade atravs de referncias a mais de uma dezena de marcos fsicos naturais, e cita nominalmente todos os chefes de famlia beneficirios da doao. Um informante idoso autorizado pela comunidade, Firmino Gomes da Silva, ouvido pela citada pesquisadora (Pierson, 1981) e por mim prprio em 1981, era capaz de recitar, de memria, toda a longa descrio de limites e de fazer a narrativa, idntica nos dois depoimentos, da histria do lugar, resumida a seguir: Um bisav do informante, o Alferes Felix Machado Gomes da Silva, o mesmo que encabea a lista de nomes no registro de doao, ndio "civilizado", pacifica e cristianiza um grupo de "ndios brabos" da Serra do Pui, parte da Serra Negra, a Oeste da Mina Grande. O cacique desses ndios, em retribuio, indica ao Alferes uma fonte secreta de gua e lhe concede as terras sua volta para que este a se estabelea com a sua gente.

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A fonte dos Macacos existe at hoje no local da antiga aldeia, a pouco mais de uma lgua da Mina Grande. L fica o cemitrio e l viveram e esto enterrados o av e o pai do informante43. Durante os anos de 1980 e 1981 a tenso e os conflitos fizeram-se crescentes na Mina Grande, aliando-se a morosidade da Funai em dar prosseguimento a "identificao" do grupo, a pressa dos grileiros em estabelecer o fato consumado com relao s terras antes de qualquer possvel interveno do rgo federal. Pude verificar em agosto de 1981 as diversas marcas de balas nos troncos das rvores e os sinais das cercas muitas vezes derrubadas e reerguidas de parte a parte. Essa situao chegaria a um clmax a 7 de fevereiro de 1982 quando, rompendo o cerco determinado pelo supra citado grileiro Zuza, alguns ndios foram feira na vila do Catimbau e a se envolveram em um conflito armado com alguns regionais, prepostos do grileiro, no qual resultariam mortos dois destes44. S ento um outro preposto da Funai seria enviado ao local, auxiliando a Polcia na identificao e priso de ndios (Levay, 1982). O paj Z ndio (Jos Antonio dos Santos), lder do movimento kapinaw e personagem mais visado pelos seus oponentes, permaneceria preso vrios meses, aps o que, face s ameaas, no ficaria vivendo por muito tempo mais junto comunidade. No mesmo ms de fevereiro chega Mina Grande o Grupo de Trabalho recomendado por Pierson um ano antes (op. cit.) e no ms seguinte estaria pronto o seu relatrio (Motta & Mello, 1982), desautorizando cabalmente a "indianidade" dos Kapinaw. Esse documento informa muito pouco sobre os Kapinaw, mas certamente diz muito do nvel de competncia e seriedade com que questes desse tipo eram tratadas pelo rgo indigenista poca. Consiste basicamente em uma lista de 42 "Concluses" e 22 "Sugestes" quase que invariavelmente descabidas. As primeiras determinam que "(...) a prpria formao do grupo enquanto indgena, FALSA", e chegam "(..) formulao da hiptese de que A IDENTIDADE DO GRUPO FOI INDGENA" (Motta & Mello, 1982: 8, grifos originais). J nas "sugestes", se prope "(...) aceitar a limitao do conceito sociocultural de auto-identificao, no reconhecimento quanto necessidade de sua reviso,43

Essa narrativa guarda uma srie de correspondncias com outra do mesmo gnero mantida e relatada por dois outros respeitados informantes idosos dos Pankarar (Sampaio, 1984 e Luz, 1985). 44 As ocorrncias fatais no so infrequentes nos conflitos envolvendo ndios no Nordeste e o saldo, como seria de se esperar, negativo para os ndios. Desde o assassinato do cacique dos Pankarar, no final de 1979, ocorreriam, at 1985, alm do caso mencionado, as mortes de dois posseiros em um tiroteio com os Truk em 1982, de um ndio Was e do chefe do Posto Indgena Atikum em 1983, e de um Kirir e outro Wasu em 1984, alm de leses graves em um Xok e em um Patax H-H-He.

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ao lado da humildade em perceber a limitao da cincia antropolgica", propondo a substituio desse conceito por outros com base na Antropologia Fsica (idem: 10). Naquele ano, porm, j cresciam inapelavelmente as presses dos movimentos indgena e indigenista pelo reconhecimento oficial dos seis povos emergentes ento "em luta" no Nordeste, com muitos casos de conflito armado e repercusso na imprensa regional e nacional, de modo tal que o prprio rgo indigenista governamental acabaria por rever a sua poltica em relao a estes casos no sentido do "reconhecimento". Nesse novo contexto, os documentos at ento produzidos por tcnicos do rgo a respeito dos Kapinaw (Pierson, 1981; Levay, 1982 e Motta e Mello, 1982) devem ter se tornado testemunhos incmodos no processo de implantao da administrao federal junto ao grupo, tanto que a direo do rgo, informada da visita rea, em 1981, de uma equipe do PINEB (Programa de Pesquisa POvos Indgenas no Nordeste do Brasil) da Ufba (Universidade Federal da Bahia), passou a solicitar, insistentemente, sua coordenadora, um breve parecer sobre o caso, o qual (Carvalho, 1982b) seria emitido ainda em 198245. O Posto Indgena Kapinaw seria finalmente criado, por Portaria da Presidncia da Funai, em novembro de 1982, e implantado no ano seguinte. Em seus primeiros anos de existncia funcionava, como os demais novos postos recm-implantados na regio, em condies muito precrias de assistncia s comunidades indgenas, tendo tido, contudo, o efeito de arrefecer significativamente a intensidade dos conflitos pela posse da terra. Antes disto, porm, Conforme informa o "Porantim", em agosto de 1982, "o grileiro Romero Maranho mandou seus jagunos invadirem a rea Kapinaw com tratores. Bastante sofisticados, at mesmo um helicptero deu cobertura a invaso", em uma operao que rendeu aos agressores cerca de 800 hectares de terra (Porantim, 45, novembro, 1982) 46.45

Anos mais tarde, em 1993, quando se encaminhava o processo de demarcao da Terra Indgena Kapinaw, os referidos documentos, contidos no processo administrativo, voltariam a ser percebidos como complicadores em seu andamento junto ao Ministrio da Justia, e mais uma vez a direo do rgo viria a solicitar um parecer a um pesquisador acadmico com experincia de trabalho junto ao grupo, desta vez eu prprio. O trabalho resultante, encaminhado a Funai naquele ano, seria em seguida publicado, com pequenas alteraes, sob forma de artigo (Sampaio, 1995). 46 O estudo de identificao e delimitao da Terra Indgena Kapinaw seria realizado em 1984 (Sant'Anna, 1984), ocasio em que a Funai negociou com o novo proprietrio da fazenda em litgio com os ndios da Mina Grande, o deputado federal Ricardo Fiza, a desocupao dos 800 hectares tomados comunidade em 1982, conforme referido na matria citada. A dita rea deveria permanecer desocupada de parte a parte at que a Funai se pronunciasse sobre o estudo de delimitao da Terra Indgena. Entretanto, os Kapinaw reocupariam por conta prpria a rea em 1988, diante de infrutferos protestos junto Funai de j um terceiro proprietrio da fazenda. Conforme dito na nota anterior, o processo de demarcao da Terra Indgena s seria diligenciado pela Funai junto instncia superior encarregada, o Ministrio da Justia, em 1993. Por sua vez, somente trs anos mais tarde, em 1996, este Ministrio publicaria a Portaria reconhecendo a rea como de posse indgena e determinando a sua demarcao fsica, o que seria realizado pela Funai no ano seguinte, 1997.

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Uma abordagem preliminar dos episdios acima permite supor que a denominao Kapinaw tenha sido, muito provavelmente, adotada por esses ndios no prprio curso inicial do seu processo contemporneo de afirmao tnica, e no surpreende que os pesquisadores da Funai no a tenham encontrado nos arquivos histricos. Se, entretanto, se houvesse seguido a pista da aldeia de Macacos, destacadamente presente na memria social dos Kapinaw e referida no documento insistentemente apresentado por eles e que reporta um registro original de 1874 se poderia encontrar, mesmo sem ir a arquivos, j na "informao geral da Capitania de Pernambuco", escrita em 1749 por um autor desconhecido, a seguinte referncia existncia ento, na Freguesia do Ararob, de uma: "Aldeia de Macaco, no tem missionrio, e o que teve era sacerdote do hbito de Sam Pedro, tem uma nao de Tapuios Paraquiz, e 182 pessoas" ("Informao...", 1749: 422). Um outro cronista da poca, aparentemente baseado, ao menos em parte, no anterior, situa Macacos na "Ribeira Panema" (COUto, 1757: 170), da qual, efetivamente, no distante. Essas duas crnicas foram publicadas pela Biblioteca Nacional em seus "Annaes" na primeira dcada do sculo XX e Hohenthal Junior, em um trabalho publicado em 1954, j menciona haver "documento da Biblioteca Nacional", do sculo XVIII, que refere a aldeia de Macacos ou do Macaco (Hohenthal Junior, 1954: 100). No disponho de outras referncias aldeia de Macacos anteriores ao registro de 1874. sabido, porm, que, por volta de 1800, ndios no submetidos a aldeias missionrias ainda perambulavam pela Serra Negra, que fica imediatamente a Oeste do territrio de Macacos, separada deste pelo vale do rio Moxot. Esses ndios seriam aldeados nesta poca pelo Padre Vital de Frescarolo, nas localidades de Jacar e Gameleira, conforme relato do prprio padre (Frescarolo, 1802).

Em 1999 o Presidente da Repblica assinaria o decreto de homologao da demarcao da rea, autorizando, enfim, o seu registro como Terra Indgena nos cartrios competentes. Permaneciam, contudo, no interior da rea, algumas poucas dezenas de posses de no ndios nela intrusadas anteriormente ao contexto das grandes disputas fundirias a partir da dcada de setenta, e que ainda ocupavam as melhores terras dos Kapinaw das comunidades de Ponta da Vargem e Julio. Finalmente, a 17 de janeiro de 2001, o Dirio Oficial da Unio publicaria Portaria da Funai determinando o pagamento, aos referidos ocupantes no ndios, de indenizaes por benfeitorias por eles implantadas "de boa f". o primeiro passo para que os Kapinaw possam vir a ocupar pacificamente a totalidade de sua Terra ainda esse ano. Entre 1988 e 2000 nada menos que seis kapinaws foram assassinados em circunstncias no esclarecidas, quase sempre em emboscadas solitrias nas estradas que ligam as comunidades indgenas s povoaes regionais prximas.

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Foram, na verdade, aldeamentos de existncia efmera. Escrevendo em 1813, Aires do Casal refere que aqueles ndios j comeavam a "desertar de suas aldeias" (Aires do Casal, 1813: 254), voltando a vagar livremente pelas ridas serras da regio47. S voltariam a ser administrativamente aldeados quando da implantao, j na segunda metade do sculo XX, dos Postos Indgenas Atikum e Kambiw. Penso que a narrativa resumida acima sobre o contato entre ndios "civilizados" e "brabos" possa, de fato, ser uma aluso a contatos entre ndios da Serra Negra e aqueles j anteriormente aldeados em Macacos e Cimbres respectivamente Praki e Xukur na primeira metade do sculo XIX. Sabe-se que as aldeias de ndios em Pernambuco foram formalmente extintas em 27 de maro de 1872 (Hohenthal Junior, 1960a: 41) e isto explicaria a "doao" de 1874, feita s famlias indgenas, nominalmente, provavelmente de parcela do territrio original da "extinta" aldeia48. A memria dos Kapinaw costuma associar esta doao participao dos ndios na guerra do Paraguai, o que atestado historicamente. Vale lembrar que o principal representante dos ndios